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COMPONENTE CURRICULAR: Tópicos especiais - Cultura, Esporte e Identidade.

DOCENTE: Prof. Dr. Marcelo Moreira Antunes.


DISCENTE: Prof. Esp. Edson Fernando da Silva Júnior.
Resenha do livro “A TRADUÇÃO CULTURAL NOS PRIMÓRDIOS DA EUROPA MODERNA”.
Autores: Peter Burke e Ronnie Po-chia Hsia (organizadores).

SOBRE OS AUTORES

Peter Burke – Ulick Peter Burke. Nascimento: 16 de agosto de 1937 (Stanmore – Inglaterra). Historiador britânico.
Doutorado na Universidade de Oxford (1957 a 1962), foi professor de História das Ideias na School of European Studies
da Universidade de Essex, por dezesseis anos na Universidade de Sussex (1962) e professor da Universidade de Princenton
(1967). Atualmente é professor emérito da Universidade de Cambridge (1979). Foi professor-visitante do Instituto de
Estudos Avançados da USP durante 01 ano (1994-1995), período em que desenvolveu o projeto de pesquisa chamado
DUAS CRISES DE CONSCIÊNCIA HISTÓRICA. Vive em Cambridge com sua esposa, a historiadora brasileira Maria
Lúcia Garcia Pallares-Burke, da faculdade de Educação da USP. Burke é um doa maiores especialistas mundiais na obra
de Gilberto Freyre. Escreveu com sua esposa o livro “Repensando os Trópicos”. É autor de inúmeros artigos críticos,
inclusive na imprensa, sobre o sociólogo pernambucano, que na sua concepção possui relevância para o estudo da cultura
material – casa, mobílias, roupas, alimentos etc.

Burke é considerado um especialista na Idade Moderna europeia e em assuntos da atualidade, enfatizando


a relevância de aspectos socioculturais nas suas análises. É autor de mais de trinta livros, muitos deles publicados
no Brasil. As suas obras mais importantes são:

• Cultura Popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800 (1978)


• O Renascimento Italiano: Cultura e Sociedade na Itália (1987)
• A Revolução Historiográfica Francesa (1990)
• A Escola dos Annales: (1929 - 1989) A Revolução Francesa da Historiografia (1990)
• História e Teoria Social (1991)
• Formas de fazer História (1991)
• A Escrita da História (1991)
• Amsterdã e Veneza: um estudo das elites dos séculos XVII (1991)
• A Arte da Conversação (1993)
• A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV (1994)
• Falar e Calar (1996)
• Varieties of cultural history (1997)
• Uma história social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot (2000)
• New perspectives on historical writing (2001) (editor e contribuidor)
• Testemunha Ocular (2004)
• O que é história cultural (2005)
• Uma história social do conhecimento II: da Enciclopédia a Wikipédia (2012)

Ronnie Po-chia Hsia – natural de Hong Kong e nascido em 1955, mas estudou nos Estados Unidos onde se tornou
cidadão americano em 1980. Formou-se em Bacharel em História em 1977 no Swarthmore College, fez Mestrado em
Harvard em 1978. Também obteve mais três diplomas em Yale: um mestrado em 1979, um M. Phil em História em 1979 e
um Ph.D. em 1982. Atualmente é professor da Universidade Estadual da Pensilvânia, onde leciona História e estudos
religiosos. Seus interesses de pesquisa são a renovação católica, o antissemitismo e a reforma protestante.
Suas publicações mais relevantes são:

• Disciplina Social na Reforma: Europa Central, 1550-1750 (Routledge, 1989).


• Trent 1475: Histórias de um Ritual Murder Trial (Yale University Press, 1992).
• O Mundo da Renovação Católica, 1540-1770 (Cambridge University Press, 1998).
• Um jesuíta na Cidade Proibida: Matteo Ricci 1553-1610 (Oxford University Press, 2010).

SOBRE A OBRA EM DEBATE

Este livro é composto de 291 páginas e está dividido em três partes principais cada uma contendo quatro capítulos:
parte 1 – TRADUÇÃO E LÍNGUA (capítulos 1, 2, 3 e 4), parte 2 – TRADUÇÃO E CULTURA (capítulos 5, 6, 7 e 8) e a
parte 3 - TRADUÇÃO E CIÊNCIA (capítulos 9, 10, 11 e 12). Cada capítulo é de autoria um teórico convidado que
compõem uma equipe internacional de historiadores a escrever em um volume pioneiro com o proposito de apresentar a
prática da tradução como uma parte da história cultural.
Apesar da tradução ser uma ferramenta essencial para transmitir as ideias, informações e conhecimentos de uma
determinada cultura para outras realidades culturais, sua história tem sido bastante negligenciada pelos próprios
historiadores, que a relegaram aos especialistas em literatura e línguas. Nesta obra buscamos a compreensão das
contribuições das traduções para a difusão de informações e conhecimentos na Europa Moderna focada na não-ficção em
livros sobre religião, história, política e ciência, que era conhecida na época como filosofia natural. Os capítulos abordam
várias línguas como o latim, o grego, o russo, o turco e o chinês. É, aparentemente, um livro bastante atraente para estudantes
e especialistas dos períodos Moderno e posteriores, além de historiadores da ciência e da religião e qualquer pessoa
interessada nos estudos da tradução.

PARTE 1 – TRADUÇÃO E LÍNGUA

Burke faz a honras abrindo com o primeiro capítulo que trata das “Culturas da tradução nos primórdios na Europa
Moderna” apresentando uma visão geral da tradução na época e discutindo a tradução entre línguas no contesto da tradução
entre culturas. O termo “tradução cultural” foi usado por antropólogos a fim de descrever o que acontece em encontros
culturais quando os lados procuram compreender as ações um do outro. Burke aborda diversos problemas apresentados nas
histórias dos tradutores e sinaliza que as culturas de tradução na Europa Moderna concebem respostas provisórias a seis
grandes perguntas: Quem traduz? Com que intenção? O que? Para quem? De que maneira? Com que consequências? (p.
17)
Através da exposição de dados históricos, Burke responde cada uma destas perguntas embasado por uma série de
referências consistentes que indicam mais possibilidades de investigações para os estudiosos da tradução. Segundo ele, os
tradutores têm seus próprios propósitos que podem ser diferentes dos autores originais dos textos traduzidos se
considerarmos que mesmo tentando manter a neutralidade a sua língua usada na tradução não era neutra, posto que a
tradução mascarava diferentes tipos de abordagem dos textos originais.
Burke, aponta o fato de que há sempre uma perda na tradução, porém o exame detido do que se perdeu é uma das
formas mais efetivas de reconhecer diferenças interculturais. Com isso, sugere que o estudo da tradução deve ser um ponto
central para a prática da História Cultural.
No capítulo 2, Ronnie Po-chia Hsia apresenta um recenseamento de traduções do chinês para as línguas europeias
e vice-versa. Em “A missão católica e as traduções na China, 1583-1700”, o autor estabelece a fronteira entre a tradução
“estrita” e as compilações, sinopses etc. Esta é uma missão árdua por conta das incomensuráveis variações que existem
como textos escritos em chinês por missionários europeus, por exemplo, que nem sempre são inéditos ou próprios tornando
a classificação um verdadeiro transtorno.
Há também neste capítulo a classificação por nacionalidade e o quantitativo de tradutores identificados executado
através de um levantamento a procura de perceber as influências culturais que chegaram à China. Há relato de auxílio de
indígenas nesta demanda, ora em apoio aos missionários na confecção dos textos traduzidos pela Igreja Católica, ora na
execução da própria tarefa como tradutor surgindo possíveis três cenários neste contexto: a tradução dos textos pelos
próprios missionários para o chinês, a explanação oral dos textos europeus pelo missionário para um nativo que debatia
com o orador e ambos decidiam em acordo sobre o que seria escrito no texto final e, por fim, um missionário rascunhava
uma tradução que futuramente seria revisada por um colaborador nativo.
De acordo com o autor, o segundo cenário era o mais utilizado o que concedeu misturar a interpretação jesuítica
com a elegância estilística chinesa (p. 55-56). Hsia reporta que ficou evidente o consumo textual interno da missão chinesa
desta maneira denotando o sucesso deste modelo de tradução, apesar da Bíblia não ser traduzida em agudo contraste com
os esforços protestantes do século XIX. Ele reforça que os títulos e coleções existentes seguem como um monumento ao
intercâmbio cultural celebrado pelos pioneiros culturais (p.60).
“A língua como meio de transferência de valores culturais” é o texto de Eva Kowalská e compõe o terceiro capítulo
deste livro. A autora oferece uma apreciação panorâmica sobre o que aconteceu com algumas línguas eslavas,
principalmente com o eslovaco, nos primórdios do período da Europa Moderna. Para ela, o que não é traduzido para uma
determinada língua pode ser tão significativo e revelador quanto o que é traduzido. Coloca ainda na centralidade deste
processo, focando no caso eslovaco, a não tradução da Bíblia relatando os motivos por de trás desta ocorrência.
As disputas pelos fiéis pelas Igrejas Luteranas e Católica foram um dos fatores mais significativos. A primeira só
pregava no vernáculo e a segunda era contra as traduções e privilegiava o latim com o seu léxico elevado a condição de
língua oficial pelos católicos. Como as línguas por muito tempo não estiveram codificadas, a terminologia latina utilizada
serviu para distinguir os católicos dos “hereges” (p. 71). Eva aponta também que foi a língua que promoveu a consciência
da distinção linguística e ética dos eslovacos concedendo a sua separação dos demais povos eslavos.
Este texto possui boas fontes de consulta com um consistente conhecimento histórico sobre as diversas etnias que
formaram os países eslavos. Ele evidencia a diferença dos efeitos causados pela tradução luterana da Bíblia, que produz a
inserção da língua eslovaca contra a insistência de Roma em perpetuar os ensinamentos dispensando a tradução.
Encerrando a primeira parte do livro, encontramos o quarto capítulo intitulado “Traduções para o latim na Europa
Moderna” novamente contemplados pela escrita assertiva de Peter Burke. Ele examina a tradução no sentido “errado”, ou
seja, de uma língua moderna para o latim e identifica cerca de 1.140 traduções publicadas e de autores conhecidos entre a
invenção da imprensa e ao ano de 1799, onde não pretende ser preciso e/ou exaustivo nestas cifras que encontrou nesta
investigação. Com isso, cabem quatro questões cruciais: O que foi traduzido para o latim neste período? De que línguas?
Por quem, para quem, onde e quando? Quais eram os principais problemas linguísticos que os tradutores enfrentavam?
Burke responde a cada uma das perguntas com muito embasamento de referência bibliográficas consistentes ainda
sinalizando a localização de todas as obras referendadas. Neste período investigado, de acordo com o autor, podemos
contemplar as opções tradutórias de Schleimacher, que levam o autor “domesticado” até o leitor, ou trazer o estranhamento
do original e inseminar a língua de acolhimento. Concluindo, há a ponderação que a opção classicizante, onde inclui os
nossos dias, a obra “Harry Potter e a Pedra Filosofal” que pode ser encarada como “uma espécie de tradução cultural às
avessas”, pois a prática de classicizar é estranha a nossa própria cultura e proporciona um vivido lembrete do fato de que a
língua não é neutra, nem flutua livremente. Há sempre o ônus da bagagem cultural e as escolhas feitas pelos tradutores
modernos revelam muita coisa sobre sua cultura da época (p. 92).

PARTE 2 – TRADUÇÃO E CULTURA

Abrindo os trabalhos textuais desta parte temos o quinto capítulo produzido por Carlos M. N. Eire com o ensaio “A
piedade católica moderna em tradução”. Eire considera as traduções tão importantes na história do catolicismo que afirma
que “sem traduções, nada de renovação espiritual, e nada de Reforma Católica” (p. 95). O autor aborda desde Inácio de
Loyola e Erasmo de Roterdã retomando em linhas gerais o caminho trilhado pela história da construção intelectual da
piedade católica neste período e passando por suas traduções, tradutores e suas diversas intencionalidades. Também relata
Teresa d´Avila, João da Cruz e outros personagens destacados da história das religiões atingindo até o laicato que também
recebeu os textos devocionais sob um viés particular.
Eire também investiga uma obsessão genealógica que rastreia linhagens familiares da época por meio de textos e
traduções. O intuito é “identificar as lacunas, criticar a produção acadêmica e sugerir novas vias de pesquisa” (p. 98) que é
obtida no final deste ensaio. O autor atenta para análises de termos traduzidos por equívoco e que interferiram na penitência
cristã, como por exemplo, o realizado por Erasmo na Vulgata, a tradução latina da Bíblia feita por São Jerônimo (340-420),
que foi declarada a versão oficial da igreja romana pelo Concílio de Trento, em Mateus 4:17 onde se lê “Fazei penitência,
pois o Reino do Céus está próximo” há uma correção executada pelo autor apontando como sentido correto seria
“Arrependei-vos” (poeniteat vos), ou ainda, “reformai-vos” (resipiscite). Suaves diferenças, porém, relevantes porque um
indica o ato da confissão ao sacerdote (Poenitentiam agite) e o outro indica o ato interiorizado reconhecendo a necessidade
do verdadeiro arrependimento pelas falhas (poeniteat e resipiscite).
Mais uma tradução equivocada ocorreu no período áureo da influência espanhola no campo espiritual. O termo
renano Inwerken (ação interior) usado para indicar a forma como o divino atua interiormente nos fiéis. A tradução latina
escolheu o termo inactio (inação) trazendo uma característica de inatividade, de passividade. Isso deu início a um
movimento herético na Espanha denominado os Alumbrados ou “iluminados”, que em italiano é Illuminati. Seus adeptos
foram perseguidos, tiveram bens confiscados, foram levados ao açoite, prisões e outras punições e penalidades executados
pela Inquisição espanhola. Entre os ilustres acusados e depois libertados estão Inácio de Loyola, fundador da Companhia
de Jesus, e Teresa d´Avila.
Neste texto o autor também relata a vanguarda de alguns trabalhos na tradução como o de Jacques Lefèvre d´Étaples
em 1509 publicando o Psaltorium quintuplex, uma edição comparativa de cinco versões em latim do livro dos Salmos e em
1512 a publicação de uma edição francesa da Epístola aos romanos realizada a partir de uma tradução do grego
acompanhada da Vulgata em latim para comparação adicionada de seus próprios comentários. Foi Lefèvre o pioneiro na
tradução para o francês do Novo Testamento (1523), dos Salmos (1525) e da Bíblia na íntegra (1530).
Para finalizar seu ensaio, Carlos Eire aponta seis lacunas relevantes na historiografia do textos devocionais, da sua
tradução e distribuição sugerindo infinitas possibilidades de investigação a saber: classificação da literatura devocional,
impacto da discórdia religiosa, a ausência de estudos sobre a identidade dos tradutores e de seu lugar no contexto mais
amplo da vida religiosa, a necessidade de examinar o espírito de proselitismo da era tomando a literatura devocional como
parte integrante da formação de identidades culturais e religiosas, a investigação das traduções em si posto que os textos
retraduzidos em um idioma ou que conhecem a tradução em diversas línguas projetam infinitas ideias e interpretações sobre
várias dúvidas, inclusive a investigação das escolhas feitas pelos tradutores, que ampliam as possibilidades de diferenças
tanto denotativa quanto conotativamente e, por fim, desenvolver as pesquisas bibliográficas de forma significativa e ampla
a fim de contribuir na compreensão de como os europeus atravessam os limites e estabeleceram suas identidades e de como
os seres humanos cientes da necessidade de adaptação ao mundo constantemente em mudança, em constante encolhimento
e assolado por conflitos (p. 113).
No sexto capítulo intitulado “A tradução da teoria política na Europa Moderna” escrito por Geoffrey P. Baldwin
explica como se deu este processo. Para isso, ele traz à tona a noção de marginalia, anotações feitas por tradutores propondo
considerar a tradução tendo em vista suprir as lacunas informadas na pesquisa de extensa gama de ideias políticas que havia
na época. Em defesa da sua posição reporta que a tradução sempre surge dentro de um contexto característico relacionado
diretamente à tradição nacional dentro da qual o texto traduzido foi criado. Os perigos, riscos e finalidades da busca da
tradução dessa época também são considerados (p. 117-119).
Com base nesses parâmetros, Baldwin argumenta sobre a tradução de leis e constituições indicando as dificuldades
sobre as jurisprudências naturais e a área das jurisprudências, bem como a utilização do latim como língua franca e
formadora dos operadores do Direito da época. Ele também como os monarcas e repúblicas promoveram opções de cunho
ideológico definindo quais autores e textos seriam ou não traduzidos visando dar suporte aos governos vigentes. Da mesma
forma acontece com a “razão do Estado” associada à monarquia onde

“Seus imperativos práticos e morais giravam em torno do Estado como entidade abstrata e da necessidade de mantê-lo
vivo, e esse era um imperativo que os monarcas tentavam tornar seu” (p.130)
Este ensaio também aborda a literatura de resistência considerada pelo autor como uma porção bastante significativa
da História da Ideias analisando em linha gerais os efeitos de duas traduções: a primeira do rei James I escrito em dialeto
escocês o livro “A dádiva real” (Basilikon doron) que é composto por conselhos ao seu filho Henrique. Com o propósito
de atravessar as fronteiras cultural, devocional e confessional sendo traduzido para o latim para apreciação do Papa.
Independentemente da divisa confessional e emocionado com a leitura do livro, o sumo pontífice elogia o teor da obra.
Consequentemente, o livro segue sendo traduzido em outras línguas e prossegue com autonomia para além das fronteiras
britânicas.
A segunda tradução é a Jean Barbeyrac que determinou uma programação de tradução e publicação de textos
apresentados sob uma nova ótica, o que colabora com magnitude para o desenvolvimento do Iluminismo francês. Baldwin
afirma enfaticamente que não existe muitas ideias políticas traduzidas entre a Europa ocidental e oriental, não pela falta de
compatibilidade, mas pela grande porosidade de fronteiras intelectuais e morais e pela utilização do latim como língua
franca dos povos da época em detrimento dos infinitos vernáculos principalmente da porção leste da Europa desta época.
Chegamos ao sétimo capítulo com o retorno de Peter Burke com um ensaio denominado “Traduzindo histórias”
onde investiga obras traduzidas que procuram depurar a opinião particular de leitores de diferentes nacionalidades sobre
outras culturas da Europa Moderna (p. 143). A redação deste texto contempla inicialmente o questionamento do autor para
o significado do termo história em diversas línguas. A seguir, há uma abordagem dos autores antigos mais traduzidos, as
línguas mais traduzidas e os seus destinatários, parte em que não houve tradução por contingências culturais, pelos leitores
a que os textos se destinavam, por quem foram os tradutores, quais os locais de guarda dos textos e como atuaram os
respectivos tradutores na seleção, forma de tradução e por quem são sustentados. Burke faz sua abordagem neste texto
fundamentado em referências bibliográficas indicando o quão precisa ser feito antes que se dê por profundamente estudado
este período.
A segunda parte deste livro termina com o oitavo capítulo escrito por Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke cuja
investigação realizada é intitulada “The Spectator, ou as metamorfoses do periódico: um estudo em tradução cultural” onde
é averiguado o impacto do jornal inglês na cultura nativa e traves da tradução ou compilação de ideias o seu desenrolar em
vários países sob o viés do que é o jornalismo atual. A autora relata que as inovações trazidas pelo periódico em questão
foram as razões para o seu sucesso sendo tratado como uma leitura cult em diversos meios fomentados na Europa.
A autora também indica que uma tradução entre línguas é uma forma de tradução entre culturas e as alterações
executadas num texto passa pela tradução não resultado somente em fatores linguísticos permitindo indicar as sucessivas
“adaptações” a que os textos são submetidos. A professora Pallares-Burke nesta etapa do seu ensaio investiga os herdeiros
do periódico Spectator em outros locais da Europa (Zurique, Copenhague e Paris). Na capital francesa, Delacroix surge
“corroborando a ideia de Borges da ´criatividade infiel´ como regra para uma tradução de sucesso, diz que ´seria contra as
regras artísticas empregar a mesma cor para pintar duas nações diferentes´”, apresentando sua intenção de recriar na França
o jornal “original” inglês.

PARTE III – TRADUÇÃO E CIÊNCIA

Iniciando a última parte desta interessante obra organizada por Peter Burke e Ronnie Hsia, temos o ensaio escrito
por Isabelle Pantin que traz à tona “O papel das traduções nos intercâmbios científicos europeus nos séculos XVI e XVII”.
O fluxo das traduções não era muito intenso e dava-se prioritariamente do vernáculo, que é a língua própria de um país ou
de uma região, para o latim, a língua franca da época, o que agregava valor dando relevância internacional a obra traduzida.
Com isso, os autores encontraram uma forma de se integrarem na almejada República da Letras.
Este fenômeno era muito mais valorizado quando a obra era escrita inicialmente no vernáculo por motivos especiais
e relevantes, como por exemplo o Dialogo, de Galileu Galilei (p. 202). Apesar de nem sempre os autores aceitarem as
modificações dos seus textos, este não foi o caso de Galileu, que tolerou as alterações visando assegurar a sobrevivência da
sua obra. Isso também talvez ocorresse, de acordo com Pantin, pela mudança do público leitor tendo em vista que estas
obras se tornariam um bem público e pertenceria a toda comunidade de estudiosos e leitores instruídos.
No décimo capítulo, através da análise dos “Intercâmbios científicos entre o helenismo e a Europa: traduções para
o grego, 1400-1700”, Efthymios Nicolaidis contempla o período das últimas décadas bizantinas até as comunidades gregas
do Império Otomano indicando um caráter mais político nas traduções originais no período de declínio do Império Bizantino
e consequente ascensão do Império Turco-Otomano. Por conta disso, o Império Bizantino carecia do apoio da Europa
ocidental para conter o avanço dos turcos propondo uma unificação religiosa efetuadas a priori através de debates
executados e pela intensa troca cultural entre os dois lados que incluíam o intercâmbio de textos científicos traduzidos em
três vertentes sendo “uma da escola do Oriente e duas do Ocidente: os textos da escola astronômica de Tabriz e Maragha
na Pérsia, os da escola astronômica dos judeus caraítas na Provença e os da escola ibérica” (p. 204). O Judaísmo caraíta é
o que defende a crença única e absoluta em Deus e que sua revelação única foi dada através de Moisés na Torá (que não
admite adições ou subtrações) e nos profetas da Tanach.
Por conta deste contexto, o grego se tornou a língua onde as ciências oriental e ocidental interagiam promovendo o
já desejado retorno do Helenismo. Em contrapartida, com a ascensão otomana o círculo erudito grego que promovia o
desenvolvimento científico desaparece. Isso trouxe grande frustração aos eruditos gregos que apenas participariam da
difusão da ciência europeia em direção a ´periferia cientifica´. O ensino da ciência só se estabeleceria nas comunidades
gregas e na cultura europeia no século XVIII (p. 215).
Abordaremos agora décimo-primeiro capítulo onde ocorre uma reflexão dos “Encontros otomanos com a ciência
europeia: traduções para o turco nos séculos XVI e XVII” conduzida por Feza Günergun, que logo de cara aponta a entrada
de informações europeias realizadas pelos eruditos otomanos durante o respectivo período, apesar do acesso aos textos
científicos árabes e persas do Islã medieval. Com isso, temos contribuições na Medicina, na Geografia, e na Cartografia.
Os europeus também demonstraram interesse pelos textos científicos islâmicos escritos nos meados do século XVI
efetuando muitas trocas produtivas entre os eruditos.
Günergun conclui seu ensaio afirmando que “a tradução de obras de ciência europeia aumentou gradualmente no
decorrer do século XVIII e atingiu seu pico no século XIX, quando as versões do latim e do italiano foram substituídas
pelas do francês” (p. 237).
O livro se encerra no décimo-segundo capítulo sob responsabilidade de S. S. Demidov que aborda as “Traduções
da literatura científica da Rússia dos séculos XV ao XVII” que nas suas considerações iniciais relata que a Rússia medieval
não tinha lugar no mapa da Europa (p. 239) e que o Estado russo só se estabelece a partir do reinado de Ivan III (1492-
1505). Demidov determina através de sua investigação quais são os parâmetros que a literatura científica deve ser estudada:
a da hostilidade do Estado ortodoxo russo direcionada contra as tentativas realizadas por Roma de estender sua influência
a leste.
Demidov exemplifica esta hostilidade do Estado ortodoxo russo não somente contra Roma, mas também contra
outras culturas, quando ao final do século XV uma obra de cunho astrológico surge naquele país sendo rapidamente
classificada como ‘heresia judaica” (p. 241) e posta na compilação dos livros proibidos, lista que existiu até o século XVII.
Mesmo assim, desde o início do século XVI, houve uma ascensão de atividades intelectuais na Rússia comprovada a partir
da quantidade de manuscritos produzidos que circularam nesse período e que é igual ao número de manuscritos de todos os
séculos anteriores.
Além disso, as discussões teológicas ocorreram com mais frequência nessa época e que contemplação dos cientistas
russos se voltaram para a Europa ocidental no que tange aos seus aspectos científico e cultural. O autor oferece indicativos
sobre muitas traduções que aconteceram nesta época a fim de traçar um escopo de como estes textos eram recebidos
indicando em seguida o século XVII como o período que foi denominado de “uma era turbulenta, finalizada pela ascensão
da Casa dos Romanov”.
Segundo ele, o encerramento deste século se deu com as reformas iniciais realizadas pelo czar Pedro, o Grande,
que transformou a Rússia no Império Russo (p.242), através das profundas mudanças territoriais e dos significativos
esforços educacionais do governo como, por exemplo, o estabelecimento de dois eruditos gregos no país em 1667 que
colaboraram na fundação da primeira instituição superior russa: a Academia Eslavo-Helênico-Latina. O eslavo e o grego
(helênico) reforçam o viés ortodoxo, enquanto o latino frisa o viés da Europa ocidental. No aspecto intelectual, a empreitada
mais relevante foi a intensa tradução de livros contendo informações científicas.
Desta forma, muitas obras nos campos da Matemática, Geometria, Arte Militar, Física, Química, Geografia,
Cosmografia, Anatomia e Medicina tiveram livre entrada no país. “Foi assim que o espírito do Renascimento apareceu na
distante Moscou” (p. 244), porém ainda existiam alguns indícios que a Rússia não renunciou à sua cultura medieval. O czar
Pedro, o Grande, com suas notáveis habilidades de estadista teve que abrir caminho para derrubar essas tradições através
de reformas radicais necessárias que só ocorreriam no século XVIII.
Por fim, considero este volume uma obra literária de grande importância para o campo da Tradução Cultural e que,
a partir do conteúdo oferecido em seus textos, incentiva mais estudos e investigações científicas nesta área de conhecimento.
Contém uma fundamentação teórica amplamente embasada pela infinidade de referências bibliográficas disponibilizadas
nos doze ensaios escritos com bastante consistência e qualidade por uma casta de historiadores e cientistas internacional de
alto desempenho e renome no universo acadêmico e científico.

REFERÊNCIAS

BURKE, P.; HSIA. R. P. A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

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