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5. Sofrimento neurético Olli, caro colega, sobre 0 que voce gostaria de conversar hoje? Faz tempo que venho escutando voce falar em psicopatologia psi: canalitica, Confesso que essa nogio me deixa confuso, Hé analistas que recusam 0 terme, alegando que é uma maneira de rotular 0 pa ciente ou que & uma heranga da psiquiatria que niio tem nada a ver com o que a gente faz. Os autores de referéncia na minha formasdo {foram Klein, Bion e Winnicott, para quem néo faz muito sentido falar em termos de neurose, psicose ou perversdio~ sé para mencionar a psi copatologia usada por Freud. Para mim, cada paciente & tinico, assim como a relaciio que ele estabelece com o mundo também é Eu também ja escutei este tipo de argumento, De fato, cada paciente € nico, mas hd certas configuragoes que sio tipicas e po dem ser estudadas em sua dimensio universal, Isso ajuda o analis ta a escutar 0 paciente tinico que esta no seu diva. Entioy para comecar, voce poderia me explicar para que serve a psicopatologia? 152 soFRImENTO NEUROTICO Bla serve para articular a clinica’A metapsicologia, quér dizer, *o singular da sua clinica ao universal que voce estuda nos livros Serve para dar sentido a sintomas que, de outra forma, parecem ab- surdos. Por exemplo, o sintoma histérico é absurdo, a menos que se possa compreendé-lo em termos metapsicolbgicos, ou seja, em suas determinagées inconscientes, Af ele ganha um sentido, uma inteli- gibilidade, o que abre possibilidades terapéuticas. Pois, para nés, diferentemente da psiquiatria, mesmo as formas de vida mais com- plicadas, que certamente produzem enorme sofrimento psiquico, precisam ser vistas como a melhor solucio que 0 sujeito encontrou, com os recursos de que dispunha ao longo do seu desenvolvimento, para lidar com seu sofrimento psiquico. ‘ouutros termos, a psi: copatologia estuda as determinagdes inconscientes de certo modo fixo ¢ sintomitico de interpretar a realidade, bem como as formas de se organizar/desorganizar frente a essa interpretacio, De fato, lembrei agora de dois pacientes deprimidos cujos com- portamentos me parecem absurdos. O primeiro esté apaixonado por uma mulher que ele acha muito bacana, mas nem chega perto, dizen: do que é “muita areia para 0 caminhaozinho dele’, que nao é para 9 “bico” dele, Ora, objetivamente, ele teria tudo para, pelo menos, {tentar conquista-la. E intelectualmente ele sabe disso! O segundo fica apavorade quando uma mulher deixa claro que o deseja sexualmen- te, Da um jeito de fugir, para depois se maldizer pela oportunidade perdida. Vai se sentindo um fracassado na vida. B, nos dois casos, sa0 ‘pauirdes que se repetem. Nao sao propriamente sintomas.. Bo modo de vida que é sintomatico! A depressio, sintoma que levou os dois a procurar ani € apenas a consequéncia dele, Seus exempios sio,6timos, pois nos dois casos tudo indica que voce esti diante de inibigdes tipicamente neuréticas! Se for isso, ambos apresentam estruturas psiquicas relativamente estaveis, MARION MINERBO 133 estruturadas em torno das defesas mobilizadas por conflitos e a iistias ligadas & sexualidade infantil. A psicopatologia organiza um saber sobre a neurose ~ e sobre outras formas tipicas de ser € de sofrer -, que pode e deve ser transmitido a jovens analistas, de modo aajudé-los a reconhecer quais s40 0s conflitos e as angiistias que as determinam. Inicialmente, predominava a ideia de grandes estruturas psf- quicas reativamente esta como a neurose e a psicose. Era uma visio macroscépica da psicopatologia. Ao introduzir a nogio de posigdes, Klein desconstréi a ideia de estrutura estavel e privilegia modos de funcionamento psiquico, que oscilam e se alternam em fungio das angistias que emergem nas relagdes de objeto. uma visdo microscépica da psicopatologia Entendi, Sao recortes diferentes. Nesse caso, talvez nao seja ne- cessério optar por um em detrimento do outro. A nogao de posigses é muito titi na minha clinica, mas nesses dois casos que relate’ sinto falta de mais conhecimento sobre a neurose. fo queeu penso! Green jé pertencia a terceira geragao de psi canalistas, tinha uma visio hist6rica do movimento e das teorias (GREEN, 2008), e conhecia os dois recortes. Por isso, tinha con- digdes de articular as dimensées micro e macro da psicopatologi reservando a cada uma sua importncia e seu lugar. Ele mantém a ideia de funcionamento psiquico microscépico, randlo-a. resgata a no sao de estrutura macrosc6pica, relat Por ex: nplo, quando fala dos estados-limite ou borderline, {que se inchiem no campo das estruturas nao neuréticas, descre ve elementos que se repetem com regularidade na clinica desses pacientes, 2le atribui esses elementos a uma falha no que ele cha. ma “duplo limite’; 0 limite horizontal, intrapsiquico, que separa 13 sorximewzo weUROTICO consciente ¢ inconsciente; ¢ © limite vertical, intersubjetivo, ‘que separa sujeito e objeto (GREEN, 2008). Com isso, ele consegue articular a psicanzlise angléfona ~ que tende a privilegiar o intersubjetivo, deixando em segundo plano 0 trabalho psiquico exigido pela pulsio ~ com a psicandlise francé- fona, que tende a privilegiar o intrapsiquico, deixando em segun- do plano o trabalho psiquico imposto ou realizado pelo objeto, O resultado dessa articulagao & que passamos a trabalhar com © par pulsiio-objeto. O intrapsiquico e o intersubjetivo, ou Seja, 0 corpo pulsional, ¢ 0 outro enquanto outro-sujeito esto sempre presen: tes, tanto na constituigdo do psiquismo quanto na psicopatologia. Li no seu livro que oi ele quem organizou a psicopatologia em dois grandes grupos, neurose e nao neurose (MINERBO, 2012). De fato, hoje em dia hé virios recortes para pensar a psico patologia, com sua pertinéncia e relevancia. Mas, para mim, 0 recorte que permite reconhecer na clinica as formas neurética no neurética de funcionamento mental é bisico. Na pritica, ra ramente encontramos formas puras de uma ou de outra, Na ané- lise de pacientes predominantemente neurdticos, com frequén nos deparamos com um niicleo metancdlico, e vice-versa: muitas vvezes, um quadro nao neurdtico se apresenta clinicamente como se fosse uma neurose. Mesmo assim, acho que é muito itil poder diferenciar essas duas formas relativamente estaveis de funciona- mento psiquico. Voce poderia retomar as ideias basicas do sew livro? (Risos.) (Risos.) Ah, ‘ndo gosto de reler 0 que escrevi! Mas lembro de dois pacientes, Robeito e Marcia, que ilustram essas duas formas fixas e repetitivas de interpretar a realidade, bem como as defesas que mobilizam, MARION AUNERRO 135 Roberto acaba de ter um filho. Conta-me que certa noite ten- {ava, em vio, acalmar o bebé que chorava. Conclui o relato com uma formula que j& conhego bem: “nem isso eu consigo fazer dircito!” Ora, nem todas a pessoas que ndo conseguem acalmar seus filhos reagem dessa maneira! B para qué ele tenta se conven- cer, € me convencer, de que é um garotinho incapaz.¢ impotente? Note que, <0 se ver assim, ele realmente fica muito aquém do que poderia, tanto em sua vida profissional quanto sexual. Embora essa forma de ser produza uma forma de sofrer ~ tanto que ele procura andlise -, ela precisa ser vista como a melhor solucio que a crianga-nele encontrou para fazer face & culpa edipiana Na légica neurética, a plena realizagao de seu potencial equivale ‘a matar 0 pai, O problema é que tal solugao se tornou totalmente anacrénice do ponto de vista do adulto em que aquela crianga se transformou. A frase “nem isso eu sei fazer direito’, que vai se repetir em contextos diferentes, é um fio que 0 analista pode pu. xar para levar 0 paciente a fazer contato com a natureza de seus conffitos, essencialmente intrapsiquicos. Ja 0 universo psiquico de Marcia é completamente diferente, (Os conflites intrapsiquicos ¢ a culpa nao esto em primeiro plano: para ela, a vida é uma eterna luta de vida ou morte com sew objeto interno. No comeco da andlise, nao lembro o contexto, seu maride disse a que estava com fome, Ela fica irritada ¢ responde que no esta ali para servi-lo. Depois de algum tempo, acabo enten dlendo quea crianga-neta interpretou o que ouviu como acusacio: “se eu estou com fome, a culpa € sua, ¢ eu te odeio por isso” Este tipo de incerpretagio, que se repete o tempo todo, é uma forma de ser e produz uma forma de sofrer. Ultrassensivel, ela esté sem- pre na defensiva para se proteger dos ataques que podem vir de qualquer diresio. Nio pode baixar a guarda nem perder tempo curtindo a vida. Amar, entéo, nem pensar! 136 soraiMeNto NEURGTICO Marcia, assim como Roberto, interpreta a realidade sempre .da mesma maneira. s que ele faz uma interpretagao neurdtica, ¢ cla, uma interpretacao nao neurdtica ~ nesse caso, paranoica ~ da realidade. De fato, cada um habita um universo psiquico completamente diferente do outro, Vacé disse que a psicopatologia permite articular 4 clinica, que voce acabou de descrever, as suas determinagdes in- conscientes. Quais seria as determinagdes inconscientes em cada ‘Veja s6: a afirmagao reiterada de Roberto de que “nem isso ele sabe fazer direito” ¢ defensiva e esta a servico de perpetuar uma telacao infantil de submissio, de reveréncia e de idealizagio da poténcia da figura paterna, Ele se dimin para manter vivo 0 pai idealizado, a quem ama apaixonadamente em uma posiga que po- demos chamar de feminina. Alids, imagina que, se fosse menina, seu pai teria sido m: jd saimos da po carinhoso com ele. Por outro lado ~ ¢ aqui cao feminina para outra de rivalidade masculina com 0 pai -, a mesma fala serve para afirmar sua inocéncia: “nao se preocupe, néo quero ocupar o seu lugar, nao sou um pequeno Edipo assassino, nio precisa me punir com a castragio, afinal eu no fago nada direito” Esse argumento de “nem isso sei fazer direito” tem, ainda, ou. tros sentidos na transferéncia materna: por exemplo, convocar a mae onipotente que protegerd seu filhinho das agruras da vida Naturalmente, tudo isso € inconsciente, pois foi devidamente re- calcado, Mas € muito importante ter em mente que “o sintoma neurético sempre esté dirigido a outro objeto. £ um tipo de dialo- 20 com os objetos parentais da infancia, agora internalizados como supereu. Fa natureza c’o conteiido desse didlogo que devemos de criptar” (FERRANT, 2007, p. 409) MANION MINERBO 137 Quer dizer que meus dois pacientes, aquele que acha que as mu theres interessantes sao “muita areia para seu caminhdozinho” e néo sto para e “bico” dele; € 0 outro, que foge das mulheres que se jogam no colo dele, também esto em didlogo com sew supereu? stamente! Neles, como em Roberto, ha um conflito entre a sexualidade infantil ¢ 0 supereu. Cada um deu uma “solugio” di- ferente ac conffito edipiano. Percebe como, embora cada paciente seja tinico, ha elementos que se repetem com regularidade? Percebo, sim. E Marcia? Quais seriam as deteriinagoes incons- cientes do sofrintento paranoico? Creio que ja falei dela em conversas anteriores, por rei mais sucinta, Primeito, boa parte de seu sofrimento tem a ver 80, $e com a lula pela sobrevivéncia do eu. Isso é tipico do sofrimento nao neuritico. Segundo, isso acontece porque hi uma zona de confusio sujeito-objeto. Neste setor especifico de sew psiquismo, a separagio sujeito-objeto nao foi realizada de modo suficiente, tanto que ela o confunde com um aspecto de seu proprio mundo interno. ‘Terceiro, a angiistia de morte nao ¢ vivida como tal, mas é transformada defensivamente em irritagao/édlio, o que a mantém psiquicamente organizada, Esses sao alpuns dos elementos incons. cientes que determinam o sofrimento parani Ente, 0 objetivo da andlise seria ajudd-la a completar a separa $0 sujeito-objeto? Acho que isso vem acontecendo. Com dois anos de analise, ela ji era capaz. de me di er “sei que ele no me acusou de ser mi esposa, fui eu que ouvi isso”: Hoje, com quatro anos, ela percebeu algo que sequer podia imaginar: como tem medo de pedir comida ¢ levar uma bronca, ele se limita a dar a dica “estou com fome’ 138 soFRIMENTO NEUROTICO Surpresa, Marcia vem reconhecendo qué “ele parece um menini- nho de6 anos com medo da mae"! Ela comega a ver 0 marido com outros olhos! © que 86 é possivel porque esti em outra posigéo subjetiva Que, por sua vez, 56 € possivel porque ela se separou de seu objeto interno. Esté brigando muito menos com o marido. Pelo que entendi, podemos diferenciar neurose e nao neurose a partir do tipo de angtistia. Roberto se defende de angiistias ligadas 4 gestdo da excitagdo sexual e do prazer. Marcia continua as voltas com angiistias ligadas d sobrevivéncia do eu. Como ex disse, tenho mais facilidade em lidar com 0 sofrimento no neurético. Quase nao escuto mais falar em conflitos ligados @ se- xualidade infantil, a ponto de ter grande dificuldade em reconhecer e trabalhar com os aspectos neuréticos. Eu também quase nao escuto mais falar enrsexualidade. Green (1995) escreveu um artigo bastante contundente, no qual critica abandona desse conceito em certos grupos psicanaliticos. O titu- Jo Sexuatidade tem algo a ver com psicandlise? é sugestivo. Enfim, cada instituigdo faz seus recortes tedricos, muitas vezes excluindo temas ¢ autores importantes. ‘Talvee seja um sintoma do recalque da nossa prépria sexualida. de. (Risos.) (Risos.) Talvez! Jé que vocé tem uma dificuldade especial com 4 neurose, tenho uma proposta a fazer: podemos dedicar o resto dla conversa de hoje ao sofrimento neurstico. Depois agendamos outra conversa 86 sobre o Sofrimento narcisico ~ que é uma forma mais precisa de falar do sofrimento nao neurdtico, pois especifica ‘que as dificuldades estao ligadas & consti igo do eu, Manion suNERBO 139 Excelente ideial Entio vamos lat A neurose é uma forma de ser e de sofrer liga dda a0 fracasso ~ mais ou menos grave ~ na travessia edipiana. Va mos, entéo, comecar falando do Edipo: 0 que significa exatamente “atravessar 0 Eidipo’, como € porque essa travessia pode fracassar, & ‘com que consequéncias. Receio que agora nosso didlogo se trans formar em monélogo, por isso, nio hesite em me interromper sempre que tiver divides. Pode deixar! Primeiro deixe-me diferenciar o Edipo enquanto estratura, da crise edipiana e da organizagio edipiana (ROUSSILLON, 2007). © Edipo enquanto estrutura se refere a0 fato de que precisa mos construir nossa identidade em fungao de sermos filhos de um paiede uma ialmente, Por isso, nossa iden tidade se organizara sempre a partir da articulagao de uma dupla diferenca: de sexo e de geragdes. Enquanto matriz do sentido ¢ da identidade, o Faipo esta presente desde o nascimento, jé que essa dupla diferenga est presente desde a nossa origem. Por isso, Mela nie Klein falou em Edipo precoce. fe que se uniram, Acontece que em determinada idade (entre 4 e 5 anos), essa es trutura, matriz da identidade, entrar em crise, isto é, as demandas pulsionals tipicas da fase genital comecarao a fazer barulho e a se tornar visivels no cotidiano familiar. Os dois eixos organizadores da identidade, diferenga entre os sexos e as geragies, comegam a produzir conflitos entre a crianga e seus pais. Jé 0 termo organi zagdo edipiana designa a manera pela qual a crianga solucionou a crise. Tanto pode ser uma solugao predom ntemente “para a frente’, em diregdo A saiide mental, quanto predominantemente 140 soranesnro NeUR6rICO “para tras’, em direcéo & neurose. Seja qual for, a solugio envolve * certo tipo de trabalho psiquico que fara a crise sossegar. Mas, pelo que vejo na minha clinica, nem todo mundo chega é crise edipianal ‘Tem raziio. Hi pessoas, como a ja citada Marcia, que ainda nfo resolveram a primeira questao basica na constitu de, que & a diferenga eu- io da identida eu, ou sujeito-objeto, Essa diferenca esta permanentemente em crise, 0 é, 0 sujeito continua confun dido com seu objeto primirio, o que torna a relagio com o outro barulhenta e dificil. Naturalmente, para essas pessoas, a diferenga entre os sexos ¢ as geragdes nfo é uma questo porque ha outras coisas mais urgentes, Mas para o que nos interessa hoje, muitas criangas consegui ram descobrir a diferenga eu/néo eu, a crise edipiana eclodiu, mas encontraram respostas mais ou menos inadequadas por parte do ambiente para suas demandas de gratficagio libidinal, o que resul- tou em um impasse na travessia edipiana, Respostas inadequadas por parte do ambiente na fase edipiana? ‘Sim, claro! A expressao costuma ser usada para as falhas pre coces em que 0 objeto primério ndo conseguiu atender as neces- sidades basicas do eu, mas o ambiente continua respondendo as demandas da crianga e influindo na constituigao do psiquismo at pelo menos, o fim da adolescéncia! Aliés, a primeira teoria das neuroses de Freud inclufa, de certa forma, as respostas inadequadas do ambiente, Ele acreditava que a crianga havia sido‘efetivamente seduzida por um adulto, 0 que a havia excitado além da conta, mobilizando o recalque. Mas com © abandono dessa teoria em 1897, a sedugéo passou para a conta MARION MUNEREO 141 das fantasias de desejo da propria crianga, ligadas & sexualidade infantil. © adulto sedutor foi abandonado por Freud. Mais tarde, {oi “redescoberto” por Ferenczi, Laplanche (1988) retoma algumas ideias deste autor, ¢ 0 adulto sedutor ~ agora incluindo a mie - vol- a cena com sua Teoria da sedugao generalizada, Mas atengio: essa nao é uma teoria sobre a neurose, mas sobre a pripria constituigio psiquica. Durante a amamentagio e os cui- ligados a sexualidade materna péem 0 psiquismo para trabalhar, pois a crianga tentard dados corporais, os significantes enigmatica dar algem sentido iquilo que percebe, inaugurando o trabalho de simbolizasao. Assim, a sedugao generalizada ¢ tao inevitivel q to necessiria, pois esses significantes serio recaleados constituin- do o inconsciente, Qual seria a diferenga entre 0 recalgue que constitui o incons. ciente e aquele que dé origem @ neurose? Otima pergunta! Na verdade, é exatamente o que estou tentan- «do entender o ideias ainda embrionarias, mas ja que perguntou, vou compartill-as com voce. Talver essa discriminagao nem seja possivel, tanto que a gente fala em organizacdes normoneuréticas. ‘Mas ew acho que ha, sim, diferenca. Vamos ver se consigo explicar qual seria condigdes normais, ha prazer na relagao. mae-bebé. Roussillon (2008b) diser trelagam, formando uma tranga. 1) O prazer de encher a barriga e matar a fome. 2) O prazer erético de sugar o seio, 3) O prazer, ou ucedida, em nina quatro tipos de prazer que se en melhor a satisfagao ligada a uma comunicagéo bem: quea mie ea crianga se entendem bem. 4) Um prazer, enigmético parsta crianga, ligado ao erotismo da mie, Ela tem prazer erético ‘quando dé de mamar e cuida do corpo da crianga, Esta capta algo 12 soFRiMENTO NEURETICO esse prazer, o que abre caminho para que ela venha a descobrir 0 Prazer que a mae tem com o pai Nesse sentido, Laplanche tem razio: o prazer erético da mie é sempre enigmético para a crianga. Quando ele excita a crianga de maneira “suficientemente boa’, pde seu psiquismo para trabalhar, Nessas condigoes, o recalque primério, tio necesséirio para que a barreira entre consciente e inconsciente se constitua, consegue ‘operar de modo eficaz, Mas a mae pode atuar com a crianga suas proprias questées erdticas mal resolvidas, o que torna a situagio ‘nao apenas enigmética, mas francamente trauma atua responde de forma i ica, A mae que idequada as demandas libidinais da crianga acaba excitando-a além da conta. Como assim? Quando a excitagio & excessiva, o recalque primério nao é su- ficiente para manter os contetidos recalcados quietos no incons- ciente. O desejo recalcado ameaga retornar a consci cia, 0 que obriga a crianga (e também o adulto normoneurético) a mobilizar também 0 recalque secundatio, Entendi, Mas acho dificil imaginar como a mie pode atuar suas questbes erbticas mal resolvidas. Sua divida faz todo sentido, pois, como vimos, mesmo Freud, que comegou pensando que o§ adultos atuavam sua sexvalidade coma crianga, renegou essa idela quando descobriu a sexualidade infantil. Mas, como vou tentar mostrar, hd uma parte que realmen- tecabe a sexuatidade infantil sutra que cabe A sexualidade do adulto ~ suas questdes erdticas mal resolvidas. Antes de abordar qual é a parte de cada um, eabe retomar breve- ‘mente qual 6a angiistia que motiva o recalque. Para Freud, angistia MARION MINERDO 143 tinha a ver com representagdes do desejo (gratificagao libidinal) in tolerives € confitivas do ponto de vista da moral civilizada. Mas os padres morais sexuais mudaram, © que nos obrigou a repensar a questo de qual é a angtistia que motiva o recalque. Acredito que a angtistia que torna certas representagdes de desejo intolerdveis tem aver cor a possibilidade de ser tomado nas malhas da sexualidade inconsciente dos pais: a fome de um se juntaria perigosamente com avontade de comer do outro — a isso chamamos incesto, Nessas con digées, a excitagao sexual tende ao paroxismo, configurando 0 que Roussillon (1999) chama de traumatismo secundério, Sempre que algo na vida do sujeito evoca, mesmo de longe, a possibilidade de re- petigao desse traumatismo, o supereu aciona o recalque secundéio, O que seria traumatismo secundario? Espero que se lembre de nossa conversa sobre trauma e sim- bolizagao, pois nao temos tempo de entrar nesse tema hoje. Usei © modelo da espiga, farinha e pao para explicar a diferenga entre simbolizagéo primaria ¢ secundaria. Vou retomar s6 0 necessirio para explicar o que seria 0 traumatismo secundério, 0 trauma primério é 0 conjunto de experiéneias emacionais que ameagam a sobrevivéncia do eu ¢ sio vividas como angistias ss defesas ~ em particular a cliva- impensaveis. Nessas condi gem - vio afetar o processo de simbolizagao em sua raiz, tornando o procesio de separagio sujeito- objeto problemitico. A erianga fica presa nas malhas do narcisismo materno, Partes do eu da erianga so sequestrados pelo eu da mae. O eu da crianga é requisitado para salvar o narcisismo da mae, e suas fungoes psiquicas passam a ser necessirias para sustentar o narcisismo da crianga. Mi var os tragos mné arde, situagées cotid nas da vida do adult podem ati- 108 das expetiéncias que produziram angistias M4 sOFRIMENTO NEUROFICO impensaveis, o que se manifesta clinicamente como fendmeinos alu- * cinatérios. £ 0 retorno do clivado, Essa confusio sujeito-objeto ca- racteriza o funcionamento psicético. Nos pacientes que apresentam um funcionamento predominantemente neurdtico, essa separagio {oi feita de modo suficiente, mas sempre havera zonas de indiferen- ciagio, constituindo 05 nticleos nao neuréticos, por exemplo, me- lancélicos, que encontramos na andlise dos neuréticos. Passo agora ao trauma secundario, Em ver de anguistias im- pensaveis,a crianga estd exposta a situagdes demasiadamente exci- tantes do ponto de vista libidinal, E, da mesma forma que no fun- cionamento psicdtico, situagées cotidianas podem ativar as marcas deixadas pelas experiéncias de excita as tepresentagdes-coisa, Uma vez ativadas, tems 0 fendmeno chamado retorno do recalca- do, configurando o funcionamento neurético. Vejamos. Quando 0 adulto responde as demandas libidinais da crianga atuando suas questdes eréticas mal resolvidas, esta fica presa nas malhas da sexualidade dos pais. Isso significa que a sexualidade infantil é requisitada pelo desejo do adulto e, dialeticamente, 0 jo do adulto excita a sexualidade infantil. Vale a pena insistir em uma imagem que me parece muito esclarecedora: a fome da crianga alimenta a vontade de comer dos pais, ¢ esta, por sua vez, potencializa a fome da crianga. Qual é a defesa que vai ser mobil zada para domar toda essa excitagao? O recalque. Ele incide sobre a sexualidade infantil infltrada e potenciali- zada por elementos sedutores e excitantes, e fixa esse amélgama como fantasias sexuais inconscientes. Como elas se originam de experiéncias em que a fome se juntou a vontade de comer, elas tém carter essencialmente incestuoso. Como consequéncia, ela nao consegue mais diferenciar © que diz respeito ao desejo dela ¢ ao dos pais: a fantasia incestuosa MARION ATIWERRO 145 dela, 6 dos pais, de ambos? Por isso, quando uma situacao externa ‘ativa essas fantasias, 0 sujeito se angustia como se cla estivesse se realizando, £ 0 retorno do recalcado. Naturalmente, uma parte do eu sabe que é “apenas” uma fan: tasia, o que no acontece no funcionamento psicético, em que essa distingao se perde € o sujeito tem uma percepgao alucinatéria da situagio. Mesmo as 68 intasia por uma situagso cotidiana produz angiistia e precisa ser novamente recalcada, O da m, a ativa trabalho de anélise consiste em ajudar © paciente a reconhecer como a fome de um se juntou a vontade de comer do outro. Esse & o trabalho de simbolizagao secundaria Como seria isso na situacao analttica? Quando conversamos sobre ‘Transferencia eu citei um frag, ‘mento da andlise de Donnet (2005) com Viderman, Sua sesso tertinava ts 20 horas. As badaladas de uma igreja proxima vio se sucedend, ¢ Viderman nao encerra a sessio. Donnet se angustia mais do que o meu tempo!” Viderman permanece sentado mais um minuto em silencio, eentio encerra a sessio, € exclama: “mas ew no quero que o senhor me dé Por que Donnet se angustia? incestuosa. Hle Porque algo na situagao atual ativa a fanta tem a impressio de que o analista deseja reté-lo mais tempo, por isso, esta transgredindo o enquadre, 0 que corresponderia a alua \cestti0s0, Se Viderman se levantasse correndo, es sao do deiejo taria se defendendo confirmando sua parte na fantasia ~ seria uma fantasia compartilhada. Mas sua tranquilidade deixa claro que no se,sente em -o de capturar seu paciente nas malhas de sua propria sexualidade, 0 que ajuda a crianga-em-Donnet a perceber a parte que Ihe cabe. F 0 processo de simbolizagao secundaria, 146 soPRIMENTO NEUROTICO Sim, faz sentido. Mas poderia voltar it questo da atuagaio de questoes erdticas mal resolvidas por parte dos pais? © erotismo do adulto se compde nao apenas da genitalidade, mas do erotismo pré-genital oral, anal e félico. Esses elementos po dem ter sido mal elaborados e mal integrados, caso em que serio atuados na relacdo com os filhos, dficultando o trabalho psiquico envolvido na travessia edipiana, Nossa, agora vou precisar mesmo de uma pequena aula parti cular! esse caso, podemos prosseguir por dois caminhos. © primei ro € abrir um paréntese para falar sobre como se constituem esses pontos de fixagao pré-genitais, tomar um café e depois retomar a cise edipiana e seus impasses. O segundo é continuarmos com a crise edipiana, tomar um café e depois abordar os pontos de fixa- 40. Qual caminho vocé prefere? Prefiro 0 primeiro caminho, pois acompanha o percurso do de- senvolvimento psicossexual da crianca. Depois do café eu me com- prometo a sintetizar a primeira parte da conversa para nio perder- ‘mos o fio da mead Combinado! Vou desenvolver minhas ideias tendo como base 08 principais textos de Freud sobre a neurose, que vocé certamen- te comhece, ¢ uma pequena histéria da subjetividade (ROUSSIL. LON, 2007). Meu objetivo é tentar explicitar o que a constitui dos pontos de fixagdo € a propria neurose devem a sexualidade infantil e & adulta, Em outros termos, vou fazer uma releitura da teoria geral das neuroses tendo como eixo 0 par pulsio-objeto. MARION MINEREO M47 ‘Tudo comega quando a cridnga descobre a diferenga eu/nio eu, que firaliza a etapa do narcisismo primério, dé inicio & fase do narcisismo secundério e se estende até a travessia do Edipo, No narcisismo primidrio, ela acreditava no TUDO, Acreditava que podia produ: seu préprio prazer, com tudo de bom ao mesmo tempo, imediatamente e sem a ajuda de narcisismo primirio, ela descobre que iguém, Com a perda do 1 & bem assim ¢, entao, a Pulsio passa ater uma fonte, que é0 corpo com seus desejos, e um alvo, que éa representagao de um objeto que poderia satisfazé-Los Fla muda de po: 10 € passa & posicio subjetiva denominada nar cisismo secunditio, Nao entendi como a crianga vai conseguir reorganizar sua subje ‘ividade a partir da perda da ilusao dle autossatisfacao, B fundamental esclarecermos essa diivida. Quando tudo dé ‘mais ou menos certo, ela faz o luto pela perda do narcisismo pri m ‘Vou traduzir para vocé um trecho que vai esclarecer este processo: fo trabalho de luto produz] uma primeira representacio de um objeto perdido, quer dizer, de um estado perdido que se transforma em em objeto narcisico a ser reencon- trado [..}. Esse estado subjetivo anterior é aquele no qual © sujeito tem (tinha) a thas de que: TUDO (quer dizer, 14s experitncias de satisfagio, aquelas que so determi nantes) pode se producir, se criar sozinho (ele nao at: bula.a agdo nem asatisfagdo a um outro, ela era fruto de sua alucinagao), imediatamente (a adaptagao materna no 0 deixava esperar), tudo ao mesmo tempo (no mun do do narcisismo primaria ndo & preciso escolher, nao 1d conflito) (ROUSSULLON, 2007, p. 116, grifo meu), 148 soraiMeNto NEUROTIC Mesmo que esse estado a que chamamos eu ideal (tudo; ime- iatamente, sozinho) tenha sido ilusério, ele foi vivide como real e se transforma em um estado subjetivo a ser recuperado. Essa repre- sentagao do TUDO seré transferida para objetos ou situacoes que serio os primeiros alvos da pulsdo em busca do prazer. Ninguém desiste realmente de tentar reencontrar 0 eal, ninguém faz. um luto definitivo; todos continuamos tentando, mas nos contenta. ‘mos com simples representagdes do ideal, com coisas que o sim: bolizam: o ideal do eu. Vou insistie sobre um ponto que funciona como um divisor de ‘Aguas na psicopatologia: a transferéncia do narcisismo primario para as representagdes do objeto ideal perdido s6 pode acontecer quando a crianga descobriu a diferenca sujeito-objeto. Quando nao descobriu, o sujeito continua em busca do proprio objeto ideal perdido (0 TUDO) e nio de sua representagao, caso em que esta- riamos diante do funcionamento psicético. Se entendi bem, a capacidade de fazer 0 luto pela perda do objeto ideal ede transferir os investimentos ibidinais para uma representagao esse objeto diferencia 0 funcionamento normoneurético do psicdtico, Isso mesmo. A marca registrada do funcionamento normo- neurdtico é a capacidade de transferir os investimentos libidinais de uma representacao do objeto a outra representagio do objeto. ( ideal do eu, que todos nds perseguimos durante a vida inteira, é algo que se fosse plenamente atingido, supostamente nos devolve- ria a experiéncia nirvanica do TUDO, do prazer absoluto. Entdo, a saiide mental implica em conseguirmos transferir 0 ideal do ew para novos projetos, adiando mais um pouco a tao espe rada satisfagdo absoluta, como a cenoura que colocamos na frente do burro para que ele siga em frente! (Risos.) MARION MINERRO 149 (Risos.) A teoria da cenoura na frente do burro € excelente! Precisamos acreditar que nossos projetos vao nos trazer algo pré: ximo do TUDO; sem isso, nem levantamos da cama de manha. A capacidadede ir deslocando 0 desejo de uma representacio a outra 6 sinal de sauide mental, mas sncontra também no funciona- ‘mento neurdtico, levando & producao dos sintomas. Pois bem:a crianga que entra na fase do narcisismo secundério vai langar mao de varios deslocamentos na tentativa de recuperar a ‘suposta satisfagao absoluta, o TUDO do narcisismo primério per- dido. A organizagao oral, anal, falica e genital so algumas dessas estratégias. Espero que eu tenha respondido a sua pergunta sobre como a crianga reorganiza sua subjetividade depois de perder a ilusao de autossatistagao. Sinn, © agora gostaria dle ouvir mais sobre essas organizagoes ¢ 0 ‘que elas fdr a ver com a neurose. Cada uma dessas organizagies envolve um tipo de gratificagao libidinal ¢ uma forma igualmente tipica de tentar obter essa grati ficagao na relagao com o outro. Lembre-se de que estamos traba Ihando como par pulsio-objeto. Quando a crianga se depara com 6s impassesligados ao Edipo, poder retornar a elas, pois é melhor ‘uma gratificagao regressiva do que nenhuma, Mas isso sé trata no- vos conflites ¢ novas defesas. Dai os varios “tipos” de sofrimento neurdtico: Listeria de angistia (ou fobias), histeria de conversio e neurose obsessiva. Imagino que poderfamos dedicar uma conversa inteira para cada uma, Com certeza. Por isso, vou apresentar apenas alguns elemen tos basicos da Teoria geral das neuroses, Como ela envolve uma re- 150 soFRIMENTO NeUROTICO gtessiio aos pontos de fixagdo, vamos precisar entender como estes se constituem, sempre levando em conta o par pulsio-objeto. Entao podentos comegar com o modo oral de organizagito do par pulsao-objeto, No modo oral de organizagao Ideal narefsico do TUDO para o s ianga transfere 0 a pulsao, a io, que se torna idealizado, Isso significa que ele passa a ser vivido como fonte de toda a gratifica- ‘¢4o, e uma gratificagao vivida como absoluta. Note que estamos falando do seio como objeto de gratificagao libidinal, como objeto do desejo, objeto erdtico. Veja que introduzi a sexualidade na rela ‘glo precoce com a mae. Isso significa que a mae nao esta li sé para fazer a fungao alfa, o holding, a fungao reflexiva e outros conceitos, {que nos serio muito iiteis para entender o sofrimento narcisico. Precisamos ter em mente que a crianga tem demandas pulsionais, sexuais, erd cas, na relagdo com a mie, € a mae também est em uma relagio libidinizada com a crianga, Se vocé se lembra, cu disse que a angiistia que levava a0 recalque era a possibilidade de ser tomada na rede da sexualidade dos pais. Pois bem, a pulsio que se organiza, no modo oral, passa a ter como objeto 0 seio, ¢ como objetivo engolir o seio ou se fundir com ele, Seria uma dtima maneira de voltar a ser a fonte de sua propria satisfagao. ‘Accrianga nao € nada boba! Pois bem, 0 objeto do descjo ¢ visto como inesgotaivel em sua capacidade de dar , por isso, o sujeito es. pera dele a gratificaglo'absoluta, E 0 que Abraham (1924) e Klein (1935) chamaram de voracidade e sadismo oral, pois 0 desejo ¢ a tentativa de devorar o selo 0 destruiria MARION MENERRO 151 Conheco pessoas assim. Uma amiga minha nao consegue ter uma vida amorosa estavel porque exige dos homens o impossivel em termos dle amor, Esté sempre insatisfeita. No comeco, eles tentam corresponder, mas depois de um tempo se irritam ose esgotam, vido cembora eela fica ainda mais carente. B tenho uma paciente que pode ser chamada de gulosa, B louca Por massas e doces, adora fazer bolos e nao se satisfaz com apenas uma fatia, Tem vontade de comer 0 bola inteiro. § ofre muito para se controlar. Nas sessdes, fala muito de comida, especialmente de bolos Fica horrorizada com dietas radicais sem ghiten, sem lactose, ser isso e sem aquilo, Para ela, sto pessoas que se blindaram as tentagées da vida, conro se -vivessem em um claustro, Ela também fica horro rizada com as pessoas que simplesmente comem tudo o que querer, ‘mas sofren de obesidade mérbida. Os dois exemplos ilustram muito bem 0 modo de ser e de so. frer ligados & organizagao oral do par pulsio-objeto, Sua paciente parece ter quase um fetiche por bolos, tal o gras de excitagio end tica diante deles, Classicamente, a voracidade seria constitucional, Nao gosto tanto des: e de idealizagao da ¢ termo, pois mascara o que hé de erotisme atificagao oral, Seja como for, no acho que dé para explicar a gula — e, principalmente, nao dé para trabalhar analiticamente com esse ou qualquer ontro modo de organizagio a pulsio — se a gente nao incluir o inconsciente do objeto na cons. trugdo desse ponto de fixagio oral Quando tudo dé mais ou menos certo, a erianga vai perceber que 0 sei nio é “tudo isso” e que a gratificagao absoluta almejada nao é possivel ~ isso simplesmente nao existe. Vai descobrir que a mie nao foi colocada no mundo s6 para gratifica-la e que, mes ‘mo que duisesse, no conseguiria funcionar como o seio infinito com o qual a crianga sonha e que desejaria engolir. Enfim, quando 152 SOPRIMENTO NEUROTIC |tudo d4 mais ou menos certo, a crianga se depara com os limites {de gratificagao que o seio pode proporcionat. Frente a esse fato, terd de retomar o trabalho de luto, mas jé em outro patama, {sso criando uma nova representagdo ~ uma nova cenoura, se voce quiser ~ do que poderia fazé-la recuperar a experiéncia do TUDO. Eo que é necessério para que “tudo dé mais ou menos certo”, como voce diz, ¢ a crianga se depare cont esses limites? Como vimos, o ambiente precisaré responder de maneira ade. quada para ajudar a crianga a diminuir suas expectativas e para acalmar a desmesura do seu desejo, condigdo para poder integrar a pulsio ¢ o desejo. Sua paciente, evidentemente, nio integrou su ficientemente a “pulsdo gulosa”! (Risos.) (Risos.) Mas & capaz de reconhecer que uma amiga ~ que nao nem gorda nem magra, que tem prazer em comer, mas se cuida ~ conseguit essa integragfo. Ela sonha emt teressa “paz”. Espero que voct consiga ajudé-la! Como eu dizia, a crianga idealiza 0 scio, isto é, acredita que a gratificagio absoluta existe, razao pela qual vai exigir isso da mae, A grande questio é 0 que ‘a mic ~ leia-se sempre “o ambiente” ~ vai fazer com essa deman. da desmesurada, como ela vai responder. Pois bem: os elementos realmente importantes dessa resposta sio determinados por fato- res inconscientes, A mae reagird & demanda a partir daquilo que cla mesma recalcou em termos do seu erotismo oral e dos conflitos ligados a ele. E nisso ela pode dar respostas suficientemente ade quadas, ¢ ai tudo “dé mais ou menos certo” e a crianga fica mais ou ‘menos tomada nas malhas da sexualidacle materna. Teria um exemplo? Como 05 namorados de sua amiga, uma mae pode se irri tar com um bebé que Ihe parece um bon vivant, que adora ser MARION MINERBO 153 paparicade e que, se deixar, ¥é problema em usar o seio como chupeta per longas horas. Outra pode ficar excitada ¢ adorar ter seu seio sugado por longas horas e, entao, nao tira o peito da boca dele, Uma terceira pode morrer de pena de frustrar a crianga ~ ela mesma lida muito mal com frustragdes ~ e permite que ela fique pendurada em seu seio 0 dia todo, fas atuagdes que vot mencionou ha pouco! Perfeitamente! Em relagio & sua paciente gulos . podemos le parte de sua vida erat imaginar que a mae concentrasse g ca na amanentagio. De qualquer forma, para a escuta anal © bolo é uma excelente representagio do seio, Mas por que justa- mente bolo e nao empadinhas? Fla corta que, quando crianga, passava diversas tardes fazendo bolo com sua mie. As duas adoravam. ‘lenho a impressao de que a ‘mide tinha medo de sair para o mundo, que trabathava fora apenas 0 estritamenie necessario e logo voltava para o aconchego protegido da cozinha e dos fillos. Alids, a avs ea tia também adoram fazer bolos Bla dew ura batedeira de presente para a avé, uma dessas batedeiras bent bacanas. ntéo as mulheres da familia fazem parte de uma “Seita do Percebe que o bolo funciona como uum significante enigma. tico? Podemos imaginar que a mae prolongou para além da conta algo equivalente & amamentacao, mas por necessidades dela, mae, € nao da filha, De certa forma, seduz a filha para que faga parte dessa “seils” ¢ esta, em complemento, quer a mesma coisa e, por isso, se deixa seduzir. A filha ficou pendurada no bolo, uma deli- ciosa representagio do seio, Percebe 0 que queto dizer com ficar tomadg na sexualidade materna? 151 sorrimenra weunérico ‘Sim, percebo bem como funciona esse enrosco no qual a fome de sama se junta vontade de comer da outra. Essa atuagio da mie produz um excesso de gratificagdo efou de frustragio oral, e ambas as situagdes ex ma pulsdo’além da conta. O leque de respostas inadequadas, e sempre ligadas ao in. consciente recalcado dos pais, € amplo e suti Em um trabalho anterior (MINERBO, 2010), propus o termo clementos-beta eréticos para indicar os pectos dla sexualidade parental insuficientemente simbolizados e integrados, que serio necessariamente atuados na relago com a crianga, originando ni cleos réticos. Outro termo, elementos-beta tandticos, indicava aspectos nio simbolizados nem integrados referentes ao narcisis- ‘mo parental. Quando atuados, em ver de seduvir a crianga, como 08 erdticos, configuram um verdadeiro ataque ao narcisismo da crianga (dai 0 termo “tandtico”), originando niicleos nao neurdti- cos, Desenvolvi essas ideias em outros textos. Hoje, estou tentando entender melhor o destino dos elementos: heta erdticos dos pais na constituigao dos niicleos neurdticos dos filhos. Eu li otexto a que voce se refere. Chama-se Nicleos neuréticos endo neursticos: constituigio, repet joe manejo na. ago a litica, Ackei interessante sua proposta de que elerentos-beta eréticos © tandticos estio na origem de micleos neurdticos e nido neuréticos, respectivamente, B voce mostra isso trazendo fragmentos da andlise de uma mesma paciente. Mas voltando ao nosso assunto de hoje, 0 que acontece quando a crianca recebe os elementos-beta erbticos que s¢ originam no psiquismo parental? megamos a ver isso com sua paciente que faz parte da seita do bolo. A atuagao dos élementos-beta eréticos produz sempre um excesso de gratificagio e de frustragaio. MANION MrNERRO 155 Frustragio? Pensei que fosse sempre algo muito sedutor ¢ exci tante para a crianga! ‘Vamos imaginar que a mae tenha horror A prépria gula e ten tasse evitar que a filha se tornasse igualmente gulosa. Aliés, sua paciente fala disso referindo-se a amigas que fazem dietas radicais, sem gliiten, sem lactose, e que, do seu ponto de vista, se blindaram a esses prazeres, Ea mesma coisa, sé que pelo negativo! Pois é! A mae que tem horror A propria gula pode tentar elimi nar todos os vestigios de bolo na vida da filha, [sso constituiria um significante igualmente enigmatico para a filha: “por que na minha casa 0s bolas so tabu?” A sexualidade materna estaria presente em negativo, produzindo excesso de frustragio. Essa experiéncia também excita, seduz, atica a curiosidade, 0 desespero de saber 0 que é um bolo ¢ por que ele é tao “perigoso’, O que € proib excita ainda mais, nao & A filha fica tomada nas malhas da sexua lidade materna do mesmo jeito! A frustragio excessiva também é excitante e sedutora! Nao tinha pensado nisso. Em vex de ajudar a apaziguar o desejo da crianga, tornando-o tolerdvel para que possa ser integrado, a atuagao dos elementos beta erdticos por parte das figuras parentais produz um excesso de gratificesao ou de frustragao, o que excita a crianga além de sua capacidade de recalque primtio. Imagino que esse excesso que acaba produzindo conflitos entre sexualidad: e superew. Exatamente. Em outros termos, ¢ isso que torna muito mais: cila integregéo do proprio desejo, Sua paciente invejaa “paz” daquela 156 sOFKiMENTO NEUROTICO amiga que integrou bem sua sexualidade oral: nio é nem gorda nem agra, come com prazet, mas se cuida. E sabe muito bem qual o destino da impossibilidade de integré-la: ou o sujeito vai tentar re solver 0 conflito abolindo a sexualidade de sua vida (enfiando-se no claustro das dietas ra is), ou vai atuar essa sexualidade desbraga damente, tornando-se obeso, Sao formas de retorno do recalcado, Come assim? O que a crianga pode fazer com 0 excesso de excitagio pro- duzido pelos elementos-beta erdticos parentais? Pode recalcar violentamente esse pacote! Quando 0 recalque é excessivo, a ex- ieio no apariguada, nao integrada, tende a retornar. Ela forga seu retorno para a consciéncia, por exemplo, na forma de tesio incoereivel por bolos que ela nao sabe de onde vem, Claro, quase todo mundo gosta de bolo, mas aqui o significante esta no lugar de ‘outra coisa, senao ndo apareceria tanto no material cli ico. E as coisas parecem estar mudando. Outro dia ela contow que comeu morangos divinos. Estava entusiasmada por descobrir que ‘nao s6 de bolos vive o prazer de comer. Morangos também sao muito prazerosos endo engordam. E verdade que sao raros, pois eram mo rangos americanos.. Mesmo assim hé um movimento, afinal, morangos nio fazem Parte da seita do bolo. Eu estava dizendo que 0 excesso de frus- tracdo e de gratificagio excitam a crianga além da conta impedin do a integracdo da sexualidade, isto é, obrigando-a ao recalque E assim que a sexualidade parental passa a fazer parte da fantasia sexual inconsciente da crianga. Infitra, molda e fixa essa fantasia, endo aquela, E como esta tem essa dupla origem, determina tanto © modo predominante de satisfagio da pulsao quanto de relacio com 0 outro. Fassim que entendo o conceito de “ponto de fixacio” MARION MINERRO 157 «que tem um papel preponderante tanto na constituicio do desejo como na “escolha da neurose’, como dizia Freud em meados de 1913 (FREUD, 1975). Por qué? Porque por ocasido dos impasses edipianos, dos quais ainda vamos falar, o sujeito regredirs a esses modos preferenciais de gra tificagao e de relagio com o outro. quando as coisas dito mais ou nienos certo? Imaginemos, agora, que as respostas foram suficientemente adequadas: 0 seio nao gratificou nem frustrou excessivamente 0 erotismo oral da crianga. Os elementos-beta erdticos nao chega ram a impedir quea mie indicasse, de modo firme, mas nao trau matica, os seus limites, A crianga percebeu que o projeto de engolir ‘0 seio nao vai trazer de volta a gratificagao absoluta perdida junto como isismo primario, K entao a fila anda: ela continuard atris da cenoura, 96 que agora com uma nova estratégia, possibilitada pela maturagéo biolégica. A crianga deslocard o ideal perdido para © prazer proporcionado pelo funcionamento do esfincter anal, Entito vamos conversar agora sobre a organizagao anal do par pulsao-abjets jim, mas vamos fazer isso lembrando que ainda temos eh pela frente: queremos chegar ainda hoje na travessia edipianal Ok, Quais sto as gratificagdes propiciadas por essa forma de or ganizacao? tre ovtras, sto geatificagbes ligadas ao exercicio do poder. 158 sormimunro NEUKGTICO Na organizagdo anal do par pulsio-objeto, 0 prazer nio se li rita a0 poder de reter ¢ expulsar as fezes: estende-se 4 relagao com ‘0 outro. Hé prazer em submeter 0 outro a propria vontade, em ‘andar, controla dominar, enfim, em afirmar o préprio poder ¢ seu préprio querer sobre 0 outro, Mas também ha prazer em ser submetido, em ficar na posig passiva, em se oferecer como ob: jeto do sadismo anal do outro, enfim, variagdes de uma posigio masoquista. Se antes a crianga ficava nas maos da m: lirava 0 seio quando bem entendesse, agora & mios da criang: » que oferecia © re- ela quem fica nas que pode reter ou expulsar as fezes quando bem entende. Se deixar, ea se torna uma verdadeira tirana, Assim como 4 voracidade (gula) resultava da idealiza 10 do prazer que 0 scio Pode proporcionar, a tirania resulta da idealizacio que o poder e 0 controle sobre o outro podem proporcionar. Eaqui, também, a possibilidade de integtar o erotismo anal de ender das respostas do ambiente & desmesura do desejo da crian- ‘Se tudo der certo, a mae indica, de maneira acolhedora, mas cla +4, que aceita se submeter as vontades dela, mas s6 até certo ponto. Hla permite que a crianga obtenha alguma gratificagao, mas também coloca limites, o que apazigua a excitagao. Ela se mantém em um nivel toleravel e integrével. Mas, como jf entendemos, a resposta da mae 4 demanda pulsional desmesurada da crianga depende de seu inconsciente. Se 0 erotismo anal estiver mal integrado, ela poder atuar suas fantasias de poder e dominacio sobre a crianca ¢, entdo, a anal, a fantasia sadomasoquista se traduz, na versao sddica, como desejo de dominar; controlar ¢ submeter 0 objeto, e na versdo masoquista, de ser humilhado e/ou submetido. Na organiza ao filica, a fantasia erética se expressa como deseja de exibir falo «a0 olhar fascinado do outro. Na clinica, essas fantasias erdticas aparecem tanito nas associa: ces quanto na transferéncia. Vacé falow da paciente do bolo, do ma: soquismo moral de Rubens ¢ trouxe exemplos do cotidiano em que 4 Idgica fica predomina: 0 Facebook, 0 fascinio das meninas e das mutheres pelo britho, a absoluta importdnicia que mulheres e homens 166 sornimxwro NEURGTICO dao a0 corpo e tt aparéncia. Voce disse também que 0 projeto falco encontra seu limite quando a crianga descobre a diferenca entre os Sex05, 0 que abre caminho para a eclosao da crise edipiana, Bsqueci alguma coisa importante? Nem eu mesma conseguiria sintetizar o que disse de manei a tio clara e organizada como vocé! Alias, venho acompanhando seu desenvolvimento desde aquela nossa primeira conversa bre transferéncia, Acho importante comentar que vocé evoluiu muito. Sinto que minha clinica ver amadurecendo staria de acrescentar algo importante, mas nao foi vocé que esqueceu: fui eu, omo estava preocupada em explicar como se constituem 0s pontos de fixagio oral, anal ¢ filico, eu me ative as dificuldades na integragio do erotismo pré-genital. Esqueci de mencionar que, qu ndo suficientemente integrados, o prazer oral, anal e falico nao apenas faz parte, como também enriquece a vida sexual dos adultos, ‘Vamos em frente. Continuo me baseando na pequena histéria da subjetividade apresentada por Roussillon (2007). que significa “entrar no Fdipo”? Significa que a crianga des- cobriu a diferenga entre 0s sexos sua nova estratégia em busca do TUDO serd tentar “fazer par” com o genitor do sexo oposto, Lem: bre-se que ao lado do Edipo positivo ha também o Edipo invertido, igualmente fundamental e estruturante. A tentativa de “fazer par” ser com genitor do mesmo sexo, colocando em marcha uma Ginamica propria, que se articular com a do Edipo positive. A sexualidade humana é realmente muito complexa! MARION MiXzENO 167 Com certeza, e, para facilitar nossa conversa, vou falar s6 do Eaipo postivo. f impossivel falar de TUDO! Se a crianga nao pode 0 TUDO sozinha, nao tem problema; ela finalmente chegara Ié com o papai ou com a mamie. E, entao, a crianga usard todas as estratégias possiveis para seduzir o genitor escolhido e separar o casal parental. © conjunto dessas estratégias configuraa crise edipiana, pois. tentativa de “fazer par” comecar: a fazer barulho cor suas demandas desmesuradas de gratificagio pulsionale ocuparé o centro da vida familia Lembro de uma cena encantadora que traduz bem 0 que voce estd dizendo, Era um jantar na casa de uns amigos. O anfitriao ti nha uma filha de uns 5 anos, que estava acordada, Li pelas tantas, ela apareceu na sala com batom vermelho na boca. Todos acharam uma gracinha. Em seguida, aparece com os olhos pintados. Todos acharam uma gracinha. Na sequéncia, ela vem com a bochecha toda pintada de vermetho, mas ai jé era um exagero, uma caricatura Gentilmente, 0 pai the disse que agora ela jd tinha mostrado como era bonita e que estava na hora de ir para cama, pois o jantar era para os adultos. Linde exemplo de como a excitagao da crianga pode ser ampli: ficada pela resposta dos adultos, e depois acalmada pela do pai. Veja 6 par pulsio-objeto funcionando! Os actultos achavam uma graci nha, mas que ela entendia era que a seducio estava funcionando e ia bem-sucedida. O pai percebeu {que se tentasse um pouco ma {que ela tinha ficado excitada demais com os elogios, que ela preci fa ser acalmada e lembrada da diferenga entre as geracées. Quer dizer que a crise edipiana & o conjunto desses comporta: ‘mentos mais ou menos evidentes. E como a crianga sai dessa crise? 168 sorrimenro NevRérico Por um lado, ela vai precisar encontrar no seio das intetagses familiares os limites para seu projeto de “fazer par” com um dos genitores: o casal tem que ser, claramente, aquele formado pela mile e pelo pai. Por outro, ela vai precisar encontrar saidas simbé- licas para essa impossibilidade, de modo a poder realizar, no plano das representagdes, 0 que cla nao pode re: rem ato. Sio essas duas ideias que gostaria de desenvolver agora, Do lado dos limites, ela vai precisar descobrir que nao é pos sivel “fazer pat” por dois bons motivos. Primeiro, porque cla é imatura sexualmente, ou seja, hé uma diferenca inelutavel tre as geragoes. E, segundo, porque os pais ja formam um casal entre si, ou seja, 0 objeto do desejo jd tem par ¢ ela esté excluida. ‘Mas esté incluida como filho! Claro, ¢ isso ¢ uma condigao fundamental, pois ajuda a tolerar 4 exclusio do casal constituido. Do lado das saidas simbilicas, ela vai precisar renunciat, nao ao desejo, como se costuma dizer, mas a certa forma de realizacao do de: jo. Mas isso s6 podera aconte- cer se ela descobrir uma compensagao, até que bastante razoivel ‘aqui entra 0 trabalho psiquico que cabe a ela, e56 a ela. Se tudo der certo, ela descobre, com a ajuda do ambiente, que pode realizar seu desejo com muitos outros objetos que representam simbolicamente © original. Do que depende o sucesso desse trabalho psiquico? £ bom lembrar que 0 sucesso da travessia edipiana é sempre parcial, tanto que falamos em formas de funcionamento psiquico normoneuréticas, Alids.a normalidade inclui passagens pela neu- rose e pela psicose, uma vez que ninguém normal o tempo todo. Mas € claro que hé neuroses mais ou menos graves, nas quais esse Manion minERRO 169 trabalho fracassou. Basta ver os dois pacientes que voce mencio nou logo no comego da nossa conversa: um que achava quie as mu Iheres que ele desejava eram “muita areia para o caminhaozinho dele” e no eram para 0 “bico” dele; ¢ 0 outro que fugia das mulhe- res que o desejavam sexualmente © trabalho psiquico que leva a uma resolugao satisfatéria da crise edipiana depende de duas condigdes ligadas ao desenvolvi mento precoce, ¢ duias que tém a vet com as circunstancias atuais, Falamos bastante sobre as condigéies anteriores na conversa so- bre trauma e simbolizagio, por 680, vou apenas indicé-las 1. A furgao simbolizante precisa ter sido instalada 2. A diferenga eu/nao eu precisa ter sido descoberta, isto é, a crianga precisa ter conseguido sair do narcisismo primitio. As condigoes atuais sio aquelas que precisam ser encontradas no ambiente familiar durante a crise edipiana: 1. As respostas que o ambiente daré as tentativas desmesuradas de “fazer par” com um dos genitores precisam ser adequadas, iciente de gratificagbes e de frustra com ama modulagio ‘goes, de exclusdes e de inclusdes por parte do casal parental Excessos de qualquer tipo serio traumaticos e dificultario 0 trabalho psiquico que a crianga tem de realizar para resolver a crise edipiana. 2. © trabalho psiquico da crianga precisa ser suliciente para que ela censiga: + fazer o luto do projeto de “fazer par”, descobrindo a diferenga ente as geragies; 170 sorRimenro Neuadrico fer como 0 papai € como a mame a part das identificagies, + em ver de ser papai ou mamfe “de verdade”, + constituir 0 supereu, gragas ao qual a crianga vai aceitar que no pode ter tudo, do ito que ela quer, na hora que ela quer (60 que chamamos de incesto); em terpde entre ela © a gratificagdo absoluta (0 que chamamios de parriciio)s jo menos eliminar tudo © que se + constituir 0 ideal do eu, transferindo o desejo edipiano para novos objetos de desejo fora do circulo familiar. A gratifi cagao pulsional passa a ser possivel gragas a sublimagao, ¢ a crianga entra na laténcia, Nossa, unt trabalho e tanto para uma criaturinha que 6 tem 4 ou S anos! Pois é! Vou tentar desenvolver essas ideias passo a passo. Podemos, enti , comerar falando das respostas do ambiente as demandas pulsionais da crianga edipiana? Sim; Lembro que essas demandas sto sempre desmesuradas, porque a criansa esté tentando recuperar o TUDO do narcisismo primério, o que nao facilita a fungao dos pais. A erianga vai precisar ser um pouco bem-sucedida na seducio do genitor do mesmo sexo para confiar em sua capacidade de se dugio. Mas ndo pode ser bem-sucedida demais, pois isso a dei excessivamente excitada e angustiada, Ela precisa receber indica ses claras do que pode e do q ¢ nao pode. O pai daquela meni. ninha é um bom exemplo de resposta adequada. Gostei de como ele acalmou a menini hi, explicou que o jantar era para adultos e a colocou para dormir. Os limites as tentativas de namorar um genitor, ou de excluir © outro, precisam ser colocados com tato € sensibilidade, mas de borar maneira firme e clara. Os pais precisa ter conseguido razoavelmente o proprio Edipo, serem capazes de estabelecer re lagdes triangulares ¢ terem internalizado a proibigao do incesto. 0 contrdrio incluirdo ou excluirio demais a crianga. Como sa bemos, nem papai deve dar a entender que prefere a menininha & mamie, nem mame deve dar a entender ao menininho que gosta mais dele do que de papai. Mas em todas as situagdes € preciso que tenham um Iugar claro de acolhimento e sustentagao do filho como terceiro, A patxao dos pais pelos fithos é bem dificil de ser administrada, sei disso por experiéncia propria! (Risos.) (Risos.) Eu também! A verdade ¢ que damos muito trabalho psiquico aos nossos filhos! Um pai que nao integrou bem 0 sew Faipo vai atud-lo com a filha ou com o filho. A menina seduto: 1a 00 6 menino apaixonado receberao como resposta mensagens enigmiticas que tém a ver com as fantasias sexuais inconscientes do pai. © pai poder aceitar “fazer par” com a menininha sedutora, excluindo a mie de forma mais ou menos sutil. No seu exemplo do jantar, 0 pai poderia convidar a filha a participar do jantar e sentté-la no seu colo, ou ao seu lado, em vez de acalmé-la € levé-la para dormir, Pior: os pais poderiam brigar, a mae querendo que ela va dormir, 0 pai querendo que ela fique no jantar. Bis 0 casal separado, incapaz de sobreviver como casal 8 crise edipiana (Ou entdo ele poder ficar apavorado com a sedugdo da meni ntemente, a seducio da prépria mie. ninha, que evoca, incon esse caso, iré responder rejeitando brutalmente as tentativas de 2 SOmRIMBNTO NEUROTICO sedugao da filha. Jé no primeiro batom, cle a teria mandado tirar aquela porcaria da cara, “coisa de vagabunda’ Além de se sentir humilhada, a menina nao entenderé nada, pois se trata de uma fantasia do pai e nao dela. Sao exemplos de como a crianga pode ficar capturada na sexualidade dos pais, Como a minha paciente do bolo, Vocé fez a hipétese de que a mie, Por motivos dela, teria atuuado seu desejo de prolongar a amamenta £0 na forma de ‘fazer bolo juntas’. Mas imaginamas que outra mae poderia se defender do mesmissimo desejo proibindo doces em casa. Nos dois casos, significante “bolo” é enigmético e excitante {sso mesmo. No fundo, somos todos normoneuréticos, porque © impossivel que os pais nio atuem em algum grau suas questies inconscientes com 0s fillhos, Mas ha alg problematicas. as atuages que sio bem Por exemplo? Ha casais que sio extremamente fechados em si mesmos, o que ‘mata na raiz a esperanga de “fazer par” e complica a crise edip na logo de saida. Outros transformam em gozo pessoal, quer di- er, perverso, o jogo de sedugio da crianga. Na situagao do jantar, acharam as tentativas de sedugéo da menina “uma gracinha’, Para lum perverso, cujo recalque insuficiente, a natureza sexual dos avangos da menininha € evidente clemais, ¢ a palavra “gracinha” poderé ter conotagdes francamente pedéfilas que despercebidas para cla fio passario Enfim, como ja foi dito a respeito da organizagio oral, anal ¢ flica do par pulsio-objeto,as respostas inadequadas As demandas desmesuradas se devém a elementos recalcados, que sio atuados € produzem uma excitagao além da conta ou frustrago exces Manion MiNERRO 173 Isso dificultara 0 trabalho psiquico que a crianga tem de realizar ard mais di para encontrar uma solugdo para a crise edipiana, F cil integrar 0 proprio desejo se e la estiver presa no desejo dos pais. Vamos falar agora desse trabalho psiquico? Imagino que a erian. 60 vai precisar brincar muito de papai e mamde Isso mesmo, Quando bem-sucedido, esse trabalho resultard na instauracio do supereu ¢ das capacidacdes de simbolizagao. Veja ‘mos: quando a crianga j4 desenvolveu anteriormente sua capaci dade para brincar, ¢ as respostas do ambiente sio suficientemente adequadas, cla colocard essas quesides em jogo brincando de papat € amie, [sso ¢ fundamental para que consiga representar¢ reali zar de forma simbélica 0 que nao pode ser realizado em ato, Nisso, clz vai constituindo as necessarias identificagdes com as figuras parentais, que também sao formas simbélicas e intrapsi quicas de ser como papai, no caso dos meninos, 0 que os habilita 10 como mama, O “como” faz toda a a encontrar parceiras que diferenga no sentido de possibilitar uma vida sexual adulta satis fatoria. AAlém do brincar, que & um recurso intersubjetivo, a sublin ‘¢40 € um recurso intrapsfquico precioso na medida em que torna a stindo a representag no fa do eu, e que voce traduzit na teoria da cenoura colocada na frente crianga capaz de ter praver inv TUDO. F 0 que mencionei anteriormente, qu no lugar do a do ideal do burro, ‘A medida que todo esse trabalho psiquico vai sendo realizado, © projeto de “fazer par” com 0 genitor do sexo oposto vai sendo abandonado e a crise edipiana vai sossegando. A crianga vai en- trando na laténcia, 174 sormimenro Neunorico Quer dizer que a neurose se instala quando esse trabalho pstqui: co fracassa? Sim, Em vez de encontrar uma saida simbolizante para a crise edipiana por meio das identificagbes com as figuras parentais, € com 08 recursos da sublimagdo, a crianca vai empacar na crise, que se prolonga \definidamente, complicando a adolescéncia. De alguma maneira, com a “ajuda” dos elementos inconscientes pa- rentals, o desejo recalcado se fixa nos objetos edipianas. A crianga, © depois a crianga-no-adulto, continua acreditando que é possivel «por isso, continua desejando fazer par com equivalentes das fi guras parentais: professores, cantores ou atores famosos, empre- sitios poderosos, politicos influentes ¢ outros que ocupam uma posigao assimétrica na relagao com o sujeito. Uma amiga se apaixonou pelo personal trainer. Imagine que soja pelo mesmo motivo Note que a interdigiio nao precisa ser “objetiva’, como um pro- fessor, cuja ética 0 impede de se relacionar com iima aluna, Uma mulher muito bonita, famosa, rica ~ “poderosa” ~ nao ocupa uma posigio assimétrica nem é realmente proibida, Contudo, o neurd- tico a vé como inatingivel. E justamente essas pe ‘as inatingiveis sero as mais desejadas, porque contém a promessa do “orgasino césmico’, isto 6, da realizagao do incesto. Como 0 supereu sabe disso, e sua missdo é proteger o ego e impedi-lo de entrar em com- (0, ele veta a mulher “poderosa’. Mas quando o neurético con segue, apesar de tudo, conquistar a mulher tingivel, ela deixa de ter esse status € 0 desejo morre, comprovando que ele estava -smo fixado nos equivalentes edipianos. Veja o cama: quands no hé interdig4o, nao hé desejo; quan interdigo, hé desejo, mas hd conflito e censura, 0 que resulta do. Manion miNERBO 175 ‘em inibigdes sexuais, e 0 desejo miolo da neurose. pode ser realizado, Esse é 0 Entendo que as inibigdes sexuais dos meus dois pacientes, aque- les que mencionei no comego da nossa conversa, tem aver com tudo Acho que sim, Para o primeiro analisando, a mulher que é vi- vida como “muita areia para 0 caminhdozinho” é um equivalente da mae. E como se, com ela, ele fosse ter um orgasmo césmico que mata ou enlouquece. Note que, na fantasia incestuosa, ela & “muita areia’, ha um excesso. O termo “caminhaorinho” nao deixa diividas de que ele sabe que, do ponto de vista do desenvolvimento, psicossexual, ainda é uma crianga, A expresso ico” também: tais mulheres so para “bicos” maiores do que dele, como o do pai © segundo analisando foge das mulheres que o desejam por {que se angustia frente aos equivalentes edipianos. Pode encontrar as melhores racionalizagde: , como importancia de ser monogami co, mas a verdade & que ele se submete As proibigdes do supereu com medo da castracio, Note que “fugit” nao 4 uma escola, é um impulso, mostrando que algo ligado & sexualidade nao est sufi cientement> integrado, Outra consequéncia desse empacai nto € que, como a grati ficagio genital ficou mais ou menos interditada, a crianga vai re gredir a modos de gratificagao fixag2o oral, anal e filico, Jé vimos tudo isso antes teriores, ligados aos pontos de Poderia falar um pouco mais sobre o supereu? Sei que é unt su- pereu diferente que voce escreveu. Como é 0 nome do texto mesmo? 176 sormmeNTo NEUKETICO © texto se chama Contribuicdes a uma teoria sobre a consti ‘igi do supereu cruel (MINERBO, 2015). Era sobre o supereu Psicético, que ataca, desqualifica, destréi e desorganiza o eu. Ja esse aqui, o supereu herdeiro do Edipo, pode alé ser muito rigido ¢ atrapalhar, mas nao deixa de ser estruturante. Deixa claro ‘© que pole e 0 que nao pode, ¢ empurra a crianga para o mundo ‘com bons conselhos. Nesse sentido, tem um papel protetor que di seguranga. Como assim? Vou tentar reproduzir para vocé o que seria a vor. “em off” do supereu edipiano, Vocé nao pode realizar 0 desejo de ‘ser/ter tudo, isto é, de gozar ilimitadamente sem restrigdes de qualquer tipo (chamamos isso de incesto); nem pode realizar o desejo de climinar tudo 0 que atravessar.o seu caminho, atra- palhando esse projeto desmesurado (chamamos isso de Parricidio). Sao dois limites que voc® nao pode transpor Nao é nada pessoal, pois na verdade ninguém ~ nem pa ai, nem mamae — pode gozar assim sem ficar louco ou morrer. Mas, come todo mundo, vocé pode realizar esses dois desejos simbolicamente ~ vocé pode realizi-los de forma sublimaca, Primeito, criando com os instrumen 10s disponibilizados por sua cultura um ideal do eu, wm Projeto de vida fora da familia, que vai te dar prazer, inclusive win sentimento de relativa completude quando for conquistado. F, segundo, tutando ~ dentro das regras {que regulam o convivio social ~ uma huta perfeitamente MARION MINERRO 177 legitina para conquistar sew objetivo, Tudo 0 que voce conguistar com o seu esforgo seri fonte de prazer, ras lemibre-se de que ele serd sempre parcial. Contente-se com isso, & 0 melhor que a vida pode Ihe dar em termos de felicidade (a isso chamamos castragao simbilica) Acho que entendi por que esse supereu é estruturante e protetor, 40 contnizio do outro - que, infelizmente, conheso bem! (Risos.) Des- trutivo e desorganizador. Eo que seria a castragao simbéica? Antes, vou dar uma breve explicagéo sobre a castragao nizo simbélica, Seria uma punigao real ¢ concreta para a transgressio dos limites. Por exemplo, medo de ficar doente por ter conseguido transar com a garota mais cobigada da festa. Ji a castragao simbé. lica é vivida em outro plano. Deixe-me ler um pequeno trecho do Roussillon que esclarece essa ideia: A aceitagdo da ‘castragao simbética’, a aceitagdo das formas de realizagao simbillicas do desejo, representa tum modo de compromisso essencia, fundamental, que permite [ao sujeito] ndo renunciar a realicagao dos de- sejas, mas de renuinciar somente a certas formas de re: dlizagéo, de consumagio [do desejo} (ROUSSILLON, 2007, p. 171), Quer idizer que o supereu pés-edipiano nao & hem um chato que proibe 0 que a gente mais deseja, Ao contrdrio, ao encarnar a cas- traga0'simbélica, ele abre as vias para a realizagdo parcial do deseo. 178 soFKiMuNTO NeURéTICO Sim, porque em vez de ver as mulheres bonitas e inteligerites corho equivalentes edipianos, que nio séo para o “bico” dele, o su- jeito as vé simplesmente como mulheres bacanas, perfeitamente possiveis, que cle pocte lesejar sem entrar em conflito com o supe reu. Nao ha a expectativa de um orgasmo césmico, Por ‘vez conquistadas, nada o impede de con 0, uma F a desejé-las, © superew tem a fungao de interditar nto apenas o desejo de sgozar de forma absoluta, desejo incestuoso, mas também o desejo de eliminar todos os obstaculos d realizagao desse desejo, desejo parrici- dda, Ba trouxe dois exemplos do primeiro. Vocé teria algum exempla do segundo? Quando a castragio simbélica nao aconteceu de modo suli- ciente, a luta para conquistar algo muito desejado é confundida ‘com uma luta para eliminar mesmo o pai, e nao um assassinato simbilico, O desejo entra em conflito com o supereu e produz cul a8 ¢ inibigdes. Veja sé: Raul quer trocar de carro. O dele ji dew © que tinha que dar; foram 10 anos de bons servigos prestados. ‘Agora que ganhou dinheiro, quer comprar um carro "bem bacana’ Mas esta muito triste em ter de abandonar 0 carro velho. Mais do que triste, se sente culpadissimo com ele.“ Por sorte, a rede associativa do neurético costuma ser rica em re- presentacdes. Raul se lembra de uma musica na qual, ao fim do ano letivo, um caderno usado pede ao aluno que passou de ano para nao se esquecer dele. m fazer uma “sacanagem” dessas fosse uma pessoa, et, ia arrasado’, cle comentou. Raul quer um carro novo, mas morre de culpa de ter de “m: tar" 0 velho. O aluno.quer passar de ano, mas para aposen a0 sin teré que 0 caderno usado, o que produz culpa, Quando a castra bélica nao esti bem instalada, em vez de matar o pai sim- bolicamente, o neurstico sente que o estd matando concretamente Manton MiNERBO 179 a cada ver que conquista algo muito desejado, Note que as respos tas concretas do pai d rante a travessia edipiana podem ajudar ou atrapalhar a elaboragio do assassinato simbélico, & fundamental \de do menino ‘que cle consiga lidar com a rivalidade e a agre: sem retal/agies, mas também sem se retirar do vinculo ou se dei xar abater. Quando o pai é muito fraco ou excessivamente violent, ele nao sobrevive a rivalidade e a crianga edipiana teré dificuldades em realizar o trabalho psiquico requerico (MINERBO, 2014) Naturalmente, trocar de carro nao produziria contflitos se ele do estivesse empacado no meio da travessia edipiana, Assim como um homem normal pode perfeitamente desejar uma mulher legal, sem confundi-la com um equivalente edipiano, ele poderia perfeitamente ter 0 que deseja sem sentir que estd matando o pai Infelizmente nao é 0 caso de Ra Belissimo material clinico! O que voce diria a ele, depois de ouvir tudo isso? Bu disia que ele tem certa razdo em sentir eulpa, mas quem sabe 0 carro velho poderia ficar feliz por ele estar dle carro novo, € © caderno usado, por ele ter passado de ano. Acho que podemos parar por aqui, Conforme prometido, nos sa proxima conversa sera sobre softimento narcisico.

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