Você está na página 1de 185
O Espaco Biografico Dilemas da Subjetividade Contemporanea Leonor Arfuch a UERJ 7 & eat s UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Reitor Ricardo Vieiralves de Castro Vice-reitora Maria Christina Paixdo Maioli ed B uer] EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Conselho Editorial Antonio Augusto Passos Videira Flora Sussekind Italo Moriconi (presidente) Ivo Barbieri Luiz Antonio de Castro Santos Pedro Colmar Gongalves da Silva Vellasco Leonor Arfuch O espago biografico: dilemas da subjetividade contemporanea Tradugao Paloma Vidal ed BD uer] Rio de Janeiro 2010 Titulo original: E/ espacio biogréfico ~ dilemas de la subjetividad contempordnea © Fondo de Cultura Econémica de Argentina S.A. / Buenos Aires, 2002. Direitos adquiridos para a lingua portuguesa pela Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. ¥ EdUERJ Editora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Rua So Francisco Xavier, $24 - Maracandi CEP 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ Tel./Fax.: (21) 2334-0720 / 2334-0721 / 2334-0782 / 2334-0783 www.eduerj.uerj.br eduerj@uerj.br Editor Executivo Italo Moriconi Geréncia/Supervisdo Editorial Carmen da Matta Coordenador de Publicagdes ‘Renato Casimiro Coordenadora de Produgao Rosania Rolins Coordenador de Reviséio Fabio Flora Revisdo Andréa Ribeiro Capa Carlota Rios Projeto e Diagramagao Emilio Biseardi Assistente de Edigao Renato Alexandre de Sousa CATALOGACAO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC A685. Arfuch, Leonor. O espago biogrifico: dilemas da subjetividade contempora- nea / Leonor Arfuch; tradugao, Paloma Vidal. — Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. 370 p. ISBN 978-85-7511-167-3 1. Anélise do discurso narrativo. 2. Narrativa (Retérica). 3 Autobiografia. 4. Sujeito (Filosofia). 5. Entrevistas. I. Titulo. CDU 82.085 Agradecimentos.. Prefacio . Apresentagao ... Sumario Breve histéria de um comego. ly A definigao do tema O caminho da pesquisa Os capitulos 1. O espago biogréfico: mapa do territorio Genealogias. Em torno da autobiografia O espaco biogréfico contemporaneo 2. Entre 0 piblico e o privado: contornos da interioridade... “Trés paradigmas: Arendt/Habermas/Elias . O piiblico e o privado no horizonte contemporaneo lll 3. A vida como narragao.. Narrativa e temporalidade ce Identidade narrativa, histéria e experiéncia... . 116 Avvor narrativa. i O mito do eu: pluralidade e disjuncao . 126 DistingSes no espago biogréfico.. 131 4. Devires biograficos: a entrevista midiatica. 151 A vida a varias vozes . . 156 Avatares da conversa. - 170 ‘A pragmatica da narracao . .176 Biografemas. 196 5. Vidas de escritores ... +209 Vidas e obras 211 A cena da escrita... 219 Acena da leitura.. 224 Dos mistérios da criacao. 229 6. O espago biogréfico nas ciéncias sociais ... 239 A entrevista na pesquisa: hipétese sobre uma origem comum.... 241 (O que fazer com) A voz do outro. 253 Acscuta plural: uma proposta de andlise ... 266 7. Travessias da identidade: uma leitura de relatos de vida.. 277 Sobre a leitura... 277 ‘A pesquisa. 279 Os espacos simbélicos: Argentina/Itdlia... 1.291 Epilogo .. 335 Sobre o final. + 339 Referéncias... +351 Agradecimentos Entre as marcas (possiveis) de uma biografia, esto os rituais da pesquisa: s € com Os outros: cncontros GERD sugesties, criticas. A esses interlocutores, que influiram decisivamente na concretizagao deste projeto, 4 sua generosidade de tempo e de palavra, quero responder aqui com meu agradecimento. A Elvira Arnoux, sob cuja orientagao este livro foi, em sua pri- meira versio, tese de doutoramento, pelo estimulo, pela orientagao lucida e valorativa. A Beatriz Sarlo, cujo julgamento preciso e sugestivo, numa longa “histéria conversacional”, mostrou-se iluminador em mais de um sentido. A Ernesto Laclau, que precoce e generosamente abriu pers- pectivas insuspeitadas para meu trabalho, cultivadas junto com a amizade. A meus colegas ¢ amigos: Teresa Carbé, a quem devo a de- cisto de retomar “sendas perdidas” para chegar ao porto; Noemi Goldman, que me alentou com sabedoria e afeto; Paola di Cori, que endireitou rumos com seus comentarios; Alicia de Alba, que mesmo A distancia soube me acompanhar com confianga e aconchego; e Emilio de Ipola, por seu olhar hicido, seu reconhecimento e o dom de seu humor. A minhas colegas e amigas do grupo de pesquisa: Leticia Sabsay, Verénica Devalle, Carolina Mera e Debra Ferrari, pelo cons- tante impulso, pela contribuigao de ideias, o afeto e a generosidade de scu tempo. 8 Cespaco biogitico A Mabel Goldemberg, por uma escuta sem a qual certamente este livro nao teria existido. A Federico Schuster, entao diretor do Instituto Gino Germa- ni, pelo apoio incondicional ao “tempo de acréscimo” que esta longa escrita exigiu. A Simon Tagtachian, por seu inestimavel apoio na area de informdtica, e a Tecla Candia, pela amabilidade no cotidiano. Prefacio “Relato, identidade, razio dialdgica. Esses trés temas, intima- mente entrelagados, constituem as coordenadas que definem a tra- ma deste excelente livro. Tentemos precisar as estratégias discursivas que articulam esses tépicos na argumentagao de Arfuch. O que, em primeiro lugar, determina a centralidade do relato, da narrativa? Algo requer ser narrado na medida em que sua especi- ficidade escapa a uma determinagao tedrica direta, a um complexo institucional autorreferencial. Arfuch descreve com clareza o contex- to de proliferacao de narrativas em que seu livro se centra. Por um lado, uma experiéncia argentina: a pluralizagao de vozes e de relatos que acompanharam 0 retorno 4 democracia no inicio dos anos 1980. A corrosio dos pontos de referéncia cotidianos — piblicos e privados —, resultantes da experiéncia tragica da ditadura, implicou que a co- eréncia da moldura institucional dada tivesse de ser substitufda pela temporalidade de um relato em que o cardter constitutivo pertencia A narragao enquanto tal, uma narragao que deixara de estar funda- da em certezas ontoldgicas prévias. Aconteceu algo similar ao que [rich Auerbach descreve com relagao 4 dissolugao da ordem imperial romana: o latim deixa de ser uma linguagem fortemente hipotatica, que classifica a realidade em termos de categorias universalmente accitas, e tenta, pelo contrério, transmitir a impressao sensivel do real, aquilo que escapa aos sistemas vigentes de organizacao e sé se dcixa intuir por meio da estruturag4o temporal de um relato. No entanto, como Arfuch assinala, essa centralidade do nar- rativo depende de um contexto muito mais amplo do que o pura- mente argentino: esté inscrita na hibridizagao geral de categorias e 10 Ceespago biografico distingdes que dominaram o que se chamou “modernidade” e que acompanharam a transi¢ao a uma era “pés-moderna”. Tal transi¢ao deve ser entendida, todavia, nado como dissolugao generalizada (que s6 seria concebfvel como preambulo da emergéncia da categoria ti- picamente moderna do “novo”), mas, precisamente, como hibridi- za¢io — isto é, como conformagio de novas areas de indecidibilidade no conjunto social/institucional e como base para o desdobramento de jogos de linguagem mais radicais, que colocam em questao os pontos de referéncia da certeza. Esse processo é estudado por Arfuch com relagao a uma drea institucional especifica: os géneros literdrios que plasmaram — a partir de pontos de referéncia classicos como as confissdes de Santo Agostinho e de Rousseau — 0 campo do biogra- fico e do autobiogréfico. Arfuch analisa detidamente as diferentes formas tradicionais de relatar a prépria vida (memérias, correspon- déncias, didrios {ntimos etc.) e€ mostra a irrupgao de novas formas autobiogréficas no mundo contemporaneo, a mais importante das quais — que tem centralidade indubitavel no livro — é a entrevista. O resultado é uma andlise fascinante da qual surgem diante de nossos olhos tanto tipos ¢ estilos narrativos ligados aos meios de comunica- gao de massa quanto a renegociagao e abertura de formas incoadas de relatos que ja se insinuavam nos géneros literdrios clssicos. Ha um segundo aspecto que também € central na andlise da autora. O tema de seu estudo — 0 espago miiltiplo do autobiografico — se presta admiravelmente & exploragao da teorizagao contempora- nea do sujeito. O questionamento do sujeito auténomo, autocentra- do e transparente da metafisica moderna e a correlativa nogao de um sujeito descentrado (pés-estruturalismo) ou constitufdo em torno de um vazio (Lacan) tinham necessariamente de colocar em questo as formas canénicas do relato autobiogréfico. Esse é um aspecto que Arfuch explora com sua penetragao e rigor caracterfsticos. A subver- so dos géneros tradicionais do relato e a emergéncia de uma nova pandplia de categorias analfticas dao seu sentido & argumentacio desta obra. Assim, a nogao de espago biogrdfico tenta dar conta de um Preficio 11 terreno em que as formas discursivo-genéricas cldssicas comegam a se entrecruzar e hibridizar: b € a apelacao a uma referencialidade estavel como ponto de ancoragem é deslocada em relagao as diversas estratégias de au- torrepresentacao. Isso implica necessariamente colocar em questao nog6es como o “pacto autobiogréfico entre leitor e autor” (Lejeune) ¢ redefinir a significado de conceitos como “vivéncia” (Erlebnis), cuja genealogia tracada por Gadamer é retomada por Arfuch. Pode- se dizer, como observacio geral, que 0 vazio do sujeito auténomo cldssico € ocupado neste livro — em consonancia com varias correntes do pensamento atual — pelo que poderfamos denominal -Uiscursivas”, isto é, por deslocamentos metonimicos que dao coerén- cia aos relatos — coeréncia que no repousa em nenhum centro, mas que faz dessa nao coincidéncia do sujeito consigo mesmo a fonte de toda representagio e totalizagao. Isso nos conduz a uma terceira dimensio da teorizacao de Ar- fuch, que é essencial sublinhar. QURSCEREEMMENEOOBUJel assume em sua obra uma formulagao especial que se vincula a “razao dialé- pica”, de raiz bakhtiniana: 0 sujeito deve ser pensado a partir de sua “outridade”, do contexto de didlogo que da sentido a seu discurso. 1s, i. uma hteogeneidade consiutiva qu define oda situs O social deve ser pensado a partir da “alienacao” radical de toda identidade. Essa GEG opera em varias direcdes. Devemos insistir em que nao nos estamos referindo oc GEARLOG) io, ass algo muro is fundamental: para Bakhtin, nao hd coincidéncia entre autor e perso- nagem, nem sequer na autobiografia. Isso é 0 que permite a Arfuch fazer oscilar decisivamente sua andlise de um sujeito que se expressa- ria através do discurso a outro que se constitui através dele. E ao falar de discurso estamos nos referindo, pura e simplesmente, ao social enquanto tal. O social est4 fundado, portanto, numa falta que nao WE espace bicqeatice se pode crradicar, Isso poderia ser formulado por meio da distingao que Benveniste — seguido por Lacan — estabelecera entre 0 sujcito da enunciagao € o sujeito do enunciado: o primeiro se funda numa déixis (0 sujeito anterior 4 subjetivacao, em termos lacanianos) que nao é inteiramente absorvivel nem normatizdvel através dos enunciados de um discurso. A razdo dialégica, nesse sentido, nao opera um fecha- mento, mas uma abertura. Essa série de démarches tebricas — descentramento do sujcito, inscri¢do do mesmo num espaco dialdgico (e, portanto, social), falta constitutiva inerente a esse tiltimo — nado pode senao subverter as distingSes classicas entre 0 ptiblico e o privado. Arfuch rastreia a genealogia dessa subversao através dos escritos de Arendt, Habermas ¢ Elias. O que é importante advertir a esse respeito é que esse entre- cruzamento entre as varias esferas nao é 0 resultado de uma operagio meramente analitica, mas ocorre diariamente nos espacos cm que o autobiogrdfico se constitui e se redefine. A entrevista midistica — ea oral, em geral — seria inconcebfvel sem essa complexa urdidura atra- vés da qual as dimensées publica e privada se sobredeterminam. E aqui Arfuch nao é necessariamente pessimista: nao vé nesse processo de entrecruzamento a invasao de uma esfera pela outra, mas um pro- cesso que é porencialmente enriquecedor — quer dizer, a emergéncia de uma intertextualidade que impede confinar temas ¢ reivindica- g6es a um isolamento esterilizante. Ha um ultimo aspecto que gostaria de destacar. Kant dizia que se ganha muito se uma pluralidade de temas ¢ questocs consegue ser sintetizada por uma problemdtica unificada. Para conscgui-lo, no entanto, é preciso certo arrojo, recusando-se a accitar frontei ‘as estabelecidas. E ninguém pode negar que Arfuch o tem. A nogio de “entrevista” passa a ser em sua andlise uma categoria tedrica, ja que ela subsumiu, sob esse rétulo, dois tipos de pratica intelectual que, anteriormente, nao haviam sido considerados conjumtamente: a entrevista jornalistica com figuras destacadas ¢ a entrevista que as ciéncias sociais ¢ a histéria oral levam a cabo com pessoas da vida Preficio 13 comum, que passaram por experiéncias sociais tfpicas de certos gru- pos. Desse ponto de vista, o segundo corpus de entrevistas anali- sado por Arfuch ~ realizadas no 4mbito de uma pesquisa sob sua orientagao — é de alto interesse. Os entrevistados sao familiares, de ascendéncia italiana, de pessoas que emigraram para a Itdlia no final dos anos 1980 como resultado da crise argentina. Todos os temas que assinalamos antes, relativos 4 hibridizagao e ao descentramento do sujeito, aparecem em status nascens, por assim dizer, nas respostas dos entrevistados (@jiiipossibilidade We estabelecen una ictentinieaga o seja com a Itélia ou com a Argentina; aff@iSaOKemtremon (0 dificilmente traduzidos entre si; todas que as formas mais ela- boradas, “literdrias”, da entrevista conseguem ocultar ou ao menos matizar aparece com maior nudez nessas conversas mais humildes e marginais, mas nem por isso isentas de tragos romanescos. Des- se modo, elas lancam certa luz sobre dimensées que sao inerentes ao género “entrevista” enquanto tal. Isso aponta, de modo quase paradigmatico, para os problemas especificos que uma teoria con- tempornea dos géneros literdrios deve afrontar. Nao é mais a uni- dade do livro, ou do jornal, que serve como suporte material de um género. A proliferagao dos meios de comunicacgio de massa, com sua produgio excessiva de imagens e de espagos dialégicos novos, obriga a uma teorizagao dos géneros que depende menos de apoios materiais evidentes do que de formas relacionais de cardter virtual. Ela deve se fundar em principios inteiramente formais que vao além de distingdes como entre o falado e o escrito ou entre o formulado linguisticamente e o representado virtualmente. Como avangar a partir desse ponto? O livro de Arfuch abre diversas vias de reflexao, ligadas a movimentos caracteristicos da ex- ploragao teérica contemporanea. Gostaria de assinalar apenas trés, que convergem apontando na diregao de uma nova ontologia. A primeira é a psicandlise, cujo discurso est na base de toda reteo- 14 Cespaco biogrifico rizagéo contemporanea do sujeito. Fica claro que categorias como “projegao”, “introprojecao” e “narcisismo” pressupdem uma relacio entre objetos (uma ontologia) que é impensavel nao apenas em ter- mos de paradigmas biologistas ou fisicalistas, mas também em ter- mos daqueles que informaram e constituiram o discurso dominante das ciéncias sociais. A segunda é a desconstrugio, cuja contribuigzo basica se funda no desvelamento de novas areas indecidiveis na es- truturagao da objetividade e nas estratégias possfveis a partir dessa indecidibilidade origindria (suplementariedade, iteragao, différance etc.). A terceira é a retérica. Se o descentramento do sujeito nos conduz 4 impossibilidade de toda nominagio direta, toda referéncia a um objeto ~ e as relagées entre objetos — requerer4 movimentos figurais ou tropolégicos estritamente irredutiveis a qualquer literali- dade. A retérica, por conseguinte, longe de ser um mero enfeite da linguagem como o supunha a ontologia classica, passa a ser 0 campo primdrio de constitui¢ao da objetividade. Nesse sentido, o paradig- ma que poderd conduzir a uma reconstitui¢ao tedrica do pensamen- to social terd de ser um paradigma retérico. Minha leitura do livro de Arfuch me sugere que seu impulso teérico fundamental se move nessa direc4o. Muitas coisas dependem do sucesso dessa tarefa, entre outras, 0 modo como teremos de constituir, nas préximas décadas, nossa identidade teérica e politica. “Et tout le reste est littérature”. Ernesto Laclau Apresentagao A simples mengao do “biogrdfico” remete, em primeira ins- tincia, a consagrados que ten- tam apreender a qualidade evanescente da vida opondo, a repeticao cansativa dos dias, aos desfalecimentos da memédria, o registro mi- nucioso do acontecer, o relato das vicissitudes ou a nota fulgurante da vivéncia, capaz de iluminar o instante ea ‘otalidade Ql autobiografias, confissées, » correspon- déncias dao conta, ha pouco mais de dois séculos, dessa obsessao por deixar impress6es, rastros, inscrigdes, dessa énfase na singularidade, 1 so mesmo tempo bust de rneendncs as, Na trama da Cultura contemporaneéa, outras formas apa- tecem disputando 0 mesmo espaco: entrevistas, conversas, perfis, retratos, anedotarios, testemunhos, histérias de vida, relatos de au- toajuda, variantes do show — talk show, reality show... No horizonte mididtico, a légica informativa do “isso aconteceu”, aplicdvel a todo repistro, fez da vida — e, consequentemente, da “prépria” experiéncia um nticleo essencial de tematizac4o. Por sua vez, as ciéncias sociais se inclinam cada vez com maior assiduidade paral itos, dotando assim ED” , os rela- tos de vida, as entrevistas em profundidade delineiam um territério bem reconhecivel, a multiplicidade de ocorréncias, que envolve tanto as in- dtistrias culturais como a pesquisa académica, fala simultaneamente de uma recepgio multifacetéria, de uma pluralidade de publicos, 16 Oespaco biogrifico leitores, espectadores, de um interesse sustentado e renovado nos infinitos matizes da narrativa vivencial. Embora no seja dificil expor as razdes dessa adesdo — a ne- cessdria identificagéo com outros, os modelos sociais de realizacao pessoal, , a aprendizagem do viver -, seu deslizamento cres- cente para os ambitos no que excede a simples proliferagao de formas dissimilares, os usos funcionais ou a busca de estratégias de mercado, para expressar uma tonalidade particular da subjetividade contemporanea. a intimidade fazem pensar num fendéme- E essa tonalidade que eu quis indagar no espaco deste livro. Esse algo a mais que est4 em jogo nao tanto na diferenga entre os géneros discursivos envolvidos, mas em sua coexisténcia. Aquilo co- mum que une as formas canonizadas e hierarquizadas a produtos estereot{picos da cultura de massas. O que transcende o “gosto” definido por parametros socioldgicos ou estéticos e produz uma res- posta compartilhada. O que leva repetidamente a recomegar o rela- to de uma vida (minucioso, fragmentdrio, caético, pouco importa seu modo) diante do préprio desdobramento especular: 0 relato de todos. O que constitui 10 “narrativa, esse que nunca se termina de contar. Privilegiei para isso a trama da intertextualidade em vez dos exemplos ilustres ou emblemdticos de bidgrafos ou autobidgrafos; a recorréncia antes da singularidade; ca hibridi- aap da “pureza” genérica; o deslocamento e a migrancia em vez das fronteiras estritas; em ultima instancia, a consideragao de um espaco biogrdfico como horizonte de inteligibilidade e nao como mera somatéria de géneros j4 conformados em outro lugar. E a partir desse espago, que se constituird ao longo do caminho, que proporei entao uma leitura transversal, simbdlica, cultural e politica das narrativas do eu e de seus intimeros desdobramentos na cena contemporanea. ‘Apresentasio 17 Breve histéria de um comego Em meados dos anos 1980, no ambito promissor da abertura democratica, comegaram a aflorar em nosso cenério cultural os debates em torno do “fim” da modernidade, que agitavam a refle- xdo em contextos europeus € norte-americanos. Apresentavam-se ali as (mais tarde) célebres argumentag6es sobre o fracasso (total ou parcial) dos ideais da Ilustragao, das utopias do universalismo, da razdo, do saber e da igualdade, dessa espiral ininterrupta e as- cendente do progresso humano. Uma nova inscri¢ao discursiva, ¢ aparentemente superadora, a “pdés-modernidade”, vinha sintetizar o estado de coisas: a crise dos grandes relatos legitimadores, a perda de certezas e fundamentos (da ciéncia, da filosofia, da arte, da po- \{tica), 0 decisivo descentramento do sujeito e, coextensivamente, a vilorizagdo dos “microrrelatos”, 0 deslocamento do ponto de mira onisciente e ordenador em beneficio da pluralidade de vozes, da hibridizagdo, da mistura irreverente de cdnones, retéricas, paradig- mas ¢ estilos.' " Remetemos aqui a alguns textos clissicos do debate modernidade/ pés-moder- nnidade dos anos 1980: J. E. Lyotard, A condigéo pés-moderna e La posmodernidad (explicada a los nifios); M. Bermann, Tudo que é sélido desmancha no ar: a aven- tura da modernidade; J. Habermas, “La modernidad, un proyecto incompleto”; P. Anderson, “Modernidad y revolucién’; G. Vattimo, O fim da modernidade; N. Casullo (org.), El debate modernidad/ posmodernidad, Com énfase no plano estético, podem ser assinalados a antologia de H. Foster, La posmodernidad; O. Calabrese, A Idade Neobarroca; F. Jameson, Ensayos sobre el posmodernismo; G. Lipovetseky, La edad del vacio; sem esquecer 0 papel pioneiro da arquitetura, 41 partir dos que foram verdadeiros marcos: R. Venturi, S. Izenur ¢ D. Scott Brown, Aprendiendo de Las Vegas; Ch. Jenks, Ellenguaje de la arguitectura posmo- derna. No Ambito da América Latina, N. Garcfa Canclini apresentou 0 debate sobre © multiculturalismo em Culturas hibridas. Em nosso meio, Beatriz Sarlo dliscutiu os paradigmas em jogo a partir de um olhar critico sobre a vida e a cultura urbanas em Cenas da vida pés-moderna ¢ Instantdneas. Medios, ciudad y costumbres en el fin de siglo. 18 — Cespaco biogritico A nova perspectiva, que comprometia a concepgao mesma do espacgo ptiblico segundo a classica ordem burguesa, incursionava, além disso, e nao tangencialmente, no campo da subjetividade. Os “pequenos relatos” narravam nao sé identidades ¢ histérias locais, re- gionalismos, linguas verndculas, mas também 0 mundo da vida, da privacidade e da afeico. QESSMOMORSUEROD- ¢ nao precisamente o da razao — aparecia exaltado, positiva e negativamente, como cor- relato da morte anunciada dos grandes sujeitos coletivos -@IBOWs 2 Enquanto isso, no espaco mididtico, um salto na flexibilizagao dos costumes, que comprometia os usos do corpo, o amor, a sexualidade, as relagGes entre as pessoas, parecia se insinuar, empurrando os limites de visibilidade do dizivel e do mostravel. Na aceleragao de um tempo jd marcado pelas novas tec- nologias da comunicagao, pela apropriagdo quase imediata do léxi- co especializado na fala comum, as manifestagdes dessas tendéncias apareciam como indiscerniveis de sua teorizacdo: um fenédmeno (um ritmo, uma “condigao pés-moderna”) era verdadeiramente descri- to — 4 maneira daquela “experiéncia vital” que significara, segundo Marshall Bermann ([1982] 1988), a modernidade — ou inventado, propondo novos decdlogos de (ir)reveréncia? Seja qual fosse a respos- ta—e o alinhamento a respeito —, 0 certo é que esse clima de época, de fortes questionamentos 4 doxa, estava marcado prioritariamen- te pelas profundas transformacoes politicas, econémicas e culturais que se tinham produzido no mapa mundial, esses “novos tempos” (Stuart Hall, 1990) do capitalismo péds-industrial e do “modelo ta- tcherista”, cujo devir sem pausa pode se adivinhar hoje, apesar de seus novos atavios, sob a metdfora da “globalizagao”. Se no plano da expectativa politica nosso contexto diferia do desencanto de outras latitudes — havia prementes valores coletivos e fundamentos a restituir, em termos de justiga e democracia —, nao parecia haver, no entanto, grande divergéncia quanto a gestao ptt blica da intimidade. Uma paulatina expansio de subjetividades ia se tornando perceptivel em diversas narrativas, das revistas de auto- Apresentasio 19 conhecimento as intimeras formas de autoajuda, da ressurreigao de velhos géneros autobiogréficos a uma audaz experimentagao visual. Certos tons da comunicagao midiatica eram particularmente elo- quentes a respeito: nao sé eram definidas ali as incumbéncias reno- vadas do “estado terapéutico”, as normativas da “vida boa” em voga, mas também amplas zonas da vida privada de funciondrios e notd- vis se transformavam cada vez mais em objeto preferido de tema- tizagdo, tornando por momentos impreciso 0 horizonte do puiblico na velha acepgao do interesse comum e da visibilidade democrati- ca. Fendmeno nao reduttvel s6 a qualidade da “polftica-espetaéculo”, «uc alcangou logo em nosso meio limites dificeis de superar, mas que vinha acompanhado de um “recolhimento” na cotidianidade, ho trabalho por conta prépria, na exaltagio dos valores e interesses privados e no credo da “salvagao” pessoal, ligado tanto 4 experiéncia traumatica da hiperinflagdo do final da década como 8 incipiente ada”, e posterior desmoronamento (privatizador), do Estado de hem-cstar, nos primeiros anos da década de 1990. No horizonte da cultura — em sua concepgao antropolégico- scmidtica —, essas tendéncias de subjetivagao e autorreferéncia, essas “tecnologias do eu” e do “si mesmo”, como diria Foucault ([1988] 1990), impregnavam tanto os hdbitos, costumes e consumos quanto 4 produgio midiatica, artfstica e literéria. Consequentemente, com a consolidagao da democracia brotava o democratismo das narrativas, essa pluralidade de vozes, identidades, sujeitos e subjetividades que pareciam confirmar as inquietudes de algumas teorias: a dissolugao do coletivo, da ideia mesma de comunidade, na mirfade narcisista do individual. sa contraposicao enviesada, frequentemente com tons Voie apocal{pticos, essa “perda” do espago puiblico classico em sua idea- lizada transparéncia diante da “invasao” da privacidade e, ao mes- io tempo, a incgavel atragdo que as novas formas despertavam em puiblicos © espectadores, que me levou a me interessar (interesse que nao deixava de ser também uma inquietude) pelo tema, a me 20 Oespaso bio colocar do lado “negativo” — e menos abordado — da antinomia, a tentar investigar nesse vértice aberto pela associacao usual, talvez nao inteiramente lfcita, entre “privado” e “privatizacao”. E ao me propor tal empresa, que supunha me confrontar com o multifa- cetdrio, com estranhas ligas entre tradigo e inovagao, o fazia sem renunciar a transitar por caminhos jé sinalizados pelos géneros ca- nénicos — a biografia, a autobiografia, o relatério etnografico etc. -, nao de modo prioritario nem excludente, mas dando passagem ao didlogo com essas maneiras outras de narrar. Seria possivel manter a classica linha diviséria entre puiblico ¢ privado? A expressao da subjetividade do privado (a exposicao da intimidade, as narrativas, os interesses, o “mundo privado”) era ne- cessariamente, em seu advir mididtico, outra face (indesejada) do fracasso das utopias sociais? E ainda, nesse caso, que tipo de valores entrava em jogo para concitar essa. ‘ian Tratava-se aD SSAA mana? Podiam ser pos- tulados, a partir de um pensamento da pluralidade e da diferenga, talvez o legado mais persistente dos enfoques “pés”, outras alterna- tivas, outros prismas para a leitura e a interpretacao? Essas interro- gages definiram, num primeiro momento, o territério aproximado da minha pesquisa. A definigéo do tema Apenas iniciada, a indagacao em torno das formas que o cres- cente processo de subjetivagao adotava se confrontou com uma hete- rogeneidade que evocava aquela qualidade inabarcavel da “fala” que levara Saussure a decreté-la “inanalisavel”. Onde “ler”, efetivamen- te, esse “retorno” do sujeito, essa famosa instauragao da privacidade como interesse prioritdrio da vida? Como distinguir, entre formas dissimilares, aquelas que estao concernidas pelo: mesmo objetivo? Apresentagio 21 (Que parametros privilegiar numa ordenagao? Como compatibilizar tegistros e estilos? Diante de toda a presung4o de um corpus, impu- nha-se a delimitagio de um universo. De tanto observar, confrontar variaveis, foram se perfilan- do alguns eixos ¢ tendéncias prioritérias: @§UDjetMeaaeIGUEIOS jas, seja na transmissao ao vivo das cameras ou na inscri¢ao da palavra gréfica, pela veraci- estan inpuna aferen core da Fe BA tvela compulsao de realidade assinalada pelo célebre con- ceito de “simulacro” de Baudrillard ({1978] 1984) — resguardo cfémero da devoragio mididtica — parecia se plasmar aqui sem descanso no nome préprio, no rosto, no corpo, na vivéncia, na ancdota oferecida & pergunta, as retéricas da intimidade. Perso- nalizagao da polftica, como havia sido observado pela sociologia, «ue substitu{a teses pragmaticas por vinhetas de cotidianidade, velhas e novas estratégias de autorrepresentagao de ilustres e fa- mosos, mas também vidas comuns oferecidas como espetdculo, no detalhe de sua infelicidade. Era a simultaneidade dessas formas, escritas ou audiovisuais, a tilidade de seus procedimentos, no ambito de géneros mais ou menos candnicos, e mesmo “fora de género” (Robin, 1996), que as tornava particularmente significantes. Narrativas do eu ao mesmo tempo divergentes e complementares, cuja enumeragio tateante es- ver: hocei no inicio desta apresentagao. Assim, evidenciou-se a pertinéncia de considerar essas for- mas nao sé em sincronia, mas em intertextualidade: mais do que tum mero repertério de ocorréncias, impunha-se uma articulagao que outorgava sentidos, GEMM. Deixando de lado o terreno da ficgao, objeto, neste caso, inabordavel, e evitando co- megar por uma forma classica — a autobiografia? — como principio ador, a ideia de un @QipagoMMRODIORRAfiy sc revelou altamente oud 22 Ocespaco biografico produtiva, enquanto horizonte analftico para dar conta da multi- plicidade, lugar de confluéncia e circula¢ao, @@SeMmelNameas nen ‘A expressao, tomada emprestada ilippe Lejeune (1980), vinha assim introduzir uma delimita- gio do universo. le A que remetia a denominagao “espaco biografico” de Lejeu- ne? Precisamente, a “um passo além” de sua tentativa infrutifera de aprisionar a “especificidade” da autobiografia como centro de um sistema de géneros literdrios afins. Nessa reflexao a posteriori, o autor se pergunta se o estudo de um género, ao menos em termos taxoné- micos, estruturais, nao se limitaria a dar conta de alguns espécimes ilustres ou exemplares, enquanto sua produtividade excede sempre as grandes obras. E assim que, em prol da pluralidade, e tentando inclusive apreender um excedente da literatura, ele chega formula- cao de um “espaco biogréfico”, para dar lugar as diversas formas que assumiu, com o correr dos séculos, a narrago inveterada das vidas, notaveis ou “obscuras”, dentre as quais a autobiografia moderna é apenas um “caso”. Apesar de seu cardter sugestivo, nao era esse espaco, concebido como um reservatério onde cada espécime fornece um “exemplo”, que convinha aos meus objetivos. O empréstimo — na verdade, qua- se metaférico — se abria, no meu projeto, a outro desenvolvimento conceitual: uma espacializagdo, como assinalei acima, onde conflu- fam num dado momento formas dissimilares, suscetiveis de serem consideradas numa interdiscursividade sintomatica, por si sé signi- ficantes, mas sem renunciar a uma temporalizacio, a uma busca de herangas genealogias, a postular relagdes de presenga e auséncia. Ao me propor ento esse estudo em seu desdobramento contem- poraneo, com aten¢ao na inovac¢ao mididtica, mas sem renunciar as inscrig6es cldssicas, ao propor uma articulagao néo determinada por dotes “intrinsecos” nem hierarquias entre narrativas que poderiam Por sua vez integrar outros agrupamentos, esse espaco biogrdfico se transformou para mim num ponto de partida e nao de chegada, Apresentagio 23. numa dimensao de leitura de um fendmeno de época, cujo tragado, cm virtude de minhas préprias hipéteses ¢ objetivos, devia ser defi- nido no curso de minha pesquisa. Do espago biogrdfico aos géneros discursivos Se o interesse em dar conta, em termos discursivos e nar- rativos, das formas de subjetivagao que contribufam para a afir- magiio de uma nova privacidade me conduziu ao espaco biogréfi- co, minha indagagio nao se esgotaria em sua configuracao geral. Antes, na interatividade dessas formas, nos diferentes suportes € estilos que me eram dados confrontar, desenhavam-se algumas li- nhas recorrentes que valiam a pena analisar em particular. Assim, loi panhando importancia, entre os diversos registros da expressao vivencial, a entrevista, um género sem dtivida predominante na comunicagao mididtica, que condensa admiravelmente os “tons” da época: a compulsao de realidade, a autenticidade, 0 “ao vivo”, a presenga. Na busca empreendida em torno dos novos acentos do eu, desse “retorno do sujeito” que pretendia fazer ouvir sua “prépria” palavra, © que seria mais préximo da voz (do corpo, da pessoa) do que ela, instaurada pela mais antiga e emblemdtica maneira de dialogar, raciocinar, trazer 4 tona, encontrar uma verdade? Se a entrevista revelara, no transcurso de pouco mais de um século, sua qualidade de veridicidade insubstituivel, transformando o velho modus socritico num género altamente ritualizado da informagao, sua correlativa encenagao da subjetividade, sua intrusdo na inte- tioridade emocional e na mintcia cotidiana das vidas (notdveis e “obscuras”), nao cra de modo algum uma aposta menor. Além do mais, cla aparecia, na dimensao sincrénica de nosso espago bio- piifice, como a forma de maior ubiquidade, capaz de apresentar sob os olhos o leque completo das posigdes de sujeito da sociedade “encarnado” cm sujeitos reais —, capaz de recorrer, em seu vai- vem dialog: as modulagoes do vivencial, da autobiografia EO, LO 24 Ocespago biogritico as memérias, do diario intimo a confissao. Tal densidade signifi- cante, escassamente abordada por estudos especificos, definiu meu interesse nessa direc4o. Mas se a entrevista midiatica oferecia um desfile inesgotavel de vidas ptiblicas, sem preconceito de se interessar também, oca- sionalmente, pelas vidas comuns, outra de suas formas se ocupava, com a mesma insisténcia, das vidas privadas, em sua dupla acep- G40, objeto improvavel de autobiografia. Delineava-se assim outra vertente positiva para 0 meu tema, dessa vez no terreno da interro- gacao cientffica: a dos relatos de vida, que inquietaram as ciéncias sociais desde os primeiros anos do século XX, na tentativa de apre- ender histérias ¢ memérias, de dar conta da espessura do social, e que continuam concitando de maneira crescente sua atenga0. De fato, os chamados “métodos biogréficos”, cujo recurso a entrevista € quase obrigatério, ocupam hoje uma posigao predominante na investigagao qualitativa, em sintonia com o interesse na voz e na experiéncia dos sujeitos e com a énfase testemunhal, essa verdadei- ra obsessio da meméria que os marcos simbdlicos do novo século e milénio nao cessaram de estimular. A curiosidade literdria, a midiatica e a cientffica e, ainda, es- ses dois polos arquetfpicos da experiéncia — as vidas “célebres”, que so por isso emblematicas ¢ se tornam objeto de identificagao, e as “comuns”, que oferecem uma imediata possibilidade de autorreco- nhecimento — conflufam dessa forma em nosso espaco, habilitando um olhar excéntrico sobre as novas maneiras como o biogrdfico se integra naturalmente no horizonte da atualidade. Assim, a insistén- cia na exposi¢ao ptiblica da privacidade, de todos os tons possfveis das historias de vida e da intimidade, nessa hibridizacao que desafia a fronteira entre os géneros consagrados e as reelaborages periddi- cas, irreverentes ou banais, longe de aparecer simplesmente como um desdobramento casual na estratégia de captacdo de espectadores, investia-se de novos sentidos e valoragées, tragando figuras contras- tantes da subjetividade contemporanea. Apresentagio 25 Nao se tratava, evidentemente, nessa trama muiltipla que nos- so espaco ia revelando e, menos ainda, no estudo da entrevista como um género nfo espectfico, embora obstinadamente biogréfico, de voltar 4 busca de singularidade, ao caso “representativo”, a “essén- cia” do género entendido como uma normativa que “desaloja” o de- sajuste, 0 excesso ou a contravengio. A prépria concepgao de género discursivo como heterogeneidade constitutiva, tomada de Bakhtin (Estética da criagdo verbal, [1979] 1982), desautorizaria semelhante pretensao. Era antes a produtividade do uso dos géneros num conjun- to amplo de ocorréncias, o didlogo intertextual suscitado por eles, sua especificidade somente relativa, seus deslocamentos metonimi- cos, 0 que me interessava analisar. Que modelos de vida se desdobram nesse leque de figuras, célebres e comuns? Que orientagées valorativas acarretam as respec- tivas narrativas? Que diferenga a entrevista introduz a respeito de outras formas biogrdficas? Que posiges (dialdgicas) de enunciacao constréi? Como se narra a vida “a varias vozes”? Como se tece 0 trabalho da identidade? Que distingdes podem ser postuladas entre “umbrais” da interioridade — {ntimo/privado/biogréfico? Como se articula o fntimo com o publico, 0 coletivo com o singular? Essas perguntas tragam em linhas gerais o caminho de minha pesquisa, caminho realmente pouco explorado, com certa semelhan- a e maior divergéncia, em relacdo 4 narraco tradicional das vidas ilustres, que privilegia os procedimentos retéricos, a exaltagao poéti- ca do eu, a hierarquizagao da escrita, a verificacao cientifica ou his- toriogrdfica dos “ditos” e apela, consequentemente, para sua leitura, a horizontes de expectativa, também canonizados. O corpus da andlise Se a nogao de espaco biografico me levara a delimitar um uni- verso, 0 que agora ia me conduzir & conformagao de um corpus era a focalizagao em narrativas mididticas e cientificas. Atenta ao “devir 26 Cespaso biogritico biogréfico” da entrevista na mfdia, e embora as ocorréncias desse tipo costumem acontecer em qualquer intercambio, considerei re- levante organizar um corpus com certa homogeneidade — tematica, pragmdtica, do tipo de suporte em questao —, tomando varias das principais antologias em livro — quer dizer, dotadas de uma “se- gunda vida” editorial — de entrevistas publicadas nos tltimos anos (com excegdes) disponiveis em nosso cendrio atual. Dessa selegao, recortei um conjunto de entrevistas com escritores, que considero duplamente emblematicas pelo mito da “vida e obra” e por se tra- tar de quem cria por sua vez relatos diversamente autobiogréficos, a que dediquei um capitulo em particular. Um corpus acessério, que avaliza algumas afirmag6es que dizem respeito ao campo cultural, est formado pelos suplementos culturais de trés grandes jornais (La Nacién, Clarin, Pdgina/12), numa periodizagao ampla, com intermi- téncias, que abarca o ultimo lustro. Finalmente, QS nUaORODEEEOMENED construf GREE dlessa vez, de entrevistas biogréficas recolhi- das no curso de uma pesquisa sob minha orientacAo,? que adquiriam também desse modo uma “segunda vida”, para além dos resultados especificos que haviam langado naquele momento. Essa pesquisa abordara a questo de um: )”, cuja marca pare- ceu operar como base da onda emigratéria que, nos tiltimos anos da década de 1980, com a hiperinflacdo, marcara 0 “retorno” de descen- dentes de italianos & terra de seus ancestrais. No presente trabalho, e sem desvio daqueles objetivos iniciais, os relatos selecionados vém responder, em alguma medida, as interrogacGes aqui apresentadas, vém dar conta de certos modelos coletivos, vam dar testemunho da GQRARAGEED dos mecanismos curiosos de “outorgar sentido” a uma vida por meio da narraco sob solicitagao académica. Mas nossa 2 A pesquisa Meméria biogrdfica e identidade foi desenvolvida no Instituto Gino Germano, da Faculdade de Ciéncias Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA), com 0 apoio da UBACYT, durante 0 periodo de 1991 a 1993. Apresentagio 27 releitura aponta, além disso, para outro dos objetivos de nosso traba- tho: a postulagao de uma perspectiva de andlise discursiva e narrativa original, que sugere a possibilidade — e mesmo a necessidade — de ir, numa materia sensfvel como a biogréfica, para além dos limites dos diversos enfoques conteudisticos. O caminho da pesquisa Qual a relevancia desse tema? Em que campos de questdes vem intervir e a partir de que rastros? Que objetivos, que contribui- Ges apresenta? Em primeiro lugar, sua formulagao mesma constitui uma contribuicgéo, na medida em que envolve uma combinatéria inabitual de aspectos e saberes. Efetivamente, minha perspectiva, que se apresenta como uma indagacao sobre a dimensao significante num horizonte cultural de- terminado, incorpora varidveis histéricas do campo da sociologia e da filosofia polftica, da teoria e da critica literrias, da linguistica, da semidtica, da pragmatica e da narrativa. E essa incorporagdo, em virtude de interesses e objetivos definidos, nao supe simplesmente uma “somatéria”, mas uma articulagdo, ou seja, uma busca reflexi- va de compatibilidades conceituais, em varios casos inovadora, que nao sutura evidentemente as diferengas. Essa perspectiva de andlise cultural se especializa, por assim dizer, no ultimo trecho do trabalho, como metodologia de andlise discursiva, apta a dar conta dos relatos de vida nas ciéncias sociais. Pontos de partida Na medida em que as formas que podem ser inclufdas no espa- ¢o biogréfico oferecem, segundo minha hipétese, uma possibilidade articuladora sincrénica e diacrénica, impée-se uma busca geneald- gica que — sem pretensao de “esséncia” ou de verdade — torna inte- ligivel seu devir atual. Essa busca conduz, de modo inequivoco, ao 28 Ocspaso biogrifico horizonte da modernidade. Efetivamente, é no século XVIII, com a consolidagao do capitalismo e da ordem burguesa, que comega a se afirmar a subjetividade moderna, por meio de uma constelagao de formas de escrita autégrafa, que sao as que estabelecem precisamen- te o canone (confiss6es, autobiografias, didrios {ntimos, memérias, correspondéncias), e do surgimento do romance “realista”, definido justamente como ficgao. O retorno a essas “fontes” do eu, a essas ret6ricas e valores talvez reconheciveis, nao s6 envolveu uma pers- pectiva histérica e sociolégica (Aris e Duby, [1985] 1987; Elias, [1977-1979] 1987), que recolhia também ecos de ancestrais mais re- motos (Santo Agostinho, [397] [1970] 1991; Bakhtin, [1975] 1978; Foucault, [1988] 1990), mas também abriu uma vertente dupla de andlise critica para meu trabalho: 1) as conceitualizagées filosdfico- politicas cldssicas em torno das esferas do puiblico e do privado e 2) as da critica literdria sobre as valéncias particulares desses géneros, sua distingao possfvel dos considerados “ficcionais” e a sobrevivéncia nas formas contempordneas. No primeiro caso, tratava-se de ir além da cldssica antinomia entre ptiblico e privado, em que um dos termos implica certa nega- tividade (Arendt, [1958] 1974; Habermas, [1962] 1990) para pos- tular, pelo contrdrio, um enfoque no dissociativo entre ambos os es- pagos, que permitisse considerar a crescente visibilidade do {ntimo/ privado — complexamente articulada, além disso, com a invisibilida- de dos interesses privados — nao como um excesso, uma causa desesta- bilizadora de um equilibrio “dado”, mas como consubstancial a uma dinamica dialdgica e historicamente determinada, em que ambas as esferas se interpenetram e modificam, sem cessar. Nessa dinamica, segundo minha hipstese, 0 biogréfico se define justamente como um espaco intermedidrio, 4s vezes como mediagio entre publico e privado; outras, como indecidibilidade. No segundo caso, tratava-se também de superar os limites de alguns estudos classicos sobre a especificidade da autobiografia (Sta- robinski, [1970] 1974; Lejeune, 1975), como eixo de um “sistema” Apresentagio 29 de géneros afins, pela confrontagao com outros paradigmas da teoria e da critica literérias, que nos permitissem chegar a uma definicao mais satisfatéria para nossos objetivos. J4 aludimos na secao anterior a diferenga qualitativa que supde nossa concepgio do espago autobio- grafico a respeito da de Lejeune. Completaremos agora esse tragado tedrico, no que constitui a segunda operagAo conceitual deste estudo. Articulagées conceituais No horizonte histérico do espago biogrdfico, marcado pelo gesto fundador de As confissdes de Rousseau, desenham-se tanto a si- Ihueta do grande homem, cuja vida aparece inextricavelmente ligada ao mundo e sua época (0 exemplo de Goethe, segundo Weintraub), quanto a voz autocentrada que dialoga com seus contemporaneos (leitores, pares) e/ou com a posteridade, nas autobiografias que apa- recem como “modelo” do género, mas também a errancia, 0 desdo- bramento, o desvio, a mascara, as perturbagées da identidade. E essa diversidade narrativa — e nado uma suposta homogeneidade genérica que opera como base de nosso espago — que, na medida em que pro- pomos incursionar em terrenos pouco explorados, requererd por sua vez novas “tecnologias”. Assim, nosso enfoque incorpora de maneira decisiva a teoria bakhtiniana dos géneros discursivos como agrupamentos marcados constitutivamente pela heterogeneidade e submetidos a constante hibridagao no processo da interdiscursividade social, e também a consideracao do outro como figura determinante de toda interlocu- gio. O dialogismo, como dinamica natural da linguagem, da cultura e da sociedade, que inclusive autoriza a ver dessa maneira o trabalho mesmo da raz4o, permite justamente apreender a combinatéria pe- culiar que cada uma das formas realiza. Por outro lado, a concep- ao bakhtiniana do sujeito habitado pela alteridade da linguagem, compativel com a psicandlise, habilita a ler, na dinamica funcional do biografico, em sua insisténcia e até em sua saturacéo, a marca da 30 Oespaco biogritico falta, esse vazio constitutivo do sujeito que convoca a necessidade de identificagao ¢ que encontra, segundo minha hipétese, no va- lor biogrdfico — outro dos conceitos bakhtinianos — enquanto ordem narrativa e atribuigdo de sentido a (prépria) vida, uma ancoragem sempre renovada. Essa interpretagao do paradigma bakhtiniano em virtude de meu objeto de estudo postula, além disso, a confluéncia de duas linhas do pensamento do teédrico russo que habitualmente nao sao consideradas simultaneamente: a do dialogismo e a das formas lite- rarias biogrficas,’ de corte mais filoséfico-existencial. Essa sintonia, plenamente justificada ao longo de meu trabalho, permitiu alcangar conclusées mais matizadas. Também a contribuigao de Paul de Man (1984), a respeito da ideia de um “momento” autobiografico, mais do que um “género” — como figura especular da leitura, suscetivel de aparecer em qual- quer texto —, foi objeto de reelaboracao, sobretudo para a apreensio dessa deriva de motivos e momentos, esses deslocamentos retéricos, metonimicos, que tendem ao biogrdfico sem “constitui-lo”, dinamica nitidamente perceptivel no horizonte mididtico, e que a entrevista transformou em procedimento habitual. Meu dominio de interesse integrou do mesmo modo outra vertente de grande produtividade, a da narrativa. No caminho mf- tico tragado por Barthes ([1966] 1974) € seus ecos estruturalistas e “pos”, efetuei uma leitura de Ricoeur (1983, 1984, 1985, 1991) centrada em sua analftica da temporalidade, sobretudo em sua visio do tempo narrativo e da funcdo configurativa da trama no relato (de uma vida), para confrontar seus postulados no funcionamento do espaco biogréfico, propondo da minha parte uma confluéncia com © paradigma bakhtiniano no njfvel da ética. Na mesma diregao, tra- 3 Nora Catelli (1991), por exemplo, deixa de lado explicitamente o dialogismo, utilizando em sua indagacao sobre a autobiografia apenas 0 segundo aspecto mencionado. Apresentagio 31 balhei seu conceito de identidade narrativa com relacao as diversas formas de apropriagao do eu e as posigées identitdrias construidas em meu corpus de andlise, o que supés um interessante campo de “prova” ¢ experimentagao. Foi precisamente a aposta ética da narra- tiva, levada a um grau maximo no registro biogréfico, que permitiu encontrar um nexo inteligivel para dar conta da “positividade” que assume, na reflexo contemporaine SETTER en - 90 ERE 2 amp 0s novos para o social, para a busca de valores compartilhados e de novos sentidos de comunidade e democracia. Definido 0 espago, interessou-me abordar o funcionamento cm particular de algum de seus registros. A escolha como objeto de estudo da entrevista mididtica enquanto devir biogrdfico, apesar de no ser considerada sob tal “especialidade”, foi inspirada por um trabalho anterior, onde analisara sua configurago enquanto género discursivo. Naquela etapa, perfilara-se a qualidade (inter)subjetiva do género, sua virtualidade biogrdfica, isto é, seu dom peculiar de induzir, mesmo direcionada para outros objetivos, a exposigao da in- terioridade, da afetividade, da experiéncia. Retomando esas linhas, aprofundei-me agora nos temas especificos apresentados aqui, cons- tituindo um novo corpus, que inclui um agrupamento particular de entrevistas a escritores. Essa ancoragem numa forma midiatica de tal relevancia quan- to ao prestigio institucional, aos puiblicos e as audiéncias me per- mitiu ao mesmo tempo deslocar certos acentos predominantes em algumas andlises sociolégicas ou mididticas sobre a expansao do pri- vado no puiblico, em termos de manipulacio ou sedugo, em direcio a. uma interpretagao mais matizada, que remete antes a um comple- xo — e contraditério — processo de reconfiguragao da subjetividade contemporanea. Assim, 0 espago biogréfico, tal como 0 concebemos, nao somente alimentard “o mito do eu” como exaltagao narcisista ou voyeurismo — tonalidades presentes em muitas de suas formas —, mas operard, prioritariamente, como ordem narrativa e orientagao ética 32 Ocespaco biogrifico nessa modelizacao de hdbitos, costumes, sentimentos e praticas, que € constitutiva da ordem social. Finalmente, o quarto momento de minha indagacao remete aos relatos de vida nas ciéncias sociais, que contam com uma longa tradi- Gao de estudos tedricos e trabalhos de campo, num leque disciplinar multifacetado, que vai da antropologia 4 sociologia, passando pela histéria oral e os estudos culturais. Nao se tratava, entao, de construir um “novo” objeto, mas antes de abordar criticamente alguns proble- mas com frequéncia insuficientemente considerados — sobretudo no que diz respeito 4 voz do outro —, em consonancia com nosso préprio percurso conceitual. Assim, partimos da hipétese da complementari- dade desses relatos, no plano do discurso social, em relagdo aos que se tecem na midia e, por que nao, na literatura. Complementarida- de igualmente quanto aos usos da entrevista, que habitualmente sao vistos como estranhos uns aos outros (os mididticos, os cientificos), mas que, olhados de outra ética, revelam certa indole comum, sus- cetivel inclusive de ser aproveitada, em seus mtiltiplos recursos, na investigac4o académica. Consideramos relevante, por outro lado, nes- sa sintonia inusual, incorporar na perspectiva teérica dos chamados “enfoques biogréficos” tanto a concep¢ao bakhtiniana do dialogismo e da alteridade quanto uma teoria do sujeito que considere seu carater nao essencial, seu posicionamento contingente e mével nas diversas tramas em que sua voz se torna significante. O enfoque narrativo que construimos se revela igualmente apto a esse empenho. No tiltimo trecho de meu trabalho, realizo a andlise de um cor- pus de entrevistas biogréficas, construfdo no ambito de uma pesquisa sob minha orientacdo. Para além do que foram na época seus “resul- tados”, em termos de seus objetivos espectficos (Arfuch, 1992c), esse corpus foi retomado aqui em sintonia com nosso percurso tematico, tedrico e metodolégico, Tratando-se de um corpus homogéneo, no que diz respeito 4 problemitica, aos personagens e ao questiondrio semidirecionador que sustentava a entrevista, permitiu-me avangar mais um passo em diregao & andlise do discurso, numa reelaboracao Apresentagio 33 pessoal a partir da orientacéo marcada pela chamada “escola france- sa”, Integrava-se aqui naturalmente, como na anilise das entrevistas mididticas, além dos paradigmas j4 explicitados, a tradicao antirre- presentacionalista, de Wittgenstein a Austin, sem esquecer Benve- niste, que enfatiza o cardter criador, transformador da linguagem, as implicag6es da a¢ao linguistica. Assim, nesse entrecruzamento de perspectivas, a narragao de uma vida, longe de vir a “representar” algo ja existente, impde sua forma (e seu sentido) a vida mesma. Minha leitura interpretativa de ambos os corpi (entrevistas mi- diaticas e relatos de vida nas ciéncias sociais) propde entao um salto qualitativo, “um passo além” dos enfoques conteudisticos tradicionais. Mas, longe de servir simplesmente de exemplos para a teoria, ou de “casos” para uma descri¢do, transformam-se, na minha ética, em espa- ¢os emblemdticos, tramas culturais de alta densidade significante, capa- zes de iluminar, mesmo em pequena escala, uma “paisagem de época”. Os capitulos Podemos sintetizar agora as etapas de nosso itinerdrio. O pri- meiro capitulo se inicia com um tracado genealégico, relevando os antecedentes histéricos das formas autégrafas que se tornaram “ca- nénicas”, para continuar em seguida com a apresentagao critica dos paradigmas da critica literéria em torno da autobiografia. Desen- volvo depois minha prépria delimitagao do espago biogrdfico con- temporaneo, explicitando a concepgio de sujeito que guiar4 minha indagacao. No segundo capitulo, detenho-me no exame critico de dois paradigmas cl4ssicos em torno do publico e do privado, o de Arendt ¢ o de Habermas, em virtude do peso que ambos outorgam a essa tiltima esfera, que é a que me interessa particularmente. Apresento em seguida uma visao nao dissociativa de ambos os espagos, em ar- ticulagdo com a “civilizagao tecnolégica”, para indagar sobre o papel peculiar das formas biogrdficas na constituicao dos espagos. 34 Ocspacobiogrifico GREED. propose um 2 re Son GROM rativa, para culminar com a lgumas dis- ting6es entre formas genéricas do espaco biografico. O quarto est4 dedicado ao estudo da construgao biogrdfica efetuada pela entrevista midiatica, por meio da andlise do corpus construido. Trabalho so- bre a nocao bakhtiniana de cronotopo, como investimento temporal, espacial afetivo que dé sentido 4 narragao, organizando assim os diferentes motivos nos quais se plasma o relato do eu e da experién- cia pessoal na entrevista. Dou conta igualmente de certas légicas de modelizagao que operam de maneira especifica. No quinto capitulo, dedico-me em particular a um (sub)cor- pus de entrevistas realizadas com escritores, como caso paradigmé- tico em relag4o & voz dos que criam, por sua vez, vidas e obras no trabalho — sempre misterioso — da imaginagao. Assinalo, assim, al- guns mecanismos especificos que constituem a prépria configuragao do campo da leitura enquanto horizonte de expectativa que envolve autores ¢ leitores. A trama das vozes escolhidas tecerd, ndo por acaso, um texto tedrico sobre a autobiografia. No sexto capitulo, abordo um percurso critico em torno dos en- foques biogréficos nas ciéncias sociais, enfatizando a necessidade de considerar 0 trabalho com a voz do outro autorreflexivamente, sem des- cuidar do que é posto em jogo da linguagem e da trama narrativa, mas ao mesmo tempo sem ingenuidade a respeito de sua “transparéncia”. Finalmente, no sétimo capitulo, analiso o j4 mencionado cor- pus de entrevistas biogrdficas em torno da emigracao. O estudo de caso pde em questéo uma metodologia de andlise que envolve os postulados teéricos explicitados e que considero uma contribuigao original. No entanto, esse caminho da leitura também vai além de si mesmo, para dar conta, nitidamente, do deslocamento identitario que se produz na narragao vivencial, ligado aqui a relatos da emigra- ao, mas que fala, paradigmaticamente, do cardter migrante de toda identidade. 1. O espaco biografico: mapa do territério O primeiro explorador claro, e em certo grau inclusive tedrico, da intimidade foi Jean-Jacques Rousseau [...]. Ele chegou & sua desco- berta através de uma rebeliao, nao contra a opresséo do Estado, mas contra a insuportével perversdo do coracéo humano por parte da sociedade, sua intrusdo nas zonas mais intimas do homem que até entio nao haviam precisado de protegao. [...] O individuo moderno € seus intermindveis conflitos, sua habilidade para se encontrar na sociedade como em sua prépria casa ou para viver por completo & margem dos outros, seu cardter sempre cambiante e 0 radical sub- jetivismo de sua vida emotiva nasceram dessa rebelido do coracio. Hannah Arendt, A condigao humana A narrag’o da prépria vida como expresso da interioridade e afirmacio de “si mesmo” parece remeter tanto a esse cardter “univer sal” do relato postulado por Roland Barthes ([1966] 1974) como a “jlusdo de eternidade” que, segundo Philippe Lejeune (1975), acom- panha toda objetivacao da experiéncia. No entanto, a aparigao de um “eu” como garantia de uma biografia é um fato que remonta a pouco mais de dois séculos somente, indissocidvel da consolida- gio do capitalismo e do mundo burgués. Efetivamente, é no sé- culo XVIII — e, segundo certo consenso, a partir das Confissdes de Rousseau — que comega a se delinear nitidamente a especificidade 36 — Ocspaco biogrifico dos géneros literdrios autobiogrdficos, na tensdo entre a indagacao do mundo privado, a luz da incipiente consciéncia histérica moder- na, vivida como inquietude da temporalidade, e sua relagéo com © novo espago social.' Assim, confiss6es, autobiografias, memérias, didrios {ntimos, correspondéncias tragariam, para além de seu va- lor literdrio intrinseco, um espago de autorreflexao decisivo para a consolidacao do individualismo como um dos tragos tipicos do Oci- dente.* Esbogava-se, desse modo, a sensibilidade prépria do mundo burgués, a vivéncia de um “eu” submetido a cisdo dualista (ptibli- co/privado, sentimento/razao, corpo/espirito, homem/mulher), que precisava definir os novos tons da afetividade, o decoro, os limites do permitido e do proibido e as incumbéncias dos sexos, que, no século XIX, se consolidariam sob o signo da desigualdade, com a simbolizagao do feminino como consubstancial ao reino doméstico. Essa construgao narrativa do privado como esfera da intimi- dade — outra face de um espaco puiblico que se afirmava na dimensao dupla do social ¢ do politico — foi muito além de sua configuragao primigénia. Se a nascente primeira pessoa autobiogrdfica vinha dar testemunho da consciéncia feliz com uma “vida real”, sua expan- sao para outros registros e seu desdobramento em vozes miltiplas imagens de valor “testifical” (Geertz, [1987] 1989, p. 83)? nun- ca cessaram: aqueles géneros literdrios, instituidos j4 como praticas obrigatérias de distingao e autocriacdo (vidas filoséficas, literdrias, Ver Philippe Aris e Georges Duby ({1985] 1987), especialmente seu artigo “Précticas de lo escrito” e os de Orest Ranum, “Los refugios de la intimidad”; Madeleine Foisil, “La escritura del ambito privado”; Jean Marie Goulemot, “Las pricticas literarias 0 la publicidad de lo privado”. Ver a respeito Lautobiographie et V'individualisme en Occident, Décade du Collo- que de Cérissy, 10-20 de julho de 1979. ‘Tomamos a acep¢i0 no jogo fonético que faz Clifford Geertz sobre uma ex- pressio de Malinowski (I witnessing! eye-witnessing) que reforga a ideia do “tes- temunho ocular”, o que resultard sumamente pertinente, como veremos, para a consideragao do espaco biogréfico em nossa cultura visual/ televisiva. O espaco biogrifico: mapa do territério 37 politicas, intelectuais, cientfficas, artfsticas...) e, consequentemente, como testemunhos inestimaveis de época, cujo espectro se amplia- ria em seguida em virtude da curiosidade cientifica pelas vidas co- ns deadobramse je numa quantiade de variants eric ss pee come formas afin com os lsc relatos de vida das ciéncias sociais, com uma espécie de obsessao generalizada na escrita, nas artes plasticas, no cinema, no teatro € no audiovisual pela expressao mais imediata do vivido, do auténtico, do testemunhal. O avanoo irrefreavel da midiatizag4o ofereceu um cendrio pri- vilegiado para a afirmacao dessa tendéncia, contribuindo para uma complexa trama de intersubjetividades, em que a superposi¢ao do privado sobre o ptiblico, do gossip — e mais recentemente do reality show — a politica, excede todo limite de visibilidade. Esse fenémeno poderia ser considerado uma reconfiguragao da subjetividade contemporanea, em sintonia com 0 momento de inflexao que marcara o surgimento dos géneros autobiograficos? E plausfvel postular um espaco comum de intelec¢ao dessas narrativas diversas que, sem perda de especificidade, seja capaz de dar conta de deslocamentos, semelhangas, mutagées de formas e de significados? Essas interrogagGes sao as que guiam © presente capitulo, em que, a partir de uma breve genealogia da escrita autobiogrdfica da modernidade, apresentarei criticamente alguns enfoques cldssicos em torno da autobiografia como eixo hi- potético de um “sistema de géneros”, para propor, por ultimo, uma nova perspectiva tedrica que permita integrar compreensivamente, no horizonte mais amplo da cultura, a disseminagao atual de géne- ros discursivos que focalizam, com maior ou menor intensidade, a narrativa vivencial. Mas como definir essa narrativa? Embora o termo “vivén- cia” e suas formas derivadas estejam incorporados com toda a naturalidade ao uso corrente, parece-nos pertinente remeter aqui a uma andlise realizada p@RGARSEGESIUGAAARED numa linha 38. Ocspaso biogrifico hermenéutico-fenomenoldgica, na medida em que suas distingdes conceituais contribuem em boa medida para nosso tema. O autor assinala que o uso frequente do termo “vivéncia” (Erlebnis) no 4m- bito alemfo se dd apenas nos anos 1870, precisamente como um eco de seu uso na literatura biografica. Seu termo de base (Evleben) ja era utilizado no tempo de Goethe com um duplo matiz: o de “compreensao imediata de algo real, em oposicao aquilo do qual se cré saber algo, mas ao que falta a garantia de uma vivencia propria”; eo de “designar o contetido permanente do que foi vivido”. E jus- tamente essa dupla vertente que teria motivado em primeiro lugar a utilizagao de Erlebnis na literatura biogrdfica. Dilthey retoma a palavra num artigo sobre Goethe, que reconhecera que toda a sua obra poética tinha o cardter de uma confissao, e no uso filoséfico que faz dela; nesse caso, nao apenas aparecem nela ambas as ver- tentes — a vivéncia e seu resultado —, e ela adquire estatuto episte- molégico, na medida em que passa a designar também a unidade minima de significado que se torna evidente a consciéncia, em subs- tituigdo a nogao kantiana de “sensacgao”. A vivéncia, pensada entio como unidade de uma totalidade de sentido em que intervém uma dimensio intencional, é algo que se destaca do fluxo do que desapa- rece na corrente da vida: O vivido é sempre vivido por nés mesmos, e faz parte de seu signi- ficado que pertenga & unidade desse ‘nés mesmos’. [...] A reflexo autobiogréfica ou biogréfica na qual se determina seu contetido significativo fica fundida no conjunto do movimento total que ela acompanha sem interrupgéo. Analisando esse duplo movimento, Gadamer distingue “algo a mais que pede ser reconhecido [...]: sua referéncia interna a vida”. Mas essa referéncia nao é uma relacdo entre o geral e o particular; a unidade de sentido que é a vivéncia “se encontra numa relagdo ime- diata com 0 todo, com a totalidade da vida”. Gadamer remete aqui a © espace biogrifico: mapa do territério 39 Simmel, cujo uso frequente de Erlebnis o faz em boa medida “res- ponsdvel por sua transformagao em palavra da moda”, para enfatizar esse “estar a vida voltada para algo além de si mesma”. Concepga0 transcendente que Gadamer sintetiza com palavras de Schleierma- cher: “Cada vivéncia é ‘um momento da vida infinita””. Se a vivéncia est “pingada” da continuidade da vida e ao mesmo tempo se refere ao todo dela, a vivéncia estética, por seu impacto peculiar nessa tota- lidade, “representa a forma essencial da vivéncia em geral’ (Gadamer, [1975] 1977, pp. 96-107; 0s itdlicos séo meus). Esse além de si mes- ma de cada vida em particular é talvez o que ressoa, como inquietu- de existencial, nas narrativas autobiograficas. Genealogias Se situarmos a conformagao do espago da interioridade numa dimensio histérica, talvez devamos recuar, com Norbert Elias ({1977-1979] 1987), até esse momento fundacional do “processo de civilizacao” no qual o Estado absolutista comega a se afirmar na tentativa de pacificagao do espago social, relegando as expressGes violentas e pulsionais a outro Ambito, pela imposicao de cédigos de comportamento coercitivos que, a partir da corte, seriam assu- midos pelas demais camadas sociais. E essa imposigao que funda a esfera do privado como “uma maneira nova de estar em socieda- de, caracterizada pelo controle mais severo das pulsées, 0 domi- nio mais firme das emogGes e a extensao da fronteira do pudor” (Chartier [1985] 1987, p. 22). Nessa nova “economia psfquica”, as mutagoes do Estado transformariam radicalmente as estruturas da personalidade. Dessa ética, é relevante a andlise de prdticas e escritas tanto da “literatura de civilidade”, pega fundamental no magno estudo de Elias (tratados, cédigos, manuais de etiqueta, conselhos e maximas, provérbios, sentengas, fébulas, mas também representagoes do ros- to, do corpo e da gestualidade), quanto da literatura autégrafa, em 40 Ocspaco biogrifico que se articulava, com propésitos diversos, a relagio incipiente entre leitura, escrita e conhecimento de si.‘ Praticas que, alentadas pela alfabetizagao e as novas formas de religiosidade, desenhavam nao s6 0 espago interior do pensamento e da afetividade, mas também 0 ambito fisico da moradia apta para abriga-las: a alcova, o esttidio, a biblioteca. Sao essas praticas de escrita autégrafa, ancestrais distantes de nossos géneros contemporaneos, que nos interessam em particular. Surgidas com a descoberta de um estado até entéo inabitual, a soli- dao’ — sob o amparo do segredo -, a leitura silenciosa, a meditacao, 4s vezes somente como um arremedo da oralidade, as anotagées que subsistem para o olhar de etndlogos, historiadores ou criticos liter4- rios testemunham uma espécie de infancia da subjetividade. Num leque heterogéneo, sem umbrais muito nitidos, coexistem as mem6- rias classicas de personagens ptiblicos centradas em seu cardter de Protagonistas em acontecimentos de importancia com memérias nas quais come¢a a despontar a propria personalidade, com os “livros de tazio” (livres de raison), obstinados cadernos de contas ou registros de tarefas, que de repente se tornam uma narra¢io sobre a vida co- tidiana, com os didrios {ntimos confessionais, que nao s6 registram acontecimentos da fé ou da comunidade, mas comegam a dar conta Michel Foucault, em Tecnologias de si ({1988] 1990), analisa as praticas de escrita na Antiguidade que tendem ao “cuidado de si”, considerando a obra autobiogréfica de Marco Aurélio, as cartas de Séneca e as Confissées de Santo Agostinho etapas nesse caminho de reconhecimento interior que adquiriria outra tonalidade com a confissao cristé o arrependimento, levando paulati- namente, na modernidade, ao primado do “conhecimento de si”. Sobre a “invengio” da privacidade, escreve Ariés: “Até o final do século XVII ninguém ficava a sés. A densidade social impedia o isolamento e se falava com encémio daqueles que haviam conseguido se trancar num quarto quente ou numa sala de trabalho durante bastante tempo” ([1985] 1987, p. 527), citado em Taylor ({1989] 1996, p. 309). O espaso biogrifico: mapa do errtério 41 do mundo afetivo de seus autores.° Transitos lentos, emaranhados, “mescla de praticas”, segundo a expresséo de Chartier, que, de um extremo ao outro do arco vivencial, do sagrado ao profano, teriam uma relevancia insuspeitada na construcdo do imagindrio da moder- nidade,’ Do lado do sagrado, a persisténcia do modelo das Confissbes de Santo Agostinho (c. 397) dava por certo sua precedéncia em relagao ao achado de um eu, embora sua preocupagao fosse menos a singu- laridade da vida terrena do que a virtude piedosa da comunidade. Apesar da énfase outorgada ao trajeto da conversao, apesar da estra- nheza que reveste em seu préprio tempo histérico a ideia mesma de “subjetividade”, ainda hoje esse modelo continua constituindo, para alguns autores, o paradigma de toda historia autobiogréfica.* J. Stur- © Charles Taylor assinala a importancia da autoexplicagao como parte da discipli- na confessional tanto catdlica como protestante, que deu origem & pritica do di- 4rio intimo. © autor inclui a esse respeito uma citagéo de L. Stone: “Desde 0 século XVII em diante, explodem sobre o papel torrentes de palavras acerca dos pensamentos ¢ sentimentos intimos, escritas por um ingente ntimero de ingleses extremamente comuns, homens ¢ mulheres, a maioria deles de uma aumentada orientagao laica’ [...] a cultura protestante de introspecgao se seculariza na forma de autobiografia confessional” ({1989] 1996, p. 200; a citagao de Stone ¢ de Family, sex, and marriage in England, 1500-1800. Londres: Weidenfeld, 1977, p. 228). 7 M. Foisil ([1985] 1987, p. 322) remete ao Diciondrio Furetitre, de 1690, para a definigio desses géneros em sua época: as memérias aludem aos livros de histo- riadores escritos “por aqueles que participaram nos assuntos ou foram seus tes- temunhos oculares ou contém sua vida ¢ suas principais ages”; o Livre de raison €0 livro do “bom admirador ou comerciante”, em que ele anota “para justificar para si mesmo todos os seus negécios”. A autora enfatiza a diferenca entre essas memérias ~ que remetem a empreendimentos politicos, diplométicos, militares ¢, consequentemente, a vida ptiblica — ¢ a autobiografia ou as memérias auto- biogréficas, que se desenvolverdo posteriormente. ® Nas Confissoes (c. 397, [1970] 1991), tipico relato de conversio, a narragdo da vida se orienta pelo argumento e pela demonstragio da verdade divina diante da duivida, da ambiguidade ¢ das cambiantes impresses da vida humana. Nesse sentido, sua “hibride2”, se & que se pode usar essa expresso, deriva da énfase em 42 Ocespaco biogrifico rock (1993, p. 20) assinala a respeito que as Confissdes “nao apenas registram, com uma extraordindria coeréncia a conversio, [...] mas, ao fazé-lo, também efetuam uma” (0 itdlico é meu), exemplifican- do assim a virada obrigatoria que toda narrativa, enquanto processo temporal essencialmente transformador, impée a sua matéria: contar a histéria de uma vida é dar vida a essa historia. E interessante a ob- servacao dessa qualidade pragmética da escrita, uma vez que é sobre essa pista que se afirmard o didrio {ntimo como ato privado de con- fisséo ¢ autoexame — e também, poderiamos acrescentar, algumas modulagées da experiéncia mistica tendentes & “salvacao”.? Através descobrir aquilo comum a todos, de se constituir antes numa espécie de “au- tobiografia de todo cristéo” (De Mijolla, 1994). No entanto, tanto essa autora como J. Sturrock consideram que, apesar da distancia histérica e historiogréfica que separa as Confissoes das formas modernas, elas sio um antecedente inegével do género; consequentemente, em suas obras respectivas — que apresentam es- tudos sobre autobiografia —, dedicam a Santo Agostinho um primeiro capitulo obrigatério. (Sua persisténcia retérica é inegdvel, por exemplo, no modelo rous- seauniano). Um século antes das famosas Confissaes de Rousseau, uma experiéncia misti- ca, também célebre, expressaria, a partir do modelo agostiniano, a paulatina transicfo rumo a uma percepgao diferente do {ntimo, precisamente no relato dessa dupla vivéncia do corpo e do espirito que é a possessdo. A narragio de Sor Juana de los Angeles, superior do Convento das Ursulinas de Loudun, datada de 1644, constitui um exemplo singular, na medida em que a escrita lhe teria sido recomendada justamente como “cura”, exercicio de autocontrole, captu- ra no discurso desse ew extraviado em “forcas obscuras”. Ver Hermana Jean- ne des Anges, Autobiographie (1644, 1886), que inclui o artigo de Michel de Certeau ({1966] 1990), “Jeanne des Anges”. O texto, reescrito em parte no sécu- lo XVIII, foi estabelecido pela primeira vez por dois discipulos de J. M. Charcot, que, no prélogo a edigao publicada na colecao Bibliotheque Diabolique (1886), © assinalam como uma inestimavel contribuigao para o estudo da histeria. Em seu artigo, De Certeau, que o lé na chave mistico-psicanalitica, destaca dele justamente uma espécie de desdobramento que poderfamos chamar tipicamente “moderno”: “[...] 0 lugar exorbitado do ‘eu’ (ou do ‘eu me’) que faz simultane- amente do ‘eu’ (moi) 0 sujeito € 0 objeto da agao” (p. 333) (a tradugao é mi- nha, assim como as sucessivas que remetem a textos citados em outros idiomas). O espace biogrifico: mapa doterritério 43 dessas praticas, a espiritualidade do que hoje aludimos como “vida interior” iria se afirmando. Do lado do profano, o didrio de Samuel Pepys (1660-1690) constitui em seu género igualmente um exemplo singular. Conside- ravelmente avangado para sua época, esse personagem de uns trinta anos, empregado middle class do Almirantado de Londres, produz um diario intimo e autobiogréfico em que esto contemplados pra- ticamente todos os registros do cotidiano: gostos, usos, costumes, viagens, inclinagdes amorosas, intimidade conjugal e relato de infi- delidades.'” Para além do deslumbramento etnolégico, essas cenas de amor e citimes das quais mais de trés séculos nos separam, escritas nao para serem lidas em publico, mas entesouradas nesse espaco da privacy considerado quase uma invengio inglesa,'' nao deixam de ‘Também Ch. Taylor alude ao fendmeno da “loucura europeia da bruxaria”, que vai do século XV ao XVII, como um lugar em que se apresenta o choque entre duas identidades, a do mundo magico, regido por um “logos dntico”, e a de um sujeito autodefinido, com um novo sentido do eu ¢ da liberdade ({1989] 1996, p- 208). © “Quando cheguei em casa [...] minha mulher estava estendida em sua cama com um novo ataque de pavorosa ira. Chamou-me dos nomes mais ultrajantes € comegou a me injuriar de maneira horrivel. Por tiltimo, nao conseguiu se conter, batendo em mim ¢ puxando meu cabelo [...] Aproximou-se da cama, abriu minha cortina ¢, armada de pingas vermelho incandescente, parecia que queria me agarrar, levantei-me com espanto ¢ ela as deixou sem discutir” (Diary manuscript de Samuel Pepys, Magdalene College, Cambridge, citado por M. Foisil, [1985] 1987, pp. 354-5). "© didtio privado, como relato dos acontecimentos da vida cotidiana, estava muito propagado desde o final do século XVI na Inglaterra ¢, diferentemente do francés, muito menos frequente (de certo modo, seu lugar foi ocupado pelos livres de raison), & menos pudoroso quanto & expressio dos afetos. Também os didrios femininos s40 numerosos, 0 que permite um conhecimento maior das atividades das mulheres inglesas. Um caso singular desse tipo de escrita no meio francés ¢ 0 Didrio de Gilles Gouberville (1553-1563), detalhada descrigio da vida doméstica e comunal de um meio rural, dos transitos e das peregrinagées, dos habitos de hospitalidade etc. (cf. M. Foisil, [1985] 1987, pp. 344-50). 44 Cespaso biogrifico inspirar certa afei¢ao. O tempo transcorrido parece dar aqui teste- munho dessa espiral ininterrupta e ascendente da “economia ps{- quica”, que leva hoje a intimidade do leito 4 arena do talk show ou alimenta escandalos mididticos diante de olhos tao treinados como complacentes. O século XVII também foi prédigo na narrago de vidas ilus- tres da ética préxima, ¢ as vezes obsessiva, de um testemunho pri- vilegiado. O Didrio de Héroard (1602-1629), médico de Luis XIII, que acompanhou durante 27 anos, dia por dia, a vida do principe, € outro raro exemplo conservado desse tipo de nartagao. A descri- ao da vida de um outro que é ao mesmo tempo a razio da pré- pria vida ganha aqui uma dimensio particular, inaugurando talvez essa devogao que alentou, desde entao, tantas geracoes de bidgrafos. Mas hd outro olhar sobre vidas alheias que parece deixar aqui uma marca primigénia, as “historias secretas”, que pretendem explicar os grandes acontecimentos (guerras, revolugées, aliangas) por um ros- to oculto e, consequentemente, mais verdadeiro: paixées, citimes, desejos irrefredveis, decisdes de alcova, motivagdes que escapam as causalidades ptiblicas ou publicamente invocadas. A Histéria secreta de Maria de Borgonha (1694), Enrique IV de Castitha (1695) e O senhor d’Aubigny (1698) poderiam talvez ser considerados antece- dentes na trama genealdgica de tantas biografias “nao autorizadas” que revelam intimidades contemporaneas j4 nem tao secretas nem tao transcendentes. Se a diversidade de fontes ¢ arquivos e o cardter privado de muitos desses documentos tornam extremamente dificil seu estudo e até o estabelecimento de repertérios, os rastros que emergem aqui e ali permitem reconstruir uma trama de intelecgao para a andlise da produgio literdria do século XVIII, que iria consolidando seu “efeito de verdade” tanto com a apari¢ao de um sujeito “real” como garantia do “eu” que se enuncia quanto com a apropriacao da primeira pes- soa naquelas formas identificadas como fiction, que daria origem ao romance moderno: espace biogrifico: mapa do territério 45 A realidade como ilusao criada pelo novo género [~ escreve Haber- mas em seu estudo sobre a opinido burguesa ({1962] 1990, p. 87) —] tem em inglés 0 nome de fiction: com isso ela é despojada de sua qualidade meramente fingida. Pela primeira vez, o romance burgués consegue criar aquele estilo de realismo que autoriza todo mundo a penetrar na a¢io literdria como substitutivo da propria ado. Habermas outorga suma importancia ao desdobramento da subjetividade que se expressava nas diversas formas literarias (livros, periédicos, semandrios morais, cartas, dissertagGes etc.), em que os leitores encontravam um novo e apaixonante tema de ilustracao: nao mais a fabulacdo em torno de personagens mfticos ou imagi- ndrios, mas a representacio de si mesmos nos costumes cotidianos ¢ o desenho de uma moralidade menos ligada ao teologal. A esfera do intimo privado comega assim a se delinear com certa autonomia a respeito da familia e da atividade econémica ligada a ela, dando lugar a outro tipo de relagGes entre as pessoas. Essa virada é tao sig- nificativa que o século XVIII pode ser definido, segundo o autor, como “um século de intercambio epistolar”: “[...] escrevendo cartas —acarta como desabafo do coragao, estampa fiel ou ‘visita da alma’ —o individuo se robustece em sua subjetividade”. Cartas entre ami- gos, para serem publicadas nos periddicos, cartas de leitores, cartas literdrias; o cardter dialogal adquire um peso determinante, na me- dida em que toda auto-observagéo parece requerer uma conexdo “em parte curiosa, em parte empdtica, com as comogées animicas do outro Eu. O didrio se torna uma carta destinada ao remetente; a narragZo em primeira pessoa, um mondlogo destinado ao receptor alheio...” ({1962] 1990, p. 86). No romance, desdobra-se do mesmo modo uma série de pro- cedimentos retéricos de autenticagao que vao dos “manuscritos en- contrados” (o Robinson Crusoé, de Defoe) as “cartas verdadeiras” (A nova Heloisa, de Rousseau; A camponesa pervertida, de Rétif de la Bretonne; As relagdes perigosas, de Choderlos de Laclos). No caso da 46 Oespaco biografico forma epistolar, talvez seja o cardter intimo da correspondéncia e sua suposta “veracidade” — 0 nao terem sido escritas para um romance -, apregoada pelos respectivos autores, que conseguem despertar em seu momento maior interesse. O antecedente mais remoto foi o Pamela, de Richardson (1740), um verdadeiro best-seller que, em busca de um modelo de cartas, acabaria dando impulso a um género novo.” Essa obra, que antecipava o cléssico romance psicoldégico na forma autobiografica, e cujo sucesso fez dela, segundo Habermas, um marco na constituigao da subjetividade burguesa, florescia no “htimus” que marcara fortemente os intercambios das esferas puibli- ca e privada. O que se estava produzindo nesse tipo de escrita, que capitalizava tanto a pratica do didrio intimo como a forma episto- lar, era uma mudanga substancial nas relagdes entre autor, obra e publico,'? que adquiriam assim um carter de “inter-relagdes inti- Paul Ricoeur (1984, v. 2, p. 24) alude aos procedimentos de verossimilhanga, que tiveram no romance inglés do século XVIII um interessante espaco de ex- perimentagao, assinalando que, enquanto 0 Robinson Crusoé recorria & pseudo- autobiografia por imitagao das inumerdveis formas do relato autorreferencial da época, com influéncia da disciplina calvinista do exame didtio de consciéncia, Richardson aperfeigoava, no trajeto de Pamela a Clarissa, a multiplicagao das vozes para desenhar mais fielmente a experiéncia privada: nesta tiltima se en- trecruzam dois intercimbios de cartas, as da herofna e sua confidente ¢ as do herdi eo seu. Alternam-se, assim, a visio feminina e a masculina no ambito da suposta veracidade epistolar. Robert Darnton analisa esse fendmeno por meio de um arquivo de cartas de um leitor de Rousseau, encontrado na Biblioteca de Neuchatel: “Algo aconteceu na maneira como 05 leitores reagiram diante dos textos no final do século XVIII [...] pode se afirmar que a qualidade da leitura mudou num piiblico amplo, mas incomensuravel, no final do Antigo Regime. Embora muitos escritores tenham preparado 0 caminho para essa mudanca, eu o atribuiria basicamente ao surgi- mento do espitito rousseauniano. Rousseau ensinou seus leitores a ‘digerit’ os livros tao totalmente que a literatura chegou a se solver na vida. Os leitores rous- seaunianos se apaixonavam, se casavam e criavam seus filhos impregnando-se nas letras impressas. Sem diivida nao foram os primeitos a reagir dramaticamen- te diante dos livros. A prépria maneira de ler de Rousseau mostrou a influéncia O espaco biogrifico: mapadoterritério 47 mas” entre pessoas interessadas no conhecimento do “humano” e, consequentemente, no autoconhecimento. Comegava, assim, a se definir 0 cfrculo cujo paradoxo nao dei- xou de ser inquietante: 0 esbogo mesmo da esfera do privado reque- ria, para se constituir, sua publicidade, ou seja, a inclusao do outro no relato nao mais como simples espectador, mas como coparticipe, envolvido em aventuras semelhantes da subjetividade e do segredo. Os relatos epistolares em particular, com sua impressao de imedia- ticidade, de transcrigéo quase simultanea dos sentimentos experi- mentados, com o frescor do cotidiano e do detalhe significante do cardter, propunham um leitor levado a olhar pelo buraco da fecha- dura com a impunidade de uma leitura solitaria. Ficg4o de abolicao da intermediacao, da possibilidade de uma linguagem desprovida de ornamentos, assentada no prestigio do impresso, mas como se suprisse a auséncia da voz viva, determinante ainda na época, que na realidade supunha uma maior astticia formal do relato. A literatura se apresentava, assim, como uma violaco do privado, e 0 privado servia de garantia precisamente porque se tornava ptiblico: O leitor nao é vitima de um engano, no maximo, é ciimplice. A vio- lagao do espago privado faz. com que o leitor saiba sempre mais do que cada um dos protagonistas que se confidenciam em suas cartas. Esse € 0 paradoxo que faz com que o segredo do espaco privado sé se mostre eficaz quando deixa de ser segredo (Goulemot, [1985] 1987, p. 396).!4 da intensa religiosidade pessoal de sua heranga calvinista” ([1984] 1987, pp. 253-4). © autor confronta a dupla atestacao de As relades perigosas, de Laclos, para dar conta desse paradoxo: o “preficio do redator”, que afirma a autenticidade das cartas, ¢ a “adverténcia do editor”, que sublinha seu cardter romanesco: “Nao garantimos a autenticidade desta compilagio [...] temos poderosas raz6es para pensar que é sé um romance” (Goulemot, [1985] 1987, p. 396).

Você também pode gostar