Filme “Precisamos Falar sobre o Kevin” e Transtorno de Personalidade
Antissocial Ana Luiza Rebelo Rocha
O transtorno de personalidade antissocial é caracterizado por um
comportamento que desconsidera e viola o direito das outras pessoas. Para o diagnóstico, a pessoa precisa ter, no mínimo, 18 anos de idade, e o comportamento deve acontecer de forma recorrente desde os 15 anos, ou antes. Há casos em que os sinais aparecem ainda na infância. A pessoa fracassa em se ajustar às normas sociais, tende a repetir atos que causem detenção, são falsas e mentem repetidamente para benefício próprio, são impulsivas, não conseguem realizar planos para o futuro, se irritam facilmente e se tornam agressivas, envolvem-se em brigas e não se importam pela própria segurança ou a de outras pessoas. Também demonstram irresponsabilidade, não conseguem manter uma conduta consistente de trabalho ou para pagar contas, e não possuem remorso pelas coisas erradas que fazem aos outros. São indivíduos indiferentes ao que o outro sente e podem realizar agressões contra pessoas e animais, destruição de propriedade, fraude, roubo e outros tipos de violações graves. É um transtorno que acomete mais homens do que mulheres, e pode ser antecedido pelo transtorno de conduta na infância. No caso do personagem Kevin, percebe-se desde a infância que ele possuía dificuldades cognitivas, que também podem aparecer neste tipo de patologia. É chocante perceber que a família percebia o problema, mas não procurou um especialista. Ele foi testado de forma superficial e pareceram “satisfeitos” com aquela opinião, mesmo percebendo que o comportamento dele apenas piorava. Ainda criança, Kevin parecia ter prazer em desafiar a mãe, o que pode estar ligado a algum outro transtorno naquele momento. Ele mente facilmente quando ela quebra seu braço, mas parece usar aquilo como subterfúgio para conseguir o que queria dela. Não demonstra apreço pela mãe e nem pela irmã mais nova, e percebe que o pai o agrada, então modula seu comportamento para conseguir o que quer. Em uma das cenas ele parece defecar propositalmente para provocar ira na mãe. Em um outro momento, destrói os mapas que ela colou no quarto, talvez porque ela parecia gostar muito daquilo, talvez apenas por prazer. Conforme os anos passam, seu comportamento fica ainda mais hostil. Ele é mimado pelo pai, que parece nunca perceber suas agressões, e ofende a mãe e a irmã gratuitamente. Ele não demonstra remorso pelo que faz contra elas, não se importa com a segurança e os bens das duas, e acaba colocando a saúde da irmã em risco. Ela perde um olho por culpa do que ele havia feito. Em uma das cenas fica implícito o fato de que ele matou o hamster da irmã no triturador da pia e pareceu ter gostado de ver a mãe descobrir aquilo. O aspecto familiar também nos chama atenção. Aparentemente, a mãe não desejava aquela gravidez e chegou a dizer ao menino que era mais feliz antes de seu nascimento. Ela desejava outra vida e teve muita dificuldade para lidar com ele. O pai, que não vivenciava todos os desafios de criar uma criança 24 horas por dia, fazia parecer que era simples acalmá-lo, deixando a mãe ocupar um papel de ser incapaz de cuidar do menino. Ele o mima na tentativa de compensar aquela situação tensa – o que torna ainda mais simbólico o momento do atentado, visto que ele mata o próprio pai, a irmã e as pessoas da escola com o arco e flecha que o havia ganhado de presente do pai, um Hobbie que ele mesmo incentivou no filho. Kevin demonstra arrogância, frieza com a família e sempre coloca suas vítimas como culpadas do que ele fez e merecedoras daquilo. Em uma das cenas ele é pego se masturbando pela mãe. Quando ele a vê, continua o ato com ainda mais força. Ele não se choca, não se desculpa, não se sente mal por aquilo. O ambiente escolar não é retratado, deixando em aberto como ele se relacionava com outras pessoas além de sua família, mas levando o expectador a refletir sobre isso uma vez que ele cometeu o atentado justamente na escola. Quando questionado sobre o motivo de fazer tudo aquilo, ele diz que “não há ponto”. Isso deixa a entender que o que fazia era apenas pelo prazer de ver o outro sofrer, sem precisar ser guiado por algum tipo de vingança. Esse fato difere o caso de um comportamento criminoso, por exemplo. Os pais se tornam omissos conforme Kevin cresce e a mãe, particularmente, demonstra se sentir culpada e cansada ao mesmo tempo. O pai sempre fica do lado do filho, eximindo-o de se desculpar pelos seus atos e sempre acreditando que ele é um menino dócil e gentil. A mãe carrega o fardo de lidar com o que ele fez mesmo anos após o acontecido, sendo constantemente responsabilizada pelo crime do filho como se ela mesma o tivesse cometido. Não se pode deixar de notar que a família foi disfuncional ao lidar com o comportamento de Kevin, mas a forma como Eva (a mãe) é tratada não é justificável. A família precisa se responsabilizar, sim, e procurar entrar em tratamento junto com o filho; isso, porém, é diferente de ser punida pelo que ele fez. O filme termina com o atentado que Kevin causou em sua escola, ele matou e feriu diversos colegas. Eva, quando chega em casa, descobre também que ele havia matado seu pai e sua irmã. Há recortes de uma entrevista que ele deu onde não demonstra arrependimento; ao contrário, diz que é o que as pessoas gostam de ver e se sente corajoso e realizado por fazer aquilo. Dois anos depois sua mãe, que ainda luta para reestruturar a vida, é assombrada pelo que viveu e por sua omissão. Ela continua visitando Kevin na cadeia e deseja saber o motivo que o levou a fazer aquilo. Para ele, porém, não há motivo – o que o difere de um transtorno narcisista, por exemplo, em que não há traços de agressividade. O filme “Precisamos Falar sobre o Kevin” é um retrato de uma sociedade violenta e que favorece o acesso a armas de vários tipos. Também mostra um cenário de omissão familiar. Muito provavelmente o diagnóstico de transtorno de personalidade antissocial não viria antes do crime, pois ele estava para completar 16 anos. Apesar disso, seria possível acompanhar mais de perto seu comportamento e orientar a família quanto à forma de lidar com a situação, quem sabe até encaminhando-os para um tratamento familiar ou individual. Isso nos faz pensar, enquanto expectadores, que um acompanhamento psicológico e psiquiátrico poderia ter sido preventivo e evitado uma catástrofe. FONTES Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10: Descrições Clínicas e Diretrizes Diagnósticas – Coord. Organiz. Mund. Da Saúde; trad. Dorgival Caetano. – Porto Alegre: Artmed, 1993. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais [recurso eletrônico]: DSM-5 / [American Psychiatric Association; tradução Maria Inês Corrêa Nascimento... et al.]; revisão técnica: Aristides Volpato Cordioli... [et al.]. – 5. Ed. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre: Artmed, 2014.
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