Você está na página 1de 129
Sees . pre eg: ata ataeen ESTUDOS DE Cee ecu it meh cui Conia eer eo ne ating DIREITO PENAL eat utr ete mettiess i Ce tcleneck ta ute ecenusccaetec ete Cee : pele cue er rma tier Cee 2° EDICAO REVISTA Be ec euC Ce ome eeu net heist ues cca occu ee omnes originals encontram-se na primeira nota de rodapé Be Gummer en Oke an ‘em ordem cronolégica, nem alfabética, ¢ sim Umma ie usec oh gd cook ure oe el Ee Seen ero ar kaa Pere eeucue ect ee bea ei juridico-penal da eutanasia”. No longo caminho aPC ees eh net ieles oie Ses mee welll UL ecole ase eae) ie a Traducio See ; ae Luis GRECO _ Estudos de Direito Penal il ene noo wwiveditoraren editorarenover.com.br RENOVAR wh ESTUDOS DE DIREITO PENAL Claus Roxin Professor emérito da Universidade de Munique; Dr. honoris causa pelas Universidades de Hayyang, Céreia do Sul; de Urbino e Estatal de Milo, Indlia; de Coimbra ¢ Lustada de Lisboa, Portugal; Complutense de Madrid e Central de Barcelona, Bspanha; Komorini @ Atenas, Grévia; de Tabasco, México; Nacional de Cordoba, Axgentina; del Norte, Assungéo, Paraguai; de Granada, spank de Sania Maria, Caracas, Venezuela; Professor honorario da Universidade de Lima, Peru. ESTUDOS DE DIREITO PENAL Tradugio: Lufs Greco Organizagéo: Luis Greco Fernando Gama de Miranda Netto 2" EDICAO 2° tiragem: janeiro 2012 RENOVAR. io de Joneiro + S60 Paulo Resrete «Aiea ‘Todos os direitos reservados & LIVRARIA E EDITORA RENOVAR LTDA, MATRIZ: Rua ds Assembléia, 10/2421 - Centro - RI CEP: 2001-901 - Tel: (21) 2531-2205 - Fax: (21) 2531-2135 FILIAL RJ: Tels: (21) 2589-1863 / 258048596 - Fax: (21) 2589-1962 FILIAL SP: Tel: (11) 3104-9951 -Fax: (11) 3105-0358 wuw.editorarenovar.com.br renovar@editorarenovar.com.br ‘SAC: 0800-221863 © 2012 by Livraria Editora Renover Lida Consetho Eativorat Amado Lopes Sussekind — Presidente Caio Ticito tix memoriam) Carlos Alberta Menezes Direlio Celso de Albuquerque Mello (in memoriam) Luiz Emygdio F. da Rosa Jr, Nadia de Araujo Ricardo Labo Torres ‘Ricardo Pereira Lia Revisdo Tipogndfica: Macia Cristina Lopes (Capa: PH Design Eulioragito Eletnica: TopTextos Edigdes Craticas Ltd. 2 tiragem: janciro 2012 CIP-Brasil. Catalogaedo-na-fonte Siogicato Nacional dos Editores de Livros, RD Roxin, Claus Ri266 Estudos de direito penal - 2 ed, / Claus Roxin; radu ‘80 de Luis Greco, — Rio de Jancito: Renovar, 2008. 2532p. : 2m. ISBN 978857147-682.0 1. Direito penal. 1. Tilo, cpp 346,810922 Pride producto (Lei 9.61098) Impresso n0 Brasil, Painted in Brasil f Apresentagio interesse pelo pensemento e obra de Claus Roxin € cada ver maior, Poucos sio os temas de direito penal e politica criminal que nio tenha Roxin enriquecido com suas reflexes nas quase cinco décadas em que a eles se dedica, e poucos 108 estudiosos que podem desconhecer 0 contetido dessas teflexdes. O leitor encontraré nesta coleténea todos os artigos de Claus Roxin traduzidos pelo primeiro organizador até agora publicados (no, porém, os livros). As referéncias das publica- {6es dos originais encontram-se na primeira nota de rodapé de cada artigo. Os estudos estio ordenados nfo em ordem cronoligica, nem alfabética, ¢ sim temética, caminhando do mais geral para o mais particular. Por isso 0 livro & aberto com a pergunta quanto a se “Tem futuro o direito penal?” e concluido com consideragées sobre a “apreciacio juridico-pe- nal da eutandsia”, No longo caminho entre um ponto e outro, passa-se por varios temas, como a imputagdo objetiva e a culpabilidade. O leitor saberé discernir, por tris de todos os trabalhos, a idéia condutora inicialmente exposta no livro Politica Criminal e Sistema Jurtdico-penal (publicado tam- bem pela Editora Renovar, agora em terceira edicao), segundo a qual direito penal ¢ politica-criminal se interpenetram, sendo necessirio proceder a uma “fundamentagio politico- criminal do sistema jurfdico-penal”, como diz Roxin no titulo de umn dos estudos. Assim € que tados os conceitos da teoria do delito passam por uma revisio em seus fundamentos e em seu contetido, de modo a adequé-los funcéo politico-crimi- nal que Ihes cabe. Por exemplo, um tipo que tem como uma de suas tarefas a prevencio geral s6 pode proibir acées que criem riscos juridicamente desaprovados — daf ser necesséria uma imputacdo objetiva. Da mesma forma, uma pena que no se legitima mais com base em exclusivas exigéncias de retribuigao ndo pode mais ser imposta tao logo se verifique a culpabilidade — dai ser necessiria a complementagao do conceito de culpabilidade por meio de consideragées preven tivas, 0 que se faz na teoria da responsabilidade. Em anexo ao final do livro, encontra-se a traducao dos principais dispo- sitivos da lei alema repetidamente citados aos diversos estu- dos. Por fim, os organizadores gostariam de manifestar alguns agradecimentos. Primeiramente, € claro, a0 professor Claus Roxin, pela confianca, pela amizade, pela generosidade, ma- nifestada aos dois organizadores; a Editora Renovar, por sett constante apoio, prestado desde o primeiro momento, quan- do 0 nome “Roxin” era entre nés conhecido apenas para um reduzido circulo de estudiosos; ¢ 4 Fundagéo Konrad Ade- nauer, pela ajuda que prestou 20 primeiro dos organizadores No que se refere aos termos médicos, o sétimo estudo contou com a ajuda do doutor Horst Wever e o tltimo com o do doutor Talvane de Moraes, aos quais também agradece 0 tradutor. Por diltimo, agradecem os organizadores a juiza e professora Ana Paula Vieira de Carvalho, quem primeiro lhes falow em Claus Roxin, quando ainda eram estudantes, dando, de certa forma, o pontapé inicial neste projeto que agora se consuma, Munique e Rio de Janeiro, janeiro de 2005 Luts Greco e Fernando Gama de Miranda Netto Abreviaturas AT = Allgemeiner Teil (Parte Geral, refere-se a manuais) BGB = Birgerliches Gesetzbuch (Cédigo Civil aleméo) BGH = Bundesgerichtshof (Tribunal Federal equivalente 20 nosso STI} EGHSt = Entscheidungen des Bundesgerichtshofs in Strafsachen (Decisdes do BGH em matéris penal) BVerfGE = Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts (Decisées da Corte Constitucional) CP = Codigo Penal Brasileiro FS = Festschrift (Estudos em Homenagem) GA = Goltdammers Archiv fur Strafrecht (peri6dico) GG = Grundgesetz (Lei Fundamental) GS = Gedachtnisschrift (Estudos em memoria) JZ = Juristenzeitung (periédico) JA = Juristische Arbeitsblatter (peri6dico) NIW = Neue Turistische Wochenschrift (periédico) NStZ = Neue Zeitschrift fiir Strafrecht (perisdico) OLG = Oberlandesgericht (Tribunal Superior do Land) RGSt = Decisdes do Reichsgericht (Tribunal de Reich) em matéria penal Rn = Rendaummer (niimero de margem) StGB = Strafgesetzbuch (Codigo Penal alemfo) StPO = StrafprozeBordnung (Cédigo de Processo Penal slemao) TPG = Transplantationsgesetz (Lei alema de transplantes) Zeitschrift fiir Rechtspolitik (periédico) eitschrift fr die gesamte Strafrechtswissenschalt (perisdico) Sumério ‘TEM FUTURO © DIREITO PENAL? I. Introd u80 orn Tl, Pode o direito penal ser abolida? 1. Conciliar, a0 invés de julgar: correntes abolicionistas 2. Prevenir, 20 invés de punie: controle mais intensivo do crime pelo Estado... 3. Curar, ao invés de punir: a substituigao do direito penal por um sistema de medidas de seguranca II, Poder-se-, fsturamente, evitar sangGes penais de modo considerdvel através da descriminalizagio e da diversificacao?. 1. Deseriminalizagao 2. Diversificacio IV. A quantidade de dispositivos penais e de violagées contra eles cometidas diminuirs ou aumentard? V. O direito penal do futuro seri mais suave ou mais severo? VI. Como serd o sistema de sangées no direito penal do Fatar0? on 1. Novas penas ou medidas de seguranca? 2. Sangoes orientadas pela voluntariedade a) O trabalho de utilidade cormam.. b) A reparacio voluntéria 3. SangGes a pessoas juridicas. VII. Resultado QUE COMPORTAMENTOS PODE © ESTADO PROIBIR SOB AMEACA DE PENA? SOBRE A LEGITIMACAO DAS PROIBICOES PENAIS L Colocagio do problema IL. Os limites a faculdade de punir devem ser deduzidos das" Finalidades do direito penal... IIL. Conseqiiéncias concretas para legislagio penal 1. A descrigdo da finalidade da lei néo basta para fundamentar um bem jurfdico que legitime um tipo... 2. [morslidade, contrariedade a ética ¢ mera reprovabilidade de um comportamento nio bastam para legitimar uma proibigio penal 3. A violacéo da prépria dignidade humana ou da “natureza do homem” nao é razio suficiente para a punicio . 4. A autoleséo consciente, sua possibilitacao e promogio ‘io legitimam uma proibicéo penal. : 5. Normas juricico-penais preponderantemente simbélicas devem ser recusadas. 6. Tipos penais nfo podem ser fundados sobre bens juridicos de abstracio impalpavel i IV. Algumas palavras sobre o principio da subsidisriedade .. V. Conchuséo i NORMATIVISMO, POLITICA CRIMINAL E DADOS EMPIRICOS NA DOGMATICA DO DIREITO PENAL . Sobre a fundamentacdo ontolégica do sistema juridico-penal pelo finalismo. I, Méritos do finalismo ULL O préprio posicionamento como combinagio entre normativismo e referéncia empirica : IV. Objesses contra uma concepgao politico-criminal no pensamento sistematico juridico-penal 'V. Controle de comportamentos (Verhaltenssteuerung) © decisio a respeito da necessidade de pena (Strafberdiirftigheitsentscheidung) como as tarefas, politico-criminais do injusto e da responsabilidade V1. A conctetizagio das decisées fundamentais politico-criminais como ponderacdo entre necessidade interveativa estatal e liberdade individual VIL. Conclusio 31 32 36 36 37 39 44 AT 50 52 33 55 58. 61 64 68 SOBRE A FUNDAMENTACAO POLITICO-CRIMINAL DO SISTEMA JURIDICO-PENAL I. Sobre a teoria do ilieito 7 1. O caréter avalorado (Wertfreiheit) da construcio sistemitica causal e final no &mbito do il(CtO runnin 2.,A teoria funcional do ilicito como uma teoria da imputacSo derivada da tarefa do direito penal, politico-criminalmente fundada, ¢ aberta para a dimensio empitica : 3. Objecées... a U1, Sobre a'teoria da responsabilidade. 1, Sua dedugio de teoria dos fins da pena ea introducio da idéia de prevencio 2. Conseqiiencias préticas ¢ sua consonincia com © ordenamento j 3. Objecies A TEORIA DA IMPUTACAO OBJETIVA I. Problemas do tipo na teoria causal e final da aco IL, Linkas mestras da teoria da imputacdo objetiv3... 1. A criagdo de um risco néo permitido. 2. A realizagio do risco no permitido wonnm : 3, O sleance do tipo eo principio da auto-responsabilidade 10, Outs conseaiéncas da teoria da imputastoobjetiva. 1A diminuigSo do risco. 2. O risco permitido.. 3. O fim de protegio da norma de cuidado em seu significado para o critério da realizaga0 do perigo ... 4. A atribuigio ao imbito de responsabilidade de terceiros IV. A importancia da imputacéo objetiva para a moderna teoria do tipo. Sobre o "confusio entre o objetivo eo subjetivo” 1, O deslocamento do centro de gravidade para tipo objetivo 2. A reestruturacio do ilfeito culposo... 3. A imporednca da imputagto objeive pa pata os delicos. dolosos, 4. O subjetivo na imputacto objetiva. V. O desenvolvimento da teoria da imputagio objet e seus atuais opositores. 1. O surgimento e a consolidacio da moderna teoria da imputagio 2, Sobre a antiga historia dogmnitica da teoria de imputagio 3. Opositores atuais da teoria da imputacio objetiva. 8) Sobre o problema da criagio do perigo 'b} Sobre 0 problema dos desvios causais. ©) Sobre a unidade temética da imputagdo objetiva A CULPABILIDADE E SUA EXCLUSAO NO DIREITO PENAL, 1.0 principio da culpabilidade como espinha dorsal da imputagio objetiva e subjetiva TI. O aspecto externo do principio da culpabilidade: « exclusio do acaso TIL A culpabilidade como realizacio do injusto apesar de idoneidade para ser destinatério de normas. TV. Outras concepcées de culpabilidade... : 1. A culpabilidade como animo merecedor de repre! 2. A culpabilidade como ter de responder pelo préprio cardter: 3. A culpabilidade camo atribuigso segundo ne ‘necessidades preventivas gerais. \V. idoneidade para ser destinatario de normas, poder-agir-diversamente e livee-arbitrio VI. Matizes preventivos na exculpacio.. VIL. A culpabilidade e a necessidade de pena como ressupostos conjuntos da responsabilidade 1. As conseqiéncias dogméticas desta concepcto 2. As conseqtiéncias juridicas praticas VIII. Concluséo. ‘A PROTECAO DA VIDA HUMANA ATRAVES DO. DIREITO PENAL I. Introdugio TL A protecio 20 embriao. IL A proto ds vida humana durante gravier IV. O instante do nascimento. V. Aeutanisia Vi. Momento ca morte ¢ transplante de éxgdos 123 124 126 127 128 130 133 135 138 140 140 141 143 144 149 154 155 157 162 165 16 V7 175 uv 182 ‘A APRECIACAO JURIDICO-PENAL DA EUTANASIA I. Introducéo sone 189 1. A “eutandsia pura” 1A anestesia dlesejada e sem diminuiglo da vida 2. A anestesia em oposigio a vontade do paciente 3. A anestesia omitida contra a vontade do paciente IT. A “eutanasia indireta” Z é 1. A principio, permitida «.... 2. Exclusio do tipo ou estado de necessidade justificante?....195, 3. A dimensdo temporal da eutandsia indireta 198 4, $6 dores ou também estados de grave sofrimento como pressuposto da eutandsia indireta?, 199 5. A forma do dolo na eutandsia indireta.sonownnnnnnen 199 TV. A eutandsia passiva 202 1. A omissao ou a suspensio de medidas prolongadoras da vida, por desejo do paciente 202 4) O princfpio: quem decide é s6 0 paciente 3) Balt alguna excecto pars o caso de pacientes suicidas?.. 203 c) A incerrupcio técnica do tratamenta coma omissé0 205 ) A interrupgdo técnica do tratamento por um nio-médico. 206 2. A omissio de medidas mantenedoras da vida contra a vontade do paciente 207 a) Em prinefpio, hé um dever de prolongar @ Vida wen ) O limite do dever médico de tratamento. 3. A omissao de medidas mantenedoras da vida em. pacientes incapazes de exteriorizar sua vontade no momento da decisio . 2) A dispensa de medidas prolongadoras da vida durante 0 processo da morte b) A interrupgio do tratamento de pacientes 1ndo-moribundos, principalmente nos casos da chamada sindrome de descerebragio. 1210 b.1) A jurisprudéncia mais recente e suas consequéncias...210 'b.2) A mais recente jurisprudéncia em meio 3s, controvérsias, : 214 V. A eutandsia ativa Pettit 219 1. A impunidade do auxtlio @ suicidio 219 a) A limitacao da impunidade a hipStese do suicidio responsivel b) A delimitagao entre a participagio em st homicfdio a pedido da vitima ©) Punibilidade pela omissio de salvar 0 suicida? .. 2, Ohomicidio a pedido da vitima. a) A opiniéo dominante: punibilidade irrestrita b) Restricdes a punibilidade e propostas divergentes de lei feitas pela literstusa 3 ©) Posicionamento V1. A eutandsia precace Vil, A Yeliminacao de vidas indignas de viver VIIL. Conclusio i Anexo; traducéo dos dispositives do Cédigo Penal alernio (StGB) mais citados. joeo TEM FUTURO O DIREITO PENAL?! I. Introdugio Essa pergunta é justificada, e de modo algum podemos estar tio seguros de que a resposta seré afirmativa quanto estarfamos se ela fosse formulada em relacio a outras cria- Ges culturais. E verdade que o direito penal certamente € ‘uma instituigao social muito importante. Ele assegura a paz infra-estatal e uma distribuicao de bens minimamente jus- ta, Com isso garante ao individuo os pressupostos para 0 livre desenvolvimento de sua personalidade, o que se com- preende entre as tarefas essenciais do estado social de di- reito. Mas enquanto outras conquistas culturais, como a literatura, as artes plisticas e a misica, bem como numero- sas ciéncias, desde a arqueologia, passando pela medicina, até a pesquisa pela paz (Friedensforschung), sao valiosas em 1 Opresente estudo ¢ uma versio trabalhada de uma conferéncia que aprescntei nos anos de 1997 ¢ 1998 em diversos paises europeus. Eu 0 dedico 3 meméria do colega Heinz Zipf, prematuremente falecido, a quem me vinculavam ado sé cordiais relacdes pessoais, como principalmente o interesse cientifico comum pela politica criminal (N.T,) Este estudo (Hat das Strafrecke eine Zukunft? foi original mente publicado em Gedachtnisschrift for Heinz Zipf, Gossel/ Triffterer (eds.}, Heidelberg, 1999, p. 135 e ss. si mesmas e mal necessitam de uma justificagdo, de modo que todos se engajariam alegremente pelo seu futuro, no caso do direito penal a situacao ¢ distinta ‘Também aquele que deseja e profetiza um longo futuro para o direito penal tera de conceder que a justica criminal ‘um mal talvez necessério e que, por isso, deve ser promo- vido — mas que continua sendo tum mal. Ela submete nu- maerosos cidadaos, nem sempre culpados, a medidas perse- cutérias extremamente graves do ponto de vista social ¢ psiquico. Ela estigmatiza 0 condenado eo leva a desclassi- ficagao ¢ 8 exclusio social, conseqiiéncias que nfo poder ser desejadas num Estado Social de Direito, o qual tem por fim a integracdo ¢ a reducio de discriminac6es. Seria portanto melhor se os beneficios que se imputam a0 direito penal pudessem ser obtidos de modo socialmen- te menos oneroso. Dever-se-ia, assim, enxergar o direito penal como uma instituicio necesséria em sociedades me- nos desenvolvidas, fundamentada historicamente, mas que é preciso superar. Ele teria um longo passado, porém néo mais um grande futuro, Tais idéias nao s60 opinides isola- das de alguns dissidentes, mas possuem jé uma longa tradi- cio. Assim é que, por ex., na Itélia, o Projeto Ferri (1921)? do utilizou o conceito de pena, ¢ Gustav Radbruch, um dos maiores penalistas alemes da primeira metade do sé- culo, pensava que a evolugao do direito penal iria “deixar para trés 0 proprio direito penal”, transformando-o num direito de ressocializacio ¢ tutela, que seria “melhor que © direito penal, mais inteligente ¢ humano que o direito penal”, 2 Ferri, E., Relazione al Progetto preliminare di Codice penale italia- no, in: La Scuola Positiva. Rivista di diritto e procedura penale, 1921, pp. lless.,, 75ess,, 140 ess, 3° Radbruch, Rechtsphilosophie, 8° edigio, 1973, p. 265. Devemos voltar-nos agora & pergunta central: se, num Estado Social de Direito!, o direito penal conseguiré man- ter-se, © se merece ser preservado, II. Pode o direito penal ser abolido? 1. Conciliar, ao invés de julgar®: correntes abolicionistas O movimento abolicionista, que possui varios adeptos entre os criminélogos® — no tantos entre os juristas — europeus, considera que as expostas desvantagens do direi- to penal estatal pesam mais que seus beneficios. Eles par- tem da idéia de que através de um aparelho de justiga vol- tado para o combate ao crime nao se consegue nada que nio se possa obter de modo igual ou melhor através de um combate as causas sociais da delingiiéncia e, se for 0 caso, de medidas conciliatérias extra-estatais, indenizacoes repa- rat6rias e similares. Se tais suposicdes sio realistas, 0 futuro do direito pe- nal s6 pode consistir em sua abolicéo. Mas, infelizmente, a inspiragio social-romantica de tais idéias € acentuada de- mais para que elas possam ser seguidas’. Uma sociedade 4 Para o enquadramento da atividade penal nos moldes do estado social de direito veja-se, mais aprofundadamente, Zipf, Kriminalpoli- tik, 2° edigdo, 1980, p. 29 ess. 5 (N.T) No original, a expresséo também rima, na forma de um ema: “Schlichten statt tichten* 6 Mais antigamente, jd Vargah, Die Abschaffung der Strafknechts- cchaft, Studien aur Strafrechtsreform, 2 partes, 1896 € 1897. Nos tem- pos mais recentes, Mathiesen, Die lautlose Disziplinienng, 1985; Fou cault, Uberwachen und Strafen, 1977; Hulsman, Une perspective abo- litioniste du systeme de justitia penal et un schema dapproche des situations problematiques, 1981. 7 Para a critica 20 abolicionismo, Kaiser, Kriminologie, 3* edicio, 3 livre do direito penal pressuporia, antes de mais nada, que através de um controle de natalidade, de mercados comuns e de uma utilizagio racional dos recursos de nosso mundo se pudesse criar uma sociedade que eliminasse as causas do crime, reduzindo, portanto, drasticamente aquilo que hoje chamamos de delingiiéncia. Mesmo este pressuposto baseia-se, segundo penso, em, consideracoes erréneas. A Alemanha vem gozando, desde a época do pés-guerra (depois de 1950) até a reumnificacao, de um nivel de bem-estar cada vez. maior, com uma popu lacdo sempre decrescente — mas a criminalidade aumen- tou de modo considerdvel. Nao corresponde, portanto, & experiéncia que a criminalidade se deixe eliminar através de reformas sociais. E mais realista a hipétese de que a ctiminalidade, como espécie do que os sociélogos chamam de “comportamento desviante"s, se encontre dentro do le- que das formas tipicas de acdo humana, ¢ que vi existir para sempre. As circunstancias sociais determinam mais 0 “como” do que o “se” da criminalidade: quando camadas inteiras da sociedade passam fome, surge uma grande cri- minalidade de pobreza; quando a maioria vive em boas condigées econémicas, desenvolve-se a criminalidade de bem-estar, relacionada ao desejo de sempre aumentar as, posses ¢, através disso, destacar-se na sociedade. Isto ndo implica que no devamos esforcar-nos por um aumento do bem-estar geral. Mas nao se espere daf uma eficaz diminui- ho da criminalidade. Independentemente disso, a situagao do delingiiente nao melhoraria se o controle do crime fosse transferido para uma instituicdo arbitral independente do Estado. Pois 1996, § 32, nm. 32 € ss; Sckdch, in: Kaiser/Sch6ch, Keiminologie, Jue gendstraftecht, Strafvolizug, 4 edicio, 1994, Caso 3, nm. 885 e's. 8 Kaiser, Kriminologie, Fine Einfuheung in die Grundlagen, 8° edi ‘io, 1989, § 26, nm, 1; 9 mesmo, Kriminologie, 3 edigdo, 1956, 636, tm, Le 9s; Eisenberg, Kriminologie, 4 edicio, 1995, nm, 10 e 4 quem deveria compor ¢ fiscalizar essas instancias de con- role? Quem garantiria a seguranca juridica e evitaria 0 ar- bitrio? E, principalmente: como se pode evitar que sejam nio pessoas justas ¢ que pensem socialmente, mas sim os poderosos a obter o controle, oprimindo e estigmatizando 6s fracos? A discriminacio social pode ser pior que a esta- tal. Liberar 0 controle do crime de parimetros garantidos estatalmente e exercidos através do érgio judiciério iria aublar as fronteiras entre o licito e 0 ilicito, levar 8 justica pelas préprias mos, com isso destruindo-se a paz social. Por fim, nao se viskumbra como, sem um direito penal es- tatal, se poderé reagir de modo eficiente a delitos contra a coletividade (contravencdes ambientais ou tributérias e de- mais fatos puniveis econémicos) Minha primeira conclusio intermedigria € a seguint também no Estado Social de Dircito, o abolicionismo nao conseguir acabar com o futuro do direito penal, 2. Prevenir, ao invés de punir: controle mais intensivo do crime pelo Estado Outro caminho através do qual se poderia tentar a eli- minagao ou uma extensa rediucao da criminalidade e, com la, do direito penal, seria nao a redugo do controle esta- tal, mas, inversamente, seu fortalecimento através de uma abrangente vigilincia de todos os cidadaos. De fato, pode-se verificar que sociedades liberais e de- mocréticas possuem uma criminalidade maior que ditadu- ras. Mas também um pafs livre ¢ em que existe um Estado de Direito, como o Japio, apresenta uma criminalidade sensivelmente menor que a dos Estados industriais do Oci- dente’, Isto costuma ser explicado com o fato de a estrutu- 9 Paraas diferencas na estatistica criminal levando em consideragéo 0 Tapio, veja-se Eisenberg, Kriminclogie, 4* edigao, 1995, nm. 12 ess. ra social japonesa ser bem menos individualista que a oci- dental. O individuo esta submetico, portanto, a um contro- le social (através da familia, dos vizinhos e de uma policia de imagem assistencial) consideravelmente mais intenso, 0 que dificulta o comportamento desviante. Munique ¢ a ci- dade grande mais segura da Alemanha, isto 6, com a menor criminalidade; e isto decorre do fato de que Munique pos- sui 0 mais intenso de todos os policiamentos, obtendo atra- vés disso maior eficéicia preventiva”, Surge entao a pergunta se, através de uma vigilancia tio perfeita quanto possivel, se pode e deve levar a criminali- dade ao desaparecimento. O direito penal seria, assim, so- mente uma tiltima rede de interceptagao daqueles atos que ndo se conseguissem evitar desta mancira. Estes poderiam ser tratados de modo suave, conseguindo-se quase que uma abolicdo das sanges repressivas, Para a variante totalitéria desse modelo de vigiléncia, a resposta deve de pronto ser negativa, Isto no s6 por causa da contrariedade dessas concepgdes a0 Estado de Direito, como também pelo fato de que regimes autoritérios costu- mam punir com ainda maior severidade os fatos que nio conseguiem prevenir De resto, a idéia de uma prevengio de delitos assecura- téria da paz merece algumas consideracées. Afinal, a tecno- logia moderna elevou exponencialmente as possibilidades de controle. Elas abrangem as escutas telefénicas, a grava- cio secreta da palavra falada mesmo em ambientes priva- dos, a vigilancia através de videocAmeras, o armazenamen- to de dados e seu intercambio global, métodos eletrdnicos de rastreamento ¢ medidas afins"’. Atualmente, a maioria 10 Para a fungdo preventiva da densidade policial, ef. Kaiser, Krimino- logie, 3° edigdo, 1996, § 31, nm. 9, 11 Gropp, Besondere ErmittlungsmaSnahmen zur Bekampfung der or- ganisierten Kriminalieit, ZSeW 105 (1993), p. 405 e ss. 6 dos Estados democriticos jé faz uso destes meios, em maior ou menor medida. Desta forma nao s6 se impediriam virios defitos, como também, no caso de serem eles come- tidos, se conseguiria com grande probabilidade apreender seu autor; além do mais, poderia surgir, ao lado destes efei- tos impeditivos, um efeito intimidativo que tornaria, em grande parte, supérflua a necessidade de uma pena: Porém, tal modelo impeditivo sé € exeqiifvel de um modo limitadamente eficiente, e também é s6 parcialmen- te defensével do ponto de vista do Estado de Direito. Pri- meiro, existem varios delitos que nao se conseguem evitar nem mesmo através das mais cuidadosas medidas de vigi- lancia, Lembrem-se os delitos passionais como homicidios, lesdes corporais ¢ estupros, delitos praticados fora de am- bientes vigiados, e também, por ex., delitos econdmicos, que nio atingem objeto exteriormente visivel. Além disso, varios métodos de vigilancia podem ser superados se forem tomadas medidas técnicas, ou se se evitarem os espacos vigiados. ‘Acima de tudo, a limitacio 8 esfera privada e intima que um sistema de vigilincia traz consigo nao é de modo algum ilimitadamente permitida num Estado de Direito Li- beral. Se, p. ex., toda a esfera privada dos suspeitos, até seu dormitério, for submetida a uma vigilancia acéstica e stica, retira-se dessas pessoas, entre as quais se encontrardo ne- cessariamente varios inocentes, qualquer espago em que possam construir suas vidas livres da ingeréncia estatal, atingindo-se, assim, o micleo de sua personalidade, Isto se~ ria um prego demasiado cero, mesmo para um combate eficiente ao crime. Deve-se, portanto, distinguir: nao se pode, pelas razdes garantistas acima expendidas, proceder a uma vigilancia actistica e ética de ambientes privados, Apés longa hesita- Gio, permitiu a lei alema em 1998 uma limitada vigilancia actistics da moradia privada (o assim chamado “grande ato- que da escuta")"", 0 que representa uma inovacio altamen- te problematica do ponto de vista do estado de direito, que deveria ser outra vez. abolida tio rapidamente quanto pos- sivel. Mas, pelo contrério, parece-me justificado que uma incessante vigilincia através de cimeras ou a presenga poli- cial controlem instalagées piblicas, ruas e pracas, nas quais se saiba ocorrerem aces criminosas, bem como que rondas policiais protejam moradias privadas do perigo de arromba- mento. Os direitos da personalidade nio sao seriamente restringidos, pois qualquer um que aparega em piblico se submete a observacao por outras pessoas. Da mesma forma, poder-se-ia enfrentar a grande crimi- nalidade econémica ¢ a criminalidade organizada de modo muito mais eficiente, se fosse possivel suspender o sigilo fiscal diante das agéncias financeiras e obrigar os bancos a informar regularmente 3 Reparticéo de Finangas (Finan- zamt)"* a respeito das operagées financeiras ocorridas em suas contas; com o atual desenvolvimento da tecnologia de 12 (N. T.} O termo original € “groer Lauschangrff". Trata-se do § 100 c I, n® 3, da StPO, que autoriza a autoridade a escutar ¢ fazcr sgravagdes de conversas em moradias, desde que aquele cuja conversa se escuta ou grava seja suspeito da pritica de certas infracées graves na lei clencades (como homicidio, roubo, receptacio), e o nfo uso deste meio ‘enha por efeito dificultar consideravelmente ou impossibilitar osuces- so das investigacées. Veja-se, a respeito, Beulke, StrafprozeBrecht, 6° edicio. C, F. Miller, Heidelberg, 2004, nm, 266. Observe-se que, bem recentemente (ov scja, em momento posterior a claboragio do presen- te artigo}, declarou 0 Tribunal Constitucional alemio inconstitucional grande parte do dispositivo (BverfGE 109 [2004], p. 279 ess.) 13 (N. TO Finanzamt ou, mais propriamente, o Bundesamt fir Fi- nanzen, é um 6rgéo do Ministério das Financas, competente para tratar dle questoes de impostos e de prestacses de servicasa outzos setores da Administragio. (Informacdo obtida em http://www.bff-online.de/ amtkurz,htm, no dia 27 de junho de 2000} 8 comunicagées de dados, isto ndo representaria qualquer problema técnico. Desta maneira, poder-se-ia impedir que as eminéncias pardas desse tipo de crime fizessem sua lava- gem de dinheiro, ou mesmo prendé-las, sem que ocorresse uma intervengio intoleravel nos direitos da personalidade; pois todos jé so, por motivos fiscais, obrigados a revelar seu patriménio ao Estado" Minha segunda conclusdo intermediéria 6, portanto, a seguinte: uma vigiléncia mais intensiva, que leve a crimina- Jidade ao desaparecimento, igualmente nao poder tornar 0 direito penal supérfluo. Ela, afinal, s6 é possivel em setores restritos, ¢ mesmo no caso de sua possibilidade, é apenas parcialmente permitida, Entretanto, nos limites do possf- vel e do permitido, ela é um meio eficiente de combate a criminalidade, que deverd, assim, integrar o direito penal do futuro, 3. Curar, ao invés de punir: a substituicao do direito penal por um sistema de medidas de seguranca ‘Uma exigéncia que jé tem uma longa tradic¢o na Euro- pa procura substituir no futuro a pena por medidas de se- guranca’s. Esta concepcio baseia-se predominantemente na idéia de que o criminoso seja um doente psiquico ou social, que deveria ser tratado ao invés de punido. Se nos perguntarmos se o futuro do direito penal seguirs esta ten- dencia, obteremos uma resposta diferenciadora. E correto que parte considerdvel dos condenados, principalmente aqueles que por habito so ladrées, estelionatérios delin- M4 Kollman, Kommentar aum Steuerstrafrecht, § 370 AO, nm. 9.2. 15 Goppinger, Kriminologie, 5* edicao, 1997, p. 195. qiientes sexuais, sejam pessoas perturbadas em seu desen- volvimento psfquico ou social. Eles aecessitariam de uma eficaz terapia, de que, na maior parte dos casos, ainda nio dispomos. Devemos considerar, porém, que em algumas décadas poderao ter sido desenvolvidos métodos eficientes de terapia social, principalmente na forma do tratamento em terapia de grupo. As instituigdes de experiéncias social- terapéuticas que possuimos hoje na Alemanha fazem com que isto pareca promissor'®, Em decorréncia disso, € de se considerar que medidas terapéuticas aparecam em maior quantidade ao lado da pena, a complementem e, em parte, até a substituam. Atualmente, as medidas de seguranca te- rapeuticamente orientadas compéem s6 3% de todas as sangGes privativas de liberdade; esta porcentagem poder ser elevada consideravelmente’’, Acima de tudo, deve-se esperar que estabelecimentos social-terapéuticos sejam institufdos de modo geral como nova medida de seguranca. Entretanto, uma substituigao do direito penal por me- didas de seguranca terapéuticas tampouco é de se esperar no futuro. Primeiramente, deve-se ter consciéncia de que varios daqueles perturbados em seu comportamento social permanccerio insensiveis ao tratamento; isso j4 porque 0 tratamento € impossivel — ao menos em condigées respei- tadoras da dignidade humana — sem a livre cooperacao do delingéente, que ndo raro faltard, Em tais casos, somente ‘uma sancao penal poders ser utilizada. Mas, acima de tudo, deve ser considerado que s6 uma parte — nem mesmo majoritéria — de todos os delingiien- tes precisa de terapia, ainda que ela existisse. Os que co- 16 Kaiser, in: Koiser/Schoch, Keiminologie, Fugendstrafrechs, Straf- vollzug, p. 109. 17 Kaiser, in: Kaiser/Schisch, Kriminologie, Jugendstrafrecht, Straf= vollzug, p91 10 metem crimes de trinsito, contra o meio ambiente, econd- micos ou tributarios nao sdo pessoas menos normais do que a média da populacdo; também os envolvidos na criminali- dade organizada sio comumemente homens de negécios bastante espertos, com enorme competéncia para viver em sociedade. Nao se pode dizer absolutamente de modo ge- nérico que o criminoso seja um doente psiquico. Deve-se lembrar também que medidas de seguranga no sao incondicionalmente mais vantajosas que a pena do ponto de vista garantistico-social. Afinal, elas permitem intervengées mais duras na berdade do individuo que a pena, a qual é limitada pelo principio da culpabilidade"*, Se ‘também a execugio da pena tiver — como é de se exigir — a estrutura de uma execucéo de tratamento, para muitos infratores a pena ser mais adequada do que uma medida de seguranca privativa de liberdade, pois a primeira atende melhor a exigéncias garantfsticas e sociais. Minha terceira conchusio intermedia €, desta forma, a seguinte: no futuro, pode-se estender o campo de aplica~ io das medidas de seguranca, mas uma substituigao do direito penal por um direito de medidas de seguranga néo € possivel e, em varios casos, sequer desejado. IIL. Poder-se-4, futuramente, evitar sangGes penais de modo consideravel através da descriminalizacao e da diversificacdo? Nestes dois instrumentos politico-sociais ocorre no uma eliminagéo, mas uma redugao das cominagdes penais 18 Roxin, Strafrecht — Allgemeiner Teil, vol I, 3* edicéo, 1997, § 3, am, 64, n ou da pena criminal. Eles se inter-relacionam, de maneira que 56 se cogitars de uma diversificacao na hipétese em que nio seja posstvel a descriminalizagio. 1, Descriminalizagio A descriminalizagio € possfvel em dois sentidos: pri- meiramente, pode ocorrer uma eliminacio definitiva de dispositivos penais que néo sejam necessérios para a manu- tengo da paz social. Comportamentos que somente infrin- jam a moral, a religido ou a political correctedness, ou que levem a nao mais que uma autocolocagao em perigo, néo devem ser punidos num estado social de direito. Afinal, o impedimento de tais condutas no pertence as tarefas do direito penal, a0 qual somente incumbe impedit danos a terceiros e gerantir as condig6es de coexisténcia social! 19 Sobre a tarefe do direito penal: Roxin, Strafrecht — Allgemeiner Teil (Direito Penal — Parte Geral}, vol. , 3° edigio, 1997, § 25, am. 1 ‘ess. Sobre o conceito material de crime”, veja-se Zipf, Kriminalpolitik, P 10855, * (N. T)} Por conceito material de crime vem-se entendendo, de ‘modo cada vez mais difandido, uma nogdo pré-legal, com finalidades politico-criminais, daquilo que deve ser punivel dentro de um estado social de direito. Com base nele se “pergunta o que pode ser proibido na nossa atual ordem juridica e social” (Maurach/Zipf, Strafreche, All- gemeiner Teil, vol. I, 8° edicéo, C. F. Maller, Heidelberg, 1992, § 13/6). Costuma-se apontar como seu conterica wma lesdo a bem jur co, ot um comportamento socialmente danoso, que no possa ser evi- tado com nenhurn outro meio da ordem juridica, tornando necessirio 0 Fecarto 3 ultima ratio que € 0 direito penal (veja-se, por tods, Roxin, Strafrecht —Allgemeiner Teil, vol. I, 3 edigio, 1997, § 2°, nm. 1, que o deduz da tarefa do direito penal, que é a protecio subsidiiria de bens juridicos; ¢, em nosse lingua, Figueiredo Dias, O vomportamento cri- minal e sua definigdo: 0 conceito material de crime, on: Quest6es fuin- 2 Um segundo campo de descriminalizagées € aberto pelo principio da subsidiariedade. Este principio funds- menta-se na idéia de que o direito penal, em virtude das suas acima expostas desvantagens, somente pode ser a ulti- ma ratio da politica social. Isso significa que s6 se deve cominar penas a comportamentos socialmente lesivos se a climinacao do disturbio social nao puder ser obtida através de meios extrapenais menos gravosos™, Tal caminho foi encetado pelo direito alemio, p. €x., a0 se criarem infragdes de contra-ordenacao"’. Assim, distér- bios sociais com intensidade de bagatela — pequenas infra- gies de transito, barulho nao permitido, ou incdmodos & comunidade — nao sao mais sujeitos & pena, ¢ sim, como infragdes de contra-ordenacio, somente @ uma coima (Geldbusse). O direito penal do futuro tem aqui um exten- so campo— especialmente as numerosas leis extravagantes — para a descriminalizacio. damentais de dircito penal revisitadas, RT, Séo Paulo, 1999, p. 51 € ss). 20 Roxin, Strafrecht — Allgemeiner Teil I, § 2°, nm. 1 21 (N. T.) Entendem-se por contra-ordenacses (Ovdnungsuidrighei- ten}, gross0 modo, aquelesatos ilicitos nio-civis que, por seu cariter de bagatela, néo chegam a ser penalmente relevantes. A lei lhes comina anges extrapenais, em especial 2 Geldbusse (uma sangao pecunisria, dlistinta da pena de’ multa, e que os portugueses traduzem por “coi ma‘). Grande parte desses ilicitos pertencia antes a0 direito penal, tendo sido submetida a um processo de descriminalizacao (Jes check/Weigend, Lehrbuch des Strafrechts, Allgemeiner Teil, 5* edisio, Duncker & Humblot, Berlim, 1996, p. 57 e 55; veja-se, também, « andlise detalhada de Figueiredo Dias, Do Direito penal administrative ao direito de mera ordenacio social: das contravencdes as contra: ‘ordenagées, em: Questdes fundamentais de direito penal revisitadas, RT, Sao Paulo, 1989, p. 164 e ss.) 13 2. Diversificagao” Nas hipéteses em que a descriminalizagéo nao € possi- vel — como no furto —, poder-se-4 evitar as desvantagens da criminalizacao através de alternativas & condenacio for- mal por um juiz. Tais métados de diversificagio so utiliza- dos em quantidade considerével na Alemanha, pois o juiz e também o Ministério Pitblico podem arquivar 0 proceso quando se tratar de delitos de bagatela em cuja persecugio nao subsista interesse piblico; tal arquivamento pode ocor- rer inclusive no ambito da criminalidade média, se 0 acusa- do prestar servigos titeis comunidade (como pagementos a Cruz Vermelha ou a reparacio do dano)®. Estes métodos de diversificagao sio utilizados jé hoje na Alemanha em quase metade de todos os casos, tendo reduzido consideravelmente a quantidade de punigées”. ‘Apesar das vérias reservas suscitadas pela falta de determi nacdo dos pressupostos para esta diversificagio e pelo des- locamento da competéncia deciséria para o ministério pu blico, esta espécie de reacao a delitos deve ser um elemen- to essencial do direito penal do futuro, pois ficou demons- trado que contra autores nao habituais de delitos de menor gravidade, j4 0 inicio de um processo penal ou as menciona- das medidas impeditivas da pena possuem uma eficécia preventiva, que torna supérflua a punicao. A diversificagdo 22 {N. T.) O termo original é a palavra de origem inglesa diversion, preferi discrepar de renomados autores de nossa lingua, que a traduzera por diversio (p. ex., Figueiredo Dias/Costa Andrade, Criminologia, Coimbra editora, Coimbra, 1992, p. 360; ¢ Luiz Fldvio Gomes, na tzaducao da obra Criminologia, de Garcia Pablos, 3* edicéo, RT, Sio Paulo, 2000, p, 30), eis que a palavra diversificagia passui im significado mais préximo do fendmeno a que se refere. 23 Veja-se, também Kerner, Diversion statt Strafe, 1983. 24 Kaiser, Kriminologie, 3 edigéo, 1996, § 94, nm. 17. M4 um meio de combate ao crime mais humano do que a pena, devendo portanto ser preferida a esta. Neste ponto est a parcial razio do abolicionismo. Mas a diversificacao 86 € possivel dentro de certos limites, e ainda assim sob a vigildncia estatal. Minhe quarta conclusio intermedifria 6: a descrimina- lizacao e a diversificacdo tampouco irdo tornar supérflua a pena, Mas estes institutos poderiam e deveriam reduzir as punigdes a um niicleo essencial de comportamentos que realmente precisa ser punido. IV. A quantidade de dispositivos penais e de violagoes contra eles cometidas diminuiré ou aumentars? Do que foi exposto resulta que, no estado social de direito, 0 direito penal tem futuro. Esta conclusio leva imediatamente a pr6xima pergunta: 0 nimero de dispositi- vos penais e de violagbes contra eles cometidas diminuiré ou aumentaré? ‘Apesar das expostas possibilidades de uma limitada descriminalizacio, pode-se profetizar, como saldo geral, uum aumento dos dispositivos penais. E isto decorre nao somente das regras que a Unio Européia trard consigo, mas principalmente do fato de estarem as estruturas so- Giais tornando-se cada vez mais complicadas. Sociedades simples podem arranjar-se com os dez mandamentos ou andlogas normas bésicas. Mas a moderna sociedade de mas- sas $6 se deixa controlar através de abrangentes regulamen- tacées. Também os novos desenvolvimentos trazem consi go imediatamente uma enxurrada de novos dispositivos ju- Fidicos. Isto € vilido no s6 para decisdes politicas, tais ‘como medidas de boicote no direito do comércio exterior, mas também para as crescentes ameacas ambientais e para a tecnologia moderna, em especial na forma do processa- mento de dados. Assim € que, p. ex., 0 direito penal de 1s computadores (Computerstrafrecht)® esté em constante movimento, pois tem sempre de adaptar-se a novas tecno- Jogias de informacao e a seu abuso. Algo similar vale para 0 mimero rapidamente crescente das regulamentacbes de di- reito penal econdmico. $6 em casos raros dispensa 0 legis lador a tentativa de assegurar a observincia dos novos dis positivos através de cominacoes penais", O mesmo vale para o ntimero de delitos. J4 a quantida- de de novos dispositivos penais o levara as alturas. A isso, acrescentem-se novas formas de comportamentos puni- veis: uma criminalidade internacional, decorrente da aber- tura das fronteiras, que antes no ere posstvel nestas proporsées; e também, p. ex., uma criminalidade de dro- gas, decorrente do consumo que cresce constantemente. Mesmo no caso de um tradicional delito do cotidiano, como o furto®”, deve-se contar com um aumento da crimi- nalidade, apesar da vigilancia mais intensiva que é de se esperar do futuro. Isto nao decorre de um fracasso do direi- to penal, mas de mudangas sociais, técnicas e econdmicas, que lhe sao anteriores. E claro que a atual situago, de uma sociedade de cada vez maior densidade populacional, cujos individuos encontram-se imersos no anonimato, torna mais facil o furto em comparag3o 2 de uma cidade pequena. Igualmente, é bem mais ficil furtar — se me permitem referit dois objetos de furto especialmente queridos dos ladrées — bicicletas ¢ automéveis* do que as carrocas 25 Sieber, Informationstechnologie und Strafrechtsreform, 1985, p. 14 e ss. Sobre as tendéncias de desenvolvimento dos respectivos deli- tos, veja-se Schmitz, Compaterkriminalita, 1990, p. 15 ¢, 26 W. Hassemer, Kennzeichen und Krisen des modernen Strafeechts, ZRP 1982, p. 378. 27 Kaiser, Kriminologie, Eine Finfuhrung in die Grundlagen, 9 edi- ‘fo, 1993, p, 472, fela de um crescimento de 367% na criminalidade de furto entre 1955 e 1990, 28 Esta comparacio poderd logo deixar de ser correta para os automn6- 16 transportadoras de correspondéncia tipicas do século XIX; isso sem lembrar que a quantidade daqueles supera em varias vezes a de carrocas. E os armazéns ¢ lojas self-service que hoje ja existem e a cada dia aumentam, com suas ines- gotaveis ofertas, deixam bem claro que, no que diz respeito a objetos de necessidades difrias, a tentagio para o furto atualmente é bem mais intensa que a época da pequena e modesta mercearia de nossos bisavés. Minha quinta conclusao intermediéria é, portanto, a se- guinte: a taxa de criminalidade, ha décadas jé crescente, aumentaré ainda mais, mesmo que em menor medida que nas tltimas décadas, eis que grande parte das circunstan- ias crimin6genas hoje ainda existe. V. O direito penal do futuro sera mais suave ou mais severo? Apesar do previsto aumento da criminalidade, as penas hio de tornar-se mais suaves. A primeira vista, isso parece paradoxal, pois corresponde ao raciocinio do leigo reagir a uma criminalidade crescente com penas mais duras. E tam- bém surpreenderé aquele que tenha observado que, nos uiltimos anos, a moda politico-criminal tem tendido para um enrijecimento do direito penal, ¢ isto nao sé na Alema~ nha, Fenémenos como a criminalidade organizada, ainda veis, pois a iatraducdo dos chamados “bloquesdores dos sistemas do veiculo” (Wegfahrsperren)” reduriujé hoje de modo sensivel o mimero de furtas de automéveis. Este caso é uma bela confirmasio da tese, segundo a qual medidas preventivas efetivas sempre serio mais eficien- tes que o direito penal. Genericamente sobre o combate preventivo a crimes, veja-se Zipf, Kriminalpolitik, 2° edicao, 1980, p. 165 e ss. + (NT) O blogueador dos sistemas do veiculo € um mecanismo de sequranca que impede o autom6vel de locomover-se se nao Ihe for dada 4 partida com sua prépria chave ndo suficientemente investigada nem juridica, nem crimi- nologicamente, o que a faz portanto causadora de muita inseguranga, e também o medo da criminalidade entre os cidadaos, aumentado pelas reportagens da midia, tornam a exigencia de penas mais duras um meio cémodo para que muitos politicos consigam votos. Ainda assim, penso que este desenvolvimento se trate de uma oscilacio cfclica, a que a criminalidade sempre volta a submeter-se aps certo periodo de tempo. A longo prazo, suponho gue este desen- yolvimento leve, com certa necessidade, a uma nova suavi- zacio das penas. Afinal, a mais severa de nossas atuais san- Ges, a pena privativa de liberdade, que dominou o cenério das penas nos paises europeus desde a abolicao dos castigos corporais, tem seu Spice bem atris de si, e vai retroceder cada vez, mais. Isto tem duas razées, Em primeiro lugar, quanto mais aumentarem os dispo- sitivos penais e, em conseqiiéncia deles, os delitos, tanto menos serd possivel reagir 3 maioria dos crimes com penas privativas de liberdade. As instituicdes carcerérias ¢ tam- bém os recursos financeiros necessérios para uma execugio penal humana esto muito aquém do necessério, Além dis- so, uma imposi¢ao massificada de penas privativas de liber~ dade nao € politico-criminalmente desejével. Afinal, 0 fato de que, nos delitos pequenas e médios, que constituem a maior parte dos crimes, nao posstvel uma (res-)socializa~ a0 através de penas privativas de liberdade, é um conheci- mento criminoldgico seguro. Nio se pode aprender a viver em liberdade e respeitando a lei, através da supressio da liberdade; a perda do posto de trabalho e a separacio da famflia, que decorrem da privagao de liberdade, posstem, ainda maiores efeitos dessocializadore: 29. Kaiser, in: Ksiser/Kemner/Schich, Strafvollzug 4 edigéo, 1992, § 2, nm. 97 ess 18 O desenvolvimento politico-criminal deve, portanto, afastar-se ainda mais da pena privativa de liberdade™’. Em seu lugar teremos, primeiramente, a pena de multa, e 6em especial no seu uso que reside a tendéncia a suavizacao, de gue falei acima. A pratica jé hoje dominante na Alemanha bem demonstra a quao longe a dispensa de penas privati- vas de liberdade pode ser levada. No ano de 1882, 76,8 % de todas as condenagées tinham por contetido uma pena privativa de liberdade, e 22,4% uma multa. Nos iiltimos dez anos, as penas privativas de liberdade a serem execu- tadas s6 chegaram, em média, a 6%, isto é, aproximada- mente um quinze avos do total de condenacdes. Ao mes- mo tempo, em 80-84% dos casos foi aplicada a pena de multa®, a qual, portanto, quase quadruplicou. Se lembrar- mos, ainda, que quase a metade de todos os casos € arqui- vado por meio da diversificagdo (veja-se, III. 2), podere- mos reconhecer em que dréstica medida a pena de liberda- de esta a recuar™. Em outros paises europeus esta tendén- cia ainda nio esté téo manifesta, mas no futuro, pelas razdes expostas, ela ird mais ou menos se estabelecer por toda parte, até porque, de acordo com os conhecimentos da criminologia, a forca preventiva do direito penal nio de- pende da dureza da sangio, e sim de o Estado reagir ou néo de modo reprovador Minha sexta conclusio intermedisria diz, portanto: di- versificagio ou pena de multa sio meios mais humanos, 30 Schoch, Empfehlen sich Anderungen und Erginzungen bei den stra- frechtlichen Sanktionen ohne Freiheitsentzug?, Gutachen zum 52. DIT, p.C ess, 31 Kaiser, Kriminologie, § 93, nm. 36: 32 Sobre o desenvolvimento em sentido contrério 8 pena privativa de Uberdade, Schoch, Gutachten 2um 52. DIT, C, p. 20 € ss y baratos” e, na esfera inferior da criminalidade, mais propi- cios a ressocializacio, ¢ no menos eficientes do ponto de vista preventivo que a privacao de liberdade. Todos os ar- gumentos, portanto, sao favordveis a uma suavizagio do direito penal, VI. Como seri o sistema de sangoes no direito penal do futuro? 1, Novas penas ou medidas de seguranga? A pena de multa, cuja crescente importancia ressaltei, nfo € um remédio para todos os males*, Ela falha no caso daqueles que ndo possuem dinheiro ou que seibam escon- der seus bens do Estado. Ela tampouco poderd ser usada ‘em tempos de recessio com a mesma freqiiéncia que em prosperantes sociedades de bem-estar. Dai porque no fuutu- ro deverd até forcosamente ser desenvolvida uma colorida paleta de sangées e reagdes, as quais, mesmo pressupondo uma ago punfvel, s6 em parte poderao ser denominadas penas. Novas penas no verdadeiro sentido da palavra, isto é, como medidas prejudiciais impostas coativamente, quase no surgirao. Afinal, as penas de épocas anteriores, nio 33 (N.T.} Para evitar quaisquer infidelidades ao texto original, consig- no que 0 termo billig, aqui traduzido por “barato", também possui outro significado, que no é de todo estzanho ao texto: o de "justo", ‘equitatitivo"; Billigkeit significa equidade. Parece-me, contudo, que ndo é neste segundo sentido que a palavra foi utilizada no original, as fica o leitor livre para entencler de outra forma 34. Sobre a eficiéncia da pena de malta, que ainda € pouco conhecida, veje-se Kaiser, Kriminologie, § 93, nm. 40 e ss. 20 mais utilizadas (como as penas corporais ou 0 banimento), no possuem futuro. Como pena nova, mais suave em face da privagio de liberdade, pode-se pensar na prisio domici- liar (Hausarrest), cuja vigilancia, face aos modernos siste- mas de seguranca eletrénicos, nao representar4 mais pro- blema algum, Esta sancio tem a vantagem de nada custar, de nfo trazer consigo perigos de infeccao criminal e de dar ainda assim sensivel privagio de liberdade uma forma mais humana. Uma nova pena eficaz seria também a proi- bicio de dirigir, que poderia ser aplicada como sancao pe- nal a todas os crimes, e nao s6 0s de trinsito™®. Em face da importancia que o carro tem para a maioria das pessoas, hoje, ¢ tera ainda no futuro, ter-se-ia uma limitagio de liberdade eficiente do ponto de vista preventivo, que nada custaria para o Estado, seria menos danosa que a pena de prisio para o autor e, além disso, mais benéfica para o meio ambiente. Como nova medida de seguranga, é recomends- vel que seja introduzida ¢/ou concluida a jé mencionada (11.3) instituicéo social-terapeutica. Disso decorre minha sétima conclusdo intermediaria: como novas penas ou medidas de seguranga surgem, em primeira linha, a prisio domiciliar, a proibigao de dirigir & medidas social-terapeuticas. 35. Nos Estados Unidos, esta forma de privagio de liberdade ji vem sendo praticada desde 1983; veja-se, quanto a isso, Weigend, Bewah- rangshilfe, 1989, pp. 289, 299; Ball/Huff/Lilly, House arrest and cor- rectional and poiicy, 1988, Sobre o modelo inglés, Vasgerau, Bewah- rungshilfe, 1990, p. 166; Stem, Bewahrungshilfe, 1990, p. 335 36. A favor de uma mais ebrangente proibicdo de dirigir, Schick, Gu- tachten zum 52. DIT, p. C177; Dunkel/Spiek, Bewahrungshlfe, 1992, p31 a 2, SangGes orientadas pela voluntariedade Ao lado das penas e medidas de seguranga, devem sur- gir no futuro direito penal sancées, que no se poder cha- mar verdadeiramente de penas, mas somente de similares a pena (strafalmlich), pois se, por um lado, infligem algo a0 autor, por outro carecem do carater coative da pena. Farei referéncia a duas delas: (a) o trabalho de utilidade comum (gemeinnittzige Arbeit) ¢ (b) a reparacao voluntéria (frei- willige Wiedergutmachung). Pontos de apoio para uma ou outra dessas sangdes encontram-se j hoje em quase todos os cédigos penais modernos; mas seu grande futuro tém as duas ainda diante de si a) O trabalho de utilidade comum No que se refere ao trabalho de utilidade comum, tra- ta-se de prestagies de servico a hospitais e lares de assis- téncia, ¢ também a instituigdes estatais de todo tipo™. Es- sas prestagdes podem ir desde o transporte de documen- tos, pasando por servigos de conserto e limpeza, chegando até mesmo aos de jardinagem em estabelecimentos publi- cos. O trabalho de utilidade comum pode substituir a pena de multa na maior parte dos casos, se 0 autor se oferecer voluntariamente. Esta sancio tem a vantagem de ser um trabalho construtivo, que exige maior engajamento pessoal que as penas privativas de liberdade e as de multa, que o a7 (N.T) Apesar de o Cédigo Penal brasileiro conter sancio andlogs, que denomina "prestacio de servigos & comtnidade' (art. 46, com 3 redacdo da Lei n° 9.714/98), optei por traduair 0 termo slemao aten- tando para seu teor literal 38 Veja-se o panorama em Schick, Gutachten um 52. DTI, p. C97, 2 | I | | autor s6 precisa deixar cair sobre si, Como o trabalho for- ado deve ser excluido do direito penal de um Estado de Direito, nao sendo realizavel sem uma violagio 3 dignidade humana, a voluntariedade que é de exigit-se, a uma s6 vez, incrementaria a prontidao do autor em realizar o trabalho aceito, e lhe traria o sentimento de estar fazendo algo «til Ambos os efeitos server bem mais & ressocializagao que as tradicionais penas. Hoje ainda sio bastante fortes as reservas em face dessa possibilidade de sancio ja ha muito conhecida®®, Objeta-se que o trabalho de utilidade comum traria consigo dificulda- des de organizacio praticamente insuperdveis, e que por- tanto nao funcionaria. Tal sangio, igualmente, seria indese- javel, pois furtaria postos de trabalho a populacao honesta. Tais criticas ndo si, porém, convincentes™. Afinal, a possibilidade de se organizar o trabalho de utilidade co- mum esté suficientemente comprovada”. Na Alemanha, ele j4 vem hé anos sendo praticado pelos milhares que se negam a prestar servico militar, sob a denominagio de “ser- ‘ico substitutivo civil”, sem que tenha havido problemas. 39 Recusam-ne, p.ex., Trndle, in: Leipsiger Kommentar zum Strage- setebuch, 10° edigdo, 1978, § 43, nm. 10; Lackner, JZ 1967, p. 519; Eb. Schmidt, NFW 1967, p. 1.936; Jescheck, ZStW 80 (1968), p. 69 & 40. Vejam-se, quanto a isto, jf Roxin, JA 1980, p. 545 e ss, p. 550; sobre o trabalho de utilidade comum também Baumann, Schatfstein- FS, 1975, p. 211; Albrecht/Schadler, ZRP 1988, p. 278, p. 283; Dél- ling, ZSeW 104 (1992), p. 281; Jung, Sanktionensystem und Men- schenrechte, 1992, p. 165 ess, 41. Veja-se somente Schall, NStZ, 1985 p. 105, com referéncias; em principio favoravel, também, Schéch, Gutechten zum 52. DTJ, p. C97, 42 (N.T,) Oserviga substtutivo civil (zivler Ersatzdiensi) & 2 presta- do a ser cumprida por aquele que, por motivo de consciéncia, se recusa 4 prestar o servico militar (Hesse, Grundztige des Verfassungsrechts B Entre nds, j4 hoje se exige dos jovens condenados, em pri- meiro lugar, trabalho social; e, mesmo com este grupo de pessoas de nao fécil tratamento, o sistema funciona, Também o temor de que o trabalho de utilidade co- mum possa aumentar 0 desemprego nao corresponde a rea- lidade, pois este trabalho deve ser prestado justamente em épocas de férias e fins de semana, quando outras pessoas se entregam a0 lazer, disso decorrendo (p. ex., no campo da assisténcia) uma notéria falta de forca de trabalho. Todo 0 Ambito das prestagdes sociais de servigo menos qualifica- clas, no qual esse trabalho seré de preferéncia executado, compreende exatamente as atividades mal pagas ¢ por isso ndo supridas com suficiente mio-de-obra. b) A reparacio voluntéria Profetizo um grande futuro para a reparacio do dano no direito penal, como a segunda sancio orientada pela volun- tariedade do sancionado®, Nao me refiro a instituigdes como as que, de acordo com o modelo francés da action civile, a pedido do prejudicado, ou como na compensation order** inglesa, por ordem do juiz no proceso penal, con- der Bundesrepublik Deutschland, 20° edigio, C. F. Miller, Heide! berg, 1995, nm. 38/385), andlogo ao instituro que esta previsto entre ‘nds no art. 143, § 1°, da Constituigie Federal, e na Lei n° 8.239/91. 42 Veja-se, sobre a reparacio do dano como “terceiza via" do sistema de sangées também Raxin, Strafrecht, Allgemeiner Teil, vol. I, § 3°, nm, 65 e ss,, com referéncias; o mesmo, Ferche-FS, 1993, p. 301 ess 44 Quanto a isso, Mérigeau, in: Eser/Kaiser/Madlener, Neue Wese der Widergutmachung im Strafrecht, 1990, p. 325 ess. 45. Veja-se, a respeito, Jung, in: Eser/Kaiser/Madlener, Neue Wege der Widergutmachung im Strafrecht, 1990, p. 93 e ss 24 corinne earecemnamaeneemenmnnE denam o acusado a indenizar 0 dano. Isso significa somente sum deslocamento da demanda civil para 0 processo penel, e de nada adianta ao prejudicado se o titulo nao for exequi- vel, 0 que ocorre na maior parte dos casos. Também do ponto de vista da punicéo, de nada adianta que a pena ea indenizagio caminhem lado a lado, em mtitua inde- pendéncia. A nova idéia, para a qual prevejo grandes perspectivas no direito penal vindouro, é a de que uma reparacao volun- téria prestada antes da abertura do procedimento principal (Hauptuerfahren)"* leve a uma obrigetéria diminuicdo na pena; em caso de uma prognose favorével, sirva mesmo a uma Suspensio condicional e, excepcionando-se os delitos graves, até a uma dispensa da pena (apesar de manter-se a condenagio). Essa concepgio tem a vantagem de fornecer ao autor um grande estimule & reparagio do dano, e de oferecer a vitima uma reparacdo répida e nfo burocratica, que o Estado néo conseguiria em muitos casos realizar dian- te de um devedor recalcitrante. Com esta solucao, a viti- mologia, a doutrina da vitima, que nas dltimas décadas vem alcangando uma crescente importéncia, conseguiria uma 46 (N.T] No processo penal slemio, a jurisdigGo de conhecimento € segmenteds em trés etapas: 0 procedimento preliminas (Vorverfahren, também chamado de Ermirtlungsverfakren, procedimento de investi- {G40}, s0b o controle do Ministério Pablico, que consiste em investiga- G8es feitas por este € pela policia, ¢ termina com ¢ deciséo do mencio- nado 6rgio no sentido de promover ou nao a agio penal; 0 procedimen- to intermedisrio (Zwischenverfahren), sob o controle do juiz, no qual decide ele a admissio ou nao da acio penal; e, por fi, o procedimento principal (Hauptverfahrer}, no qual ocorrem a preparacio da audiéncia (Vorbereitung der Hauptverhandlung) e a audiéncia principal (Haupt verhandlung), na qual sfo produzidas provas e € dada a sentenga (Ro- xin, Strafverfahrensrecht, 25* edicSo, Beck, Munique, 1998, § 3°, nm. 28) 2 vitéria decisiva no sentido de uma orientagio da justica penal & vitima. ‘Também um direito penal orientado a reintegracéo do autor na sociedade receberia da introdugéo da reparacéo voluntéria do dano no sistema de sang6es impulsos comple- tamente novos". Afinal, quando o autor, em seu préprio interesse, se esforca no sentido de uma rapida reparagio da vitima, tem ele de entrar em contato com ela, repensar consigo mesmo o seu comportamento e o dano a ela catsa- do, ¢ produzir uma presta¢do construtiva, jé a primeira vis- ta socialmente ttil e justa, que pode contribuir bastante para a ressocializacao, tendo assim grande utilidace do pon- to de vista preventivo-especial A introdugto da reparacio voluntéria no sistema de sangSes juridico-penal também teria efeitos preventivo ge- rais — isto 6, em relacao a generalidade das pessoas — bastante positivos, pois a perturbacio social que é provoca- da pelo delito s6 é realmente eliminada se o dano for repa- rado e 0 status quo ante reestabelecido. $6 a partir deste momento é que 0 lesado ¢ a coletividade véem 0 caso como resolvido. Investigagdes empfricas em varios paises con- clufram que a populagdo, predominantemente, penss que nos crimes menores e médios se poderia, havendo a repara- a0 voluntéria, ou abster-se por completo da pena, ou redu- Zi-la consideravelmente, dependendo do caso Falta-me aqui espaco para desenvolver em detalhe a idéia de uma reparacao do dano juridico penalmente eficaz, ‘Ao menos faca-se alusio a que esta idéia tem uma grande perspectiva de futuro, também porque ela levaré a uma reaproximagio entre o direito civil e o penal, os quais, nos 47, Veia-se, quanto a isso, Roxin, Strafrecht — Allgemeiner Teil, vol. 1 §3%, nm. 66. 48. Veja-se Sessar, Wiedergutmachung oder Strafen?, 1992, 26 ulkimos séculos, sempre seguiram o cominho de um afasta- mento cada ver mais rigido ‘Como oitava concluséo intermedidria pode-se insistir: sangées orientadas pela voluntariedade (trabalho de util dade comum, reparacio do dano) podem complementar e, em parte, substituir a pena no futuro. Em virtude de seus efeitos socialmente construtivos elas devem, na medida do possivel, ser preferidas & pena privativa de lberdade. 3. Sanges a pessoas juridicas Sangées a pessoas juridicas existem jé hoje em varios paises, sob diversas formas"?, Mas elas so estranhas ao es- pirito do direito penal, tal qual este se tem desenvolvido na tradigao européia, pois a pena foi sempre referida a culpa- bilidade individual de um homem. Societas delinquere non potest: este era 0 lema de um direito penal que se movia no sentido de uma imputacio pessoal da culpabilidade. Porém, as sangGes a pessoas juridicas desempenhardo vm grande papel no futuro. Afinal, as formas mais social- mente lesivas da criminalidade econdmica e ambiental tm sua origem nas grandes e poderosas empresas; também a venda das mais diversos produtos lesivos a satide seré um. problema cada vez maior para o direito penal. Quando, nestes casos, se realiza tum tipo penal, é freqtientemente dificil, sendo mesmo impossivel, descobrir os responséveis, na empresa, pois a responsabilidade distribui-se por vérias pessoas, ¢ a culpabilidade de uma delas dificilmente pode ser provada, Também nao se consegue enfrentar de modo 48. Um panorama de direito comparado encontra-se em Schiinemann, in: Leipziger Kommentar zum Strafgesetzbuch, 1* edigio, 1993, § 14, am. T4e ss un cficaz os perigos que emanam de uma grande empresa — p, ex,, para o meio ambiente — através da punicao de um individuo substitutvel. Pelo contrério, sangGes que se acoplem a uma falha da organizacio (independemente de quem, individualmente, seja 0 culpado), podem ter intensos efeitos preventivos. Blas devem abranger desde consideraveis pagamentos em dinheiro até o fechamento da empresa. Também aquelas sanGGes a pessoas morais, ainda em estigio de desenvolvi- mento juridico, néo sao mais verdadeiras penas; pois estas pressupdem uma aco e culpabilidade imputaveis a uma pessoa individual. Uma pessoa juridica s6 pode agir e tor- nar-se culpavel em um sentido andlogo, através de uma construgio juridica, Para tanto, serd necessério desenvolver regras especiais de imputaco, que nfo posso discutir mais aprofundamente nos limites deste trabalho”. Minha nona conclusio intemerdifria é: sangdes a pes- soas juridicas, paralelas 4 punicdo dos autores individuais, desempenharao um grande papel no futuro, no combate & criminalidade de empresas VIL, Resultado © direito penal tem um futuro, Conciliagées sem a in- tervengio do Estado, como defende o abolicionismo, con- seguirdo substituir direito penal de modo to precério quanto o poderd fazer um pura sistema de medidas de se- guranca; também uma vigilancia mais intensa dos cidados pode, enquanto ela for permitida, ter uma certa eficécia preventiva, mas ndo conseguird tornar o direito penal su- pérfluo, 50 A respcito disso, Schtinemar, in: Leipziger Kommentar, § 14, nm. 78, com referéncias. 28 } Por outro lado, Id onde o direito penal ultrapassa suas tarefas politico-criminais, a descriminalizagdo ¢ possivel e deve ser levada a cabo. Também através da diversificagéo se conseguird substituir nao a punibilidade, mas a punicéo concreta em casos menos graves, arquivando-se 0 proceso —o que quase sempre é feito sob certas condicées. Apesar das limitadas possibilidades de descriminaliza~ 40 ¢ dos mais intensos esforcos de prevencio, o némero de dispositivos penais e de infracdes deve crescer. Isso em nada altera o fato de que o direito penal do futuro se torna- 14 ainda mais suave do que ja € hoje, o que decorre princi- palmente das possibilidades abertas pela diversificacio, pela substituicao da pena privativa de liberdade pela de multa, pela utilizacdo de novas sangdes menos limitadoras de liberdade (como a prisio domiciliar ou a proibicéo de dirigir) e pelo fato de que, especialmente no campo da macrocriminalidade econémica e ambiental, as indispensé- veis sangées a pessoas jurfdicas, apesar de sua grande eficé- cia preventiva, mal provoquem sofrimentos individuais. ‘Com isto chego ao fim. Demonstrou-se que, apesar da manutencio por mim prognosticada das instituicdes funda- mentais do direito penal, mudangas essenciais em parte ja estio a ocorrer, em parte sao de esperar-se. O direito penal moderno parti de uma posigao que somente conhecia a pena retributiva; esta pena era majoritariamente justificada filosofica ou teologicamente, como na Alemanha se via nos influentes sistemas idealistas de Kant e Hegel, e também na doutrina das Igrejas. Ao contririo disso, 0 direito penal do futuro, a0 levar adiante os postulados iluministas, e sob 0s pressupostos de um mundo completamente modificado, tornar-se-4 cada vez mais um instrumento de direciona- mento social (gesellschaftliches Steuerungsinstrument) to- talmente seculerizado, com o fim de chegar a wma sintese entre a garantia da paz, 0 sustento da existéncia e a defesa 29 dos direitos do cidado. Ble ters de utilizar-se, além da pena, de uma multiplicidade de elementos de direciona- mento diferenciadores e flexiveis, que certamente hao de pressupor um comportamento puntvel, mas que possuirdo natureza somente similar a pena. 30 Joroernreneeenmememten QUE COMPORTAMENTOS PODE O ESTADO PROIBIR SOB AMEAGA DE PENA? SOBRE A LEGITIMACAO DAS PROIBICOES PENAIS' I. Colocagéo do problema Quero hoje tratar de um tema que se coloca nos orde- namentos juridico-penais de todos os pafses, que se ante- pe aos direitos positivos nacionais e ainda assim é de igual importincia para todos: a pergunta a respeito de quais comportamentos pode © Estado proibir sob ameaga de_ reancia desta pergunta reside no fato de < ‘He nada adiantam uma teoria do delito cuidadosamente desenvolvida e um’ proceso penal bastante garantista se 0

Você também pode gostar