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A pedagogia Freinet e a escola publica: uma nova abordagem para um velho problema Maria Fernanda Ferraz Villela™ “Eu sei que se deve aprovar o que h& de bom na escola endo apenas de- molir. Na escola deve-se conservar ordem, disciplina, autoridade e dig- nidade, mas a ordem que resulta de uma melhor organizacdo do traba- Iho, a disciplina que se torna solugdo natural de uma cooperacao ativa no seio da nossa sociedade escolar, a au- toridade moral primeiro, técnica e humana depois, que nao se consegue com ameacas ou castigos, mas por um dominio que leva ao respeito; a dignidade da nossa funcéo comum de professores e alunos, a dignidade do educador que ndo se pode conce- ber sem o respeito total pela dignida- de das criancas que ele quer prepa- rar para a funcdo de homem.” (Freinet, Pedagogia do Bom Senso, p. 92), Origem Célestin Freinet nasceu no final do século XIX, no sul da Franca. Estudou na Escola Normal de Nice, mas teve que interromper os estudos ao ser con- vocado para os combates da I Grande Guerra. Devido a uma intoxicagdo por gases quimicos, retornou debilitado, passando varios anos em hospitais até recuperar-se parcialmente No ano de 1920, ainda apresentando alguns sintomas da enfermidade ante- rior, foi nomeado professor-adjunto em uma escola em Bar-sur-Loup, nos Alpes maritimos, instalada numa ve- Iha casa de péssimo estado geral, cujo material didAtico, quando existente, se encontrava dilapidado. Sem haver ter- minado ocurso normal, Freinet se dei- xou guiar pelo bom senso para exercer a sua fungdo de professor primario. Com a satde comprometida, sem possuir um completo embasamento pratico e tedrico, e dentro de precérias condicées escolares, Freinet se empe- nhou em conhecer as particularidades dos seus alunos, como também a perso- nalidade da turma. Observava e nota- va tudo o que desagradava ou entusias- mava as criancas, percebendo que a au- s€éncia de regras sem sentido eo ‘“‘mun- do de fora” as interessavam muito mais do que as cansativas aulas estati- cas que ele era obrigado a dar. Diante dessas observacées, Freinet sentiu necessidade de adquirir 0 co- nhecimento te6rico que nao péde obter por ocasido da guerra, interessando-se por Rousseau, Rabelais, Montaigne e sobretudo por Pestalozzi, cuja teoria pedagogica enfatiza a educagiio ativae prazerosa. Ap6s essas leituras, prestou © exame que o habilitou a exercer a fungdo de professor-titular. A continuacdo do trabalho em sua turma lhe mostrava que ndo fazia sen- tido insistir num modelo de aula que nada acrescentava as criancas (exceto 0 tédio), quando ja havia percebido que os seus interesses se encontravam do lado de fora da escola. Instituiu, en- Graduanda de Pedagogia, Faculdade de Edu- cagdo, Unicamp, Campinas, SP. 52 Pro-Posigées N? 4 — abril de 1991 tao, a aula-passeio, que era realizada nos mais diferentes lugares da vila, on- de o interesse das criancas era claroem. meio a tantas perguntas e entusiasmo. Demonstravam também uma enorme facilidade em assimilar tudo o que ti- nham observado com o sapateiro, 0 marceneiro, com a natureza, etc. O re- torno 4 classe era feito num clima de muita euforia, quando Freinet intro- duzia contetdos teéricos relacionados as duvidas surgidas durante os pas- seios e também ao seu planejamento: “Era a vida entrando dentro da sala de aula’). Acreditando que um ambiente demo- crtico e descontrafdo é essencial para aaprendizagem, rompeu com a tradi- cional disposicdo das carteiras enfilei- radas, permitindo assim, as criancas, um relacionamento aberto e amigo. Prosseguindo as suas leituras, Frei- net também se influenciou pela “‘Esco- la Ativa’” de Adolphe Ferriére, que marcou a sua concepcéo pedagogica, defendida dentro da educacdo pelo trabalho. E importante destacar que Freinet, apesar de respeitar a crianca e suas ne- cessidades individuais, nao era simpa- tizante do movimento da Escola Nova, argumentando que esta no reconhecia a interdependéncia entre a escola e 0 meio social, néo apresentando, dessa maneira, idéias que pudessem ser apli- cadas em sua escola popular. Embora defendesse a educaciio ativa e prazero- sa, Freinet apontava a importancia de um planejamento que, apesar de flext- vel, possuisse objetivos claros e defini- dos. A Escola Nova, ao centrar seus principios nos meios, em detrimento do contetido, nao ia de encontro aos in- teresses das classes dominadas. Assim, através de questionamentos, bom senso, estudos, observacées e da prépria prdtica adquirida com as criancas, Freinet formou a sua concep- cao pedagégica, que até hoje encontra varios adeptos em todo o mundo. A teoria e a pratica da pedagogia Freinet Escola e meio social Para Freinet, area- 1. Rosa lidade educacional nao pode ser dissocia- da da sociedade em que esta esta inserida. A consciéncia desse vinculo entre escola e meio, além de possibilitar o éxito da educacao, fa- vorece 0 surgimento de algumas das condicées necessérias 4 transformacao da sociedade como, por exemplo, a compreensao da realidade e a pratica cooperativa e democratica. Coerente com a afirmagdo acima, buscou uma pedagogia que pudesse atender a todos os individuos, inde- pendente da sua classe social, procu- rando, assim, envolver todas as crian- cas no processo de aprendizagem. Freinet, antes de tudo, defendia uma educacdo que tivesse sentido para a crianca, e cujas atividades e objetivos fossem coerentes com aquilo que esta necessitasse. A escola, portanto, deve preparar a crianca pela vida e para a vida, dentro de uma participacdo ati- va e dinamica. des, p. 16. A educacao pelo trabalho Inspirado nas idéias de Marx a res- peito do trabalho, que o considera co- mo o fim maior do homem, onde este se identifica ese realiza, Freinet defen- de que o trabalho deve ser 0 centro de toda atividade escolar. O trabalho é a forca que move o ser humano, que dé sentido e finalidade a sua vida e é através dele que este de- senvolve todas as suas potencialida- 53 M, W. Ferreira Sampaio, Freinet: Egolu- cao Histérica ¢ Atualida- A Pedagogia Freinet des, pessoais e sociais, Desta forma, a 3s a grande importancia 2 mhise Freinet, O Itinerd atividade pedagégica s6 seré eficaz e para a realizacéio de rio de Célestin Freinet, gratificante se estiver baseada nesse princfpio bésico da natureza humana. E através do trabalho que o homem se constréi, compreende a realidade e cria relaces com os outros individuos. Quando este esta estruturado de uma forma democratica e comunitéria, de- termina 0 envolvimento de todos os membros da comunidade em objetivos comuns, favorecendo o surgimento do sentimento de coletividade. E importante frisar que esse traba- Tho nao é considerado uma atividade que sé possui sentido para a crianca, dissociado das necessidades concretas da comunidade escolar (e também do mundo). Ele esté inserido dentro da realidade social e comunitéria da esco- la, possuindo, assim, sentido para o educando e para a propria vida. Assim, motivados por atividades que possuem sentido e finalidade (por- que inseridas num contexto mais am- plo de construgao da propria vida), os educandos aprenderao através das suas experiéncias, como também atra- vés de aulas sistematizadas, onde am- bos contribuem para a solugao de pro- blemas baseados na realidade social. Aprenderdo a partir das suas reais ne- cessidades como alunos concretos, in- seridos numa comunidade concreta, com objetivos concretos (sempre com a orientacdio e participacdo ativa do pro- fessor). A aprendizagem 6 entendida, nesse contexto, como um “tateamento expe- rimental’” 2, onde os alunos, através do trabalho, partem para a procura de referenciais teéricos e praticos capazes de auxili4-los na solugdo dos proble- mas existentes em seus projetos (que tém como base o conteudo programé- tico). A aprendizagem através do ta- teio se caracteriza pela repeticéio das experiéncias bem-sucedidas e 0 aban- dono das que nao trouxeram bons re- sultados. A partir disso, Freinet desta- ca a importancia da assimilacéo dos reflexos mecanizados, considerados de um trabalho eficiente. 1?" O professor deve exercer uma posi- cao ativa, orientando, ensinando, siste- matizando contetidos, sugerindo, cana- lizando as atividades para o seu plane- jamento e exigindo de.seus alunos coeréncia, responsabilidade e compro- metimento. Amemorizacao ea concentra¢ao, en- tao, nao sao vistas como atividades pe- nosas, pois fazem parte do proprio pro- cesso de trabalho. Apesar de exigirem determinados sacrificios, néo estao dissociadas da propria vida e por isso sao encaradas como um dos passos ne- cessdrios para a elaboracdo de um pro- jeto. Desta forma, os fins motivam o educando em seu processo de apren- dizagem. A pratica da pedagogia Freinet nos mostra intimeros exemplos que endos- sam a concepcdo acima. Entre elas, a “imprensa” possui um papel de desta- que porque tem a funcdo de dar senti- do as producées das criancas, possibi- litando a sua sistematizacao e a distri- buigdéo em maiores quantidades. Baseado na premissa fundamental da necessidade de comunicacdo e expres- s4o do homem, o texto livre, o jornal mural, a correspondéncia interescolar, o livro da vida, etc., ganham um obje- tivo maior de divulgacdo dos traba- lhos dos alunos. Assim, as atividades das criancas nao possuem um signi cado somente ‘em si” (o trabalho pelo trabalho somente), mas visam a infor- macaéo (pesquisas), a comunicacdo (cor- respondéncias)e a divulgacao (obras). O desenho livre, apesar de nao utilizar a imprensa, também se enquadra nos objetivos acima. Vale destacar que a al- fabetizacao nas escolas Freinet se ba- seia nessa concepcdo de dar um senti- do real as producées das criancas, motivando-as. Os projetos, que dao sentido a ativi- dade pedagogica, e as aulas-passeios, que remetem a teoria a pratica (e vice- 54 versa), também sao entendidos dentro dessa concepcaio de educacao pelo e pa- ra o trabalho. A educacdo comunitaria As escolas Freinet sao estruturadas comunitariamente. A pratica demo- cratica e cooperativa eo respeito ao ser humano sao a base de toda e qualquer atividade. Apréatica comunitaria permite o de- senvolvimento do espirito de solida- riedade, do sentimento de coletivida- de e do respeito entre os individuos. Além disso, estimula o senso de res- ponsabilidade e o entendimento entre as pessoas através da comunicacao, da troca de opinides e do didlogo. E importante frisar que o respeito a crianca por parte dos professores é di- retamente proporcional ao respeito que ela deve ter por estes. Dessa forma, nao se deve confundir respeito, demo- cracia ou liberdade com uma escola sem limites, onde é permitida a crian- ¢a, em nome de psicologismos baratos, a invasdo dos direitos alheios. Essa fisionomia cooperativa da esco- Ja Freinet 6 mais facilmente identifica- da dentro da sala de aula, na relagdo de cada turma em particular. O grupo exerce um papel fundamental dentro do equilfbrio da turma, pois cabea ele exigir, elogiar ou cobrar a respeito do desempenho de cada componente da classe. Dessa forma, a organizacdo, o senso de responsabilidade, a autonomia ea disciplina nascem a partir dos compro- missos que cada membro da turma tem com 0 grupo e com as atividades esco- lhidas (no grupo se incluem também o professor e o seu planejamento). Veri- ficamos, assim, que as classes de uma escola Freinet possuem uma excelente capacidade de se organizar etrabalhar com responsabilidade, autonomia e disciplina. Pro-Posigdes N° 4 — abril de 1991 Podemos evidenciar na pratica essa concepgéio comunitaria de escola, no proprio esp{rito coletivo que envolve todas as criangas, onde sao prioritarios os interesses e fins comuns. Dentro da sala de aula, vale destacar o papel que as regras exercem. Estas sdo decididas democraticamente pelas préprias criancas e cumprem 0 papel de inte- grar todos os membros do grupo a par- tir dos préprios critérios que a turma escolheu. A pratica pedagégica Como ja foi dito anteriormente, as atividades pedagégicas ocorrem a par- tir dos trabalhos escolhidos coletiva- mente. E importante destacar, agora, 0 papel que o professor eo contetido pro- gramatico exercem dentro desse proceso. O professor possui uma postura ati- va, sendo considerado parte integran- te do grupo. Apesar de suas opinides e voto possuirem o mesmo peso que o de cada componente da turma, é respeita- do como aquele que tem mais expe- riéncia e cuja funcéio é justamente transmiti-la aos alunos. esta forma, cabe ao professor ex- plicitar os seus objetivos e planeja- mento, além de coordenar democrati- camente as atividadese orientar a tur- ma a respeito de atitudes e posturas. Suas opinices, no entanto, nao sdo im- postas e, na maioria das vezes, 0 pré- prio movimento do grupo corrige e ajusta as dificuldades. Cabe ao profes- sor, entdo, saber intervir e saber quan- do intervir. Podemos dizer, portanto, que este realmente exerce um papel de autoridade, mas nao é autoritario. ‘Apesar de estimular o tateamento experimental, o professor ndo possui uma postura de mero espectador das atividades dos alunos. Seu papel é ati- vo, proporcional as necessidades do grupo. Além disso, as tradicionais au- Tas expositivas sao utilizadas, tanto 55 A Pedagogia Freinet quanto o professor e a turma acharem que é preciso. A maioria das atividades respeita o contetido programético do professor, que possui objetivos bem claros. O pla- nejamento, no entanto, é flexivel, mol- dando-se de acordo com a motivagaéo da turma. A maneira ea época em que os contetidos sero introduzidos sao es- tipuladas de acordo com os interesses do grupo, mas os objetivos do profes- sor sao rigorosos. Ao reconhecer a importancia dos contetidos no processo de desenvolvi- mento do ser humano (principalmente para as classes populares), a escola Freinet nao despreza os objetivos que cada ano letivo possui; somente é fle- xivel quanto a forma como estes serao A educacao pelo trabalho A educagdo a partir do trabalho vi- sauma aprendizagem com sentido efi- nalidade. Essa concepgao pedagégica, quando aplicada a escola publica, po- de possibilitar a superacéo de um grande problema apresentado pelas secretarias de ensino, referente ao mo- delo pedagégico existente. A expanséo da escola publica, a par- tir da década de 30, no foi acompa- nhada de um modelo pedagégico ade- quado As camadas populares: houve somente uma transposicdo, para as es- colas ptiblicas, do modelo de aula mi- nistrado nas escolas particulares?. Na tentativa de su- s. Guiomar Namo de Mel: lo. “Magistério", in Revis- tada Ande, n? 7, 1984, p. 41. + Guiomar Namo de Mel- Jo, “Educacao do Educador ou o Diffeil Equilfbrio En- tre o Reboquismo e o Van- introduzidos e desenvolvidos. As atividades pedagégicas so enri- quecidas com todas as formas de ex- Presséo (sem ou com a imprensa), pes- quisa, aulas expositivas e aulas-pas- perar esse modelo pe- dagégico, que ndéo se adequou as necessi- dades e interesses das seios, j4 citadas anteriormente. Além disso, vale destacar o papel dos proje- tos, dos cantos de atividades, do ficha- rio escolar e das bibliotecas de traba- Tho, como grandes motivadores da aprendizagem. A pedagogia Freinet e a escola publica E possivel observar como a pedago- gia Freinet pode contribuir para a di minuigéio da taxa de evasdio/expulsio escolar apresentada na escola publica brasileira, além de possibilitar o sur- gimento de algumas das condicées ba- sicas para a transformacdo da socieda- de. Para uma melhor compreensao de como se dé essa contribuicdo, serdo destacados a seguir, sob a forma de t6- picos, alguns aspectos da relacdo des- sa pedagogia com a realidade educa- cional brasileira. classes dominadas, surgiram intmeras teorias defendendo uma educacao po- pular auténtica, em detrimento da cul- tura dominante.* O que verificamos atualmente é que aescola publica se encontra completa- mente inadequada a sua clientela, nado sabendo posicionar-se diante desses dois extremos de modelo pedagégico. A educacaio pelo trabalho, no entanto, consegue oferecer um ponto de equili- brio dentro dessa polémica. Através do trabalho (ou seja, através de atividades que possuem sentido e fi- nalidade para os alunos e para acomu- nidade), a prdtica pedagégica conse- gue adequar-se 4 realidade da sua clientela, uma vez que parte dos pr6- prios interesses do grupo. Desta forma, a educacdo tera sentido e, também, fi- nalidade, porque pretende atender as necessidades de libertacdo das classes populares (através da transmissdo de contetidos). Assim, sem desprezar a realidade ea bagagem cultural da sua clientela, a escola Freinet consegue guardismo’’, p. 4. 56 Pro-Posigdes N° 4 — abril de 1991 tela). Dessa maneira, como ja foi dito ante- riormente, é capaz de oferecer a esta um importante instru- mento de luta contra o dominio bur- gués. 5. Rosa M. W. Ferreira Sampaio, Freinet: Evolu- Go Historica e Atualida- A flexibilidade em relacdo aos recursos oferecidos As escolas ptblicas apresentam um crénico problema em relacdo A carén- cia de material. As experiéncias coma pedagogia Freinet em escolas popula- res, no entanto, revelam que esta é ca- paz de “‘driblar” com mais facilidade essas dificuldades.® Através do trabalho, as turmas Frei- net tém condigées de construir os seus proprios materiais e, a partir destes, o professor tem oportunidade de intro- duzir os contetidos, tanto aqueles ne- cessdrios para os projetos, quanto aqueles relativos ao seu planejamento. Verificamos, assim, que a construcéo dos materiais oferecem um beneficio direto em relagdo a caréncia de recur- sos da escola ptblica, além de envolver todas as criancas no processo de apren- dizagem, motivando-as na assimilagdo de contetidos. Aaula-passeio também consegue, de uma certa maneira, substituir a falta de materiais para pesquisa, porque Ppossibilita a coleta de informacées in loco. E importante frisar que esses pas- seios néo exigem, necessariamente, gastos com conducdo, acompanhante etc. No proprio bairro da escola certa- mente haveré varios locais (como mar- cenaria, oficina, livraria etc.) que po- derdio ser excelentes fontes de informa- cdo e cultura. A questo do conteido A pedagogia Freinet entende que a escola perder4 a sua funcéio caso néo esteja profundamente comprometida coma transmisso de contetidos (inde- pendente do nivel social da sua clien- des, p. 138. oferecer, as classes “*” populares, um dos principais instru- mentos de luta para a sua libertacao. A pratica democratica e cooperativa As sociedades atuais nao serao jus- tas e igualitarias somente através da revolucéo do proletariado. Corremos até o risco de, assim, “fazer a balanca pesar mais para 0 outro lado”. Muito embora seja inaceitavel a situacdo de miséria em que a grande maioria da populacdo vive, a tomada de poder pe- las classes populares nao significara, necessariamente, a instauracéo de justica. A pedagogia Freinet nao tem a pre- tensao de transformar a “alma” das pessoas, tornando as mais cruéis cria- turas em individuos bondosos e cari- dosos. De qualquer forma, a vivéncia comunitéria certamente favoreceré a pratica democritica e 0 diélogo entre os homens. A experiéncia comunitéria, onde to- dos so respeitados igualmente, mas os. interesses coletivos preponderam em detrimento dos individuais, a unio dos homens motivados por fins co- muns e a pratica do entendimento en- tre as pessoas através da comunicacdo, so vivéncias que podem contribuir para o sucesso de uma revolucdo, nao somente a favor das classes populares, mas a favor do homem e do que hé ain- da de humano dentro dele. 57 A Pedagogia Freinet Consideracées necessarias Essas tantas pAginas escritas perde- ro muito do seu valor se nao forem re- metidas a realidade concreta em que vivemos. Assim, é necess4rio perceber que a escola Freinet nao tem a pretensdo de ser a redentora da sociedade, como também ndo pretende solucionar todas as dificuldades apresentadas pelo sis- tema brasileiro de educacdo, visto que estas questées se situam num contex- to mais amplo de realidade social. ‘A pedagogia Freinet somente se apresenta como um modelo pedagégi- co eficiente, capaz de dar conta de algu- mas das dificuldades apresentadas pe- lo atual, além de poder contribuirmais efetivamente com a transformacéo social. Além disso, seria muito utépico pen- sar que todo o sistema de ensino publi- co aderisse, assim, ‘‘sem mais nem me- nos”, A pedagogia Freinet. Por outro lado, é realista acreditar que movi- mentos isolados possam contribuir pa- ra o fortalecimento dessa escola publi- ca, acabando por torné-la viavel. Para isso, no entanto, é necessaria a contribuicao de todos os profissionais da educacio em favor de uma escola publica competente. Esse compromis- so deve atingir mais diretamente todos aqueles que ainda trabalharao na esco- la, cuja formacdo se esté dando agora. Muito embora esta nao seja uma tare- fa facil, é realista afirmar que os pro- fissionais da educacdo, atualmente, es- tao muito mais engajados na luta pela democratizacao do ensino, transmitin- do essas questées aos seus alunos que, por sua vez, multiplicam e fortalecem ainda mais o movimento (inclusive no que se refere a valorizacdo salarial da categoria). Um outro ponto que deve ser desta- cado é a questo do namero de alunos em cada classe. Apesar de ser extrema- mente flexivel em relacdo a caréncia de materiais, a pedagogia Freinet néo consegue trabalhar com turmas gran- des. Na tentativa de se adaptar a rea- lidade concreta em que esta inserida, as turmas Freinet poderao apresentar produtividade em classes com um nu- mero médio de alunos, nunca porém excedendo-se mais que isso. Cabe tam- bém aos profissionais de educacdo rei- vindicar um limite razoavel de alunos em suas turmas. O ICEM (Instituto Cooperativo da Escola Moderna) e o CREM (Centro Re- gional da Escola Moderna), entidade internacional e nacional do movimen- to Freinet respectivamente, possuem um compromisso pedagégico com as classes populares. Dessa forma, tanto estes como as escolas Freinet particu- lares também podem contribuir com qualquer tentativa de implantagdo da pedagogia Freinet na rede publica (mesmo que seja uma iniciativa isola- da de algum professor). Para finalizar, é importante destacar que a pratica é sempre bem diferente da teoria. Dessa maneira, vale desta- car que as idéias aqui expostas ndo de- fendem uma pedagogia essencialmen- te Freinet (até porque esse radicalis- mo invalidaria a implantacéo da mes- ma), e sim procura orientar uma peda- gogia que, antes de se intitular “x” ou “z”, esté a favor das classes po- pulares. 58 Pro-Posigées N° 4 — abril de 1991 Referéncias bibliograficas FREINET, Célestin. Ensaios da Psicologia Senstvel. Lisboa, Presenca, 1978. .O Método Natural. Lisboa, Estampa, 1977. Para Uma Escola do Povo. Lisboa, Presenca, 1969. A Pedagogia do Bom Senso. 2° ed. Santos. Martins Fontes, 1973. : Elise. Nascimento de Uma Pedagogia Popular. Lisboa, Estampa, 1978. ______' 0 Itinerério de Célestin Freinet. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1979. MARQUES, Carmem Silvia Ramalho. Freinet e a Pré-Escola (tese de Mestrado). Sao Carlos, Centro de Educagdo e Ciéncias Humanas, U! MELLO, Giomar Namo de. ‘‘Educacao do Educador ou 0 Di var, 19% | Equilibrio Entre o Re- boquismo e o Vanguardismo”, in Revista da Ande, n° 2, 1981, p. 4. SAMPAIO, lo, Scipione, 1989. ““Magistério”, in Revista da Ande, n° 7, 1984. ‘osa M. W. Ferreira. Freinet: Evolucdo Historica e Atualidades. Sao Pau- SHIMIZU, Dayse Maria Alouzo. O Método Natural de Freinet (tese de Mestrado). Cam- Pinas, Faculdade de Educacao, Unicamp, 1984. Textos do Crem — Centro Regional da Escola Moderna. Textos da Escola Cooperativa Curumim, Campinas, SP. Textos do Icem — Instituto Cooperativo da Escola Moderna. Re « O texto fornece as ca- SUMO? racteristicas gerais da pedagogia Freinet, apontando as possibi- lidades da sua utilizacéo no contexto das escolas publicas brasileiras. Palavras-chaves: Célestin Freinet; pedago- gia freinetiana; Freinet; educacdo publica brasileira e Freinet; pedagogia Freinet. Ab: t « This paper describes STLACT: tne general charac- teristics of Freinet’s pedagogy and dis- cusses the possibilities of its utilization in Brazilian public schools. Descriptors: Célestin Freinet; Freinetian pedagogy; Brazilian public schools and Freinet; Freinet’s pedagogy.

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