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A expressiio social dos filmes documentais no cinema mudo brasileiro (1898-1930) ublicado em Anois da I Mostra eI Simpésio do Fllrie Documental Brasileiro (25-29 nov. 1974), Recife, Ministerio da Educuydo © Cultura/ nat {ufo Joaquim Nabuco de Pesquisas Socias, 1977, p. 29-36. O cinema brasileiro, no conjunto, ainda é um desconhe- cido, Nestes ltimos anos a pesquisa progrediu no delinea- mento do que foi o nosso filme de enredo, mas no que tange a0 documental estamos comecando apenas a vislumbré-lo. Vejamos qual é a situagdo dentro do periodo de tempo que me compete tratar. O livro ainda inédito de Vicente de Paula Aradjo — A Bela época do cinema brasileiro (1896-1912)" — é a primei- ra aproximagao consistente do cinema primitivo brasileiro, isto ¢, 0 que foi praticado dos fins do século 19 até aproxima- damente a eclosfo da I Guerra Mundial. Cabe notar. que du- rante este period houve producto documental em varios Pontos do territ6rio brasileiro — pelo menos no Rio Grande do Sul ¢ Parand, em Sao Paulo e Minas Gerais e na Bahia e ‘Amaz6nia — e que a pesquisa de Paula Araijjo se limita ao Rio. Fora da Capital Federal, os tnicos territ6rios vislumbra- dos com alguma seguranca foram os paullista e gaticho, gra- as ao trabalho de Maria Rita Galvao, Jean-Claude Bernardet Antonio Jesus Pfeil. Encerrado 0 ciclo primitivo do cinema brasileiro, a nossa ignorancia tem, diante dos anos que vém logo depois, a sen- sac4o de um vazio total, tanto mais surpreendente que sabe- ™ Publicado em 1976, Sto Paulo, Perspectiva/Secretaria de Cifncia, Cubura © Tecmlogia. (8. dos 3 ou PAULO EMILIO. mos que durante esse tempo — mais ou menos uma década — 0 filme de enredo foi raro e a continuidade do cinema bra- sileiro assegurada quase exclusivamente pelo documental. ‘A partir do Centenario de nossa independéncia politica até o fim do cinema mudo, sabemos muito mais, de forma porém muito pouco satisfatoria. Com efeito, nosso conheci- mento do documental brasileiro entre a Exposigao de 1922 — este ano crucial — ¢ a Revolugdo de 30 é um subproduto de trabalhos que tém como objetivo o filme de enredo. E dentro desses limites drasticos que vou me aventurar a sugerir a importancia do filme documental brasileiro mudo como registro s6cio-cultural e matéria-prima para eventuais interpretagdes. ‘Como em toda parte, 0 cinema brasileiro comegou por se aplicar a registros isolados da realidade que logo se enca- deiam em forma de descrigdo, a qual, por sua vez, se amplian- do, tende para a narrativa. Desde as primeiras filmagens em 1898, dois temas se afirmaram, ecompanhando alias a trilha j4 tragada pela foto- grafia: 0 Berco Espléndido ¢ o Ritual do Poder. O Berco Espléndido é 0 culto das belezas naturais do pais, notadamente da paisagem da Capital Federal, mecanis- mo psicolégico coletivo que funcionou durante tanto tempo como irriséria compensacao para 0 nosso atraso. O cinema recém-aparecido foi posto a servigo do culto ¢ nele permane. ccu muito tempo apesar da qualidade tosca e monotonia dos resultados. Por um lado a qualidade fotogréfica das amplas paisagens naturais nao era das melhores ¢ por outro nada ha de mais parecido com uma floresta ou uma montanha do que outra floresta outra montanha. Apesar disso a moldura pAo-de-agiicar-corcovado-tijuca do Rio Colonial ¢ pestilen- cial do fim e comeco de século foi exaustivamente registrada. Em seguida as camaras partiram para outras paisagens: Ica- rai, Paquet, Petropolis, ¢ cada vez mais longe para registrar as cascatas de Piracicaba ou a margem do rio das Velhas. Paulo Afonso e 0 Amazonas ficariam para mais tarde, se bem que jé aparecam enti fitas de metragem mais ambiciosa — Visita ao Brasil ou Brasil selvagem — onde pelo menos 0 Berco Espléndido embalava indios ainda numa relativa tran- lilidade. Nesse periodo, ¢ fora do culto das belezas natu- UM INTELECTUAL NA LINHA DE FRENTE a rais, 0 entdo tenente Reis filma, orientado por Roquette Pinto, os indios com os quais as caravanas de Rondon se de- frontavam. ‘© Ritual do Poder se cristaliza naturalmente em torno do Presidente da Republica. Do primeiro presidente civil 20 Ultimo militar, da Primeira Reptiblica, © cinema brasileiro nfo deixou escapar nenhum: Prudente de Moraes, Rodrigues ‘Alves, Campos Salles, Afonso Pena, Nilo Pecanha, Hermes da Fonseca, so todos filmados presidindo, visitando, rece- bendo, inaugurando e, eventualmente, sendo enterrados. O interesse desses documentos devia as vezes se ampliar para além do simples registro de uma personalidade, notadamente quando o tema era a parada militar do 7 de setembro depois de aberta a Avenida, ou entdo os navios de guerra encabe- ‘gados pelos couracados ‘“Minas Gerais’’ e ‘Sto Paulo’ que tinham tornado o Brasil, aos olhos dos contemporaneos, uma das trés maiores poténcias navais do mundo. Tirante os na- vios e a Avenida, o que os Presidentes mais inauguravam eram estatuas: Barroso, Os6rio, Tamandaré, Saldanha, Flo- riano, Maud e etc. Boa parte das personalidades do tempo foi filmada, oca- sionalmente fora do Ritual do Poder: Ruy Barbosa, 0 cango- netista Eduardo das Neves, Pereira Passos, 0 palhaco negro Benjamim de Oliveira, Alcindo Guanabara, a dangarina Bugrinha, Lopes Trovao, Pinheiro Machado, Joaquim Nabu- co, Rio Branco. Os dois tiltimos aparecem juntos nos filmes em torno da 3* Conferéiicia Internacional Americana ¢ os funerais de ambos foram abundantemente registrados pelo cinema. Os oradores populares eram apanhados gesticulando nos meetings tradicionais do Largo Sao Francisco. Nessa altura de nossa evocagio os rituais documentados pelo cine- ma nfo sao mais os do poder e possuem uma natureza mais popular. As primeiras filmagens de concentragdes na Praca Tamarindo em 13 de maio ocorreriam pouco mais de dez anos depois da Abolicdo e a porsao maior dos participantes era constituida por ex-escravos. Cada 15 de novembro 0 jaco- binismo florianista ainda fervilhava nas comemoracdes da Jovem repiblica. E bastante provavel, porém, que os registros de come- moragdes no fossem os mais interessantes. Filmou-se muito 6 PAULO EMILIO no Rio, notadamente depois da consolidacao e expansio do comércio cinematogréfico, asseguradas a partir de 1907 pela produgdo industrial de eletricidade. Ano apés ano a vida da cidade foi fartamente registrada. Foi nesse tempo que nasce- ram e se desenvolveram as corridas de cavalos, o iatismo, 0 futebol. Cada carnaval foi meticulosamente documentado ‘em seus aspectos populares ¢ mundanos, assim como a varia- sao da moda feminina e 0 aparecimento de novas dancas, como 0 maxixe. Houve um filme de trezentos metros sobre a aparigdo das Marias xifopagas pelo célebre Dr. Chapot-Pre- ‘vost. Nas sucessivas reportagens sobre 0 corso das quartas- feiras em Botafogo apareciam entreas carruagens e cavaleios 08 primeiros automveis. Cinematografistas traziam para as telas minuciosas descrig6es do cultivo, colheita, preparacdo e embarque do café, fundamento da brisa de prosperidade que permitiu 0 saneamento ¢ modernizagéo da Capital cujas cta- pas foram acompanhadas pelas cdmaras. Por ocasiao do ju- bileu da Estrada de Ferro Central do Brasil, 0 funcionamento do eixo de nossas comunicagSes foi extensamente filmado, quase tanto quanto a rebeliao dos marinheiros da esquadra contra o uso da chibata. Os grandes criminosos, como Pegat- to, Rocca e Carleto, que estrangularam os irmos Fuoco, ou 5 14 militares que assassinaram dois estudantes na ‘‘Prima- vera de Sangue’’, eram enfocados pelos cinegrafistas durante a instrucdo do processo € 0 julgamento, material esse que de- ois de exibido como jornal era em seguida incorporado a fil- mes de ficgdo que procuravam reconstituir os crimes. Aliés 0 cinema de enredo dessa época — a fita posada como entio se dizia — freqtientemente emanava da vida da cidade de uma forma quase tao direta quanto o documental. Esses filmes so também, a sua maneira, registros sécio-culturais, porém ela- borados, estilizados e que ndo caberiam nesta enumeragio de temas que j se alonga e que poderia ser prolongada ate pro- vocar nossa exaustdo. Lendo 0 Baldo cativo de Pedro Nava, que veio morar no Rio dentro do periodo de que estamos cui- dando, a gente constata que ndo hd assunto de maior ou menor ressonancia piblica levantado pelo memorialista que nao tenha sido registrado pelo velho cinematografo. Ainda falta porém a referéncia a um género documental bastante diverso dos anteriores e que teve muita voga e que UM INTELECTUAL NA LINIIA DE PRENTE talvez seja o mais significativo. Nao se trata mais de cuidar de acontecimentos ou de atividades de certa relevancia, mas de filmagens bastante ocasionais, pegando pessoas na rua, nas pracas, engraxando 0 sapato ou lendo jornal, olhando o mar dia amurada do Passeio Piiblico ou conversando nos cafés. E as familias ¢ casais de namorados passeando na Quinta, recen- temente aberta ao piblico. Os malandros, capoeiras valen- tes ou pacificos seresteiros, postados nas imediacdes da rua ‘Visconde de Itatina, reagiam vivamente, julgando tratar-se de um trabalho policial de identificacao. Essa atividade de cine- grafista sem assunto foi exercida por todos e comentada em verso e prosa pelos cronistas dos jornais de 1907-1908 tam- bém sem muito assunto, como sempre, alias. “Que triste sina agora nos solapa E nossa calma intérmina provoca, Hoje, o infeliz carioca, Se do fotdgrafo Por um acaso venturoso escapa, Surge na fita de um cinematografo.”” Outro cronista: “Cuidado! muito cuidado! Em guarda, rapazes ativados conquista, homens de aparéncia respeité- vel que ndo desprezam o flirt, ali esté a maquina reveladora, que registra 0 olhar cobicoso, 0 aceno imprudente, tudo, tudo, tudo, enfim!” Constato que dediquei mais tempo do que pretendia aos primeiros 15 anos do documental brasileiro, apesar de me ter limitado producao carioca. Ainda faltam outros tantos para chegar ao término do periodo que me propus e vou ser Obrigado a acelerar 0 comentario em torno desta segunda parte, A aceleracao seré alids facilitada pela minha ignordn- cia, agora maior, ¢ pela evidéncia de que praticamente todos os temas tratados pelo documental primitivo sao retomados com maior ou menor frequéncia no periodo posterior e nao teriam sentido aqui as monétonas referéncias a uma evolu- 40 técnica preguicosa — que muitas vezes é involugdo — ou a atualizacao subordinada automaticamente ao fluir dos dados da realidade que, no entretanto, propde eventualmente a PAULOEMILIO. lum tema novo, como por exemplo as revolugées a partir de 1922. Seré dtl assinalar ainda que, na medida em que a produ- sao se adentra no Brasil, através de cinegrafistas-viajantes, do Rio ¢ de Sao Paulo, ou de surtos de filmagem em muitos outros pontos do pais, ocorre um fato importante. © Bergo Espléndido tende a se dissipar eo enfoque principal se orienta para o homem que habita o Brasil. Esses filmes, feitos na maior inocéncia e sem a menor intenc&o polémica, provocam eagdes muito vivas. A principal publicagao especializada da época, Cinearte, cra em geral contra os documentais — achando que todos os recursos deviam ser canalizados para 0 cinema de enredo. A revista se preocupa também com a ima- gem do Brasil que esses filmes poderiam transmitir no caso de serem projetados no exterior. Algumas répidas citacdes sto suficientes para dar uma idéia da repulsa de alguns setores da opinido contra esses filmes e do tom da campanha desenca- deada contra eles. “Nenhum pais como o Brasil se presta mais sobejamen- te a ser filmado. Pode-se asseverar que ele & essencialmente fotogénico. Por que explorar somente o seu sertdo e a popu- lagao deste ainda inferior? (...) Precisamos de filmes que mostrem as nossas obras de arte, as nossas avenidas, todas as nossas riquezas, enfim. Todos somos mais ou menos comoo famoso S. Tomé: s6 cremos no que vemos. E 0 estrangeiro, entdo, quando, ralado de inveja, nao acredita nem mesmo no que os seus olhos enxergam...”” Outro cronista protesta contra a presenga dos filmes de “‘mato, indios nus, macacos ¢ etc.” e pergunta: “E se for para o estrangeiro?”’. Um terceiro cronista escreve: “Quando deixaremos desta mania de mostrar indios, caboclos, negros, bichos e outras avis rara desta infeliz terra, aos olhos do espectador ci nematografico? Vamos que por um acaso um destes filmes va parar no estrangeiro? Além de nao ter arte, ndo haver técnica nele, deixard o estrangeiro mais convencido do que ele pensa, que nés somos: uma terra igual ou pior a Angola, ao Congo ou coisa que o valha, Ora vejam se até ndo tem graca deixa- rem de filmar as ruas asfaltadas, os jardins, as pragas, as ‘Chae da bees Gb. teeta nse acemeetinds ake 2a UUM INTELECTUAL NA LINHA DE FRENTE ms um bando de cangazeiros, ali, um mestico vendendo garapa em um purungo, acolé, um bando de negrotes se banhando num rio, € coisas deste jacz’”. Cinegrafistas de origem estrangeira so atacados porque mostram “indios ferozes e pretos colhendo banana" ¢ so acusados de ‘fazer passar os brasileiros por gente de cor”. Para um dos dirctores de Cinearte o importante & que os americanos se convencam de “que os habitantes do Brasil indo sio pretos, e a nossa civilizacdo, afinal de contas, ¢ igual- zinha a deles..."”. ‘A pesquisa sobre as reagdes da opinido diante desses filmes documentais ainda esta longe de ser completada. O que se pode afirmar desde logo & que ao lado das impress6es da revista Cinearte surgiram outras na imprensa carioca de uma tonalidade diversa. Para muito articulista liberal esses filmes revelavam uma verdade a ser meditada. O depoimento de Oliveira Viana numa série de artigos publicados algum tempo depois no Jomal do Commercio & porém 0 mais reve- lador. Para esse intelectual conservador os documentais foram um impacto e diante da miséria revelada, cle pergunta angus- tiado para a opinide e para o Poder Pablico o que pode ser feito. Para o diretor de Cinearte, Mario Behring, diretor da Biblioteca Nacional ¢ Chefe da Maconaria Brasileira, que, diferentemente de seus redatores, favorecia o documental, “a fungao do cinema seria levar a civilizagdo para o interior do Brasil’. A missdo do documental foi outra: levar para 0 lito- ral a visto do atraso insuportavel do interior. Em 1909 Figueiredo Pimentel escrevia: “‘os fatos sensa- cionais que ocorrem no Brasil, as grandes solenidades que entre nds se realizarem, serdio perpetuadas em fitas cinemato- grificas”. E no mesmo ano Jodo do Rio comentava: “Um rolo de 100 metros na caixa de um cinematografista vale mui- to mais que um volume de historia, mesmo porque nao tem comentarios filosoficos””. Os dois cronistas escreviam partin- do do principio de que os filmes seriam conservados. Poucos anos depois Roquette Pinto tentou fazé-lo, reunindo como niicleo de uma futura cinemateca etnografica, etnolégica os documentais de Reis, que passou a vida — de tenente a coro- “pak. Pibtincasa teeta kts ined then (ARE v0 PAULO EMILIO encontrei o que restava desses filmes apodrecidos numa sala mica da Quinta da Boa Vista. ‘Uma parcela minima dos filmes documentais realizados entre 1898 e 1930 existe hoje para o estudioso consultar. Eu tenho certeza de que muita coisa ainda pode ser recuperada. Mas nao € possivel esperar mais.

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