Você está na página 1de 15
Nao se nasce curador, torna-se curador Cristiana Tejo Assim, a primeira regra do bom estilo, uma regra que praticamente se basta sozinha, é que se tenha algo a dizer. Arthur Schopenhauer Nao existem romancistas precoces. Todos os romancistas grandes, os admiréveis, foram, no comeco, escritores aprendizes cujo talento passou por uma gestacao alimentada pela constancia e pela convicsao. Mario Vargas Llosa A curadora checa Maria Hlavajova inicia seu texto para o livro Words of Wisdom: a curator’s vade mecum on contemporary art discorrendo sobre seu prazer em digitar a palavra curadoria no programa Word da Microsoft. Todas as vezes em que isso acontece, 0 programa, que nao a reconhece, sublinha-a em vermelho e oferece op¢des de ortografia. Com felicidade, Maria as ignora. De alguma maneira, eu gosto deste jogo, como se em seu cerne fosse articulado o que curadoria significa para mim: um processo continuo de tornar-se. [...] Ea identidade em transicdo permanente, absorvendo 0 erratico social, geopolitico, étnico, econémico e outras realidades num platé do ordinario vivido intensivamente, e por isso resistente ao enquadramento de um dicionario ou guia, um manual. (Hlavajova, 2001: 81) O texto, publicado em 2001, apreende um momento de transicao, que antecede a um boom mundial de visibilidade e de solidificacao do papel do curador. No programa Word Vista, versio 2010, as palavras curador ou curadoria nao sao mais um ruido na normalidade. Alias, a figura do curador se disseminou de tal forma que atualmente qualquer evento cultural, seja um festival de teatro, danga ou cinema, tem a sua frente um curador, mesmo 149 em regides remotas. O site Artvista (www.artvista.de) afirma que, apenas no campo das artes visuais, o ano de 2008 agregou 172 eventos, entre feiras de arte, bienais e trienais. Apesar de nao constar nos dados, sabe-se que a esmagadora maioria conta com a participagdo ou orquestracao de curadores. Outro indicio do novo estagio do campo da curadoria sob uma perspectiva internacional é a incluso da profissao no relatério do U.S. Bureau of Labor Statistics 2008-2018. A previsdo é de que, neste periodo, haja um aumento de 23% na oferta de trabalho para curadores (nado apenas em instituigdes de arte contemporanea, mas também de histéria, ciéncias etc.). A noticia ganhou repercussao piiblica quando foi apresentada na edicao de 28 de dezembro de 2009 do jornal U.S. News & World Report. A matéria “Curator: As one of the 50 best careers of 2010, this should have strong growth over the next decade” [Curador: Como uma das 50 melhores carreiras de 2010, esta deve ter forte crescimento na préxima década] apresentava de uma maneira objetiva a funcao, a perspectiva de mobilidade e crescimento na profiss4o, o nivel de atividade (possibilidade de viagens, de ter que carregar objetos, subir escadas etc.), nivel de estresse, formacao, preparo e perspectiva salarial. O jornal The Daily Beast pegou carona na discussao e intitulou seu artigo de “Dream Jobs” [Empregos dos Sonhos] (Merrefield; Streib, 2010). Igualar o campo da curadoria as profissdes j4 enquadradas e normatizadas e destrincha-la nos termos que avaliam as atividades mais comuns trazem sensacdes ambiguas. Por um lado, retira um pouco da 4urea e da mitica do curador como um génio criativo e intelectual que atua num meio que tem entrada para poucos escolhidos. Por outro, seu reconhecimento para a importancia da cadeia produtiva da economia da cultura abre novas perspectivas para sua prdatica. Indubitavelmente, este tipo de abordagem escamoteia a complexidade do sistema de formagio e de legitima¢do do curador que, assim como em qualquer oficio criativo, é dependente de uma rede de relag6es, de actimulo de capital cultural, de um processo de escolhas. Nao ha regras, receitas e estagios prontos e certeiros para chegar ao topo da carreira. Isso é ao mesmo tempo desconcertante e instigador. Entretanto, devemos ponderar até onde o crescente interesse pelo campo da curadoria é consequéncia de uma real tomada de consciéncia de seu papel critico e do despertar do desejo de adentrar no mundo da arte ou é fruto de uma ilusao histérica que enxerga apenas o glamour e a posi¢ao de poder do curador. 150 Neste texto, nao me deterei numa abordagem sociolégica do campo da curadoria e muito menos ensejo uma leitura aprofundada e definitiva, mas tentarei esbocar alguns achados e inquietagdes no que tangencia a forma¢ao do curador no Brasil. Primeiramente, por se tratar de um tema cada vez mais presente no campo da arte brasileira, em especial apds o surgimento de programas de pés-graduaco em faculdades de So Paulo (Mestrado em Artes Visuais, linha de pesquisa em Historia, Critica e Pensamento Curatorial da Faculdade Santa Marcelina e a Pés-graduacao em Arte: Critica e Curadoria da PUC, ambas implementadas em 2008) e Curitiba (Especializacao em Critica de Arte e Curadoria da Unibrasil, que ocorreu nos anos 2006 e 2007) e no aumento da demanda por profissionais qualificados em eventos e instituiges pelo Brasil afora. Em segundo lugar, por ser um tépico muito vivaz e caro a mim, curadora em formacdo e responsavel por projetos de fomento e formacdo na regifio Nordeste.*® Muitos foram os fatores que me fizeram atentar para a delicadeza do entendimento do processo de formacao do curador, mas gostaria de comegar compartilhando dois. O primeiro ocorreu ha muitos anos, quando uma aspirante & critica de arte de Pernambuco me disse entusiasmada que iniciaria uma especializagdo em critica cultural, sairia de 14 com um diploma e seria critica de arte. Mais recentemente, em 2007, numa reuniao interna de gest4o, ouvi de maneira mais enfaitica a demanda por “capacitar” curadores para assumir os espacos expositivos do Recife. Apesar de eu na época estar envolvida na organizagéo de ac6es de formacao no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhaes, como workshops com curadores estrangeiros** e um encontro que reuniria 13 0 encorajamento para escrever sobre este tema deu-se a partir do convite feito a mim por Marcio Harum para participar do workshop “Experiéncias Dialégicas” no Centro Cultural de Espanha, em abril de 2010. “Entre muitas ages formativas, ressaltaria 0 Grupo de Pesquisa MAMAM, iniciado em marco de 2007 com o agrupamento de 10 jovens pesquisadores das areas de artes plasticas, comunicagio, histéria, sociologia e museologia e a diretora do Museu. A intengao era analisar as falhas, os desvios e potencialidades do acervo do MAMAM para possiveis aquisig6es e redimensionamentos de trajet6rias de artistas locais. * Entre setembro e novembro de 2007, organizei os workshops “Curador-Critico”, com Ellen Blumenstein; “Alternativas a exposicdes ou exposicdes alternativas? Sobre boite-en-valise € outras exposicdes portateis”, com Sérgio Rubira; e “Curadoria no campo expandido: p6s-institucionalismo”, com Ann Demeester. As oficinas contaram com 0 apoio do Goethe Institut, CEFAV, Centro Cultural de Espanha (SP), Mondrian Foundation e Férum Permanente 151 Workshop “Curadoria no campo expandido: pés-institucionalismo”, com a diretora do De Appel Arts Centre de Amsterdam, Ann Demeester, no Museu de Arte Moderna Alofsio Magalhaes, 20 e 21 de novembro de 2007. Fotos: Flavio Lamenha. O critico de arte espanhol David Armengol, integrante do coletivo A-Desk Workshop de discussao e producao de textos criticos, com David Armengol, durante o Panorama do Pensamento Emergente, 6 a9 de marco de 2008. curadores emergentes de varias regiées do pats,” respondi que a melhor forma de apoiar o surgimento de novos curadores na cidade seria o investimento na melhoria da biblioteca do MAMAM, o apoio na expansio e qualificacao do acervo, suporte para as pesquisas do acervo que se iniciavam ea possibilidade de criar estagios na curadoria do museu. Expliquei ainda que nao entendia a curadoria como uma formagio instantanea, mas um investimento a longo prazo e sem resultados precisos. Talvez 0 que estivesse em jogo fossem visdes divergentes do que seja um curador. Na ocasiao, nao me referia ao curador como mero organizador de exposi¢des, como tem sido amplamente empregado, entendido e praticado, mas ao individuo com capacidade critica de reposicionar 0 nosso entendimento sobre a arte num tour de force intelectual, espacial e visual. Ou como escreveu Lisette Lagnado: “E chamada de curadoria a exposico que rompe com 0 marasmo e o déjé-vu, que propGe uma reorganizacao do mundo das imagens” (2008: 14). Se féssemos fazer uma comparacdo grosseira com o universo gastronémico seria talvez semelhante a popularizacao do sushi nos restaurantes brasileiros, que pode ser encontrado em pizzarias, casas de carne e padarias. Os rodizios bufés sedimentam o gosto pela quantidade e variedade (mesmo que em quase todas elas esteja presente o famigerado cream cheese), em detrimento da qualidade e sensualidade que este icone da culinaria japonesa representa. A criatividade e a inovacdo sao combustiveis essenciais para a sobrevivéncia da cultura, mas a questo principal recai sobre o despreparo ea improvisagao de quem faz, que acredita que cursinhos rapidos e facas de corte baratas poderao encurtar a longa trajetéria que forma um sushiman de respeito. Popularizar a iguaria tem seu mérito, mas torna-se lamentavel quando a experiéncia encerra-se nesta tinica forma de consumo gastronémico e cultural. O curador norte-americano Dana Friis-Hansen acredita que “Uma grande exposicao é como uma refei¢do com sete pratos, bom vinho e conversa *” © Projeto Panorama do Pensamento Emergente foi idealizado por mim e contou com a interlocugo de Martin Grossman no seu aperfeicoamento. Levou quatro anos para se concretizar e foi selecionado no edital Conexao Artes Visuais 2007 da Funarte. Realizado em margo de 2008, no Recife, reuniu os curadores Ana Paula Cohen, Caué Alves, Cristiana Tejo, Carlos Eduardo Bité Cassundé, Daniela Labra, Fernando Oliva, Juliana Monachesi, Luisa Duarte, Marisa Fiérido César, Marisa Mokarzel, Roberto Freitas, Rodrigo Moura ¢ Taisa Palhares. As palestras foram moderadas por Ivo Mesquita, Fernando Cochiaralle, Moacir dos Anjos e Paulo Herkenhoff. 154 fascinante, nado um ensopado no qual muitos ingredientes foram misturados e cozidos juntos até o ponto de nao conseguirmos mais distingui-los uns dos outros” (2001: 67). Apesar da coloca¢ao de Friis-Hansen referir-se a como montar uma mostra coletiva, interpreto-a também como um convite a pensar na sofisticag4o que o exercicio curatorial requer e na complexa construcao de um talento em meio a voracidade e a precariedade do sistema de arte brasileiro e as desigualdades de acesso a educacao de ponta no pais. Em entrevista concedida a mim em 2002," Cildo Meireles comentou que achava que talvez os melhores artistas brasileiros morressem antes dos dois anos de idade. Este trecho ficou de fora da versdo final da matéria, mas passou a fazer parte de meu entendimento sobre a calamidade do desperdicio de capital humano e dos percalgos da formagao de massa critica no Brasil. Tirando os problemas de base, que alijam boa parte da populacao brasileira da capacidade de se expressar de fato e de conseguirem adentrar em significados nfo literais e miméticos, ha ainda outros fatores complicadores para a formacao do curador brasileiro. Poderiamos comegar citando a restrita existéncia de instituicdes com infraestrutura adequada e missdo clara que sirvam de local de trabalho e de estudo para o aspirante, além do pouco suporte a iniciativas independentes. Vale ainda destacar a auséncia de colecées sélidas nos acervos piiblicos, 0 pouco estimulo a pesquisa independente, a auséncia de bolsas de pesquisa curatorial, a baixa incidéncia de bibliografia brasileira sobre o campo critico e curatorial e a grave defasagem das bibliotecas ptiblicas. Gostaria de ressaltar ainda que, na maior parte do pais, os cursos de graduaco das Humanidades sao falhos e anacr6nicos e a continuidade dos estudos significa migrar para grandes centros. Colocadas as adversidades j4 bastante conhecidas do meio social e artistico brasileiro, gostaria de abordar a questao da formacao daqueles que nao sofrem privagdes de ordem econémica ou social impeditivas de investir no desejo de ser curador. Apesar de nao existir cartilha nem regulamentacao, podemos listar algumas caracteristicas e saberes que contribuem para a gestagao de um talento. Em primeiro lugar, lembrando uma observaco bastante atual de Schopenhauer e a trazendo para nossa A entrevista publicada na edigdo de 6 de janeiro de 2002, no Diario de Pernambuco, ganhou nova publicacao no livro Encontros: Cildo Meireles, organizado por Felipe Scovino (2009). coe discusso, o curador tem que ter algo a dizer. E para isso tem que ter um ponto de vista diferente, um posicionamento singular, um olho privilegiado, saber ouvir e saber ver. O investimento para tal é de varias ordens: emocional, intelectual e financeiro. Ou seja, cultivar uma escuta cuidadosa dos artistas, ter abertura para o mundo, curiosidade, sélida formacdo humanistica interdisciplinar (que pode englobar conhecimento de histéria da arte, filosofia, comunica¢o, sociologia, antropologia, histéria, economia, teoria crftica etc.), flexibilidade para lidar com varios tipos de situagdes e grande poder de negociasao. E importante ainda viajar muito para ver ao vivo as obras que estuda - alids, em regides periféricas, a formacao se d4 predominantemente pelo intermédio de imagens reproduzidas e de discursos de segunda mao, o que causa uma situacdo de dependéncia das conclusdes dos outros -, falar linguas estrangeiras e ter uma biblioteca ampla e robusta. Quantos aspirantes a curador arregimentam todas estas condicionantes antes dos 25 anos, como espera o mercado? Poucos. Provavelmente aqueles que recebem de berco um capital cultural volumoso que os fazem se sentir to familiarizados com este universo que j4 respondem com voz prépria a este chamado, como bem ponderou Pierre Bourdieu (2008). Como o tempo do amadurecimento intelectual é diferente do emocional, a conjungao entre os dois em téo pouco tempo é de fato raridade. Vocés me perguntarfo: e a vocaco? Todos nés ndo nascemos com predisposicdes? Mario Vargas Llosa em seu delicioso texto no livro Cartas a um jovem escritor diz: Hoje ninguém fala assim da vocagao literdria ou artistica, mas embora a definicdo dos nossos tempos seja menos grandiosa, menos fundada no destino, ela ainda é bastante fugidia: uma predisposicao de origem obscura que leva certos homens e mulheres a dedicar a vida a uma atividade para a qual, um dia, se sentem chamados, quase obrigados, a exercer, por intuir que somente abracando tal vocac&o — escrevendo historias, por exemplo — se sentirao realizados, de bem consigo mesmos, dando o melhor de si, sem a dolorosa sensagao de estar desperdicando a vida. (2006: 5) A disposicao subjetiva inicial é reforgada com o passar do tempo, com a entrega a um exercicio diario e ininterrupto de labuta. 156 Apesar de acreditar que a vocacdo literdria nao seja determinada pelo destino nem venha carimbada nos genes dos futuros escritores, e a despeito da minha conviccao de que a disciplina e a perseveranga possam em alguns casos produzir génios, acabei me convencendo de que a vocacao literéria nao se explica apenas como uma livre escolha. Esta, para mim, ¢ indispensdvel, mas unicamente numa segunda fase, posterior a uma disposicao subjetiva inicial, inata ou surgida na infancia ou na primeira juventude, que a escolha racional vird a fortalecer, mas nfo a fabricar dos pés & cabeca. (Llosa, 2006: 6) Podemos tomar como exemplo do tal exercicio ininterrupto de labuta © curador suico Hans Ulrich Obrist, 41 anos, eleito em 2009 pela revista inglesa Art Review como a pessoa mais influente do campo da arte internacional. Esta foi a primeira vez desde o inicio da listagem em 2001 que um curador ocupa o topo, lugar até entdo reservado aos artistas. O que interessa neste fato para nossa discussao é compreender as palavras de Llosa sob a perspectiva do campo curatorial. Numa matéria publicada em janeiro de 2010, na Revista Bravo, vemos o perfil deste todo-poderoso, que afirma que quando soube da noticia do tal ranking estava trabalhando e continuou a trabalhar. Nada havia mudado. Segundo a reportagem, Ulrich Obrist dormia apenas duas horas por dia e tomava muito café no inicio dos anos 1990, gracas as orientag6es do escritor francés Honoré de Balzac (1799-1850). No final da década, o curador passou a adotar o esquema sugerido pelo artista renascentista Leonardo da Vinci (1452-1519), de trabalhar por trés horas e dormir 15 minutos subsequentemente. “Funcionou bem por mais de dois anos. Foi quando transcrevi boa parte das minhas entrevistas com artistas e os transformei em livros”, conta (apud Piemonte, 2010: 68). Chamada em inglés de The Conversation Series, engloba mais de 1.400 horas de entrevistas com artistas, cientistas, arquitetos, cartunistas, cineastas etc., ja alcancou 0 n&mero 22 no exterior e chegou ao piiblico brasileiro numa versio mais enxuta nas publicag6es Entrevistas: volume 1 e volume 2, pela editora Cobog6 e Centro Inhotim (Obrist, 2009; 2009a). A puxada rotina sofreu novamente alteracdo em 2000 quando Hans Ulrich Obrist tornou-se curador do Musée d’Art Moderne de La Ville, em Paris. Ele afirma que desde que assumiu 0 posto de curador da Serpentine Gallery, em Londres, em 2006, ficou mais “sedentario”. 157 Ter uma biblioteca ampla faz parte da formagao do curador. Dé expediente na galeria, vai sempre & abertura de exibicdes de outras galerias e, de sexta a segunda, sai de Londres em busca de novos artistas. Faz questo de fugir do Natal viajando para paises que nao celebram a data. No ano passado visitou Teera. ‘Acho um desperdicio parar esses dias. Em 2008, descobri muita gente interessante no Cairo’, diz Obrist, que afirma nao tirar férias desde 1999 e folgar sé no primeiro dia do ano. (Piemonte, 2010: 68) Sem diivida, ser workaholic nao é condi¢ao sine qua non do sucesso do tiber curator, mas seu completo envolvimento com a arte, devocio aos artistas, fome de conhecimento e entusiasmo de expandir seus préprios limites e limitagdes e, consequentemente, tensionar as fronteiras do campo da arte e da curadoria. Voltando a reflexao de Mario Vargas Llosa, teriamos que “talvez o atributo principal da vocacdo literdria seja o fato de quem a possui vivencia © exercfcio dessa vocac4o como a sua melhor recompensa, muito, muito superior a qualquer coisa que pudesse obter como consequéncia de seus frutos” (2006: 4). A despretensio dos projetos iniciais, a franqueza com a qual adentrou o sistema da arte, o despojamento de formalidades e a naturalidade com a qual lida com seus interesses talvez sejam de fato os alicerces de sua estrutura pungente. Gostaria de brevemente citar algumas lices transmitidas por outro icone do campo da curadoria, nome maximo atual do Brasil: Paulo Herkenhoff. Tenho me encontrado com ele em diversas ocasi6es nos tltimos quatro anos. Participamos juntos de comissGes de saldes e prémios, trocamos impressGes a respeito de artistas e, sempre que posso, busco encontra-lo para extrair ensinamentos informalmente. Muitos me foram repassados, mas exporei alguns que possam ser comparados ao exemplo Obrist. Herkenhoff passa anos pesquisando, levantando material, escrevendo e refletindo sobre tematicas e artistas que o interessam. Suas visitas a ateliés de artistas duram um dia inteiro. Ele carrega varios cadernos Moleskine que sao preenchidos com novos dados e referéncias. A cada momento ou em qualquer lugar, estes novos dados podem ser apresentados. Quando finalmente chega a hora de fechar um texto, ele se desconecta do mundo, concentra-se completamente no que esta fazendo. Nao responde a e-mails ou telefonemas. Em julho de 2009, ele no podia assumir novo texto para os préximos dois anos. Quando se dedica a um livro, discute pagina por pagina com o artista e o designer, 159 observa todos os detalhes. Ele sabe 0 que quer de cada publicacéo e nao poupa esforcos para obter o resultado maximo. Certa vez, ele me disse que nao devemos temer a repercussdo de uma exposi¢do que confrontaré 0 estabelecido. Temos que acreditar no que estamos dizendo independente do que os outros achem. Sua biblioteca agrega cerca de 25 mil livros, sendo que 5 mil serao doados em breve para a Biblioteca Nacional. Ele pensa além dos cAnones, do estabelecido, e est4 sempre atento as entrelinhas. Seu nome imponente esconde uma generosidade impar. Sua viséo de mundo tem sido curtida em décadas e ainda est4 em processo. Trata-se de um refinamento incomum. Em especial, Paulo Herkenhoff tem muito a dizer e é feliz em sua pele. Assim como Hans Ulrich Obrist. Nenhuma escola do mundo tem condigao de forjar talentos como estes. Nao sozinhas. Mas elas podem ajudar a lapidé-los, ser parte de um percurso investigativo de construcao de um projeto curatorial. Elas criam redes de relacées em que afinidades se convergem, fomentam uma pausa reflexiva sobre curadoria que é enriquecida por discuss6es coletivas e causam a aproximacdo com referéncias precisas. Trata-se ainda de uma chance de adentrar de forma menos ingénua nos centros das questGes mais polémicas. Ocontato com profissionais maduros contribui para uma salutar transmissao de conhecimento geracional que ser ressignificado, gera trocas de opinides e ajuda a talhar a personalidade do discipulo. Ainda assim, tudo isso pode ser conseguido também com estdgios em instituig6es, frequéncia em ateliés de artistas, circulacdo sistematica por exposigGes institucionais e independentes, contato direto com profissionais admirados. Evoquemos novamente Schopenhauer: [...] nenhuma qualidade literaria - como por exemplo a capacidade de persuasao, a riqueza de imagens, o dom da comparacio, a ousadia, ou a amargura, ou a concisdo, ou a graca, ou a leveza de expresso, ou mesmo a argticia, os contrastes surpreendentes, o laconismo, a ingenuidade, entre outras - pode ser adquirida pelo simples fato de lermos escritores que possuem tal qualidade. Contudo, se j4 as possuimos in potentia, podemos evocé-las, trazé-las A nossa consciéncia, podemos ver o usc que é possivel fazer delas, podemos ser fortalecidos na inclinac&o, na disposigiio para usé-las, podemos julgar o efeito de sua aplicagio em exemplos e, assim, aprender a maneira correta de usa-las; e s6 entac possuiremos tais qualidades in actu. Essa é a unica maneira de a leitura 160 ensinar a escrever, na medida em que ela nos mostra o uso que podemos fazer de nossos proprios dons naturais [...]. (2009: 129) Quanto ao desejo, a intimidade com que o move e o inspira, a intuicao apurada e a libido pela vida nao podem ser ensinados. Devem ser garimpados por cada individuo por meio do que for preciso e no determinado a priori. Novamente Mario Vargas Llosa nos traz pensamentos da literatura que podem nos alimentar: O romancista que nao escreve sobre o que 14 no fundo do seu ser 0 estimula com insisténcia, mas que friamente escolhe assuntos ou temas de maneira racional porque acredita que assim teré mais chance de sucesso, carece de autenticidade [...] Mas me parece dificil alguém se tornar um criador ~ um transformador da realidade ~ se nao escrever nutrido por aqueles fantasmas (ou deménios) que carrega dentro de si [..J. (2006: 28) A obtengdo de certificados que oficializem a aquisicéo de certas ferramentas importantes para o exercicio da curadoria tem pesos diferentes na Europa, Estados Unidos e nas regi6es com sistemas da arte em desenvolvimento. Como apontado na matéria do U.S. News and World Report, a maior parte das instituigGes norte-americanas, ao contratarem curadores, levam em consideracao titulos de mestrado e doutorado na drea de conhecimento do candidato, como Histéria da Arte ou Museologia. Todavia, o critério de peso para convites e selecdo de concursos abertos para a ocupacao de postos institucionais sdo as realizac6es alcancadas pelo curador em termos de exposicées, publicagées ¢ projetos. Na Europa, idem. Segundo Andrea Bellini, em seu texto “Curatorial schools: between illusion and hope” [Escolas curatoriais: entre ilusao e esperanca], publicado na revista Flash Art, em 2006, os estudos de curadoria ainda nao geraram muitos nomes que fazem a diferenca: “Essa dificuldade é confirmada por uma verdade inegavel: hoje, quase todos os curadores mais ativos e interessantes, até entre os mais jovens, nao estudaram em escolas de curadoria e vieram dos mais diversos horizontes educacionais”. A situa¢o brasileira 6 semelhante, mas sob outro aspecto. Como os cursos de curadoria sao recentes no pais, podemos constatar que 0 fato de parte consideravel dos curadores brasileiros atuantes nao deter 161 diplomas de Teoria da Arte e Histéria da Arte, mas de serem advindos do jornalismo, direito, economia, entre outros campos, deve-se a alguns fatores: a propria auséncia de centros de exceléncia dessas disciplinas no pais, que oferecam um ambiente de pesquisa estimulante e que favoreca a convergéncia entre pratica e teoria e o fato de chegarem ao campo curatorial com menos conceitos arraigados, o que os leva a transitar de forma mais fluente entre proposicées dispares e problematizadoras de tradi¢des. O texto de Bellini ainda aponta para a similitude das grades curriculares ¢ afirma que a maior diferenca entre os cursos é o lugar onde acontecem (Londres, Seoul, Ljubljana, Téquio, Amsterda, Nova York etc.). De fato, encontramos de maneira geral em seus curriculos a preocupacao no aprofundamento de nogées de Teoria e Historia da Arte, escrita critica, sociologia da arte, estética, gestao cultural e projeto de exposicao, entre outras. Como lembra Lisette Lagnado, “os estudos curatoriais (tradu¢ao do termo anglo-saxdo curatorial studies), consolidados em paralelo com o processo mundial de privatizago da cultura, esto inseridos no cinzento contexto das leis de mercado” (2008: 13). Com o fortalecimento do processo do neoliberalismo, o sistema da arte contemporanea ganhou novas dimens6es e alcance. Lugares até ent4o isolados e silenciosos passaram a fazer parte da rota da arte contemporanea. Institui¢6es, bienais, feiras, cursos comegaram a ser criados, reformulando o mapa do sistema. Nao podemos de todo unificar os motivos e os formatos, pois cada contexto passou a gerar respostas a partir de demandas semelhantes. Deste modo, o contexto brasileiro, composto por varios contextos regionais, pede uma andlise diferenciada na leitura do surgimento de especializacdes, mestrados, semindrios e workshops de curadoria. Em Sao Paulo, ser curador de arte contemporanea é alimentar um sistema minimamente estruturado que anda com certa desenvoltura 4 parte das pressées politicas e ainda buscando equilibrio com a esfera econdmica. No Nordeste, significa romper com estruturas arraigadas de clientelismo, paternalismo e coronelismo politico, combater o arrefecimento da postura critica de ponta, reverter o resultado da depauperacdo dos centros de pesquisa, ressignificar a relacdo com o passado e a tradi¢ao, fornecer novas linhas de forca da histéria da arte local sem ser localista e contribuir para o suporte da criacdo artistica experimental e o adensamento critico local. Apesar da urgente demanda por mao de obra qualificada no pais, nao ha constancia nas politicas culturais. As afinidades eletivas, partidarias e até mesmo familiares séo muitas 162 vezes 0 critério para a contratacao de curadores e diretores de museu na maior parte do continente brasileiro. Para completar o cenario, as artes visuais notadamente nao ocupam lugar de destaque na lista de prioridade governamental e o meio ainda é muito dependente das vontades politicas. O autodidatismo, que pode ser alimentador de experimentos e transgress6es, também acolhe o improviso, a impostura. Neste sentido, a pausa reflexiva proposta por projetos de cursos voltados para o campo da curadoria pode ser um catalisador de mudangas, de quebra da cadeia de vicios. Como so recentes, nao temos como avaliar seus resultados, apenas aguardar e torcer para que o conhecimento construido seja ruptor, critico e construtivo de um meio mais oxigenado. Sem cartilha, nem rota precisa, a preparaco para se tornar curador deve se basear no bom senso, no que lhe faz sentido. O aspirante deve ficar sempre atento para nao se deixar seduzir pelos atalhos e nem ceder a pressio do mercado (0 ideal é ter uma tal elasticidade que o possibilite negociar, mas sem ferir seus principios). Deve ainda ser rigoroso na obtencado de conhecimento e aberto para o novo, para 0 que se transforma. Deve equilibrar as leituras com a experiéncia direta com a arte. Deve ser honesto com as questGes que o move e fiel aos artistas que o inspira. Deve ter seu senso critico azeitado e sua afetividade cultivada. Deve ser experimental sem resvalar em pirotecnias que ferem a integridade das proposicées artisticas. Como fazer tudo isso, depende de cada um. Agora o que talvez sirva para todos pode ser resumido numa corruptela do dito biblico: tempo de plantar, tempo de colher. Tempo, tempo, tempo. 163

Você também pode gostar