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O conceito de normalidade z Oconceito de satide AEs) de normalidade SAIS | em psicopatologia é PoE cere questo de grande controvérsia (Al- meida Filho, 2000). Obviamente, quando se trata de casos ex- tremos, cujas alteragbes comportamentais mentais so de intensidade acentuada e de longa duragao, o delineamento das fron- teiras entre o normal e o patoldgico nao to problematico. Entretanto, ha muitos casos limftrofes, nos quais a delimitagao entre comportamentos e formas de sentir normais e patolégicas é bastante dificil. Nessas situacées, 0 conceito de normali- dade em satide mental ganha especial re- levancia. Alids, 0 problema nao é exchusi- vo da psicopatologia, mas de toda a medi- cina (Almeida Filho, 2001); tome-se como em psicopatologia ue é loucura: ser cavaleiro andante ‘ou segui-lo como escudeiro? De nés dois, quem o louco verdadeiro? © que, acordado, sonha doidamente’ ssmo vendado, © sonho de um doido pelas bruxas embruxado? Carlos Drummond de Andrade (Quixote e Sancho de Portinari, 1974) exemplo a questéo da delimitagao dos ni- veis de tenséo arterial para a determina- ao de hipertensao ou de glicemia, na de- finicao do diabete. Esse problema foi cui- dadosamente estudado pelo filésofo e mé- dico francés Georges Canguilhem (1978) cujo livro O normal e o patolégico tornou- se indispensdvel em tal discussao. O conceito de normalidade em psico- patologia também implica a prépria defi- nigao do que é satide e doenga mental. Esses temas apresentam desdobramentos em varias areas da satide mental. Por exemplo: 1. Psiquiatria legal ou forense. A determinagio de anormalidade psicopatolégica pode ter impor- tantes implicagdes legais, crimi- nais e éticas, podendo definir 0 32 Paulo Dalgalarrondo destino social, institucional e le- gal de uma pessoa. Epidemiologia psiquitrica. Nes- te caso, a defini¢ao de normalida- de é tanto um problema como um objeto de trabalho e pesquisa. A epidemiologia, inclusive, pode contribuir para a discussao e 0 aprofundamento do conceito de normalidade em satide. Psiquiatria cultural e etnopsi- quiatria. Aqui o conceito de nor- malidade é tema importante de pes- quisas e debates. De modo geral, 0 conceito de normalidade em psico- patologia impée a andlise do con- texto sociocultural; exige necessa- riamente o estudo da relagao entre o fendmeno supostamente patolé- gico e o contexto social no qual tal fenémeno emerge e recebe este ou aquele significado cultural. Planejamento em satide mental € politicas de satide. Nesta drea, & preciso estabelecer critérios de normalidade, principalmente no sentido de verificar as demandas assistenciais de determinado gru- po populacional, as necessidades de servigos, quais e quantos servi- gos devem ser colocados a dispo- sicdo desse grupo, etc. Orientagao e capacitagao pro- fissional. S4o importantes na de- finigéo de capacidade e adequa- do de um individuo para exercer certa profiss40, manipular maqui- nas, usar armas, dirigir veiculos, ete, Como, por exemplo, o caso de individuos com déficits cognitivos € que desejam dirigir veiculos, pessoas psicéticas que querem portar armas, ou sujeitos com eri- ses epilépticas que manipulam mé- quinas perigosas, ete. Pratica clinica. f! muito importan- tea capacidade de discriminar, no proceso de avaliagao e interven- cao clinica, se tal ou qual fendme- no é patolégico ou normal, se faz parte de um momento existencial do individuo ou é algo francamen- te patolégico. CRITERIOS DE NORMALIDADE Hi varios critérios de normalidade e anor- malidade em medicina e psicopatologia. A adocao de um ou outro depende, entre outras coisas, de opgGes filoséficas, ideo- légicas e pragmaticas do profissional (Canguilhem, 1978). Os principais critérios de normalidade utilizados em psicopato- logia sao: 1. Normalidade como auséncia de doenga. O primeiro critério que geralmente se utiliza ¢ 0 de satide como “auséncia de sintomas, de sinais ou de doengas”. Segundo ex- pressiva formulacao de René Le- riche (1936): “a satide é a vida no siléncio dos érgaos”. Normal, do ponto de vista psicopatolégico, seria, ento, aquele individuo que simplesmente nao & portador de um transtorno mental definido. Tal critério é bastante falho e pre- cario, pois, além de redundante, baseia-se em uma “definigéo ne- gativa”, ou seja, defini-se a nor- malidade nao por aquilo que ela supostamente é, mas, sim, por aquilo que ela nao é, pelo que Ihe falta (Almeida Filho; Jucé, 2002). 2. Normalidade ideal. A normalida- de aqui é tomada como uma certa “utopia”, Estabelece-se arbitraria- mente uma norma ideal, o que é supostamente “sadio”, mais “evo- luido”, Tal norma é, de fato, social- mente constituida e referendada. Depende, portanto, de critérios socioculturais e ideolégicos arbitré- Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais_ 33. rios, e, as vezes, dogmaticos e dou- trindrios. Exemplos de tais concei- tos de normalidade sio aqueles com base na adaptagao do indivi- duo as normas morais ¢ politicas de determinada sociedade (como ‘nos casos do macarthismo nos EUA. € do pseudodiagnéstico de diss dentes politicos como doentes ‘mentais na antiga Unido Soviética). 3. Normalidade estatistica. A nor- malidade estatistica identifica nor- ma e freqiiéncia. Trata-se de um conceito de normalidade que se aplica especialmente a fenémenos quantitativos, com determinada distribuigdo estatistica na popula- cao geral (como peso, altura, ten- sao arterial, horas de sono, quan- tidade de sintomas ansiosos, ete.). © normal passa a ser aquilo que se observa com mais freqiiéncia. Os individuos que se situam esta- tisticamente fora (ou no extremo) de uma curva de distribuigio nor- mal passam, por exemplo, a ser considerados anormais ou doen- tes. E um critério muitas vezes fa- Iho em satide geral e mental, pois nem tudo o que é freqiiente é ne- cessariamente “saudavel”, e nem tudo que é raro ou infreqiiente é patolégico. Tomem-se como exem- plo fenémenos como as céries dentérias, a presbiopia, os sinto- mas ansiosos e depressivos leves, © uso pesado de dlcool, fenéme- nos estes que podem ser muito fre- giientes, mas que evidentemente nao podem, a priori, ser conside- rados normais ou saudaveis. }. Normalidade como bem-estar. A Organizagdo Mundial de Saide (WHO, 1946) definiu, em 1946, a satide como 0 completo bem-es- tar fisico, mental e social, e nao simplesmente como auséncia de doenga. E um conceito criticével por ser muito vasto e impreciso, pois bem-estar é algo dificil de se definir objetivamente. Além disso, esse completo bem-estar fisico, mental e social ¢ to utépico que poucas pessoas se encaixariam na categoria “saudaveis”. Normalidade funcional. Tal con- ceito baseia-se em aspectos fun- cionais e néo necessariamente quantitativos, O fenémeno é con- siderado patolégico a partir do momento em que € disfuncional, produz sofrimento para o préprio individuo ou para o seu grupo social . Normalidade como proceso. Neste caso, mais que uma visio estatica, consideram-se os aspec- tos dindmicos do desenvolvimen- to psicossocial, das desestrutu- rages e das reestruturagdes ao longo do tempo, de crises, de mu- dancas prdprias a certos perfodos etarios. Esse conceito é particu- larmente «til em psiquiatria in- fantil, de adolescentes e gerid- trica. . Normalidade subjetiva. Aqui é dada maior énfase a percepgio subjetiva do préprio individuo em relacao a seu estado de satide, as suas vivéncias subjetivas. O ponto falho desse critério é que muitas pessoas que se sentem bem, “mui- to saudaveis ¢ felizes”, como no caso de sujeitos em fase maniaca, apresentam, de fato, um transtor- no mental grave Normalidade como liberdade. Alguns autores de orientagao fe- nomenolégica e existencial pro- poem conceituar a doenca mental como perda da liberdade existen- cial (p. ex., Henri Ey). Dessa for- ma, a satide mental se vincularia 34 Paulo Dalgalarrondo as possibilidades de transitar com graus distintos de liberdade sobre 0 mundo e sobre o préprio desti- no. A doenca mental é constran- gimento do ser, é fechamento, fossilizagdo das possibilidades existenciais. Dentro desse espirito, psiquiatra gaticho Cyro Martins (1981) afirmava que a satide men- tal poderia ser vista, até certo pon- to, como a possibilidade de dispor de “senso de realidade, senso de humor e de um sentido poético pe- rante a vida”, atributos estes que permitiriam ao individuo “relati- vizar” os sofrimentos e as limita- ges inerentes & condigéo huma- na e, assim, desfrutar do resqui- cio de liberdade e prazer que a existéncia oferece. Normalidade operacional. Trata- se de um critério assumidamente arbitrério, com finalidades prag- maticas explicitas. Define-se, a priori, 0 que & normal e o que é patoldgico ¢ busca-se trabalhar operacionalmente com esses con- ceitos, aceitando as conseqiiéncias de tal definicdo prévia. Portanto, de modo geral, pode-se concluir que os critérios de normalidade e de doenca em psicopatologia variam consideravelmente em funcao dos fené- menos especificos com os quais se traba- Iha e, também, de acordo com as opcées filoséficas do profissional. Além disso, em alguns casos, pode-se utilizar a associa- 40 de varios critérios de normalidade ou doenga, de acordo com o objetivo que se tem em mente. De toda forma, essa é uma rea da psicopatologia que exige postura permanentemente critica e reflexiva dos profissionais.

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