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Sílvia Adoue vida”, diz Sílvia. A motivação, o desejo de aprender não vem de recursos
didáticos convencionais, mas principalmente das relações que o professor
Entre as casas de chão de terra batida e tetos de zinco da pequenina consegue estabelecer entre o que ensina e a vida do aluno. “A vontade de
cidade de Grand Bourg, a duas horas de Buenos Aires, destacava-se o participar do conhecimento, que é criação de todos, nasce da inter-relação
edifício da escola pública, construído pelos próprios pais de alunos, num dos educandos entre si, com a comunicação e com a cultura humana (o que
convênio entre Ministério da Educação, a Secretaria de Obras e a inclui escadas rolantes, museus, guardas de trem, etc.)”. Isto é lidar com a
Associação de Bairros. dimensão afetiva da aprendizgem, o que não tem nada a ver com distribuir
“Saiba que esta escola fomos nós que levantamos com nossas beijinhos e palavras doces às crianças.
mãos. Nós moramos mal, mas nosso filho tem que aprender que a vida nõa
deve ser sempre assim” – disse uma mãe a Sílvia Adoue, recém-chegada à Quando recebi as fichas de caracterização psicopedagógica dos
cidade para assumir o cargo de professora. Era o começo de uma grande alunos, a de Josela tinha o estigma do “não poderá...”. Havia muitas
história de amor para a moça operária que estudava engenharia química à condutas que ele supostamente não atingiria. A principal previsão era: “não
noite, sempre sonhando em trabalhar com educação. Depois do golpe de passará das operações com material concreto”. Josela era considerado um
1976, eram tantos os professores “desaparecidos” que foi preciso contratar “limítrofe”. Recomendavam fazer um trabalho com pauzinhos e pedrinhas
pessoas de outras áreas para substituí-los. Mas, como dizia o poeta, “você acompanhando-o bem de perto, para conseguir que multiplicasse.
corta um verso, eu escrevo outro”. Entre 1979 e 1981, Sílvia teve a chance Durante um mês inteiro fiquei uma hora por dia na casa dele. Era
de, colocando em prática as idéias que andaram remoendo a partir da leitura uma casa de chão de terra batida, como quase todas da redondeza. Tínhamos
de Freinet, Piaget, Makarenko e Paulo Freire, continuar a luta dos que trabalhar com pedrinhas, porque o milho, farto, as galinhas subiam na
educadores argentinos. No relato que segue, Sílvia narra “o renascimento de mesa e comiam. A família de Josela não falava nem comigo, nem entre si,
Josela”, um dos 35 alunos de sua classe de quarta série, com a marca de nem com o menino. A vida transcorria assim para eles: só trabalhar para
“limítrofe” na testa. Vemos ao mesmo tempo Josela libertando-se do sobreviver.
estigma do “não poderá” e a educadora a romper com a escola das Depois de um mês achei que já era demais: apenas conseguia
formalidades e das aparências. “Quero passar a mensagem de que o pequenos avanços. Além disso, minha classe já estava bem entrosada.
Fazíamos “escola fora da escola”, quer dizer, continuávamos com atividades
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Extraído da Revista ANDE, nº 7, 1984.