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FACULDADE CERS

CURSO CEI

Pós-Graduação em Direito Constitucional

Ana Luíza Aguilar de Rezende

HABEAS CORPUS Nº 598.051-SP

BELO HORIZONTE

2021
Ana Luíza Aguilar de Rezende

HABEAS CORPUS Nº 598.051-SP

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentada como requisito parcial
para a obtenção do título de
especialista perante a Faculdade
CERS, em convênio com o Curso CEI,
no Curso de Pós-Graduação em
Direito Constitucional.

Orientador: Thiago Fensterseifer

BELO HORIZONTE
2021

FOLHA DE APROVAÇÃO

Monografia intitulada “HABEAS CORPUS Nº 598.051-SP” apresentada pela


aluna Ana Luíza Aguilar de Rezende, para a obtenção do título de especialista,
perante o Curso CEI e a a Faculdade CERS.

Belo Horizonte, 29 de dezembro de 2021.

Nota:__________________________________________
Avaliador:_____________________________________
RESUMO

Trata-se de trabalho de conclusão de curso que versa sobre o direito fundamental


a inviolabilidade do domicílio e sua mitigação nos casos de flagrante delito. Para tanto,
parte-se do Habeas Corpus nº 598.051-SP, que definiu alguns parâmetros para a
legalidade da atuação policial e de conceitos inerentes ao caso, tais como liberdade, crime
e flagrante delito.

Palavras-chave: direitos fundamentais, habeas corpus, domicílio, crime, atuação policial.


LISTA DE ABREVIATURAS

CP- Código Penal

CPP - Código de Processo Penal

STJ - Superior Tribunal de Justiça

STF – Supremo Tribunal Federal

EUA – Estados Unidos da América


SUMÁRIO

I- PRÓLOGO
II- HABEAS CORPUS Nº 598.051-SP
III- DIREITOS FUNDAMENTAIS E HUMANOS
IV- ORIGEM DO HABEAS CORPUS
V- CONCLUSÃO
VI- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PRÓLOGO

Trata-se de pesquisa sobre a minoração de direitos fundamentais quando em


confronto com a prática de crime, em especial com fundamento no HABEAS CORPUS
nº 598.051-SP.

Crime é um fato típico, antijurídico e culpável, para os adeptos da teoria


tripartite (maioria da doutrina brasileira). Para os doutrinadores bipartites, crime é tipo de
injusto culpável. De todas as doutrinas que conceituam o crime, uma coisa é certa, é um
fato típico, ilícito e culpável que modifica o transcurso regular da sociedade.

Em complementação, para Wagner Marteleto Filho, “a ação constitui um ato


de comunicação do sujeito que, no plano do Direito Penal, configura uma falha em face
das exigências de cooperação feitas pela comunidade jurídica”. (Marteleto Filho, 2020,
pág. 50)

Para melhor definir o crime, ou para estabelecer uma metodologia para estudo
dele, os pensadores conceituaram tal fenômeno de acordo com o que tinham como teorias
sociais. Dessa forma, as teorias do crime são fortemente influenciadas pelas vertentes
filosóficas de cada época, seja naturalista - influenciada pela ciência-, seja valorativa – a
partir da influência de Kant-, entre outras, o conceito de crime é objeto de estudo.

Para os causalistas, inspirados nos pensamentos iluministas, na efervescência


da ciência e na criação de métodos, crime é fato mecânico (movimento) que tem o condão
de provocar o resultado (modificação do mundo exterior). Embora tenham tentado, não
eram capazes de explicar os crimes omissivos e os crimes sem resultado, que fugiam do
conceito mecânico de fato que modifica a realidade externa.

Novas teorias sociais surgiram, entre elas os pensamentos de Kant, que


impulsionaram os doutrinadores a perceber a necessidade de inserir no conceito de crime
aspectos de valor. O crime deixaria de ser um movimento corporal para abarcar elementos
valorativos, incrementando a teoria do tipo com aspectos interpretativos do que seria a
conduta ilícita.

Tal doutrina não foi suficiente para explicar o fenômeno criminológico, tendo
os próximos doutrinadores criado a teoria finalista, para a qual o crime precisa ser
definido pela finalidade do autor. Várias condutas, na percepção do observador externo,
poderiam ser definidas de diferentes formas, de modo que o elemento subjetivo, a
finalidade do autor, seria imprescindível para definição da conduta.

A teoria finalista realocou os elementos do crime, trazendo o dolo e a culpa


para a definição de fato, estabelecendo no fato típico aspectos subjetivos e deixando à
culpabilidade características normativas.

Esta última teve tamanha aceitação no mundo jurídico que é aceita pela
grande maioria dos doutrinadores, sendo acolhida pelo Código Penal brasileiro. Não
obstante, a teoria social da ação, os funcionalistas (Roxin e Jakobs, por exemplo), o
garantismo e outras doutrinas que se dedicam a esse estudo avançaram sobremaneira o
conceito de crime e o impacto que ele tem na sociedade.

Aliado à teoria do crime, há os que estudam os efeitos que o crime, o


criminoso e a sociedade causam entre si. Em detida análise sobre quem é o criminoso,
sobre qual crime é mais incidente em determinada localidade ou sobre o porquê de
determinada tipificação, a doutrina avança na identificação do problema da criminalidade.

A tal matéria deu-se o nome de criminologia, que tem por fim identificar,
estudar, analisar o fenômeno criminógeno a partir do quadro social ou da comunidade,
desapegando-se da estrita legalidade para questionar, também, a escolha das condutas
definidas como crime.

A título de exemplo, há a criminologia positiva, a ideologia da defesa social,


as teorias psicanalíticas da criminalidade, a teoria estrutural-funcionalista, as teorias das
subculturas criminais, a teoria das técnicas de neutralização, o “labeling approach”
(reação social), as teorias do conflito, a criminologia crítica etc. Todas essas questionam
aspectos outros que não a conceituação do crime de forma analítica.

Mas, de todo modo, a definição do fato como criminoso demanda análise


minuciosa e específica, o que, em outros termos, demanda tempo e muito cuidado.
Ingredientes que são ausentes na prática penal brasileira, por uma infinidade de razões.

O que importa afirmar aqui é que esses aspectos, tempo e cuidado que formam
a justificativa de um processo justo, não são os que imperam quando consideramos a ação
de um policial que se vê diante de uma conduta que ele, supostamente, entenda ser
criminosa.
Por vezes, o flagrante delito é muito rápido, no sentido de que não permite
uma maior consideração sobre a conduta, e mesmo assim dá vazão à minoração de direitos
fundamentais, tais como a inviolabilidade do domicílio.

Para análise destes fatos, parte-se do habeas corpus, dos direitos fundamentais
e da doutrina deste remédio constitucional.
HABEAS CORPUS nº 598.051-SP

Trata-se de Habeas Corpus impetrado contra acórdão proferido pelo Tribunal


de Justiça do Estado de São Paulo que reconheceu a licitude das provas obtidas pelos
policiais na casa do impetrante, logo após busca pessoal sem resultado.

Segundo consta da denúncia, os policiais em combate ao tráfico de substância


entorpecente avistaram o impetrante em atitude suspeita e decidiram abordá-lo. Feita
busca pessoal, não encontraram nada, mas foi-lhes franqueada a entrada na casa do
impetrante, onde encontraram maconha. In verbis:

“Consta dos inclusos autos de inquérito policial que no dia 17 de


março de 2017, por volta de 18:00 horas, na travessa da rua João
José de Queiroz [...], nesta capital e comarca, o denunciado tinha
em depósito e guardava, para fins de comércio, 72 invólucros
plásticos de maconha, pesando 109,9 gramas, tudo descrito no
laudo de constatação, conforme fls. do apenso, substância esta
que causa dependência física e psíquica, sem autorização e em
desacordo com determinação legal ou regulamentar. Segundo o
apurado, o denunciado encontrava-se em atitude suspeita,
desviando-se da viatura policial após fitá-la. Na ocasião, policiais
em combate à prática de tráfico de substância entorpecentes
decidiram intervir e abordá-lo e na busca pessoal nada foi
encontrado com ele. Entretanto, interpelado sobre sua residência,
informou estar próximo e franqueou a entrada dos policiais no
local. No interior da residência, os policiais encontraram dentro
do armário da cozinha uma bolsa com 72 invólucros plásticos
contendo maconha, ocasião em que ele admitiu a posse para
venda.” (Trecho da Denúncia constante do Voto do Senhor
Ministro Rogério Schietti Cruz, no inteiro teor do HC nº 598.051)
Nenhum dos órgãos julgadores/competentes, em São Paulo, reconheceu
ilicitude na conduta dos policiais que, em depoimento, confirmaram a autorização de
ingresso na residência. A defesa provocou o Magistrado, quando da instrução do
processo, e os Desembargadores, em apelação e embargos de declaração, e, recebendo
respostas negativas aos pleitos, impetrou Habeas Corpus.

O Habeas Corpus nº 598.051-SP teve relatoria do Ministro Rogério Schietti


Cruz e, como afirmou a Ministra Laurita Vaz, trata-se de voto “laborioso e percuriente
(....), um primor, com importantes referências doutrinárias e jurisprudenciais (...), é digno
de ser reproduzido para balizar estudos e elaboração de políticas criminais” (Voto-vogal).
Nos dedicamos às minucias deste voto nas páginas que seguem.

Pois bem.

O Excelentíssimo Ministro abre seu voto com um brado de proteção à


liberdade, da autoria de William Pitt, segundo o qual o mais simples dos homens tem
garantido, em sua casa, o direito de privacidade, intimidade, inviolabilidade, que nem o
mais abastado dos homens pode infringir.

Em sábias palavras afirma que: “o homem mais pobre pode em sua cabana
desafiar todas as forças da Coroa. Pode ser frágil, seu telhado pode tremer, o vento pode
soprar por ele, a tempestade pode entrar, a chuva pode entrar, mas o Rei da Inglaterra não
pode entrar!”1.

A referência à Inglaterra amolda-se perfeitamente ao objeto da ação


mandamental em questão, que, em apertada síntese, se refere a limitação do poder estatal
em face do cidadão, com ênfase na inviolabilidade do domicílio.

Na Inglaterra, a assinatura da Magna Carta, ainda no século XIII,


reconhecendo liberdades a barões ingleses em detrimento do poder autoritário exercido
pelo Rei, é marco constitucional e civilizatório para o Ocidente. Alguns séculos depois,
surge o remédio constitucional Habeas Corpus, oriundo do direito inglês, que tem a
liberdade como supremo dom.

Ademais, a título de complementação apenas, William Pitt foi estadista


britânico; integrava a corrente dos patriotas na política inglesa; acreditava na expansão
britânica marítima; defendeu a resistência dos colonos americanos à Lei do Selo, numa
tentativa de impedir a guerra da independência americana; proferiu discurso contra a
independência americana etc. Em tudo, defendeu seu país, inclusive opondo-se à política
do rei Jorge II.2

Após tal brilhante abertura, o voto do Ministro Rogério seguiu com o contexto
do caso que, como afirmado acima, versa sobre a nulidade das provas obtidas a partir da

1
Passagem extraída do HC em discussão, no voto do Ministro Rogério Schietti Cruz, com a seguinte
referência: William Pitt, Earl of Chatham. Speech, March 1763, in Lord Brougham Historical Sketches of
Statesmen in the Time of George III First Series (1845) vol. 1.
2
William Pitt, 1.º Conde de Chatham – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
entrada de policiais na residência de transeunte que, apesar de ostentar atitude suspeita,
não tinha consigo drogas (busca pessoal infrutífera) e franqueou a entrada em sua casa.

A partir dessa situação fática, o Relator formulou as seguintes questões:

a) “Na hipótese de suspeita de flagrância delitiva, qual a exigência, em


termos de standart probatório, para que policiais ingressem no
domicílio do suspeito sem mandado judicial?
b) O crime de tráfico ilícito de entorpecentes, classificado como de
natureza permanente, autoriza sempre o ingresso sem mandado no
domicílio onde supostamente se encontra a droga?
c) O consentimento do morador, para validar o ingresso no domicílio e a
busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, sujeita-se a quais
condicionantes de validade?
d) A prova dos requisitos de validade do livre consentimento do morador,
para o ingresso em seu domicílio sem mandado, incumbe a quem, e de
que forma pode ser feita?
e) Qual a consequência, para a ação penal, da obtenção de provas contra
o investigado ou réu, com violação a regras e condições legais e
constitucionais para o ingresso no seu domicílio?”

Na sequência, fez referência a outros julgados da Corte que versaram sobre o


mesmo tema e externa preocupação com a segurança necessária à comprovação do
consentimento do morador. Lembrou que os Tribunais norte-americanos costumam exigir
dados de origem da informação e suportes à veracidade e à confiabilidade dela.

Sobre a primeira questão, referente às provas ou aos indícios balizadores da


permissão de ingresso em domicílio, o voto apresenta o conceito de standards de prova,
segundo o qual há graus de certeza para cada medida. Para condenação, as provas devem
atingir patamar de “além da dúvida razoável”, e para ingresso no domicílio, os requisitos
são mais precários e flexíveis.

Entretanto, tal relativização no grau de prova não minora o dever de


fundamentação e aferição dos requisitos para ingresso no domicílio, requisitos que o
Ministro chamou de “parâmetros objetivos de justificação”. Dado o caráter de restrição
de direitos fundamentais, tal medida sofre controle judicial, que define a licitude ou não
da ação.

Acrescenta, em seguida, a regra constitucional de que “a casa é asilo


inviolável do indivíduo”, prevista no rol do artigo 5º da Constituição da República,
vinculada à proteção da vida privada e ao direito à intimidade, tendo a casa como
“projeção espacial da privacidade e da intimidade” (Luiz Alberto David Araújo e Nunes
Júnior). Firma, nesse contexto, as exceções previstas, enumerando-as dessa forma: “a) se
o morador consentir; b) em flagrante delito; c) em caso de desastre; d) para prestar
socorro; e) durante o dia, por determinação judicial”.

Sobre tais exceções, trouxe o entendimento de que, embora o flagrante delito


se amolde aos crimes permanentes, tais como o tráfico de drogas, o Supremo Tribunal
Federal decidiu que:

“a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita,


mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas
razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que
dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de
responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da
autoridade e de nulidade dos atos praticados”. (Tema 280 do STF)
Tais “fundadas razões” não podem ter origem em “provas ilícitas,
informações de inteligência policial – denúncias anônimas, afirmações de informantes
policiais (...)- e, em geral, elementos que não têm força probatória em juízo” (RE nº
603616/RO). Nesse julgado foi colacionado depoimento do ex-Secretário de Segurança
Pública do Rio de Janeiro, sobre operações no Complexo do Alemão com flagrante abuso
na interpretação das exceções constitucionais. Ademais, na conclusão do voto do Recurso
Extraordinário citado, firmou-se a necessidade de evolução jurisprudencial, para garantia
de segurança aos indivíduos sujeitos à medida e aos policiais agentes da medida.

As preocupações com o que seria flagrante delito e como prová-lo levaram o


Ministro Marco Aurélio a questionar por que ao juiz é permitido, apenas, determinar
busca e apreensão durante o dia, mas ao policial, a partir de capacidade intuitiva, é
permitido, simplesmente, entrar na casa das pessoas. Concluiu, com isso, que a garantia
constitucional de inviolabilidade do domicílio é esvaziada pela repercussão fática de tal
exceção constitucional.

O Ministro Rogério, na sequência de seu voto, apresenta a atividade policial


brasileira como gestão da prisão em flagrante, tendo como base o índice de que 91% das
prisões são realizadas a partir da entrada de policiais nos domicílios, sem ordem judicial,
com fundamento no “flagrante delito”.

Acrescenta, ainda, que estas operações policiais não violam apenas o


investigado, mas atingem todos os moradores da casa, a família, a comunidade em que
vivem, entre outros. Isso porque os agentes policiais realizam suas operações como força
do Estado, munidos de armas, de aparatos de proteção e em pluralidade de agentes.
Certamente, não é algo confortável, prazeroso, à comunidade, sobretudo quando tais
operações são corriqueiras.

Cabe aqui, em adendo, referência ao HC 588445, no qual restou decidida a


licitude na busca e apreensão efetuada por policiais, sem prévio mandado judicial, em
apartamento inabitado, desde que haja fundada suspeita de que o imóvel é utilizado para
a prática de tráfico de drogas. Julgado que será analisado em sequência.

Ademais, afirma o Ministro Rogério que a constatação de flagrância deve ser


anterior ao ingresso dos agentes policiais na residência, não bastando a comprovação
posterior à operação. E, nesse ponto, indaga a licitude, além da repercussão social, dos
casos em que as investidas policiais não constatam crime, em que não são encontrados
indícios ou provas para futura ação penal.

De todo modo, ao aferir que as hipóteses autorizadoras são circunscritas às


nuances do flagrante, o Ministro faz referência, em contraponto, ao entendimento da
Corte norte-americana, que prefere o mandado de buscas, submetendo a análise das
circunstâncias à apreciação judicial antes da operação na residência. A título de exemplo
tem-se o caso Illinois v. Gates (1983).

Toma nota de uma segunda referência, na legislação espanhola, que


estabelece os requisitos de probabilidade da causa, circunstância urgente e perigo de dano
na demora.

Noutro giro, abre a discussão sobre o caráter de permanência do tráfico de


drogas. Por ser crime permanente, em que a flagrância se protrai no tempo, toda e
qualquer situação de tráfico de drogas legitima a entrada de agentes de segurança pública
na residência das pessoas?

Para exemplificar tal questão, o Ministro Relator apresenta duas situações


hipotéticas lastreadas por evidências consistentes de flagrância, tais como: a)
“determinado indivíduo, surpreendido comprovadamente comercializando certa
quantidade de drogas, empreende fuga para o interior de sua residência e, imediatamente,
é perseguido por policiais”; b) “os agentes estatais, realizando campana defronte a uma
casa, registram o movimento de ingresso e saída de pessoas, após curto período de
permanência, sugerindo o comércio de drogas, em confirmação a notícia anterior
recebida”.

E, em seguida, apresenta hipóteses em que a flagrância não é facilmente


percebida, a exemplo de informações, fornecidas por usuários, de que adquirem suas
drogas em determinada residência. Nessas hipóteses menos lastreadas faz-se necessária
ponderação sobre o tipo de ação preventiva e qual o procedimento.

Em arremate, o Ministro afirma que “seria, portanto, válido, em algumas


situações, dispensar o mandado judicial, ante a perspectiva de que, no intervalo de tempo
para a obtenção da ordem, ocorra a destruição do próprio corpo de delito. Nada obstante,
como tal quadro não é tão corriqueiro, melhor seria termos o trabalho policial bem feito,
primando pela segurança de suas ações e não transigindo com a preservação das
liberdades públicas”.

Dessa forma, - e tendo colacionado o entendimento de Gisela Wanderley,


Celso Delmanto, Ingo Sarlet e Ana Maria Campos Tôrres-, decidiu que nem toda situação
de flagrância autoriza ingresso domiciliar, pois nem sempre tal circunstância exige
urgência. Em resumo, tais autores diferenciam crimes como tráfico de drogas dos crimes
como o sequestro; permanentes, mas com diversos potenciais de urgência. Concluem que
“somente situações que exigem uma urgente intervenção policial autorizam o ingresso
domiciliar sem mandado” (Voto do Relator, pg. 41).

Como confirmação estrangeira, o Ministro Relator menciona a “exigente


circumstances” do direito norte-americano, que autoriza buscas, em local habitado e sem
ordem judicial, em determinadas hipóteses, tais como: quando ouvidos gritos por ajuda;
para inibir destruição de provas; para perseguir criminoso em fuga; e quando impossível
aguardar o mandado.

De todo modo, preocupa-se o Ministro com a avaliação das justificativas para


o ingresso no domicílio alheio. Avaliação que deve ser rigorosa em apresso à situação
concreta de urgência.

Portanto, nem toda situação de flagrância em crimes de tráfico de drogas


justificaria a entrada sem mandado judicial em domicílio. Somente as que são qualificadas
pela urgência, seja diante dos fortes indícios da prática de crime ou do comprometimento
da apreensão da droga e da prisão do suspeito.
No capítulo seguinte do voto, o Ministro Rogério dispõe sobre o
consentimento do morador para o ingresso policial na residência.

De início, faz referência a dois julgados dos Tribunais Superiores (REsp nº


1.558.004/RS e RE 603.616) que tangenciam requisitos para validade do consentimento,
e ao artigo 248 do CPP, segundo o qual “a busca será feita de modo que não moleste os
moradores mais do que o indispensável para o êxito da diligência”.

Segundo o Ministro, a premente ausência de requisitos torna obsoleta a


proteção constitucional, sobretudo quando consideradas as abordagens policiais a partir
de vestimenta, postura corporal, características físicas, localidade etc.

Sobre esse tema, aponta algumas recentes notícias de operações policiais, tais
como: a) o ingresso de policiais militares em residência indicada por flagranteada, que
portava cocaína e maconha; local em que apreenderam crack e cocaína com outros dois
indivíduos, mas encontraram a dona da casa dormindo; b) ingresso de policiais militares
em apartamentos sem mandado judicial e a realização de revistas pessoais aleatórias nos
corredores do edifício, inclusive com cães farejadores, a partir de uma denúncia. Um dos
revistados relatou que os policiais bateram em sua porta, colocaram a arma em seu rosto
e perguntaram se poderiam entrar para ver se tinha algo, bem como afirmaram que não
tinha como dizer não; c) varredura de uma casa, onde encontraram crack e dinheiro em
notas miúdas, às 23 h, no domingo, a partir de várias denúncias de traficância e da fuga
de um menor de idade que deixou cair 25 pedras de crack e foi apreendido na posse de
mais crack e dinheiro.

Em contraponto à falta de requisitos no direito brasileiro para o


consentimento, o Ministro Relator fez referência ao direito norte-americano, no qual
restou estabelecido que o consentimento do morador, “para ser válido, deve ser
inequívoco, específico e conscientemente dado, não contaminado por qualquer
truculência ou coerção” (Voto do Ministro Rogério, com referência ao United States v
McCaleb, 552 F2d 717, 721 (6th Cir 1977), citing Simmons v Bomar, 349 F2d 365, 366
(6th Cir 1965), além de que “o Estado carrega o ônus de provar que o consentimento foi,
de fato, livre e voluntariamente dado”.

Ainda nesse ponto, afirma que a Corte Norte-Americana prestigia, quando da


análise do consentimento, os fatos relativos ao próprio suspeito e os fatores que sugerem
coação, bem como qualquer outra hipótese que poderia interferir no livre consentimento.
Tudo isto no teste da “totality of circumstances”, prestigiando sempre o livre e voluntário
consentimento, que é ônus do promotor de justiça provar.

Especificando as diretrizes para aferição da validade do consentimento no


direito norte-americano, o Ministro Rogério elenca os seguintes tópicos a serem
analisados a partir da situação fática: a) número de policiais; b) suspeito cercado de
policiais; c) atitude dos policiais; d) exigência da busca; e) ameaças ao suspeito; f) hora
da diligência.

Em seguida, ao analisar o direito na Europa, especifica os seguintes requisitos


para validade do consentimento no direito espanhol: a) consentimento por pessoa capaz,
maior de idade e no exercício de seus direitos; b) consentimento consciente e livre que
b.1 não esteja invalidado por erro, violência ou intimidação, b.2 não seja condicionado a
alguma circunstância, como promessas de qualquer atuação policial, b.3 precedida da
assistência de um defensor quando a pessoa estiver presa ou detida (esta última em
proteção a “intimidação ambiental” ou coação que a presença dos agentes policiais
representa); c) prestado por escrito ou por meio oral, mas sempre vertido
documentalmente; d) expresso, proibido consentimento tácito; e) consentimento dado
pelo titular do domicílio; f) consentimento para um determinado caso concreto; g)
dispensadas formalidades.

Insta afirmar que, - e o Ministro Relator parte do entendimento de Cleunice


Pitombo sobre o assunto-, o consentimento não se presume. Deve ser expresso.

Embora haja jurisprudência afirmativa sobre a importância e credibilidade


dos policiais militares (aos quais nos referenciaremos mais adiante), o Ministro Rogério
afirma que, - com base em parecer de Salo de Carvalho e de Mariana de Assis Brasil e
Weigert, oriundo de observação empírica e dados coletados por institutos de pesquisa-,
“não se pode deferir total credibilidade à palavra de policiais militares daquele estado
(Rio de Janeiro), quando depõem, como testemunhas, em processo criminal instaurado
contra pessoa objeto da atuação castrense”.

Diante dessa desconfiança, além de não poder ser presumido, o


consentimento deve ser registrado.

O Ministro toma como exemplo o direito francês e o português, que exigem


consentimento do titular do domicílio de forma expressa e registrada, e o norte-
americano, em que o consentimento é provado a partir do preenchimento de um
formulário. De todo modo, neste último, há previsão de que a recusa em assinar o
formulário não impede a busca, se comprovada a voluntariedade do consentimento de
outra forma.

Quanto ao direito brasileiro e à recorrente invasão de domicílios pela Polícia,


sob justificativa de combate ao tráfico de drogas no Rio de Janeiro, o Relator fez
referência ao julgamento da ADPF 635. Firme no propósito de minimizar efeitos da
necropolítica nesse Estado, a citada ADPF se tornou marco importante na “preservação
dos direitos fundamentais de parte da população que, com sua invisibilidade econômica
e social, vê-se em permanente estado de tensão e, em algumas localidades, até de terror
(...)”.

E, trazendo outros julgados, o Ministro Rogério observa a razoabilidade do


consentimento e a necessidade de documentar as razões que justificaram a medida, em
similaridade/semelhança com o decidido pela Corte Suprema para o uso de algemas.

Faz-se necessário ilidir qualquer dúvida quanto a legalidade da operação e


quanto ao consentimento do morador, sendo indispensável o “registro detalhado da
operação de ingresso em domicílio alheio, com a assinatura do morador em autorização
que lhe deverá ser disponibilizada antes da entrada em sua casa, indicando, outrossim,
nome de testemunhas tanto do livre assentimento quanto da busca, em auto
circunstanciado”. Afirma a necessidade de que o registro se dê em vídeo e áudio.

Notadamente sobre a gravação das diligências em vídeo e áudio, aduz o


Relator que algumas corporações militares, a exemplo da Policia Militar de Santa
Catarina e do Estado de São Paulo, já adquiriram os materiais e estão equipando seus
agentes com câmeras acopladas ao uniforme ou capacete.

Tal medida resguardará os agentes policiais e os cidadãos, provendo “meios


probatórios muito mais fidedignos em relação aos fatos e mais confiáveis do que a mera
reprodução de testemunhas”. “É indispensável, para a própria credibilidade e idoneidade
da prova colhida na cena do crime, e para a maior segurança do Ministério Público (para
acusar) e do Judiciário (para julgar) que a atuação estatal seja devidamente registrada e
testemunhada por pessoas que não apenas os próprios responsáveis pela diligência da qual
resulta a prisão em flagrante do suspeito”.
Em seguida, fez referência ao Relatório Final da Pesquisa sobre as Sentenças
Judiciais por Tráfico de Drogas, feita pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
Referência que fez nos seguintes termos:

A esse respeito, trago à baila o Relatório Final da Pesquisa Sobre


as Sentenças Judiciais por Tráfico de Drogas, realizada pela
Defensoria Pública do Rio de Janeiro, a partir do exame de um
total de 2.591 sentenças prolatadas pelos juízos da Capital e
Região Metropolitana do Rio de Janeiro, no período entre agosto
de 2014 e janeiro de 2016, relacionadas ao cometimento de
crimes de tráfico de entorpecentes em geral. A pesquisa permitiu
concluir, no tocante à prova oral produzida, que, em 62,33% dos
casos o agente de segurança foi o único a prestar testemunho nos
autos. E, tendo em vista a expressiva quantidade de sentenças em
que a única testemunha ouvida foi o agente de segurança, apurou-
se que, em 53,79% dos casos, o depoimento do agente de
segurança foi a principal prova valorada pelo juiz para alcançar
sua conclusão. E com base em um universo de 1.979 casos em
que a condenação foi baseada principalmente no depoimento dos
agentes de segurança, foi possível observar que em 71,14% as
únicas testemunhas ouvidas na instrução penal foram os próprios
agentes de segurança. (Disponível em
http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/4fab66cd44ea4
68d9df83d091 3fa8a96.pdf. Acesso em 8/10/2020). A pesquisa
não detalha em quantos desses casos de condenação por crime de
tráfico, nos quais a palavra dos agentes policiais foi determinante,
derivaram de ingresso no domicílio do acusado, mas,
seguramente – pelas regras de experiência decorrentes do exame
de milhares de processos dessa natureza aqui no STJ – a grande
maioria das condenações tomou como referência principal, senão
exclusiva, o depoimento dos policiais militares que, ao
ingressarem na residência do suspeito, ali encontraram drogas. E
conquanto não se possa, a priori, desmerecer a credibilidade e
autenticidade de depoimentos prestados por quaisquer pessoas,
especialmente quando são servidores públicos, há de se ter certa
cautela em hipóteses nas quais a única prova da legalidade da
ação estatal é o depoimento exatamente dos agentes públicos cujo
procedimento deve ser sindicado pelo exame das circunstâncias
autorizadoras do ingresso domiciliar.

Pondo fim aos fundamentos jurídicos e adentrando à análise do caso concreto,


o Ministro Relator entendeu “inverossímil a versão policial” de que, - após denúncia a
respeito de suposto tráfico de drogas, abordagem do ora paciente (cuja aparência coincidia
com a descrição da denúncia) e busca pessoal infrutífera –, os policiais perguntaram o
endereço do cidadão e este, prontamente, os levou até sua residência e franqueou a
entrada, permitindo que os agentes encontrassem drogas no armário da cozinha.

O Relator entendeu inverossímil e afirmou que “se de um lado se deve, como


regra, presumir a veracidade das declarações de qualquer servidor público, não se há de
ignorar, por outro lado, que o senso comum e as regras de experiência merecem ser
consideradas quando tudo indica não ser crível a versão oficial apresentada, máxime
quando interfere em direitos fundamentais do indivíduo e quando se nota um indisfarçável
desejo de se criar uma narrativa amparadora de uma versão que confira plena legalidade
à ação estatal”.

Trouxe em seu voto a descrição do paciente, que afirmou ser usuário de


drogas e estar em sua casa, no domingo, quando os policiais invadiram e encontraram a
droga.

Em qual das duas versões acreditar? Segundo o Ministro, “caberia aos agentes
que atuam em nome do Estado demonstrara, de modo inequívoco, que o consentimento
do morador foi livremente prestado, ou que, na espécie, havia em curso na residência uma
clara situação de comércio espúrio de droga, a autorizar, pois, o ingresso domiciliar
mesmo sem consentimento do morador”. Isso porque na dúvida, privilegia-se o réu, titular
do direito atingido.

Firmou, então, seu entendimento sobre os fatos com nos seguintes termos:
“tenho, assim, que a descoberta a posteriori de uma situação de flagrante decorreu de
ingresso ilícito na moradia do paciente, em violação a norma constitucional que consagra
direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, o que torna imprestável, no caso
concreto, a prova ilicitamente obtida e, por conseguinte, todos os atos dela decorrentes e
a própria ação penal, apoiada exclusivamente nessa diligência policial”.

Fez referência à Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada, que “repudia as


provas supostamente lícitas e admissíveis, obtidas, porém, a partir de outra contaminada
por ilicitude original”. E, após, reconheceu nexo causal entre a invasão de domicílio e a
apreensão de drogas.

Concluiu o seguinte: “Portanto, pelo contexto fático delineado nos autos,


entendo que não havia elementos objetivos e racionais que justificassem a invasão de
domicílio e que não há circunstâncias que autorizem concluir ter havido consentimento
válido e livre do morador para o ingresso dos policiais em sua respectiva residência. Eis
a razão pela qual, dado que a casa é asilo inviolável do indivíduo, desautorizado estava o
ingresso na residência do paciente, de maneira que as provas obtidas por meio da medida
invasiva são ilícitas, bem como todas as que delas decorreram”.

E, diante da importância desse entendimento, o Ministro determinou a


“necessária e urgente comunicação imediata dessa decisão colegiada aos governos
estaduais, para que providenciem treinamento e condições materiais a seus agentes de
segurança pública, de modo a que possam observar as regras constitucionais densificadas
no presente julgado”. No fim do voto determinou a comunicação do decisum aos
“Presidentes dos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Presidentes dos Tribunais
Regionais Federais, bem como ao Ministro da Justiça e Segurança Pública e aos
Governadores dos Estados e do Distrito Federal, encarecendo a este últimos que deem
conhecimento da decisão a todos os órgãos e agentes da segurança pública federal,
estadual e distrital, respectivamente”.

Ademais, entendeu importante fazer referência à decisão da Corte


Interamericana de Direitos Humanos que condenou a Argentina “por atuações indevidas
de policiais que, em nome da guerra ao tráfico, violaram direitos fundamentais de
investigados”.

No tópico “conclusões”, apresentou suas respostas às perguntas formuladas


no início. In verbis:

a) Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige-se, em termos de


standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado
judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de modo
objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da
casa ocorre situação de flagrante delito.
b) O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser classificado como
crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem
mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas
será permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir
que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa
objetiva e concretamente inferir que a prova do crime (ou a própria droga)
será destruída ou ocultada.
c) O consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais
em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime,
precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou
coação.
d) A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o
ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado,
e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o
ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do
ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e
preservada tal prova enquanto durar o processo.
e) A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o
ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em
decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem
em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização
penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência.

Dispositivo: À vista de todo o exposto, considerando que não houve


comprovação de consentimento válido para o ingresso no domicílio do paciente, voto pela
concessão da ordem de Habeas Corpus, de sorte a reconhecer a ilicitude das provas por
tal meio obtidas, bem como de todas as que delas decorreram, e, por conseguinte, absolver
o paciente.
DIREITOS FUNDAMENTAIS E HUMANOS

Ingo Sarlet conceitua a dignidade humana como qualidade inata do ser


humano, algo que lhe é inerente. Segundo ele, essa condição confere direito ao respeito,
à proteção e a promoção. Em referência a Carlos Ayres Brito, Sarlet escreve a dignidade
como consequência da qualidade do ser humano de ser um microcosmo, “um universo
em si mesmo”. Dessa forma, o ser humano é digno pelo que ele é, por como ele se
constitui.

Nesse passo, filiados à doutrina cristã da dignidade oriunda da condição de


“feito a imagem e semelhança de Deus”, ou à doutrina kantiana de que tal qualidade tem
relação com a razão e, por isso, o ser racional seria dotado de dignidade, deve-se
reconhecer a dignidade como atributo do ser humano sem discriminação de idade, raça,
sexo, função social etc. É digno porque é ser humano.

Há outra vertente sobre a origem da dignidade humana: a ideia de evolução


social, apresentada a partir de Peter Haberle. Para este, o postulado aparece em
decorrência do empenho de diversas gerações e do crescimento da humanidade. Há
precedente do Tribunal Constitucional de Portugal que corrobora essa tese, da dignidade
da pessoa humana como preceito desenvolvido com o passar do tempo e da cultura.

De todo modo, parte-se da premissa de que a dignidade é o princípio-base de


todos os demais direitos fundamentais e humanos, não distanciando das definições de
liberdade, privacidade e inviolabilidade do domicílio. Por isso mesmo, destina-se as
seguintes páginas ao estudo da dignidade, dos direitos fundamentais e dos direitos
humanos.

I - HISTÓRIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

“A história dos direitos fundamentais é também uma história que


desemboca no surgimento do moderno Estado constitucional,
cuja essência e razão de ser residem justamente no
reconhecimento e na proteção da dignidade da pessoa humana e
dos direitos fundamentais do homem. Nesse contexto, há que dar
razão aos que ponderam ser a história dos direitos
fundamentais, de certa forma, também a história da limitação
do poder”. (grifo nosso) (Ingo Sarlet, 2018, pág. 36)
Nosso livro base escolhido é o de Ingo Sarlet, intitulado de “A eficácia dos
Direitos Fundamentais, uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional”.

Ao apresentar as etapas evolutivas dos direitos fundamentais, Ingo Sarlet


parte do entendimento de K. Stern, que as dividiu em fase pré-histórica (até o séc. XVI),
fase intermediária (doutrina jusnaturalista) e fase da constitucionalização (desde 1776,
com as declarações de direitos do homem). (Ingo Sarlet, 2018, Pág. 37)

A primeira fase é marcada por princípios filosóficos e religiosos


desenvolvidos, em especial, pelos gregos, romanos e cristãos. São oriundos dessa época
valores da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da igualdade, da individualidade
do homem e da unidade dos homens. (Ingo Sarlet, 2018, pág. 38)

Em sequência histórica, o berço do jusnaturalismo foi marcado pelos


entendimentos de Santo Tomás de Aquino, Pico della Mirandola, Guilherme Occam, que
delinearam os conceitos de dignidade, de valor próprio, inato, de individualidade etc. Tais
pensamentos, somados às teorias contratualistas, desenvolveram e sustentaram a doutrina
jusnaturalista.

Em paralelo, teólogos e jusfilósofos do séc. XVI formularam suas teorias a


partir do direito natural, com inspirações jusracionalistas, nitidamente amparados na
razão como fundamento do Direito. Ideias que alcançaram as futuras gerações,
encontrando adesão em vários outros pensadores, inclusive Thomas Hobbes, que nutria o
seguinte entendimento:

“Ao passo que Milton reivindicou o reconhecimento dos direitos


de autodeterminação do homem, de tolerância religiosa, da
liberdade de manifestação oral e de imprensa, bem como a
supressão da censura, Hobbes atribuiu ao homem a titularidade
de determinados direitos naturais, que, no entanto, alcançavam
validade apenas no estado da natureza, encontrando-se, no mais,
à disposição do soberano. Cumpre ressaltar que foi justamente na
Inglaterra do século XVII que a concepção contratualista da
sociedade e a ideia de direitos naturais do homem adquiriram
particular relevância, e isto não apenas no plano teórico, bastando,
nesse particular, a simples referência às diversas Cartas de
Direitos assinadas pelos monarcas desse período”. (Ingo Sarlet,
2018, pág. 39)
Em complementação ao histórico inglês sobre a liberdade, importa afirmar o
que Ingo Sarlet escreve sobre o Edward Coke, juiz e parlamentar que alegava a existências
de direitos fundamentais dos cidadãos ingleses, em especial quanto a liberdade pessoal
contra a prisão arbitrária e o direito de propriedade. Foi assim o percursor da “clássica
tríade vida, liberdade e propriedade, que se incorporou ao patrimônio do pensamento
individualista burguês” (Ingo Sarlet, 2018, pág. 39).

Discorre ainda sobre outro contratualista importante, John Locke, que definiu
eficácia oponível dos direitos naturais em relação aos detentores de poder. Eram direitos
de resistência que, com base em sua teoria do contrato social, eram limitados aos
cidadãos, considerados sujeitos, não objetos do governo. (Ingo Sarlet, 2018, pág. 40)

Segundo Sarlet, John Locke aprimorou a teoria contratualista que, por sua
vez, lançou as bases do jusnaturalismo iluminista do séc. XVII e, por consequência,
culminou no constitucionalismo.

O Professor cita, ainda, os autores Rousseau, Tomas Paine e Kant como


representantes mais influentes responsáveis pelo subsequente desenvolvimento do
contratualismo e das teorias dos direitos naturais, tendo Paine utilizado a expressão
direitos do homem, em substituição a direitos naturais.

Para Sarlet, citando Norberto Bobbio, o marco conclusivo da segunda etapa


dos direitos fundamentais é o pensamento de Kant. Vejamos:

“É o pensamento kantiano, nas palavras de Norberto Bobbio,


contudo, o marco conclusivo desta fase da história dos direitos
humanos. Para Kant, todos os direitos estão abrangidos pelo
direito de liberdade, direito natural por excelência, que cabe a
todo homem em virtude de sua própria humanidade, encontrando-
se limitado apenas pela liberdade coexistente dos demais homens.
Conforme ensina Bobbio, Kant, inspirado em Rousseau, definiu
a liberdade jurídica do ser humano como a faculdade de obedecer
somente às leis às quais deu seu livre consentimento (...)”. (Ingo
Sarlet, 2018, pág. 40)
A terceira fase, de constitucionalização dos direitos, é na verdade antecedida
por algumas cartas positivadas (a exemplo da Magna Charta Libertatum), que abriram o
caminho para a concretização dos direitos.

Em consonância a todo o entendimento de Pontes de Miranda sobre a origem


do habeas corpus, agrada-nos consignar que Sarlet enxerga na Magna Carta de 1215 um
“ponto de referência para alguns direitos e liberdades civis clássicos, tais como o habeas
corpus, o devido processo legal e a garantia da propriedade”. Acrescenta ainda que tal
documento não foi o primeiro. Foram seus antecedentes “as cartas de franquia e os forais
outorgados pelos reis portugueses e espanhóis”, nos séculos XII e XIII. (Ingo Sarlet,
2018, pág. 41)

Assim, os direitos reconhecidos na Inglaterra, no decorrer dos séculos e por


meio dos documentos firmados, surgem como “progressiva limitação do poder
monárquico e da afirmação do Parlamento perante a coroa inglesa”. Nesse país foram
reconhecidos direitos, mas Sarlet reconhece na Declaração de Direitos do povo da
Virgínia, de 1776, o ponto de “transição dos direitos de liberdade legais ingleses para os
direitos fundamentais constitucionais” (Ingo Sarlet, 2018, pág. 43). Vide:

“Com a nota distintiva da supremacia normativa e a posterior


garantia de sua justiciabilidade por intermédio da Suprema Corte
e do controle judicial da constitucionalidade, pela primeira vez os
direitos naturais do homem foram acolhidos e positivados como
direitos fundamentais constitucionais, ainda que este status
constitucional da fundamentalidade em sentido formal tenha sido
definitivamente consagrado somente a partir da incorporação de
uma declaração de direitos à Constituição em 1791, mais
exatamente, a partir do momento em que foi afirmada na prática
da Suprema Corte a sua supremacia normativa”. (Ingo Sarlet,
2018, pág. 43)
Logo após, em 1787 tem-se a Constituição Americana, com os ideários de
democracia e separação de poderes, e em 1789 tem-se na França a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão.

Não nos ateremos nos pormenores destes dois corpos legislativos, mas
importa salientar o que entende Martin Kriele, segundo citação feita por Sarlet, nos
seguintes termos:

“Cabe citar aqui a lição de Martin Kriele, que, de forma sintética


e marcante, traduz a relevância de ambas as Declarações para a
consagração dos direitos fundamentais, afirmando que, enquanto
os americanos tinham apenas direitos fundamentais, a França
legou ao mundo os direitos humanos. Atente-se, ainda, para a
circunstância de que a evolução no campo da positivação dos
direitos fundamentais, recém-traçada de forma sumária, culminou
com a afirmação (ainda que não em caráter definitivo) do Estado
de Direito, na sua concepção liberal-burguesa, por sua vez
determinante para a concepção clássica dos direitos fundamentais
que caracteriza a assim denominada primeira dimensão (geração)
desses direitos” (Ingo Sarlet, pág. 44 e 45)
II- GERAÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

A fim de sistematizar o estudo dos direitos fundamentais, alguns autores os


dividem em gerações - termo amplamente criticado, por levar a entender que os direitos
se sucedem a outros, tornando-os ultrapassados-, ou dimensões.

O primeiro desses foi Karel Vasak que, “em uma conferência proferida no
Instituto Internacional de Direitos Humanos de Estrasburgo, na França, em 1979”
classificou os direitos fundamentais em três gerações, que se consubstanciam através do
lema da Revolução Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade. (Nathalia Masson,
2017, pág. 204).

Os direitos de primeira geração, com base no ideal de liberdade, têm como


origem, como já relatamos, a reivindicação da burguesia de “limitação dos poderes do
Estado em prol do respeito às liberdades individuais”. Marcelo Novelino colaciona o
entendimento de Dieter Grimm, segundo o qual “a burguesia partia do pressuposto de que
a sociedade só poderia se regulamentar se seus membros estivessem face a face de forma
igualitária e livre, razão pela qual o direito era necessário apenas como garantia de igual
liberdade individual”. (Marcelo Novelino, 2013, pág. 384)

Conforme aduz Nathália Masson,

“os direitos de primeira geração são os responsáveis por


inaugurar, no final do século XVIII e início do século XIX, o
constitucionalismo ocidental, e importam na consagração de
direitos civis e políticos clássicos, essencialmente ligados ao
valor liberdade (e enquanto desdobramentos deste: o direito à
vida, o direito à liberdade religiosa – também de crença, de
locomoção, de reunião, de associação – o direito à propriedade, à
participação política, à inviolabilidade de domicílio e segredo de
correspondência). (...) Em conclusão, os direitos de primeira
geração são aqueles que consagram meios de defesa da liberdade
do indivíduo, a partir da exigência de que não haja ingerência
abusiva dos Poderes Públicos em sua esfera privada”. (Nathalia
Masson, 2017, pág. 204)
Dessa forma, os direitos de liberdade, que exigem uma abstenção do Estado,
um distanciamento, um não fazer, foram alocados na primeira geração.

Na sequência dos votos revolucionários tem-se a igualdade, direito de


solidariedade, que aduz a prestações positivas do Estado, uma intervenção maior para
salvaguarda de direitos. Esta é, pois, a segunda geração.
Conforme Novelino, “os direitos sociais, apesar de já serem encontrados em
alguns textos dos séculos XVII e XIX, passaram a ser amplamente garantidos a partir das
primeiras décadas do século XX”. Tais direitos têm menor efetividade, em relação aos de
defesa, pois dependem de disponibilidade orçamentária do Estado, o que denominamos
de “reserva do possível”.

Acrescenta, ainda, que, em decorrência da reserva do possível, os direitos


sociais têm interesse na proteção de garantias institucionais, voltadas a determinadas
instituições de direito público, cuja permanência é fundamental para a sociedade.
Segundo Novelino, citando Paulo Bonavides, “as garantias institucionais, embora
consagradas nas Constituições, não se configuram como direitos subjetivos atribuídos
diretamente ao indivíduo, mas como normas protetivas de instituições enquanto
realidades sociais objetivas, tais como a família, a imprensa livre e o funcionalismo
público. Por não garantirem aos particulares posições subjetivas autônomas, não lhes é
aplicado o regime dos direitos fundamentais”. (Marcelo Novelino, 2013, pág. 385)

Sobre a segunda geração afirma Nathalia Masson,

“Já os direitos de segunda geração – normalmente traduzidos


enquanto direitos econômicos, sociais e culturais – acentuam o
princípio da igualdade entre os homens (igualdade material). São,
usualmente, denominados “direitos do bem-estar”, uma vez que
pretendem ofertar os meios materiais imprescindíveis para a
efetivação dos direitos individuais. Para tanto, exigem do Estado
uma atuação positiva, um fazer (daí a identificação desses direitos
enquanto liberdades positivas), o que significa que sua realização
depende da implementação de políticas públicas estatais, do
cumprimento de certas prestações sociais por parte do Estado, tais
como: saúde, educação, trabalho, habitação, previdência e
assistência social. O surgimento dessa segunda dimensão de
direitos é decorrência do crescimento demográfico, da forte
industrialização da sociedade e, especialmente, do agravamento
das disparidades sociais que marcaram a virada do século XIX
para o século XX. Reivindicações populares começam a
florescer, exigindo um papel mais ativos do Estado na correção
das fissuras sociais e disparidades econômicas, em suma, na
realização da justiça social – o que justifica a intitulação desses
direitos como “direito sociais”, não por envolverem direitos de
coletividades propriamente, mas por tratarem de direitos que
visam alcançar a justiça social.” (Nathalia Masson, 2017, pág.
205)
A terceira geração denominada por Karel Vasak tem como basilar a
fraternidade, última expressão nos votos revolucionários, que se refere a solidariedade, a
coletividade, a direitos difusos, do qual são titulares todas as pessoas de forma indivisível,
tidos como transindividuais.

A citada autora se refere a eles como:

“Reconhecer a cruel realidade de que o mundo está partido, de


maneira abissal, entre nações desenvolvidas e nações
subdesenvolvidas foi elemento determinante para o desenrolar,
no final do século XX, de uma nova geração de direitos
fundamentais, uma terceira geração. Nesta apareceram os direitos
de fraternidade ou solidariedade que englobam, dentre outros, os
direitos ao desenvolvimento, ao progresso, ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, à autodeterminação dos povos, à
propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade, à
qualidade de vida, os direitos do consumidor e da infância e
juventude.
Em síntese, são direitos que não se ocupam da proteção a
interesses individuais, ao contrário, são direitos atribuídos
genericamente a todas as formações sociais, pois buscam tutelar
interesses de titularidade coletiva ou difusa, que dizem respeito
ao gênero humano. É, pois, a terceira geração dos direitos
fundamentais que estabelece os direitos “transindividuais”,
também denominados coletivos – nos quais a titularidade não
pertence ao homem individualmente considerado, mas a
coletividade como um todo.” (Nathalia Masson, 2017, pág. 205)
Outros autores identificam algumas gerações a mais, a exemplo de Norberto
Bobbio e Paulo Bonavides. Para Bobbio, conforme explicita Nathália Masson, a quarta
geração de direitos tem relação com a pesquisa biológica, com a manipulação do
patrimônio genético dos indivíduos. Na sequência, Paulo Bonavides defende uma quinta
geração de direitos, que seria representada pelo direito à paz. (Nathalia Masson, 2017,
pág. 206).

III – LIBERDADE

Nas palavras de Ingo Sarlet, “a noção de dignidade repousa na autonomia


pessoal, isto é, na liberdade que o ser humano possui de, ao menos potencialmente,
formatar a sua própria existência e ser, portanto, sujeito de direitos”. Dessa forma, “já não
mais se questiona que a liberdade e os direitos fundamentais inerentes à sua proteção
constituem simultaneamente pressupostos e concretização direta da dignidade da pessoa,
de tal sorte que nos parece difícil questionar o entendimento de acordo com o qual sem
liberdade não haverá dignidade, ou, pelo menos, esta não estará sendo reconhecida e
assegurada. Convém não desconsiderara a circunstância de que a dignidade sempre exige
a liberdade”, embora a liberdade não seja toda a dignidade. (Sarlet, 2019, pág. 127)

HABEAS CORPUS
Tem-se o Habeas Corpus como instrumento jurídico-processual que se presta
a tutela do direito fundamental à liberdade. Dada sua evidente relevância, destina-se parte
do trabalho ao estudo dessa ação mandamental, que é palco de tantas discussões nos
Tribunais Superiores.

Para tanto, dada sua coincidência com o Estado de Direito e as Declarações


dos Direitos do Homem, deleitemo-nos nos memoráveis feitos de nossos antepassados
em prol do que conhecemos como liberdade (embora saibamos que este é um conceito,
ainda e sempre, em construção).

Em adendo ao conceito de liberdade, fazemos referência a Pontes de Miranda,


assim como o faremos em relação a todos os tópicos sobre habeas corpus a seguir
expostos, que, sobre o caminho da liberdade física, escreve o seguinte:

“A estrada, que o homem percorreu, para que pudesse proclamar


que todos têm liberdade física, avançou sem que muitos homens,
andando fora dela, pudessem beneficiar-se dos novos expedientes
técnicos que se conseguiram. Os homens livres lutaram para ter o
direito ao habeas-corpus, enquanto, marginais, havia os servos e
os escravos. Quando a liberdade se estendeu a todos, os que não
a tinham encontraram a evolução jurídica que os homens livres
haviam obtido”. (pág. 7)

POVOS ANTIGOS

Em Roma haviam os interdicum de liberis exhibendis e o interdictum de


homine libero exhibendo, que eram ações para exibição de homem livre e restituição de
sua faculdade de ir, ficar e vir. Cabiam, inclusive, em hipóteses de ordem de exibição de
filho que era mantido retido pelo pai, ou em exibição de aluno. (Pontes de Miranda, pág.
141)

Não passa desapercebido o fato de tais instrumentos serem destinados ao


socorro de homens livres, tendo em vista que a sociedade em Roma era dividida em
classes, inclusive com escravos.

LIBERDADE FÍSICA NA INGLATERRA E HABEAS CORPUS


Após o falecimento do Rei Ricardo I, o trono inglês foi assumido por João, a
quem se atribui certa decadência da Inglaterra e o título de João-Sem-Terra. Foi um rei
anárquico, que inobservou regras jurídicas; que não se importava com interesses do reino;
que não se preocupou com a evolução das artes e da arquitetura inglesa; que perdeu
províncias, território; que permitiu a tirania do Papado, “censurando e perseguindo os
lutadores da liberdade inglesa”; que suplantou a aristocracia; que oprimia o povo etc.
(Pontes de Miranda, pg. 12)

Esse contexto social levou os condes e os barões ingleses a exigirem do Rei


uma Carta de Liberdades, que ficou conhecida como Magna Carta. Foi o “verdadeiro
fundamento da liberdade nacional inglesa”, “a pedra inicial do novo estado de coisas, para
a Inglaterra, para as nações-filhas e para o Homem”, segundo Pontes de Miranda (pg. 13).

Sobre o texto, escreveu o célebre autor:

“O pacto ratificou as leis de Eduardo, o confessor, e a


Constituição dos saxões, onde já havia a livre-caução
(frankpledge). Aboliu a jurisdição dos xerifes (sheriffs) reais em
matéria penal. Proibiu a prisão injusta e determinou que as
pessoas livres só fossem julgadas por seus pares. Era,
incontestavelmente, nova era, que se abria, cheia de regras
promissoras e louváveis: sem exclusão dos precedentes, como
todas as idades novas da história britânica. A Inglaterra, já dizia
Edouard Fischel, é o país das leis imortais. Não há um só
momento “em nossa história”, assegura Lord Macaulay, “em que
o corpo principal de nossas instituições já não existisse desde
tempos imemoriais”. Sim, mas na dimensão da liberdade: ai foi
que se marcou, para o Homem, a luta mais decisiva”. (Pontes de
Miranda, 1972, pág. 15)
Os ingleses são conhecidos, no direito, como povo de consolidadas leis,
firmadas durantes séculos de aprimoramento e ratificação, que formam o conjunto de
regras consuetudinárias que impõem direitos, deveres e limitam o poder do soberano.
Segundo Pontes de Miranda, “o povo das ilhas caracterizou-se, desde o século XII, por
seu lento, mas seguro caminhar, conservando, mas avançando sempre. São oito séculos
de evolução política nunca vista e inimitada”. (Pontes de Miranda, 1972, pg. 15)

Consta que a gênese das ideias de petição de direitos, vindas de barões e


condes, tem origem em uma carta de Henrique I, lida pelo arcebispo de Cantuária. Vale
o contexto de que os jovens clérigos, ao fim dos cursos, eram enviados à Bolonha para
estudar direito, ou seja, na Inglaterra, os padres eram, também, advogados. Estudavam o
direito e, após, voltavam com novas ideias.

Em costumeiras leituras, realizadas em São Paulo de Londres, pelo arcebispo


de Cantuária, para barões, condes, nobres etc., tinha por objetivo “suscitar movimento de
opinião e animar os nobres e barões em prol das suas liberdades” (Pontes de Miranda, pg.
16).

Desses encontros foram criados os 49 artigos, protótipo da Magna Carta.


Entretanto, como as indagações e filosofias nem sempre são suficientes para realização
de mudança social, a reivindicação de direitos teve êxito quando os barões se armaram e
marcharam para Londres, onde foi assinada a Magna Charta Libertatum, em 15 de junho
de 1215 (Pontes de Miranda, pág. 16).

Tais direitos foram confirmados em 1255, quando do reinado de Henrique III,


e, como praticadas medidas arbitrárias durante esse período, os barões sustentaram,
novamente, agora em 1258, luta “vigorosa e inteligente”, formando, ao final, “com 244
membros, a primeira Assembleia que teve oficialmente o nome de Parlamento”, cujas
normas, conhecidas como Provisões de Oxford, só foram confirmadas pelo rei após os
barões prenderem seu filho (Pontes de Miranda, pág. 18).

A Magna Carta foi novamente confirmada, agora a pedido do Parlamento,


pelo Rei Eduardo, em 05 de novembro de 1298. A partir desse momento, restou certo o
teor das Cartas, que não seriam modificadas e foram publicadas com eficácia vinculante
a todos os oficiais e encarregados do direito. Ademais, havia previsão de nulidade dos
atos praticados em discordância aos seus preceitos. Pontes de Miranda se refere a isso da
seguinte forma:

“Adiante se prometia que as duas cartas – a confirmada por


Henrique III e a Carta da Floresta – seriam mantidas em todos os
seus pontos, sem que nada se mudasse nelas, e que seriam
publicadas, para que os juízes, viscondes, meres (...), e outros
oficiais, a que estava confiada a execução das leis do reino,
aplicassem em seus julgamentos as referidas cartas, em todos os
seus pontos, a primeira como direito comum e a segunda no que
concernisse ao domínio florestal” (Pontes de Miranda, pág. 21).
Entretanto, segundo historiadores, a Carta não teve o condão de estabelecer o
homem como titular de direitos. O que fez foi desafiar a monarquia absolutista, estando
seu objetivo e sua importância restritos ao “interesse baronial, contra o despotismo do
rei”. Mas Pontes de Miranda enxerga tal momento como a abertura para o reconhecimento
de direitos, como de fato ocorreu (Pontes de Miranda, pág. 22).

Esse importante núcleo de direitos positivou a garantia à liberdade que, mais


tarde, foi assegurada pelo instrumento processual habeas corpus. Entretanto, nesse
momento, tal direito foi assegurado de outras formas.

Em adendo, especificamente sobre o instituto do habeas corpus, Pontes de


Miranda contextualiza a nomenclatura como escolhida em memória às palavras iniciais
do mandado que o Tribunal concedia, cujo teor da ordem era a seguinte: “Toma
(literalmente: tome, no subjuntivo, habeas, de habeo, habere, ter, exibir, tomar, trazer etc)
o corpo deste detido e vem submeter ao Tribunal o homem e o caso” (Pontes de Miranda,
pág. 22).

Tal mandado tinha como finalidade combater a prisão injusta e suas


consequências. Segundo Pontes de Miranda, tal ordem almejava prevenir a prisão injusta,
bem como evitar que as restrições delongassem no tempo. Já havia preocupação com a
separação de condenados que cumpriam prisão pena dos que estivessem em prisão
provisória. “Por isso mesmo, o paciente havia de comparecer à justiça com as mãos e os
pés livres (...)” (Pontes de Miranda, pág. 22).

Ao se pronunciar sobre o que havia antes do habeas-corpus, Pontes de


Miranda conclui que

“não havia então qualquer remédio jurídico que por suas virtudes
se lhe pudesse atribuir o ser fonte do habeas-corpus. Esse é
posterior à própria Magna Carta, de onde procede, contudo, em
seus princípios de direito público subjetivo. (...) Entre nós, antes
de possuirmos o habeas-corpus, era pelo interdito de libero
homine exhibendo que se alcançava o desagravo, qualquer que
fosse o constrangimento ilegal à liberdade física” (pág. 23).
Importante salientar que, para os ingleses, a violação da liberdade física é
mais perigosa e prejudicial que a violação de outros bens jurídicos, pois a prisão “é arma
menos pública. Ninguém a percebe. (...) É violência silenciosa, secreta, ignorada,
invisível; portanto, mais grave e perigosa do que qualquer outra” (Pontes de Miranda,
pág. 27).
O autor, na 7ª edição, entende pela necessidade de conceituar liberdade física,
dadas as interpretações que tal termo tem adquirido nas doutrinas. Faz nos seguintes
termos:

“Só nos sofismas desabusados, a trica e o subjetivismo


impenitentes podem ver nas expressões “liberdade pessoal”,
protegida pelo habeas-corpus, outro significado mais amplo que
o de liberdade física. Em manter o seu conceito clássico são
contestes, não somente os juristas ingleses de todos os tempos,
como também os americanos, franceses e alemães. Se um ou
outro tratadista, não indígena à Inglaterra ou à América do Norte,
tenta definir a liberdade pessoal como “a faculdade para o homem
de pôr em execução todas as suas vontades legítimas”, somente o
faz como, por exemplo P. Rossi (Cours de Droit Constitutionnel,
II, 15), por o ter aturdido o liberalismo extrapolado da época. Tal
definição aglomera, sob o mesmo rótulo liberdades diversas que
não merecem ser encambulhadas sob aquele adjetivo técnico.
Muitas nem sequer se poderiam interpretar e classificar entre os
chamados “direitos absolutos” da pessoa, como é o caso da
chamada “liberdade econômica”.
Alguns publicitas, ao examinarem as instituições modernas,
cotejando-as com as antigas, concluem pela extensão do conceito
de liberdade pessoal, quando não foi isso, absolutamente, o que
se deu, e sim a aplicação dos mesmos institutos a novos direitos,
em certo momento, não acastelados por eles, ou direitos outrora,
ou ainda há pouco, tutelados insuficientemente. Entre nós, por
exemplo, não foi a liberdade pessoal que se dilatou ali pelo
segundo e terceiro decênios do século: foi o habeas-corpus
abusivo que se estendeu, sob a oratória de homens políticos, a
novos casos.
Liberdade pessoal, aí, é (e sempre será) a liberdade de locomoção,
the power of locomotion, a liberdade física: ius manendi,
ambulandi, eundi ultro citroque.
(...) A liberdade física perde em que se confunda com outros
direitos. A aplicação do direito, para ser boa, se não perfeita,
exige prévia precisão de conceitos.
É preciso atender-se a que a liberdade física apenas se separa da
liberdade que não depende de locomoção e de permanência do
corpo. Se alguém está em prisão e se impõe a incomunicabilidade,
como que se empurrou para maior profundidade a retirada do
direito de ir, ficar e vir. Tornar incomunicável é mais, muito mais,
do que censurar escrito ou filme, razão por que, aí, não seria
aceitado pedir-se habear corpus. Não assim no caso de que
falamos: a incomunicabilidade de quem se acaha em prisão,
mesmo se domiciliar. Outras circunstâncias aparecem em que o
ir, ficar e vir sofre o constrangimento ilegal por ter-se o coator
utilizado, digamos assim, da restrição à liberdade física. Na
jurisprudência brasileira, e não só na doutrina, apresentam-se
soluções que levam em consideração o estar a psique embutida
no corpo.
(...) A Constituição dos Estados Unidos da América, conquanto
muito extraísse do direito inglês, foi contemporânea da liberdade
abstrata, indefinível e ampla dos pensadores franceses. (...).
Se é liberdade física, define-se em termos verbais invariáveis e
salientes: ir, ficar e vir.
Dir-se-á que a outra, a de Paris, é mais bela, mais sedutora. Não
há dúvida. Porém mais mentirosa. Promete castelos a quem morre
de fome; dá todos os direitos, mas faz depender da opinião
exegética do Procurador da República a locomoção de alguém.
Em vez de ser valor restrito e utilizável, não suscetível de servir
a outros intuitos, serve aos maus contra os bons.
(...) Sempre foi traço de caráter dos povos ingleses essa precisão
a respeito de direitos, coisa em que nõa o imitaram os escritores
franceses. Sirva de exemplo o próprio Parlamento francês. A
concepção dilatou-se, fez-se abstrata, expansiva; em vez de
continuar o centro do poder britânico, com as Declarações de
direitos, mais escritas nas cabeças do que nos livros e nos
discursos.
Onde muito se fala em liberdade, pouco é ela defendida.
Corajosamente, até a morte, a sustentam, os que, em vez de
Liberdade, falam, prática e sabiamente, de liberdade física (de ir,
ficar e vir), de liberdade de pensamento, de liberdade de religião
(criação de Rhode Island, nos EUA), de liberdade de imprensa
etc.”.

Importa consignar que todo esse esclarecimento sobre o conceito de


liberdade, como bem jurídico protegido no Habeas Corpus, tem como motivação nortear
a aplicação do instrumento no Brasil, em 1916. Nessa época, tal conceito foi ampliado
para abarcar o que chamaram de “doutrina brasileira do Habeas Corpus”, de especial
influência de Rui Barbosa. Pontes de Miranda fez nota na pág. 35, na 7ª edição, de seu
livro, sobre esta nova doutrina. Cite-se:

“O leitor deve levar em conta que o nosso esforço, em 1916, para


definir e precisar o que é liberdade de ir, ficar e vir, protegível por
habeas-corpus, tinha de enfrentar a enorme campanha
jornalística-política, com que Rui Barbosa pretendia fazer do
habeas-corpus remédio para todos os abusos do poder,
desvirtuando-o das suas fontes britânicas e comprometendo a
liberdade, pelo excesso demagógico. A nossa missão era, então,
como hoje, a de fixar conceitos e reclamar que se respeite, nem
mais, nem menos, o direito”.
No tocante à influência de Rui Barbosa no direito brasileiro, notadamente no
Habeas Corpus, nos dedicaremos mais adiante.

Ciente do entendimento de Rui Barbosa, após fazer nota de vários autores


norte-americanos que escreveram sobre o habeas corpus e qual a dimensão de liberdade
protegida por ele, Pontes de Miranda afirma que:

“na Inglaterra, nos Estados Unidos da América e no Brasil, o


conceito continua o mesmo. Tampouco se modificou o caráter do
habeas-corpus: ele persiste adstrito à liberdade física, ao direito
de locomoção, que tanto é dizer – faculdade de ir, ficar e vir, em
sua mais perfeita efetividade; de andar ultro et citro; de se mover
à vontade, até onde lho não proíba a lei” (pág. 37).
Faz referência, ainda, ao professor de direito público Pedro Autran, que em
1860, definiu liberdade pessoal como o poder de o homem “mover-se de um para outro
lugar e transportar a sua pessoa para onde lhe aprouver”. O professor explicou mais
detidamente nos seguintes termos:

“Prender alguém é restringir o seu movimento a um certo espaço;


mas para isso não ser violação de um direito, é mister que possa
ter lugar ou como pena, ou como meio de segurar a pessoa de um
indivíduo, contra quem se dão bem fundadas suspeitas de crime
(salvo quando prestar fiança, quando o crime for de natureza a
admiti-la). Obstar o trânsito livre do cidadão por toda a extensão
do território do Estado é também restringir a sua liberdade de
locomoção; e para essa restrição ser justa, faz-se mister que o
indivíduo, que quer sair de um lugar, tenha contraído obrigações,
cujo cumprimento importe a sua estada neste lugar. Enfim, proibir
a emigração, exceto quando o Estado necessita que o cidadão lhe
preste serviço, é violar o direito natural que todo o homem tem de
se transportar para onde lhe convier” (Pontes de Miranda, pág. 38,
em referência a Pedro Autran – Elementos de Direito Público
Universal, pag. 83 e 84).

A partir dos conceitos apresentados, o referido autor firma os seguintes


exemplos de oposições à liberdade: “1º) a prisão injusta; 2º) as dificuldades artificiais ao
trânsito livre do cidadão por todo o território do Estado; 3º) a proibição de emigrar, ou
temporariamente sair do país”.
E, ainda, na conclusão do primeiro capítulo, apresenta os remédios jurídicos
assecuratórios da liberdade física: “aliviavam-se ou terminavam-se essas injúrias por
meio de alguns dos quatro mandados: o writ of mainprize, o writ de ódio et atia, o writ
de homine replegiando e o writ os habeas corpus” (pág. 41). Sobre o habeas corpus,
Pontes de Miranda estabelece as seguintes espécies: “o habeas corpus ad respondendum,
o habeas corpus ad satisfaciendum, o habeas corpus ad prosequendum, o habeas corpus
ad faciendum et recipiendum e o grande writ” (pág. 42). Sobre o último:

“Mas o grande writ, o remédio jurídico, pronto e eficiente em


todos os casos de detenção ilegal, ou demais, constrangimentos à
liberdade, é o habeas corpus ad subiiciendum, endereçado a
qualquer indivíduo, que detenha outro, obrigando o detentor a
apresentar o corpo do preso e comunicar, ao mesmo tempo, o dia
e a causa pela qual foi preso, ad faciendum, subiiciendum et
recipiendum, isto é, para fazer consentir com submissão e receber
tudo que o juiz ou a corte de que emana o writ resolver e ordenar
sobre a espécie.
O seu objeto, portanto, é imperativo: dar liberdade aos que foram
detidos sem justa causa, ou sem razão suficiente. Tecnicamente
falando, é ação; bem que remédio sumário, expedido pela Casa
(Court) do Bando do Rei, não somente durante os tempos de
sessão, como durante as férias, em virtude de um fiat do chief-
justice presidente ou de qualquer dos outros juízes.
(Frise-se que é erro grave falar-se de habeas-corpus, ou de
mandado de segurança, como se fosse recurso; trata-se de
remédio jurídico processual. Lamentável, por exemplo, o que
escreveu o relator do Acórdão do Supremo Tribunal Federal, a 31
de julho de 1951.)” (Pontes de Miranda, pág. 43).
Em continuação à história inglesa, Pontes de Miranda abre capítulo sobre
Carlos I, que dissolveu “quatro vezes, sucessivamente, o Parlamento, porque lhe recusava
subsídios e lhe fazia justas reclamações”.

Época de grande comoção nacional, sobretudo quando lançado imposto, sem


autorização parlamentar. Conforme aduz Pontes de Miranda, “os homens do povo,
quando se recusavam a contribuir, eram levados à força para o serviço da marinha. Os
nobres eram constrangidos a comparecer perante o Conselho, de onde às vezes os
remetiam para as prisões. Entre os que assim forma tratados, acharam-se, certa vez, cinco
fidalgos, (...). Pediram eles à Corte writ of habeas corpus” (pág. 46). Esses fidalgos deram
curso ao movimento de opinião que, mais tarde, determinou a petição de direitos (Petition
Of Rights) (pág. 46).
Impetrado o Habeas Corpus, foi julgada procedente, determinando que os
cinco fidalgos fossem libertados. Ocorre que o carcereiro se negou a liberá-los sob
justificativa de que estavam presos conforme ordem do rei (pág. 48).

Em decorrência desse fato, o direito à liberdade foi analisado com profundo


esmero pelos juristas, que procuravam solução, até porque tal detenção era proveitosa ao
monarca e seus conselheiros, que se utilizavam dela para impor impostos. Para tanto,
fizeram referência a documentos anteriores que prestigiavam a liberdade, inclusive, e em
especial, a Magna Carta (pág. 48).

Os juristas se insurgiram contra a justificativa de ser “ordem do rei”,


argumentando que, diante de vários precedentes, nenhum ato do rei seria suficiente para
restringir qualquer um de seus súditos. Como argumento contrário, o Procurador-Geral
se baseava no poder absoluto do rei para afirmar que não se tratava de simples detenção,
mas de detenção extraordinária, que emanou da vontade imediata da Majestade (pág. 50).

Ao fim das discussões, os juízes “decidiram em favor da Coroa, e os


impetrantes voltaram à prisão”. Tal decisão significava que o direito à liberdade pessoal
poderia ser restringido por uma fala do Rei, o que, com certeza, revoltou a população.
Conforme aponta Pontes de Miranda, “o povo inglês irritou-se (...)” (pág. 50).

Diante da revolta popular, Carlos I não teve outra escolha a não ser convocar
o Parlamento e soltar os que se achavam presos por recusa ao pagamento do imposto.
Pontes de Miranda apresenta, como lição, que “as violências servem menos aos governos
que aos oprimidos; e felizes daqueles povos, capazes de reagir, a que se deparam
opressores assaz terríveis para os revoltar e os levar a criar a ordem nova. Durante os
vinte e cinco séculos da civilização ocidental, toda a evolução humana consistiu na
violência do espírito contra a força” (pág. 51).

Houve muita intercorrência na história da Inglaterra depois desse período,


inclusive depois da assinatura da Petição de Direitos. Muitos habeas corpus foram
denegados ou, quando deferidos, desobedecidas as ordens de apresentação dos presos. O
carcereiro podia reter o preso, mesmo concedido o habeas corpus, até a expedição de
segunda ou terceira ordem (Pontes de Miranda, pág. 57).

Em 27 de maio de 1679 criou-se o Habeas Corpus Act, na Inglaterra, chamado


de outra Magna Carta. Conforme Pontes de Miranda, a lei de 1679 não deu origem ao
habeas corpus, mas completou a garantia do direito fundamental a liberdade física, que,
como qualquer outro direito, necessita de conceito, segurança e garantia. Vide:

“As liberdades têm de ser exercidas. Daí o tríplice problema: o da


conceituação científica (enunciado); o da asseguração (e. g.
inclusão na Declaração de Direitos); o das garantias. A felicidade
dos ingleses foi terem conseguido as três, de modo a completarem
cedo a evolução política (1215-1679). E tê-las exigido antes dos
outros povos europeus, - o que lhes permitiu desenvolverem-se
mais, e mais rapidamente. A garantia do habeas-corpus confirma
o senso prático dos Ingleses e ainda hoje é o melhor remédio da
liberdade e o único suficiente”. (Pontes de Miranda, pág. 60, em
referência a si mesmo no livro Democracia, Liberdade,
Igualdade)
Embora seja uma nova lei, Pontes de Miranda deixa claro que não se tratava
de novos direitos, em similaridade com o que ocorreu com a Petição de Direitos, a
previsão normativa era uma reiteração de direitos. Era uma forma de “assegurar a
tradição, evitar os sofismas e impedir tergiversações” (pág. 66).

Mesmo reiterando direitos, a nova lei não era perfeita e não surtiu todos os
efeitos esperados, pois, a título de exemplo, não impediu a privação de liberdade física
por meio de ordem do rei e só abarcava pessoas acusadas de crime, deixando sem proteção
pessoas “detidas por outras acusações ou meros pretextos” (Pontes de Miranda, pág. 72).

Segundo Pontes de Miranda,

“entre a jurisprudência que favorecia a prerrogativa, achavam-se


ainda os arestos sobre mandados em branco, com os quais se
podiam prender os cidadãos, sem nenhuma indicação provada da
sua culpabilidade e sem identificação plausível. Esse costume
pernicioso, inquisitorial, que escapara à revolução de 1688, e
continuou, pelo uso, sem impugnação, até o reinado de Jorge III,
recebeu da astúcia de Wilkes e da sabedoria liberal de Lorde
Camden o golpe fatal que o abluiria de vez. A estrada da liberdade
é a de longa e penosa ascensão” (pág. 67).
Havia o mandado geral, que consistia em libelos, ou denúncias, sem autores.
Os autores eram procurados, mas, enquanto isso, todos os suspeitos ficavam presos. Tem-
se como caso célebre o “North Briton”, no qual foi lançado um “mandado geral de prisão”
para que “fossem procurados os autores, impressores e editores do referido número do
North Briton, e, uma vez encontrados, que os investigadores os detivessem e conduzissem
à sua presença”. Não havia um único nome e os delegados “prenderam todos os
indivíduos que a seu ver poderiam ser os autores, elevando-se desse modo a quarenta e
nove o número de prisões”.

Nesse caso foram detidos vários jornalistas, até que souberam ser Wilkes o
autor procurado. Munidos do mandado geral, os encarregados deram ordem de prisão a
Wilkes, que, desobedecendo, foi conduzido e compareceu diante do secretário de Estado.
Enquanto isso, os demais encarregados da busca invadiram a casa de Wilkes, “folhearam
os manuscritos existentes em suas gavetas e levaram todos os seus papéis particulares”
(pág. 68).

Mesmo determinada a incomunicabilidade de Wilkes, o Habeas Corpus


impetrado foi julgado procedente e o processo seguiu o curso normal com a contestação
em tempo. Além disso, alguns operários intentaram ação contra os executores do
mandado geral, ação que foi julgada procedente pelo Presidente da Court of King’s
Bench, “que declarou a arbitrariedade do mandado de prisão, por não admitir que maus
precedentes pusessem de lado os verdadeiros princípios da lei inglesa”.

Ademais, Wilkes ajuizou ação contra o subsecretário de Estado, responsável


pela operação do mandado geral. Conforme aponta Pontes de Miranda, a ocasião permitiu
ingresso arbitrário na residência do procurado, ato que contraria o progresso e o curso dos
direitos fundamentais previstos. Vide:

“nesse interessante processo, ficou provado que, após a prisão de


Wilkes, Wood e alguns enviados tinham penetrado na casa do
paciente, proibindo que ali comparecessem os amigos dele. Ainda
mais: um serralheiro abrira as gavetas da secretária, de onde os
emissários subtraíram papéis, que levaram em sacos, sem
inventário algum. Tudo isso não estava no sentido da evolução
humana. Tudo isso apenas era obstáculo passageiro na dimensão
da liberdade.” (pág. 69).
Infelizmente para Wilkes, a decisão do caso Northon Briton foi contrária a
ele, decidindo pela legalidade do ingresso em sua residência, lastreada por mandado de
detenção geral. Sobre essa decisão apontou Pontes de Miranda, in verbis:

“Ao ser interrogado, Lorde Halix confessou que o mandado tinha


data de três dias anteriores àquele em que soubera ser Wilkes o
autor de North Briton. Nessa ocasião, brilhantemente, disse com
energia o Lord Chief Justice Pratt: “O réu declarou ter, conforme
certos precedentes, o direito de entrar à força em casas
particulares, de fazer saltar a fechadura das carteiras e de
apreender papéis, mediante simples mandado de detenção geral;
e nesse caso, não sendo especificado na ordem nenhum nome de
acusado, os enviados forma investidos do poder discricionário de
fazer pesquisas onde quer que lhes levassem as suas suspeitas. Se
um secretário de Estado é realmente investido de um tal poder e
o pode delegar, o que não há dúvida é que essa faculdade pode
atingir à pessoa e à propriedade de todo homem deste reino e é
totalmente subversiva da liberdade individual” (Thomas Erskine
May, Histoire Constitutionnel de l’Angleterre, II, 299).
A decisão foi favorável ao impetrante e abonaram-se-lhe 1.000
libras esterlinas”.
Esse caso é seguido por outros, a exemplo do caso de Napoleão, para o qual,
embora concedida ordem de habeas corpus, esta restou obstada em razão do afastamento
do navio, no qual estava Napoleão, para fora do território inglês, por ordem do governo.

Há também o caso do Monitor or British Freeholder, no qual foi ordenada a


prisão de John Entinck e o apossamento de seus papéis e livros. Nesse não foi utilizado
mandado em branco, pois havia previsão do nome do acusado. Mas, no tocante à
apreensão dos papéis e livros, tratava-se de mandado geral, que foi impugnado pela
“action of trespass”, já que não se referia a liberdade física. (Pontes de Miranda, pág. 70)

De todo modo, em 1766 esses mandados gerais foram condenados pela Casa
do Banco do Rei e declarados ilegais pela Casa das Audiências. Nesse mesmo ano, a
Câmara dos Comuns aprovou uma lei contra os mandados gerais, mas a Casa dos Lordes
foi contrária ao pleito, o que, invariavelmente, não modificou a ilegalidade de tais general
warrants, decidida pelos juízes. (Pontes de Miranda, pág. 71).

No século seguinte, em 1816, foi editado o segundo Habeas Corpus Act,


agora possibilitando o uso do instrumento em qualquer violação à liberdade física, tais
como “a indivíduo que continua preso, sem ordem legal do juiz; a criança detida fora da
casa dos pais; a pessoa sã que tenham internado, como louco ou doente, em hospício, casa
de saúde ou hospital; a freira que quer deixar o convento etc” (Pontes de Miranda, pág.
73).

Nesse período, a desobediência à ordem significava “ofensa ou desdém à


Casa”, gerando pena sumária ou “multas em proveito da parte lesada”. (Pág. 73)

Enfim, Pontes de Miranda define habeas corpus como “mandado de tribunal,


endereçado a indivíduo ou a indivíduos, que tenham em seu poder, ou sob sua guarda
alguma pessoa, a fim de que a apresente ao mesmo tribunal, que decidirá, depois de ouvir
as informações produzidas pelas partes, qual o destino a ser dado ao paciente” (pág. 75).

A título de exemplo, colaciona um habeas corpus concedido pela Rainha


Vitória, nestes termos (Pontes de Miranda, pág. 76):

Vitória, pela graça de Deus, Rainha do Reino Unido da Grâ-


Bretanha e da Irlanda. Defensora da Fé.
A J... R..., guarda de nossa prisão de Jérsia, na ilha de Jérsia,
e a J... C..., visconde da dita ilha, saudações.
Nós vos ordenamentos apresenteis em nossa corte, perante
nós, em Westminster, a 18 de janeiro próximo, o corpo de C. C.
W., o qual está, como se pensa, detido em nossa prisão sob vossa
guarda, e declareis o dia e o motivo de sua detenção, sob qualquer
nome pelo qual seja designado ou conhecido, a fim de ouvir e de
receber todas as coisas materiais que nossa dita corte decidir a
respeito desse indivíduo. Cumpri a presente ordem. Testemunha
Thomas, Lorde Demnan, Westminster, 23 de dezembro de 8º ano
de nosso Reinado.
Pela Casa (Court),
Robinson.
A pedido de C. C. W.
W. A. L., 7 Gray’s Inn Square- London.
CONCLUSÃO

Trata-se de trabalho de conclusão de curso com base no Habeas Corpus


impetrado contra acórdão que reconheceu a licitude das provas obtidas pelos policiais na
casa do impetrante, logo após busca pessoal sem resultado.

Tem-se o Habeas Corpus como instrumento jurídico-processual que se presta


a tutela do direito fundamental à liberdade, que integra a denominada primeira geração
de direitos humanos.

Conclui-se o presente trabalho com as respostas apresentadas pelo Ministro,


segundo o qual exige-se, em termos de standard probatório para ingresso no domicílio do
suspeito sem mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de
modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre
situação de flagrante delito.

Ademais, o tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser classificado como


crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio
onde supostamente se encontra a droga. Apenas será permitido o ingresso em situações
de urgência, quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial
se possa objetiva e concretamente inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será
destruída ou ocultada.

Ainda, o consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes


estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser
voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação.

A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso


na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com
declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se,
sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada
em áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo.

A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso


no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem
como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de
eventual responsabilização penal do agente público que tenha realizado a diligência.
REFERÊNCIAS

Brasil, Superior Tribunal de Justiça, HABEAS CORPUS nº 598.051-SP.

Filho, Wagner Marteleto. Dolo e risco no direito penal. Fundamentos e limites para a
normativização. Ed. Marcial Pons. São Paulo. 2020.

Masson, Nathalia. Manual de Direito Constitucional. Ed. Juspodium. 5ª Edição. 2017.

Miranda, Pontes. História e Prática do Habeas-Corpus, Editor Borsoi, Rio de Janeiro,


tomo I, 7ª Edição, 1972.

Sarlet, Ingo. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Ed. Livraria do Advogado. 13ª
Edição, Revista e Atualizada. Porto Alegre, 2018.

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