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Sennett e a corrosão do caráter

25 DE AGOSTO DE 2022

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Sennett, em seu livro A corrosão do caráter, nos mostra as práticas do capitalismo em


diferentes etapas: a etapa “regulado” e a etapa “parcialmente flexível” e as repercussões disso
na vida privada. O capitalismo vive um momento de natureza flexível, diferentemente do
período com formas rígidas, burocráticas, com rotinas exacerbadas. Esta passagem do
regulado para o flexível acabou tornando a vida das pessoas, como nos exemplos das vidas de
Enrico e Rico, apresentadas no obra, repleta de ansiedade, desconhecendo os riscos e o lugar
que irão chegar.

Conforme Sennett, “essa ênfase na flexibilidade está mudando o próprio significado do


trabalho. […] ‘Carreira’, por exemplo, significava orginalmente, na língua inglesa, uma estrada
para carruagens”. (2009, p. 09).  Ele continua dizendo: “O capitalismo flexível bloqueou a
estrada reta da carreira, desviando de repente os empregados de um tipo de trabalho para
outro”. (2009, p. 09).

Afinal, o que é caráter? Sennett diz que caráter é “o valor ético que atribuímos aos nossos
próprios desejos e às nossas relações com os outros. […] São os traços pessoais a que damos
valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem (2009, p. 10).
Assim, o novo capitalismo afeta o caráter pessoal das pessoas. Não há possibilidade de uma
narrativa linear da vida, de uma narrativa embasada pela experiência.

O trabalho fordista (exemplificado no livro por meio da vida de Enrico), mesmo sendo
permeado por burocracia e rotina, oferece a oportunidade de construir uma vida linear e
cumulativa. Já o trabalho flexível (exemplificado no livro por meio da vida de Rico – filho de
Enrico) é permeado por incertezas e mudanças constantes, não oferecendo a possibilidade de
uma vida mais organizada. Por exemplo, a flexibilidade é tão grande que nem é possível
conhecer os próprios vizinhos, fazer novas amizades ou mesmo manter laços com a própria
família, pois as mudanças de local de trabalho são constantes.

Diderot e Adam Smith nos apresentam visões distintas sobre a divisão social do trabalho e
sobre o progresso moral da humanidade. Para Adam Smith, a rotina embrutece o espírito,
sendo o trabalho de rotina degradante. A sociedade contemporânea está em revolta, segundo
Sennett, contra o tempo rotineiro, contra, portanto, o trabalho taylorista/fordista. Assim, Sennett
considera que a sociedade procura resolver o problema da rotina com a reestruturação do
tempo, com instituições mais flexíveis, criando novas formas de poder e controle.

As novas formas de poder da flexibilização apresentam-se num movimento estrutural que


reúne: 1) a reinvenção descontínua de instituição, ou seja, uma total ruptura do presente com o
passado como forma de atacar a burocracia; 2) a especialização flexível, isto é, as empresas
cooperam e competem ao mesmo tempo, buscando nichos no mercado que cada uma ocupa
temporariamente, e não permanentemente, adaptando a curta vida de produto de roupas,
têxteis ou peças de máquinas; 3) a concentração de poder sem centralização, que
aparentemente parece dar ao trabalho em equipe maior controle sob o trabalho que
desenvolve, mas na verdade quem decide o que fazer e quando, ainda é o capitalista, restando
aos trabalhadores apenas como fazer suas atividades. (SENNETT, 2009).

“Na aurora do capitalismo industrial, porém, não era tão evidente assim que a rotina fosse um
mal. Em meados do século dezoito, parecia que o trabalho repetitivo podia levar a duas
diferentes direções, uma positiva e frutífera, outra destrutiva. O lado positivo da rotina foi
descrito na grande Enciclopédia por Diderot, publicada de 1751 a 1772; o lado negativo do
tempo de trabalho regular foi retratado da forma mais dramática em A riqueza das nações, de
Adam Smith, publicada em 1776. Diderot acreditava que a rotina no trabalho podia ser igual a
qualquer outra forma de aprendizagem por repetição, um professor necessário; Smith, que a
rotina embotava o espírito. Hoje, a sociedade fica com Smith. Diderot sugere o que
poderíamos perder tomando o lado de seu oponente.” (SENNETT, 2009, p. 35).

Portanto, temos duas visões distintas sobre a flexibilização do trabalho em Smith e Diderot.
Enquanto Diderot defende a rotina do trabalho, Smith critica-a, apostando que o melhor seria a
divisão do trabalho e a sua flexibilização. A rotina, segundo Diderot, estava em constante
evolução. Repetindo uma atividade particular, descobre-se como acelerar ou modelar a
atividade, fazendo variações. Já Smith dizia que a rotina embrutece o espírito. Essa
constatação de Smith é pessimista.

Os receios de Smith e de Marx sobre a rotina são verificados no séc. XX com o fordismo. E
essa é a geração de Rico (personagem da obra de Sennett). Já a geração de Enrico forma o
ponto culminante das dores da rotina. “A nova linguagem de flexibilidade sugere que a rotina
está morrendo nos setores dinâmicos da economia. Porém, a maior parte de mão-de-obra
permanece inscrita no círculo do fordismo.” (SENNETT, 2009, p. 50).

Conforme Sennett (2009), a nova estrutura de poder cria novas formas de controle, como por
exemplo o trabalho em casa, no qual troca-se “o controle face-a-face” pelo controle eletrônico.
A flexibilidade do tempo requer uma flexibilização também do caráter, caracterizada pela
ausência de apego temporal a longo prazo e pela tolerância com a fragmentação. O trabalho
flexível leva a uma degradação dos trabalhadores. O trabalho tornou-se fácil, superficial e
ilegível. As formas de flexibilidade dividem-se em três momentos:

1) reinvenção descontínua de instituições: a pedra angular da prática administrativa moderna é


a crença em que as redes elásticas são mais abertas à reinvenção decisiva que as hierarquias
piramidais, como as que governam a era fordista. O sistema é fragmentado e justamente aí
está a oportunidade de intervir. O termo conhecido para essas práticas é reengenharia e seu
fato mais destacado é a redução de empregos. A redução tem tido uma relação direta com a
crescente desigualdade. (SENNETT, 2009).

2) especialização flexível de produção: a especialização flexível tenta pôr, cada vez mais
rápido, produtos mais variados no mercado. Ela permite responder com rapidez às mudanças
na demanda do consumo. Essas empresas cooperam e competem ao mesmo tempo,
buscando nichos no mercado que cada uma ocupa temporariamente e não de forma
permanente. Esta especialização flexível de produção é a antítese do fordismo. (SENNETT,
2009).

3) concentração de poder sem centralização: essa é uma maneira de transmitir a operação de


comando numa estrutura que não mais tem a clareza de uma pirâmide. Esta estrutura está
cada vez mais complexa. Destarte, a utilização do termo “desburocratização” é enganadora,
pois a dominação do alto é forte e informe. (SENNETT, 2009).
Na esfera do trabalho, os ritmos que Diderot descrevia na fábrica de papel exemplificam o
tempo mutante, mas contínuo. Em contraste, a mudança flexível, que hoje ataca a rotina
burocrática, busca reinventar as instituições. (SENNETT, 2009).

O chamado “flexitempo” sintetiza o sistema de poder oculto nas modernas formas de


flexibilidade. As organizações flexíveis estão fazendo experiências com vários horários e isso é
chamado de “flexitempo”. No lugar dos turnos fixos, o trabalho está sendo realizado em
diversos horários e, consequentemente, o trabalho tornou-se mais individualizados. “[…] O
flexitempo, embora parecendo prometer maior liberdade que a do trabalhador atrelado à rotina
da fábrica de alfinetes de Smith, está, ao contrário, entretecido numa nova trama de controle”
(SENNETT, 2009, p. 67). Conforme Sennett (2009), o tempo do flexitempo é o tempo de um
novo poder. Essa flexibilidade acaba gerando desordem.

Sennett (2009), ao exemplificar o caso dos padeiros de Boston que há vinte e cinco anos, na
sua maioria, eram gregos e filhos de padeiros, sendo o seu trabalho caracterizado pelo contato
direto com a massa do pão, com o calor dos fornos e o desgaste físico que a atividade exigia,
nos mostra algo que nos padrões da flexibilização do trabalho não existe mais. Atualmente, a
padaria fundamenta-se nos princípios da organização flexível, não sendo mais um
“estabelecimento grego”. Com a automação da padaria, o pão tornou-se virtual, tendo como
consequência a ilegibilidade da sua própria atividade. O trabalho tornou-se degradante porque
não era mais necessário fazer pão ou ser padeiro. Os laços sociais com o trabalho são
rompidos e há uma perda de identidade social que o “ser padeiro” lhes conferia.

A noção de risco é inerente ao regime de flexibilização e uma necessidade das massas. O


excesso de qualificação é um sintoma de polarização social. O ato de correr riscos é normal
para um regime flexível. A nova ordem concentra-se na capacidade imediata. Por isso, a
preferência do capitalismo pelos mais jovens, por serem mais adaptáveis às formas flexíveis
de trabalho. Os riscos propiciam aos indivíduos um sentimento de esvaziamento completo em
todos os sentidos (moral, social, cultural ou político).

Uma comparação entre a ética do trabalho no sentido weberiano, que segundo Sennett,
possuía profundidade de experiência, com a natureza da ética do trabalho em equipe do
capitalismo flexível se torna necessária. Sennett, ao utilizar o exemplo de Rose, demonstra
como o risco se tornou tão desnorteante e deprimente no capitalismo flexível. A nova ética do
trabalho contribui para tal degradação humana. Esta ética do trabalho hodierna é o campo na
qual a profundidade das experiências é contestada. Ela fundamenta-se no trabalho em equipe
e neste cenário os trabalhadores precisam ser polivalentes e adaptáveis às circunstâncias.
Neste local de poder sem autoridade, as relações humanas não passam de uma simulação
teatral. O trabalho flexível busca romper com a burocracia e a rotina, características presentes
no fordismo. Porém, ele acabou, segundo Sennett, precarizando as relações de trabalho. A
ética do trabalho em equipe não superou a ética da rotina.

Em um capitalismo com pessoas à deriva, fica difícil construir uma carreira, uma história de
vida. O fracasso, na atualidade, é um fenômeno social e é possível que ele atinja a todos. A
solução para enfrentar o fracasso deve ser coletiva, por meio de experiências compartilhadas.
Sennett, ao tratar da história dos programadores demitidos da IBM, apresenta que para se
enfrentar o fracasso é necessário recuperar o senso coerente entre o eu e o tempo, através da
discussão partilhada dos problemas com os outros. Destarte, um senso de comunidade e de
caráter mais amplos se fazem necessários para combater o novo capitalismo. A sociedade
atual, da flexibilização, as pessoas estão cada vez mais condenadas a fracassar.

Outra grande questão, neste novo capitalismo, se faz necessária: quem precisa de mim, em
um regime onde as relações entre as pessoas no trabalho são superficiais e descartáveis e os
laços de lealdade, confiança e compromisso mútuo se afrouxam em decorrência das
experiências de curto prazo? O problema do caráter nesse tipo de capitalismo é que há
história, mas não existe narrativa partilhada com os outros e, assim, o caráter se corrói.
(SENNETT, 2009). O pronome “nós” é perigoso para os capitalistas que vivem da desordem da
economia e temem a organização e o ressurgimento dos sindicatos, e por isso, um regime que
não oferece aos seres humanos motivos para ligarem uns para os outros não pode preservar
sua legitimidade por muito tempo.

Referências Bibliográficas

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo


capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2009.

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