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Apresentação

O ser humano se expressa através de todos os seus atos: quando fala, quando escreve,
quando desenha, mas também através de seus gestos, da maneira como se veste, dos
lugares que freqüenta, do modo como organiza e ocupa esses espaços, das pessoas e
objetos com os quais se identifica. Tudo isso tem um “sentido”, e nossa sociedade tende a
organizar essas ações transformando-as em linguagens que permitem que, de modo menos
ou mais consciente, algo seja dito e algo seja interpretado. Ou seja, tudo isso pode ser
utilizado para a comunicação.

Participamos desse complexo processo, em boa parte, através do “olhar”, o mais ativo e
irrequieto dentre os sentidos do nosso corpo. Muitas estruturas se formaram para explorar
esse potencial, ocupando todos os espaços disponíveis e bombardeando-nos com
informações cada vez mais dinâmicas e sofisticadas em suas estratégias de sedução.
Podemos nos encantar com a riqueza plástica do mundo que temos à nossa disposição,
mas isso não é suficiente. Precisamos garantir que, em meio a tal quantidade de
informações, tenhamos condições de refletir sobre o sentido que elas produzem e sobre os
meios que utilizam para isso.

Temos boas razões para fazer esse esforço: por um lado, devemos dar ao olhar a chance
de ser exercido com profundidade, permitindo uma absorção crítica daquilo que chega até
ele. Além da sedução estética, esse olhar deve ser guiado por uma ética, para que não se
coloque a serviço de objetivos com os quais não compactua. Por outro lado, podemos
explorar, subverter e renovar as estratégias das linguagens visuais, para que sejamos
agentes de uma comunicação ao mesmo tempo criativa e responsável, capaz de portar
mensagens mais duradouras em meio a tantas imagens efêmeras, e de avaliar os
compromissos e efeitos de cada ação propagada.

Esta é a primeira de um conjunto de três disciplinas denominadas “Análise da Imagem”.


Nesta etapa, faremos um mapeamento das complexas questões envolvidas em nossa
relação com as imagens, sem necessariamente pretender um domínio de todas elas. Nossa
tarefa inicial é formar um “vocabulário” mínimo de conceitos que já podem ser
compreendidos como pequenas ferramentas para a abordagem da imagem. Nos módulos
seguintes, esses conceitos serão organizados, compondo efetivamente métodos de leitura e
criação de discursos visuais.

Deveremos também aprender a deter o olhar sobre uma imagem. Esse é um exercício
apenas aparentemente simples, porque significa quebrar o ritmo do mundo que nos cerca,
dando ao olhar uma profundidade e um tempo com os quais não estamos acostumados.
Essa é a condição necessária para que a imagem, naquilo que explicita e naquilo que opera
sutilmente, seja confrontada com a capacidade de reflexão crítica que a formação do aluno,
como um todo, pretende desenvolver.
A imagem como discurso

Os elementos constituintes da imagem podem ser articulados de maneira a compor um


discurso, do mesmo modo que fazemos com as palavras quando escrevemos. Em
contrapartida, o espectador, quando busca compreender tal articulação, estabelece um
processo de leitura.

Para começar, é necessário evitar alguns preconceitos do tipo "a imagem é uma linguagem
universal". Somos alfabetizados para a leitura de textos verbais mas, aparentemente,
ninguém precisa nos ensinar a ver uma fotografia, televisão, cinema... De fato, não há uma
"gramática" pronta e única para criar e decifrar imagens. Mas isso não quer dizer que elas
não estejam apoiadas em regras. Quando ligamos a TV, sabemos diferenciar uma novela,
um telejornal, ou um programa de auditório, e sabemos mais ou menos o que esperar de
cada um deles. Aprendemos a diferenciá-los a partir da repetição: quase todos os
telejornais têm características comuns; o mesmo com relação às novelas e aos programas
de auditório. As regras e tradições que diferenciam cada tipo de programa constituem os
"códigos" - como se fossem gramáticas - que criam parâmetros para sua compreensão. De
modo semelhante, podemos identificar que uma empresa tem propagandas mais ousadas e
apelativas, enquanto outra adota uma postura mais sóbria. Essa "maneira de dizer" constitui
um padrão ou, como dizemos mais usualmente, linguagens: a linguagem do cinema
europeu, a linguagem da telenovela mexicana, a linguagem do artesanato nordestino, a
linguagem das propagandas de carro ... Enfim, eu posso ou não entender uma obra
conforme eu domine ou não essa linguagem. Ou, pelo menos, posso achar uma certa
mensagem mais ou menos convincente, mais ou menos clara, conforme esse domínio
exista ou não.

Mas o fato de haver regras elementares que orientam a imagem não garante que todos
seguiremos os mesmos caminhos de interpretação. O que podemos ver, por exemplo, num
retrato? As características fisionômicas da pessoa retratada, obviamente. Mas não apenas.
Não pode haver também a intenção de representar dados psicológicos ou morais dessa
pessoa? Não podemos, a partir de certas escolhas do artista, dizer algo sobre ele próprio,
sobre o momento e a sociedade em que vivia (falar não sobre aquilo que ele viu enquanto
criava, mas sobre seu próprio modo de ver)? Além disso, perceber e discutir a própria
materialidade da imagem (se é uma escultura, uma foto ou uma pintura, que tipo de
materiais e equipamentos são utilizados, qual o formato e o modo de apresentação...) é
também uma forma de leitura. A tarefa é, portanto, bastante complexa.

Qualquer informação extraída da imagem ou através da imagem já caracteriza um processo


de interpretação. E tal processo não se esgota aí: é interessante refletir ainda sobre o
"modo de leitura" de um espectador. Uma representação do mar não trará significados
diferentes quando vista por um pescador, um surfista e um habitante do deserto? A leitura
da imagem sempre guardará certa dose de subjetividade, como ocorre em toda ação
humana. Muitas vezes, a imagem funciona como uma "mola" que impulsiona
representações que estão muito mais dentro de nós do que nela própria. Então, como
estabelecer métodos de interpretação, se as possibilidades são tantas quanto são os
olhares que se colocam diante da imagem? É preciso cuidado: dizer que "tudo é subjetivo"
ou que "cada um interpreta do seu jeito" transformou-se num lugar-comum que apenas nos
afasta das possibilidades efetivas de compreensão dos discursos visuais. Certamente não
estamos diante de uma ciência exata, mas muita coisa pode ser dita com segurança se
delimitarmos e fundamentarmos nossa abordagem.

A imagem tem qualidades próprias que são apreensíveis com certo grau de objetividade.
"Cada um pode ver o que quer", mas às vezes vale a pena perguntar o que a imagem quer
que vejamos nela. Um quadrado é diferente de um círculo, o azul é diferente do amarelo,
um rosto é diferente de uma árvore... Há certas coisas que são mostradas por uma imagem
e que não se confundem com outras. Identificar suas características e saber descrever o
fenômeno que se apresenta ao olhar é um ponto de partida.

Em seguida, podemos confrontar o universo de possibilidades de que um autor dispunha


com a escolha particular que fez. Podemos lançar sobre a imagem questões sobre as
intenções que guiaram tais escolhas. E, é claro, conhecer o contexto de realização de seu
trabalho ajuda a dar mais fundamento às hipóteses levantadas. Entramos aqui no plano do
que chamamos de "expressão". Mesmo que não possamos ainda localizar uma mensagem,
percebemos que há soluções com as quais o autor se identificou.

Por fim, perceberemos que alguns elementos não estão sendo utilizados pela primeira vez.
O autor, por mais inovador que seja, pode se apoiar numa tradição ou num hábito
exatamente para garantir que possamos chegar a certos significados. É nosso papel,
portanto, localizar esses elementos e as referências necessárias para que possamos nos
aproximar daquilo que esse autor pretende comunicar.

E é certo, há também as contribuições dadas pelo olhar daquele que interpreta a imagem.
Mesmo que cada olhar traga consigo seus "filtros", nada nos impede de discutir também o
lugar a partir do qual a imagem é vista. Isto é, se cada leitura já parte de um campo próprio
de referências, podemos tentar identificá-las, perguntando as razões que a conduziram a
leitura a uma certa direção. Dissemos que a representação do mar trará significados
diferentes para um pescador, um surfista e um habitante do deserto. Pensar a relação que o
tema tem com esses personagens é algo que enriquece nossa compreensão tanto da
imagem quanto daquele que se relaciona com ela (eventualmente, nós mesmos).

Conceito: imagem

Imagem é, em princípio, qualquer fenômeno ser captado pelo olhar. Não nos interessa tanto
discutir os processos óticos, mas os processos mentais desencadeados por essa visão:
quando uma imagem desperta uma reação, podemos dizer que ela significa algo, mesmo
que não se possa "dizer" claramente esse significado. Os modos como a imagem ganha um
significado serão o centro de nossas reflexões.

Uma imagem pode existir fisicamente, estando ou não diante de um espectador. Mas
nossas discussões apenas considerarão a imagem em sua relação com o ser-humano. Em
princípio, isso quer dizer que falaremos da imagem efetivamente percebida, aquela que se
coloca diante de um olhar. No entanto, será importante também considerar uma outra forma
dessa relação: a imagem que se forma "no" ou "através do" pensamento, de um indivíduo
ou de uma coletividade, mesmo que ela não possa ser vista pelo olho físico. Esse é o
domínio daquilo que chamamos de imaginário que, de toda forma, pode posteriormente
ganhar uma visível (através da arte, por exemplo) ou dar e trasformar o sentido daquilo que
vemos.

Leitura Sugerida

Manguel, Alberto. "O espectador comum. A imagem como narrativa" in Lendo imagens. São
Paulo: Cia das Letras, 2001.

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