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O SENTIDO DO TRABALHO NA SOCIEDADE ATUAL:

SUPORTE DA IDENTIDADE OU SUPORTE PARA O CONSUMO?

Marcos Mariani Casadore

“Os seres humanos são seres em busca de sentido.


É a definição fundamental de ser humano e ser
social. De outro modo, seríamos apenas animais
totalmente programados”.
Eugène Enriquez

“O consumo pode, por si só, substituir-se a todas


as ideologias e acabar por assumir a integração
de toda a sociedade”.
Jean Baudrillard, em
A Sociedade de Consumo.

Considerações iniciais acerca do trabalho

P ensar sobre o trabalho significa pensar sobre o ato de trabalhar e a


complexidade de seu sentido para o sujeito. Essa reflexão implica-
se, ainda, em inserir o trabalho no seu devido contexto – ambientá-
lo num determinado espaço, dentro do tempo considerado, enquanto
parte contínua da história: com passado e futuro. No presente artigo,
30 | O sentido do trabalho na sociedade atual: Suporte da identidade ou suporte para o consumo?

retomaremos a história recente do trabalho para introduzir a questão


do desenvolvimento dessa problemática na atualidade.
A complexidade do significado do trabalho advém, justamente,
por este situar-se numa intersecção perpassada pelos contornos da
política, da história, das ciências sociais e da psicologia, das ciên-
cias naturais e da filosofia, da civilização e do intersubjetivo. Sen-
do assim, muitas são as vertentes que constroem e influenciam seu
sentido, mutável de acordo com o espaço, o tempo e a dinâmica do
jogo de forças exercidas sobre ele. Para uma compreensão mais “de-
mocrática” do proposto neste estudo, buscaremos o diálogo favorá-
vel àquele conhecimento sugerido por Morin (1999), fruto do pen-
samento complexo que não se reduz a uma só disciplina, mas sim
serve de ponte entre os vários saberes que – nas palavras do próprio
autor –, corresponde, ainda, àquele apto a globalizar e conciliar as
partes ao mesmo tempo em que reconhece o que há nelas de singular
e concreto, na procura pela organização (e não respostas a perguntas
pré-formuladas) ao tratar com incertezas.
Comecemos, então, a breve retomada histórica partindo do sur-
gimento do capitalismo; ou, ao menos, de sua implementação e seu
fortalecimento, gradativos e crescentes, a partir do final da Idade
Média, especialmente no Ocidente. O sistema capitalista mais remo-
to advém à sociedade junto com o aparecimento das cidades, conse-
quência do desfalecimento dos feudos, e das enormes perdas huma-
nas causadas pelas grandes pestes (talvez a fome devesse ser incluída
entre estas últimas, além das epidemias incontroláveis e da Guerra
dos Cem Anos). Instaurou-se, pela Europa, de maneira desigual, do-
minou o contexto urbano, crescente, e fez parte da acumulação de
riquezas dos regimes absolutistas, permeada pelo mercantilismo a
partir do séc. XV, no chamado Antigo Regime. A acumulação de
riquezas por parte dos reis e do Estado era, sobretudo, a acumula-
ção de metais preciosos, de novas terras e colônias, de mão-de-obra
escrava, pautados no comércio, no desenvolvimento tecnológico, na
exploração das colônias e, também, em relações interestaduais.
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De modo bastante geral, é possível inserir os cidadãos europeus


ocidentais daquela época em algumas poucas “categorias”: havia os
membros da nobreza e da realeza, os membros do clero, a burguesia
(dividida em alta e baixa burguesia), os trabalhadores rurais e arte-
sãos, basicamente. O triunfo crescente do capitalismo (acumulação
de bens e capital, e lucro como meta) e do mercantilismo (gerencia-
mento de mercados) como ideologias econômicas resultou, também,
de certa forma, na ascensão da burguesia – enquanto classe – para-
lelamente à perda de hegemonia e poder da monarquia e também do
clero. O resultado, culminante, desse espírito de época, já no final
do séc. XVIII (evidentemente, aqui, também influenciado pelo ide-
al Iluminista, pelas crises generalizadas, reivindicações de ordem
política e econômica, dentre muitos outros fatores) foi a Revolução
Francesa, emblemática enquanto marco de poder social, de luta por
direitos civis e humanos, e apoiada no tripé moderno dos ideais de
“liberdade, igualdade e fraternidade”.
Claro que toda a história é muito mais complexa e envolve n
outras conjunturas, mas não caberia agora a discussão estendida e
detalhada acerca delas. O que almejamos destacar, nessa retomada,
é o papel do capitalismo durante todo esse processo. A acumulação
de riquezas havia motivado o desenvolvimento das nações e da tec-
nologia, e a busca por novas terras e pelo domínio comercial por
parte dos reis. A cidade e a burguesia desenvolveram-se, paralela-
mente, envolvidas nesse ideal capitalista, de busca por riquezas e seu
acúmulo, mas que ainda eram impossibilitadas pela hegemonia da
monarquia. O capital, que enriquecia a nobreza, era o mesmo que
possibilitou à burguesia pensar sobre sua condição, sujeitada ao rei,
sob todas as crises. O sistema econômico capitalista fez com que o
social buscasse, também, se apoderar da esfera política. Houve uma
revolução burguesa pelo poder, e esta só era possível de ser imagina-
da e colocada em prática pelo suporte que o capital oferecia a esses
novos sujeitos que seriam agora donos de si, criadores de leis, direi-
tos e deveres, gerentes da sociedade republicana. Poderiam ascender,
enfim, à busca ilimitada pela opulência.
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De certa forma, a Revolução Industrial inglesa é correlata e pro-


cedeu a esse crescimento do domínio e do poder burguês. Apesar
do contexto um pouco diferente da França, com um ideal religioso
protestante e a implementação do liberalismo econômico, o desen-
volvimento dos países europeus era semelhante e estes acompanha-
vam, na medida do possível, uns aos outros. As condições históricas
haviam favorecido o Reino Unido a despontar no desenvolvimento
industrial, que culminaria, por fim, na vigência hegemônica do ca-
pitalismo como sistema econômico.
Resultado do desenvolvimento tecnológico de maquinarias que
possibilitavam um aumento extraordinário na produção, as fábricas
emergentes que chegavam para substituir os trabalhos de artesãos
e manufatores deslocavam comunidades rurais inteiras até as cida-
des, na busca por emprego. O crescimento urbano era descontrola-
do, devido ao êxodo repentino dos novos empregados das fábricas.
Nesse momento, o controle do trabalho passa a ser dos burgueses,
capitalistas, detentores dos meios de produção. A força de trabalho
dos trabalhadores transforma-se em mercadoria e é apropriada pelo
salário; o ideal capitalista de acumulação monetária e promessas de
melhoria de condições de vida também toma conta dos novos traba-
lhadores industriais que vendem sua força de trabalho às fábricas.
A burguesia teve papel central e revolucionário na história dos
estados modernos: ao mesmo tempo em que se apropriava do po-
der de estado, favorecia o progresso e as relações comerciais. Porém,
como salienta Oliveira (1991, p. 79-80):

[...] há um progresso econômico que não é acom-


panhado pelo progresso social. O proletariado,
surgido com a grande indústria urbana, fica su-
jeito a todas as vicissitudes da expansão burgue-
sa. O trabalhador torna-se apêndice da máquina
e sua capacidade produtiva condiciona-se à no-
ção de lucro [...]. Estabelece-se o domínio do tra-
balho pelo capital e a mais-valia torna-se marca
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registrada dessa dominação. [...] A burguesia fixa


regras da exploração de trabalho e a lei da oferta
e da procura acaba por se impor como princípio
dessa regulação.

No feudalismo da Idade Média, o trabalho era compulsório e


pautado na servidão e na dominação. Neste início da era industrial,
sua dinâmica era praticamente igual e as condições dos trabalha-
dores tão precárias quanto, com a diferença de que agora a força de
trabalho era assalariada e o ideário capitalista compunha a socie-
dade industrial emergente. Os grandes movimentos operários e os
primeiros sindicatos de trabalhadores aparecem na primeira metade
do séc. XIX, na luta por reivindicações básicas e benefícios que ate-
nuassem a exploração intensa da força de trabalho pelo capital. Ga-
rantiram, assim, alguns direitos e conquistas para os trabalhadores,
além um posicionamento firme e resistente destes frente ao processo
desenfreado de exploração por parte dos empregadores.

A centralidade do trabalho no início do séc. XX

A revolução tecnológica fabril trouxe consigo outras mudanças


sociais para além do crescimento exponencial urbano e intensa pro-
cura por empregos nas fábricas por parte de toda a população. Se
considerarmos as ideias de Hannah Arendt (1958/1987) propostas
em A condição humana, poderemos esquematizar melhor o início
daquilo que se pretende propor.
Arendt (1958/1987) nos apresenta sua ideia de vita activa, ex-
pressão que usa para caracterizar a vida humana na medida em que
esta se impele a fazer algo. Sendo assim, ela se localiza no ambiente
das relações entre homens e mundo, homens e coisas feitas pelo ho-
mem, homens e homens, sem nunca abandoná-lo ou transcendê-lo:
eis sua circunstância, seu estado definido. Dentro desta noção, a au-
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tora comenta que pretende designar e diferenciar três atividades hu-


manas fundamentais correlacionadas às condições básicas da vida, a
saber: o labor, o trabalho e a ação.
Destacamos a distinção entre labor e trabalho, proposta por
Arendt (1958/1987) como recorte para complementação da discus-
são no nosso estudo. De acordo com a autora, labor estaria mais
correspondente às atividades ligadas ao processo biológico do cor-
po, inserido num círculo prescrito da espécie, natural à vida. Já o
trabalho corresponderia ao artificialismo da existência humana,
produtor de um mundo também artificial e diferente do ambiente
natural; refere-se, essencialmente, à fabricação de um objeto a partir
dos materiais disponíveis. Desta maneira, o trabalho e seu produto
– o artefato – confeririam uma ideia de permanência e durabilidade
à efemeridade da vida humana; auxiliaria na transcendência da vida
individual e emprestariam um sentido à vida e um caráter mais his-
tórico ao sujeito.
Pautando-se num número grandioso de leituras e obras clássi-
cas, a autora desenvolve seus argumentos e propostas numa distinção
que ela mesma classifica como inusitada. Seu sujeito do trabalho, o
homo faber, aparece contextualizado na história – a partir do declí-
nio da Idade Média – e contrapõe-se ao sujeito do labor, escravizado
pelo que é lhe exigido. Este último é nomeado animal laborans, ex-
pressão que estabelece íntima ligação com os demais animais cujas
atividades são basicamente laborativas e impelidas, sem um sentido
que não seja o da necessidade de se fazer algo.
Arendt retoma a ideia que se tem sobre o trabalho desde a An-
tiguidade, na Grécia, quando este significava algo essencialmente
pejorativo e destinava-se aos escravos (ou seja, aos não-cidadãos,
àqueles que não tinham nenhuma voz no controle da sociedade gre-
ga). Assim, o trabalho (aqui, portanto, labor) significava servidão
inerente à condição dos escravos enquanto tais, atividade feita pelo
corpo, relacionado à força humana, próximo à condição animal da
necessidade do trabalho; era associado, portanto, ao ser escravizado
às condições humanas de viver. Claramente, o papel do escravo na
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sociedade grega centralizava a tentativa de se excluir o labor da vida


humana (que era, então, vida pública, vida para a polis, para a socie-
dade, para a civilização).
Essa dissociação, porém, entre labor e vida pública “civilizada”
dos gregos foi perdendo espaço no decorrer da história. Cada vez
mais o labor inseria-se na então sociedade. Nos feudos, ainda como
labor servil; na era moderna, promovido como trabalho. Arendt, en-
tão, desenvolve seus argumentos sobre o assunto: diferencia labor e
trabalho, assim como trabalho produtivo e improdutivo, além das
ideias sobre trabalho manual e intelectual, qualificado e não-quali-
ficado, objetos duráveis ou evanescentes, conferindo a esses últimos
as características análogas ao desenvolvimento industrial moderno.
Sem nos atermos às especificações que a autora desenvolve nes-
tas comparações últimas, queremos destacar o que propõe Arendt
(1958/1987) acerca da sociedade industrial. Segundo a autora, houve
uma quebra na ideia de trabalho; o homo faber que trabalhava sobre o
que fabricava tornou-se novamente animal laborans na produção mas-
siva de produtos não-duráveis que se misturavam ao próprio produtor,
pronto para ser consumido. Era a supremacia da felicidade e do lazer,
o fenômeno do consumo que se iniciava, contemporâneo à obra, na
década de 50 do século passado. A autora parecia surpreendida por
aquele fenômeno nunca antes visto; teorizava sobre seu acontecimento,
levantava hipóteses sobre a sociedade, às vezes com certa desesperan-
ça, fazia sua própria leitura acerca do presente episódio.
Concentremos, então, na questão do trabalho. Ora, para Arendt,
já não existia mais o trabalho após o advento das indústrias – so-
mente o labor e o consumo, respectivamente para que se ganhe o
próprio sustento e se que faça uso dele, ao se produzir objetos para
uso imediato. Quase estavam extintos os artesãos, os manufatores;
só considerava mesmo como exceção admitida pela sociedade o ar-
tista, tomado como “único trabalhador que restou numa sociedade
de operários” (ARENDT, 1958/1987, p. 139).
É importante considerar que os termos propostos por Arendt
para caracterizar os tipos de atividades sociais vinculam-se dire-
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tamente a uma condição humana proposta, ontológica, inerente ao


homem; eis porque tomam para si um caráter mais generalizante
que depreende e perpassa toda a história social humana. É uma lei-
tura bastante pertinente e inusitada, excelente como introdução à
presente discussão.
Além disso, a autora define sua posição acerca da sociedade na
vita activa de acordo com o que cada um produz nela. Nesse sentido,
aquele antigo trabalhador que fabricava objetos duráveis, no começo
da era moderna, era mesmo a exceção da sociedade ocidental que
se desenvolvia no caminho capitalista da produção em série para
consumação rápida; podemos dizer que não havia mais espaço re-
servado a ele. O que surge, na época, é a produção de excedentes. O
trabalhador não se via mais como fabricante de um objeto necessá-
rio, durável, que trazia consigo o sentido de seu trabalho aplicado,
e sim como auxiliar numa produção em série de artigos não “ne-
cessariamente necessários”, mas principalmente feitos para serem
consumidos. O aumento da produção industrial e da procura pelo
trabalho nas indústrias (conforme já discutido) incrementou tam-
bém a rapidez do “fazer” e “comprar”, além de ter papel central na
transformação do trabalho harendtiano essencialmente em labor.
O que foi transformado, nesse mesmo período de reestrutura-
ção e expansão exponencial das indústrias e do trabalho operário,
foi o próprio significado social do trabalho, ou seja, suas prioridades
e objetivos. Ao contrário do execrado labor da antiguidade grega, o
trabalho passou a ser considerado como algo essencial na sociedade,
procurado pelos trabalhadores. O imaginário anexado essencialmen-
te ao trabalho, de Arendt, deslocou-se para a idealização do emprego
operariado que trazia consigo a oferta de melhorias na condição de
vida dos trabalhadores (muitas delas conquistadas pela própria luta
sindicalista) e salário (e a autonomia em gastá-lo), além da inscrição
do trabalhador e de sua família na dinâmica urbana e do consumo.
Percebemos, então, que a essencialidade destas transformações
no mundo do trabalho, a partir da Revolução Industrial, é perpas-
sada pelo capital, ou seja, pelo sistema capitalista de produção. No
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período industrial, louvava-se a produção; esse era, portanto, o sen-


tido central do trabalho (labor, para Arendt) para os empregados
das indústrias. Seu diferencial era a venda da força de trabalho, por
parte dos trabalhadores, em troca do salário. O incremento massi-
vo da produção, associado à maior estimulação e possibilidade de
circulação de capital, acarretava, também, a difusão das compras e,
assim, iniciava-se a sociedade pautada no consumo.
Agora, já na metade do século XX, a dinâmica dos processos de
trabalho parecia acompanhar a alta velocidade da produção de mer-
cadorias, do intenso consumo e da evanescente felicidade direcio-
nada à aquisição de objetos. Vários modelos de produção – como o
fordismo, o taylorismo e o toyotismo – superavam-se dentre as pos-
sibilidades de se obter maior lucro dentro do mercado da sua própria
época. Permeados, ainda, pela crescente globalização e hegemonia
do neoliberalismo, mudanças intensas nas relações de trabalho e
condições dos próprios trabalhadores ocorriam nestas últimas dé-
cadas e ainda estão presentes, misturadas às suas consequências,
até a atualidade. Centraremos a discussão, agora, na mutabilidade
recente do mundo do trabalho e na manutenção deste, ainda como
suporte da sociedade consumista.

A mutabilidade dinâmica do trabalho atual e a


sociedade massificada de consumo

As mudanças sociais, políticas e econômicas tinham (e, claro,


ainda têm) influência direta na mutabilidade do trabalho; sua orga-
nização se aliava ao momento do mercado e da economia nacional e
mundial, a fim de propiciar a melhor maneira de exploração da força
de trabalho dos empregados. Além disso, o crescimento exponencial
da produção e de indústrias produtoras, aliadas ao desenvolvimento
de tecnologias, logo culminaria num ponto intransponível, no qual
não haveria mais espaço para todos – nem indústrias e produtores,
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nem trabalhadores. Para além dos desempregados que ficavam fora


do mercado por pouco tempo e mantinham a vigência empregatícia
e salários medianos numa dinâmica que vinha desde o início da era
industrial, em pouco tempo surgiu o desemprego estrutural. Com
a lógica neoliberal dominando as relações na segunda metade do
século XX, a livre concorrência entre empresas começou a dominar
o cenário econômico.
São grandes as transfigurações na dinâmica do trabalho, nestas
últimas décadas. Singer (2000) destaca que não são eventos inéditos,
apesar das peculiaridades históricas: compara a expulsão de enormes
multidões de trabalhadores humanos nas últimas décadas com seme-
lhante acontecimento ao introduzir-se máquinas e aparelhos avança-
dos na primeira revolução industrial. Destaca, ainda, o quanto a auto-
mação (e não a tecnologia) foi responsável pela substituição de trabalho
humano nos dois períodos. Ao discorrer sobre o assunto, traz a ques-
tão expulsão de trabalhadores da agricultura, crescente desde o século
XVIII, e mais recentemente, o do trabalho humano encontrado nas
indústrias, sempre substituídos por máquinas automáticas que reali-
zem a mesma função sem demandar tantos operadores.
A crise nas relações de trabalho, no trabalho em si, aparece, na
verdade, como uma crise dos empregos; assim, as transformações no
trabalho eram transformações nos empregos disponíveis. Até cer-
to ponto, os empregos eram garantidos há décadas atrás. Além dos
trabalhadores não terem medo de perderem os seus, e ainda terem
a possibilidade de pensar num planejamento futuro com a garantia
de trabalho assalariado, nada os impedia de encontrar outro, caso
fossem demitidos. Mas, com o desenvolvimento da tecnologia e da
automação, o caráter expansivo dos movimentos neoliberais e glo-
balizantes, o crescimento do monopólio, das organizações “hiper-
modernas” (ENRIQUEZ, 1994/1997; 2006), da precarização do tra-
balho e do emprego, houve também a saturação nas “permutações”
entre serviços (agricultura, indústria e comércio, dentre outros). A
demissão massiva de trabalhadores não encontra, em contrapartida,
a disponibilidade e a expansão de vagas noutro setor; para além do
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desemprego que faz parte do sistema funcional capitalista, surge o


desemprego estrutural e a desesperança no retorno à classe traba-
lhadora por parte de muitos.
Na sociedade dita “pós-industrial”, crescem o poder privado e as
grandes corporações. Na busca intensa pelo lucro, fazem da preca-
rização do trabalho e do nefasto ideário generalizado de ameaça de
desemprego as suas estratégias, enquanto parte dos modelos adap-
táveis à situação, e envolvem os trabalhadores nas suas armadilhas
perversas em prol da máxima produtividade. Enquanto um sistema
cultural, simbólico e imaginário, a organização “hipermoderna”
modela as personalidades que procura, nos próprios empregados,
envolvem-nos inconscientemente com os planos da empresa – que
agora aparece como um grande ideal a ser seguido – e prendem-
nos à sua dinâmica de funcionamento (ENRIQUEZ, 1994/1997). As
novas possibilidades, mais flexíveis, de acumulação de capital por
parte dos grandes empregadores também exigiam certa flexibilida-
de da classe trabalhadora (seria, portanto, o excelente conceito de
flexploração proposto por Bourdieu), e isso acarreta muitas e varia-
das consequências.
As questões sociais destacadas até então exercem influência di-
reta nas individualidades. Não tem como se negar o valor integrador
e social do trabalho, constitutivo importante da identidade e das re-
lações pessoais estabelecidas. Mas todo o sentido do trabalho é trans-
formado, de acordo com as novas contingências do mercado. O apo-
geu do modo de produção capitalista trouxe consigo consequências
enormes: do trabalho e seus significados ao labor produtivo indus-
trial harendtiano, e da produção de mercadoria para a produção de
excedentes; do valor de uso ao valor simbólico, ao valor imaginário,
e assim ao consumo, à sociedade consumista atual, que se encontra
rodeada pela publicidade e pelos jogos de signos fascinantes cheios
de fetiche. Mercadoria-imagem, objetos-fetiche que aparentam ser
a única resposta a encobrir alguma falta ou a única possibilidade
de se adquirir algum valor para além do que se compra, de se agre-
gar valor estatutário, de incluir-se pelo adquirir e de identificar-se
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com os objetos de gozo na sociedade regida pelo imperativo do gozo


(KEHL, 2004). Estaria o trabalho totalmente submetido à dinâmica
perversa do mercado e do consumo?
Lasch (1987), também, destaca a discussão sobre sua cultura do
narcisismo – acarretada pelo lançamento de obra homônima, em
1984 – como estimulante para levantar-se questões acerca dos vín-
culos estabelecidos entre as transformações sociais e econômicas e
as mudanças na vida pessoal e cultural. Associando o fenômeno de
massa com o desenvolvimento de tecnologias e o desenvolvimento
dos meios e técnicas de comunicação, o Lasch expõe que estas impe-
dem a circulação de informações e ideias, concentra as informações
e, assim, estabelece um sistema unilateral de gestão e comunicação.
Ao concentrar o controle político, econômico e cultural nas mãos de
poucos “poderosos” donos e planejadores de corporações e analistas
de mercado, a tecnologia e a comunicação de massa passa também a
servir como instrumento efetivo de controle social.
Ora, se há influência propagativa em decisões populares e na
formulação da opinião pública em questões políticas, ético-morais
e culturais, a mesma comunicação de massa possui ação e domínio,
do mercado e do consumo, imensuráveis. Não se trata, aqui, de abo-
lir, ao considerar o sujeito em questão, qualquer tipo de ação, refle-
xão ou crítica subjetiva acerca de todas as questões públicas; porém,
há de se considerar tamanha influência externa das contingências
sociais – permeadas pelo modo de produção capitalista – que apare-
cem quase como culturais.
Além disso, a comunicação de massa retém seus meios persua-
sivos – diríamos, até, perversos – de convencimento e indução, en-
gendrados imperceptivelmente na consciência social. Lasch (1987, p.
18), no entanto, faz uma ressalva para não confundirmos seus argu-
mentos acerca da comunicação de massa com as velhas acusações
de cultura de massa, ou a versão marxiana de “lavagem cerebral”
nos trabalhadores; coloca suas ideias já num outro momento, como
parte de controle privativo, influentes na comunicação, gestão e opi-
niões públicas.
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Atualmente, a comunicação é muito mais complexa que aquela


proposta por Lasch no final dos anos 80 do século passado. A instan-
taneidade de qualquer notícia em qualquer lugar, o acesso a aparelhos
de TVs e até mesmo à internet, em grande parte do mundo, cresce
exponencialmente. Além disso, cada um faz seu próprio uso dos apa-
relhos de comunicação, de acordo com o que preferir. Há espaço para
que todos publiquem e difundam o que desejarem, da maneira que
quiserem, opinando sobre qualquer aspecto do próprio interesse no
mundo virtual. As fontes de notícias e informações se multiplicam,
mas ainda não deixam de ser, em sua maioria, massificadas.
Da mesma maneira que se atinge a complexidade no campo das
possibilidades de comunicação, é também mais complexo o entre-
laçamento e as vias de acesso e domínio daqueles que buscam a he-
gemonia e o controle de opiniões nesse sistema difuso e infinito. O
investimento é maior e, necessariamente, tem de ser mais planejado
e estrategista, buscando atuar, cada um, sobre seu respectivo públi-
co-alvo; os interesses por detrás são, fundamentalmente, inseridos
na lógica atual de mercado. Mesmo na difusão das teias entrelaçadas
de informações, ainda prevalecem algumas vozes mais imponentes,
de maior credibilidade, que ditam regras, gerenciam e controlam
grande parte dos sujeitos receptores da informação. A comunicação
prevalece-se, ainda, nos moldes unilaterais, dos planejadores e ana-
listas de mercado locutores e ativos ao público-alvo tácito e passivo.
Sem nos aprofundarmos muito na discussão sobre a comuni-
cação de massa na atualidade, é interessante continuarmos a ar-
gumentação, agora com as constatações e hipóteses de Baudrillard
(1985) sobre o surgimento das massas e aquilo que chama de “o fim
do social”, relacionados exatamente ao comportamento passivo dos
sujeitos na atualidade.
Segundo o autor, as especificidades do social, sua qualidade
histórica e seus ideários desapareceram e deram espaço às massas,
chamadas de “maioria silenciosa”. Nessa nova configuração, na qual
o social se transforma num mero estatístico, não há mais circula-
ção de sentido, e sim a busca pelo espetáculo, por parte das massas.
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Sendo assim, “sentido” transforma-se, no máximo, em suposto de


sentido, enquanto suporte dos desejos e engendrado pelo marketing
empresarial. Há a simulação – o sujeito de simulação, o objeto de
simulação, indistinguíveis entre si – num ambiente perpassado pela
circulação de modelos (e não referentes).
Nesse sentido, Baudrillard defende que estamos numa ordem
totalmente diferente, para além das questões da produção de exce-
dentes e do consumo generalizado. Se antigamente bastava ao capital
produzir a mercadoria e o consumo era mera consequência; hoje, é
necessária a produção de consumidores, a produção da própria de-
manda sobre as mercadorias. Porém, ao invés de considerar a massa
como uma estrutura inferior à da comunicação, submetida aos seus
ditames, o autor a coloca como um meio ainda mais forte que aqueles;
assim, não haveria nenhuma prioridade de um sobre o outro. Assim,
considera-se, também, o “movimento” das massas para se colocar no
mercado os signos que seriam consumíveis; é por aí que se envere-
dam os discursos publicitários e propagandistas na atualidade.
Essa “massa” baudrillardiana que é a-histórica e não tem sentido
nem representa nada, que absorve informações e conteúdos sociais e
políticos e os neutralizam, sem retorno – “não há significado social
para dar força a um significante político” (BAUDRILLARD, 1985, p.
13) –, e se caracteriza essencialmente pela inércia e pelo vácuo pode
até ser considerada uma proposta inusitada e generalizada do au-
tor. No entanto, não podemos deixar de notar a grande colaboração
acerca da compreensão dos fenômenos sociais coletivos que nos traz
Baudrillard. Mesmo num tom pessimista, arguindo sobre uma situ-
ação extremada em que não vê saída – já que não considera sequer
a possibilidade de alienação nas massas vazias de sujeitos e vê o fim
das esperanças revolucionárias, por elas não contestarem nem nega-
rem suas posições –, as colocações do autor trazem uma iluminação
preciosa sobre a problemática do coletivo, nos últimos anos.
Poderia se dizer que o que acarretou o fenômeno das massas foi
a emergência do individualismo, enquanto ocorrência social, a partir
do século XIX, e o consequente detrimento gradativo da participa-
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ção ativa na vida pública. Essa ideologia “narcisista” que se pautava


no crescimento pessoal e buscava a ascensão social é, segundo Las-
ch (1987), uma preocupação individual com a sobrevivência psíqui-
ca, num mundo onde o futuro não é mais garantido e a incerteza e
flexibilidade aparecem como norma da sociedade. O mundo seguro
dos objetos duráveis, agora substituído por outro prioritariamente de
imagens oscilantes e signos dispersos, torna ainda cada vez mais difí-
cil a distinção entre o que é real e o que é fantasia; é disso que também
trata Baudrillard. Sendo assim, “o risco de desintegração individual
estimula um sentido de individualidade” (LASCH, 1987, p. 10).
O mesmo ocorre no mundo do trabalho. Não existe mais a segu-
rança dos empregos de outrora e, teoricamente, nem lugar para todo
mundo. Além da precarização do trabalho, do trabalho informal,
do trabalho ilegal, dos empregos temporários, fragmentados, dos
“bicos” e de diversas outras consequências recentes, há ainda a gene-
ralização dessa individualidade na busca por trabalho assalariado e
pela sobrevivência, para além da psíquica.
“A precariedade está hoje por toda a parte”, nos diz Bourdieu
(1998, p. 120). E continua:

[...] tornando o futuro incerto, ela impede qual-


quer antecipação racional e, especificamente, esse
mínimo de crença e de esperança no futuro que
é preciso ter para se revoltar, sobretudo coletiva-
mente, contra o presente, mesmo o mais intolerá-
vel. [...] O trabalho se torna uma coisa rara, dese-
jável a qualquer preço, submetendo os trabalha-
dores aos empregadores e estes, como se pode ver
todos os dias, usam e abusam do poder que lhes
é dado. A concorrência pelo trabalho é acompa-
nhada pela concorrência no trabalho, [...] está na
raiz de uma verdadeira luta de todos contra todos,
destruidora de todos os valores de solidariedade e
de humanidade. (BOURDIEU, 1998, p. 120-123).
44 | O sentido do trabalho na sociedade atual: Suporte da identidade ou suporte para o consumo?

Pelo mesmo viés de Lasch, Bourdieu destaca a individualidade e


a luta acirrada por uma boa situação trabalhista, social, como conse-
quências da precariedade de boas condições para todos na atualida-
de. Salienta que a precariedade se inscreve num modo de dominação
fundado sobre a situação generalizada e permanente de inseguran-
ça e que, por conseguinte, obriga trabalhadores a se submeterem e
aceitarem a exploração. O trabalho assalariado, desse modo, se sig-
nificaria ao sujeito pelo simples fato de ser um trabalho e lhe pagar
um salário? Numa interlocução com Baudrillard, seriam as massas
silenciosas e passivas de trabalhadores submetidos ao jogo complexo
do modo de produção capitalista.
Assim, no amontoado de individualidades “massivas”, subme-
tidas à mesma realidade opressora que não permite sequer o pla-
nejamento futuro, a busca por segurança e felicidade se desvincula
do público e do social (embora sejam totalmente afetadas pela pu-
blicidade e pelo status) e direcionam-se para outro extremo, con-
traposto ao trabalho e ao emprego: o extremo do lazer, do privado,
do descanso e do conforto, enfim, o extremo que é todo interligado
pelo consumo; consumo de ser, de parecer e aparecer, de tempo e de
bem-estar, todos como norteadores da vida.

A centralidade do consumo na atualidade: tra-


balho como suporte do consumo?

“À nossa volta, existe hoje uma espécie de evidência fantástica


do consumo e da abundância” (BAUDRILLARD, 1970/2003, p. 15).
É assim que Baudrillard inicia A Sociedade de Consumo, uma de suas
obras mais importantes e até hoje bastante referenciada. Publicada
em 1970, é ainda de uma atualidade impressionante; a “sociedade
de consumo”, com as devidas mudanças e ocorrências contextuais
das últimas décadas, ainda engendra as relações sociais e é o cerne
referencial da sociedade contemporânea.
Marcos Mariani Casadore | 45

A explicação para a ocorrência de tal transformação na socieda-


de não pode ser, de nenhuma maneira, reduzida a um único fator:
seria demasiadamente precipitado direcionar e determinar a origem
da sociedade de consumo para um só aspecto. Sem tentar impor
suas causas e porquês, alguns dos fatores que compõem o complexo
desta modificação já foram abordados no presente estudo, mas sem
que determinassem, por si mesmos, o fato. A produção maciça após
a Revolução Industrial e a culminação num mercado de excedentes,
na abundância de objetos, que se associava, ainda, à prática econô-
mica capitalista e as transformações políticas e sociais do último sé-
culo, não definem em nada a motivação consumista. Por outro lado,
focar-se em aspectos como a insatisfação individual dos sujeitos, a
transformação de valores, instintos materialistas ou a busca por pra-
zeres, sem considerar nenhum outro aspecto para além do subjetivo,
também é muito limitante. Há, ainda, os interesses comerciais dos
empreendimentos, a publicidade e a comunicação como vertentes de
suma influência, as transformações sociais, científico-tecnológicas,
enfim, uma complexidade bastante conjuntural na qual há “um pou-
co de cada” no seu todo.
Determinar a sociedade atual como sociedade de consumo não
significa, simplesmente, ressaltar que todos os seus membros “con-
somem”; consumir é algo que está presente no mundo desde tempos
remotos, em várias épocas e comunidades diferentes (BAUMAN,
1999; COSTA, 2004). O que se propõe, aqui, é caracterizar a socie-
dade atual como fundamentada no consumo, e em tal profundidade
que a sociedade industrial caracterizava-se por ser, prioritariamen-
te, uma “sociedade de produtores” (BAUMAN, 1999).
Baudrillard (1970/2003), no entanto, assevera que não deixamos
de ter uma sociedade de produção, mas que agora se enreda nela
uma ordem do consumo, manifestante como ordem da manipulação
dos signos. Estão ausentes os valores simbólicos de criação, a relação
simbólica de interioridade; a ordem assenta-se toda na exteriorida-
de. Atrelado a essa nova realidade consumista, o autor continua seus
argumentos tratando também da distância cada vez maior entre os
46 | O sentido do trabalho na sociedade atual: Suporte da identidade ou suporte para o consumo?

homens e seus discursos, sua presença, e a troca gradual pelo mundo


dos objetos “alucinantes” e mudos, governados pela nossa crença na
onipotência de seus signos. Coloca, portanto, o consumo como o
novo “organizador” da vida cotidiana; inserido nessa nova lógica so-
cial consumista, “o indivíduo reorganiza o trabalho, o lazer, a famí-
lia, as relações [...] aquém do mundo e da história” (BAUDRILLARD,
1970/2003, p. 25).
Ao abordar a temática da dinâmica social do consumo, Bau-
drillard sustenta que, para mais-além da satisfação, há a lógica da
produção e manipulação dos significantes sociais; assim, o consumo
é tido como um processo de significação e de comunicação, equiva-
lente a uma linguagem, e como processo de classificação e diferen-
ciação social, ou seja, seus objetos também como valores estatutários
inseridos numa hierarquia.
Ora, objetos e mercadorias tomados como algo que exprime e
diferencia o status dentre os que o possuem ou não já esteve bastante
presente na história do mundo e das civilizações. O luxo e a osten-
tação – relacionados a objetos caros e prestigiosos e ao poderio de
compra – não aparecem como novidade nenhuma ao relacionarmos
estes e a definição de status diretamente ligada a eles. Não pode-
mos, também, postular o surgimento do supérfluo em detrimento
do necessário; enveredaríamos por um campo bastante nebuloso e
impossível de discernir um do outro, ao relacionarmos objetos, su-
jeitos e contexto histórico; em que parte o estritamente necessário
deixa de ser necessário? Além disso, Costa (2004) nos lembra que a
relação entre consumidor e relações afetivas por meio da compra de
mercadorias nada tem de anormal, já que as emoções devem mesmo
ser externalizadas para algo extracorpóreo, a fim de não se tornarem
psicopatologias. “Satisfazer-se emotivamente com a posse de coisas
não é apenas moralmente legítimo; é psicologicamente indispensá-
vel ao equilíbrio afetivo” (COSTA, 2004, p. 19).
No entanto, a conjuntura da sociedade, nas últimas décadas, é
que aparece como singular, conforme já delineamos nos tópicos an-
teriores. Junto da exaltação do “mínimo eu” e do privado, o consumo
Marcos Mariani Casadore | 47

alia-se também como sentido de liberdade para o indivíduo comprar


o que quiser e, assim, também ser quem quiser ser e colocar-se, mes-
mo que imaginariamente, onde preferir estar. Além do mais, nunca
antes houve acesso teoricamente semelhante para todos os indiví-
duos aos “luxos” do mundo, que hoje variam e generalizam-se. Na
sociedade atual, permeada pela publicidade que impõe consensos e
verdades, o indivíduo em questão é convencido vez após vez de que
suas possibilidades são infinitas e dependem apenas do esforço pró-
prio para que as consiga.
É nessa mesma linha que as organizações “hipermodernas” di-
recionam ao sujeito a obrigatoriedade implícita em superar seus co-
legas e superar a si mesmo sempre no emprego e, ainda, a culpabili-
dade caso não atinja o que lhe era esperado. A substituição da figura
do chefe por uma ideologia de grande corporação e o controle da
produção de cada um pelo próprio ideal do sujeito empregado, ajus-
tado e associado ao da empresa, são as táticas perversas de produção
adotadas nessas organizações multinacionais por Eugène Enriquez.
E são estas só algumas das apropriações capitalistas da individuali-
dade engrandecida no mundo contemporâneo.
Ainda sobre o fetichismo das mercadorias, Baudrillard diz que
tanto em relação ao signo quanto ao símbolo que as acompanham na
atualidade, os objetos em questão deixam de vincular-se a uma fun-
ção ou necessidade já definida, justamente por corresponderem a ou-
tra coisa; seja na lógica social seja na lógica do desejo, eles atuam num
campo móvel e inconsciente de significação. Assim sendo, os objetos
e necessidades são sempre substituíveis e, da mesma maneira, – Bau-
drillard os compara – dos sintomas histéricos ou psicossomáticos,
convertem-se, deslizam-se e transferem-se de um a outro. Valendo-se
dessa contínua mobilidade, o autor sustenta que não há, assim, como
definir específica e objetivamente a necessidade em questão; mas, ao
abordar a necessidade como não sendo tanto a necessidade de um
objeto, mas sim a necessidade de sentido, torna-se compreensível por-
que nunca existe satisfação completa nem definição de necessidade
na lógica consumista; é na própria substituição que significam.
48 | O sentido do trabalho na sociedade atual: Suporte da identidade ou suporte para o consumo?

Desta maneira, evidenciam-se os verdadeiros âmbitos da signifi-


cação para a teoria do consumo de Baudrillard: por um lado, a mobi-
lidade dos desejos e, de outro, a mobilidade das significações diferen-
ciais. Portanto, nessa junção entre o psíquico-subjetivo (com o desejo
e a carência, além da busca por prazer) e o social (aliado à diferença, à
diferenciação e ao sentido social), encontramos as estruturas que en-
tremeiam, segundo o autor, a ideologia do consumo contemporâneo.
Baudrillard, enfim, caracteriza o consumo como regressivo e he-
donista, não considerando seu processo como sendo de trabalho e ex-
trapolação, mas sim um “processo de absorção de signos e de absorção
através dos signos; [...] reina apenas a imanência à ordem dos signos”
(BAUDRILLARD, 1970/2003, p. 206). Traz, portanto, que nossa socie-
dade se caracteriza pela ausência de perspectivas e de reflexão sobre si
própria, numa espécie de alienação radical. Desta maneira, coloca a
“era do consumo” como constituinte do remate do processo histórico,
sob o comando capitalista do lucro, de todo o processo de produtivi-
dade acelerada. Culmina-se, assim, na sociedade consumidora de sig-
nos e símbolos que exalta a exteriorização; sujeitos consumidores de
ser, de ter e de aparecer, na busca pelo simbólico e pelas significações
ausentes que, aparentemente, deixaram de lado até mesmo o trabalho
que outrora era o principal responsável – e com toda a certeza, grande
influente – na sustentação da identidade.
Eis o que queríamos destacar: se até a sociedade industrial “mo-
derna” o trabalho e seu produto (ou o labor e sua produção) eram
centrais como papel do indivíduo na sociedade e, até mesmo, en-
quanto guia ou suporte de sua identidade, hoje o consumo toma para
si muito desse “sentido”. O sujeito é, também, aquilo que compra e
que pode comprar, na sociedade de consumo; além disso, também
tem no “comprar” um adquirir de felicidade e de conforto, material
e emocional. A utilidade e até mesmo os significados dos “objetos-
fetiche” são sobrepostos pelos signos que têm, pelo princípio da feli-
cidade e do bem-estar que trazem consigo ao consumidor.
O trabalho, desta maneira, vem em segundo plano; aparece
como “suporte” para o consumo, um “recurso” para se ter a possibi-
Marcos Mariani Casadore | 49

lidade de consumir, já que é o sujeito nesta condição que a sociedade


busca envolver. A prioridade é o consumidor e não mais o produtor
(ou trabalhador), na lógica social contemporânea.
Talvez não seja o caso de retirar do trabalho toda a “aura” que já
possuíra um dia e sua importância para o sentido de vida do traba-
lhador em questão; além do mais, as condições são sempre relativas
e variam de acordo com o sujeito, sua ocupação, seu envolvimento e
outras inúmeras conjunturas. Grande parte dos próprios empregos e
trabalhos assalariados deve-se à recente dinâmica do consumo, com
a produção em massa, aumento no comércio e tantos outros seto-
res de venda; até mesmo as alternativas encontradas nos trabalhos
que fogem do molde do capital, como a economia solidária ou no
próprio cooperativismo de produção, vinculam-se à lógica atual do
consumo – não há como ausentar-se totalmente do grande modo
capitalista de produção vigente.
Rebaixar o trabalho (e seu sentido) a um “mero” sustento de con-
sumo talvez seja muito extremo, embora não mais pareça um absur-
do. Mas, nestes últimos anos, a compra e a posse de objetos – junto de
seus indissociáveis signos – atingiu uma maior difusão e importância
dentro da sociedade; deles provêm grande parte das significações que
os indivíduos procuram e a lógica de consumo passa a ser, ao lado
do trabalho (e talvez até além) um dos principais meios pelo qual
se obtém prazer, sentido e até mesmo um “sustento identitário” na
atualidade. A centralidade de “significações” ao indivíduo e sua (re)
interpretação do próprio mundo nos moldes sociais atuais parecem
estar agora muito mais vinculadas às suas práticas de consumo que às
práticas trabalhistas ou de produção da modernidade.

Considerações finais – para além do consumismo

Discutimos, até aqui, algumas características da sociedade atual.


O trabalho, assim, aparece como vertente bastante complexa e gra-
50 | O sentido do trabalho na sociedade atual: Suporte da identidade ou suporte para o consumo?

dativamente desvalorizada; a exaltação da alta produtividade e do


“labor”, os empregos e a crescente precarização, o desemprego es-
trutural e a falta de espaço para todos no mercado contemporâneo
que prioriza demasiadamente o lucro e deixa de lado qualquer opção
mais humanitária que surja, ao mesmo tempo, como mais custosa,
são alguns dos fatores que contribuem para que ele seja cada vez mais
“alienado”. Ainda há a individualidade exacerbada e as progressivas
exigências por parte dos empregadores, a culpabilização do sujeito
e as formas perversas de expropriação de sua força produtiva entre-
meadas às condições do trabalho; no bojo das conjunturas enumera-
das, o trabalho perde aquele seu sentido mais dignificante e saudável,
constituinte do sujeito, para tornar-se um peso cotidiano circundado
pela incerteza e por inquietações, por angústias e incômodo.
Já o consumo, por outro lado, aparece como um fator bastante
presente e quase central nas relações contemporâneas; ascende na
sociedade atual, incentivado em todos os âmbitos. Quase como uma
compensação à difícil realidade trabalhista, traz consigo a possi-
bilidade de se obter algum prazer, conforto, descanso e bem-estar,
além de diferenciação social e busca (incessante) pela plena satisfa-
ção. Baudrillard (1970/2003) sustenta que é a ideia fundamental de
nossa sociedade, tal qual um mito, aliado à publicidade; é com base
nele que pensamos e nos comunicamos, além de nos integrarmos.
Porém, é tido num sentido falso de integração; integra a todos num
código, mas os mantém isolados. Como muito bem coloca:

A possessão dirigida de objetos e de bens de


consumo é individualizante, dessolidarizante
e desistoricizante. [...] Como consumidor, o ho-
mem torna-se solitário ou celular, quando muito
gregário (a TV em família, o público do estádio
ou do cinema, etc.). As estruturas de consumo
são ao mesmo tempo muito fluidas e fechadas.
[...] O objeto de consumo isola. A esfera privada
[...] é estruturada a partir de fora pelo sistema de
Marcos Mariani Casadore | 51

produção. [...] [O objeto de consumo], se deixa de


isolar, é porque diferencia, ajustando coletiva-
mente os consumidores a um código, sem conse-
guir suscitar (pelo contrário!) qualquer solida-
riedade coletiva. (BAUDRILLARD, 1970/2003,
p. 89, grifos do autor).

Não se trata, aqui, de criticarmos vigorosamente a sociedade


pautada na dinâmica do consumo, acusando-a de todos os malefí-
cios atuais, e tentarmos exaltar uma sociedade ideal, onde não haja
corrupção e desmoralização nas relações humanas, de trabalho, de
consumo; seria inalcançável, objetivarmos tamanha utopia. Mas a
prática consumista tomou para si a “essência” do social, atrelan-
do a si todo o ideal possível de felicidade, de entretenimento e de
prazer; tornou-se ele também individual, além de individualizan-
te. Ocorre, assim, a deterioração das instâncias de solidariedade, de
fraternidade, de humanização, deixadas noutro plano no qual não
são prioridades de ninguém. A partir daí, surge também a ideia das
massas – multidões silenciosas de indivíduos isolados entre si – de-
sengajadas, a-históricas, indiferentes e fechadas no próprio mundo.
Satisfeitas em seus supostos de sentido na compra de signos efêmeros
de objetos-fetiche e prazeres individuais, não se pode esperar nada
delas além da inércia passiva e do vácuo infinito.
Na lógica do consumo atual, difícil seria uma revolução para
além do capitalismo. Apesar do mal-estar e dos descontentamentos
generalizados, parece que houve uma desarticulação dos movimen-
tos sociais e da busca ativa por melhoras de condições à população.
Essa apatia das multidões e falta de perspectivas de transformação
da sociedade encaixam muito bem naquilo esperado pelo modo ca-
pitalista de produção, vigente; mas, de maneira nenhuma, significa
que não teremos saída e para todo o resto da humanidade viveremos
nessa mesma dinâmica pautada no capital, na precarização do tra-
balho e no consumo.
52 | O sentido do trabalho na sociedade atual: Suporte da identidade ou suporte para o consumo?

Baudrillard, em 1985, havia perdido as esperanças com o fenôme-


no que chamou de maiorias silenciosas, caracterizado pelo máximo da
indiferença e do desengajamento com as questões sociais. Mas algumas
coisas vêm mudando no cenário mundial. Enriquez (2006) destaca al-
gumas ocorrências positivas das últimas décadas que ajudariam a res-
tabelecer a construção do vínculo social na sociedade contemporânea:
o surgimento de associações solidárias, com trabalho voluntariado; o
desaparecimento dos grandes discursos ideológicos e espaço já para
alguns movimentos sociais engajados e críticos da atual sociedade, na
busca pela formulação de novos ideais que não sejam nem totalitários
nem liberais, mas sim, um Estado de outro tipo; uma lenta, mas real
renovação da sociedade civil e da noção de ética, numa manifestação
plena das individualidades, mas sem perder de vista o coletivo, além
da discussão de questões fundamentais que antes eram ocultadas; o
aumento de demanda por informação, para além do informativo, com
o propósito de abordar problemas no espaço público e discuti-los,
verdadeiramente; o indivíduo, mesmo, que se encontra cada vez mais
capacitado para interrogar-se e analisar seu contexto, sua situação e,
ainda, discuti-los na comunidade. Enriquez (2006) aposta suas fichas
nesse esforço coletivo, na renovação ética e no desejo de amizade, de
convívio, de se buscar novamente a alegria de trabalhar e viver junto,
na tentativa de fazer triunfar o amor mútuo.
Tudo o que Eugène Enriquez coloca pode parecer muito distan-
te, inatingível ou até fantasioso, mas não o é. Trata-se de constata-
ções, pequenos movimentos que estão por aí; podem ser poucos, até
então, mas valiosíssimos enquanto começo, enquanto iniciativa que
busca reconfigurar o cenário social; no próprio trabalho, tenta-se
conquistar outras formas que não as tradicionais e “capitalísticas” de
trabalhar, para além do emprego e das empresas e corporações. Aos
poucos, procuram-se as lacunas e as saídas; todo cidadão é um sujei-
to crítico e ativo em potencial. A proposta é resgatarmos esse sujeito
histórico e reflexivo que existe em cada um de nós e tentarmos mu-
dar a lógica opressora atual, pautada no capitalismo tempestuoso,
no lucro como único objetivo, no consumo como saída e concentra-
Marcos Mariani Casadore | 53

ção dos ideais de felicidade, prazer e significação. Não sabemos da


resposta certa, de para onde caminhar, mas nada impede que nos
movimentemos individualmente e coletivamente atrás desse desco-
nhecido, menos perverso e indiferente, mais igualitário e humano.

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