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Sennett e A Corrosão Do Caráter
Sennett e A Corrosão Do Caráter
25 DE AGOSTO DE 2022
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Afinal, o que é caráter? Sennett diz que caráter é “o valor ético que atribuímos aos nossos
próprios desejos e às nossas relações com os outros. […] São os traços pessoais a que damos
valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem (2009, p. 10).
Assim, o novo capitalismo afeta o caráter pessoal das pessoas. Não há possibilidade de uma
narrativa linear da vida, de uma narrativa embasada pela experiência.
O trabalho fordista (exemplificado no livro por meio da vida de Enrico), mesmo sendo
permeado por burocracia e rotina, oferece a oportunidade de construir uma vida linear e
cumulativa. Já o trabalho flexível (exemplificado no livro por meio da vida de Rico – filho de
Enrico) é permeado por incertezas e mudanças constantes, não oferecendo a possibilidade de
uma vida mais organizada. Por exemplo, a flexibilidade é tão grande que nem é possível
conhecer os próprios vizinhos, fazer novas amizades ou mesmo manter laços com a própria
família, pois as mudanças de local de trabalho são constantes.
Diderot e Adam Smith nos apresentam visões distintas sobre a divisão social do trabalho e
sobre o progresso moral da humanidade. Para Adam Smith, a rotina embrutece o espírito,
sendo o trabalho de rotina degradante. A sociedade contemporânea está em revolta, segundo
Sennett, contra o tempo rotineiro, contra, portanto, o trabalho taylorista/fordista. Assim, Sennett
considera que a sociedade procura resolver o problema da rotina com a reestruturação do
tempo, com instituições mais flexíveis, criando novas formas de poder e controle.
“Na aurora do capitalismo industrial, porém, não era tão evidente assim que a rotina fosse um
mal. Em meados do século dezoito, parecia que o trabalho repetitivo podia levar a duas
diferentes direções, uma positiva e frutífera, outra destrutiva. O lado positivo da rotina foi
descrito na grande Enciclopédia por Diderot, publicada de 1751 a 1772; o lado negativo do
tempo de trabalho regular foi retratado da forma mais dramática em A riqueza das nações, de
Adam Smith, publicada em 1776. Diderot acreditava que a rotina no trabalho podia ser igual a
qualquer outra forma de aprendizagem por repetição, um professor necessário; Smith, que a
rotina embotava o espírito. Hoje, a sociedade fica com Smith. Diderot sugere o que
poderíamos perder tomando o lado de seu oponente.” (SENNETT, 2009, p. 35).
Portanto, temos duas visões distintas sobre a flexibilização do trabalho em Smith e Diderot.
Enquanto Diderot defende a rotina do trabalho, Smith critica-a, apostando que o melhor seria a
divisão do trabalho e a sua flexibilização. A rotina, segundo Diderot, estava em constante
evolução. Repetindo uma atividade particular, descobre-se como acelerar ou modelar a
atividade, fazendo variações. Já Smith dizia que a rotina embrutece o espírito. Essa
constatação de Smith é pessimista.
Os receios de Smith e de Marx sobre a rotina são verificados no séc. XX com o fordismo. E
essa é a geração de Rico (personagem da obra de Sennett). Já a geração de Enrico forma o
ponto culminante das dores da rotina. “A nova linguagem de flexibilidade sugere que a rotina
está morrendo nos setores dinâmicos da economia. Porém, a maior parte de mão-de-obra
permanece inscrita no círculo do fordismo.” (SENNETT, 2009, p. 50).
Conforme Sennett (2009), a nova estrutura de poder cria novas formas de controle, como por
exemplo o trabalho em casa, no qual troca-se “o controle face-a-face” pelo controle eletrônico.
A flexibilidade do tempo requer uma flexibilização também do caráter, caracterizada pela
ausência de apego temporal a longo prazo e pela tolerância com a fragmentação. O trabalho
flexível leva a uma degradação dos trabalhadores. O trabalho tornou-se fácil, superficial e
ilegível. As formas de flexibilidade dividem-se em três momentos:
2) especialização flexível de produção: a especialização flexível tenta pôr, cada vez mais
rápido, produtos mais variados no mercado. Ela permite responder com rapidez às mudanças
na demanda do consumo. Essas empresas cooperam e competem ao mesmo tempo,
buscando nichos no mercado que cada uma ocupa temporariamente e não de forma
permanente. Esta especialização flexível de produção é a antítese do fordismo. (SENNETT,
2009).
Sennett (2009), ao exemplificar o caso dos padeiros de Boston que há vinte e cinco anos, na
sua maioria, eram gregos e filhos de padeiros, sendo o seu trabalho caracterizado pelo contato
direto com a massa do pão, com o calor dos fornos e o desgaste físico que a atividade exigia,
nos mostra algo que nos padrões da flexibilização do trabalho não existe mais. Atualmente, a
padaria fundamenta-se nos princípios da organização flexível, não sendo mais um
“estabelecimento grego”. Com a automação da padaria, o pão tornou-se virtual, tendo como
consequência a ilegibilidade da sua própria atividade. O trabalho tornou-se degradante porque
não era mais necessário fazer pão ou ser padeiro. Os laços sociais com o trabalho são
rompidos e há uma perda de identidade social que o “ser padeiro” lhes conferia.
Uma comparação entre a ética do trabalho no sentido weberiano, que segundo Sennett,
possuía profundidade de experiência, com a natureza da ética do trabalho em equipe do
capitalismo flexível se torna necessária. Sennett, ao utilizar o exemplo de Rose, demonstra
como o risco se tornou tão desnorteante e deprimente no capitalismo flexível. A nova ética do
trabalho contribui para tal degradação humana. Esta ética do trabalho hodierna é o campo na
qual a profundidade das experiências é contestada. Ela fundamenta-se no trabalho em equipe
e neste cenário os trabalhadores precisam ser polivalentes e adaptáveis às circunstâncias.
Neste local de poder sem autoridade, as relações humanas não passam de uma simulação
teatral. O trabalho flexível busca romper com a burocracia e a rotina, características presentes
no fordismo. Porém, ele acabou, segundo Sennett, precarizando as relações de trabalho. A
ética do trabalho em equipe não superou a ética da rotina.
Em um capitalismo com pessoas à deriva, fica difícil construir uma carreira, uma história de
vida. O fracasso, na atualidade, é um fenômeno social e é possível que ele atinja a todos. A
solução para enfrentar o fracasso deve ser coletiva, por meio de experiências compartilhadas.
Sennett, ao tratar da história dos programadores demitidos da IBM, apresenta que para se
enfrentar o fracasso é necessário recuperar o senso coerente entre o eu e o tempo, através da
discussão partilhada dos problemas com os outros. Destarte, um senso de comunidade e de
caráter mais amplos se fazem necessários para combater o novo capitalismo. A sociedade
atual, da flexibilização, as pessoas estão cada vez mais condenadas a fracassar.
Outra grande questão, neste novo capitalismo, se faz necessária: quem precisa de mim, em
um regime onde as relações entre as pessoas no trabalho são superficiais e descartáveis e os
laços de lealdade, confiança e compromisso mútuo se afrouxam em decorrência das
experiências de curto prazo? O problema do caráter nesse tipo de capitalismo é que há
história, mas não existe narrativa partilhada com os outros e, assim, o caráter se corrói.
(SENNETT, 2009). O pronome “nós” é perigoso para os capitalistas que vivem da desordem da
economia e temem a organização e o ressurgimento dos sindicatos, e por isso, um regime que
não oferece aos seres humanos motivos para ligarem uns para os outros não pode preservar
sua legitimidade por muito tempo.
Referências Bibliográficas