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Clima e

estratégia
internacional:
Novos rumos
para o Brasil
Ideias para discussão

Adriana Abdenur
Izabella Teixeira
Jaques Wagner
Pedro Abramovay

Prefácio:
Celso Amorim

novembro de 2022
Sobre o documento
O documento “Clima e estratégia internacional: novos
rumos para o Brasil”, resultado de consultas com 70 atores
de diversos setores, aponta caminhos para uma estratégia
que alie ação climática ao desenvolvimento inclusivo e
sustentável, assim como a defesa do multilateralismo e de
uma governança global justa e efetiva.

O documento faz parte do projeto liderado pela Plataforma


CIPÓ em parceria com a Fundação Perseu Abramo.

A equipe que compõe o projeto agradece aos interlocutores


que se colocaram à disposição para conversar sobre as
agendas de interseção entre de clima e política internacional.
Indíce
Prefácio 5

Resumo Executivo 7

Pano de fundo: turbulência geopolítica e transformação da ordem global 14

A crise do multilateralismo e da integração regional 17

Uma nova diplomacia climática 20

Desgastes do negacionismo climático 22

Resgatando a credibilidade internacional 25

Para além do desmatamento: uma nova visão para a Amazônia e outros biomas
ameaçados 28

A defesa da transição justa e soberana 32

O Brasil nas Conferências das Partes (COPs) 37

A cooperação internacional e Sul-Sul 43

O clima como a base para a integração na América Latina e Caribe 45

A cooperação com parceiros africanos e asiáticos 50

A cooperação em clima com os países industrializados 55

O Sul, o clima e a governança global 58

O Brasil possui plena capacidade para resgatar e ampliar o seu legado 63

Governança 66
Clima e estratégia internacional

Prefácio

Em 30 de outubro, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, os brasileiros escolheram


dar início a um novo ciclo político, reafirmando seus valores democráticos e deixando para
trás um período de retração no plano internacional, inclusive nos temas do clima e meio
ambiente. Durante os últimos quatro anos, o mundo também mudou. A resposta altamente
injusta à pandemia de Covid-19 aprofundou desigualdades socioeconômicas e trouxe novos
retrocessos no combate à pobreza e na erradicação da fome. Grandes desafios geopolíticos,
tais como a guerra na Ucrânia, demonstram as limitações de uma governança global que
ainda reflete a distribuição de poder do pós Segunda Guerra.

As mudanças climáticas também compõem esse panorama de alta incerteza. Com


impactos que perpassam as fronteiras nacionais, a emergência climática faz da cooperação
multilateral um imperativo existencial. Não à toa, o tema deixou de ficar confinado
apenas às negociações no âmbito das Conferências das Partes (COPs) climáticas e passou
a ocupar lugar central nas relações internacionais e na geopolítica global. O Brasil, sob
um governo progressista, ficou para trás. Mas agora, sob um novo comando, poderá
reassumir uma atuação internacional altiva e ativa. Para isso, a luta contra a crise climática
ocupará espaço central na atuação internacional do país. Essa luta será respaldada
por significativos avanços no nível doméstico, a começar pela retomada do combate
ao desmatamento em todos os biomas brasileiros, sobretudo na floresta Amazônica.

O presente documento, construído com base em dezenas de consultas com atores de diversos
setores da sociedade brasileira, fornece insumos para que o clima tenha centralidade na
estratégia de inserção internacional do Brasil. Mais especificamente, o texto traz três
colocações essenciais. O clima não é mais um nicho, tem de ser transversal inclusive no
plano internacional. Nesse sentido, o documento mostra como o clima pode ser incorporado
em iniciativas de cooperação internacional, seja no plano bilateral, regional ou global. Em
segundo lugar, o documento convida a pensar como a atuação internacional deve refletir
e alimentar políticas domésticas. Defende, por exemplo, uma concepção de transição
justa e soberana construída a partir das peculiaridades do contexto brasileiro, permitindo
que o Brasil se posicione sobre um tema que, nos espaços globais, tem sido pautado
predominantemente pelos países industrializados. Por fim, o texto reforça a necessidade de
retomarmos os canais de diálogo entre a sociedade civil e o Estado para debate e formulação
da política externa. Esse processo se beneficiará do fato de que as organizações, institutos
e universidades brasileiras que trabalham com o tema do clima nunca estiveram tão bem
capacitados e coordenados para prover conhecimentos e inovações.

Com isso, o documento serve de convite para se pensar um Brasil mais justo e uma governança
global mais democrática, que faça uso do multilateralismo e da cooperação internacional
para enfrentar de maneira mais eficaz os desafios contemporâneos comuns, incluídos
aqueles impostos pelas mudanças climáticas.
Celso Amorim

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Clima e estratégia internacional

Resumo Executivo

A ordem global passa por um momento os principais desafios enfrentados pela


de profunda transformação, trazendo humanidade, incluídas a fome, a pobreza e
grandes incertezas — e, portanto, novos as pandemias. A elevação do nível dos mares,
imperativos de cooperação internacional. a acidificação dos oceanos, as alterações
O mundo caminha, possivelmente, na nos padrões pluviais, o agravamento das
direção de maior multipolaridade. No secas, a desertificação e a intensificação
entanto, o trajeto é longo e sinuoso: dos eventos climáticos extremos, entre
antigas rivalidades geopolíticas ressurgem outros fenômenos, já reduzem a produção
ao mesmo tempo em que aparecem novas e a disponibilidade de alimentos,
tensões entre as grandes potências. Muito interrompem meios de subsistência,
se fala em uma “Segunda Guerra Fria”, causam retrocessos na implementação de
mas o mundo enfrenta desafios mais políticas públicas, provocam desastres,
diversificados e complexos do que os impulsionam migrações e deslocamentos
associados à essa época. Desigualdades forçados e agravam tensões sociais, entre
estruturais se agravam e o combate à outros desafios.
pobreza sofre retrocessos. Conflitos
armados se prolongam sem perspectivas Os impactos das mudanças climáticas
de resolução, por vezes durante décadas, convergem e interagem com dois
e a ameaça nuclear volta no contexto outros fatores ligados à destruição e
da guerra na Ucrânia. Ao mesmo tempo, degradação do meio ambiente: a perda
surgem novas ameaças ao bem-estar e à de natureza e biodiversidade e a poluição
paz. Por exemplo, embora possibilitem e contaminação do ar, da água e do solo.
importantes avanços, tecnologias de Os efeitos adversos dessas três ameaças,
ponta têm produzido riscos significativos denominadas pela Organização das Nações
a nível mundial, tais como as campanhas Unidas (ONU) de “Tripla Crise Planetária”,
de desinformação — capazes de corroer transpassam fronteiras internacionais,
sistemas e valores democráticos. representando um risco existencial para a
Além disso, a pandemia de Covid-19 trouxe humanidade. O consenso científico acerca
efeitos devastadores não apenas para a do agravamento da crise, sublinhado pelos
saúde humana, com mais de 6 milhões de relatórios do Painel Intergovernamental
mortes registradas ao redor do mundo, sobre Mudanças Climáticas (IPCC), e o
mas também enormes desafios para as amplo reconhecimento dos desafios que
economias locais e globais. A crise sanitária elas geram colocaram o clima no centro
tem levado a um aumento exponencial do da política internacional. O tema adquiriu
desemprego, da insegurança alimentar, da centralidade não apenas nas instituições
pobreza e do endividamento -- em especial da governança global, tais como o sistema
nos países em desenvolvimento. das Nações Unidas (ONU), mas também na
formulação de política externa de muitos
Hoje, longe de representarem ameaça países e regiões.
isolada, as mudanças climáticas agravam

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Clima e estratégia internacional

No entanto, o Brasil ficou para trás, internacionais, incorporando inovações


deixando de prestar atenção aos desafios no combate às mudanças climáticas e na
das mudanças climáticas. Pelo contrário: preservação do meio ambiente. O tema
além de causar enorme destruição do clima, em outras palavras, deve ser
ambiental e minar o bem-estar dos um ativo e não um passivo da estratégia
brasileiros, o governo Jair Bolsonaro internacional do Brasil.
levou o país — historicamente, um ator
proativo e construtivo nos debates O presente documento tem como objetivo
e iniciativas regionais globais — a identificar algumas linhas prioritárias de
perder credibilidade e espaço no plano atuação do Brasil no cenário internacional,
internacional. Ao promover o desmonte tendo no cerne o tema do clima e
das instituições federais encarregadas da desenvolvimento sustentável. Falar de
proteção ambiental; ao atacar os órgãos clima e desenvolvimento é falar de aliar os
que produzem dados, ciência e pesquisa; objetivos de mitigação, adaptação e perdas
ao se esforçar para legalizar crimes como e danos à busca pelo desenvolvimento
a grilagem de terras públicas, o garimpo socioeconômico, de forma a garantir o bem
ilegal e a exportação de madeira extraída estar e a dignidade de todos os brasileiros. É
ilegalmente; ao alimentar o negacionismo apenas combinando estas duas esferas que o
climático; ao fazer vista grossa às violações Brasil irá produzir uma política sustentável,
de Direitos Humanos, incluídos os ataques soberana e solidária. E essa ideia deve
violentos aos defensores ambientais; e ao estar presente não apenas na formulação
desmantelar mecanismos de cooperação da transição justa e soberana no plano
internacional pela proteção ambiental, doméstico, mas também na concepção
como o Fundo Amazônia, a atual gestão da estratégia internacional. Isto passa
rompeu parcerias e laços de confiança que por garantir agendas fundamentais com
o Brasil havia construído ao longo do último maior sustentabilidade, como agricultura,
século. E os novos picos no desmatamento energia e mineração; revalorizar a pesquisa
e nas queimadas, especialmente na científica, a inovação e a educação como
Amazônia e no Cerrado, provocaram forte alavancas para o crescimento; fomentar a
reação negativa, tanto no Brasil quanto reindustrialização responsável; e retomar
fora do país. a redução da pobreza e a erradicação da
fome no Brasil e no mundo.
Ao mesmo tempo, a retração na cooperação
internacional — fonte importante de trocas, A estratégia internacional do Brasil deve
parcerias e inovações nas políticas públicas estar fundamentada em dois pilares: por
— enfraqueceu a soberania nacional, na um lado, a promoção do desenvolvimento
medida em que diminuiu a capacidade inclusivo, solidário e sustentável, buscando
brasileira de negociação. É, portanto, melhorias e colhendo benefícios concretos
urgente que o Brasil retome sua atuação para a sociedade brasileira por meio da
propositiva e construtiva nos espaços cooperação internacional; e, por outro, a

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Clima e estratégia internacional

defesa de uma ordem global multipolar, a começar por uma Cúpula sobre a
democrática e justa, lastreada no respeito Amazônia, passando pelo G20, o IBAS, o
ao direito internacional e que atenda as BRICS e, possivelmente, uma nova COP
demandas, realidades e prioridades dos do clima. Essa sequência de grandes
países em desenvolvimento, inclusive no eventos internacionais representa uma
que diz respeito ao clima e meio ambiente. oportunidade para pautar as agendas
Em ambas vertentes, a doméstica e a de diversos espaços multilaterais,
internacional, a tomada de decisão deve chegando em 2026 com uma estratégia
levar em conta o conceito de justiça internacional renovada e bem consolidada.
climática: o reconhecimento de que, Será essencial que o Brasil defina temas
embora as mudanças climáticas constituam prioritários para cada espaço, de forma a
um problema global, seus efeitos não avançar, progressivamente, uma agenda
são sentidos da mesma forma por todos, multilateral ampla, coerente e propositiva
inclusive em termos de geografia, gênero na direção de uma ordem global multipolar.
e raça. Portanto, mais esforços e recursos
devem ser empenhados para a promoção da O documento foi elaborado a partir de
mitigação e adaptação climática de forma a 70 consultas bilaterais realizadas com
garantir os direitos das pessoas, populações tomadores de decisão e outros atores de
e países mais vulneráveis à mudança do todos os setores — órgãos governamentais,
clima. No plano internacional, isso requer sociedade civil, setor privado, finanças
calibrar o princípio das responsabilidades e organizações internacionais — em
comuns porém diferenciadas (consagrado diferentes regiões do Brasil. O texto será
na Rio 92, e que determina que os países lançado no Brazil Climate Action Hub,
desenvolvidos devem arcar com os espaço idealizado e administrado pela
custos maiores para o desenvolvimento sociedade civil na 27a Conferência das
sustentável) de forma a pleitear a expansão Partes da Convenção-Quadro das Nações
da cooperação climática, sem torná-lo Unidas sobre Mudança do Clima (COP27), a
um escudo contra a adoção de posturas ser realizada em Sharm el-Sheikh, no Egito,
responsáveis no enfrentamento da crise. em novembro de 2022.
Ao mesmo tempo, será essencial combater
o negacionismo climático que se encontra Após quatro anos de forte retração do Brasil
profundamente enraizado na América nos debates e iniciativas internacionais,
Latina e Caribe por uma extrema-direita inclusive na área de clima, e de promoção
altamente organizada, inclusive de forma de um projeto negacionista, anti-ambiental
transnacional, e que constitui grave ameaça e anti-direitos humanos, a COP27 servirá de
à democracia e aos direitos humanos no palco para que um novo ciclo brasileiro seja
Brasil e na região. anunciado. Esperamos que o documento
sirva como convite para um debate
Entre 2023 e 2026, o Brasil pode sediar qualificado sobre quem deve ser o Brasil
uma série de conferências internacionais, na área do clima e política internacional.

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Clima e estratégia internacional

Algumas recomendações serão relevantes na soberania alimentar, na redução


para os primeiros 100 dias de governo; do desmatamento e na retomada
outras irão demandar uma série de medidas com celeridade da demarcação de
a médio e longo prazo. terras indígenas e quilombolas,
da regularização fundiária, da
Entre as principais medidas, recomenda-se: reindustrialização verde, sempre
com atenção à geração de emprego e
• Comunicar a intenção de reverter os promoção de bem-estar a indivíduos e
elevados índices de desmatamento comunidades potencialmente afetadas
e queimadas e anunciar uma pela transição, e da promoção da
Contribuição Nacionalmente infraestrutura e da mineração sócio-
Determinada (NDC) mais ambiciosa, ambientalmente responsáveis;
com a correção da “pedalada climática”
e acompanhada de estratégia crível e • Promover uma visão de
transparente de redução de emissões desenvolvimento justo, solidário
no curto, médio e longo prazo; e sustentável para a Amazônia,
combinando a coibição dos crimes
• Sinalizar a intenção de reativação ambientais e da violência com
imediata do Fundo Amazônia e iniciativas de bioeconomia que gerem
a disposição para cooperar pelo renda, empregos dignos, soberania
estabelecimento de demais esforços alimentar e bem-estar; ampliando
de captação de novos investimentos a infraestrutura e serviços básicos
em ações de enfrentamento ao para os amazônidas e lançando
desmatamento; novas iniciativas para a proteção dos
defensores sócio-ambientais;
• Lançar uma coalizão entre países com
floresta tropical (Brasil-Indonésia- • Criar sistemas confiáveis, efetivos e
República Democrática do Congo - amplamente aceitos de rastreamento
BIC) aberta a novas adesões de países e certificação de commodities que
em desenvolvimento, enviando uma pressionam a floresta e o cerrado,
forte mensagem de que as soluções defendendo um sistema de comércio
para as florestas tropicais devem ser internacional que incorpore conceitos
lideradas pelo Sul; de sustentabilidade e mecanismos
de devida diligência eficazes e
• Defender um conceito de transição compatíveis com o sistema multilateral
justa e soberana que vá além da de comércio e regras da Organização
transição energética e das estratégias Mundial do Comércio (OMC), sem que
tradicionais de mitigação, incluindo o arcabouço seja utilizado para fins de
também elementos como a promoção protecionismo por países ricos;
da agricultura sustentável, com ênfase

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Clima e estratégia internacional

• Revitalizar os arranjos regionais • Defender uma agenda COP que vá além


esvaziados pelo atual governo, da mitigação e mobilizar apoio para as
ancorando a nova estratégia regional agendas de adaptação, perdas e danos e
no tripé Mercosul-Unasul-OTCA, financiamento climático convocando,
passando pela sua atualização no âmbito da Organização do Tratado
conceitual e de organograma, e de Cooperação da Amazônia (OTCA)
fortalecendo a CELAC para facilitar a e preferencialmente na Amazônia
cooperação e coordenação regional Legal. Na ocasião, poderia ser lançada
em clima e meio ambiente; a segunda rodada da Comissão do
Sul para pressionar por uma reforma
• Pôr fim à agenda de flexibilização da governança global ancorada em
do Mercosul, viabilizar a inclusão da uma visão do clima a partir do Sul
Bolívia no bloco e fortalecer a agenda e incluindo um Plano de Ação para
socioambiental da organização; fortalecer o Grupo de 77 (G77);

• Propor a criação de um Conselho • Sinalizar a intenção de sediar futura


Sul-Americano de Clima e edição da Conferência das Partes (COP)
Desenvolvimento no âmbito da da Convenção-Quadro das Nações
Unasul, dando destaque a temas Unidas sobre Mudança do Clima;
com interseção com o clima: a saúde
pública (incluídas as pandemias), • Fazer uso da presidência brasileira do
o combate ao crime organizado G20 em 2024 para mobilizar atenção e
transnacional (que inclui crimes recursos para a agenda climática, com
ambientais) e a integração energética atenção especial para a agricultura
e infraestrutural; sustentável, a soberania alimentar e
o financiamento climático para países
• Incentivar a ratificação célere pelo em desenvolvimento;
Congresso Nacional do Acordo
Regional sobre Acesso à Informação, • Fortalecer a Cooperação Sul-Sul
Participação Pública e Acesso à e Triangular, tendo o clima e meio
Justiça em Assuntos Ambientais na ambiente como nova base para os
América Latina e no Caribe (Acordo intercâmbios, com destaque para
de Escazú), fazendo uso do acordo a retomada da cooperação técnica
como um instrumento para ampliar a com os países africanos, valorizando
cooperação e coordenação regional e desburocratizando a Agência
no avanço da agenda climática e dos Brasileira de Cooperação (ABC),
direitos humanos na região; inclusive por meio da criação de uma
divisão encarregada de identificar

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Clima e estratégia internacional

projetos e boas práticas climáticas e de desmatamento, e avaliar mais


promovê-los junto a outras repartições sistematicamente e em diálogo
governamentais envolvidas na com outros setores a possibilidade
formulação e implementação de de entrada do Brasil no Cinturão
políticas públicas nessa área no Brasil; e Rota, considerando potenciais
efeitos socioambientais mas também
• Defender, fortalecer e valorizar a oportunidades para investimento em
ciência, tecnologia e inovação — e, infraestrutura verde; e regionalizar a
mais amplamente, a educação pública estratégia de cooperação com a China,
— como elementos fundamentais na a partir da Unasul;
compreensão e monitoramento das
mudanças climáticas e na formulação • Rever o Acordo Mercosul-União
de políticas públicas eficazes e justas, Europeia de forma a garantir cláusulas
garantindo o intercâmbio entre as que exijam responsabilidade sócio-
instituições governamentais e os ambiental, climática e de direitos
centros de excelência em pesquisa no humanos entre as partes envolvidas
Brasil e em outros países, investindo e que também previnam impactos
também em novas iniciativas de nocivos, tais como a exportação de
cooperação internacional que emissões carbono da Europa para o
promovam a geração do conhecimento Mercosul e a desindustrialização do
e o desenvolvimento de tecnologias Brasil e dos países do Mercosul;
verdes no Brasil;
• Aproveitar as novas possibilidades
• Reforçar os temas de clima e a de cooperação, investimento e
sustentabilidade — além de suas financiamento criadas pela nova Lei
interseções com o combate à pobreza de Redução da Inflação dos Estados
e com a erradicação da fome — como Unidos para abrir novas frentes de
temas prioritários para a coalizão cooperação nas áreas contempladas,
BRICS e revitalizar o IBAS para facilitar tais como a descarbonização, o uso
a articulação política em áreas de eficiente da energia e a redução do
interesse comum, como a proteção dos desmatamento e das queimadas,
oceanos; sempre com atenção diferenciada
para o fortalecimento da capacidade
• Buscar, com a China, uma declaração brasileira de desenvolver novas
conjunta de compromissos sobre tecnologias verdes, inclusive
clima e meio ambiente, centrado na relacionadas à exploração do
proteção da floresta e na promoção hidrogênio, à eletrificação do
de cadeias de commodities livres transporte público, à agricultura de

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Clima e estratégia internacional

baixo carbono; à rastreabilidade de


commodities e à digitalização verde;

• Para viabilizar a governança efetiva


da agenda climática, criar, no âmbito
do governo federal, um desenho
institucional fundamentado em quatro
princípios: legitimidade, coordenação,
transversalização e inclusão,
localizando a agenda na Presidência
e dotando-a de um mandato amplo,
multisetorial e espelhado tanto
em prioridades de ação no âmbito
doméstico quanto no internacional;

• Revitalizar e construir novos espaços


institucionalizados de diálogo com
a sociedade civil e assegurar que a
agenda climática, em suas vertentes
domésticas e internacionais, contará
com ampla e efetiva participação dos
diversos segmentos da sociedade, em
especial os grupos mais afetados pelas
mudanças climáticas e degradação
ambiental, como mulheres,
indígenas, quilombolas, comunidades
tradicionais, pessoas negras e a
população de baixa renda.

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Pano de fundo: turbulência
geopolítica e transformação
da ordem global
Clima e estratégia internacional

Pano de fundo: turbulência geopolítica e


transformação da ordem global
A ordem global passa por um momento levado a um aumento exponencial do
de profunda transformação, trazendo desemprego, da insegurança alimentar e
grandes incertezas — mas, também, da pobreza — em especial, nos países em
oportunidades. O mundo caminha, desenvolvimento.
possivelmente, na direção de maior
multipolaridade. No entanto, o trajeto Longe de representarem ameaça isolada,
é longo e sinuoso: antigas rivalidades as mudanças climáticas agravam
geopolíticas ressurgem ao mesmo todos esses desafios. A elevação do
tempo em que aparecem novas tensões nível dos mares, a acidificação dos
entre as grandes potências. Muito se oceanos, as alterações nos padrões
fala em uma “Segunda Guerra Fria”, pluviais, a intensificação das secas e a
mas o mundo enfrenta desafios mais desertificação, entre outros fenômenos,
diversificados e complexos do que os já afetam a produção e a disponibilidade
associados à essa época. Desigualdades de alimentos, interrompendo meios
estruturais se agravam, e o combate à de subsistência, provocando tensões
pobreza sofre retrocessos1. Conflitos sociais e impulsionando migrações e
armados se prolongam sem perspectivas deslocamentos forçados em diversas
de resolução, por vezes durante décadas, partes do mundo, inclusive no Brasil.
e a ameaça nuclear ressurge no contexto E os efeitos das mudanças climáticas
da Guerra na Ucrânia. Ao mesmo tempo, convergem e interagem com dois outros
aparecem novas ameaças. Por exemplo, fatores ligados à destruição e degradação
embora possibilitem importantes do meio ambiente: a perda de natureza e
avanços, tecnologias de ponta têm biodiversidade e a poluição e contaminação
produzido riscos significativos a nível do ar, da água e do solo. Os efeitos adversos
mundial, tais como as campanhas de dessas três ameaças, denominadas pela
desinformação — capazes de corroer Organização das Nações Unidas (ONU)
sistemas e valores democráticos. de “Tripla Crise Planetária”, transpassam
fronteiras internacionais, representando
Além disso, a pandemia de Covid-19 um risco existencial para a humanidade.
provocou efeitos devastadores não apenas Por exemplo, no Brasil, somente em
para a saúde humana, com mais de 6 2018 mais de um milhão de pessoas
milhões de mortes registradas ao redor do foram afetadas por enchentes, quase
mundo, mas também para as economias 43 milhões foram atingidas por secas e
locais e globais. A crise sanitária tem estiagem e tivemos mais de 85 mil pessoas

1 Os últimos anos no Brasil e no mundo foram de aprofundamento da desigualdade, o que foi intensificado com a pandemia
de covid-19. A nível internacional, de acordo com o relatório do World Inequality Lab (https://wir2022.wid.world/),
desde 2019 há um visível processo de concentração de renda. No Brasil, a ampliação da desigualdade e da pobreza vem
acompanhada da expansão da fome. De acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da
Pandemia da Covid-19 no Brasil, 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil, um aumento de 70% no número de pessoas
em insegurança alimentar grave desde 2020. Fonte e mais informações: https://bit.ly/3NFj0Bl.

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Clima e estratégia internacional

deslocadas internamente em função dos países do hemisfério Norte. Embora a


de desastres ambientais e climáticos.2 guerra tenha enfatizado a importância de
investimentos mais ágeis e significativos
O Secretário-Geral das Nações Unidas e em energias renováveis, no curto prazo o
outras lideranças da governança global movimento contrário prevalece. Na Europa,
passaram a utilizar o termo Antropoceno observa-se um aumento da geração de
em reconhecimento de que o planeta energia com o uso de carvão e, em plano
entrou em uma nova época geológica mundial, uma corrida pela ampliação
caracterizada pelo impacto dos humanos na da oferta de combustíveis fósseis por
Terra. Cientistas se referem cada vez mais fornecedores alternativos; na China, por
ao conceito de fronteiras planetárias, que exemplo, o carvão ainda corresponde a mais
estabelecem até onde o desenvolvimento de 60% da geração de energia elétrica3.
socioeconômico pode chegar sem afetar
de forma irreversível a capacidade Também se amplia o risco de que recursos
regenerativa da Terra. Esses novos conceitos financeiros que seriam utilizados para a
demandam não apenas uma visão inter- proteção da biodiversidade, o combate
generacional da tomada de decisão, mas à poluição, a promoção de mitigação e
também maior cooperação internacional. adaptação climática e, mais amplamente,
o cumprimento da Agenda 2030 para
A despeito disso, as respostas dos Estados- o Desenvolvimento Sustentável sejam
membros da ONU têm ficado aquém da significativamente reduzidos em função
urgência imposta pela tripla crise. Apesar das flutuações econômicas provocadas
do avanço representado pelo Acordo por sanções econômicas unilaterais e pela
de Paris, por meio do qual 196 países priorização de investimentos massivos na
concordaram em empenhar esforços para área de defesa. Diante desse pano de fundo
manter o aumento da temperatura média global altamente complexo e incerto,
global a menos de 2 °C (preferencialmente a a retomada com melhorias da política
1,5 ºC), o acúmulo de décadas marcadas por externa climática e ambiental do Brasil se
retrocessos ou melhorias tímidas demanda faz não apenas necessária, como urgente.
ações coletivas mais imediatas, ambiciosas,
inovadoras e integradas. No entanto,
choques na conjuntura — em especial, o
conflito na Ucrânia — dominam as atenções

2 Fonte: “Quem precisa de justiça climática no Brasil?”. Disponível em: https://generoeclima.oc.eco.br/lancamento-quem-


precisa-de-justica-climatica-no-brasil .
3 Mais sobre as contradições e complexidades da transição energética da China em “China’s energy transition will be
powered by coal” (disponível em: https://qz.com/2169213/chinas-energy-transition-will-be-powered-by-coal) e “China’s
Five Year Plan for energy: One eye on security today, one on a low-carbon future” (disponível em: https://chinadialogue.
net/en/climate/chinas-five-year-plan-for-energy-one-eye-on-security-today-one-on-a-low-carbon-future/).

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A crise do multilateralismo e
da integração regional
Clima e estratégia internacional

A crise do multilateralismo e da
integração regional
Grandes movimentos tectônicos da ter desempenhado papel importante na
geopolítica ocorrem justamente em um resposta à crise financeira internacional
momento em que o multilateralismo de 2009, já vinham perdendo fôlego como
enfrenta uma crise de legitimidade, com espaços de coordenação entre as maiores
ampla erosão da ordem global cooperativa economias do mundo —, correm o risco de
e baseada no respeito ao direito serem ainda mais debilitados por disputas
internacional e à Carta da ONU. A eleição políticas, em especial em torno da Rússia.
de Donald Trump à presidência dos Estados Por fim, espaços de governança liderados por
Unidos em 2016 inaugurou um período de países do Sul Global também encontram-se,
ataques contundentes às Nações Unidas em grande medida, enfraquecidos, inclusive
e demais organizações multilaterais que devido aos impactos desproporcionais
compõem a governança global — retórica da pandemia de Covid-19 sobre suas
que inclui o negacionismo climático e que economias, que enfrentam altas taxas
continua sendo propagada por governos e de inflação, redução do crescimento e
grupos de extrema-direita em diferentes aumento do endividamento, entre outros
regiões do mundo, do Sudeste Asiático à efeitos. Divergências políticas entre
Europa e América Latina. membros e rivalidades extrarregionais,
como tentativas de contenção da ascensão
Esses desafios políticos se somam a da China por parte de outras potências
gargalos práticos enfrentados pelas mundiais, além das reações à recente
instituições multilaterais, incluindo a invasão da Ucrânia pela Rússia, também
recente incapacidade de assegurar a minam a eficácia de canais de cooperação
distribuição equitativa, solidária e justa de e coordenação política Sul-Sul outrora
vacinas, de tratamentos e de equipamentos eficientes, tais como o G7, o BRICS (Brasil,
necessários para o enfrentamento da Rússia, Índia, China e África do Sul) e o
pandemia de Covid-19. Além disso, as IBAS (Índia, Brasil e África do Sul).
dificuldades enfrentadas pela ONU para
prevenir ou resolver conflitos armados Na América do Sul especificamente, o
de maneira duradoura, explicitadas nos enfraquecimento da integração regional
últimos anos pelas guerras na Síria e, mais resulta não apenas de diferenças
recentemente, na Ucrânia, enfraquecem a políticas entre Estados, mas também
credibilidade da organização e ressaltam da falta de lideranças comprometidas
a necessidade de reforma do Conselho de com a cooperação internacional. A falta
Segurança, cujo modo de operação tem de confiança mútua atual se reflete no
se mostrado obsoleto para exercer de subaproveitamento ou, até mesmo, no
maneira eficaz a função de manter a paz e sucateamento dos espaços de cooperação,
a segurança internacionais. incluindo o Mercosul e a Unasul. E novas
iniciativas, tais como o Acordo Regional
Ao mesmo tempo, arranjos outrora ágeis, sobre Acesso à Informação, Participação
tais como o G7 e o G20 — que, apesar de Pública e Acesso à Justiça em Assuntos

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Clima e estratégia internacional

Ambientais na América Latina e no Caribe


(Acordo de Escazú) avançam lentamente.
No segundo caso, em razão da falta de
ratificação por muitos países — entre
os quais, o Brasil — e do ainda limitado
espaço para a participação da sociedade
civil no monitoramento da implementação
do acordo.

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3
Uma nova diplomacia
climática
Clima e estratégia internacional

Uma nova diplomacia climática

Os impactos já sentidos da Tripla Crise mas também de liderá-los, sobretudo


Planetária da mudança do clima, da poluição quando políticas ambientais e climáticas
e da perda de biodiversidade fazem com que defendidas na esfera externa são
agendas que durante muito tempo foram acompanhadas de avanços consistentes no
tratadas como independentes, inclusive por plano doméstico.
serem discutidas em esferas distintas de
tomada de decisão na governança global, Se acompanhados de esforços concretos
passem a ser abordadas de maneira mais para o fortalecimento das performances
integrada por diversos setores da sociedade: ambiental e climática — tais como a redução
Estados, governos subnacionais, sociedade significativa nos índices de desmatamento;
civil e o setor privado e financeiro. Apesar a geração de empregos verdes por meio
disso, na ausência de instrumentos de abordagens como as infraestruturas
globais legalmente vinculantes, como uma verdes, a bioeconomia e a economia
convenção global para proteção de florestas circular; os investimentos em tecnologias e
— em contraste com os acordos sobre clima, infraestruturas verdes —, uma diplomacia
biodiversidade e desertificação oriundos da climática e ambiental ativa, inovadora e
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio propositiva será fundamental para que
Ambiente e o Desenvolvimento, também o Brasil consiga reverter a perda de soft
conhecida como Eco-92 — a cooperação power, prestígio e influência na geopolítica
internacional contra o desmatamento ilegal global e nos fóruns internacionais dos
(complemento essencial aos esforços em últimos quatro anos. Para isso, será
nível nacional) permanece fragmentada necessário desenvolver estratégias de ação
e altamente sujeita a retrocessos, a voltadas à reinserção do país enquanto
depender da conjuntura política global. protagonista em temas chaves, tais como
a proteção das florestas e dos direitos dos
Esta combinação de fatores ilustra a povos que as habitam, e a promoção da
importância de que o Brasil retome segurança alimentar, do financiamento
uma política externa altiva e regida por climático e da justiça climática. Tais
princípios que incluem a independência estratégias devem contar com mecanismos
nacional, a prevalência dos direitos participativos que engajem os povos
humanos, a defesa da paz e a cooperação indígenas, as comunidades remanescentes
entre os povos para o progresso da de quilombos e as comunidades tradicionais
humanidade, em consonância com o Artigo e que incentivem a participação de jovens,
4o da Constituição Federal. grupos desproporcionalmente afetados por
injustiças climáticas intergeneracionais e
Nas agendas de clima e meio ambiente, que, ao mesmo tempo, representam fonte
experiências passadas demonstram que de conhecimento e liderança para lidar
o Brasil possui capacidade não apenas com desafios ambientais e climáticos.
de participar ativamente de esforços
diplomáticos inovadores em tais áreas,

21
4
Desgastes do negacionismo
climático
Clima e estratégia internacional

Desgastes do negacionismo climático

Além de causar enorme destruição alarde não apenas entre outros Estados —
ambiental e minar o bem-estar dos para os quais o Brasil de Bolsonaro fechou
brasileiros, o governo Jair Bolsonaro as portas a favor de uma submissão cega
levou o Brasil — historicamente, um país a Washington durante a administração
proativo e construtivo nos debates globais de Donald Trump — mas também entre os
— a perder credibilidade e espaço no plano segmentos da sociedade que valorizam
internacional. Ao promover o desmonte cada vez mais a proteção do meio ambiente
das instituições federais encarregadas da e a ação climática. Ao mesmo tempo, os
proteção ambiental; ao atacar os órgãos ataques ao multilateralismo e o rompimento
que produzem dados, ciência e pesquisa; com princípios da Constituição que regem
ao se esforçar para legalizar crimes como a política externa brasileira colocaram o
a grilagem de terras públicas, o garimpo Brasil na contramão da integração regional
ilegal e a exportação de madeira extraída e da cooperação internacional. É urgente
ilegalmente; ao alimentar o negacionismo que essa realidade seja modificada e que
climático; ao fazer vista grossa às violações uma estratégia sólida e a longo prazo seja
de Direitos Humanos, incluídos os ataques elaborada.
violentos aos defensores sócio-ambientais; e
ao desmantelar mecanismos de cooperação A retração do Brasil nos debates globais
internacional pela proteção ambiental, como e na cooperação internacional se dá
o Fundo Amazônia, a atual gestão rompeu justamente em um momento em que
parcerias e laços de confiança que o Brasil a emergência climática se aprofunda.
havia construído ao longo do último século. Hoje, é amplamente reconhecido que,
Ao mesmo tempo, a retração na cooperação longe de representarem ameaça isolada,
internacional — fonte importante de as mudanças climáticas agravam todos
trocas, parcerias e inovações nas políticas os principais desafios enfrentados pela
públicas — acabou por minar a soberania humanidade, incluídas a erradicação
nacional, na medida em que reduziu a da fome e pobreza e o desenvolvimento
capacidade de negociação do país. Os novos sustentável. A elevação do nível dos mares,
picos no desmatamento e nas queimadas, a acidificação dos oceanos, as alterações
especialmente na Amazônia e no Cerrado, nos padrões pluviais, o agravamento das
provocaram forte reação negativa, tanto no secas, a desertificação e a intensificação
Brasil quanto fora do país4. dos eventos climáticos extremos, entre
outros fenômenos, já reduzem a produção
A política anti-ambiental, negacionista e a disponibilidade de alimentos,
e desumana do governo Bolsonaro causa interrompem meios de subsistência,

4 Sobre o desmonte institucional ambiental, a ampliação de crimes ambientais e a ampliação da violência contra defensores
sócio-ambientais durante o governo Bolsonaro, ver “Brasil: 100 dias de destruição”, relatório produzido pelo Observatório
do Clima (disponível em: https://bit.ly/3sT07Bt), “Crimes ambientais como crime organizado: a extração ilegal do ouro na
Amazônia”, relatório estratégico da Plataforma CIPÓ (disponível em: https://bit.ly/3h7CLp3).

23
Clima e estratégia internacional

causam retrocessos na implementação de Sul, mas também a participação efetiva


políticas públicas, provocam desastres, da sociedade civil, do setor privado e de
impulsionam migrações e deslocamentos organizações internacionais na promoção
forçados e agravam tensões sociais, entre da justiça climática, reconhecendo que os
outros desafios. impactos das mudanças climáticas atingem
de forma e intensidade diferentes grupos
Além disso, a ciência mostra que as sociais distintos -- no Brasil, especialmente
mudanças climáticas convergem e a população indígena e negra. Por isso
interagem com dois outros fatores: a perda também, o tema do clima adquire novo
de natureza e de biodiversidade e a poluição peso estratégico no fortalecimento do
e contaminação do ar, da água e do solo. multilateralismo e na construção de uma
Os efeitos adversos dessas três ameaças, ordem multipolar mais inclusiva, solidária
denominadas pela Organização das Nações e sustentável. É contra esse pano de fundo
Unidas (ONU) de “Tripla Crise Planetária,” que deve ser pensada a nova estratégia
transpassam as fronteiras internacionais, internacional do Brasil.
representando um risco existencial sem
precedentes para a humanidade. Devido ao
escopo planetário do desafio, nenhum país
ou outro ator por si só é capaz de enfrentar
os desafios crescentes relacionados às
mudanças climáticas.

A emergência climática demanda ação


conjunta para a mitigação, tendo o Acordo
de Paris como arcabouço central para a
redução das emissões de gases do efeito
estufa. No entanto, a mitigação não basta.
Os impactos das mudanças climáticas já
são realidade, sendo necessário investir
também em adaptação climática e no
apoio às perdas e danos, inclusive por
meio da ampliação do financiamento,
da transferência e do desenvolvimento
(inclusive pelos países do Sul) de tecnologias
verdes e, mais amplamente, da adoção de
um modelo de desenvolvimento que tenha
a inclusão social e a sustentabilidade em
seu cerne. A construção desse modelo
requer não apenas maior colaboração
entre Estados, inclusive entre os países do

24
5
Resgatando a credibilidade
internacional
Clima e estratégia internacional

Resgatando a credibilidade internacional

O primeiro passo para recuperar a (multas e embargos); e melhorias no


credibilidade perdida pelo Brasil no rastreamento da carne e de outras
plano internacional é adotar uma medida commodities que estão pressionando a
doméstica: reverter os elevados índices floresta. O fim da cultura de impunidade
de desmatamento e de queimadas, em torno dos crimes ambientais contribuirá
principalmente na Amazônia. Em que para melhorias em mecanismos centrais,
pese o processo de sucateamento dos como o Cadastro Ambiental Rural (CAR)
órgãos ambientais nos últimos quatro e do Sistema Nacional de Rastreabilidade
anos, o Brasil possui o conhecimento e as da Produção Agropecuária. Conjugando
capacidades necessárias para combater prevenção e combate ao desmatamento
a destruição da maior floresta tropical com a recomposição de áreas degradadas
do planeta. Durante quase uma década, a e o reflorestamento de biomas, será
partir dos meados dos anos 2000, o Brasil possível reduzir de forma significativa o
obteve êxito na redução do desmatamento desmatamento e, portanto, as emissões.
ilegal ao mesmo tempo que aumentou a
produção agrícola na região amazônica, e Além disso, é fundamental que o Brasil
as emissões resultantes do desmatamento implemente, mesmo antes da ratificação
no Brasil caíram em mais de dois terços. do Acordo de Escazú, instrumentos
Esse sucesso obteve amplo reconhecimento para garantir a prevenção da violência
internacional e contribuiu para um ganho contra defensores da terra e ambientais,
de credibilidade do Brasil em negociações sobretudo as agressões e ameaças contra
sobre clima e meio ambiente. lideranças socioambientais, indígenas
e quilombolas. Isso requer a garantia
Portanto, em 2023, as ações mais urgentes ao acesso à justiça, investigando e
na área climática devem ser a revitalização processando todos atores relevantes
dos órgãos federais sucateados, como envolvidos em violações, e exigindo
o Ibama, ICMBio e a Funai; a revogação que empresas e instituições financeiras
e substituição dos atos normativos instituições financeiras prestem contas
(“boiadas”) que contribuíram para o sobre a violência e outros danos à terra
desmonte da área climática e ambiental; e aos defensores ambientais em todas
e a promoção de políticas fundamentadas as suas operações globais e em suas
na justiça climática e nas evidências cadeias produtivas, como parte da devida
científicas, com base em dados confiáveis diligência.
e transparentes. Igualmente relevantes
são a atualização com melhorias dos No plano externo, o Brasil deve sinalizar
planos de controle e prevenção do seu compromisso inequívoco com a
desmatamento da Amazônia e do Cerrado proteção socioambiental, tomando ações
(PPCDAm e PPCerrado, respectivamente); para demonstrar que esse discurso será
o fortalecimento da fiscalização (in loco e sustentado não apenas por medidas
remota); a aplicação efetiva de penalidades concretas e imediatas, mas também

26
Clima e estratégia internacional

por uma estratégia de longo prazo. A uma nova coalizão entre Brasil, República
descarbonização rumo a uma economia Democrática do Congo e Indonésia (BIC),
de baixo carbono é um dos elementos com o potencial de agregar novos membros
centrais dessa estratégia. Uma das no futuro, ofereceria um espaço para que
primeiras medidas deve ser anunciar uma países em desenvolvimento que enfrentam
Contribuição Nacionalmente Determinada desafios semelhantes no que concerne
(NDC) mais ambiciosa e acompanhada de às áreas de floresta possam compartilhar
estratégia crível e transparente de redução experiências para a promoção de cadeias de
de emissões. O Brasil também deve retomar a produtos florestais livres de desmatamento
cooperação bilateral com países parceiros e e mobilizar apoio por recursos voltados às
fomentar o aprimoramento de mecanismos áreas de floresta tropical. O lançamento da
de captação de doações para investimento coalizão BIC enviaria uma forte mensagem
internacional em ações de enfrentamento de que as soluções para as florestas
ao desmatamento e de preservação da tropicais devem ser encabeçadas por países
biodiversidade, comunicando, inclusive, a tropicais, mesmo que alianças com países
intenção de reativação imediata do Fundo ricos sejam necessárias para assegurar
Amazônia. Todas essas ações, assim a idoneidade do comércio internacional
como outras detalhadas mais adiante no em commodities que pressionam essas
presente documento, serão fundamentais florestas.
não apenas para resgatar a credibilidade
política, mas também para atrair novos Em todos esses espaços, é necessário
investimentos à região. enfatizar uma nova visão da soberania
nacional -- uma “soberania com
O Brasil deve, ainda, demonstrar responsabilidade”-- que contrasta com
liderança para criação de novos arranjos a perspectiva do atual governo: mais
cooperativos, por exemplo, em torno da especificamente, será necessário promover
proteção das florestas, junto a outros a ideia de que, quando construída com
países em desenvolvimento que possuam respeito, a cooperação internacional é um
biomas semelhantes, em consonância instrumento essencial no fortalecimento
com a Declaração de Líderes de Glasgow da soberania brasileira, pois amplia as
sobre Florestas e o Uso da Terra. Por capacidades do país de negociação nos
último, é importante que o Brasil espaços internacionais.
retome seu engajamento propositivo e
construtivo nos fóruns multilaterais e em
negociações globais sobre clima e meio
ambiente, inclusive nas COPs sobre clima
e biodiversidade, enfatizando que a agenda
climática vai bem além da mitigação. Do
ponto de vista da cooperação Sul-Sul com
países de fora da região, iniciativas como

27
6
Para além do
desmatamento: uma nova
visão para a Amazônia e
outros biomas ameaçados
Clima e estratégia internacional

Para além do desmatamento: uma nova visão


para a Amazônia e outros biomas ameaçados
Tanto para o desenvolvimento nacional meio de melhorias na regulamentação e de
quanto em termos da estratégia uma estreita e contínua colaboração com
internacional do Brasil, não basta coibir os as universidades, centros de pesquisa e
crimes ambientais que levam à destruição entidades da sociedade civil.
dos biomas. Assegurar o bem-estar da
população e a preservação do meio O mercado regulado de carbono deve
ambiente requer também alterar a estrutura fazer parte da estratégia brasileira para o
de incentivos que, historicamente, net zero global (zero emissões líquidas de
alimenta o uso predatório dos recursos da carbono), desde que seja desenhado de
região e fomenta a violência, a fome e a forma eficaz e justa, em coordenação com
pobreza. O desenvolvimento na Amazônia a NDC, de forma a gerar renda e bem-estar
— assim como os posicionamentos locais. Por exemplo, os créditos de carbono
correspondentes na política internacional devem estar associados a protocolos
— deve ser traçado com base na inclusão de consulta que atendam a padrões
social das suas populações e na proteção de responsabilidade socioambiental
de seus ativos ambientais. Por isso, ao adequados e garantam a participação plena
mesmo tempo que retoma o combate ao e efetiva de comunidades potencialmente
desmatamento, o Brasil deve elaborar e afetadas. Tal mercado deve incorporar
implementar uma visão coerente de bem- regras que impeçam que atores externos
estar e sustentabilidade para a Amazônia imponham relações de predação com as
Legal, onde vivem mais de 28 milhões comunidades locais e pode estar atrelado a
de brasileiros, de acordo com dados um fundo dedicado a apoiar as populações
recentes do IBGE5. Essa visão deve ser mais expostas às mudanças climáticas.
fundamentada na ampliação do acesso a
serviços básicos, tais como a educação, a O Brasil também deve priorizar os processos
saúde e o saneamento básico; na geração de regularização fundiária na região com
de renda e de empregos dignos, em especial base na legislação já existente, de forma
para os jovens, as mulheres e outras a reduzir a violência e desigualdades e
populações vulnerabilizadas nos centros a viabilizar o desenvolvimento com base
urbanos da Amazônia; e na implementação na exploração sustentável e integrada
de infraestruturas verdes, tais como das atividades agro-silvo-pastoris. Essa
usinas de compostagem, aterros sanitários regularização deve ser conjugada com
sustentáveis e banda larga em comunidades. uma atenção diferenciada à demarcação
Cabe, também, ampliar e diversificar das terras indígenas e quilombolas e
as soluções efetivas de bioeconomia, outras políticas de apoio, assegurando a
preservando flora e fauna e prevenindo a sua liderança na formulação de políticas
“maquiagem verde” (o greenwashing) por voltadas a essas populações. Será

5 Mais informações e dados sobre a Amazônia Legal podem ser encontrados no relatório da Amazônia 2030, disponível
em: https://bit.ly/3U4BH3S.

29
Clima e estratégia internacional

imprescindível a alocação de recursos e de Nesses diálogos, será possível inovar em


quadros técnicos para a Funai e a Fundação temas de sustentabilidade, por exemplo
Palmares, de forma a garantir a proteção e a cooperação em agricultura de baixo
bem-estar dos povos tradicionais. carbono, na soberania alimentar, por meio
da promoção da agricultura familiar, e na
Urge também revitalizar e atualizar o transição energética.
programa político e o organograma dos
arranjos de cooperação regionais relevantes Embora outros biomas brasileiros —
a essa visão. O fortalecimento político e Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga, Pantanal
orçamentário da Organização do Tratado de e Pampa — atraiam menos atenção nos
Cooperação da Amazônia (OTCA), inclusive debates atuais, também será necessário
por meio de reuniões anuais a nível de chefe formular políticas de proteção ambiental
de estado, deve servir de âncora central e de desenvolvimento socioeconômico
para a cooperação regional para a floresta adequadas a cada região. Com a exceção
e seus povos. O Parlamento Amazônico da Mata Atlântica, que beira o Atlântico,
e o Observatório Regional da Amazônia todos os biomas atravessam fronteiras
representam plataformas complementares internacionais, demandando, portanto,
que devem ser alavancadas em prol de uma ações de cooperação internacional que
cooperação pan-amazônica mais profunda complementem as políticas implementadas
e duradoura. Além disso, é urgente a no plano doméstico. O Cerrado, por
realização da 4ª Reunião de Presidentes exemplo, abriga nascentes de oito das 12
dos Países Amazônicos, fórum de diálogo bacias hidrográficas do país e é considerado
não-permanente no âmbito da OTCA que a savana mais biodiversa do mundo. Ainda
reúne os presidentes dos países membros assim, o bioma concentra 30% de toda a
da organização (outros arranjos regionais área desmatada no Brasil e tem sido foco
Mercosul e a Unasul — que completam constante de queimadas e desmatamento,
o tripé da abordagem regional na nova resultantes do avanço acelerado da
estratégia internacional serão detalhados fronteira agrícola. Como, além de território
mais adiante no presente documento). brasileiro, o Cerrado também compreende
partes da Bolívia e do Paraguai, também
Para além dos arranjos regionais, a deve ser objeto de novas formas de
cooperação bilateral com outros países cooperação climática na região. É,
da Amazônia — igualmente esfacelados ademais, importante considerar as relações
pelo governo Bolsonaro — requer atenção entre tais biomas, em especial no sentido
redobrada. No caso da Colômbia, a de evitar que quaisquer avanços contra
possibilidade de um novo alinhamento o desmatamento na Amazônia ocorram
político abre a janela de oportunidade a despeito da destruição do Cerrado ou
para uma nova fase de construção de outros biomas, com a expansão sistemática
confiança mútua e ampliação das trocas da fronteira agrícola. Em outras palavras,
de experiências e da cooperação técnica. o objetivo de desmatamento zero (e não

30
Clima e estratégia internacional

apenas o fim do desmatamento legal) exige por meio da cooperação climática e da


um olhar diferenciado e concomitante defesa de uma governança climática
para os diferentes biomas que compõem o mais eficaz na promoção da justiça
território brasileiro. climática, que não olhe únicamente
para a conservação, mas também para a
Há, ainda, que desenvolver uma estratégia promoção do desenvolvimento sustentável
de proteção ao espaço marinho, posto e para a geração de emprego e renda para
que o Brasil controla, oficialmente, um a população na Amazônia, entre outros
território marítimo de 3,6 milhões de km2 objetivos. Essa visão deve ser comunicada
-- área maior do que as regiões Nordeste, de forma cristalina tanto no plano
Sudeste e Sul juntas, fortalecendo as doméstico, quanto no internacional.
instituições relevantes; implementando
o Planejamento Espacial Marinho
como instrumento de gestão pública
visando o desenvolvimento da economia
azul sustentável; e colocando o Brasil
como protagonista em diversos fóruns
multilaterais (tais como a Conferência das
Nações Unidas para o Oceano - UNOC; a
Convenção das Nações Unidas sobre o
Direito do Mar; e Convenção da Diversidade
Biológica) na construção do Quadro Global
pós-2020 para a biodiversidade.

Em suma: o desenvolvimento na Amazônia,


assim como nos demais biomas terrestres
e no espaço marítimo, deve ser traçado
com base na inclusão social, na justiça
climática6 e na proteção de seus ativos
ambientais. A estratégia internacional
pode ajudar a tornar isso uma realidade,

6 Neste documento, seguimos o conceito de justiça climática discutido no livro “Quem precisa de Justiça climática no
Brasil?” (Disponível em: https://generoeclima.oc.eco.br/lancamento-quem-precisa-de-justica-climatica-no-brasil/). O
livro aponta que o conceito, consagrado no Acordo de Paris de 2015, está intimamente ligado a questões de equidade
e responsabilização, com ênfases marcadas em raça, gênero e geografia (norte x sul). Consta no livro que: A justiça
climática propõe que as mudanças climáticas sejam analisadas e combatidas com o viés da responsabilização daqueles
que efetivamente deram causa ao desequilíbrio constatado e que possuem mais condições de enfrentá-las - principalmente
países e empresas do Norte Global -, evitando-se, assim, a socialização dos ônus climáticos e a privatização dos bônus.
Em outras palavras, significa que aqueles que, historicamente, se beneficiaram e se desenvolveram com as emissões de
gases de efeito estufa acumulados até hoje na atmosfera não podem compartilhar com os demais a responsabilidade pelos
prejuízos e impactos das mudanças climáticas”.

31
7
A defesa da transição justa
e soberana
Clima e estratégia internacional

A defesa da transição justa e soberana

Os debates globais sobre transição Falar de clima e desenvolvimento


ecológica estão sendo pautados pelos sustentável é falar de aliar os objetivos de
países industrializados — e, portanto, mitigação e adaptação climáticos à busca
são centrados nas prioridades daquelas pelo desenvolvimento socioeconômico
sociedades. Nem sempre os parâmetros e ambiental, de forma a garantir o bem
dessas discussões se conformam às estar e a dignidade de todos os brasileiros.
realidades e demandas do Brasil, cuja É apenas combinando as duas esferas,
matriz energética, padrões de emissões clima e desenvolvimento, que o Brasil irá
e estrutura socioeconômica divergem de produzir uma abordagem sustentável,
forma significativa. As soluções para o soberana e solidária. E essa ideia deve
Brasil devem ser desenhadas a partir das estar presente não apenas na formulação
características da sua sociedade, economia da transição justa e soberana no plano
e biodiversidade. doméstico, mas também na defesa dessa
concepção na estratégia internacional. Isto
Mas avançar o debate brasileiro sobre passa por garantir agendas fundamentais
transição ecológica não é apenas uma com maior sustentabilidade, como energia,
questão de defender determinados agricultura e mineração; por revalorizar a
posicionamentos nos fóruns internacionais. pesquisa científica, a inovação e a educação
O próximo ciclo político brasileiro como alavancas para o crescimento, a
apresenta desafios enormes. Os modelos reindustrialização e a redução da pobreza
de desenvolvimento implementados no no Brasil, buscando uma economia
passado provocaram elevados danos ambientalmente sustentável e solidária.
socioambientais e acumularam enormes
injustiças; precisam, portanto, ser Em termos de energia, é possível
atualizados. E a estratégia internacional aproveitar melhor os diferenciais da matriz
deve refletir e defender esse novo modelo. brasileira, na qual as fontes eólica e solar
já representammais de 9% da energia
É necessário, em primeiro lugar, ter maior elétrica total, de acordo com os dados do
clareza sobre os conceitos básicos que irão Balanço Nacional Energético de 20217.
guiar os novos rumos do Brasil, e que serão A prioridade será a expansão das fontes
refletidos na sua estratégia internacional. renováveis para geração doméstica e, no
O que entendemos por desenvolvimento futuro, do hidrogênio verde, especialmente
sustentável no contexto da emergência para a siderurgia, com o estabelecimento
climática? E desenvolvimento para quem? de metas intermediárias e indicações claras
Como a ideia de transição dialoga com essa de como estas seriam atingidas. O Brasil
nova visão de desenvolvimento? pode despontar como um dos potenciais
líderes na corrida mundial para a produção

7 O Balanço Nacional Energético de 2021 está disponível em: https://bit.ly/3NEssVF.

33
Clima e estratégia internacional

do hidrogênio verde, desde que construa produção, acesso e consumo de alimentos


políticas que assegurem as condições tenham consigo sustentabilidade e
adequadas de garantia e promoção de dignidade, e na qual a biodiversidade
direitos humanos, trabalhistas e territoriais e os bioinsumos sejam valorizados e
na expansão desta matriz. incorporados, ao invés do uso excessivo de
agrotóxicos. A transição também requer
A Petrobrás, que desempenha papel avançar na construção de um novo projeto
fundamental na soberania energética de mineração mais sustentável, em que
do Brasil, deve voltar a diversificar seu o extrativismo predatório seja combatido
portfólio investindo em energias limpas, e que elementos de impacto sócio-
incluindo eólica e solar, e em bioinsumos, ambiental, escala e descentralização
além de evitar a exploração do petróleo sejam levados em conta na formulação
e gás em área ecologicamente sensíveis, das políticas. E, finalmente, significa
em consonância com um planejamento avançar na agenda de industrialização
mais detalhado para as áreas marinhas. verde e a digitalização responsável como
É preciso retomar o planejamento de componentes da recuperação da pandemia
transformar a Petrobrás em empresa de de Covid-19.
energia no sentido mais amplo, e não
mais em empresa de petróleo. Por isto, é Cabe ressaltar, ainda, que a transição justa
central que a política energética do Brasil e soberana inclui a redução significativa e
seja centrada no conceito de democracia e a longo prazo dos índices de desmatamento
soberania energética: para que a ampliação e de queimadas; a geração de empregos
e acesso à energia sejam concomitantes à verdes por meio da conservação, do
responsabilidade climática e ambiental. reflorestamento e da recuperação dos
ecossistemas já degradados, assim como
No entanto, no Brasil a transição justa e outros serviços ambientais; a ampliação
soberana deve ir bem além da energia: ela da transferência de renda, que ajudará
também significa avançar na construção a alterar a estrutura de incentivos que
de uma agenda sustentável para a alimenta os crimes ambientais; as
agricultura, garantindo que a ampliação infraestruturas sustentáveis, tanto em
da produtividade seja concomitante à área urbanas quanto em zonas rurais; os
manutenção da floresta em pé, que partes incentivos à bioeconomia desprovidos
da cadeia de produção do agronegócio de greenwashing e sem violações dos
contenham maior valor agregado e que direitos das comunidades locais; a
o Plano Agricultura de Baixo Carbono economia circular e a logística reversa; os
(ABC) e projetos ligados à agricultura investimentos em ciência e tecnologias
familiar e à agroecologia ganhem mais e em conhecimentos tradicionais; e a
recursos. Demanda avançar na agenda de transformação dos transportes, entre
construção de soberania alimentar – e não muitos outros elementos.
apenas segurança alimentar – para que

34
Clima e estratégia internacional

No nexo entre clima e desenvolvimento, digital, serão necessárias medidas


destacam-se duas prioridades preventivas contra o uso predatório dos
complementares. A primeira é garantir recursos naturais e da biodiversidade; do
que as políticas de inclusão sejam sócio- aumento da pobreza e da desigualdade; e
ambientalmente responsáveis: ou seja, da precarização do trabalho.
promover uma transição climática e
ambiental que assegure uma vida digna à Neste sentido, é fundamental que
população, integrada ao combate à pobreza, o Brasil se posicione de maneira
à fome, ao desemprego, à violência e à
crítica às compensações de emissões
discriminação.
de carbono: só atingiremos as metas
Ao mesmo tempo, um olhar internacional que garantem a sobrevivência
também é necessário no planejamento da humanidade se o esforço de
dessa transição, de forma a entender mitigação no norte não significar
e prevenir os impactos que a transição a transferência de emissões e
energética em países e regiões ricas degradação para o Sul.
terão no Brasil. Por exemplo, mudanças
regulatórias previstas pela União Pelo escopo e complexidade da transição,
Europeia e pelos Estados Unidos podem será necessário pensar em novas formas
afetar cadeias globais de valor, trazendo de financiar esse processo. Nisso, também,
fortes impactos para os padrões locais (no a estratégia internacional será essencial
Brasil) de extrativismo, de adição de valor para diversificar as fontes. Por exemplo, os
agregado e de consumo. Se, por um lado, bancos multilaterais de desenvolvimento,
a transição nos países industrializados tais como o Banco Interamericano de
abre novas janelas de oportunidade — por Desenvolvimento (BID) e o Banco de
exemplo, para a produção responsável e Desenvolvimento da América Latina
sustentável do lítio e outras terras raras (CAF), já financiam políticas nacionais
essenciais às novas tecnologias limpas, e setoriais de mudanças climáticas e de
tais como as baterias elétricas, e a criação biodiversidade em diversos países da
estratégica de cadeias de produção de tais região e podem ser acionados para apoiar
metais –, por outro lado o mesmo processo componentes do processo de transição
pode gerar impactos nocivos, tais como a justa no Brasil. Para além da região, o
exportação de carbono por países ricos Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS
que, ao definirem metas nacionais ou (sigla em inglês, NDB) anunciou em 2016 a
regionais, passarão a exportar o carbono intenção de aumentar os investimentos em
para os países em desenvolvimento. energias renováveis e pode ser acionado
Portanto, no contexto da transformação para acelerar a transição justa no Brasil.
da economia global já em curso devido Além disso, é preciso fortalecer canais
à pandemia de Covid-19 e da expansão de cooperação que facilitem trocas de
acelerada e desuniforme da economia experiências; mecanismos de atração de

35
Clima e estratégia internacional

investimentos; e adotar, quando aplicável,


normas e boas práticas da OCDE, da qual
o Brasil é parceiro-chave, nos temas
dos grupos de trabalho sobre transição
energética e ambiental, como os de
descarbonização da economia, de transição
energética em cidades, e de economia
circular.

Em suma: concebida de forma ampla e


refletida na estratégia internacional, a
transição também ajudaria a reposicionar
o Brasil de forma a reconquistar a
credibilidade, a influência e os espaços
perdidos durante os últimos quatro anos.
Longe de serem mutuamente excludentes,
a inclusão social, a sustentabilidade e a
solidariedade devem estar profundamente
entrelaçadas no cerne da transição, de
forma a promover o bem-estar e a justiça
climática para múltiplas gerações.

36
8
O Brasil nas Conferências
das Partes (COPs)
Clima e estratégia internacional

O Brasil nas Conferências das Partes (COPs)

Desde o princípio do regime global climático, Além disso, o contexto planetário mudou de
o Brasil desempenha um papel propositivo forma considerável. A ciência mostra que a
e construtivo nas negociações sobre meio crise climática agravou-se, representando
ambiente, muitas vezes sendo visto como hoje um problema existencial para a
líder entre países em desenvolvimento. humanidade. Mais do que nunca, é preciso
Sediou, em 1992, a primeira Conferência que todos os países emissores aumentem
das Nações Unidas sobre Meio Ambiente suas ambições climáticas, tanto em
e Desenvolvimento (Eco-92) e a Rio+20, termos de mitigação quanto de adaptação,
realizadas no Rio de Janeiro em 1992 e 2012. mesmo que os países industrializados
Participou ativamente das negociações em tenham responsabilidade maior devido
torno do Protocolo de Kyoto, firmado em às suas emissões cumulativas. Por isso,
1997, da Agenda 2030 de Desenvolvimento o Brasil, como economia emergente e
Sustentável e do Acordo de Paris, em em coerência com um novo modelo de
2015. Além disso, desempenhou papel desenvolvimento sustentável, ambiciona
fundamental na construção dos Objetivos estabelecer, sem mais retrocessos, uma
de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e da trajetória inclusiva de neutralização de
Agenda de Adis Abeba para o Financiamento emissões e de descarbonização da sua
do Desenvolvimento Sustentável. Em economia. É fundamental, portanto, que
2015, o Brasil foi o primeiro país em o país anuncie, de maneira célere, uma
desenvolvimento a assumir, em sua NDC, NDC mais ambiciosa, acompanhada de um
com o compromisso de redução absoluta plano de redução de emissões passível de
de emissões de gases de efeito estufa no monitoramento pela sociedade brasileira
agregado da economia. e internacional.

No entanto, nos últimos anos as ambições Uma atuação mais proativa por parte de
climáticas do Brasil retrocederam (no um eventual novo governo eleito — não
caso do desmatamento) ou estagnaram; apenas com autoridades de outros países,
o país fechou sua participação na COP26 mas também com a sociedade civil e o setor
(Glasgow) com o mesmo compromisso privado — deve ter como base não apenas
assumido em Paris há sete anos — ou seja, o Acordo de Paris, mas também outros
mantendo o mesmo nível de ambição de compromissos assumidos desde então. Em
2015. Dado o objetivo de manter o aumento Glasgow, por exemplo, o Brasil apresentou
da temperatura do planeta em até 1,5°C diretrizes para a agenda estratégica
comparado a níveis pré-industriais, esse voltada à neutralidade climática, como a
patamar não condiz com o potencial do meta de zerar o desmatamento ilegal até
Brasil de contribuir para a ação climática 2028; restaurar e reflorestar 18 milhões de
e com o compromisso assumido de hectares de florestas até 2030; alcançar,
adotar metas de redução de emissões em 2030, a participação de 455 a 50%
progressivas. das energias renováveis na composição da
matriz energética; recuperar 30 milhões

38
Clima e estratégia internacional

de hectares de pastagens degradadas; e sediar conferências em um momento


incentivar a ampliação da malha ferroviária. crítico da ação climática global. Posto que,
Assinou, também, o Compromisso Global em 2018, o presidente eleito Jair Bolsonaro
do Metano, para reduzir 30% as emissões pressionou pela desistência de receber a
do gás até 2030. Portanto, para se reinserir COP25, levando o país a perder mais uma
nos debates como ator responsável e chance de assumir um papel de liderança
propositivo, o Brasil deve, até a COP28, na agenda climática em um momento
formalizar e detalhar tais metas. crítico para a implementação da meta
do Acordo de Paris, o Brasil deve propor
Em agenda de mitigação, cabe ao Brasil sediar futura edição da COP climática.
ter uma postura crítica e construtiva com Organizar a conferência representaria uma
relação à agenda de mercado e precificação oportunidade importante de influenciar
de carbono, conforme consta no Artigo 6 do a agenda global nessa área, ressaltando
Acordo de Paris. Ainda que instrumentos as prioridades do Sul e fortalecendo a
econômicos de descarbonização sejam participação da sociedade civil nos espaços
importantes, é fundamental que haja de negociação.
garantias, assinadas e documentadas em
COPs, de protocolos de consulta com os Cabe ressaltar que os esforços da
territórios inseridos nas dinâmicas de Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre
precificação de carbono. Além disso, é Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em
necessário avançar para que as dinâmicas inglês) ainda focam desproporcionalmente
de compensação de emissões de carbono no tema da mitigação. Mesmo com alguns
(offset) não reproduzam uma lógica avanços recentes em adaptação, o tema é
colonial de governança climática. relegado ao segundo plano, sem maiores
resultados em termos de estabelecimento
Em relação às negociações, avançar de metas quantificadas.
na agenda requer calibrar o princípio
das responsabilidades comuns porém Embora a mitigação ainda seja importante,
diferenciadas (consagrado na Rio 92, e é necessário chegar aos espaços de
que determina que os países desenvolvidos governança climática internacional com
devem arcar com os custos maiores para posicionamentos claros e propositivos
o desenvolvimento sustentável) de forma para as agendas globais de adaptação,
a pleitear a expansão da cooperação perdas e danos e financiamento climático,
climática, sem torná-lo um escudo contra transversalizando o conceito de justiça
a adoção de posturas responsáveis no climática.
enfrentamento da crise.
Adaptação significa, mais que mera
Para além do cumprimento de resiliência, garantir a subsistência e
compromissos assumidos em espaços a sobrevivência em espaços onde as
internacionais, surge a oportunidade de mudanças climáticas ameaçam o bem-

39
Clima e estratégia internacional

estar e a integridade física da população, ou seja, quando já não é possível adaptar-


ou seja, sobretudo no Sul e nos territórios se às mudanças climáticas após o impacto,
mais vulneráveis. Embora a agenda esteja pois os danos já ocorreram. Por isso,
ganhando fôlego, faltam objetivos claros, é uma agenda que trata de processos
sendo portanto essencial a construção de sociais como diásporas, migrações
metas quantificáveis em adaptação. Apesar forçadas, e por isso são temas centrais os
de o tema constar no artigo 7 do Acordo de conceitos de responsabilidade (de quem
Paris, ele é mais qualitativo, e não garante emite, principalmente historicamente),
instrumentos para a construção de metas compensação, reparação e redistribuição,
quantificáveis. A Meta Global de Adaptação ou seja, questões que são estruturante
ainda não foi concluída e consolidada em para os países do sul. A guerra na Ucrânia
acordos. Essa construção será de interesse aumentou em 35% a diferença entre os
não apenas para o Brasil, mas para a compromissos assumidos pelos países
América Latina e Caribe como um todo. Por ricos para com o financiamento climático e
exemplo, na América Central, as mudanças os recursos realmente aportados; em 2022,
climáticas vêm reduzindo a produtividade as estimativas da lacuna variam entre 102
do solo, contribuindo para o deslocamento e 135 trilhões de dólares.
forçado de milhões de pessoas dentro da
região. No Caribe, alguns países insulares Dado que o financiamento é essencial para
que dependem fortemente da agricultura o tema prioritário da COP27 — fortalecer os
familiar sofrem danos catastróficos meios de implementação e apoio — e que
provocados pelos furacões cada vez mais ressurgirá na agenda da COP28, prevista
destrutivos. Portanto, no espírito de para ser sediada pelos Emirados Árabes
solidariedade que deverá guiar a retomada Unidos em 2023, o Brasil deve reivindicar
da diplomacia, o apoio brasileiro ao pleito o avanço em mecanismos como o L&D
de países vulneráveis e de baixa renda por Finance Facility (LDFF), proposto pelo G77
maior clareza e apoio na implementação de junto à China, que busca garantir apoio
adaptações climáticas (por exemplo, novas técnico e mecanismos de financiamento
técnicas de agricultura) contribuirá para a para a agenda de perdas e danos. Mais
integração política dentro da região. amplamente, o Brasil poderá contribuir
para que o tema conste não apenas na
Um problema relacionado é que, apesar de agenda climática, e sim no cerne das
compromissos assumidos anteriormente discussões sobre reforma da governança
pelos países ricos, o financiamento global, levantando a bandeira com força
climático permanece escasso, não apenas durante a sua presidência do G20, em 2024.
para adaptação, mas também para que os
países e populações mais vulneráveis lidem A diplomacia brasileira, cuja tradição
com as perdas e danos que resultam das universalista (uma vez resgatada) permite
mudanças climáticas. Perdas e danos se mobilizar novas coalizões de países
referem a um passo adiante da adaptação, emergentes em torno de temas específicos,

40
Clima e estratégia internacional

deve buscar novas alianças em temas com outros países latinoamericanos e


específicos seguindo a fórmula “BASIC+” caribenhos e, mais amplamente, do Sul,
(Brasil, África do Sul, Índia e China, com o o Brasil pode mobilizar apoio aos dois
acréscimo de um ou mais países). O BASIC, acordos. Mais especificamente, sendo o
por si só, não representa novidade; a coalizão país com maior biodiversidade do mundo,
atua de forma intermitente nas negociações no âmbito da Convenção da Diversidade
climáticas desde 2008, inicialmente sob Biológica (sigla em inglês, CBD) o Brasil
o princípio de Responsabilidades Comuns deve defender um Marco Global da
Porém Diferenciadas, ou CBDR. Uma Biodiversidade pós-2020 forte e alinhado
coalizão enxuta entre esses grandes países com o Acordo de Paris e que seja capaz
em desenvolvimento nos espaços decisórios de pavimentar, até 2050, mudanças na
(durante as reuniões preparatórias e nas sociedade que a tornem “em harmonia
COPs em si), com uma composição ampliada com a natureza”, além de reconhecer e
de acordo com a conjuntura, pode servir de fortalecer os direitos dos povos indígenas
ponta de lança para mobilizar uma massa e comunidades locais, incluídos os direitos
crítica de países do Sul em prol, por exemplo, territoriais, à água e à consulta prévia, livre
do financiamento climático para prevenção, e informada.
preparação e respostas a desastres.
Ao mesmo tempo, o Brasil, que já sofre
Tendo o conceito de “justiça climática” processos de desertificação nas regiões
no centro da estratégia internacional Nordeste (notadamente, na Caatinga) e
do Brasil, o Brasil terá condições de Sul, deve defender junto à Convenção
influenciar, a partir de uma perspectiva do das Nações Unidas para o Combate à
Sul, uma agenda que tradicionalmente é Desertificação (sigla em inglês, UNCCD)
pautada a partir do Norte. Assim, o Brasil a criação de mecanismos que visem
poderá defender de forma mais veemente o aumento do rendimento das áreas
que a agenda de clima vá além de mitigação plantadas sem esgotar os solos ou destruir
(ou mesmo de adaptação), sublinhando as florestas. Deve, ainda, defender
que só faz sentido pensar o clima se formas de mitigar o avanço das terras
pensando simultânea e transversalmente o áridas e pressionar pela ampliação do
desenvolvimento e a inclusão social. financiamento climático para tal fim. Como
país que sofre as consequências das secas,
Essa lógica não deve ser restrita às em especial no chamado Polígono da Seca
conferências do clima. Em comparação (área que compreende partes do Nordeste
com as COPs climáticas, os espaços de e Sudeste), o Brasil deve mobilizar os laços
negociação das convenções globais Sul-Sul, por meio do Grupo de 77, de forma
sobre biodiversidade e desertificação — a apoiar esforços, atualmente liderados
ambas, agendas caras ao Sul — recebem por países africanos, por instrumentos de
comparativamente pouca atenção e prevenção, gestão e resposta às secas.
recursos. Valendo-se da coordenação

41
Clima e estratégia internacional

Em consonância com o princípio de justiça


climática e no espírito da democracia em
todos esses espaços decisórios globais, a
atuação do Brasil nas negociações globais
do clima deve estar sempre pautada no
diálogo com a sociedade civil, por meio de
canais regulares de participação efetiva,
inclusive das populações mais vulneráveis às
mudanças climáticas, tais como indígenas,
quilombolas e comunidades de baixa
renda e de população predominantemente
negra nas áreas urbanas do Brasil. Para
isso, o Brasil deve voltar a facilitar a
presença e atuação de universidades, think
tanks, organizações não governamentais e
lideranças comunitárias em todas as COPs
e demais espaços decisórios em clima e
meio ambiente.

42
9
A cooperação internacional
e Sul-Sul
Clima e estratégia internacional

A cooperação internacional e Sul-Sul

Em que pese a heterogeneidade Portanto, dada a demanda crescente


geográfica, política, socioeconômica por soluções e inovações sustentáveis, o
e cultural dos países do Sul, é possível Brasil deve buscar novos caminhos para
traçar um denominador comum com a cooperação Sul-Sul não apenas com
base na experiência compartilhada de países latinoamericanos e caribenhos,
superação do colonialismo e na busca pelo mas também com parceiros africanos e
desenvolvimento solidário. Isso já foi feito asiáticos, com ênfase nos temas prioritários
no passado, quando da Comissão do Sul para a agenda de transição justa e soberana
(1987-1990), liderada por Julius Nyerere no Sul e, seguindo os princípios que regem
no âmbito das Nações Unidas para oferecer a Cooperação Sul-Sul, atendendo às
um diagnóstico colaborativo dos desafios demandas identificadas pelos parceiros.
então enfrentados pelos países em
desenvolvimento, assim como encontrar
meios de fortalecer a Cooperação Sul-Sul e
de promover o desenvolvimento e a soberania
das nações. Hoje em dia, somam-se a essas
afinidades as experiências vivenciadas
durante a pandemia de Covid-19, incluída
a resposta global altamente injusta; o alto
grau de endividamento de muitos países;
e os constrangimentos impostos aos
mesmos pelo acirramento de rivalidades
geopolíticas entre grandes potências.
A agenda climática oferece novas
possibilidades para uma visão comum
entre países e sociedades do Sul, e o Brasil
pode desempenhar um papel chave nesse
esforço, mobilizando outros países em
desenvolvimento com forte atuação na área
climática, tais como Costa Rica, Barbados,
Quênia e Bangladesh, para que a Segunda
Comissão do Sul seja lançada.

Além disso, para o Brasil, a Cooperação


Sul-Sul e Triangular, preterida durante o
governo Bolsonaro a favor do alinhamento
cego a Washington, oferece uma ampla
gama de potenciais benefícios econômicos,
culturais e políticos para a sociedade
brasileira — nem todos eles quantificáveis.

44
10
O clima como a base para a
integração na América Latina
e Caribe
Clima e estratégia internacional

O clima como a base para a integração na


América Latina e Caribe
No plano internacional, o Brasil deve inclusivo, solidário e sustentável,
buscar não apenas colher os benefícios inclusive reestruturando os organogramas
da cooperação e da diplomacia climáticas institucionais para que deem conta da
para o bem estar da população brasileira, conjuntura política que vivemos.
mas também agir em solidariedade com
outros países em desenvolvimento e, A estratégia regional deve estar ancorada
mais amplamente, assumir um papel mais no tripé Mercosul-Unasul-OTCA, com uma
propositivo na agenda global. Com o novo divisão de agendas entre os arranjos. Em
ciclo político que se inicia no país, o Brasil primeiro lugar, será necessário pôr fim
tem condições e capacidade de ser líder em à agenda de flexibilização do Mercosul,
uma agenda climática construída a partir viabilizar a inclusão da Bolívia no bloco
do Sul, que busque aliar a ação climática e fortalecer a agenda socioambiental do
e os imperativos do desenvolvimento órgão, cujo papel histórico na construção
dentro de uma visão de transição justa e da paz e do desenvolvimento na região —
inclusiva compatível com as demandas, contribuindo, inclusive, para a superação
realidades e expectativas dos países em de uma forte rivalidade geopolítica
desenvolvimento. entre Brasil e Argentina — não deve ser
subestimada. O Mercosul deverá ter um
Na política internacional do Brasil para o papel fundamental também em outras
clima, a América Latina e Caribe deve ser duas agendas: adaptação e construção de
a região prioritária. É com os países do governança regional para o lítio. Em termos
entorno regional que o Brasil compartilha de adaptação, o Mercosul deverá seguir
os impactos das mudanças climáticas e os caminhos da governança climática
da destruição ambiental, pelos rios, as internacional, criando mecanismos como
tempestades, as chuvas, as estiagens metas agregadas, diálogos técnicos
e outros fenômenos que atravessam as e mecanismos de financiamento. O
fronteiras internacionais — mas também é organismo deverá cumprir o papel de
com esses países que o Brasil consolidou sua propulsor de um sistema regional de
tradição de resolução pacífica dos conflitos adaptação. Além disso, o organismo deve
por meio do diálogo e da cooperação para cumprir um papel fundamental para que a
o desenvolvimento conjunto. No entanto, região avance na governança sobre o lítio.
atualmente os organismos de integração O lítio tem uma importância geopolítica
regional, sobretudo a Unasul e o Mercosul, crescente, com papel fundamental para
não têm estrutura institucional atualizada tecnologias de digitalização e para a
para avançar na agenda climática. Por transição energética, e passa a ser objeto
isso, ao revitalizar e atualizar os espaços de disputa entre as grandes potências.
regionais esvaziados durante o governo Ao mesmo tempo, as maiores reservas do
Bolsonaro, o Brasil deve buscar novos mineral estão distribuídas entre Bolívia,
caminhos para a integração regional, Chile, Argentina e Brasil. Apesar de
privilegiando o clima e o desenvolvimento alguns avanços em termos de concertação

46
Clima e estratégia internacional

sobre o assunto, ainda não há medidas Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC),


mais institucionalizadas para padrões que já conta com o apoio da Comissão
sócio-ambientalmente responsáveis pela Econômica para América Latina e Caribe
extração, produção e comercialização. (CEPAL) para desenvolver sua agenda de
Frente a este cenário, é fundamental que o sustentabilidade e ação climática.
Mercosul garanta a estrutura institucional
para este tipo de coordenação, garantindo Um vetor importante de ciência e
a presença do Chile como convidado à conhecimento essenciais sobre clima e que
discussão. pode alavancar novos laços de cooperação
em pesquisa e defesa — sempre em prol do
Ao mesmo tempo, a revitalização da Unasul, bem-estar da sociedade — é a Antártica. O
organismo ao qual o Brasil deve reintegrar- Programa Antártico Brasileiro, PROANTAR,
se imediatamente, deve incluir a criação de tem como principal objetivo a produção de
um Conselho de Clima e Desenvolvimento, conhecimento científico sobre a Antártica
dando destaque a dois temas com e suas relações com o sistema terrestre,
interseção com a área ambiental: a saúde envolvendo a criosfera, os oceanos, a
pública e combate ao crime organizado atmosfera e a biosfera — todos elementos
transnacional. Este deve ser fundado e essenciais no monitoramento das
aprovado em reunião ordinária dos Chefes mudanças climáticas. Posto que alterações
de Estado e deve virar prioridade na nas plataformas de gelo e o registro de
governança política do organismo. Além temperaturas extremas na Antártica podem
disto, a instância deve estar intimamente trazer impactos climáticos em nível global,
conectada com os Conselhos de Energia o Brasil deve, dentro do arcabouço do
e com o Conselho Sul-Americano de Tratado da Antártica, ampliar a cooperação
Infraestrutura e Planejamento (Cosiplan) para o monitoramento desses fenômenos e
para que as políticas de energia e seus impactos no Atlântico Sul.
infraestrutura levem em conta aspectos
climáticos e de escala, descentralização e Para além dos arranjos regionais já
impacto sócio-ambiental. E, finalmente, a consolidados, é necessário promover
OTCA, como já mencionado anteriormente, a consolidação de novos espaços
possui vocação como plataforma de promissores, notadamente dando impulso
cooperação em torno da Amazônia, e sua à ratificação urgente do Acordo Regional
relevância pode ser ampliada por meio da sobre Acesso à Informação, Participação
inclusão de outros Estados da região como Pública e Acesso à Justiça em Assuntos
países observadores. Ambientais na América Latina e no Caribe
(Acordo de Escazú), através do qual será
Será, ademais, possível acomodar possível promover transparência, inclusão
esforços de coordenação e cooperação e a justiça climática no Brasil e na região.
com o México, América Central e Caribe O acordo é politicamente inovador, já que
no âmbito da Comunidade de Estados se propõe a juntar as agendas de meio

47
Clima e estratégia internacional

ambiente e direitos humanos com o objetivo a construção da vida digna. Com estes
de construir uma democracia ambiental países, o Brasil pode avançar em políticas
regional, contando com o Mecanismo não apenas de cooperação bilateral, com
Público Regional e com a Conferência das ênfase nas agendas de transição energética
Partes, mecanismos fundamentais para e de extrativismo sócio-ambientalmente
garantir a participação da sociedade civil responsável, mas também podem na
na agenda e atualizar a agenda climática. revitalização dos organismos regionais
Por isso, além de sua ratificação urgente de integração. Nas ruas, nas urnas e nos
pelo Congresso Nacional, é fundamental gabinetes, o clima é de mudança.
que o acordo seja utilizado pela política
externa brasileira como um instrumento No entanto, a América do Sul ainda sofre
para ampliar a cooperação e coordenação com a falta de financiamento para a
regional no avanço da agenda climática e implementação de políticas públicas. Se,
dos direitos humanos na América Latina. durante a onda rosa, o projeto de integração
Por exemplo, Escazú deve ser mobilizado física e infraestrutural foi capitaneado pelo
para fomentar a cooperação regional para Brasil e financiado predominantemente
prevenção, monitoramento e resposta a pelo Banco Nacional de Desenvolvimento
fluxos migratórios associados às mudanças Econômico e Social (BNDES), hoje o cenário
climáticas, com foco na produção de dados é outro. A ausência de bancos regionais
transparentes e atualizados e na proteção, com condição de financiar os projetos,
acesso à justiça e garantia de direitos seja por escassez de recurso ou falta de
e de pessoas deslocadas. O espaço de planejamento climático — e o desmonte
Escazú também pode ser alavancado para da construção do Banco do Sul, um dos
lançar uma iniciativa regional de educação grandes projetos propostos pelos setores
ambiental e climática, com o objetivo de progressistas durante a chamada onda rosa
combater o negacionismo e conscientizar a — ampliaram a lacuna entre demandas e
população da América Latina e Caribe aos recursos para lidar com a crise climática na
impactos da crise ecológica e a importância região. Será necessário, portanto, recorrer
da busca por soluções colaborativas. à cooperação com atores de fora da região,
tanto no plano bilateral quanto em termos
A região vive um novo momento político. de agências de desenvolvimento.
Além de novos governos progressistas
no poder, surgem também conteúdos Em todos esses espaços de cooperação,
programáticos inovadores, inclusive na um fator cada vez mais palpável na
área climática. As eleições de Gabriel Boric, configuração geopolítica da região é a
no Chile, e de Gustavo Petro, na Colômbia, crescente rivalidade entre a China e os
foram precedidas (e orientadas) por Estados Unidos. Na agenda climática,
amplas manifestações que reivindicavam, é especialmente importante que a
entre diversas outras coisas, uma relação região esteja politicamente coordenada
menos predatória para a natureza para para negociar com ambos atores,

48
Clima e estratégia internacional

respectivamente, de forma a garantir


que os laços de cooperação, incluídos
os investimentos diretos em solo latino-
americano, tragam benefícios amplos
para as populações locais. Por exemplo,
projetos de infraestrutura de transporte
que atravessem fronteiras internacionais,
como ferrovias e pontes rodovias, devem
ser negociados em coordenação com
todos os demais países latinoamericanos
afetados, com a participação ativa dos
governos subnacionais relevantes.

49
11
A cooperação com
parceiros africanos e
asiáticos
Clima e estratégia internacional

A cooperação com parceiros africanos e


asiáticos
O continente africano continua sendo político mais profundo, com o alinhamento
fortemente afetado pela pandemia de dos interesses políticos e comerciais do
Covid-19, com contração do PIB regional Brasil e dos países africanos. Além disso, as
entre 3 e 5.4% desde o início da crise relações com a África devem ser inseridas
sanitária. Ao mesmo tempo que se e pensadas conjuntamente a uma política
discute um grande “reset econômico” no externa brasileira para o Sul, com o objetivo
continente, lideranças africanas debatem de construir um mundo multipolar pautado
como avançar na agenda climática. A no multilateralismo.
África, afinal, é o continente que tem menor
responsabilidade pelo aquecimento global, Neste sentido, é fundamental que a
mas que enfrenta suas consequências retomada da política africana do Brasil tenha
mais severas. Países africanos se tornaram as agendas de clima e meio ambiente como
mais vocais nas discussões globais sobre centrais. Para fortalecer os componentes
o clima, inclusive na área de adaptação climáticos dessa cooperação, o Brasil pode
climática, reivindicando maior apoio e ampliar os intercâmbios nos temas de
cooperação. Iniciativas tais como a Grande soberania alimentar, no qual a Embrapa já
Muralha Verde — um projeto de corredor exerce papel fundamental de cooperação
de reflorestamento atravessando o Sahel técnica, e de soberania energética,
de leste a oeste — indicam capacidade sempre incorporando a preocupação com
de inovar e de diversificar as parcerias a geração de renda e empregos dignos à
externas na área do clima. concepção de transição justa e soberana.
Com relação à energia, a política do Brasil
Esse panorama apresenta novos desafios para a África deve ser pensada dentro
e oportunidades para a cooperação Sul- do programa de transição energética,
Sul brasileira. As relações com países ou seja, no caminho para promover uma
africanos são importantes para o Brasil não agenda sustentável e soberana de energia.
apenas pelo legado histórico e pelas trocas Neste sentido, é necessário reformular,
bilaterais, mas também pelo papel que os por exemplo, a política de exportação de
parceiros africanos desempenham nos biocombustíveis do Brasil para a África, já
espaços multilaterais, onde com frequência que sua implementação trouxe problemas
atuam em bloco. consideráveis. A ênfase principal deve ser
a cooperação no setor de eletrificação
A África deve voltar a ocupar um lugar do continente. Afinal, este é um gargalo
central para a política externa brasileira. estrutural e uma demanda social de
Não apenas o Brasil deve reconstruir parte dos países da África. Outro eixo
seus laços de relações profundas com o de cooperação é a saúde pública, onde
continente, com ênfase na reconstrução a atuação internacional da Fiocruz pode
da cooperação sul-sul e da retomada das ampliar o diálogo e intercâmbio acerca
relações comerciais e econômicas, mas da relação entre mudanças climáticas e
também deve inseri-las em um processo pandemias.

51
Clima e estratégia internacional

Mobilizar o Novo Banco dos BRICS (NDB) multiétnicas, que também são lideranças
e garantir que a instituição seguirá regionais em seus respectivos continentes,
elevados padrões socioambientais em poderia ser reformulada como um “IBAS do
seus investimentos será essencial para o clima”, centrado na cooperação climática e
financiamento de tais iniciativas. Além ambiental em temas como biodiversidade,
disso, o Brasil deve explorar laços de energias renováveis e gestão de recursos
cooperação em infraestrutura sustentável, hídricos, mas tendo como elemento central
políticas industriais verdes e digitalização a proteção dos oceanos, posto que a coalizão
inclusiva, complementando esforços já inclui um forte componente marítimo
nos quais o Brasil já possui tradição (até hoje, tocado pelas três Marinhas) e
na sua cooperação Sul-Sul, tais como considerando que os três países possuem
saúde, educação, ciência e programas de regiões costeiras gigantescas.
transferência de renda.
Nossas parcerias estratégicas, como a
A ampliação dos acordos comerciais, África do Sul e os PALOPs, devem ser
seja no plano bilateral (como os acordos revitalizadas estrategicamente. Os termos
de complementação econômica) seja de cooperação em transição energética
via acordos por blocos e organizações justa da África do Sul com Estados
regionais, devem necessariamente Unidos, Reino Unido, Alemanha e União
contar com cláusulas ambientais. Já que Europeia podem servir de inspiração para
as relações entre o Brasil e África são o caminho brasileiro. Deve haver, também,
pautadas em agendas centrais para clima prioridade na construção de novas agendas
e meio ambiente, é fundamental garantir com os países do Golfo da Guiné, espaço
cláusulas ambientais que tracem metas estratégico para cooperação securitária
atualizadas ligadas à descarbonização e com o Brasil em função da expansão da
à adaptação. Neste sentido, os acordos de pirataria na região e região chave para a
cooperação e facilitação de investimentos cooperação política.
(ACFI), desde que formulados de forma
responsável, podem ser instrumentos No Oriente Médio, tanto o Egito quanto
importantes. os Emirados Árabes — que sediarão,
respectivamente, a COP27 e a COP28,
No plano político, a África do Sul, sinalizam sua intenção em reforçar seus
especificamente, tem sido e deverá laços de cooperação na área climática.
continuar sendo parceira essencial do Com o primeiro — maior destino para
Brasil para avançar pautas caras ao Sul exportações comerciais do Brasil na região
nos debates globais sobre clima, muitas — será possível diversificar para além das
vezes em triangulação com a Índia (ou, trocas comerciais e explorar a cooperação
dependendo do tema, por meio da geometria em áreas de interesse comum no âmbito do
mais ampla do BASIC). A colaboração clima, tais como o combate à desertificação
entre essas três grandes democracias e a soberania alimentar. Com os Emirados

52
Clima e estratégia internacional

Árabes, que se comprometeram à menos exposta a tais rivalidades e oferece


descarbonização até meados do século, o uma gama ampla de oportunidades de
Brasil deve promover a cooperação em torno cooperação que o Brasil deve explorar.
das energias renováveis e do hidrogênio, Ao mesmo tempo, a atuação da China em
que constam entre as prioridades do plano países terceiros merece mais atenção.
de transição energética do país parceiro. Com a interrupção da logística global e a
reestruturação significativa das cadeias
A Ásia engloba o principal parceiro globais de valor no contexto da pandemia,
comercial do Brasil: a China. Em que pese além do agravamento das tensões
o Brasil possuir parceria estratégica com geopolíticas, o governo chinês redobrou sua
o gigante do leste asiático desde 1993, preocupação em diversificar suas fontes
falta pensamento planejado e de longo internacionais de energia e de alimentos.
prazo. Hoje, a importância global da China Na África, em especial, o governo chinês
vai muito além da cooperação econômica. incentiva grandes investimentos em
É, também, um ator de peso nos debates projetos de infraestrutura, tais como
sobre o meio ambiente e o clima. Além de portos, ferrovias e estradas, que induzem
estabelecer metas de descarbonização transformações estruturais em várias
e transição de médio prazo no plano regiões do continente. Associadas à
doméstico, a China promove um discurso estratégia chinesa de diversificação da
de desenvolvimento sustentável, inclusive importação de commodities, que foi
no âmbito da sua política externa, por aprofundada no contexto da pandemia
exemplo, ressaltando o objetivo de tornar de Covid-19 e que expande a compra de
os projetos de comércio, logística e terras e o cultivo de grãos (incluída a soja)
infraestrutura que compõem o Cinturão e em países africanos, esses investimentos
Rota mais verde. Embora atualmente seja podem criar novas concorrências para a
o maior emissor de gases de efeito estufa, cooperação e as exportações brasileiras,
historicamente, é responsável por apenas inclusive a pauta agrícola. Portanto,
12% do total global, e as expectativas uma forma de assegurar um alto grau
são de que a China consiga alcançar suas de competitividade das exportações
metas de descarbonização após um pico brasileiras passa por aumentar a
nas emissões, previsto para 2025. sustentabilidade da sua agricultura, criar
sistemas de certificação confiáveis e com
No plano internacional, a China vem ampla aceitação e inovar em mecanismos
lançando novas iniciativas de cooperação de devida diligência eficazes e compatíveis
ambiental e climática. Com países com o sistema multilateral de comércio
industrializados, como no caso dos Estados e regras da Organização Mundial do
Unidos, essa cooperação é posta em Comércio (OMC), sem que o arcabouço seja
xeque pelas rivalidades geopolíticas. Em utilizado para fins de protecionismo por
contraste, a cooperação climática com países ricos.
outros países em desenvolvimento fica

53
Clima e estratégia internacional

Para além das trocas comerciais, é


necessário que o Brasil identifique as
prioridades para investimentos verdes
no Brasil e no seu entorno, atendendo
não apenas à preocupação chinesa com
o escoamento da produção agrícola,
mas também aproveitando esses fluxos
para avançar, de forma sustentável, a
infraestrutura e integração nacionais na
América do Sul. Afinal, dado o perfil de
exportação do Brasil para a China, com
grande ênfase em commodities como soja,
o minério de ferro e a carne, a relação
com o gigante asiático é fundamental
para a consolidação de uma agenda
ambientalmente responsável para o Brasil.
Uma declaração bilateral de compromissos,
nos moldes do que foi pactuado entre a
China e os Estados Unidos em Glasgow
(a “Declaração Conjunta EUA-China de
Glasgow sobre Melhoria da Ação Climática
na década de 2020”), ou mesmo um acordo
bilateral para fortalecer o rastreamento de
produtos exportados, devem fazer parte
dos objetivos do Brasil dentro da parceria
estratégica. Mais amplamente, caberá
avaliar mais sistematicamente, e em
diálogo com outros setores, a possibilidade
de entrada do Brasil no Cinturão e Rota;

O Brasil também deve buscar cooperação em


clima e meio ambiente com outros parceiros
de importância histórica e geopolítica,
como o Japão, a Coreia do Sul e Cingapura,
com ênfase na agenda de transição e catch-
up tecnológico na direção da digitalização,
além de buscar mais coordenação com a
Índia nas negociações climáticas e com
a Indonésia n a cooperação em torno das
florestas, como no caso do arranjo BIC.

54
12
A cooperação em clima com
os países industrializados
Clima e estratégia internacional

A cooperação em clima com


os países industrializados
Para além da cooperação Sul-Sul, será defensores ambientais, povos indígenas,
necessário revigorar as relações com os quilombolas e demais comunidades
países e regiões industrializadas, desde afetadas pela produção de produtos
que pautadas no respeito mútuo e na comercializados com a União Europeia.
reciprocidade. Os Estados Unidos são
parceiros importantes do Brasil. Será necessário, ademais, atentar para
que, no contexto da transição energética já
A União Europeia (EU) encontra-se em curso na União Europeia, a região não
em momento de profunda crise mas acabe externalizando impactos negativos,
representa pilar importante na construção tais como a exportação de carbono, para o
de uma nova ordem multipolar. Além Brasil — por exemplo, através do envio de
disso, a guerra da Rússia contra a Ucrânia automóveis que já não cumpram com as
e a atual crise de fornecimento de energia novas exigências de cortes de emissão de
estão dando à UE um novo impulso gases de efeito estufa.
geopolítico para diversificar seus fluxos
comerciais longe da Rússia e da China. Embora o Brasil já siga muitas das normas
As relações entre o Brasil e a UE devem promovidas pela OCDE, o diálogo sobre
estar pautadas, antes que mais nada, no padrões e normas de devida diligência
diálogo político — que foi inviabilizado poderá continuar a render trocas e
pelo governo Bolsonaro. Em consonância aprendizados de interesse para o Brasil.
com o histórico das relações Brasil-UE, o Cabe uma avaliação minuciosa dos riscos
Acordo Mercosul-UE deve ser amplamente e oportunidades de pleno ingresso na
revisto para reforçar seu aspecto de organização nos planos econômico e
cooperação política, ressaltando também político, assim como uma consulta ampla
que o acordo não deve ter como resultado a com a sociedade civil, o setor privado e
desindustrialização, tanto no Brasil quanto demais partes interessadas.
nos demais países do Mercosul. Também
será importante abordar proativamente Em relação aos Estados Unidos, será
os aspectos de sustentabilidade e de possível, aproveitar as novas possibilidades
defesa dos direitos humanos do acordo, de cooperação, investimento e
à luz das medidas urgentes a serem financiamento criadas pela nova Lei de
tomadas pelo novo governo para combater Redução da Inflação dos Estados Unidos
o desmatamento e levando em conta para abrir novas frentes de cooperação
uma nova visão de desenvolvimento nas áreas contempladas, tais como a
sustentável para a Amazônia. Mais descarbonização, o uso eficiente da
especificamente, o capítulo sobre energia e a redução do desmatamento
Comércio e Desenvolvimento Sustentável e das queimadas, sempre com atenção
deve ser fortalecido de forma a incorporar diferenciada para a construção de novas
compromissos mais robustos com a capacidades em tecnologias verdes,
redução do desmatamento e a proteção de inclusive relacionadas à exploração do

56
Clima e estratégia internacional

hidrogênio, à eletrificação do transporte Da mesma forma, o Brasil deve


público, à agricultura de baixo carbono; e à fortalecer a cooperação internacional
digitalização verde. com países compradores na
promoção de cadeias de commodities
Além disso, é possível inovar na cooperação
com países industrializados (e não apenas) — ou melhor, “cadeias de
contra o desmatamento e as queimadas, responsabilidade”. A expressão
por meio da criação de um registro e de refere-se aos conjuntos interligados
mecanismos de rastreabilidade (inclusive, de relações socioambientais que
fazendo uso de novas tecnologias, tais como ligam os produtores de commodities
a inteligência artificial e o blockchain) para aos consumidores, desde a fonte de
certificar os produtos e serviços brasileiros
financiamento e produção primária
que não contribuem para o desmatamento,
que não estão associados a violações de
até a extração e fabricação (quando
direitos humanos e que emitem menos aplicável), exportação e importação,
gases de efeito estufa. Desenvolver um até o consumo final.
sistema de certificação transparente e
confiável, que seja aceito por uma gama
ampla de países, permitiria que o Brasil
retomasse o seu papel propositivo não
apenas no plano ambiental, mas também
no comércio internacional.

57
13
O Sul, o clima e a
governança global
Clima e estratégia internacional

O Sul, o clima e a governança global

As reivindicações históricas do uma oportunidade para pautar as agendas


Brasil e, mais amplamente, do Sul de diversos espaços multilaterais,
em relação à governança global não chegando em 2026 com uma estratégia
foram atendidas. Setenta e seis anos internacional renovada e bem consolidada.
após a fundação da ONU, por exemplo,
sua arquitetura continua refletindo a Será essencial que o Brasil
distribuição de poder do pós-Guerra. E defina temas prioritários para
a obsolência leva, inevitavelmente, a
cada espaço, de forma a avançar,
lacunas de eficácia, inclusive nas pautas
historicamente defendidas pelo Brasil
progressivamente, uma agenda
— e, mais amplamente, pelo Sul — que multilateral ampla, coerente e
continuam sofrendo graves retrocessos: propositiva na direção de uma ordem
o combate à pobreza e à desigualdade, global multipolar e na promoção da
o desenvolvimento inclusivo, os termos cooperação lastreada no respeito ao
comerciais mais justos, o desarmamento direito internacional.
e a efetiva reforma da arquitetura de paz
e segurança das Nações Unidas (ONU), Visando a formulação de uma agenda
em especial o Conselho de Segurança. climática global que incorpore
Possivelmente, boa parte dos problemas melhor as demandas dos países em
enfrentados pela humanidade hoje não desenvolvimento, a convocação de uma
se colocariam se essas pautas do Sul Cúpula da OTCA, sediada na Amazônia
tivessem sido atendidas no passado. No Legal, ainda no primeiro ano de governo.
entanto, mesmo com essas lacunas, a A reunião de alto nível impulsionaria uma
governança global permanece necessária estratégia de reforma da governança
para o enfrentamento dos desafios que global que aborde a questão climática a
se tornam cada vez mais transnacionais, partir de uma perspectiva dos países em
inclusive em decorrência das mudanças desenvolvimento. O encontro traria para
climáticas, e o Brasil deve retomar sua a Amazônia brasileira chefes de Estado
defesa de uma governança mais justa, da América Latina e Caribe, assim como
democrática e eficaz. de um número menor de outros países em
desenvolvimento (a exemplo da África do
Como colocar o clima no centro dessa Sul, da Índia, da China e, por causa do BIC,
agenda, sem reforçar os vieses que se da Indonésia e República Democrática
apresentam nas negociações? Entre 2023 do Congo), para mobilizar apoio e
e 2026, o Brasil assumirá a presidência de intercâmbios Sul-Sul e Sul-Norte nas
diversos fóruns internacionais: o G20, o agendas de adaptação, perdas e danos,
IBAS, o BRICS e, possivelmente, irá sediar financiamento climático e proteção às
uma nova COP do clima, que foi negada pelo florestas — e, mais amplamente, para
governo Bolsonaro ainda em seu governo promover a justiça climática. A Cúpula
de transição. Essa sequência representa também poderia servir de trampolim para

59
Clima e estratégia internacional

levantar as bandeiras da transição justa e transição justa no Sul, o Brasil — alinhado


solidária no âmbito do G20, detalhado ao com outros países em desenvolvimento
final desta seção. — deve pressionar, inclusive por meio
do BRICS, por reformas estruturais e
A ocasião poderia servir, ainda, de substantivas nas Instituições de Bretton
plataforma para o lançamento da segunda Woods e propor mecanismos inovadores
rodada da Comissão do Sul, tendo para alavancar novos recursos, tais como
o tema das mudanças climáticas no o blended finance, que combina recursos
centro do processo. A iniciativa serviria de fontes diversas, para viabilizar a
para retomar e atualizar os esforços da adaptação climática e a transição justa
Comissão do Sul, realizada entre 1987 e nos países em desenvolvimento.
1990, cujas conclusões influenciaram a
Eco-92, as convenções que resultaram Em que pese o isolamento parcial da
daquela conferência e as agendas de Rússia, em decorrência da invasão da
desenvolvimento sustentável. A Comissão Ucrânia, o BRICS — cujos cinco membros
teria como principal objetivo a elaboração de representam mais de 3,6 bilhões de
um diagnóstico dos desafios e capacidades pessoas, ou metade da população
relacionados ao clima e suas interseções do planeta — permanece um arranjo
com outras pautas chave, tais como o pertinente não apenas para a cooperação
combate à fome. Com base nessa análise, entre os membros e outros países, mas
a Comissão poderia produzir um Plano de também como instrumento de pressão pela
Ação a ser operacionalizado, no âmbito da reforma da governança global, em especial
ONU, através do Grupo de 77 (G-77). Dessa dada a perda de relevância do G8. Apesar de
forma, o G-77, que atualmente encontra-se repetidas previsões, em especial por atores
profundamente fragmentado e adotando ocidentais, de que as diferenças políticas,
posicionamentos predominantemente econômicas e estratégicas entre os BRICS
defensivos nos debates sobre reforma da ultrapassariam os pontos em comum, os
ONU, passaria a desempenhar um papel BRICS conseguiram consolidar um nível de
mais propositivo, inclusive no desenho de cooperação que superou as expectativas.
novas parcerias Sul-Norte. No entanto, a agenda do BRICS precisa ser
atualizada face à emergência climática, por
Outro aspecto da agenda climática exemplo através das trocas em torno das
que merece mais atenção e pode respectivas estratégias de descarbonização
ser encaminhado também por vias — refletidas, inclusive, nas suas NDCs, e de
multilaterais é o financiamento climático. transição justa. Mesmo havendo diferenças
Em um momento em que os retrocessos na produção e consumo diferenciados
ocasionados pela pandemia de Covid-19, de petróleo, gás e carvão entre os cinco
a guerra na Ucrânia e o endividamento Estados, é possível identificar áreas
excessivo constrangem as possibilidades de interesse comum dentro da agenda
de desenvolvimento sustentável e de climática. O Brasil, especificamente,

60
Clima e estratégia internacional

deve pautar a coalizão nos temas da Conselho de Segurança da ONU, com


soberania alimentar, de combate à fome, mandato para o biênio 2022-2023 -- a 11a
de agricultura de baixo carbono e da vez que o país passa pelo órgão desde a
cooperação humanitária. fundação da organização -- e irá assumir
a presidência novamente em outubro de
No atual cenário geopolítico, marcado 2023. Como país que vive há mais de 150
pela guerra na Ucrânia, o enfraquecimento anos sem conflito armado com qualquer
da ONU e o esvaziamento do G8, o G20 país vizinho, e como o primeiro Estado
torna-se potencialmente um espaço mais a assinar o Tratado sobre a Proibição de
relevante nas pautas globais, desde que Armas Nucleares (TPAN), o Brasil possui
resgate sua função de enfrentamento às fortes credenciais para contribuir para o
crises financeiras globais. Para o Brasil, debate sobre clima e segurança pela ótica
que assumirá a presidência do grupo da prevenção.
em 2024, o G20 representa um espaço
estratégico para os próximos anos, Em coerência com a cautela adotada
principalmente para a agendas soberania no passado pela diplomacia brasileira
alimentar e de uso mais justo da terra, em relação a tentativas de ampliação
levando em consideração os desafios do conceito de segurança utilizado
socioeconômicos provocados pela no Conselho, como no caso da Guerra
inflação, pela interrupção das cadeias de ao Terror, quando novas e exageradas
suprimentos, e da tendência de queda dos justificativas para intervencionismo militar
preços das commodities. Como, também foram adotadas, o Brasil deve ressaltar
em 2024, o Brasil irá sediar a 15a Reunião a importância da adoção de abordagens
Ministerial de Energia Limpa e a Reunião preventivas, em especial por meio do
Ministerial da “Missão Inovação,” deve chamar desenvolvimento socioeconômico, da
atenção e mobilizar respostas às demandas do diplomacia e da ação climática -- esforços
Sul por energia limpa e acessível. que devem capitaneados por outros órgãos
do sistema, tais como o Programa das
Uma área de interseção com o clima que Nações Unidas para o Desenvolvimento
merece cautela é a de paz e segurança. No (PNUD), o UNFCCC, a Secretaria-Geral
âmbito do Conselho de Segurança da ONU, e, no limite, a Comissão de Consolidação
alguns países ocidentais vêm defendendo da Paz. Esses outros foros permitem a
a inclusão sistemática do tema do clima adoção de abordagens preventivas, em
como parte das discussões do órgão. No especial por meio do desenvolvimento
entanto, em dezembro de 2021 o que socioeconômico, da diplomacia e da ação
seria a primeira resolução do Conselho climática. O Conselho de Segurança não
sobre clima e segurança foi engavetada dispõe de respostas adequadas aos desafios
após receber veto da Rússia e da Índia ambientais e climáticos com que se depara
(a China se absteve). Desde janeiro de a comunidade internacional, tais como o
2022, o Brasil ocupa assento rotativo no acirramento da competição por recursos

61
Clima e estratégia internacional

escassos, o agravamento das mudanças


climáticas e as migrações influenciadas
por esses fatores.

Além de apontar os riscos da securitização


do clima, é igualmente importante
sublinhar que recursos não devem ser
realocados pela ONU ou por doadores das
áreas de desenvolvimento e de assistência
humanitária -- onde o financiamento já
se encontra aquém dos compromissos
assumidos pelos países ricos -- para
iniciativas de clima e segurança, em
especial aquelas envolvendo militarização
excessiva. Fora do Conselho de Segurança,
a diplomacia brasileira, com o apoio da
sociedade civil, pode ajudar a equilibrar
essa discussão promovendo debates sobre
abordagens preventivas, em diálogo com
o PNUD e o Departamento de Assuntos
Políticos e de Consolidação da Paz ou, até
mesmo, na Assembleia Geral.

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14
O Brasil possui plena
capacidade para resgatar e
ampliar o seu legado
Clima e estratégia internacional

O Brasil possui plena capacidade para resgatar e


ampliar o seu legado
Experiências passadas demonstram que empresários pelo clima, o Consórcio de
o Brasil possui capacidade não apenas de Governadores do Clima, o Consórcio de
combater o desmatamento e promover Governadores da Amazônia, a Iniciativa
inovações para a descarbonização, mas Clima e Desenvolvimento: Visões para
também de propor e mobilizar apoio para o Brasil 2030, e a rede O Clima é de
novas iniciativas globais. Mudança — identificam demandas, geram
conhecimento e propõem prioridades para
Os brasileiros e brasileiras estão cada as políticas públicas.
vez mais preocupados com as mudanças
climáticas, que afetam, direta ou Além disso, os movimentos que tratam da
indiretamente, milhões no Brasil. Em parte justiça ambiental e climática tornaram-
em reação ao negacionismo e medidas se mais robustos. As lideranças indígenas
anti-ambientais do governo Bolsonaro, a e quilombolas, tais como a Articulação
sociedade civil organizada que trabalha dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e a
na área climática nunca esteve tão bem Coordenação Nacional de Articulação de
coordenada e diversificada desde que os Quilombos (CONAQ), assim como grupos
movimentos ecológicos foram fortalecidos representativos de outras populações
pelo processo de preparação para a Eco tradicionais, trabalham para que o clima
92 e para a Rio+20 -- fato refletido, por esteja no centro da política brasileira,
exemplo, na organização do Brasil Climate inclusive no seu recorte internacional.
Action Hub nas COPs do clima. Merece destaque o engajamento de jovens
por meio de grupos tais como Engajamundo
Além disso, diversos movimentos e Youth Climate Leaders, assim como
historicamente associados à luta dos organizações da periferia, como os que
trabalhadores passaram a construir compõem a Coalizão Clima de Mudança,
agendas climáticas com mais atenção, que unem forças para dar maior visibilidade
tanto no plano doméstico quanto nas ao racismo climático e que ampliam o
discussões internacionais. Exemplos disso acesso de grupos da periferia às discussões
são o Movimento dos Sem Terra (MST), internacionais sobre o clima, inclusive o
que aponta distorções criadas pelo modelo espaço das COPs.
produtivo pautado na monocultura e no
uso excessivo de insumos químicos; e Surge também novo grau de protagonismo
movimentos sindicais, como a Central e novas formas de atuação por parte
Única dos Trabalhadores (CUT), que analisa dos governos subnacionais, seja por
as repercussões da transição energética municípios e estados individualmente ou
para os direitos dos trabalhadores. Outros através parcerias, tais como a rede global
movimentos relevantes — a exemplo da de prefeitos C40, que propõe inovações
Agenda 2045 do Observatório do Clima, climáticas para as cidades, e o Consórcio
o Plano Amazônia 2030, a Concertação de Estados da Amazônia Legal, centrado
pela Amazônia, o movimento dos na promoção da economia verde na região.

64
Clima e estratégia internacional

Tais atores adquiriram mais visibilidade e


capacidade de interlocução em espaços
decisórios no plano internacional, tais
como as COPs do clima, e devem ser
reconhecidos como fontes importantes de
soluções para a emergência climática.

65
15
Governança
Clima e estratégia internacional

Governança

Imediatamente após a tomada de posse, • Transversalização: Tornar a agenda


será preciso pôr em marcha um plano climática transversal requer o
para recuperar as capacidades perdidas estabelecimento de pontos de
na máquina do Estado e reatar os laços interlocução em todos os ministérios,
construtivos com os atores não estatais que assim como a formação de um
são fundamentais para a implementação Grupo Interministerial com reuniões
de uma visão de desenvolvimento regulares e incumbido de uma dupla
inclusiva, solidária e sustentável. Para função: por um lado, assegurar a
além da “reconstrução com melhorias” dos colaboração e o fluxo horizontal de
órgãos de Estado sucateados pelo governo informações entre as repartições
Bolsonaro, será necessário configurar do governo; e por outro, garantir
um arranjo de governança que permita a interface com a coordenação da
a elaboração e implementação de uma agenda.
agenda climática espelhada nas duas
esferas abordadas no presente documento: • Inclusão: A emergência climática
a doméstica e a internacional. afeta a todos, mas não de maneira
uniforme. O desenho de respostas para
Para isso, são necessários quatro a crise demanda amplo diálogo com
elementos: legitimidade, coordenação, diferentes segmentos da sociedade,
transversalização e inclusão. em especial aqueles que são
desproporcionalmente expostos aos
• Legitimidade: Dado o contexto de riscos e que sofrem as consequências
desmonte do Estado promovido diretas, tais como mulheres, indígenas,
pelo governo Bolsonaro, o negros e comunidades de baixa renda.
negacionismo promovido pelo mesmo Posto que, de acordo com as atuais
e o aprofundamento da emergência projeções, as futuras gerações arcarão
climática, a agenda do clima deve ter com um ônus desproporcional das
um mandato robusto de diálogo interno mudanças climáticas, um recorte
e externo. Será preciso conferir à intergeracional é imprescindível.
agenda climática força política a partir
da Presidência e, mais do que isso, a
partir da própria figura do Presidente. Na prática, o tripé força política-
coordenação-transversalização requer
• Coordenação: Uma coordenação bem localizar a agenda do clima no âmbito da
delineada e com equipe especializada Presidência da República, fortalecendo
é necessária para estabelecer uma as trocas com ministérios e outras
divisão de tarefas, viabilizar um plano repartições públicas encarregadas de
de ação e minimizar a duplicação de estruturar e implementar planos de
esforços, tensões e outros problemas desenvolvimento socioeconômico. No
organizacionais. plano doméstico, o espaço de coordenação

67
Clima e estratégia internacional

manteria diálogo com os ministérios, tendo


também amplo mandato para trabalhar
com governos subnacionais, a sociedade
civil, o setor privado e o de finanças.
No âmbito internacional, atuaria em
estreita colaboração com o Ministério das
Relações Exteriores (MRE) (sobretudo nas
negociações globais sobre o clima) e na
intersecção com agendas relevantes de
outros Ministérios.

Localizar a agenda climática na Presidência


permitiria também maximizar o impacto da
diplomacia presidencial na reconstrução e
expansão da cooperação internacional e da
defesa do multilateralismo.

Não menos importante é assegurar o pleno


engajamento da sociedade brasileira —
fonte de demandas e soluções que devem
informar a atuação do Estado — na agenda
climática, tanto no seu recorte doméstico
quanto no seu eixo internacional. Os espaços
de diálogo e participação — conselhos e
outros canais esvaziados pelo governo
Bolsonaro — devem ser restabelecidos e
ampliados. A revitalização desses espaços
e sua interlocução com os ministérios e
com a Presidência também requer aumento
da transparência, inclusive por meio dos
dados abertos e do fortalecimento da Lei
de Acesso à Informação. E por fim, será
preciso capacitar funcionários públicos
em temas do clima e meio ambiente,
além de conscientizá-los da necessidade
de interlocução com atores não-
governamentais, para que a agenda possa
ser enraizada no Estado e na sociedade
brasileira a longo prazo.

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Sobre a CIPÓ

A Plataforma CIPÓ é um instituto de pesquisa independente, sem fins lucrativos


e liderado por mulheres que atua na interseção entre as agendas de clima e
relações internacionais. A CIPÓ apóia governos locais e nacionais, organizações
internacionais e entidades da sociedade civil e da iniciativa privada a desenvolver
respostas eficazes aos desafios emergentes.

Créditos

Projeto Gráfico Frente Coletivo


Diagramação Bruno Valente
Equipe do Projeto Adriana Abdenur
João Cumaru
Maiara Folly
Marília Closs
Mathias Alencastro
Fred Assis
@plataformacipo
PlataformaCipo
@PlataformaCIPO

https://plataformacipo.org

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