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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BELO HORIZONTE

AMBULATÓRIO DE DIVERSIDADE

O EU ENTRE O “LÁ” E O “CÁ”

GV é um homem trans, pansexual, de 20 anos, que vive na região leste de Belo


Horizonte e trabalha com vendas em um comércio local, bem como estuda em um curso
técnico de informática. Atualmente, reside com seus pais e seu irmão mais novo, aqui
identificado como GA. Quanto à sexualidade, GV se descobriu e se reconheceu durante
a adolescência, ao se relacionar afetivamente com algumas garotas. Porém se
reconheceu como homem trans há dois anos. O paciente ainda não deu início ao
processo de transição, mas desde que passou a se identificar como GV fez movimentos
para performar masculinidade, acompanhado do desejo de passar pela transição. Existe
a fantasia, um ideal do Eu, de no futuro ser um homem musculoso, com barba e com o
corpo tatuado. Contou que o homem que ele é não se faz presente em sua casa, visto
que ali os pais não aceitariam, compreenderiam e/ou respeitariam.

Ao chegar na clínica, GV apresentou suas queixas, já anotadas por ele


anteriormente ao atendimento (ato realizado também na segunda sessão, quando
houve corte por meio da intervenção do extensionista). Ele afirmou “ter medo de não
conseguir falar” se não anotasse, de forma prévia, os pontos que gostaria de trabalhar
durante a sessão. GV iniciou seu tratamento queixando-se de oscilações de humor,
sensação constante de culpa, necessidade da opinião do outro e sensação de ser
“pequeno emocionalmente”. O paciente ampliou seu discurso no último ponto,
explicando que se sente como uma “criança indefesa” até se ver em um reflexo e
perceber que é uma “pessoa adulta”. GV relatou ter “crises”, definidas por ele como os
momentos em que está chorando e aparece o desejo de cometer autoagressão,
trazendo para esse momento um significante: “desabar”. A primeira vez que GV
desabou foi quando, aos seus treze anos, seu pai descobriu o relacionamento do filho
com uma menina. A partir disso, as “crises” se tornaram constantes.

O relacionamento de GV com o pai aparece na clínica nomeado como “vai e


volta”. A partir do momento que os pais descobriram a sexualidade de GV, o paciente
passou a ter brigas constantes com a figura paterna e, consequentemente, vivenciou
com o pai períodos em que ambos não trocavam afeto e nem se falavam em nenhum
momento. Inclusive, o início do tratamento foi atravessado por um momento em que GV
não se comunicava com o pai. O paciente relata que nunca teve a liberdade que
desejava e viu sua privacidade sendo cortada pelos pais em diversos momentos, como
quando suas mensagens no celular eram frequentemente supervisionadas. Foi dessa
forma que os pais descobriram o relacionamento de GV com uma garota, quando ele
trocava com ela “mensagens suspeitas”. GV conta que a partir desse instante entrou
em um “ciclo vicioso”, pois o eu que antes era alegre e divertido passou a ser um eu
fechado para o outro, sempre sentindo que está incomodando e tendo a tristeza
presente de forma mais constante.

Ao se relacionar pela segunda vez com uma garota, GV relata que a sua mãe o
viu em um encontro romântico, o que fez com que a figura materna o “arrastasse para
a igreja e colocasse nele uma saia”. GV explicou que cresceu frequentando a igreja
evangélica, mas que a partir disso passou a não gostar da religião e hoje não possui,
com ela, boa relação. A mãe nomeou como “pecado” o que GV estava fazendo e ele
acreditou que realmente fosse, durante parte de seu desenvolvimento. Após a cerimônia
religiosa, a mãe contou para o pai de GV, que o expulsou de casa, entregando o
paciente aos cuidados da avó paterna. O paciente voltou para a casa dos pais quando
sua própria figura paterna pediu que ele voltasse, para ajudar na loja que a família
estava construindo. Em 2021, GV foi expulso de casa pelo pai mais uma vez, após
realizar um corte curto em seu cabelo e ser acusado pelo pai de “estar tomando
hormônios” e ter ouvido dele a seguinte frase: “não vai virar menino aqui”. Porém, dessa
vez, GV foi para a casa de uma amiga, mas voltou para sua casa, quando mais uma
vez o próprio pai pediu que o filho voltasse. Diante de tudo isso, o pai é colocado por
GV em um lugar do duplo: “amor e ódio”. O duplo aparece duas vezes: GV ama e odeia
o pai, como ele mesmo diz, e o pai também faz o mesmo movimento. Um pai que é
agressivo e afetivo, um pai que expulsa, mas também chama de volta. Não seria a
presença de duplicidades um importante indicativo nesse caso?

Paralelamente, a mãe é colocada por GV em um lugar de afeto e do desejo de


ter uma relação mais “profunda” do que é atualmente. Quando fala sobre os
preconceitos do pai, GV atribui ao próprio a responsabilidade por isso, mas quando fala
sobre os atos da mãe, não atribui a ela a responsabilidade: “ela fala por ele”, “ela é
assim por causa dele” e “se não tivesse ele, seria mais leve”. A mãe também aparece
no lugar de “intermédio”, descrito assim por GV, visto que ela insiste em intermediar a
relação dele com o pai em uma tentativa de aproximá-los. Nesse cenário, o irmão mais
novo do paciente, GA, aparece como uma figura de identificação: “meu irmão é minha
cópia, em aparência e personalidade”. Em uma sessão, GV disse que queria ser GA.
Porém, o irmão também aparece como alguém que tem o que GV não tem: “o afeto do
pai”, “com treze anos ele já tem bigode, o que eu não tenho”, “o carinho da mãe”. GV
disse que gosta da companhia do irmão e criou um vínculo importante com ele, indicado
até mesmo pelas semelhanças que possuem, bem como sente necessidade de cuidar
de GA. Porém, o paciente também assumiu os ciúmes que sente pela relação que o
irmão tem com os pais e conta da “inveja que sente pelo carinho que ele recebe”. GV
estaria idealizando uma história em que não precisasse compartilhar a presença da mãe
com um outro? Seja esse outro um pai que, segundo ele, torna essa mãe algo que ela
não é ou seja um irmão, que possui o que ele não possui, incluindo o carinho
incondicional da figura materna. Um relato marcante para esse momento foi sobre uma
briga que GV teve com a mãe, quando motivado pela falta de execução das tarefas de
casa por parte do pai e do irmão, socou a porta do guarda roupa, ferindo sua própria
mão e fazendo questão de mostrar à mãe: “olha o que aconteceu”. GV contou isso
dizendo que do pai ele sente raiva por quem ele é, mas da mãe ele sente raiva por brigar
com ela e que mostrar a ferida naquele momento era dizer o quanto aquilo o afetava. A
partir da configuração familiar apresentada e tendo ciência de que o sintoma,
manifestação do inconsciente, é sempre endereçado a alguém, nasce a indagação:
seria o sintoma de GV direcionado à mãe?

Atualmente, GV namora com TH, uma garota que o acolheu junto à família dela.
A partir disso, GV começou a dividir vivências em dois ambientes familiares distintos e
nomeou sua família biológica como “a família de cá”, distinguindo-a da “família de lá”,
aquela que é biologicamente de sua namorada. O paciente relatou que encontrou um
“porto seguro” no lar de TH. Sua sogra é psicóloga e GV atribui a ela o papel de
“conselheira”, associando isso ao papel de uma mãe e dizendo: “não considero ela como
mãe, considero conselheira, que é o papel de uma mãe. Mas ela não substitui a minha”.
Após as expulsões, GV sentiu que perdeu o afeto em sua família biológica e que a
família de TH deu a ele esse cuidado que precisava. Em muitos momentos, GV se
descreve como uma pessoa que “não consegue posicionar sua existência no mundo” e
como alguém dependente das impressões que o outro tem sobre ele. Ao falar sobre TH
e sua família, GV conta que eles o auxiliam a se posicionar de forma mais assertiva. A
casa da namorada é um dos lugares onde a identidade de GV pode aparecer,
contrariando o que acontece em sua casa. O paciente conta que existe um medo de
sentir mais afeto pela “família de lá” que pela “família de cá”. O relacionamento afetivo
sexual do paciente quase sempre é relatado por ele em um sentido positivo para si,
apenas destacando as discussões que acontecem ocasionalmente, falando sobre a sua
dificuldade de organizar seus pensamentos em situações de conflitos, externalizar suas
opiniões e o ato de procrastinar a resolução de um problema para o depois: “eu falo
para ela que não consigo falar na hora, mas que irei pensar e depois conversamos de
novo”.

Entre o “lá” e o “cá”, GV fala, majoritariamente, sobre si como uma pessoa que
precisa de afeto e de cuidado. Em algumas sessões, o paciente demarcou a constante
sensação de estar incomodando o outro com a sua presença. Inicialmente, GV não
conseguia descrever o que trazia esse sentimento, mas em uma sessão relatou que se
sente um peso para as pessoas quando não está recebendo atenção como queria. GV
faz muitos movimentos comparativos, usando a vida do outro como base para definir
que a sua está “estagnada”, ou que o outro tem algo que ele não tem, ou que terceiros
estão em uma posição que ele gostaria de estar. Isso apareceu na clínica em relatos
diferentes, como quando GV relatava sobre seu desejo pelos processos de transição ou
quando contava sobre frustrações profissionais e as conquistas que amigos dele já
realizaram. Entre o “lá” e o “cá”, GV muitas vezes se anula e se invalida, criando certa
dependência pela opinião do outro, pensando sempre nas consequências que suas
ações terão sobre o outro, comedindo cada passo para não cometer “erros”, tendo medo
constante da perda do afeto, da atenção e da confiança que o outro pode dar a ele. A
narrativa sobre GV, dita por ele mesmo, segue o fio de pulsões de morte, marcadas por
culpabilização excessiva e autoagressão.

GV ainda se vê como uma criança, como ele mesmo diz: “GV tem só dois anos”.
As roupas que GV usam, assim como o corte de cabelo, aparecem no discurso dele
como importantes componentes da identidade masculina e que fazem diferença
significativa em seu processo identitário. O paciente relatou que até alguns meses atrás
ainda usava roupas que para ele eram infantis – coloridas, com estampas e desenhos.
GV disse que ser um homem trans é como se houvessem duas existências, duas
pessoas em sua história. SA (sigla representativa de seu nome morto) foi uma pessoa
que para ele não concretizou sua experiência no mundo e, com isso, GV surgiu como
uma criança que precisa ser cuidada. O paciente também disse que SA passou por
muitos traumas e que antes ele não a amava, mas que hoje reconhece que se não fosse
por ela, ele não estaria aqui. E aqui ele está, entre o “lá” e o “cá”, reivindicando afeto e
cuidado em relações de dependência, desejando um amor que foi vivenciado apenas
na infância, por SA. Há um desejo de ocupar novamente um lugar que já foi ocupado
antes (no “cá”), mas que agora não ocupa mais. Porém, entre o “lá” e o “cá”, não existe
uma terceira opção? GV não pode descobrir um terceiro lugar que está em si e/ou
consigo? E o seu desejo, suas pulsões de vida e sua própria identidade que muitas
vezes se perdem em meio aos tantos outros que vivem “lá” e “cá”?

Hipótese Diagnóstica: Tendo em vista que GV passa por processos de auto


culpabilização, possui sentimentos e relações ambivalentes, evita conflitos e situações
que representa para ele o risco de abandono, sofre diante da falta de atenção (o que
pode indicar a necessidade de ser objeto de desejo) e protela o ato, concentrando as
angústias no pensamento, surge a hipótese de Neurose Obsessiva como estrutura
clínica no caso apresentado.

Agosto de 2022,
Filipe Geraldo Goulart Costa.

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