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2, ACAVAGAO O mercado, vimos, esti dominado pelo produto importa- do; ele nao solicita, nao precisa do filme brasileiro. O produtor brasileiro nao precisa existir. Isso nao impede que vez ou outra aparecam filmes, e até de sucesso, ¢ de grande sucesso, como guarant (Capellaro, 1926 — alias, coproduzido e distribuido pela Paramount). Mas certamente nao é uma produgao suficiente- mente regular e lucrativa para sustentar um quadro de produto- res com um minimo de equipamento, laboratories, know-how. No entanto, os cineastas esto af e produzem sem interrupcao. Parece que se dé um fenémeno que s6 poderia ocorrer numa cinematografia dominada. “As sessoes de ontem foram concorri- dissimas pelo fato de constar no programa as fitas sobre as inun- dagées de anteontem, as quais agradaram imensamente”, comen- ta O Estado de S. Paulo (6/2/1909) a respeito do programa do dia 5 num cinema paulista. As inundagées do dia 4 em Sio Paulo: a quem isso podia interessar? A bem pouca gente, mas sem diivida aos paulistas. Como interessavam aos cariocas € aos santistas as tradicionais ressacas que inundavam as avenidas a beira-mar no Rio e em Santos. Essas ressacas cinematografadas constitufam até um espetéculo curioso para os paulistanos. Enfim, uma série de assuntos era do interesse das plateias locais, mas nao interna- cionais. Os europeus € os norte-americanos enchiam o Brasil de filmes de ficgdo, pois a industria vinha se desenvolvendo exclu- sivamente em fungio do filme de enredo. Aos produtores que atingiam os mercados internacionais, porém, nao interessavam assuntos de alcance, digamos, municipal. Criou-se assim uma rea livre, fora da concorréncia dos produtores estrangeiros. Desenvolve-se uma produgio de documentarios — ou “na- turais” como chamados na época — e de cinejornais. Um le- 7 i —~ vantamento da exibigio cinematogrifica em $35 Pauly indica que nada menos de 51 jornais cinematograne os apareceram nas telas paulistas nesse period, 4.” vida eurta, outros no, como o Rossi Atwalidades que or ty “ J. Vai sem interrupeio de 1921 a 1981. Natura e cinejomnai a Me santos leas futebol 0 carnaval as queries» etn das rodovias, as inauguragdes, a6 vantagens de uma jl de alguma fébrica quando os donos querem valorizar cong ou una figura polite, alguns grandes acontecimentos pao revolucio de 1924, de 1930, sempre apresentados do yo vist de quem fica com 0 poder (Seno a politen ou pm Maior nfo autorizam a exibigio). E verdade que ass interes do acontecimentoultrapassa as Fonteias arg Brasil dos soberanos da Belgica, de um presidente da Reniite> francesa, a chegada do balao alemao Graf Zeppelin —, logy to aqui os cinegrafistas estrangeiros, e s6 excepeionalmente documentaristasbrasileiros conseguem vender seus filmes nan fora. © caso do paranaense-italiano Gross, que vendew aoserg vistas das cataratas de Iguacu € excepcional. Indiscutivelmente, 0 que sustenta a producio brasileira ngs primeiras décadas do século so esses filmes, nio os de fegie Sio eles que asseguram um minimo de regularidade ao trabalng dos produtores, permitem que se sustente um certo equipamen- to, laboratérios etc. O cineasta José Medina diz que nunca per deu dinheiro com os varios filmes de ficgio de curtas e lon metragens que fez em Sao Paulo na década de 1920, conforme depoimento no filme José Medina. Acreditemos, Mas teria con- seguido apresentar uns oito filmes em dez anos (Exemplo rge- nerador, 1919, Fragmentos da vida, 1929), nao houvesse a firma de Gilberto Rossi, com quem ele trabalhava, langado, aproxima- damente no mesmo periodo, mais de duzentas edigdes do Rosi Atualidades? Pode nao ter perdido dinheiro com esses filmes, mas era o jornal que assegurava 0 equipamento, o laborat6rio e a permanéncia de Rossi na profissio. ; E sabido —e esse é um trago de toda a historia do cinema até hoje, dominada que esta pela indastria da fiegaio que filmes 38 de curta metragem, particularmente documentirios, no tém mercado nem piblico especifico: os espectadores pagam para assistir a0 filme de ficg3o, os curtas vém de lambuja. Portan- ‘io € do pblico nem dos exibidores que os produtores de naturais e cinejornais podiam tirar o dinheiro necessério para sustentar sua produgio. Vejamos 0 seguinte poema: “Primeira parte — Sua Exa. Dr. Eloi Chaves, homenagem — Visita dos grandes dreadnoughs ‘Sao Paulo’ e ‘Minas Gerais’, da marinha brasileira, a0 nosso porto de Santos — Um grupo da brilhan- te oficialidade — Bom tipo de marinheiro nacional — A Asso- ciagao Brasileira de Escoteiros, diretorias. Drs. Mario Cardim, Sampaio Viana, Ascinio Cerqueira e o Coronel Pedro Dias de Campos — Os escoteiros de Sao Paulo em excursio ao Barro- -Branco — Transmissao de ordem, entre os monitores Carlos P. Penteado ¢ Cunha Bueno — A palavra ‘Escoteiro’ escrita pelo cédigo da ‘associagao’ — Os brasileiros devem encorajar seus fi- Ihos a se inscreverem na ABE, que cuida de sua educacio civica, moral e esportiva — O Dr. Rodolfo Miranda. — Segunda parte: Uma visita as oficinas de ‘Estado de Sao Paulo’, um dos orgios mais importantes da imprensa brasileira — Fachada do edificio — Composi¢ao em linotipo; composicao em caixa; tiragem de provas; paginagio; estereotipia; execugdo de matrizes para fun- digio — Como se faz um cliché zincogréfico em todas as suas fases — Saida do pessoal das oficinas — Terceira parte: O corso na Avenida Paulista continua a ser o rendez-vous chique de nossa sociedade. Entre os automéveis apanhados pelo nosso operador, além de muitos outros, pudemos notar os seguintes: Familia Dr. Bento de Camargo — Familia Rego Freitas — Anibal Lacerda Raul Vieira de Carvalho — Duarte de Almeida — Os automé- veis 440 e 28 — Familia José Roberto Leite Penteado Filho — Drs. Everardo de Souza — Familia Barros — Dr. Adolfo Pinto e Sra. — Antonio Carvalho e familia — Familia Freire da Silva — muitos € muitos outros — A nossa jeunesse. Perfil do Sr. W.S. A. —De uma sacada do Hotel d’Oeste, gentilmente oferecida pelo seu proprietario, conseguimos tirar, sem que fossemos percebi- dos, a saida da missa da Igreja de Sio Bento, domingo pasado, 39 onde estiveram presentes: Mine. Caio Prado — Fam om vime, Pedro de Lacerda — ML Mme, Fabio Brn i lia Martinho Prado — Familia Sampaio Vidal — ime 2% Prado Jr. — M.e Mme. Alves de Lima e muitos onal ‘nig ngulo as quintas; ngs rador percorrendo as ruas centrais: Viaduto, Rua Dire. ge Novembro, Rosario, Largo Sio Bento, Libero Badr, gang’ 1s perspectivas mais curiosas ¢ interessantes —O Dr, Sametit Neves — As modas entre nds... — As artistas Renée Berth, h Alexandre e Fernanda d’Argentan, apresentando lindagor” ces clas modistas: Mme, Pereira ¢ Mme. Marcelle" (0 Bad 5. Paulo, 5/4/1915). Esse o resumo da segunda edigio da Resng Brasil Cinema, a qual se apresenta como ‘jornal independent sem cor politica e sem ... substdios”. Imaginem se tivesse! Subs. dios, esses produtores tinham é que tirar de quem tem dinhei pessoas ricas que querem promover seu nome, empreendimen. tos, produtos, atos politicos e mundanos ¢, naturalmente, fer filmes de agrado dos patrocinadores. A produgo cinematogri- ca brasileira assenta-se num documentirio exclusivamente lige do a uma elite mundana, financeira, politica, militar, eclesistica, tie que os cineastas so dependentes. “As trés horas da tarde de ontem, no confortével e popular Bijou Teatro, em presenga dos representantes das autoridades do Estado e da imprensa, supe- rintendente e chefe do trifego da ‘Sao Paulo Railway’ e de vis pessoas gradas, a exibicio de diversos ‘filmes’ de assuntos locas, entre os quais a grande fita tirada na Serra de Santos [1] A re- ferida fita reproduz, com muita perfeigao, os lindos trechos di Serra do Mar, atravessados pela ‘S. Paulo Railway’, desde Piassa- guera até a estagio do Alto da Serra.” Esta nota de O Bstado de. Paulo (21/1/1909) da boa sugestao da situagio do documentaris- ta da época, Se operdrios, camponeses, soldados ete, aparece, nunca sera para mostrar sua vida ou seu trabalho. Seré para mos trar um “bom tipo” de marinheiro. Operarios: mostrando uma fabrica, em que operdrios nao poderao deixar de estar presentes significario o poderio do proprietdrio. Se se mostram opel rios almogando, como num documentério patrocinado pela mes nao pudemos obter. — O Tr 40 brica Votorantin, em Sorocaba, 0 almogo se tornars, conforme os letreiros do filme, um “espetaculo curioso” ‘Acimara do documentarista da época era a cimara do po- der, Na sua comunicagio ao 1 Simpésio do Filme Documental Brasileiro (Recife, 1974), Paulo Emilio j4 tinha chamado de “ritual do poder” um dos aspectos hisicos desses naturais (sen- do 0 outro o “berco espléndido”); ele referia-se aos intimeros filmes que relatam atos dos presidentes da Reptiblica ¢ da elite do poder. No entanto, essa qualificagio pode ser estendida a filmes que no tratem dessas personalidades, e que até abordam assuntos populares. A essa conclusio nos leva a visto de do- cumentétios recém-recuperados, como A santa de Coqueiros (cerca de 1929) e As curas do professor Mozart (cerca de 1922).A santa Manoelina faz curas no sertio mineiro, sua casa, tal como aparece no filme, fica isolada no meio do mato, a multidio de seus adeptos sdo pessoas do povo. E isso que o cinegrafista re- gistra. Mas registra também que, na oportunidade, estavam presentes um jornalista que o ajudou no trabalho e uma comis- sio de “académicos” que tinha ido averiguar os “milagres”. F bastante provavel que nao haja ai nenhuma coincidéncia: 0 ci- negrafista nio foi por decisio propria procurar Manoelina no sertao, foi acompanhando a comissio. O mesmo ocorre com 0 Professor Mozart, as filmagens incluem um jantar com um de- putado ¢ um jornalista. A aproximagao desses assuntos “popt- lares” se da através de atos da elite, a reboque dela. Desse mo- do, podemos aceitar a expressiio de Paulo Emilio, deslocando uum tanto a sua significacio: nao s6 quando sio filmados presi- dentes da Republica ou outras autoridades verifica-se o “ritual do poder”, e nfo & 0 assunto que determina o ritual (hipoteti- camente poderiam existir filmes referentes a presidentes que nao participem desse ritual), mas o tipo de produgio e o enfo~ que pelo qual é abordado o assunto. Jornais atuais como 0 de Primo Carbonari ou o Canal 100 € suas matérias pages, ou os documentirios patrocinados de Jean Manzon ou 1 Rozemberg sio simples prolongamentos dessa fase. 41 No entanto, no se deve pensar que, por esp pendente da elite que o documentitio e 6 cingjgnngt"®S de fiegio desse mais amplo papel a0s operitios¢ 3e 0,2 ten, sociais. Os emigrantes italianos que filmavam em Sie nt puderam deixar de ter contato com meios operarios pia) Nig sociagdes de socorro muituo, com grupos favoraveis a, Mas : mo. Mas, pelas informagdes que se tem sobre o seu cine 0 an; fi i ma, disso se reflete nos filmes. Esses emigrantes estavam a 1 Nada atris de ascensio social e a ideologia que inspira seus Ape? sem diivida pequeno-burguesa. Por outro lado, esforann se em se integrar na nova sociedade em que viviam, de mode eles vio buscar temas na literatura e na Histria do Brass sqaran (1916, 1926), Jnacéncia (1913), O grita do Ipiranga (gy sio alguns dos assuntos que abordam, e tudo indica que eses mes encaixavam-se num quadro de valores bastante oficial, Pele menos uma vez.0 movimento operério foi abordado pelo cinem, paulista mudo: Luzes gue se apagam (1929), que teria sido dest. ido por um incéndio antes de sua apresentac3o ou nao teria sido realizado, € um filme de José Medina, descendente de uma fan lia operaria de Sorocaba: seu pai trabalhava na Votorantin, onde ele mesmo comegou a trabalhar. Luzes que se apagam & a hisia de uma greve, ¢ basta um resumo do enredo para se ter ideia de como era enfocado 0 movimento operirio na talvez tnica ver em que foi abordado pelo cinema de ficgo da época: um gr po de opersrios da Light reivindica aumento salarial e ameaa desligar as luzes da cidade, caso nao seja atendido. A esposs do lider esta contra essa ago que s6 poderd acabar mal. No dia em que se esgota 0 prazo estipulado pelos operirios, a filha do lider é vitima de um acidente. O médico decide operé-la de urgéneia é As reivindicagdes nfio so atendidas; os operdrios desligam as ie zes. A operacio, por falta de luz, é interrompida. O operario et» contra entio sua filha morta em consequéncia da interrups#0 operagdo (ver Maria Rita Galvio: Crénica do cinema panlist A ideologia dos naturais e dos cinejornais, portanto, nao apenas de uma estrutura de produgio a que teriam tido submeter os documentaristas; é uma ideologia encampa #2 cineastas em geral. Toda a filmografia de José Medina, entre ou- tros, é uma apologia do conservadorismo moral ¢ politico. Voltando aos naturais: Gilberto Rossi era respeital, mas de modo geral esses cinegrafistas eram malvistos; eles tinham é que descolar a grana, qualquer trambique valia, ¢ o filme resul- tante nem sempre era ld aquela maravilha. As vezes nem filme havia. Eram os “cavadores”, ¢ nio havia quem nao desancasse os cavadores, atribufam-se-lhes todos os males do cinema bra- sileiro. Porque cinema nao era isso. Cinema era filme de ficgao, com estrelas glamorizadas. Aquele espeticulo prestigioso que as telas exibiam no Brasil, mas que os brasileiros — Deus sabe por que maleficio — nio conseguiam fazer. Todos queriam fazer filmes de ficgo. Mas a realidade cinematogréfica mais sélida era o natural, 0 cinejornal, a cavagio. O filme de ficgao era o sonho, © desejo, a vontade, mas era a realidade dos outros. S6 pode provocar espanto a frase seguinte: “E 0 tinico que poderd triunfar porque mais ficil de ser feito e menos dispendioso”. E Mario Behring, diretor da revista Cinearte, falando do filme natural (citado por Paulo Emilio em Humberto Mauro, Catagua- ses, Cinearté). Pois 0 tom costuma ser outro: “O meio sujo dos cavadores, piratas, imbecis, ignorantes de cinema e até ladrdes”, diz Adhemar Gonzaga (idem). Mas a realidade é mais forte: 0 proprio Gonzaga, na Cinédia, passa a fazer naturais e um Cinédia ‘Jornal, pois isso ajuda um bocado para sustentar a empresa, ain- da mais depois que Vargas assinou o decreto do “complemento nacional”. E. essa situagio prossegue hoje: quantos cineastas, para se sustentar, ¢ quantas produtoras de longas-metragens nao se voltam para o filme de publicidade ou o documentirio institucional? O tradicional desprezo pelas cavagoes reflete-se em outro terreno. Os livros de histéria do cinema brasileiro sao sempre histérias do filme de fico. Com excegio de Maria Rita Galvao na sua Crénica do cinema paulistano ¢ Paulo Emilio em Humberto Mauro... os historiadores nio reconhecem que o que sustentou eB —™ « produgio local io foi o filme de fiee0. As prima-dona hhetsrias sio Humberto Mauro, Luiz de Barros ou Jose yess Gilberto Rossi, por exemplo, é apresentado por Alex Va sua Introducao ao cinema brasileiro como fotdgrafo de O 5 syrtunda e cofandador da Rossi Film. Em 70 anos de cin ‘tira, Paulo Emilio diz que Medina fez. Exemplo regenerndyy mostrar a Ross a possbilidade de se praticar no Brasila “qe nuidade” cinematografica. Essas as tinicas referencias a Rossi aa nada menos de 227 edigdes de seu jornal em duas obras elise de historia do cinema brasileiro. A tendéncia dos historiadone: foi aplicar a0 Brasil, sem critica, um modelo de histéria elabe rado para os paises industrializados em que o filme de ficgag 6 sustenticulo da produgio. Nao é 0 que se deu no Brasil. 0 conceito de histéria do cinema que se usou no Brasil esté mais vinculado 4 vontade dos cineastas e dos historiadores que 3 rea. lidade conereta. Dependente o cinema brasileiro e sua histéria, dependente a metodologia com que se estuda essa historia. No entanto, produziram-se filmes de fice ‘ding, any em egredo dy ema bras. 0. 44

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