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PALAVRA DE… EDITH DERDYK: O DESENHO DO GESTO E DOS TRAÇOS SENSÍVEIS

https://tempodecreche.com.br/repertorio-cultural/palavra-de-edith-derdyk-o-desenho-do-gesto-e-dos-tracos-
sensiveis/

Edith Derdyk nos fala do novo olhar para o desenho da criança no contexto da arte
contemporânea: o desenho que ultrapassa barreiras de modelos e normas formais para contar
sobre as sensações e gestos de quem os produz.

Tanto em suas palavras como em seus trabalhos,


a linha marca a pesquisa na arte de Edith Derdyk
e nos convida a brincar com nosso olhar e gesto.
VIÉS – DVDteca Arte na Escola

Tempo de Creche – O que o desenho conta sobre a criança?

Edith – O desenho é linguagem que atravessa todos os tempos – das cavernas à informática –
sempre esteve presente na História da Civilização. E, de todas as linguagens, é a mais antiga. Tal
como a pantomima*, são linguagens nascentes.O desenho é linguagem inata: toda a criança, de
qualquer tempo e lugar, desenha. Toda criança possui intimidade com o desenho como ponte de
investigação, expressão e comunicação com o mundo. Existe uma proximidade imensa e natural
entre o ato de desenhar e a ação corporal mais do que com o quê a criança deseja ou pensa em
“representar”. Num primeiro momento do desenvolvimento da aquisição da linguagem do
desenho, a criança é verdadeiramente o seu gesto, o seu traço, o seu movimento e o desenho é
resultante desta ação, registrando o percurso do movimento do corpo no espaço do papel, na
parede, em qualquer superfície.

Seguindo por esta trilha de investigação, talvez possamos refletir um pouco mais sobre como a
criança desenha e menos com o quê o desenho conta sobre o que a criança é! Esta diferença
entre “como a criança desenha” e “sobre o quê ela desenha” ou “o quê o desenho conta sobre a
criança” são limites sutis e avassaladores, pois o modo como se desenha revela qual o modelo de
desenho que nos habita. E cada modelo de desenho traz, consigo, um conjunto de conceitos,
ideias, atitudes e procedimentos. Talvez pudéssemos inverter a pergunta e enunciar que o sujeito
que desenha – seja criança, seja adulto – , é quem reinventa o que um desenho é e pode ser!
[*pantomima = mímica]

Tempo de Creche -Houve mudança histórica na maneira de ver a aprendizagem do


desenho?

Edith – Os modelos de desenho são pressupostos que existem “a priori” e, nos quais, nós, adultos
e educadores, nos alinhamos.
Se pensarmos no modelo neoclássico de desenho, ou seja, o desenho oriundo da Missão
Francesa no Brasil, século XIX, que influenciou por muito tempo, e ainda influencia, o modo de
ensinar o desenho na “academia” e, consequentemente, nas escolas, o desenho se baseia na
noção da linha como contorno, e a forma representada como se fosse um duplo do real. Claro que
com este modelo de desenho orientando o modo de desenhar – seja criança e adulto -, é
frequente ouvirmos a expressão “não sei desenhar”, pois o desenho que se tem como modelo é
um desenho virtuoso onde a linha é um elemento submisso à forma ideal. Portanto desenhar “à
maneira neoclássica” nos sugere que o sujeito (criança e adulto) que desenha está submetido à
uma ideia de representação, onde perceberemos menos o sujeito que desenha e mais os
“cânones” que regem a ação de desenhar em busca da forma ideal.

Mas, se pensarmos no desenho que a Arte Moderna nos traz como


modelo de desenho, a linha é mais liberada, mais expressiva e fiel às
sensações do sujeito. A linha apresenta o gesto, o traço, sua potência
expressiva e a sensibilidade de quem desenha. O sujeito – seja
criança, seja adulto – ali se revela.
Se nos remetermos aos modelos contemporâneos, o desenho é
entendido como registro da ação sensível do pensamento, o desenho
é entendido como um campo dos acontecimentos processuais, onde
cada traço é sinal do pensamento. Portanto, necessito, como artista e
educadora, compreender que o desenho, esta linguagem tão antiga e
tão permanente, por sua natureza ágil e veloz na maneira de capturar
nossas sensações, percepções e pensamentos, pode ser o recado de
um modo de pensar a vida que habita o ser, pode ser os indícios de
um corpo vivo de experiências – seja de crianças, seja de adultos,
seja educandos ou educadores.

Tempo de Creche – Como perceber o que a criança expressa por meio do desenho?

Edith – Quando o desenho ainda não tem uma função didática, representacional e “ilustrativa” do
mundo e é simplesmente uma forma de expressão através de gestos traçados nas superfícies
através de instrumentos, a criança desenha tal como anda, respira e fala! Antes ainda do desenho
se configurar como linguagem “reconhecível”, isto é, quando os desenhos e os signos visuais
possuem nomes e tem o poder de narrar histórias contáveis, a linha traçada – elemento
constitutivo do desenho -, traduz originariamente as sensações e percepções vivas da criança que
ainda nem se preocupa em representar figuras e desenhar “bonito”. Desenhar bonito significa
corresponder a um campo de expectativas e resultados! O traço, fruto da ação corporal, revela,
pelo modo da linha ser desenhada, os impulsos e intensidades da criança que desenha. Podemos
deduzir, então, pelas qualidades expressivas da linha e suas variações (leve, retorcida, forte,
circular, tracejado, etc.) como a criança sente e percebe e se percebe no mundo. A linha é,
sobretudo, informação de sensibilidades inteligíveis e inteligibilidades sensíveis. E sensibilidade
faz parte de um corpo pensante e atuante!

A criança, ao passar pelo processo da alfabetização


formal, o mesmo instrumento – o lápis, por exemplo –
que ela usava como puro deleite da expressão sem
finalidade, passa a ser utilizado de maneira funcional
onde existe a necessidade de controle corporal para
desempenhar a escrita – é quando o olho comanda o
caminho da linha. Atualmente, as crianças, antes de
serem alfabetizadas, já tem acesso aos meios digitais
que acabam informando o mundo através de imagens
dadas e formatadas. Não temos ainda a dimensão do
alcance da convivência incontinente destas imagens
culturais na construção dos imaginários. Enfim, o
desenho, quando assume apenas uma posição funcional e representacional, corre o risco de
esvaziar um pouco sua potência poética, isto é, as linhas ficam submetidas ao poder da
representação que acaba se sobrepondo às modalidades expressivas. A linha é esvaziada de sua
força do traço sensível a favor das “mensagens cheias de conteúdos” a priori – “o que isto quer
dizer?”- é a pergunta insistente do adulto ao ver um desenho de criança. Independentemente do
desenho apresentar figuras, o que nos importa, sobretudo, é o modo como estas figuras são
desenhadas, cujas linhas traçadas informam sensibilidades e os sentidos nascem destas
imbricações – do modo como cada figura apresentada é desenhada, como a linha se expressa
potencialmente através de suas intensidades e variações. Mas quando a linha se submete à
função pragmática da comunicação, o traço que desenha nasce de um corpo conformado com um
modelo anterior de desenho que solicita o cumprimento da comunicação de uma mensagem,
ancorando um modelo representacional que vem antes de tudo, que existe antes mesmo do
desejo da criança desenhar. Pronto! O desenho, enquanto potência expressiva, portador de um
sujeito capaz de assumir sua singularidade através de seus traços que nascem de um corpo vivo,
acaba se submetendo aos modelos de desenho onde imperam mais a ideia da “coisa” e menos o
modo como se desenha a “coisa”. E para o adulto-educador interpretar e/ou ativar procedimentos
criativos, precisamos reportar ao adulto e perguntar a ele que modelo de desenho se tem em
mente. Com certeza, a resposta vai depender do campo de experiências que se tem como fonte
de repertório. E por aí vai…………………

Tempo de Creche – Você tem algumas “dicas” para os professores trabalharem com
desenho?

Edith – A minha dica é: por


favor, simplesmente
desenhe! Experimente seus
erros, suas dificuldades, o
seu medo de fazer um
desenho “feio”. Desenhe e
descubra o inesperado,
desenhe e deixe o desenho
revelar, ele mesmo, algo que te surpreenda. Desenhe sem finalidade alguma, apenas desenhe,
rabisque, deixe a linha descobrir todas as suas possibilidades. Depois busque na História da Arte
os desenhos que os homens de todas as civilizações e eras já realizaram – com certeza, em
algum momento, você vai se ver ali. E assim, a partir da escuta da produção artística já realizada
em todo o arco da civilização humana, o educador irá afinar sua percepção estética para poder
brincar de linhas junto com suas crianças e perceber que existem muitos modos diferentes do
desenho existir em cada criança como também cada um de nós – seja criança ou adulto – temos
a chance de desenhar de muitos modos diferentes.

Livros de autoria de Edith Derdyk


● Formas de Pensar o Desenho, Editora Scipione/1988_Editora Zouk edição
revisada e ampliada/2015
● O Desenho da Figura Humana, Editora Scipione/1989
● Linha de Costura, Editora Iluminuras/1997_Editora C/Arte/2010
● Linha de Horizonte – por uma poética do ato criador, Editora Escuta/2002_Editora
Intermeios_2010
● Disegno.Desenho.Desígnio (organizadora), Editora Senac/2008
● Entre ser um e ser mil : o objeto livro e suas poéticas,Editora Senac_2013
Livros infantis
● Coisa com Coisa, Movpalavras /2015
● A porta da Terra,Editora PandaBooks /2015
● A incrível História do dr.Augusti Ruschi e os sapos venenosos (textoPaulo Tatit/ilustrações
Edith Derdyk), Editora Melhoramentos/ 2014_indicação Prêmio Jabuti ilustração
● Fábulas.Alegorias.Adivinhações, Editora SM /2012_Prêmio FNLIJ_Selo altamente
recomendável
● Todo mundo tem, Editora Hedra/2012

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