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Cândido

A morte é tão irrelevante quanto a vida; isso eu tenho certeza. Rio da morte como se não
houvesse fim, e rio mais dos finais daqueles que mais se desesperam quando a veem
chegar. O coração do homem realmente aponta para a eternidade, já o concluí, tanto que a
procuram... Que idiotice! No fim das contas, tanto os justos quanto os injustos irão para a
cova e serão esquecidos para sempre pelas gerações posteriores, não importando a
bondade ou a maldade de cada um. O que se faz na vida é irrelevante. Não há nenhum
feito na vida humana que faça diferença. O que ganha a ser bom? Nada. E a ser mau? Nem
também adianta qualquer da dita “potência” ou “provabilidade”. Cândido está aqui para
provar, determinado para morrer com as oito balas, de uma forma tão irrelevante quanto sua
vida.

O Cândido que eu muito gargalho nasceu em São João do Catucaí. É algum lugar lá longe,
bem para dentro do interior, ou derredor de São Paulo; lugar que não encontra nem sol ou
céu em todas as veredas do horizonte. Aqueles que vão, ou que bem nascem no lugar
profundo do Tinhoso, nunca saem ou fugirão. É um buraco de mineração à beira de um rio
carnoso, esquecido por Deus, entre montanhas e covas tenebrosas, essas sempre com
neblina. Declinou-se com a queda do ouro e da população que aproveitou e colonizou os
arredores de Planaltina nos anos 60.

Os casebres: pareciam que iriam cair a qualquer momento, com os cacos dos tijolos
espalharem nos mil-cantos, parecidos feitos de pano, como trapos sujos e encardidos
largados numa mureta preta. Outras, de tão velhas e abandonadas, abrigavam as
ervas-daninhas do país inteiro, e as trepadeiras as estrangulavam com veemência. As
estradas: esburacadas, e o que a prefeitura largava de material para consertá-las, o povo
prontamente resgatava um pouco do imposto.

“Claro, é nosso dinheiro, afinal!” Comentou uma vez Jerônimo.

O lixo era mutuamente jogado às ruas; absolutamente tudo era deixado, desde móveis
inteiros até pedaços podres de cavalo, com alguns até insinuando ‘lixos humanos’, criando
uma montanha de odor que rivalizava com os fedores de Londres do século retrasado. O
esgoto era a céu aberto, com alguns até quebrando a tubulação que passava ali, por
diversão: o povo, assim mesmo, nem ligava…

E lá vivia Cândido com os albuquerques olhos que comprimentavam os donos dos alqueires
e os de nada, como se estivessem lá de longe fitando-os numa varanda, com tanta ternura
que dividia a medula da espinha e um sorriso que dava no coração uma vontade de viver.

“Que olhos fulminantes desse Guerrinha!” Disse uma vez Cármen Lúcia.

Nunca esqueceu a palavra “fulminantes”: dizia-se que era fenomenal, mesmo que não
soubesse o que significava de fato, apenas intuitivamente, embora receie que se tivesse um
bom dicionário teria a gana de conhecê-la de exato. Posso fazer essas previsões.
A verdade é que usamos as palavras sem saber seu significado total, empregando-as
intuitivamente. Os olhos espertinhos do mancebo Guerrinha, de tão tácitos, conseguiam
encontrar alguma luz no poço que era aquela cidade com a lei de “a que Deus dará”; ou era
meio assim que se lembrava da expressão: veio à mente quando ouvira há dez anos dos
seus doze.

O pai foi embora há tempos, deixando-os ricos d’ouro e com fome — Ponho o conto para
outra oportunidade — e nem se lembrava mais dele; morava com a mãe, Dona Glória!, e
sua irmã sossegadinha, de olhos abertos, fundos e magnéticos, que viviam a cogitar o
espaço. Não brilhavam tanto quanto os de Cândido, e nem tinham a forma dos de águia, e
de certa forma eram opacos. Sempre punha as mãos na grande e inchada barriga. Menina
tão lindinha se as roupas dessem; não, é demasiado amarela e doente…

“Que cê tá fazendo Guerrinha?”

“Pegando umas coisas aqui… A menina já querendo ir embora.”

“A gente já passou aí já! Vamo’ logo!...”

“Tem livrinhos de conta!”

Ninguém sabia o que era o cálculo de desvio padrão; tanto perguntasse não adiantaria:
todos davam meias palavras… Mas sabia fazer, e era tão prazeroso; só não sabia de onde
vinha aquele sigma.

Mas Cármen Lúcia era o anjo-da-guarda que ajudava com o que tinha enquanto Glória não
tinha emprego bom. Cármen Lúcia por si só era ladra que só furtava da viúva Aparecida
como agregada… Uns vasos aqui, uns quadros ali: senhora rica, baronesa d’ouro. Também
Cândido não gostava de gente roubando, mas o que não gostava mais era quando não
tinha comida em casa; é que dificultava o pensamento.

“Mãe, tem muito pouco nesse prato…” A mãe deu um sorriso fraco. “Isso dá, meu filho.”
“Eu acho que não dá não.” Sem resposta, os olhos lacrimejaram. Depois, à surdina da irmã,
acariciou-o e disse que as coisas iam melhorar, decerto.

Mas o desastre se aprofundou. Perdeu o emprego na mercearia de Seu Jê devido, por


desvairar-se pela fome, dar mordida a uma maçã do local. Jê a levou à delegacia aos
trapos, não sei como, senhor velho e descabido levando uma mulher com muito mais forças
que ele, mesmo com a desgraça que ela passava.

“Essa muié tava me roubando!" Esmagando a maçã mordida com as mãos.


Marcos olhou para a mulher; depois ao homem com certa indiferença. “O que ela roubou?”
E alto: “As maçã tudo!” Era humilhação pública, aquilo tudo era humilhação perante as ruas
torpes de Catucaí.
Compadeceu-se; explicou ao velho que era bagatela e que não podia fazer nada. O velho
replicou que não largava a mão, e se a delegacia não fizesse o trabalho certo a levaria até a
Zona Sul para fazer o B.O. Pareceu que um manto de preto cobriu Dona Glória. O homem
ficou um pouco pálido com a resposta do velho.
“Quanto que ela te roubou?”

Seu Jerônimo ficou pensando um pouco: estava acabrunhado em responder o valor irrisório
e passar por alguém que faz caso por pouca coisa.

“Um real e vinte centavos…”

“Tome cinquenta reais!”

“Isso é algum tipo de suborno?”

“Vai embora senão não tem nada!”

A turba não a pegou porque era protegida do polícia. Maria contou ao filho aquele ato e
aquele homem de Deus. Cândido ficou estupefato com aquilo tudo e revoltado pela
amargura de Jerônimo. Quando que acabaria a judiação, a maldade das pessoas? Quando
a gente teria que passar por isso? Para que instinto ruim daquele, de azucrinar, de podridão
daquela cidade?

“Vinte reais.”

“Tudo… Tudo isso?”

“Sim.” A moça roubava dez reais de Cândido, mas não o podia do estabelecimento…
Pegaria do cliente mesmo, não importando quem fosse.

Foi com os trinta reais em três notas de dez, e numa pochete o saco de arroz, que era
pesado, pesadíssimo. Estava um pouco fraco, tísico, mas o garoto caminhava tão risonho;
teria seguramente comida para toda a semana, só pela bondade de um que salvou a
humanidade: sem merecer. Com o entardecer róseo o céu evoluía à escuridão, mas dava
para ver; o regozijo do futuro iluminaria as praças, ajudaria os idosos, a vida; cuidaria das
veredas…

“Você tem cara de vagabundo moleque. Cadê seu documento?” De supetão um oficial
apareceu.

Mexeu os bolsos; procurou com as mãozinhas enquanto a face do oficial endurecia.


Lembrou-se que não tinha nada… Ah! A mãe tinha falado para ir com o documento mas se
esqueceu! Além de ver o troco certim…

“Não tenho, senhor… Eu…”

“É bandido mesmo! Quem mais não teria documento a não ser marginal?”
Cândido desesperou-se… Os olhos queriam chorar e paralisou: não é que sempre chorava
com tudo; se emocionava facilmente com qualquer coisa, e isso era tão frequente que
resolvia não fitar diretamente os olhos da pessoa que lhe afligia… Era incontrolável,
acontecendo também em situações incontroláveis.
“Qual seu nome moleque?”

“Pedro Cândido Joaquim Guerra… Senhor…”

“O nome da sua mãe?”

“Maria Joaquina Glória Guerra; por favor eu…”

“Olhe… Olhe para mim! Pare de ficar olhando para o chão como um imbecil! Agora vai!
Entre na viatura vagabundo! Vamos para a delegacia na Zona Sul.”

Cândido desesperou-se… Estranhou não ter tomado notas do seu nome ou fazer uma fixa.
O que isso significava? O que isso significa? Os olhos queriam chorar, mas não conseguiam
mas não teve jeito: entrou na viatura quase aos pontapés e sentou no banco detrás: tudo
escuro. Depois estava num beco tenebroso, e nada conseguia ver… Terror assombrou o
coração até a entrada no prédio velho, quase a 70 mil léguas do bairrinho do Monte Preto;
sim, foi como se estivesse num submarino lá fundo no mar, escuro e enfadonho, e sem
chances de voltar nunca mais… Nunca mais! Um corvo casmurro dizia…

“Saia do carro, vagabundo!”

Cândido saiu apenas fitando o chão. Os olhos eram como lamparinas que iluminavam o
assoalho negro, necessitando de encontrar alguma esperança naquilo tudo de situação que
cheirava a das mais perigosas. Estava sozinho; sem ninguém para ajudá-lo. Nenhum para
auxiliar os ombros naquela empresa, empreitada: era ele no confronto de tudo, só, por si,
carregando a responsabilidade pela vida, engolindo o choro, tudo numa situação em que
não tinha nenhuma ideia como reverter e que nem possuia controle.

Uma ideia de supetão passou em sua cabeça. Não queria pensar nas probabilidades mais
sombrias… Rechaçava-as ao fundo da mente, deixando surgir apenas as variáveis mais
bonitas, mais atraentes, mais vistosas e elegantes. A verdade era que sempre podia fazer
alguma coisa… Ora, se mudasse a opinião do oficial, mudaria o curso das águas, o curso
do perigo para o que era antes, e se sentiria mais seguro.

“Mas… E a probabilidade de eu não ser marginal? Eu esqueci minha identidade em casa…


O senhor não pode estar tão certo assim, por favor! Eu sou um bom garoto, eu prometo!
Pelo menos me dê uma chance para provar!”

“A probabilidade só existe na matemática, garoto! Não existe na vida real! ``." Falou em tom
grave e áspero.

Como assim? Como ele poderia dizer aquilo? É claro que a probabilidade de uma das seis
faces de um dado cair é um sobre seis: um lado que é requerido entre os seis lados totais.
Aquilo era óbvio, e tinha lido em outros materiais esse mesmo princípio, até mesmo com
diferentes “simulações”. Lembrou-se também do Princípio de Dirichlet, ou do Princípio das
Gavetas, embora, após pensar nisso, desconsiderou-os como não relevantes para a
questão.
“É fácil partir do pressuposto que, já que não se sabe todas variáveis de um evento,
deve-se considerá-lo como um fator de probabilidades.” Disse ele num tom professoral,
triunfante; gostava de expor a virtude. Era como se fosse o grande teórico, um intelectual, o
Grande Inquisidor da Idade Média, na Espanha das Cruzadas, contrariando-o com sua
superioridade de conhecimento direto da fonte, ou era isso que Cândido lembrava. A
maioria das coisas que sabia eram de outras pessoas; mas mesmo assim, decorava-as até
que visse as informações com os próprios olhos, e preenchia as lacunas com aquilo que lhe
era mais possível.

Continuava: “Mas não tarda a descobrir que probabilidades muito grandes de um evento
não vingam: esse não acontece ou acontece independentemente das incertezas expostas.
Acontece que a probabilidade é medida apenas quando se há falta de informação. Ora, se
se medisse um dado, descobrisse de que modo foi jogado, seu ângulo, a força do vento e o
cálculo do coeficiente de atrito, o seu material, o seu peso, a força depreendida, etc etc,
medindo todas as variáveis possíveis com sublime exatidão, a possibilidade e a certeza do
evento ocorrer é ou de cem por cento ou zero por cento. Se eu quero o lado dois, mas irá
cair três, então a probabilidade é de zero por cento. Ou, se eu quero o seis, e com cem por
cento de certeza virá o seis, a probabilidade é de cem por cento. Vê que não se cabe mais
a denominação? Para essa ótica, não há probabilidade com todas as informações
necessárias. Não há deslize, não há engano, considerando todas as variáveis, todas até
sua assíntota ao infinito. Não há física com probabilidades! Só se demonstra com isso a
falta de informação, e o parco cálculo e correlação das variáveis de um evento. E eu sei que
você é um ladrãozinho, ou vai ser. Sei todas as variáveis, tudo, e posso ditar o que você vai
ser, decerto!”

Aquilo era impossível. Como alguém poderia ter tanta certeza sobre uma pessoa e sua
vida? Como alguém poderia se colocar num pedestal tão gigantesco e alegar coisas tão
imensas, ou dizer que se sabe tudo, e que sua palavra seria a determinação dos tempos?
Não sabia como refutá-lo… Na verdade, nem tinha ideia de onde começar.

“Você é marginal sim moleque. Devia estar vendendo drogas, ou roubando coisas alheias,
ou vai vender, ou vai roubar, decerto. Voce é marginal porque nasceu nesse meio torpe,
nessa cidade abominável e ignóbill: prostituição, roubo, drogas, degeneração,
desestruturação familiar, assassinato e corrupção. Além disso, a falta de identidade é uma
das provas. Não há diferença entre ser agora e ser depois: se já é fato daqui a um tempo…
Está determinado! O assassino é mesmo antes do assassinato! Não é necessário cometer o
crime! Ou vai esperar a centelha de probabilidade? Irá deixar a vítima morrer ou a intenção
ocorrer para prendê-lo e executá-lo, ou fazê-lo antes? Se é certo, se todas as provas são
certas, isso será o futuro: o futuro é certo, não incerto… Pronto e acabou! Patife! Você se
apresenta como o lótus no pantano, como se você fosse um, elevando-se no lixo com um
conhecimento que não tem: apenas eu tenho!, e além disso, pede clemência… Não há
amor nesses tempos de podridão… O amor está morto! Nunca houve uma boa pessoa
nesse meio podre, considerando, claro, seu fim — Tudo o que a podridão toca fica
corrompido, e se nasce, é determinado que vai ser lixo. Eu vi isso com meus próprios olhos,
animal! Não há ação que possa melhorar a vida de alguém… Suas ações são ditadas por
seu entorno, e é impossível que possam se elevar da lama nesse tipo de sociedade
degenerada, porque suas ações e seus pensamentos são degenerados. E essa sociedade
com certeza já formou seu pensamento... E não tome como exemplo aqueles que
conseguem: são demasiado poucos para a matemática considerar. E para acrescentar, a
classe dominante, reproduz a mentalidade de marginal para todos, todos, sem exceção! E
só para provar, você aí, dizendo que é bom… Bom nada! Na verdade, uma sementinha do
mal que está pronta para ser exterminada, e pode-se, exterminando essa barata, purificar
esse meio… Até todas as baratas sumirem!”

Cândido nunca se deparou com aquela nova emoção que era uma aflição tremenda, e a
realização foi a catálise dessa dor. Era o seu confronto com o fim da existência, e isso era
demais, e começou a soluçar; não parava, mas não conseguia chorar. Teria a vida abortada
aos doze anos, e aos mesmos doze teria o confronto final. Mas tantos planos e tantas
coisas boas: não fazia sentido… Não! Não faria sentido que iria morrer depois de
experimentar tantas coisas boas e de ter enxergado a beleza nas coisas! A morte era tão
certa que era como se a visse, e isso era tão estranho porque sempre devia ter alguma
alternativa. A mesma intuição era assim e essa ideia veio de uma surdina improvável; mas
era tão real que não podia ser reprimida. Mas não tinha como correr: uma rajada lhe
atravessaria de um modo ou de outro. Na verdade, estava paralizado.

Dois rastros de muco saíam de seu nariz de uma forma incontrolável, e sua cara inchava,
inchava tanto, vermelhinha; e os olhos de medo, e absurdo terror, e medo, e mijo, e fixos à
arma carregada, que aparecera sacada da cintura do oficial, de sobrolho como uns de gato,
e paravam como se olhassem inquietados de uma janela um corvo ao longe que se
aproximava tanto que se chamava “inexorável destino”…

O primeiro tiro foi bem dado no marginal, atravessando-lhe no rim; que lindo! O segundo foi
apenas casualidade: o eliminador por um reflexo débil pressionou mais uma vez o canhão,
deixando Cândido um pouco agitado. O terceiro deixou-lhe alerta, mas foi pela morte do
colega amado. O quarto: pelo baixo salário, mas deixou-lhe coberto de vergonha; o quinto
pela gana do saco de carne se movimentar com os tiros, deixando-lhe com virulentas
náuseas; o sexto pela ansiedade da morte, levando o coração a bater com mais terror que
tudo dantes. O sétimo pelo ódio aos traficantes, deixando a boquinha de Cândido trêmula.
O oitavo foi o único que foi só para ele; foi realmente o que lhe assassinou, quando o corpo
se virou, e pegou de uma têmpora à outra.

Antes da sétima bala, a consciência gritava endoidecida “Por favor!”, e alguns dizeres
mal-pensados, sentindo as chuvas. Entretanto, após o furo que pintou o chão num só
"vrau!", com os miolinhos, nada mais houve em poucos segundos. Aconteceu que o
fenômeno fora um simples balbuciar a durar dois desses, com a boquinha aberta esperando
seu novo sinal que nunca mais viria. Tudo isso foi num véu tão negro e irrelevante!, e ela
fechou, e os olhos cintilantes da varanda nunca mais se abriram, e eram, daqui a pouco, os
bons vermes da vala comum. Dava até para ver uma varejeira deixando um visco
amarelinho. Foi assim para que eu risse do valor irrisório da vida e dos olhos cândidos da
esperança.

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