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AMBULATÓRIO DE DIVERSIDADE
Ao se relacionar pela segunda vez com uma garota, GV relata que a sua mãe o
viu em um encontro romântico, o que fez com que a figura materna o “arrastasse para
a igreja e colocasse nele uma saia”. GV explicou que cresceu frequentando a igreja
evangélica, mas que a partir disso passou a não gostar da religião e hoje não possui,
com ela, boa relação. A mãe nomeou como “pecado” o que GV estava fazendo e ele
acreditou que realmente fosse, durante parte de seu desenvolvimento. Após a cerimônia
religiosa, a mãe contou para o pai de GV, que o expulsou de casa, entregando o
paciente aos cuidados da avó paterna. O paciente voltou para a casa dos pais quando
sua própria figura paterna pediu que ele voltasse, para ajudar na loja que a família
estava construindo. Em 2021, GV foi expulso de casa pelo pai mais uma vez, após
realizar um corte curto em seu cabelo e ser acusado pelo pai de “estar tomando
hormônios” e ter ouvido dele a seguinte frase: “não vai virar menino aqui”. Porém, dessa
vez, GV foi para a casa de uma amiga, mas voltou para sua casa, quando mais uma
vez o próprio pai pediu que o filho voltasse. Diante de tudo isso, o pai é colocado por
GV em um lugar do duplo: “amor e ódio”. O duplo aparece duas vezes: GV ama e odeia
o pai, como ele mesmo diz, e o pai também faz o mesmo movimento. Um pai que é
agressivo e afetivo, um pai que expulsa, mas também chama de volta. Não seria a
presença de duplicidades um importante indicativo nesse caso?
Atualmente, GV namora com TH, uma garota que o acolheu junto à família dela.
A partir disso, GV começou a dividir vivências em dois ambientes familiares distintos e
nomeou sua família biológica como “a família de cá”, distinguindo-a da “família de lá”,
aquela que é biologicamente de sua namorada. O paciente relatou que encontrou um
“porto seguro” no lar de TH. Sua sogra é psicóloga e GV atribui a ela o papel de
“conselheira”, associando isso ao papel de uma mãe e dizendo: “não considero ela como
mãe, considero conselheira, que é o papel de uma mãe. Mas ela não substitui a minha”.
Após as expulsões, GV sentiu que perdeu o afeto em sua família biológica e que a
família de TH deu a ele esse cuidado que precisava. Em muitos momentos, GV se
descreve como uma pessoa que “não consegue posicionar sua existência no mundo” e
como alguém dependente das impressões que o outro tem sobre ele. Ao falar sobre TH
e sua família, GV conta que eles o auxiliam a se posicionar de forma mais assertiva. A
casa da namorada é um dos lugares onde a identidade de GV pode aparecer,
contrariando o que acontece em sua casa. O paciente conta que existe um medo de
sentir mais afeto pela “família de lá” que pela “família de cá”. O relacionamento afetivo
sexual do paciente quase sempre é relatado por ele em um sentido positivo para si,
apenas destacando as discussões que acontecem ocasionalmente, falando sobre a sua
dificuldade de organizar seus pensamentos em situações de conflitos, externalizar suas
opiniões e o ato de procrastinar a resolução de um problema para o depois: “eu falo
para ela que não consigo falar na hora, mas que irei pensar e depois conversamos de
novo”.
Entre o “lá” e o “cá”, GV fala, majoritariamente, sobre si como uma pessoa que
precisa de afeto e de cuidado. Em algumas sessões, o paciente demarcou a constante
sensação de estar incomodando o outro com a sua presença. Inicialmente, GV não
conseguia descrever o que trazia esse sentimento, mas em uma sessão relatou que se
sente um peso para as pessoas quando não está recebendo atenção como queria. GV
faz muitos movimentos comparativos, usando a vida do outro como base para definir
que a sua está “estagnada”, ou que o outro tem algo que ele não tem, ou que terceiros
estão em uma posição que ele gostaria de estar. Isso apareceu na clínica em relatos
diferentes, como quando GV relatava sobre seu desejo pelos processos de transição ou
quando contava sobre frustrações profissionais e as conquistas que amigos dele já
realizaram. Entre o “lá” e o “cá”, GV muitas vezes se anula e se invalida, criando certa
dependência pela opinião do outro, pensando sempre nas consequências que suas
ações terão sobre o outro, comedindo cada passo para não cometer “erros”, tendo medo
constante da perda do afeto, da atenção e da confiança que o outro pode dar a ele. A
narrativa sobre GV, dita por ele mesmo, segue o fio de pulsões de morte, marcadas por
culpabilização excessiva e autoagressão.
GV ainda se vê como uma criança, como ele mesmo diz: “GV tem só dois anos”.
As roupas que GV usam, assim como o corte de cabelo, aparecem no discurso dele
como importantes componentes da identidade masculina e que fazem diferença
significativa em seu processo identitário. O paciente relatou que até alguns meses atrás
ainda usava roupas que para ele eram infantis – coloridas, com estampas e desenhos.
GV disse que ser um homem trans é como se houvessem duas existências, duas
pessoas em sua história. SA (sigla representativa de seu nome morto) foi uma pessoa
que para ele não concretizou sua experiência no mundo e, com isso, GV surgiu como
uma criança que precisa ser cuidada. O paciente também disse que SA passou por
muitos traumas e que antes ele não a amava, mas que hoje reconhece que se não fosse
por ela, ele não estaria aqui. E aqui ele está, entre o “lá” e o “cá”, reivindicando afeto e
cuidado em relações de dependência, desejando um amor que foi vivenciado apenas
na infância, por SA. Há um desejo de ocupar novamente um lugar que já foi ocupado
antes (no “cá”), mas que agora não ocupa mais. Porém, entre o “lá” e o “cá”, não existe
uma terceira opção? GV não pode descobrir um terceiro lugar que está em si e/ou
consigo? E o seu desejo, suas pulsões de vida e sua própria identidade que muitas
vezes se perdem em meio aos tantos outros que vivem “lá” e “cá”?
Agosto de 2022,
Filipe Geraldo Goulart Costa.