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FACULDADE CERS

CURSO CEI

Pós-Graduação em Direito Constitucional

Ana Luíza Aguilar de Rezende

CRIME E A MITIGAÇÃO DA INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO

BELO HORIZONTE

2021
Ana Luíza Aguilar de Rezende 

CRIME E A MITIGAÇÃO DA INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO

Monografia apresentada como


requisito parcial para a obtenção do
título de especialista perante a
Faculdade CERS, em convênio com o
Curso CEI, no Curso de Pós-
Graduação em Direito Constitucional.

Orientador:

BELO HORIZONTE

2021
FOLHA DE APROVAÇÃO

Monografia intitulada “CRIME E A MITIGAÇÃO DA INVIOLABILIDADE DO


DOMICÍLIO” apresentada pela aluna Ana Luíza Aguilar de Rezende, para a
obtenção do título de especialista, perante a Faculdade CERS e o Curso CEI.

Belo Horizonte, __ de ___________ de 2021.

Nota:__________________________________________
Avaliador:_____________________________________
RESUMO

Trata-se de trabalho de conclusão de curso que versa sobre o direito fundamental


a inviolabilidade do domicílio e sua mitigação nos casos de flagrante delito. Para tanto,
parte-se do Habeas Corpus nº 598.051-SP, que definiu alguns parâmetros para a
legalidade da atuação policial e de conceitos inerentes ao caso, tais como liberdade,
crime e flagrante delito.

Palavras-chave: direitos fundamentais, habeas corpus, domicílio, crime, atuação


policial.
LISTA DE ABREVIATURAS

CP- Código Penal

CPP - Código de Processo Penal

STJ - Superior Tribunal de Justiça

STF – Supremo Tribunal Federal

EUA – Estados Unidos da América


SUMÁRIO

I- PRÓLOGO................................................................................................................
II- HABEAS CORPUS.................................................................................................
a. Liberdade e Habeas Corpus na Inglaterra............................................................
b. Habeas Corpus no EUA....................................................................................12
c. Habeas Corpus no Brasil......................................................................................
i. Habeas Corpus no Brasil Império.................................................................
ii. Habeas Corpus ...............................................................................................
iii. Habeas Corpus................................................................................................

III- DIREITOS FUNDAMENTAIS E HUMANOS ................................................12


a. História dos Direitos Fundamentais....................................................................
b. Gerações de Direitos Fundamentais .................................................................15
c. Liberdade............................................................................................................
d. Propriedade.........................................................................................................

IV- INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO...............................................................


a. Exceções à inviolabilidade do domicílio.............................................................
i. Flagrante Delito............................................................................................
ii. Tráfico de Drogas.........................................................................................

V- HABEAS CORPUS Nº...........................................................................................

VI- CONCLUSÃO ........................................................................................................

VII- ANEXO..................................................................................................................

VIII- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................


PRÓLOGO

Trata-se de pesquisa sobre a minoração de direitos fundamentais quando em


confronto com a prática de crime, em especial com fundamento no HABEAS CORPUS
nº 598.051-SP.

Crime é um fato típico, antijurídico e culpável, para os adeptos da teoria


tripartite (maioria da doutrina brasileira). Para os doutrinadores bipartites, crime é tipo
de injusto culpável. De todas as doutrinas que conceituam o crime, uma coisa é certa, é
um fato típico, ilícito e culpável que modifica o transcurso regular da sociedade.

Em complementação, para Wagner Marteleto Filho, “a ação constitui um ato


de comunicação do sujeito que, no plano do Direito Penal, configura uma falha em face
das exigências de cooperação feitas pela comunidade jurídica”. (Marteleto Filho, 2020,
pág. 50)

Para melhor definir o crime, ou para estabelecer uma metodologia para


estudo dele, os pensadores conceituaram tal fenômeno de acordo com o que tinham
como teorias sociais. Dessa forma, as teorias do crime são fortemente influenciadas
pelas vertentes filosóficas de cada época, seja naturalista - influenciada pela ciência-,
seja valorativa – a partir da influência de Kant-, entre outras, o conceito de crime é
objeto de estudo.

Para os causalistas, inspirados nos pensamentos iluministas, na


efervescência da ciência e na criação de métodos, crime é fato mecânico (movimento)
que tem o condão de provocar o resultado (modificação do mundo exterior). Embora
tenham tentado, não eram capazes de explicar os crimes omissivos e os crimes sem
resultado, que fugiam do conceito mecânico de fato que modifica a realidade externa.

Novas teorias sociais surgiram, entre elas os pensamentos de Kant, que


impulsionaram os doutrinadores a perceber a necessidade de inserir no conceito de
crime aspectos de valor. O crime deixaria de ser um movimento corporal para abarcar
elementos valorativos, incrementando a teoria do tipo com aspectos interpretativos do
que seria a conduta ilícita.
Tal doutrina não foi suficiente para explicar o fenômeno criminológico,
tendo os próximos doutrinadores criado a teoria finalista, para a qual o crime precisa ser
definido pela finalidade do autor. Várias condutas, na percepção do observador externo,
poderiam ser definidas de diferentes formas, de modo que o elemento subjetivo, a
finalidade do autor, seria imprescindível para definição da conduta.

A teoria finalista realocou os elementos do crime, trazendo o dolo e a culpa


para a definição de fato, estabelecendo no fato típico aspectos subjetivos e deixando à
culpabilidade características normativas.

Esta última teve tamanha aceitação no mundo jurídico que é aceita pela
grande maioria dos doutrinadores, sendo acolhida pelo Código Penal brasileiro. Não
obstante, a teoria social da ação, os funcionalistas (Roxin e Jakobs, por exemplo), o
garantismo e outras doutrinas que se dedicam a esse estudo avançaram sobremaneira o
conceito de crime e o impacto que ele tem na sociedade.

Aliado à teoria do crime, há os que estudam os efeitos que o crime, o


criminoso e a sociedade causam entre si. Em detida análise sobre quem é o criminoso,
sobre qual crime é mais incidente em determinada localidade ou sobre o porquê de
determinada tipificação, a doutrina avança na identificação do problema da
criminalidade.

A tal matéria deu-se o nome de criminologia, que tem por fim identificar,
estudar, analisar o fenômeno criminógeno a partir do quadro social ou da comunidade,
desapegando-se da estrita legalidade para questionar, também, a escolha das condutas
definidas como crime.

A título de exemplo, há a criminologia positiva, a ideologia da defesa social,


as teorias psicanalíticas da criminalidade, a teoria estrutural-funcionalista, as teorias das
subculturas criminais, a teoria das técnicas de neutralização, o “labeling approach”
(reação social), as teorias do conflito, a criminologia crítica etc. Todas essas questionam
aspectos outros que não a conceituação do crime de forma analítica.

Mas, de todo modo, a definição do fato como criminoso demanda análise


minuciosa e específica, o que, em outros termos, demanda tempo e muito cuidado.
Ingredientes que são ausentes na prática penal brasileira, por uma infinidade de razões.
O que importa afirmar aqui é que esses aspectos, tempo e cuidado que
formam a justificativa de um processo justo, não são os que imperam quando
consideramos a ação de um policial que se vê diante de uma conduta que ele,
supostamente, entenda ser criminosa.

Por vezes, o flagrante delito é muito rápido, no sentido de que não permite
uma maior consideração sobre a conduta, e mesmo assim dá vazão à minoração de
direitos fundamentais, tais como a inviolabilidade do domicílio.
HABEAS CORPUS

Tem-se o Habeas Corpus como instrumento jurídico-processual que se


presta a tutela do direito fundamental à liberdade. Dada sua evidente relevância, destina-
se parte do trabalho ao estudo dessa ação mandamental, que é palco de tantas discussões
nos Tribunais Superiores.

Para tanto, dada sua coincidência com o Estado de Direito e as Declarações


dos Direitos do Homem, deleitemo-nos nos memoráveis feitos de nossos antepassados
em prol do que conhecemos como liberdade (embora saibamos que este é um conceito,
ainda e sempre, em construção).

Em adendo ao conceito de liberdade, fazemos referência a Pontes de


Miranda, assim como o faremos em relação a todos os tópicos sobre habeas corpus a
seguir expostos, que, sobre o caminho da liberdade física, escreve o seguinte:

“A estrada, que o homem percorreu, para que pudesse proclamar


que todos têm liberdade física, avançou sem que muitos homens,
andando fora dela, pudessem beneficiar-se dos novos
expedientes técnicos que se conseguiram. Os homens livres
lutaram para ter o direito ao habeas-corpus, enquanto, marginais,
havia os servos e os escravos. Quando a liberdade se estendeu a
todos, os que não a tinham encontraram a evolução jurídica que
os homens livres haviam obtido”. (pág. 7)

POVOS ANTIGOS

Em Roma haviam os interdicum de liberis exhibendis e o interdictum de


homine libero exhibendo, que eram ações para exibição de homem livre e restituição de
sua faculdade de ir, ficar e vir. Cabiam, inclusive, em hipóteses de ordem de exibição de
filho que era mantido retido pelo pai, ou em exibição de aluno. (Pontes de Miranda, pág.
141)
Não passa desapercebido o fato de tais instrumentos serem destinados ao
socorro de homens livres, tendo em vista que a sociedade em Roma era dividida em
classes, inclusive com escravos.

LIBERDADE FÍSICA NA INGLATERRA E HABEAS CORPUS

Após o falecimento do Rei Ricardo I, o trono inglês foi assumido por João,
a quem se atribui certa decadência da Inglaterra e o título de João-Sem-Terra. Foi um rei
anárquico, que inobservou regras jurídicas; que não se importava com interesses do
reino; que não se preocupou com a evolução das artes e da arquitetura inglesa; que
perdeu províncias, território; que permitiu a tirania do Papado, “censurando e
perseguindo os lutadores da liberdade inglesa”; que suplantou a aristocracia; que
oprimia o povo etc. (Pontes de Miranda, pg. 12)

Esse contexto social levou os condes e os barões ingleses a exigirem do Rei


uma Carta de Liberdades, que ficou conhecida como Magna Carta. Foi o “verdadeiro
fundamento da liberdade nacional inglesa”, “a pedra inicial do novo estado de coisas,
para a Inglaterra, para as nações-filhas e para o Homem”, segundo Pontes de Miranda
(pg. 13).

Sobre o texto, escreveu o célebre autor:

“O pacto ratificou as leis de Eduardo, o confessor, e a


Constituição dos saxões, onde já havia a livre-caução
(frankpledge). Aboliu a jurisdição dos xerifes (sheriffs) reais em
matéria penal. Proibiu a prisão injusta e determinou que as
pessoas livres só fossem julgadas por seus pares. Era,
incontestavelmente, nova era, que se abria, cheia de regras
promissoras e louváveis: sem exclusão dos precedentes, como
todas as idades novas da história britânica. A Inglaterra, já dizia
Edouard Fischel, é o país das leis imortais. Não há um só
momento “em nossa história”, assegura Lord Macaulay, “em
que o corpo principal de nossas instituições já não existisse
desde tempos imemoriais”. Sim, mas na dimensão da liberdade:
ai foi que se marcou, para o Homem, a luta mais decisiva”.
(Pontes de Miranda, 1972, pág. 15)
Os ingleses são conhecidos, no direito, como povo de consolidadas leis,
firmadas durantes séculos de aprimoramento e ratificação, que formam o conjunto de
regras consuetudinárias que impõem direitos, deveres e limitam o poder do soberano.
Segundo Pontes de Miranda, “o povo das ilhas caracterizou-se, desde o século XII, por
seu lento, mas seguro caminhar, conservando, mas avançando sempre. São oito séculos
de evolução política nunca vista e inimitada”. (Pontes de Miranda, 1972, pg. 15)

Consta que a gênese das ideias de petição de direitos, vindas de barões e


condes, tem origem em uma carta de Henrique I, lida pelo arcebispo de Cantuária. Vale
o contexto de que os jovens clérigos, ao fim dos cursos, eram enviados à Bolonha para
estudar direito, ou seja, na Inglaterra, os padres eram, também, advogados. Estudavam o
direito e, após, voltavam com novas ideias.

Em costumeiras leituras, realizadas em São Paulo de Londres, pelo


arcebispo de Cantuária, para barões, condes, nobres etc., tinha por objetivo “suscitar
movimento de opinião e animar os nobres e barões em prol das suas liberdades” (Pontes
de Miranda, pg. 16).

Desses encontros foram criados os 49 artigos, protótipo da Magna Carta.


Entretanto, como as indagações e filosofias nem sempre são suficientes para realização
de mudança social, a reivindicação de direitos teve êxito quando os barões se armaram e
marcharam para Londres, onde foi assinada a Magna Charta Libertatum, em 15 de
junho de 1215 (Pontes de Miranda, pág. 16).

Tais direitos foram confirmados em 1255, quando do reinado de Henrique


III, e, como praticadas medidas arbitrárias durante esse período, os barões sustentaram,
novamente, agora em 1258, luta “vigorosa e inteligente”, formando, ao final, “com 244
membros, a primeira Assembleia que teve oficialmente o nome de Parlamento”, cujas
normas, conhecidas como Provisões de Oxford, só foram confirmadas pelo rei após os
barões prenderem seu filho (Pontes de Miranda, pág. 18).

A Magna Carta foi novamente confirmada, agora a pedido do Parlamento,


pelo Rei Eduardo, em 05 de novembro de 1298. A partir desse momento, restou certo o
teor das Cartas, que não seriam modificadas e foram publicadas com eficácia vinculante
a todos os oficiais e encarregados do direito. Ademais, havia previsão de nulidade dos
atos praticados em discordância aos seus preceitos. Pontes de Miranda se refere a isso
da seguinte forma:

“Adiante se prometia que as duas cartas – a confirmada por


Henrique III e a Carta da Floresta – seriam mantidas em todos
os seus pontos, sem que nada se mudasse nelas, e que seriam
publicadas, para que os juízes, viscondes, meres (...), e outros
oficiais, a que estava confiada a execução das leis do reino,
aplicassem em seus julgamentos as referidas cartas, em todos os
seus pontos, a primeira como direito comum e a segunda no que
concernisse ao domínio florestal” (Pontes de Miranda, pág. 21).
Entretanto, segundo historiadores, a Carta não teve o condão de estabelecer
o homem como titular de direitos. O que fez foi desafiar a monarquia absolutista,
estando seu objetivo e sua importância restritos ao “interesse baronial, contra o
despotismo do rei”. Mas Pontes de Miranda enxerga tal momento como a abertura para
o reconhecimento de direitos, como de fato ocorreu (Pontes de Miranda, pág. 22).

Esse importante núcleo de direitos positivou a garantia à liberdade que, mais


tarde, foi assegurada pelo instrumento processual habeas corpus. Entretanto, nesse
momento, tal direito foi assegurado de outras formas.

Em adendo, especificamente sobre o instituto do habeas corpus, Pontes de


Miranda contextualiza a nomenclatura como escolhida em memória às palavras iniciais
do mandado que o Tribunal concedia, cujo teor da ordem era a seguinte: “Toma
(literalmente: tome, no subjuntivo, habeas, de habeo, habere, ter, exibir, tomar, trazer
etc) o corpo deste detido e vem submeter ao Tribunal o homem e o caso” (Pontes de
Miranda, pág. 22).

Tal mandado tinha como finalidade combater a prisão injusta e suas


consequências. Segundo Pontes de Miranda, tal ordem almejava prevenir a prisão
injusta, bem como evitar que as restrições delongassem no tempo. Já havia preocupação
com a separação de condenados que cumpriam prisão pena dos que estivessem em
prisão provisória. “Por isso mesmo, o paciente havia de comparecer à justiça com as
mãos e os pés livres (...)” (Pontes de Miranda, pág. 22).

Ao se pronunciar sobre o que havia antes do habeas-corpus, Pontes de


Miranda conclui que

“não havia então qualquer remédio jurídico que por suas


virtudes se lhe pudesse atribuir o ser fonte do habeas-corpus.
Esse é posterior à própria Magna Carta, de onde procede,
contudo, em seus princípios de direito público subjetivo. (...)
Entre nós, antes de possuirmos o habeas-corpus, era pelo
interdito de libero homine exhibendo que se alcançava o
desagravo, qualquer que fosse o constrangimento ilegal à
liberdade física” (pág. 23).
Importante salientar que, para os ingleses, a violação da liberdade física é
mais perigosa e prejudicial que a violação de outros bens jurídicos, pois a prisão “é
arma menos pública. Ninguém a percebe. (...) É violência silenciosa, secreta, ignorada,
invisível; portanto, mais grave e perigosa do que qualquer outra” (Pontes de Miranda,
pág. 27).

O autor, na 7ª edição, entende pela necessidade de conceituar liberdade


física, dadas as interpretações que tal termo tem adquirido nas doutrinas. Faz nos
seguintes termos:

“Só nos sofismas desabusados, a trica e o subjetivismo


impenitentes podem ver nas expressões “liberdade pessoal”,
protegida pelo habeas-corpus, outro significado mais amplo que
o de liberdade física. Em manter o seu conceito clássico são
contestes, não somente os juristas ingleses de todos os tempos,
como também os americanos, franceses e alemães. Se um ou
outro tratadista, não indígena à Inglaterra ou à América do
Norte, tenta definir a liberdade pessoal como “a faculdade para o
homem de pôr em execução todas as suas vontades legítimas”,
somente o faz como, por exemplo P. Rossi (Cours de Droit
Constitutionnel, II, 15), por o ter aturdido o liberalismo
extrapolado da época. Tal definição aglomera, sob o mesmo
rótulo liberdades diversas que não merecem ser encambulhadas
sob aquele adjetivo técnico. Muitas nem sequer se poderiam
interpretar e classificar entre os chamados “direitos absolutos”
da pessoa, como é o caso da chamada “liberdade econômica”.
Alguns publicitas, ao examinarem as instituições modernas,
cotejando-as com as antigas, concluem pela extensão do
conceito de liberdade pessoal, quando não foi isso,
absolutamente, o que se deu, e sim a aplicação dos mesmos
institutos a novos direitos, em certo momento, não acastelados
por eles, ou direitos outrora, ou ainda há pouco, tutelados
insuficientemente. Entre nós, por exemplo, não foi a liberdade
pessoal que se dilatou ali pelo segundo e terceiro decênios do
século: foi o habeas-corpus abusivo que se estendeu, sob a
oratória de homens políticos, a novos casos.
Liberdade pessoal, aí, é (e sempre será) a liberdade de
locomoção, the power of locomotion, a liberdade física: ius
manendi, ambulandi, eundi ultro citroque.
(...) A liberdade física perde em que se confunda com outros
direitos. A aplicação do direito, para ser boa, se não perfeita,
exige prévia precisão de conceitos.
É preciso atender-se a que a liberdade física apenas se separa da
liberdade que não depende de locomoção e de permanência do
corpo. Se alguém está em prisão e se impõe a
incomunicabilidade, como que se empurrou para maior
profundidade a retirada do direito de ir, ficar e vir. Tornar
incomunicável é mais, muito mais, do que censurar escrito ou
filme, razão por que, aí, não seria aceitado pedir-se habear
corpus. Não assim no caso de que falamos: a
incomunicabilidade de quem se acaha em prisão, mesmo se
domiciliar. Outras circunstâncias aparecem em que o ir, ficar e
vir sofre o constrangimento ilegal por ter-se o coator utilizado,
digamos assim, da restrição à liberdade física. Na jurisprudência
brasileira, e não só na doutrina, apresentam-se soluções que
levam em consideração o estar a psique embutida no corpo.
(...) A Constituição dos Estados Unidos da América, conquanto
muito extraísse do direito inglês, foi contemporânea da liberdade
abstrata, indefinível e ampla dos pensadores franceses. (...).
Se é liberdade física, define-se em termos verbais invariáveis e
salientes: ir, ficar e vir.
Dir-se-á que a outra, a de Paris, é mais bela, mais sedutora. Não
há dúvida. Porém mais mentirosa. Promete castelos a quem
morre de fome; dá todos os direitos, mas faz depender da
opinião exegética do Procurador da República a locomoção de
alguém. Em vez de ser valor restrito e utilizável, não suscetível
de servir a outros intuitos, serve aos maus contra os bons.
(...) Sempre foi traço de caráter dos povos ingleses essa precisão
a respeito de direitos, coisa em que nõa o imitaram os escritores
franceses. Sirva de exemplo o próprio Parlamento francês. A
concepção dilatou-se, fez-se abstrata, expansiva; em vez de
continuar o centro do poder britânico, com as Declarações de
direitos, mais escritas nas cabeças do que nos livros e nos
discursos.
Onde muito se fala em liberdade, pouco é ela defendida.
Corajosamente, até a morte, a sustentam, os que, em vez de
Liberdade, falam, prática e sabiamente, de liberdade física (de ir,
ficar e vir), de liberdade de pensamento, de liberdade de religião
(criação de Rhode Island, nos EUA), de liberdade de imprensa
etc.”.

Importa consignar que todo esse esclarecimento sobre o conceito de


liberdade, como bem jurídico protegido no Habeas Corpus, tem como motivação nortear
a aplicação do instrumento no Brasil, em 1916. Nessa época, tal conceito foi ampliado
para abarcar o que chamaram de “doutrina brasileira do Habeas Corpus”, de especial
influência de Rui Barbosa. Pontes de Miranda fez nota na pág. 35, na 7ª edição, de seu
livro, sobre esta nova doutrina. Cite-se:

“O leitor deve levar em conta que o nosso esforço, em 1916,


para definir e precisar o que é liberdade de ir, ficar e vir,
protegível por habeas-corpus, tinha de enfrentar a enorme
campanha jornalística-política, com que Rui Barbosa pretendia
fazer do habeas-corpus remédio para todos os abusos do poder,
desvirtuando-o das suas fontes britânicas e comprometendo a
liberdade, pelo excesso demagógico. A nossa missão era, então,
como hoje, a de fixar conceitos e reclamar que se respeite, nem
mais, nem menos, o direito”.
No tocante à influência de Rui Barbosa no direito brasileiro, notadamente
no Habeas Corpus, nos dedicaremos mais adiante.

Ciente do entendimento de Rui Barbosa, após fazer nota de vários autores


norte-americanos que escreveram sobre o habeas corpus e qual a dimensão de liberdade
protegida por ele, Pontes de Miranda afirma que:

“na Inglaterra, nos Estados Unidos da América e no Brasil, o


conceito continua o mesmo. Tampouco se modificou o caráter
do habeas-corpus: ele persiste adstrito à liberdade física, ao
direito de locomoção, que tanto é dizer – faculdade de ir, ficar e
vir, em sua mais perfeita efetividade; de andar ultro et citro; de
se mover à vontade, até onde lho não proíba a lei” (pág. 37).
Faz referência, ainda, ao professor de direito público Pedro Autran, que em
1860, definiu liberdade pessoal como o poder de o homem “mover-se de um para outro
lugar e transportar a sua pessoa para onde lhe aprouver”. O professor explicou mais
detidamente nos seguintes termos:

“Prender alguém é restringir o seu movimento a um certo


espaço; mas para isso não ser violação de um direito, é mister
que possa ter lugar ou como pena, ou como meio de segurar a
pessoa de um indivíduo, contra quem se dão bem fundadas
suspeitas de crime (salvo quando prestar fiança, quando o crime
for de natureza a admiti-la). Obstar o trânsito livre do cidadão
por toda a extensão do território do Estado é também restringir a
sua liberdade de locomoção; e para essa restrição ser justa, faz-
se mister que o indivíduo, que quer sair de um lugar, tenha
contraído obrigações, cujo cumprimento importe a sua estada
neste lugar. Enfim, proibir a emigração, exceto quando o Estado
necessita que o cidadão lhe preste serviço, é violar o direito
natural que todo o homem tem de se transportar para onde lhe
convier” (Pontes de Miranda, pág. 38, em referência a Pedro
Autran – Elementos de Direito Público Universal, pag. 83 e 84).

A partir dos conceitos apresentados, o referido autor firma os seguintes


exemplos de oposições à liberdade: “1º) a prisão injusta; 2º) as dificuldades artificiais ao
trânsito livre do cidadão por todo o território do Estado; 3º) a proibição de emigrar, ou
temporariamente sair do país”.

E, ainda, na conclusão do primeiro capítulo, apresenta os remédios jurídicos


assecuratórios da liberdade física: “aliviavam-se ou terminavam-se essas injúrias por
meio de alguns dos quatro mandados: o writ of mainprize, o writ de ódio et atia, o writ
de homine replegiando e o writ os habeas corpus” (pág. 41). Sobre o habeas corpus,
Pontes de Miranda estabelece as seguintes espécies: “o habeas corpus ad respondendum,
o habeas corpus ad satisfaciendum, o habeas corpus ad prosequendum, o habeas corpus
ad faciendum et recipiendum e o grande writ” (pág. 42). Sobre o último:

“Mas o grande writ, o remédio jurídico, pronto e eficiente em


todos os casos de detenção ilegal, ou demais, constrangimentos
à liberdade, é o habeas corpus ad subiiciendum, endereçado a
qualquer indivíduo, que detenha outro, obrigando o detentor a
apresentar o corpo do preso e comunicar, ao mesmo tempo, o
dia e a causa pela qual foi preso, ad faciendum, subiiciendum et
recipiendum, isto é, para fazer consentir com submissão e
receber tudo que o juiz ou a corte de que emana o writ resolver e
ordenar sobre a espécie.
O seu objeto, portanto, é imperativo: dar liberdade aos que
foram detidos sem justa causa, ou sem razão suficiente.
Tecnicamente falando, é ação; bem que remédio sumário,
expedido pela Casa (Court) do Bando do Rei, não somente
durante os tempos de sessão, como durante as férias, em virtude
de um fiat do chief-justice presidente ou de qualquer dos outros
juízes.
(Frise-se que é erro grave falar-se de habeas-corpus, ou de
mandado de segurança, como se fosse recurso; trata-se de
remédio jurídico processual. Lamentável, por exemplo, o que
escreveu o relator do Acórdão do Supremo Tribunal Federal, a
31 de julho de 1951.)” (Pontes de Miranda, pág. 43).
Em continuação à história inglesa, Pontes de Miranda abre capítulo sobre
Carlos I, que dissolveu “quatro vezes, sucessivamente, o Parlamento, porque lhe
recusava subsídios e lhe fazia justas reclamações”.

Época de grande comoção nacional, sobretudo quando lançado imposto,


sem autorização parlamentar. Conforme aduz Pontes de Miranda, “os homens do povo,
quando se recusavam a contribuir, eram levados à força para o serviço da marinha. Os
nobres eram constrangidos a comparecer perante o Conselho, de onde às vezes os
remetiam para as prisões. Entre os que assim forma tratados, acharam-se, certa vez,
cinco fidalgos, (...). Pediram eles à Corte writ of habeas corpus” (pág. 46). Esses
fidalgos deram curso ao movimento de opinião que, mais tarde, determinou a petição de
direitos (Petition Of Rights) (pág. 46).

Impetrado o Habeas Corpus, foi julgada procedente, determinando que os


cinco fidalgos fossem libertados. Ocorre que o carcereiro se negou a liberá-los sob
justificativa de que estavam presos conforme ordem do rei (pág. 48).

Em decorrência desse fato, o direito à liberdade foi analisado com profundo


esmero pelos juristas, que procuravam solução, até porque tal detenção era proveitosa
ao monarca e seus conselheiros, que se utilizavam dela para impor impostos. Para tanto,
fizeram referência a documentos anteriores que prestigiavam a liberdade, inclusive, e
em especial, a Magna Carta (pág. 48).

Os juristas se insurgiram contra a justificativa de ser “ordem do rei”,


argumentando que, diante de vários precedentes, nenhum ato do rei seria suficiente para
restringir qualquer um de seus súditos. Como argumento contrário, o Procurador-Geral
se baseava no poder absoluto do rei para afirmar que não se tratava de simples detenção,
mas de detenção extraordinária, que emanou da vontade imediata da Majestade (pág.
50).

Ao fim das discussões, os juízes “decidiram em favor da Coroa, e os


impetrantes voltaram à prisão”. Tal decisão significava que o direito à liberdade pessoal
poderia ser restringido por uma fala do Rei, o que, com certeza, revoltou a população.
Conforme aponta Pontes de Miranda, “o povo inglês irritou-se (...)” (pág. 50).

Diante da revolta popular, Carlos I não teve outra escolha a não ser
convocar o Parlamento e soltar os que se achavam presos por recusa ao pagamento do
imposto. Pontes de Miranda apresenta, como lição, que “as violências servem menos
aos governos que aos oprimidos; e felizes daqueles povos, capazes de reagir, a que se
deparam opressores assaz terríveis para os revoltar e os levar a criar a ordem nova.
Durante os vinte e cinco séculos da civilização ocidental, toda a evolução humana
consistiu na violência do espírito contra a força” (pág. 51).

Houve muita intercorrência na história da Inglaterra depois desse período,


inclusive depois da assinatura da Petição de Direitos. Muitos habeas corpus foram
denegados ou, quando deferidos, desobedecidas as ordens de apresentação dos presos. O
carcereiro podia reter o preso, mesmo concedido o habeas corpus, até a expedição de
segunda ou terceira ordem (Pontes de Miranda, pág. 57).

Em 27 de maio de 1679 criou-se o Habeas Corpus Act, na Inglaterra,


chamado de outra Magna Carta. Conforme Pontes de Miranda, a lei de 1679 não deu
origem ao habeas corpus, mas completou a garantia do direito fundamental a liberdade
física, que, como qualquer outro direito, necessita de conceito, segurança e garantia.
Vide:

“As liberdades têm de ser exercidas. Daí o tríplice problema: o


da conceituação científica (enunciado); o da asseguração (e. g.
inclusão na Declaração de Direitos); o das garantias. A
felicidade dos ingleses foi terem conseguido as três, de modo a
completarem cedo a evolução política (1215-1679). E tê-las
exigido antes dos outros povos europeus, - o que lhes permitiu
desenvolverem-se mais, e mais rapidamente. A garantia do
habeas-corpus confirma o senso prático dos Ingleses e ainda
hoje é o melhor remédio da liberdade e o único suficiente”.
(Pontes de Miranda, pág. 60, em referência a si mesmo no livro
Democracia, Liberdade, Igualdade)
Embora seja uma nova lei, Pontes de Miranda deixa claro que não se tratava
de novos direitos, em similaridade com o que ocorreu com a Petição de Direitos, a
previsão normativa era uma reiteração de direitos. Era uma forma de “assegurar a
tradição, evitar os sofismas e impedir tergiversações” (pág. 66).

Mesmo reiterando direitos, a nova lei não era perfeita e não surtiu todos os
efeitos esperados, pois, a título de exemplo, não impediu a privação de liberdade física
por meio de ordem do rei e só abarcava pessoas acusadas de crime, deixando sem
proteção pessoas “detidas por outras acusações ou meros pretextos” (Pontes de Miranda,
pág. 72).

Segundo Pontes de Miranda,

“entre a jurisprudência que favorecia a prerrogativa, achavam-se


ainda os arestos sobre mandados em branco, com os quais se
podiam prender os cidadãos, sem nenhuma indicação provada da
sua culpabilidade e sem identificação plausível. Esse costume
pernicioso, inquisitorial, que escapara à revolução de 1688, e
continuou, pelo uso, sem impugnação, até o reinado de Jorge III,
recebeu da astúcia de Wilkes e da sabedoria liberal de Lorde
Camden o golpe fatal que o abluiria de vez. A estrada da
liberdade é a de longa e penosa ascensão” (pág. 67).
Havia o mandado geral, que consistia em libelos, ou denúncias, sem autores.
Os autores eram procurados, mas, enquanto isso, todos os suspeitos ficavam presos.
Tem-se como caso célebre o “North Briton”, no qual foi lançado um “mandado geral de
prisão” para que “fossem procurados os autores, impressores e editores do referido
número do North Briton, e, uma vez encontrados, que os investigadores os detivessem e
conduzissem à sua presença”. Não havia um único nome e os delegados “prenderam
todos os indivíduos que a seu ver poderiam ser os autores, elevando-se desse modo a
quarenta e nove o número de prisões”.

Nesse caso foram detidos vários jornalistas, até que souberam ser Wilkes o
autor procurado. Munidos do mandado geral, os encarregados deram ordem de prisão a
Wilkes, que, desobedecendo, foi conduzido e compareceu diante do secretário de
Estado. Enquanto isso, os demais encarregados da busca invadiram a casa de Wilkes,
“folhearam os manuscritos existentes em suas gavetas e levaram todos os seus papéis
particulares” (pág. 68).

Mesmo determinada a incomunicabilidade de Wilkes, o Habeas Corpus


impetrado foi julgado procedente e o processo seguiu o curso normal com a contestação
em tempo. Além disso, alguns operários intentaram ação contra os executores do
mandado geral, ação que foi julgada procedente pelo Presidente da Court of King’s
Bench, “que declarou a arbitrariedade do mandado de prisão, por não admitir que maus
precedentes pusessem de lado os verdadeiros princípios da lei inglesa”.

Ademais, Wilkes ajuizou ação contra o subsecretário de Estado, responsável


pela operação do mandado geral. Conforme aponta Pontes de Miranda, a ocasião
permitiu ingresso arbitrário na residência do procurado, ato que contraria o progresso e
o curso dos direitos fundamentais previstos. Vide:

“nesse interessante processo, ficou provado que, após a prisão


de Wilkes, Wood e alguns enviados tinham penetrado na casa do
paciente, proibindo que ali comparecessem os amigos dele.
Ainda mais: um serralheiro abrira as gavetas da secretária, de
onde os emissários subtraíram papéis, que levaram em sacos,
sem inventário algum. Tudo isso não estava no sentido da
evolução humana. Tudo isso apenas era obstáculo passageiro na
dimensão da liberdade.” (pág. 69).
Infelizmente para Wilkes, a decisão do caso Northon Briton foi contrária a
ele, decidindo pela legalidade do ingresso em sua residência, lastreada por mandado de
detenção geral. Sobre essa decisão apontou Pontes de Miranda, in verbis:

“Ao ser interrogado, Lorde Halix confessou que o mandado


tinha data de três dias anteriores àquele em que soubera ser
Wilkes o autor de North Briton. Nessa ocasião, brilhantemente,
disse com energia o Lord Chief Justice Pratt: “O réu declarou
ter, conforme certos precedentes, o direito de entrar à força em
casas particulares, de fazer saltar a fechadura das carteiras e de
apreender papéis, mediante simples mandado de detenção geral;
e nesse caso, não sendo especificado na ordem nenhum nome de
acusado, os enviados forma investidos do poder discricionário
de fazer pesquisas onde quer que lhes levassem as suas
suspeitas. Se um secretário de Estado é realmente investido de
um tal poder e o pode delegar, o que não há dúvida é que essa
faculdade pode atingir à pessoa e à propriedade de todo homem
deste reino e é totalmente subversiva da liberdade individual”
(Thomas Erskine May, Histoire Constitutionnel de l’Angleterre,
II, 299).
A decisão foi favorável ao impetrante e abonaram-se-lhe 1.000
libras esterlinas”.
Esse caso é seguido por outros, a exemplo do caso de Napoleão, para o qual,
embora concedida ordem de habeas corpus, esta restou obstada em razão do
afastamento do navio, no qual estava Napoleão, para fora do território inglês, por ordem
do governo.

Há também o caso do Monitor or British Freeholder, no qual foi ordenada a


prisão de John Entinck e o apossamento de seus papéis e livros. Nesse não foi utilizado
mandado em branco, pois havia previsão do nome do acusado. Mas, no tocante à
apreensão dos papéis e livros, tratava-se de mandado geral, que foi impugnado pela
“action of trespass”, já que não se referia a liberdade física. (Pontes de Miranda, pág.
70)

De todo modo, em 1766 esses mandados gerais foram condenados pela Casa
do Banco do Rei e declarados ilegais pela Casa das Audiências. Nesse mesmo ano, a
Câmara dos Comuns aprovou uma lei contra os mandados gerais, mas a Casa dos
Lordes foi contrária ao pleito, o que, invariavelmente, não modificou a ilegalidade de
tais general warrants, decidida pelos juízes. (Pontes de Miranda, pág. 71).
No século seguinte, em 1816, foi editado o segundo Habeas Corpus Act,
agora possibilitando o uso do instrumento em qualquer violação à liberdade física, tais
como “a indivíduo que continua preso, sem ordem legal do juiz; a criança detida fora da
casa dos pais; a pessoa sã que tenham internado, como louco ou doente, em hospício,
casa de saúde ou hospital; a freira que quer deixar o convento etc” (Pontes de Miranda,
pág. 73).

Nesse período, a desobediência à ordem significava “ofensa ou desdém à


Casa”, gerando pena sumária ou “multas em proveito da parte lesada”. (Pág. 73)

Enfim, Pontes de Miranda define habeas corpus como “mandado de


tribunal, endereçado a indivíduo ou a indivíduos, que tenham em seu poder, ou sob sua
guarda alguma pessoa, a fim de que a apresente ao mesmo tribunal, que decidirá, depois
de ouvir as informações produzidas pelas partes, qual o destino a ser dado ao paciente”
(pág. 75).

A título de exemplo, colaciona um habeas corpus concedido pela Rainha


Vitória, nestes termos (Pontes de Miranda, pág. 76):

Vitória, pela graça de Deus, Rainha do Reino Unido da


Grâ-Bretanha e da Irlanda. Defensora da Fé.
A J... R..., guarda de nossa prisão de Jérsia, na ilha de
Jérsia, e a J... C..., visconde da dita ilha, saudações.
Nós vos ordenamentos apresenteis em nossa corte, perante
nós, em Westminster, a 18 de janeiro próximo, o corpo de C. C.
W., o qual está, como se pensa, detido em nossa prisão sob
vossa guarda, e declareis o dia e o motivo de sua detenção, sob
qualquer nome pelo qual seja designado ou conhecido, a fim de
ouvir e de receber todas as coisas materiais que nossa dita corte
decidir a respeito desse indivíduo. Cumpri a presente ordem.
Testemunha Thomas, Lorde Demnan, Westminster, 23 de
dezembro de 8º ano de nosso Reinado.
Pela Casa (Court),
Robinson.
A pedido de C. C. W.
W. A. L., 7 Gray’s Inn Square- London.

HABEAS CORPOS NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA


Se quisermos resumir, segundo estudiosos do habeas corpus, a única
diferença entre a mandado na Inglaterra e o mandado no EUA é a troca do termo Rei
pela palavra “povo” (Pontes de Miranda, pág. 87). Em um ou outro país, o habeas
corpus é conhecido como “remédio sumário contra as violações da liberdade física”
(Pontes de Miranda, pág. 105).

O direito norte-americano tem suas bases no corpo normativo britânico,


diferenciando-se de tais leis por adotar constituição escrita, mas sem perder o núcleo
essencial do direito inglês. Segundo afirma Pontes de Miranda, “as leis velhas,
velhíssimas, vinham gravadas nos seus espíritos” (pág. 88).

Quando colônia inglesa, havia disputas entre o povo colonizador e os


súditos colonos, que conheciam os direitos ingleses de liberdade, propriedade, e
queriam sua aplicação na Colônia Norte-Americana. Esses conflitos, de luta pelo
direito, levaram à luta pela independência, que refletem o anseio dos emigrantes
resumido nessa frase de Pontes de Miranda: “o gosto e o amor da liberdade haviam de
crescer com as vicissitudes do emigrar” (pág. 90).

Outra não poderia ser a história, segundo Pontes de Miranda, pois esse
povo, que tinha como regra de conduta a fé e a Bíblia, nutriam amor pela liberdade, pelo
combate e pelas instituições. In verbis:

“Compreende-se mesmo que para um indivíduo em cujas mãos


se põe uma Bíblia (...), que lhe serve de regra de conduta e de
ação, fazendo-o o único responsável por seus atos e por seu
destino, meio caminho já está vencido para tão assinaladas
conquistas, como soem ser as instituições norte-americanas. Tal
indivíduo, sentencia E. Laboulaye (...) é, por força, republicano.
O seu evangelismo, desenvolvendo-se ao ar livre, com o amor
do combate e o incentivo da natureza rica, havia de acabar,
como acabou, na grande democracia utilitária e legalista... (...)”
(Pontes de Miranda, pág. 90).
Conclui Pontes de Miranda que “em nenhuma outra região do mundo amou-
se mais, nos séculos passados, o direito público”. Em outra passagem afirmou que
alguns escritores, em conformidade com Georg Jellinek, entendem “ter sido a liberdade
de religião, que nasceu nas colônias norte-americanas, a verdadeira causa da declaração
dos direitos do homem”. Na opinião do autor, os fundamentos do direito natural são
suficientes para embasar a declaração dos direitos do homem (pág. 91).
Em 04 de julho de 1776, as Colônias Norte-Americanas lançaram o
manifesto sobre seus direitos e romperam o vínculo com a Inglaterra, passaram a ser
livres e independentes. E, na sequência, em 1787, foi criada a Constituição dos Estados
Unidos, com sete artigos, se referindo ao habeas-corpus apenas quanto a suspensão, no
artigo 1º.

Logo após, em 25 de dezembro de 1791, foi ratificada proposta de emenda


sobre liberdade, com fins de constar na Constituição a previsão de que ninguém
seria/será privado de sua vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal
(Pontes de Miranda, pág. 99).

Segundo Pontes de Miranda, ao não prever na Constituição os direitos a


serem garantidos, inclusive detalhando o habeas corpus, o constituinte expôs o
instrumento aos maiores perigos. Vide:

“Na Inglaterra, a Magna Carta e o Bill de Direitos poderiam ser


ab-rogados pelo Parlamento, ao passo que nos Estados Unidos
da América, sendo a Constituição obra de autoridade superior à
legislativa, cabe somente a essa a missão de a expor, e não,
como entre os povos da Grã-Bretanha, alterar princípios,
cláusulas ou sentido. Foi isso o que nos ensinou Madison e é o
que nos pregam, em nossos dias, todos os juristas americanos.
Ora, o habeas-corpus se confunde com a liberdade física que ele
garante; se assim é, povos de estirpe britânica não a teriam
íntegra se não o possuíssem. De modo que o deixar de instituí-lo
constitucionalmente equivaleria a deixá-lo exposto aos maiores
perigos” (Pontes de Miranda, pág. 102).
Tal questão tangencia as diferenças entre common law e civil law, as
particularidades da República e da Monarquia, as atribuições legislativas derivadas do
povo soberano ou do rei soberano. A preocupação de Pontes de Miranda com uma carta
de direitos, ao que parece, emerge e se potencializa com o contexto de poderes
independentes, titularizados e delegados pelo povo, o que demanda positivação do
direito, como meio de segurança jurídica e garantia constitucional. (Pontes de Miranda,
pág. 103)

Como exemplo, o autor faz referência à Lei de 9 de abril de 1866 (que


estabelecia nacionalidade norte-americana -cidadania- a todas as pessoas nascidas ali,
salvo os indígenas não submetidos a impostos e os filhos de indivíduos que tivessem
benefícios de extraterritorialidade) em contraposição à jurisprudência, que não
reconhecia o negro como cidadão norte-americano (“pela jurisprudência, o negro não
era povo nos Estados Unidos da América”), caso Dred Scot versus Stanford (Pontes de
Miranda, pág. 103).

Entretanto, mesmo com posicionamentos pela necessidade de positivação, o


sistema adotado pelo EUA é o da common law, sendo as particularidades do habeas
corpus definidas a partir de casos, a exemplo do United States versus Lawrence, no qual
restou consignada a necessidade de se aferir manifestos motivos para deferimento do
habeas corpus (Pontes de Miranda, pág. 105).

Segundo Pontes de Miranda, a jurisprudência da Corte admite apurar a


constitucionalidade de lei em sede de habeas corpus, quando a violação à liberdade
derivar da normativa impugnada. Esse instrumento, entretanto, não pode ser utilizado
quando caiba outro remédio ou recurso, e não terá por objeto a regularidade ou validade
do processo -Ableman versus Boot (Pontes de Miranda, pág. 107).

Para os norte-americanos, o conceito de liberdade, para fins de concessão de


habeas corpus, abrange qualquer empecilho, de modo que qualquer obstáculo à
liberdade física se equipara à prisão (pág. 106). Tem-se como exemplo a concessão da
ordem de habeas corpus para retirada de infantes ilegalmente alistados do serviço
militar.

Ademais, qualquer pessoa física pode solicitar a ordem, a seu favor ou de


outrem. Em suma, todos os que foram ilegalmente presos ou, de outra forma, privados
de liberdade física, devem levar ao tribunal ou magistrado competente a sua causa. Se
reconhecida razão em seus argumentos, o paciente será posto em liberdade (pág. 114).

Outra peculiaridade dos EUA é a soberania dos Estados-Membros, que


emite efeitos à concessão de habeas corpus. A ordem de habeas corpus não pode ser
concedida por Tribunal dos Estados quando o paciente estiver sob jurisdição da União,
por exemplo. Segundo Pontes de Miranda, citando James Woodburn e o caso
Williamson versus Lewis:

“estando alguma pessoa presa por ordem, ou em consequência


de decisão de tribunal federal, não pode o tribunal do Estado
reexaminar a ordem de prisão, nem investigar, sequer, em caso
de habeas-corpus. Em compensação, não tendo a Suprema Corte
poder de apelação para rever processo de outro qualquer
tribunal, não pode usurpar, por meio de processo de habeas-
corpus, essa atribuição judiciária, salvo se a outra casa obrou
inteiramente fora de jurisdição” (Pág. 109).
(...)

HABEAS CORPUS NO BRASIL

III.1 BRASIL-IMPÉRIO

“Vendo que nem a Constituição da Monarchia Portugueza, em


suas disposições expressas na Ordenação do Reino, nem mesmo
a Lei da Reformação da Justiça de 1582, com todos os outros
Alvarás, Cartas Régias, e Decretos de Meus augustos avós tem
podido affirmar de um modo inalteravel, como é de Direito
Natural, a segurança das pessoas; e Constando-Me que alguns
Governadores, Juizes Criminaes e Magistrados, violando o
Sagrado Deposito da Jurisdicção que se lhes confiou, mandam
prender por mero arbitrio, e antes de culpa formada, pretextando
denuncias em segredo, suspeitas vehementes, e outros motivos
horrorosos à humanidade para ipunimente conservar em
masmorras, vergados com o peso de ferros, homens que se
congregaram convidados por os bens, que lhes offerecera a
Instituição das Sociedades Civis, o primeiro dos quses é sem
duvida a segurança individual; E sendo do Meu primeiro dever,
e desempenho de Minha palavra o promover o mais austero
respeito à Lei, e antecipar quanto ser possa os beneficios de uma
Constituição liveral: Hei por bem excitar, por a maneira mais
efficaz e rigorosa, a observancia da sobre mencionada
legislação, ampliando-a, e ordenando, como por este Decreto
Ordeno, que desde a sua data em diante nenhuma pessoa
livre no Brazil possa jamais ser presa sem ordem por
escripto do Juiz, ou Magistrado Criminal do territorio,
excepto sómente o caso de flagrante delicto, em que
qualquer do povo deve prender o delinquente.
Ordeno em segundo logar, que nenhum Juiz ou Magistrado
Criminal possa expedir ordem de prisão sem preceder culpa
formada por inquirição summaria de tres testemunhas, duas
das quaes jurem contestes assim o facto, que em Lei expressa
seja declarado culposo, como a designação individual do
culpado; escrevendo sempre sentença interlocutoria que o
obrigues a prisão e livramento, a qual se guardará em segredo
até que possa verificar-se a prisão do que assim tiver sido
pronunciado delinquente.
Determino em terceiro logar que, quando se acharem presos os
que assim forem indicados criminosos se lhes faça immediata, e
successivamente o processo, que deve findar dentro de 48 horas
peremptorias, improrrogaveis, e contadas do momento da prisão,
principiando-se, sempre que possa ser, por a confrontação dos
réos com as testemunhas que os culparam, e ficando alertas, e
publicas todas as provas, que houverem, para assim facilitar os
meios de justa defesa, que a ninguem se devem difficultar, ou
tolher, exceptuando-se por ora das disposições deste paragrapho
os casos, que provados, merecerem por as Leis do Reino pena de
morte, acerca dos quases se procederá infallivelmente nos
termos dos §§ 1º e 2º do Alvará de 31 de março de 1742.
Ordeno em quarto logar  que, em caso nenhum possa alguem ser
lançado em segredo, ou masmorra estreita, ou infecta, pois que a
prisão deve só servir para guardar as pessoas, e nunca para
adoecer e flagellar; ficando implicitamente abolido para
sempre o uso de correntes, algemas, grilhões, e outros
quesquer ferros inventados para martyrisar homens ainda
não julgados a soffrer qualquer pena afflictiva por sentença
final; entendendo-se todavia que os Juizes, e Magistrados
Criminaes poderão conservar por algum tempo, em casos
gravissimos, incomunicaveis os delinquentes, contanto que seja
e  casa arejadas e commodas, e nunca manietados, ou soffrendo
qualquer especie de tormento.
Determino finalmente que a contravenção, legalmente provada,
das disposições do presente Decreto, seja irremissivelmente
punida com o perdimento do emprego, e inhabilidade perpetua
para qualquer outro, em que haja exercicio de jusrisdicção. O
Conde dos Arcos, do Conselho de sua Magestade, Ministro e
Secretario de Estado dos Negocios do Reino do Brazil e
Estrangeiros, o tenha assim entendido e faça executar com os
despachos necessarios. Palacio do Rio de Janeiro em 23 de 
Maio de 1821. Com a rubrica do Principe Regente. Conde dos
Arcos.” (grifo nosso. Contido em ´DIM-23-5-1821
(planalto.gov.br))
Código Criminal de 1830 – “Art. 183. Recusarem os Juizes, á
quem fôr permittido passar ordens de - habeas-corpus -
concedel-as, quando lhes forem regularmente requeridas, nos
casos, em que podem ser legalmente passadas; retardarem sem
motivo a sua concessão, ou deixarem de proposito, e com
conhecimento de causa, de as passar independente de petição,
nos casos em que a Lei o determinar.
Art 184. Recusarem os Officiaes de Justiça, ou demorarem por
qualquer modo a intimação de uma ordem de - habeas-corpus -
que lhes tenha sido apresentada, ou a execução das outras
diligencias necessarias para que essa ordem surta effeito.
Penas - de suspensão do emprego por um mez a um anno, e de
prisão por quinze dias a quatro mezes.” (LIM-16-12-1830
(planalto.gov.br))
“Código de Processo Criminal - Art. 340. Todo o cidadão que
entender, que elle ou outrem soffre uma prisão ou
constrangimento illegal, em sua liberdade, tem direito de pedir
uma ordem de - Habeas-Corpus - em seu favor. (LIM-29-11-
1832 (planalto.gov.br))
O Decreto de 23 de maio de 1821, colacionado acima, é marco histórico de
garantias de liberdade no Brasil.
Pontes de Miranda aponta textos anteriores, como as ordenações afonsinas,
as manuelinas e as filipinas, como gênese destes direitos, mas, ao mesmo tempo, afirma
que a “opressão era a regra, em Portugal menos que em Espanha, Itália e França”.
Segundo o autor, a diferença entre os países, em relação à liberdade, era de ordem
filosófica. Onde preponderava o essencialismo havia poucas descobertas científicas e a
política tendia a ser antidemocrática, passando ao largo dos conceitos de igualdade e
liberdade. Diferentemente, onde preponderava a corrente materialista do aristotelismo,
com emprego da metafísica materialista, havia filosofia científica, liberdade e evolução
da democracia. (Pontes de Miranda, pág. 126)
Como é de conhecimento geral, o Brasil tem raízes no direito português, até
porque recebeu a Corte Portuguesa, mas, como mantinha relações com a Inglaterra e
acompanhava o desenvolvimento na Europa, não estava alheia às revoluções e ao
reconhecimento de direitos.
Os autores da Constituição do Império, do ano de 1832, conheciam o habeas
corpus inglês e positivaram princípios de liberdade no texto constitucional. Pontes de
Miranda colaciona o entendimento de José de Alencar, de que o habeas corpus estava
implícito na Constituição, ao contrário do que diziam os autores da época, que
destinavam ao Código de Processo Criminal as glórias de tê-lo instituído. O faz nos
seguintes termos:
“No Parlamento, o deputado José de Alencar, em 1870, frisou:
‘Senhores! Alguns pensam que o habeas corpus data do Código
de Processo Criminal: minha opinião é contrária. Entendo que,
embora caiba aos autores do Código do Processo a glória de
terem compreendido e tratado de desconvolar o pensamento
constitucional, o habeas-corpus está incluído, está implícito na
Constituição, quando ela decretou a independência dos poderes
e quando deu ao Poder Judiciário o direito exclusivo de
conhecer de tudo quanto entende com a inviolabilidade penal”.
(Pontes de Miranda, pág. 128)
Ademais, antes da instituição do habeas corpus, no Código do Processo
Criminal, os pedidos de soltura eram feitos através de ação de desconstrangimento, o
que não minora a importância do instrumento que era e é imprescindível para garantia
do direito à liberdade (Pontes de Miranda, pág. 128).
O autor faz referência, ainda, aos interditos no direito português. O interdito
de liberis exhibendis e o interdito de homine libero exhibendo eram ações petitórias com
finalidade de exibição de alguém. Era utilizada pelo marido contra o pai da mulher
casada que a retém, ou pela mulher, sob guarda, contra o que a detém etc. (Pontes de
Miranda, pág. 142)

Outro remédio antecedente do habeas corpus foi a carta de seguro, que tinha
função de “eximir os réus da prisão a fim de se livrarem soltos dentro do prazo por elas
concedido”. (Pontes de Miranda, pág. 144)

Pontes de Miranda estabelece a diferenciação entre o direito à liberdade,


previsto nas Constituições da época, e a forma de assegurar tal direito, que precisa ser
pelo habeas corpus. Ele traz como exemplo a Constituição Francesa, que previa direitos,
mas não previa o instrumento para efetivação deles, e conclui que os brasileiros
preferiram buscar referências no direito inglês, com a positivação do habeas corpus no
corpo normativo brasileiro. (Pontes de Miranda, pág. 129)

Afirma que os políticos brasileiros, educados na Europa e munidos nas


ideias libertárias da França e do direito inglês, fomentaram a reação liberal no Brasil
que culminou, entre outros resultados, no surgimento do habeas-corpus. Este
instrumento foi regulamentado pelo Código do Processo Criminal de 1832, com
inspiração no Habeas Corpus Acts inglês de 1679 e de 1816. (Pontes de Miranda, pág.
131)

Este Código de Processo não previa recurso da sentença, ela era irrecorrível.
Tal circunstância só mudou em 1841, quando a Lei reconhecida como de “Justiça
Russa” previu “recurso de ofício da decisão concedendo soltura em virtude de habeas
corpus”. Um ano depois, em 1842, o Regulamento n. 120, estabeleceu que o habeas
corpus somente poderia ser concedido por juiz superior ao que decretou a prisão.
(Pontes de Miranda, pág. 134).

No Aviso de 30 de agosto de 1863, o Ministério da Justiça equiparou “à


prisão, para os efeitos de concessão do habeas corpus, todos e quaisquer
constrangimentos ilegais à liberdade física que proviessem de autoridades
administrativas ou judiciárias”. Alguns anos após, em 1871, a Lei 2.033 ampliou o rol
de possibilidades para abarcar a ameaça de constrangimento corporal e a possibilidade
de estrangeiro se valer dessa garantia. No art. 18, parágrafo 1º: “tem lugar o pedido de
habeas corpus quando o impetrante não tenha chegado a sofrer o constrangimento
corporal, mas se veja dele ameaçado”. (Pontes de Miranda, pág. 135) No artigo 18,
parágrafo 8º: “não é vedado ao estrangeiro requerer para si ordem de habeas corpus, nos
casos em que esta tem lugar”.

Quando de decisão do Supremo Tribunal Federal, em 1898, o ministro


Américo Lôbo, em voto vencido, definiu o habeas corpus como “um duplo interdito: ad
exhibendum, da pessoa do paciente, e restitutório da sua liberdade individual”.

III.2 – BRASIL – REPÚBLICA

Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, 1891,


redação original: Artigo 72 - A Constituição assegura a
brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à
propriedade, nos termos seguintes: (...) § 22 - Dar-se-á o habeas
corpus, sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente
perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de
poder.

Redação dada pela Emenda Constitucional de 03 de setembro de


1926: Artigo 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a
estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos
concernentes á liberdade, á segurança individual e á
propriedade, nos termos seguintes: § 22. Dar-se-ha o habeas-
corpus sempre que alguém soffrer ou se achar em imminente
perigo de soffrer violencia por meio de prisão ou
constrangimento illegal em sua liberdade de locomoção.  
DIREITOS FUNDAMENTAIS E HUMANOS

Ingo Sarlet conceitua a dignidade humana como qualidade inata do ser


humano, algo que lhe é inerente. Segundo ele, essa condição confere direito ao respeito,
à proteção e a promoção. Em referência a Carlos Ayres Brito, Sarlet escreve a dignidade
como consequência da qualidade do ser humano de ser um microcosmo, “um universo
em si mesmo”. Dessa forma, o ser humano é digno pelo que ele é, por como ele se
constitui. 

Nesse passo, filiados à doutrina cristã da dignidade oriunda da condição de


“feito a imagem e semelhança de Deus”, ou à doutrina kantiana de que tal qualidade tem
relação com a razão e, por isso, o ser racional seria dotado de dignidade, deve-se
reconhecer a dignidade como atributo do ser humano sem discriminação de idade, raça,
sexo, função social etc. É digno porque é ser humano. 

Há outra vertente sobre a origem da dignidade humana: a ideia de evolução


social, apresentada a partir de Peter Haberle. Para este, o postulado aparece em
decorrência do empenho de diversas gerações e do crescimento da humanidade. Há
precedente do Tribunal Constitucional de Portugal que corrobora essa tese, da dignidade
da pessoa humana como preceito desenvolvido com o passar do tempo e da cultura. 

De todo modo, parte-se da premissa de que a dignidade é o princípio-base


de todos os demais direitos fundamentais e humanos, não distanciando das definições de
liberdade, privacidade e inviolabilidade do domicílio. Por isso mesmo, destina-se as
seguintes páginas ao estudo da dignidade, dos direitos fundamentais e dos direitos
humanos.

I - HISTÓRIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

“A história dos direitos fundamentais é também uma história


que desemboca no surgimento do moderno Estado
constitucional, cuja essência e razão de ser residem justamente
no reconhecimento e na proteção da dignidade da pessoa
humana e dos direitos fundamentais do homem. Nesse contexto,
há que dar razão aos que ponderam ser a história dos direitos
fundamentais, de certa forma, também a história da
limitação do poder”. (grifo nosso) (Ingo Sarlet, 2018, pág. 36)
Nosso livro base escolhido é o de Ingo Sarlet, intitulado de “A eficácia dos
Direitos Fundamentais, uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional”.

Ao apresentar as etapas evolutivas dos direitos fundamentais, Ingo Sarlet


parte do entendimento de K. Stern, que as dividiu em fase pré-histórica (até o séc. XVI),
fase intermediária (doutrina jusnaturalista) e fase da constitucionalização (desde 1776,
com as declarações de direitos do homem). (Ingo Sarlet, 2018, Pág. 37)

A primeira fase é marcada por princípios filosóficos e religiosos


desenvolvidos, em especial, pelos gregos, romanos e cristãos. São oriundos dessa época
valores da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da igualdade, da individualidade
do homem e da unidade dos homens. (Ingo Sarlet, 2018, pág. 38)

Em sequência histórica, o berço do jusnaturalismo foi marcado pelos


entendimentos de Santo Tomás de Aquino, Pico della Mirandola, Guilherme Occam,
que delinearam os conceitos de dignidade, de valor próprio, inato, de individualidade
etc. Tais pensamentos, somados às teorias contratualistas, desenvolveram e sustentaram
a doutrina jusnaturalista.

Em paralelo, teólogos e jusfilósofos do séc. XVI formularam suas teorias a


partir do direito natural, com inspirações jusracionalistas, nitidamente amparados na
razão como fundamento do Direito. Ideias que alcançaram as futuras gerações,
encontrando adesão em vários outros pensadores, inclusive Thomas Hobbes, que nutria
o seguinte entendimento:
“Ao passo que Milton reivindicou o reconhecimento dos direitos
de autodeterminação do homem, de tolerância religiosa, da
liberdade de manifestação oral e de imprensa, bem como a
supressão da censura, Hobbes atribuiu ao homem a titularidade
de determinados direitos naturais, que, no entanto, alcançavam
validade apenas no estado da natureza, encontrando-se, no mais,
à disposição do soberano. Cumpre ressaltar que foi justamente
na Inglaterra do século XVII que a concepção contratualista da
sociedade e a ideia de direitos naturais do homem adquiriram
particular relevância, e isto não apenas no plano teórico,
bastando, nesse particular, a simples referência às diversas
Cartas de Direitos assinadas pelos monarcas desse período”.
(Ingo Sarlet, 2018, pág. 39)
Em complementação ao histórico inglês sobre a liberdade, importa afirmar o
que Ingo Sarlet escreve sobre o Edward Coke, juiz e parlamentar que alegava a
existências de direitos fundamentais dos cidadãos ingleses, em especial quanto a
liberdade pessoal contra a prisão arbitrária e o direito de propriedade. Foi assim o
percursor da “clássica tríade vida, liberdade e propriedade, que se incorporou ao
patrimônio do pensamento individualista burguês” (Ingo Sarlet, 2018, pág. 39).

Discorre ainda sobre outro contratualista importante, John Locke, que


definiu eficácia oponível dos direitos naturais em relação aos detentores de poder. Eram
direitos de resistência que, com base em sua teoria do contrato social, eram limitados
aos cidadãos, considerados sujeitos, não objetos do governo. (Ingo Sarlet, 2018, pág.
40)

Segundo Sarlet, John Locke aprimorou a teoria contratualista que, por sua
vez, lançou as bases do jusnaturalismo iluminista do séc. XVII e, por consequência,
culminou no constitucionalismo.

O Professor cita, ainda, os autores Rousseau, Tomas Paine e Kant como


representantes mais influentes responsáveis pelo subsequente desenvolvimento do
contratualismo e das teorias dos direitos naturais, tendo Paine utilizado a expressão
direitos do homem, em substituição a direitos naturais.

Para Sarlet, citando Norberto Bobbio, o marco conclusivo da segunda etapa


dos direitos fundamentais é o pensamento de Kant. Vejamos:

“É o pensamento kantiano, nas palavras de Norberto Bobbio,


contudo, o marco conclusivo desta fase da história dos direitos
humanos. Para Kant, todos os direitos estão abrangidos pelo
direito de liberdade, direito natural por excelência, que cabe a
todo homem em virtude de sua própria humanidade,
encontrando-se limitado apenas pela liberdade coexistente dos
demais homens. Conforme ensina Bobbio, Kant, inspirado em
Rousseau, definiu a liberdade jurídica do ser humano como a
faculdade de obedecer somente às leis às quais deu seu livre
consentimento (...)”. (Ingo Sarlet, 2018, pág. 40)
A terceira fase, de constitucionalização dos direitos, é na verdade antecedida
por algumas cartas positivadas (a exemplo da Magna Charta Libertatum), que abriram o
caminho para a concretização dos direitos.

Em consonância a todo o entendimento de Pontes de Miranda sobre a


origem do habeas corpus, agrada-nos consignar que Sarlet enxerga na Magna Carta de
1215 um “ponto de referência para alguns direitos e liberdades civis clássicos, tais como
o habeas corpus, o devido processo legal e a garantia da propriedade”. Acrescenta ainda
que tal documento não foi o primeiro. Foram seus antecedentes “as cartas de franquia e
os forais outorgados pelos reis portugueses e espanhóis”, nos séculos XII e XIII. (Ingo
Sarlet, 2018, pág. 41)

Assim, os direitos reconhecidos na Inglaterra, no decorrer dos séculos e por


meio dos documentos firmados, surgem como “progressiva limitação do poder
monárquico e da afirmação do Parlamento perante a coroa inglesa”. Nesse país foram
reconhecidos direitos, mas Sarlet reconhece na Declaração de Direitos do povo da
Virgínia, de 1776, o ponto de “transição dos direitos de liberdade legais ingleses para os
direitos fundamentais constitucionais” (Ingo Sarlet, 2018, pág. 43). Vide:

“Com a nota distintiva da supremacia normativa e a posterior


garantia de sua justiciabilidade por intermédio da Suprema
Corte e do controle judicial da constitucionalidade, pela primeira
vez os direitos naturais do homem foram acolhidos e positivados
como direitos fundamentais constitucionais, ainda que este
status constitucional da fundamentalidade em sentido formal
tenha sido definitivamente consagrado somente a partir da
incorporação de uma declaração de direitos à Constituição em
1791, mais exatamente, a partir do momento em que foi
afirmada na prática da Suprema Corte a sua supremacia
normativa”. (Ingo Sarlet, 2018, pág. 43)
Logo após, em 1787 tem-se a Constituição Americana, com os ideários de
democracia e separação de poderes, e em 1789 tem-se na França a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão.
Não nos ateremos nos pormenores destes dois corpos legislativos, mas
importa salientar o que entende Martin Kriele, segundo citação feita por Sarlet, nos
seguintes termos:

“Cabe citar aqui a lição de Martin Kriele, que, de forma sintética


e marcante, traduz a relevância de ambas as Declarações para a
consagração dos direitos fundamentais, afirmando que, enquanto
os americanos tinham apenas direitos fundamentais, a França
legou ao mundo os direitos humanos. Atente-se, ainda, para a
circunstância de que a evolução no campo da positivação dos
direitos fundamentais, recém-traçada de forma sumária,
culminou com a afirmação (ainda que não em caráter definitivo)
do Estado de Direito, na sua concepção liberal-burguesa, por sua
vez determinante para a concepção clássica dos direitos
fundamentais que caracteriza a assim denominada primeira
dimensão (geração) desses direitos” (Ingo Sarlet, pág. 44 e 45)

II- GERAÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

A fim de sistematizar o estudo dos direitos fundamentais, alguns autores os


dividem em gerações - termo amplamente criticado, por levar a entender que os direitos
se sucedem a outros, tornando-os ultrapassados-, ou dimensões.

O primeiro desses foi Karel Vasak que, “em uma conferência proferida no
Instituto Internacional de Direitos Humanos de Estrasburgo, na França, em 1979”
classificou os direitos fundamentais em três gerações, que se consubstanciam através do
lema da Revolução Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade. (Nathalia Masson,
2017, pág. 204).

Os direitos de primeira geração, com base no ideal de liberdade, têm como


origem, como já relatamos, a reivindicação da burguesia de “limitação dos poderes do
Estado em prol do respeito às liberdades individuais”. Marcelo Novelino colaciona o
entendimento de Dieter Grimm, segundo o qual “a burguesia partia do pressuposto de
que a sociedade só poderia se regulamentar se seus membros estivessem face a face de
forma igualitária e livre, razão pela qual o direito era necessário apenas como garantia
de igual liberdade individual”. (Marcelo Novelino, 2013, pág. 384)

Conforme aduz Nathália Masson,

“os direitos de primeira geração são os responsáveis por


inaugurar, no final do século XVIII e início do século XIX, o
constitucionalismo ocidental, e importam na consagração de
direitos civis e políticos clássicos, essencialmente ligados ao
valor liberdade (e enquanto desdobramentos deste: o direito à
vida, o direito à liberdade religiosa – também de crença, de
locomoção, de reunião, de associação – o direito à propriedade,
à participação política, à inviolabilidade de domicílio e segredo
de correspondência). (...) Em conclusão, os direitos de primeira
geração são aqueles que consagram meios de defesa da
liberdade do indivíduo, a partir da exigência de que não haja
ingerência abusiva dos Poderes Públicos em sua esfera privada”.
(Nathalia Masson, 2017, pág. 204)
Dessa forma, os direitos de liberdade, que exigem uma abstenção do Estado,
um distanciamento, um não fazer, foram alocados na primeira geração.

Na sequência dos votos revolucionários tem-se a igualdade, direito de


solidariedade, que aduz a prestações positivas do Estado, uma intervenção maior para
salvaguarda de direitos. Esta é, pois, a segunda geração.

Conforme Novelino, “os direitos sociais, apesar de já serem encontrados em


alguns textos dos séculos XVII e XIX, passaram a ser amplamente garantidos a partir
das primeiras décadas do século XX”. Tais direitos têm menor efetividade, em relação
aos de defesa, pois dependem de disponibilidade orçamentária do Estado, o que
denominamos de “reserva do possível”.

Acrescenta, ainda, que, em decorrência da reserva do possível, os direitos


sociais têm interesse na proteção de garantias institucionais, voltadas a determinadas
instituições de direito público, cuja permanência é fundamental para a sociedade.
Segundo Novelino, citando Paulo Bonavides, “as garantias institucionais, embora
consagradas nas Constituições, não se configuram como direitos subjetivos atribuídos
diretamente ao indivíduo, mas como normas protetivas de instituições enquanto
realidades sociais objetivas, tais como a família, a imprensa livre e o funcionalismo
público. Por não garantirem aos particulares posições subjetivas autônomas, não lhes é
aplicado o regime dos direitos fundamentais”. (Marcelo Novelino, 2013, pág. 385)

Sobre a segunda geração afirma Nathalia Masson,

“Já os direitos de segunda geração – normalmente traduzidos


enquanto direitos econômicos, sociais e culturais – acentuam o
princípio da igualdade entre os homens (igualdade material).
São, usualmente, denominados “direitos do bem-estar”, uma vez
que pretendem ofertar os meios materiais imprescindíveis para a
efetivação dos direitos individuais. Para tanto, exigem do Estado
uma atuação positiva, um fazer (daí a identificação desses
direitos enquanto liberdades positivas), o que significa que sua
realização depende da implementação de políticas públicas
estatais, do cumprimento de certas prestações sociais por parte
do Estado, tais como: saúde, educação, trabalho, habitação,
previdência e assistência social. O surgimento dessa segunda
dimensão de direitos é decorrência do crescimento demográfico,
da forte industrialização da sociedade e, especialmente, do
agravamento das disparidades sociais que marcaram a virada do
século XIX para o século XX. Reivindicações populares
começam a florescer, exigindo um papel mais ativos do Estado
na correção das fissuras sociais e disparidades econômicas, em
suma, na realização da justiça social – o que justifica a
intitulação desses direitos como “direito sociais”, não por
envolverem direitos de coletividades propriamente, mas por
tratarem de direitos que visam alcançar a justiça social.”
(Nathalia Masson, 2017, pág. 205)
A terceira geração denominada por Karel Vasak tem como basilar a
fraternidade, última expressão nos votos revolucionários, que se refere a solidariedade, a
coletividade, a direitos difusos, do qual são titulares todas as pessoas de forma
indivisível, tidos como transindividuais.

A citada autora se refere a eles como:

“Reconhecer a cruel realidade de que o mundo está partido, de


maneira abissal, entre nações desenvolvidas e nações
subdesenvolvidas foi elemento determinante para o desenrolar,
no final do século XX, de uma nova geração de direitos
fundamentais, uma terceira geração. Nesta apareceram os
direitos de fraternidade ou solidariedade que englobam, dentre
outros, os direitos ao desenvolvimento, ao progresso, ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, à autodeterminação dos
povos, à propriedade sobre o patrimônio comum da
humanidade, à qualidade de vida, os direitos do consumidor e da
infância e juventude.
Em síntese, são direitos que não se ocupam da proteção a
interesses individuais, ao contrário, são direitos atribuídos
genericamente a todas as formações sociais, pois buscam tutelar
interesses de titularidade coletiva ou difusa, que dizem respeito
ao gênero humano. É, pois, a terceira geração dos direitos
fundamentais que estabelece os direitos “transindividuais”,
também denominados coletivos – nos quais a titularidade não
pertence ao homem individualmente considerado, mas a
coletividade como um todo.” (Nathalia Masson, 2017, pág. 205)
Outros autores identificam algumas gerações a mais, a exemplo de Norberto
Bobbio e Paulo Bonavides. Para Bobbio, conforme explicita Nathália Masson, a quarta
geração de direitos tem relação com a pesquisa biológica, com a manipulação do
patrimônio genético dos indivíduos. Na sequência, Paulo Bonavides defende uma quinta
geração de direitos, que seria representada pelo direito à paz. (Nathalia Masson, 2017,
pág. 206).

III – LIBERDADE

Nas palavras de Ingo Sarlet, “a noção de dignidade repousa na autonomia


pessoal, isto é, na liberdade que o ser humano possui de, ao menos potencialmente,
formatar a sua própria existência e ser, portanto, sujeito de direitos”. Dessa forma, “já
não mais se questiona que a liberdade e os direitos fundamentais inerentes à sua
proteção constituem simultaneamente pressupostos e concretização direta da dignidade
da pessoa, de tal sorte que nos parece difícil questionar o entendimento de acordo com o
qual sem liberdade não haverá dignidade, ou, pelo menos, esta não estará sendo
reconhecida e assegurada. Convém não desconsiderara a circunstância de que a
dignidade sempre exige a liberdade”, embora a liberdade não seja toda a dignidade.
(Sarlet, 2019, pág. 127)
TRÁFICO DE DROGAS
FLAGRANTE DELITO

“A expressão flagrante deriva do latim ‘flagrare’ (queimar), e


‘flagrans’, ‘flagrantis’ (ardente, brilhante, resplandecente), que,
no léxico, significa acalorado, evidente, notório, visível,
manifesto. Em linguagem jurídica, flagrante seria uma
característica do delito, é a infração que está queimando, ou seja,
que está sendo cometida ou acabou de sê-lo, autorizando-se a
prisão do agente mesmo sem autorização judicial em virtude da
certeza visual do crime. Funciona, pois, como mecanismo de
autodefesa da própria sociedade”. (Renato Brasileiro, 2018, pág.
936)
HABEAS CORPUS nº 598.051-SP

Trata-se de Habeas Corpus impetrado contra acórdão proferido pelo


Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que reconheceu a licitude das provas obtidas
pelos policiais na casa do impetrante, logo após busca pessoal sem resultado.

Segundo consta da denúncia, os policiais em combate ao tráfico de


substância entorpecente avistaram o impetrante em atitude suspeita e decidiram abordá-
lo. Feita busca pessoal, não encontraram nada, mas foi-lhes franqueada a entrada na
casa do impetrante, onde encontraram maconha. In verbis:

“Consta dos inclusos autos de inquérito policial que no dia 17 de


março de 2017, por volta de 18:00 horas, na travessa da rua João
José de Queiroz [...], nesta capital e comarca, o denunciado tinha
em depósito e guardava, para fins de comércio, 72 invólucros
plásticos de maconha, pesando 109,9 gramas, tudo descrito no
laudo de constatação, conforme fls. do apenso, substância esta
que causa dependência física e psíquica, sem autorização e em
desacordo com determinação legal ou regulamentar. Segundo o
apurado, o denunciado encontrava-se em atitude suspeita,
desviando-se da viatura policial após fitá-la. Na ocasião,
policiais em combate à prática de tráfico de substância
entorpecentes decidiram intervir e abordá-lo e na busca pessoal
nada foi encontrado com ele. Entretanto, interpelado sobre sua
residência, informou estar próximo e franqueou a entrada dos
policiais no local. No interior da residência, os policiais
encontraram dentro do armário da cozinha uma bolsa com 72
invólucros plásticos contendo maconha, ocasião em que ele
admitiu a posse para venda.” (Trecho da Denúncia constante do
Voto do Senhor Ministro Rogério Schietti Cruz, no inteiro teor
do HC nº 598.051)
Nenhum dos órgãos julgadores/competentes, em São Paulo, reconheceu
ilicitude na conduta dos policiais que, em depoimento, confirmaram a autorização de
ingresso na residência. A defesa provocou o Magistrado, quando da instrução do
processo, e os Desembargadores, em apelação e embargos de declaração, e, recebendo
respostas negativas aos pleitos, impetrou Habeas Corpus.

O Habeas Corpus nº 598.051-SP teve relatoria do Ministro Rogério Schietti


Cruz e, como afirmou a Ministra Laurita Vaz, trata-se de voto “laborioso e percuriente
(....), um primor, com importantes referências doutrinárias e jurisprudenciais (...), é
digno de ser reproduzido para balizar estudos e elaboração de políticas criminais”
(Voto-vogal).

Nos dedicamos às minucias deste voto nas páginas que seguem.

Pois bem.

O Excelentíssimo Ministro abre seu voto com um brado de proteção à


liberdade, da autoria de William Pitt, segundo o qual o mais simples dos homens tem
garantido, em sua casa, o direito de privacidade, intimidade, inviolabilidade, que nem o
mais abastado dos homens pode infringir.

Em sábias palavras afirma que: “o homem mais pobre pode em sua cabana
desafiar todas as forças da Coroa. Pode ser frágil, seu telhado pode tremer, o vento pode
soprar por ele, a tempestade pode entrar, a chuva pode entrar, mas o Rei da Inglaterra
não pode entrar!”1.

A referência à Inglaterra amolda-se perfeitamente ao objeto da ação


mandamental em questão, que, em apertada síntese, se refere a limitação do poder
estatal em face do cidadão, com ênfase na inviolabilidade do domicílio.

1
Passagem extraída do HC em discussão, no voto do Ministro Rogério Schietti Cruz, com a seguinte
referência: William Pitt, Earl of Chatham. Speech, March 1763, in Lord Brougham Historical Sketches of
Statesmen in the Time of George III First Series (1845) vol. 1.
Na Inglaterra, a assinatura da Magna Carta, ainda no século XIII,
reconhecendo liberdades a barões ingleses em detrimento do poder autoritário exercido
pelo Rei, é marco constitucional e civilizatório para o Ocidente. Alguns séculos depois,
surge o remédio constitucional Habeas Corpus, oriundo do direito inglês, que tem a
liberdade como supremo dom.

Ademais, a título de complementação apenas, William Pitt foi estadista


britânico; integrava a corrente dos patriotas na política inglesa; acreditava na expansão
britânica marítima; defendeu a resistência dos colonos americanos à Lei do Selo, numa
tentativa de impedir a guerra da independência americana; proferiu discurso contra a
independência americana etc. Em tudo, defendeu seu país, inclusive opondo-se à
política do rei Jorge II.2

Após tal brilhante abertura, o voto do Ministro Rogério seguiu com o


contexto do caso que, como afirmado acima, versa sobre a nulidade das provas obtidas a
partir da entrada de policiais na residência de transeunte que, apesar de ostentar atitude
suspeita, não tinha consigo drogas (busca pessoal infrutífera) e franqueou a entrada em
sua casa.

A partir dessa situação fática, o Relator formulou as seguintes questões:

a) “Na hipótese de suspeita de flagrância delitiva, qual a exigência, em


termos de standart probatório, para que policiais ingressem no
domicílio do suspeito sem mandado judicial?
b) O crime de tráfico ilícito de entorpecentes, classificado como de
natureza permanente, autoriza sempre o ingresso sem mandado no
domicílio onde supostamente se encontra a droga?
c) O consentimento do morador, para validar o ingresso no domicílio e a
busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, sujeita-se a quais
condicionantes de validade?
d) A prova dos requisitos de validade do livre consentimento do
morador, para o ingresso em seu domicílio sem mandado, incumbe a
quem, e de que forma pode ser feita?
e) Qual a consequência, para a ação penal, da obtenção de provas contra
o investigado ou réu, com violação a regras e condições legais e
constitucionais para o ingresso no seu domicílio?”

Na sequência, fez referência a outros julgados da Corte que versaram sobre


o mesmo tema e externa preocupação com a segurança necessária à comprovação do

2
William Pitt, 1.º Conde de Chatham – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
consentimento do morador. Lembrou que os Tribunais norte-americanos costumam
exigir dados de origem da informação e suportes à veracidade e à confiabilidade dela.

Sobre a primeira questão, referente às provas ou aos indícios balizadores da


permissão de ingresso em domicílio, o voto apresenta o conceito de standards de prova,
segundo o qual há graus de certeza para cada medida. Para condenação, as provas
devem atingir patamar de “além da dúvida razoável”, e para ingresso no domicílio, os
requisitos são mais precários e flexíveis.

Entretanto, tal relativização no grau de prova não minora o dever de


fundamentação e aferição dos requisitos para ingresso no domicílio, requisitos que o
Ministro chamou de “parâmetros objetivos de justificação”. Dado o caráter de restrição
de direitos fundamentais, tal medida sofre controle judicial, que define a licitude ou não
da ação.

Acrescenta, em seguida, a regra constitucional de que “a casa é asilo


inviolável do indivíduo”, prevista no rol do artigo 5º da Constituição da República,
vinculada à proteção da vida privada e ao direito à intimidade, tendo a casa como
“projeção espacial da privacidade e da intimidade” (Luiz Alberto David Araújo e Nunes
Júnior). Firma, nesse contexto, as exceções previstas, enumerando-as dessa forma: “a)
se o morador consentir; b) em flagrante delito; c) em caso de desastre; d) para prestar
socorro; e) durante o dia, por determinação judicial”.

Sobre tais exceções, trouxe o entendimento de que, embora o flagrante


delito se amolde aos crimes permanentes, tais como o tráfico de drogas, o Supremo
Tribunal Federal decidiu que:

“a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é


lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em
fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que
indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito,
sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente
ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”. (Tema 280
do STF)
Tais “fundadas razões” não podem ter origem em “provas ilícitas,
informações de inteligência policial – denúncias anônimas, afirmações de informantes
policiais (...)- e, em geral, elementos que não têm força probatória em juízo” (RE nº
603616/RO). Nesse julgado foi colacionado depoimento do ex-Secretário de Segurança
Pública do Rio de Janeiro, sobre operações no Complexo do Alemão com flagrante
abuso na interpretação das exceções constitucionais. Ademais, na conclusão do voto do
Recurso Extraordinário citado, firmou-se a necessidade de evolução jurisprudencial,
para garantia de segurança aos indivíduos sujeitos à medida e aos policiais agentes da
medida.

As preocupações com o que seria flagrante delito e como prová-lo levaram


o Ministro Marco Aurélio a questionar por que ao juiz é permitido, apenas, determinar
busca e apreensão durante o dia, mas ao policial, a partir de capacidade intuitiva, é
permitido, simplesmente, entrar na casa das pessoas. Concluiu, com isso, que a garantia
constitucional de inviolabilidade do domicílio é esvaziada pela repercussão fática de tal
exceção constitucional.

O Ministro Rogério, na sequência de seu voto, apresenta a atividade policial


brasileira como gestão da prisão em flagrante, tendo como base o índice de que 91% das
prisões são realizadas a partir da entrada de policiais nos domicílios, sem ordem
judicial, com fundamento no “flagrante delito”.

Acrescenta, ainda, que estas operações policiais não violam apenas o


investigado, mas atingem todos os moradores da casa, a família, a comunidade em que
vivem, entre outros. Isso porque os agentes policiais realizam suas operações como
força do Estado, munidos de armas, de aparatos de proteção e em pluralidade de
agentes. Certamente, não é algo confortável, prazeroso, à comunidade, sobretudo
quando tais operações são corriqueiras.

Cabe aqui, em adendo, referência ao HC 588445, no qual restou decidida a


licitude na busca e apreensão efetuada por policiais, sem prévio mandado judicial, em
apartamento inabitado, desde que haja fundada suspeita de que o imóvel é utilizado para
a prática de tráfico de drogas. Julgado que será analisado em sequência.

Ademais, afirma o Ministro Rogério que a constatação de flagrância deve


ser anterior ao ingresso dos agentes policiais na residência, não bastando a comprovação
posterior à operação. E, nesse ponto, indaga a licitude, além da repercussão social, dos
casos em que as investidas policiais não constatam crime, em que não são encontrados
indícios ou provas para futura ação penal.

De todo modo, ao aferir que as hipóteses autorizadoras são circunscritas às


nuances do flagrante, o Ministro faz referência, em contraponto, ao entendimento da
Corte norte-americana, que prefere o mandado de buscas, submetendo a análise das
circunstâncias à apreciação judicial antes da operação na residência. A título de
exemplo tem-se o caso Illinois v. Gates (1983).

Toma nota de uma segunda referência, na legislação espanhola, que


estabelece os requisitos de probabilidade da causa, circunstância urgente e perigo de
dano na demora.

Noutro giro, abre a discussão sobre o caráter de permanência do tráfico de


drogas. Por ser crime permanente, em que a flagrância se protrai no tempo, toda e
qualquer situação de tráfico de drogas legitima a entrada de agentes de segurança
pública na residência das pessoas?

Para exemplificar tal questão, o Ministro Relator apresenta duas situações


hipotéticas lastreadas por evidências consistentes de flagrância, tais como: a)
“determinado indivíduo, surpreendido comprovadamente comercializando certa
quantidade de drogas, empreende fuga para o interior de sua residência e,
imediatamente, é perseguido por policiais”; b) “os agentes estatais, realizando campana
defronte a uma casa, registram o movimento de ingresso e saída de pessoas, após curto
período de permanência, sugerindo o comércio de drogas, em confirmação a notícia
anterior recebida”.

E, em seguida, apresenta hipóteses em que a flagrância não é facilmente


percebida, a exemplo de informações, fornecidas por usuários, de que adquirem suas
drogas em determinada residência. Nessas hipóteses menos lastreadas faz-se necessária
ponderação sobre o tipo de ação preventiva e qual o procedimento.

Em arremate, o Ministro afirma que “seria, portanto, válido, em algumas


situações, dispensar o mandado judicial, ante a perspectiva de que, no intervalo de
tempo para a obtenção da ordem, ocorra a destruição do próprio corpo de delito. Nada
obstante, como tal quadro não é tão corriqueiro, melhor seria termos o trabalho policial
bem feito, primando pela segurança de suas ações e não transigindo com a preservação
das liberdades públicas”.

Dessa forma, - e tendo colacionado o entendimento de Gisela Wanderley,


Celso Delmanto, Ingo Sarlet e Ana Maria Campos Tôrres-, decidiu que nem toda
situação de flagrância autoriza ingresso domiciliar, pois nem sempre tal circunstância
exige urgência. Em resumo, tais autores diferenciam crimes como tráfico de drogas dos
crimes como o sequestro; permanentes, mas com diversos potenciais de urgência.
Concluem que “somente situações que exigem uma urgente intervenção policial
autorizam o ingresso domiciliar sem mandado” (Voto do Relator, pg. 41).

Como confirmação estrangeira, o Ministro Relator menciona a “exigente


circumstances” do direito norte-americano, que autoriza buscas, em local habitado e
sem ordem judicial, em determinadas hipóteses, tais como: quando ouvidos gritos por
ajuda; para inibir destruição de provas; para perseguir criminoso em fuga; e quando
impossível aguardar o mandado.

De todo modo, preocupa-se o Ministro com a avaliação das justificativas


para o ingresso no domicílio alheio. Avaliação que deve ser rigorosa em apresso à
situação concreta de urgência.

Portanto, nem toda situação de flagrância em crimes de tráfico de drogas


justificaria a entrada sem mandado judicial em domicílio. Somente as que são
qualificadas pela urgência, seja diante dos fortes indícios da prática de crime ou do
comprometimento da apreensão da droga e da prisão do suspeito.

No capítulo seguinte do voto, o Ministro Rogério dispõe sobre o


consentimento do morador para o ingresso policial na residência.

De início, faz referência a dois julgados dos Tribunais Superiores (REsp nº


1.558.004/RS e RE 603.616) que tangenciam requisitos para validade do
consentimento, e ao artigo 248 do CPP, segundo o qual “a busca será feita de modo que
não moleste os moradores mais do que o indispensável para o êxito da diligência”.

Segundo o Ministro, a premente ausência de requisitos torna obsoleta a


proteção constitucional, sobretudo quando consideradas as abordagens policiais a partir
de vestimenta, postura corporal, características físicas, localidade etc.

Sobre esse tema, aponta algumas recentes notícias de operações policiais,


tais como: a) o ingresso de policiais militares em residência indicada por flagranteada,
que portava cocaína e maconha; local em que apreenderam crack e cocaína com outros
dois indivíduos, mas encontraram a dona da casa dormindo; b) ingresso de policiais
militares em apartamentos sem mandado judicial e a realização de revistas pessoais
aleatórias nos corredores do edifício, inclusive com cães farejadores, a partir de uma
denúncia. Um dos revistados relatou que os policiais bateram em sua porta, colocaram a
arma em seu rosto e perguntaram se poderiam entrar para ver se tinha algo, bem como
afirmaram que não tinha como dizer não; c) varredura de uma casa, onde encontraram
crack e dinheiro em notas miúdas, às 23 h, no domingo, a partir de várias denúncias de
traficância e da fuga de um menor de idade que deixou cair 25 pedras de crack e foi
apreendido na posse de mais crack e dinheiro.

Em contraponto à falta de requisitos no direito brasileiro para o


consentimento, o Ministro Relator fez referência ao direito norte-americano, no qual
restou estabelecido que o consentimento do morador, “para ser válido, deve ser
inequívoco, específico e conscientemente dado, não contaminado por qualquer
truculência ou coerção” (Voto do Ministro Rogério, com referência ao United States v
McCaleb, 552 F2d 717, 721 (6th Cir 1977), citing Simmons v Bomar, 349 F2d 365, 366
(6th Cir 1965), além de que “o Estado carrega o ônus de provar que o consentimento
foi, de fato, livre e voluntariamente dado”.

Ainda nesse ponto, afirma que a Corte Norte-Americana prestigia, quando


da análise do consentimento, os fatos relativos ao próprio suspeito e os fatores que
sugerem coação, bem como qualquer outra hipótese que poderia interferir no livre
consentimento. Tudo isto no teste da “totality of circumstances”, prestigiando sempre o
livre e voluntário consentimento, que é ônus do promotor de justiça provar.

Especificando as diretrizes para aferição da validade do consentimento no


direito norte-americano, o Ministro Rogério elenca os seguintes tópicos a serem
analisados a partir da situação fática: a) número de policiais; b) suspeito cercado de
policiais; c) atitude dos policiais; d) exigência da busca; e) ameaças ao suspeito; f) hora
da diligência.

Em seguida, ao analisar o direito na Europa, especifica os seguintes


requisitos para validade do consentimento no direito espanhol: a) consentimento por
pessoa capaz, maior de idade e no exercício de seus direitos; b) consentimento
consciente e livre que b.1 não esteja invalidado por erro, violência ou intimidação, b.2
não seja condicionado a alguma circunstância, como promessas de qualquer atuação
policial, b.3 precedida da assistência de um defensor quando a pessoa estiver presa ou
detida (esta última em proteção a “intimidação ambiental” ou coação que a presença dos
agentes policiais representa); c) prestado por escrito ou por meio oral, mas sempre
vertido documentalmente; d) expresso, proibido consentimento tácito; e) consentimento
dado pelo titular do domicílio; f) consentimento para um determinado caso concreto; g)
dispensadas formalidades.

Insta afirmar que, - e o Ministro Relator parte do entendimento de Cleunice


Pitombo sobre o assunto-, o consentimento não se presume. Deve ser expresso.

Embora haja jurisprudência afirmativa sobre a importância e credibilidade


dos policiais militares (aos quais nos referenciaremos mais adiante), o Ministro Rogério
afirma que, - com base em parecer de Salo de Carvalho e de Mariana de Assis Brasil e
Weigert, oriundo de observação empírica e dados coletados por institutos de pesquisa-,
“não se pode deferir total credibilidade à palavra de policiais militares daquele estado
(Rio de Janeiro), quando depõem, como testemunhas, em processo criminal instaurado
contra pessoa objeto da atuação castrense”.

Diante dessa desconfiança, além de não poder ser presumido, o


consentimento deve ser registrado.

O Ministro toma como exemplo o direito francês e o português, que exigem


consentimento do titular do domicílio de forma expressa e registrada, e o norte-
americano, em que o consentimento é provado a partir do preenchimento de um
formulário. De todo modo, neste último, há previsão de que a recusa em assinar o
formulário não impede a busca, se comprovada a voluntariedade do consentimento de
outra forma.

Quanto ao direito brasileiro e à recorrente invasão de domicílios pela


Polícia, sob justificativa de combate ao tráfico de drogas no Rio de Janeiro, o Relator
fez referência ao julgamento da ADPF 635. Firme no propósito de minimizar efeitos da
necropolítica nesse Estado, a citada ADPF se tornou marco importante na “preservação
dos direitos fundamentais de parte da população que, com sua invisibilidade econômica
e social, vê-se em permanente estado de tensão e, em algumas localidades, até de terror
(...)”.

E, trazendo outros julgados, o Ministro Rogério observa a razoabilidade do


consentimento e a necessidade de documentar as razões que justificaram a medida, em
similaridade/semelhança com o decidido pela Corte Suprema para o uso de algemas.
Faz-se necessário ilidir qualquer dúvida quanto a legalidade da operação e
quanto ao consentimento do morador, sendo indispensável o “registro detalhado da
operação de ingresso em domicílio alheio, com a assinatura do morador em autorização
que lhe deverá ser disponibilizada antes da entrada em sua casa, indicando, outrossim,
nome de testemunhas tanto do livre assentimento quanto da busca, em auto
circunstanciado”. Afirma a necessidade de que o registro se dê em vídeo e áudio.

Notadamente sobre a gravação das diligências em vídeo e áudio, aduz o


Relator que algumas corporações militares, a exemplo da Policia Militar de Santa
Catarina e do Estado de São Paulo, já adquiriram os materiais e estão equipando seus
agentes com câmeras acopladas ao uniforme ou capacete.

Tal medida resguardará os agentes policiais e os cidadãos, provendo “meios


probatórios muito mais fidedignos em relação aos fatos e mais confiáveis do que a mera
reprodução de testemunhas”. “É indispensável, para a própria credibilidade e idoneidade
da prova colhida na cena do crime, e para a maior segurança do Ministério Público (para
acusar) e do Judiciário (para julgar) que a atuação estatal seja devidamente registrada e
testemunhada por pessoas que não apenas os próprios responsáveis pela diligência da
qual resulta a prisão em flagrante do suspeito”.

Em seguida, fez referência ao Relatório Final da Pesquisa sobre as


Sentenças Judiciais por Tráfico de Drogas, feita pela Defensoria Pública do Rio de
Janeiro. Referência que fez nos seguintes termos:

A esse respeito, trago à baila o Relatório Final da Pesquisa


Sobre as Sentenças Judiciais por Tráfico de Drogas, realizada
pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, a partir do exame de
um total de 2.591 sentenças prolatadas pelos juízos da Capital e
Região Metropolitana do Rio de Janeiro, no período entre agosto
de 2014 e janeiro de 2016, relacionadas ao cometimento de
crimes de tráfico de entorpecentes em geral. A pesquisa permitiu
concluir, no tocante à prova oral produzida, que, em 62,33% dos
casos o agente de segurança foi o único a prestar testemunho nos
autos. E, tendo em vista a expressiva quantidade de sentenças
em que a única testemunha ouvida foi o agente de segurança,
apurou-se que, em 53,79% dos casos, o depoimento do agente
de segurança foi a principal prova valorada pelo juiz para
alcançar sua conclusão. E com base em um universo de 1.979
casos em que a condenação foi baseada principalmente no
depoimento dos agentes de segurança, foi possível observar que
em 71,14% as únicas testemunhas ouvidas na instrução penal
foram os próprios agentes de segurança. (Disponível em
http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/4fab66cd44ea4
68d9df83d091 3fa8a96.pdf. Acesso em 8/10/2020). A pesquisa
não detalha em quantos desses casos de condenação por crime
de tráfico, nos quais a palavra dos agentes policiais foi
determinante, derivaram de ingresso no domicílio do acusado,
mas, seguramente – pelas regras de experiência decorrentes do
exame de milhares de processos dessa natureza aqui no STJ – a
grande maioria das condenações tomou como referência
principal, senão exclusiva, o depoimento dos policiais militares
que, ao ingressarem na residência do suspeito, ali encontraram
drogas. E conquanto não se possa, a priori, desmerecer a
credibilidade e autenticidade de depoimentos prestados por
quaisquer pessoas, especialmente quando são servidores
públicos, há de se ter certa cautela em hipóteses nas quais a
única prova da legalidade da ação estatal é o depoimento
exatamente dos agentes públicos cujo procedimento deve ser
sindicado pelo exame das circunstâncias autorizadoras do
ingresso domiciliar.

Pondo fim aos fundamentos jurídicos e adentrando à análise do caso


concreto, o Ministro Relator entendeu “inverossímil a versão policial” de que, - após
denúncia a respeito de suposto tráfico de drogas, abordagem do ora paciente (cuja
aparência coincidia com a descrição da denúncia) e busca pessoal infrutífera –, os
policiais perguntaram o endereço do cidadão e este, prontamente, os levou até sua
residência e franqueou a entrada, permitindo que os agentes encontrassem drogas no
armário da cozinha.

O Relator entendeu inverossímil e afirmou que “se de um lado se deve,


como regra, presumir a veracidade das declarações de qualquer servidor público, não se
há de ignorar, por outro lado, que o senso comum e as regras de experiência merecem
ser consideradas quando tudo indica não ser crível a versão oficial apresentada, máxime
quando interfere em direitos fundamentais do indivíduo e quando se nota um
indisfarçável desejo de se criar uma narrativa amparadora de uma versão que confira
plena legalidade à ação estatal”.

Trouxe em seu voto a descrição do paciente, que afirmou ser usuário de


drogas e estar em sua casa, no domingo, quando os policiais invadiram e encontraram a
droga.

Em qual das duas versões acreditar? Segundo o Ministro, “caberia aos


agentes que atuam em nome do Estado demonstrara, de modo inequívoco, que o
consentimento do morador foi livremente prestado, ou que, na espécie, havia em curso
na residência uma clara situação de comércio espúrio de droga, a autorizar, pois, o
ingresso domiciliar mesmo sem consentimento do morador”. Isso porque na dúvida,
privilegia-se o réu, titular do direito atingido.

Firmou, então, seu entendimento sobre os fatos com nos seguintes termos:
“tenho, assim, que a descoberta a posteriori de uma situação de flagrante decorreu de
ingresso ilícito na moradia do paciente, em violação a norma constitucional que
consagra direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, o que torna imprestável, no
caso concreto, a prova ilicitamente obtida e, por conseguinte, todos os atos dela
decorrentes e a própria ação penal, apoiada exclusivamente nessa diligência policial”.

Fez referência à Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada, que “repudia as


provas supostamente lícitas e admissíveis, obtidas, porém, a partir de outra contaminada
por ilicitude original”. E, após, reconheceu nexo causal entre a invasão de domicílio e a
apreensão de drogas.

Concluiu o seguinte: “Portanto, pelo contexto fático delineado nos autos,


entendo que não havia elementos objetivos e racionais que justificassem a invasão de
domicílio e que não há circunstâncias que autorizem concluir ter havido consentimento
válido e livre do morador para o ingresso dos policiais em sua respectiva residência. Eis
a razão pela qual, dado que a casa é asilo inviolável do indivíduo, desautorizado estava
o ingresso na residência do paciente, de maneira que as provas obtidas por meio da
medida invasiva são ilícitas, bem como todas as que delas decorreram”.

E, diante da importância desse entendimento, o Ministro determinou a


“necessária e urgente comunicação imediata dessa decisão colegiada aos governos
estaduais, para que providenciem treinamento e condições materiais a seus agentes de
segurança pública, de modo a que possam observar as regras constitucionais
densificadas no presente julgado”. No fim do voto determinou a comunicação do
decisum aos “Presidentes dos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Presidentes dos
Tribunais Regionais Federais, bem como ao Ministro da Justiça e Segurança Pública e
aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal, encarecendo a este últimos que
deem conhecimento da decisão a todos os órgãos e agentes da segurança pública
federal, estadual e distrital, respectivamente”.
Ademais, entendeu importante fazer referência à decisão da Corte
Interamericana de Direitos Humanos que condenou a Argentina “por atuações indevidas
de policiais que, em nome da guerra ao tráfico, violaram direitos fundamentais de
investigados”.

No tópico “conclusões”, apresentou suas respostas às perguntas formuladas


no início. In verbis:

a) Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige-se, em termos de


standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem
mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas
de modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que
dentro da casa ocorre situação de flagrante delito.
b) O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser classificado como
crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem
mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas
será permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir
que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa
objetiva e concretamente inferir que a prova do crime (ou a própria
droga) será destruída ou ocultada.
c) O consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais
em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime,
precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou
coação.
d) A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o
ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao
Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que
autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível,
testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em
áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo.
e) A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o
ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em
decorrência da medida, bem como das demais provas que dela
decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual
responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m)
realizado a diligência.

Dispositivo: À vista de todo o exposto, considerando que não houve


comprovação de consentimento válido para o ingresso no domicílio do paciente, voto
pela concessão da ordem de Habeas Corpus, de sorte a reconhecer a ilicitude das provas
por tal meio obtidas, bem como de todas as que delas decorreram, e, por conseguinte,
absolver o paciente.

REFERÊNCIAS

Brasil, Superior Tribunal de Justiça, HABEAS CORPUS nº 598.051-SP.

Filho, Wagner Marteleto. Dolo e risco no direito penal. Fundamentos e limites para a
normativização. Ed. Marcial Pons. São Paulo. 2020.

Masson, Nathalia. Manual de Direito Constitucional. Ed. Juspodium. 5ª Edição. 2017.

Miranda, Pontes. História e Prática do Habeas-Corpus, Editor Borsoi, Rio de Janeiro,


tomo I, 7ª Edição, 1972.

Sarlet, Ingo. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Ed. Livraria do Advogado. 13ª
Edição, Revista e Atualizada. Porto Alegre, 2018.

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