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Artigo

SILVA, Klarissa Almeida


CONFLUÊNCIAS
Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito
ISSN 1678-7145 || EISSN 2318-4558

DESCORTINANDO A INCRIMINAÇÃO
EM CASOS DE HOMICÍDIO DOLOSO1
Klarissa Almeida Silva
Doutora em Ciências Humanas/ Sociologia (PPGSA/UFRJ).
E-mail: silva.klarissa@gmail.com

RESUMO
Relatos como laudos periciais, relatórios de inquérito policial, denúncias e sentenças são vistos
da perspectiva de dar satisfação e de prestar contas, e como espaço privilegiado de criação da
realidade social. Laudos são utilizados por juízes como forma de sustentar a morte como um
homicídio e os relatos são construídos com base no embate entre acusação e defesa. Durante a
incriminação no rito do tribunal do júri, as sentenças de pronúncia reiteram as denúncias e os
processos judiciais chegam ao conselho de sentença. Deste modo, as tipificações jurídicas das
sentenças finais tendem a ser idênticas às das denúncias, que são muito semelhantes ao indicado
nos relatórios de conclusão dos inquéritos policiais. Já os laudos das perícias em local de morte
registrada cumprem uma função cerimonial desde o inquérito policial até a sentença final.
Palavras-chaves: Laudo de “local de crime”, Homicídio doloso, Incriminação

ABSTRACT
Accounts as expert reports, reports of police investigation, complaints and sentences are seen
from the perspective of giving satisfaction and accountability, and as a privileged space for
creation of social reality. Experts reports are used by judges as a way to sustain the death as
a homicide and the accounts are built based on the clash between prosecution and defence.
During the criminality in the rite of trial by jury, the sentences of pronunciation reiterate the
complaints and court proceedings reach the jurors. In this way, the legal crime of final sen-
tences tend to be identical to those complaints, which are very similar to the indicated in the
reports of completion of police inquests. Since the reports “crime scene investigation” of dea-
th recorded with a ceremonial function since the police investigation until the final sentence.
Keywords: Report “crime scene investigation”, Homicide, Incrimination

1
Este artigo foi originalmente apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, no Grupo de Trabalho (GT) no 75 “Sensibili-
dades jurídicas e sentidos de justiça na contemporaneidade: interlocução entre antropologia e direito”, coordenado pelos professores
196 CONFLUÊNCIAS
Jacqueline | Revista
Sinhoretto (UFSCar), KátiaInterdisciplinar de Sociologia
Sento-Sé Mello (UFRJ) e Direito.
e Fábio Motta (UFF),Vol.
em16, nº sob
2014, 3, 2014. pp.“A196-219
o título incriminação em casos de
homicídio doloso: a denúncia como relato determinante da condenação e o laudo de ‘local de morte’ como relato de caráter cerimonial”.
DESCORTINANDO A INCRIMINAÇÃO EM CASOS DE HOMICÍDIO DOLOSO

INTRODUÇÃO para o desenvolvimento de suas tarefas.


Beato Filho (1992) e Sudnow (1971 Regras formais servem para justificar a
[1967]) mostram como a morte, o suicí- ação e as decisões tomadas de acordo
dio ou o homicídio, geralmente tratadas com elas (HAGAN et.al., 1979).
como algo dado ou como fato indiscu- Neste artigo, dou prosseguimento a
tível, são, ao invés disto, realizações um dos aspectos apresentados em mi-
contínuas empreendidas pelas pessoas nha tese de doutorado. Para compreen-
encarregadas de categorizá-los e defi- der como o processo de criminação-in-
ni-los. O resultado desse processo de criminação é transposto da polícia para
categorização aparece nos relatos pro- o judiciário e como o processo de incri-
duzidos (fichas médicas, laudos de perí- minação é construído ao longo do rito
cia, relatório do inquérito policial, etc) do tribunal do júri1, recorri a uma base
que são, eles mesmos, constitutivos do de dados construída por mim em outra
que foi que aconteceu. Para Garfinkel ocasião (SILVA, 2006). Esse banco de
(1967), um dos resultados do uso de dados é composto por variáveis legais,
procedimentos interpretativos aciona- contextuais e individuais extraídas de
do nessas ocasiões é a criação de relató- denúncias e de registros da movimen-
rios ou índices que possam ser aprecia- tação judicial dos processos de 154 in-
dos como relatos ordenados a respeito divíduos acusados de matar alguém in-
das atividades da organização. tencionalmente, em Belo Horizonte, no
Paixão (1982) observou o descola- período entre janeiro de 2004 e dezem-
mento de decisões e atividades práticas bro de 2005. Deste conjunto, 130 foram
dos objetivos postulados e representados analisados de modo qualitativo.
nos códigos e regras legais, aproximando 1
O processo de construção social do crime é desenvolvido
o estudo do sistema de justiça criminal por Misse (1999, 2008, 2014) segundo quatro níveis analí-
ticos: criminalização, criminação, incriminação e sujeição
da teoria das organizações, particular- criminal. Por criminalização entende-se o processo pelo
mente da concepção de organizações qual se instituem as sanções para os atos definidos como
crimes, aquelas típico-idealmente definidas pelos legisla-
como sistemas frouxamente articulados dores e que se encontram nos códigos. Entendo por crimi-
(MEYER e ROWAN, 1977). Regras e nação o percurso através do qual atores interpretam cenas
e/ou relatos, eventos, de acordo com os dispositivos conti-
procedimentos formais estão muito dis- dos nos códigos, as ações criminalizadas. A incriminação
tantes das práticas adotadas cotidiana- acompanha a criminação. De modo muito semelhante ao
processo de construção da criminação do evento, cons-
mente pelos membros das organizações. trói-se a incriminação do suposto sujeito-autor de ter
Procedimentos formais têm, em geral, cometido aquele evento criminado. A identificação des-
ses atores incriminados passa por um processo que Misse
caráter cerimonial. Isto é, os membros chama de sujeição criminal, através do qual são seleciona-
das organizações fingem se conformar dos preventivamente os supostos sujeitos que irão com-
por um tipo social cujo caráter é socialmente considerado
a eles, mas, na prática, atuam de acordo propenso a cometer um crime. Para os fins deste artigo,
com o que consideram ser mais eficiente trabalho principalmente com o conceito de incriminação.

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Analiso esses processos visando lado, meu olhar para os relatos da defesa,
identificar possíveis elementos que pa- bem como as falas transcritas dos acu-
recem determinar a decisão do conselho sados, segue o entendimento de accounts
de sentença para condenar os acusados. segundo a perspectiva de Scott e Lyman:
Em minhas análises, não estarei falando
de práticas rotineiras de promotores de “afirmação feita por um
justiça, defensores, juízes e jurados, já ator social para explicar um
que eu não as observei. Por isso, é im- comportamento imprevisto ou
portante destacar também que, apesar de impróprio - seja este comporta-
considerar a decisão tomada pelo conse- mento seu ou de outra pessoa,
lho de sentença, eu não analiso a sessão quer o motivo imediato para a
de julgamento, o ritual do tribunal do afirmação parta do próprio ator
júri propriamente dito. Este vem sendo ou de alguém mais” (SCOTT;
estudado principalmente por antropólo- LYMAN, 1968[2008], p. 138).
gos que destacam como a verdade jurí-
dica é construída com base em aspectos Ao buscar identificar elementos que
lúdicos, textuais e dramatúrgicos deste podem determinar a condenação dos
ritual (SCHRITZMEYER, 2001, 2012; acusados, analiso como a incriminação é
FIGUEIRA, 2008). Portanto, valho-me construída ao longo da instrução crimi-
de análise documental referente ao rito nal no rito do tribunal do júri, desde a de-
(e não ritual) do tribunal do júri. núncia até a sentença final passando pela
O que a fonte de dados aqui contem- sentença de pronúncia, momento este
plada me permite, em termos metodoló- que delimita a transição entre a primeira
gicos, é analisar esse material com base e a segunda fase do rito. Consulto prio-
nos relatos de acusação pública (pro- ritariamente os processos localizados e
duzidos por promotores de justiça) aos acessíveis para análise que já contivessem
quais se contrapõem os relatos da defesa “sentença transitada em julgado”, isto é,
(produzidos pelos defensores públicos já finalizados e arquivados em definitivo
ou advogados e pelos próprios acusados no Arquivo do Fórum Lafayette, em Belo
em seus interrogatórios), bem como as Horizonte/MG. Em menor medida, con-
decisões dos juízes tomadas com base sulto também os processos cujas senten-
nesses relatos. Nesse sentido, meu olhar ças finais tiveram como decisão do conse-
para os relatos de acusação e da senten- lho de sentença, a absolvição do acusado.
ça está orientado pelo entendimento de O objetivo em olhar esses processos é o
Garfinkel (1967) sobre accounts: relatos de pensar o oposto (MILLS, 1975[1959]):
que justificam a tomada de decisão em identificar se os elementos determinantes
ambiente organizacional. E, de outro para a absolvição são os que correspon-
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dem, em contraposição, aos elementos estes casos devem ser priorizados, já


que determinam a condenação. que o Código de Processo Penal prevê
Atualmente, no Brasil, um processo prazos mais curtos para os trâmites ju-
judicial de homicídio doloso é compos- diciais referentes a indivíduos presos.
to pelos seguintes documentos que con-
sidero principais para análise: inquérito AS REGRAS DE DECISÃO NO
policial, denúncia, alegações finais da RITO DO TRIBUNAL DO JÚRI
acusação e da defesa, sentença de pro- Para proceder as análises, tenho que
núncia e sentença final. Pedidos de dila- levar em consideração algumas carac-
ção de prazo2, certidões positivas ou ne- terísticas do sistema de justiça criminal
gativas de intimações de testemunhas e brasileiro, principalmente o fato de es-
de acusados, transcrições de depoimen- tar inserido em uma tradição do direi-
tos de testemunhas e do interrogatório to codificado, onde prevalece a lógica
do acusado colhidos na primeira fase do contraditório (GRINOVER, 1998;
do rito do tribunal do júri, bem como LIMA, 2009). Por essa razão, as regras
mandados de prisão dentre outros do- de procedimento exercem mais influ-
cumentos, completam um processo. ência como delimitadoras de certos
Todos esses papéis são agrupados comportamentos e práticas dos opera-
por grampos de metal e encadernados dores (VARGAS, 2000), principalmente
em capas de cartolina, de cores azul, quando o comparamos com o direito
verde ou parda, contendo o timbre do estadunidense, onde prevalece a lógica
Tribunal de Justiça, número da Vara adversarial (LIMA, 2008; GARAPON,
Criminal, nomes dos réus e a tipificação PAPADOPOULOS, 2008).
penal. É muito comum o processo ser Não observei as receitas práticas dos
decomposto em dois ou mais volumes, operadores do rito do tribunal do júri, e
com cerca de 250 páginas cada. É co- não posso descrever como esses relatos
mum também a existência de apensos, foram (e são cotidianamente) construí-
cadernos com 20 a 30 páginas contendo dos. Mas posso interpretá-los enquanto
informações extras. Nos casos em que relatos que prestam contas de decisões,
os réus estão presos, há uma tarja ver- ou justificar sua revogação, que são de
melha, que tem a função de chamar a ordem institucional-legal. O processo
atenção dos operadores indicando que de construção social e institucional3 de
2
um evento como o homicídio doloso
Discussão mais detida sobre a movimentação cartorial de
um processo, o “pingue-pongue” entre delegacias e judici-
passa por uma série de formalismos
ário encontra-se no livro “O Inquérito Policial no Brasil: legais que exigem a produção de rela-
uma pesquisa empírica”, organizado por Michel Misse
3
(MISSE, 2010). Especificamente para Belo Horizonte, ver O termo “construção social e institucional” de um evento
neste livro capítulo de Vargas e Nascimento (pp.102-190). enquanto crime foi inaugurado por Vargas (2014).

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tos com vistas a dar satisfação e prestar processo de incriminação. Pela primeira
contas do que é decidido em cada etapa vez, e só agora, a defesa entra legalmen-
da instrução criminal. Se cada relato é a te no processo de incriminação. Diante
interpretação de interpretações feitas de disso, o acusado é obrigado a apresentar
relatos anteriores, feitos por diferentes sua defesa prévia, seja por advogado
operadores, a interpretação que eu faço particular ou por defensor público.
desses relatos é o resultado compilado Dando prosseguimento ao fluxo no
de uma leitura de terceira, quarta mão. rito do tribunal do júri, oferecida e acei-
No Brasil, as regras de procedimen- ta a denúncia, citado o réu e apresen-
to que orientam as receitas práticas dos tada sua defesa prévia, são iniciados os
operadores do sistema de justiça estão procedimentos necessários à instrução
contidas no Código de Processo Penal4. criminal na primeira fase do rito, com
Uma dessas regras diz respeito à formu- a tomada de depoimento das testemu-
lação da denúncia, peça inicial de uma nhas e do interrogatório do réu, pela
ação penal pública, elaborada pelos segunda vez. A primeira vez dá-se na
promotores de justiça. Esse documen- instrução preliminar do inquérito poli-
to deve conter todas as informações do cial, na etapa policial. A diferença des-
fato delituoso, de forma a possibilitar a ses procedimentos realizados dentro do
defesa do réu. Para isso, a narração nela rito do tribunal do júri em relação aos
contida deve, segundo o texto, ser su- mesmos procedimentos da fase policial
cinta, clara e justa. O inquérito policial converge para o caráter público que os
segue entranhado ao processo judicial mesmos passam a adquirir e pela pre-
e tem a função, tal como expresso tam- sença obrigatória de defensor para o
bém no Código de Processo Penal, de acusado. As pessoas não falam mais
embasar o promotor de justiça para o para um delegado ou para policiais em
oferecimento da denúncia. um ambiente secreto, mas para um juiz
Uma vez que a denúncia é ofereci- em um “plenário” onde há espaço para
da e aceita pelo juiz, ocorre a citação do o público interessado em assistir a essas
réu, isto é, a comunicação oficial e pú- “audiências de instrução”.
blica ao sujeito que está sendo alvo do Ouvidos novamente testemunhas e
4
o acusado, os “autos” são encaminha-
Leis de 2008 (no 11.689/08, no 11.719/08, no 11.690/08) e
de 2009 (no 11.900/09) alteraram alguns artigos do Código
dos ao juiz responsável pela primeira
de Processo Penal. Dos processos dos quais partem minhas fase do rito, o mesmo que ministrou (ou
análises, 9 contêm sentenças de pronúncia com datas pos-
teriores a 2008. Entretanto, 57% deles contêm sentenças fi-
deveria ter ministrado) as audiências,
nais datadas após 2008. Como minha intenção é identificar para que ele possa tomar uma dentre
possíveis elementos que podem determinar a decisão dos
jurados pela condenação dos acusados, decidi utilizar o Có-
três decisões: pronunciar, impronunciar
digo de Processo Penal de 2013. ou absolver sumariamente o acusado.
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Essa decisão é chamada “sentença de ser ele o autor ou partícipe do


pronúncia” e constitui um relato onde o fato; III – o fato não constituir
juiz da primeira fase do rito expõe sua infração penal; IV – demonstra-
decisão quanto ao encaminhamento da causa de isenção de pena ou
(ou não) do denunciado ao julgamen- exclusão do crime.”
to pelo conselho de sentença, também [BRASIL, 2013, Código de
chamado júri popular. Segundo as re- Processo Penal, artigos 413,
gras de procedimento contidas no Có- 414 e 415].
digo de Processo Penal:
Como se percebe pelos três artigos
“O juiz, fundamentadamente, transcritos anteriormente, a decisão do
pronunciará o acusado, se con- juiz deve ser sempre “fundamentada”. Por
vencido da materialidade do fato e essa razão, ela é tomada segundo o cha-
da existência de indícios suficien- mado “princípio do livre convencimento
tes de autoria ou de participação. motivado” do juiz, que deve ser embasado
A fundamentação da pro- nos elementos que o levaram a tomar tal
núncia limitar-se-á à indicação decisão. Esses elementos são, geralmente,
da materialidade do fato e da a análise das “provas” colhidas em fase de
existência de indícios suficien- instrução criminal (policial e judicial),
tes de autoria ou de participa- em jurisprudências5 e/ou na própria dou-
ção, devendo o juiz declarar o trina jurídica (MENDES, 2012).
dispositivo legal em que julgar Sendo o réu pronunciado, os autos
incurso o acusado e especificar serão encaminhados ao juiz-presidente
as circunstâncias qualificadoras do Tribunal do Júri. A sentença de pro-
e as causas de aumento da pena. núncia demarca o momento que encer-
[...] ra a primeira fase do rito do tribunal do
Não se convencendo da júri e, ao mesmo tempo, o que abre a
materialidade do fato ou da segunda fase. Sendo pronunciado o réu,
existência de indícios suficien- são iniciados os procedimentos para a
tes de autoria ou de participa- realização da sessão de julgamento pelo
ção, o juiz, fundamentadamen- conselho de sentença, formado por sete
te, impronunciará o acusado. cidadãos escolhidos de uma lista ini-
[...] cialmente composta por vinte e cinco
O juiz, fundamentadamen- indivíduos. Essa lista maior, por sua vez,
te, absolverá desde logo o acusa- 5
Jurisprudências são decisões sobre casos que extinguem
do, quando: I – provada a inexis- ambiguidade na interpretação de partes da lei, fixando uma
tência do fato; II – provado não regra única de interpretação para casos análogos.

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é obtida de outras instituições públicas [BRASIL, 2013, Código de


que indicam, a pedido do Tribunal de Processo Penal, artigos 439 e 440].
Justiça, um rol de seus servidores.
No Brasil, o serviço do júri é obriga- Muito mais haveria que falar sobre
tório, semelhante a outros direitos indi- as regras de decisão, ou regras de pro-
viduais que se tornam obrigações, tais cedimento, correspondentes ao julga-
como: voto, ter um defensor constituído mento em plenário, se meu interesse de
quando processado no sistema de jus- pesquisa fosse o ritual do Tribunal do
tiça criminal e serviço militar para ho- Júri em vez do rito. Para meus objeti-
mens maiores de 18 anos (LIMA, 2009). vos, basta complementar a apresentação
Podem ser jurados “todos os cidadãos dessas regras destacando que “o Con-
maiores de 18 anos de notória idoneida- selho de Sentença será questionado so-
de”, estando a obrigatoriedade demarca- bre matéria de fato e se o acusado deve
da por uma punição prevista para aque- ser absolvido” (BRASIL, 2013, Código
les que se recusarem injustificadamente a de Processo Penal, artigo 482) e que os
prestar o serviço, uma “multa no valor de jurados não podem conversar entre si.
1 (um) a 10 (dez) salários mínimos, a cri- A decisão dos jurados aqui no Brasil se
tério do juiz, de acordo com a condição baseia em votação sigilosa em uma “sala
econômica do jurado” (BRASIL, 2013, secreta” contígua ao salão do plenário
Código de Processo Penal, artigo 436). onde ocorre a sessão de julgamento.
Em contrapartida: Cada jurado recebe pequenas cédulas
contendo sete delas as palavras “sim” e
“O exercício efetivo da fun- outras sete contendo a palavra “não”. A
ção de jurado constituirá servi- cada quesito, ou a pergunta do juiz, o ju-
ço público relevante, estabele- rado deposita uma das cédulas em uma
cerá presunção de idoneidade urna lacrada. Finda a votação, esta será
moral e assegurará prisão espe- aberta pelo juiz no salão do plenário, e
cial, em caso de crime comum, os votos serão contados seguindo a or-
até o julgamento definitivo. dem de acordo com a qual os quesitos
Constitui também direito do foram formulados. A decisão quanto à
jurado [...] preferência em igual- condenação ou à absolvição do acusado
dade de condições, nas licita- se dá pela maioria dos sete votos.
ções públicas e no provimento, Sendo condenado pelo conselho de
mediante concurso, de cargo ou sentença, o incriminado receberá do juiz
função pública, bem como nos a definição da pena prevista no Código
casos de promoção funcional ou Penal em correspondência ao “crime”
remoção voluntária.” que ele cometeu. A decisão dos jurados
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é brevemente descrita na sentença final (...) Consta dos inclusos autos


pelo juiz-presidente, documento no qual do IP [entenda-se: inquérito po-
este apresenta o seu account quanto à licial] que o denunciado, no dia
pena referente à tipificação jurídica. 05 de fevereiro de 2005, por vol-
Para os objetivos deste artigo, dedico ta das 10:40h, na Rua do Grupo,
especial atenção às análises advindas da altura do no 83, Conjunto Granja
leitura das sentenças de pronúncia e das de Freitas, nesta cidade, efetuou
sentenças finais do juiz togado já que es- diversos disparos de arma de fogo
tas, por encerrarem, respectivamente, a em [Nome da vítima], provocan-
primeira e a segunda fase do rito do tribu- do-lhe as lesões descritas no rela-
nal do júri, contêm os accounts dos juízes. tório de necropsia de fls. 19/25,
causa eficiente de sua morte.
ACCOUNTS E O PROCESSO Consta, ainda, que o de-
DE CONSTRUÇÃO SOCIAL E nunciado agiu por motivo
INSTITUCIONAL DO HOMICÍDIO torpe, eis que matou a vítima
Quanto às sentenças de pronúncia, por supor que esta atrapalhava
pude observar uma padronização quan- seus negócios, a saber, o tráfico
to ao formato de elaboração da mesma, de drogas na região.
indicando que os juízes da primeira fase Consta, finalmente, que para
do rito do júri seguem para sua elabo- alcançar seu intento o denuncia-
ração uma receita profissional. Em ge- do utilizou de recurso que dificul-
ral, esses documentos iniciam-se pela tou a defesa da vítima, pois dissi-
tipificação contida no Código Penal na mulou telefonando para a casa da
qual o indivíduo foi incriminado na de- vítima fazendo-se passar por um
núncia, acompanhada de um resumo cliente que encomendava um bo-
da mesma, onde se encontra destacado tijão de gás e, quando [Nome da
o contexto do evento registrado: vítima], no exercício de sua pro-
fissão chegou para fazer a entrega,
“[NOME DO ACUSA- foi recebido com os disparos que
DO] já qualificado nos autos, lhe ceifaram a vida (...)”
foi denunciado como incurso [sentença de pronúncia, Pro-
nas sanções do art. 121, §2º., cesso no 2].
incisos I e IV do Código Pe- Feita esta parte introdutória, o juiz
nal Brasileiro, por prática de segue a elaboração da sentença de pro-
homicídio qualificado contra a núncia fazendo menção ao inquérito
vítima [Nome].” policial. Ele o faz como modo de se
Narra a denúncia que: referir à denúncia, informando que o
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promotor se baseou no inquérito, en- cial iniciado por Portaria e do


tranhado no processo, para redigi-la. qual constam, entre peças re-
O fato de o inquérito policial ser en- gulamentares e outras: boletim
tranhado no processo é uma das prin- de ocorrência (fls. 63/65), de-
cipais críticas feitas ao funcionamento poimento de testemunhas (fls.
do sistema de justiça criminal no Brasil 16/17V, 18/19V, 20/21V, 78/80
(LIMA, 1989, 2008; GRINOVER, 1998, e 110/114), relatório de necrop-
MENDES, 2012; MISSE, 2010; VAR- sia (fls. 22/24), certidão de óbito
GAS; NASCIMENTO, 2010). Fazendo (fls. 32), declarações das vítimas
parte do processo judicial, o inquéri- [nome A] (fls. 33/35), [nome B]
to não somente serve para embasar o (fls.81/82), [nome C] (fls.83/85),
início da instrução criminal no rito e relatório final (fls. 186/192).”
do tribunal do júri (e no rito ordinário [sentença de pronúncia, grifos
também) com a denúncia, mas perma- meus, Processo no 93].
nece influenciando as decisões tomadas
pelos operadores ao longo de todo o Dando continuidade à elaboração
processamento, mesmo sabendo-se que da sentença de pronúncia, o juiz narra
ele foi produzido sem ouvir (ou mesmo um resumo da primeira fase do rito do
sem o conhecimento) da defesa. tribunal do júri, com a descrição dos
O principal conteúdo desta crítica é procedimentos realizados, tais como:
que o inquérito, construído em moldes citação do réu, audiências realizadas,
inquisitoriais na fase policial, expande o certificação dos antecedentes do acusa-
caráter inquisitorial às etapas posterioresdo, até o momento das alegações finais
da instrução criminal. Dadas as regras de redigidas pela acusação e pela defesa.
decisão contidas no Código de Processo Observei que a estratégia de elaboração
Penal quanto ao livre convencimento do do account do juiz é apresentar recor-
juiz, descrever os documentos contidos tes dos principais trechos das alegações
no inquérito policial mostra que este finais de acusação pública e, posterior-
foi certamente utilizado para embasar a mente, os trechos das alegações finais
decisão de pronúncia. Essa observação apresentadas pela defesa do acusado,
permite consolidar a crítica, já que o juizem descrições sucintas. Estabelecendo
não faz uma mera descrição do inquéri- um contraponto entre esses accounts,
to, mas parece efetivamente considerar o de conteúdos conflitantes, ele passa a
conteúdo nele contido: fundamentar sua decisão, demarcada
pela expressão escrita em negrito e su-
“Referida denúncia baseou- blinhada “É o relatório.” ou outras ex-
-se no incluso inquérito poli- pressões semelhantes.
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DESCORTINANDO A INCRIMINAÇÃO EM CASOS DE HOMICÍDIO DOLOSO

É O RELATÓRIO.”
“A Denúncia foi recebida [sentença de pronúncia, Pro-
em 14/06/2005, à f. 131. cesso no 8, destaques do juiz].
ACD [isto é, auto de corpo
de delito] às ff. 113/115. Os accounts dos juízes no encerra-
Auto de apreensão às ff. 38 e 86. mento da primeira fase do rito do tri-
Laudo de vistoria em tele- bunal do júri têm continuidade com
fone celular às ff. 44/55. as argumentações destes frente às ale-
Termo de restituição à f. 56. gações da defesa, apresentadas em ac-
Laudo de levantamento de counts que ora neutralizam a culpa, ora
local e anexo às ff. 57/76. justificam o ato do acusado. Os juízes
Laudo de determinação de constroem linhas argumentativas nos
calibre à f. 77. accounts valendo-se ora das jurispru-
Fac [isto é, ficha de antece- dências e doutrina jurídica, ora dos
dentes criminais] às ff. 97/101, trechos de depoimentos de testemu-
126/129 e 177/180. nhas e dos interrogatórios dos acusa-
Laudo toxicológico à f. 116. dos para sustentar e justificar suas de-
Cac [isto é, certidão de antece- cisões. Estas se referem não somente ao
dentes criminais] às ff. 130 e 176. pronunciamento (ou não) do réu para
O acusado foi interrogado ser julgado pelo conselho de sentença
às ff. 138/140. no ritual do tribunal do júri, mas tam-
Durante a instrução foram bém a outros pedidos da defesa como,
ouvidas 3 (três) testemunhas ar- e principalmente, a liberdade provisó-
roladas em comum pela acusa- ria dos réus que se encontram presos.
ção e defesa, às ff. 158/160. É recorrente que esses accounts sejam
Em alegações finais, o Mi- demarcados por um subtítulo: “Passo
nistério Público pediu a pro- à fundamentação” ou “Passo a funda-
núncia do acusado como in- mentar e a decidir”. Cabe lembrar que
curso nas sanções do art. 121, a sentença pode ser reformada pelos
§2º, incisos I, III e IV, do CPB. desembargadores do Tribunal de Justi-
A defesa do acusado, em ça. E, neste sentido, é um account a ser
alegações finais, arguiu, em apreciado por superiores.
preliminar, nulidade absoluta
do processo, aduzindo, em sín- “É o relatório. Passo a fun-
tese, que não houve a citação damentar e a decidir.
do réu. Pediu, ainda, a desqua- A análise atenta dos autos
lificação do delito. está a indicar ser o réu [NOME]
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 196-219 205
SILVA, Klarissa Almeida

autor dos homicídios narrados ver jurídico, qualquer que seja o


na Exordial acusatória [isto é, dano a que se arrisque.’ (MIRA-
denúncia], em concurso com BETE, Júlio Fabbrini. Manual de
os demais denunciados. Direito Penal – Parte Geral (arts.
A materialidade tem su- 1º a 120 do CP), 22ª. ed., São
porte no relatório de necropsia Paulo: editora Atlas, 2005). [isto
(fls.133/140 e 141/147). é, citação de um doutrinador].
Quanto ao requerido pela Pretendo o réu o reconheci-
Defesa vejamos: Júlio Fabbri- mento da coação moral irresistível.
ni Mirabete [isto é, um “dou- Não existe nos autos, por
trinador”], em seu Manual de ora, elementos de prova que
Direito Penal, preleciona: atestem a situação alegada pelo
‘Existe na coação moral uma réu [NOME]. A coação moral
ameaça, e a vontade do coacto irresistível, para ser aceita como
não é livre, embora possa deci- excludente de culpabilidade, há
dir pelo que considere para si de ser substancialmente com-
um mal menor; por isso, trata-se provada por elementos concre-
hipótese em que se exclui não a tos existentes dentro do pro-
ação, mas a culpabilidade, por cesso, não bastando a simples
não lhe ser exigível comporta- versão dada por quem a invoca.
mento diverso. É indispensável, Nesse sentido:
porém, que a coação seja irre- ‘A coação moral irresistível,
sistível, ou seja inevitável, insu- para ser aceita como excluden-
perável, inelutável, uma força de te de culpabilidade, há de ser
que o coacto não se pode sub- substancialmente comprovada
trair, tudo sugerindo situação à por elementos concretos exis-
qual ele não se pode opor, recu- tentes dentro do processo, não
sar-se ou fazer face, mas tão-so- bastando a simples versão dada
mente sucumbir, ante o decreto pelos agentes que se dizem ví-
do inexorável. É indispensável timas de coação, especialmente
que a acompanhe um perigo quando a descrição do fato por
sério e atual de que ao coagido eles fornecida está contaminada
não é possível eximir, ou que lhe pelo vício da incoerência e da
seja extraordinariamente difícil contradição’ (TAMG – AC –
suportar. Nessa hipótese, não Rel. Abel Machado – RJTAMG
se pode impor ao indivíduo a 21/366) [isto é, citação de uma
atitude heroica de cumprir o de- jurisprudência].
206 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 196-219
DESCORTINANDO A INCRIMINAÇÃO EM CASOS DE HOMICÍDIO DOLOSO

‘A coação irresistível, além Minha leitura desses documentos


de reclamar prova induvido- permite dizer que os laudos construí-
sa, a cargo da defesa, exige, nodos pela perícia cumprem uma função
plano moral, a existência de cerimonial na fase judicial, já que não
uma intimação concreta e ex- parecem configurar como elemento de-
terior ao agente’ (TACRIM-SP terminante para a decisão do juiz quan-
– AC – Rel. Haroldo Luz – JU- to à indicação da autoria. Os laudos de
TACRIM 99/146) [isto é, cita- perícia de local do evento raramente são
ção de uma jurisprudência].” mencionados, enquanto os relatórios de
[sentença de pronúncia, Pro- necropsia sempre o são, já que, ao conte-
cesso no 67]. rem a definição da causa mortis, atestam
aquilo que já se sabe, isto é, que se trata
Nota-se que o account dado pelo de uma morte que permite a criminação
juiz mostra como este se alia ao accou- enquanto homicídio doloso.
nt do promotor de justiça, em conflito
com o do defensor, que tem seu papel “O acusado [NOME], vulgo
limitado pela falta de credibilidade Didi, não nega a autoria do golpe de
dada ao seu relato. Mostra também o faca que ceifou a vida da vítima, mas
papel que o juiz se arroga de defesa e sustentou haver agido em legítima
preservação da ordem social distin- defesa. O contexto probatório corro-
guindo aqueles réus cuja separação é bora a autoria dos fatos narrados na
necessária realizar com a prisão. inicial [isto é, na denúncia], cuja ma-
Busquei observar a função dos pa- terialidade está positivada no relató-
péis produzidos pela polícia técnico- rio de necropsia onde diagnosticada
-científica (os laudos periciais) para a a causa mortis: ‘HEMORRAGIA
construção da incriminação. Percebi INTERNA CONSEQUENTE A
que as referências aos laudos periciais FERIDA PÉRFURO INCISA NO
nas sentenças de pronúncia são pontu- TÓRAX’ (fls. 37/38).
ais. Essas menções parecem sustentar, Certas, pois, autoria e mate-
apenas, que o evento registrado pelo rialidade, passemos à análise do
qual o indivíduo está sendo incrimina- que foi requerido pelas partes.”
do foi registrado como homicídio e é, [sentença de pronúncia, Pro-
de fato, um homicídio doloso. Assim, cesso no 42].
os laudos periciais não acrescentam ele-
mentos às decisões dos juízes quanto ao A observação quanto a não utiliza-
pronunciamento do réu ao julgamento ção dos laudos periciais como produto-
pelo conselho de sentença. res de elementos capazes de sustentar os
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 196-219 207
SILVA, Klarissa Almeida

accounts formulados pelos juízes quan- eu logo saquei meu revolver


do de suas decisões de pronúncia, mos- calibre 0.38, de cinco tiros,
trou que esses elementos são procura- preto, cano curto, e efetuei um
dos nos testemunhos e nas confissões disparo nele, acho que pegou
dos acusados, tomando também por no coração do TUCA, ele che-
base as alegações feitas pelo promotor. gou a bater o braço no revolver,
A análise dos processos indica que aí tanto ele quanto o revólver
raramente os acusados estão acompa- caiu no chão, mas ele levantou
nhados de seus defensores no momen- rapidinho e foi para dentro do
to do interrogatório na Polícia Civil. A portão da escola, tava perti-
presença do defensor passa a ser obri- nho, aí eu também saí corren-
gatória a partir dos procedimentos re- do’, conforme se expressa. [...]
ferentes à primeira fase do rito do tri- ‘na hora eu fiquei com raiva,
bunal do júri, após o oferecimento da mas agora eu tô arrependido’.
denúncia, quando a acusação passa a [...] que é viciado no uso de
ser pública. Talvez por essa razão, te- drogas, sendo cocaína e ma-
nha sido recorrente a confissão na fase conha, mas afirma não ter co-
policial e a negação da autoria, ou ar- metido nenhum desses crimes
gumentação de legítima defesa, nos estando sob efeito de tais subs-
interrogatórios tomados ao longo da tâncias; que o declarante afir-
instrução na primeira fase do rito do ma que também foi autor das
tribunal do júri. Os accounts de defesa mortes de outras duas pessoas
relacionados a essa alteração de conteú- no Jardim Leblon.”
do dos interrogatórios convergem para [interrogatório na fase poli-
a existência da tortura na fase policial. cial, Processo no 36].
Transcrevo, abaixo, trechos de interro-
gatórios de um mesmo acusado em um “[...] os fatos da denúncia não
mesmo processo colhidos na fase poli- são verdadeiros e que não confir-
ciais e na fase judicial. ma as suas declarações prestadas
na fase policial, pois apanhou
“[...] ‘que também já tinha muito da polícia; que perguntado
me ameaçado de morte, veio ao interrogado porque [nome da
pra cima de mim, acho que testemunha] apresentou aquela
era pra me bater, mas ele nem versão semelhante a do interro-
imaginava que eu estivesse ar- gando, este declarou que [nome
mado, ele não sacou nada não, da testemunha] também foi pres-
nem tinha nada na mão, mas sionada e as declarações dela são
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DESCORTINANDO A INCRIMINAÇÃO EM CASOS DE HOMICÍDIO DOLOSO

frutos dos agentes de polícia.” a terceira pessoa do singular mesmo


[interrogatório na primeira em um contexto no qual nitidamente
fase do rito do tribunal do júri, a narrativa foi feita em primeira pes-
Processo no 36]. soa, já que se trata de uma confissão.

Segundo estudos de Lima (2009) e “que o declarante deu uma


Vargas (2012), a confissão é, não raro, rasteira na vítima e quando ela
produto da prática da tortura sofrida pe- caiu, a agrediu com uma pedra,
los acusados na fase policial, o que está desferindo golpes contra a cabe-
diretamente ligado com o caráter secreto ça dela; que o declarante desferiu
dos procedimentos investigatórios se- muitas pedradas contra a vítima;
guidos pelos policiais em suas receitas que a vítima morreu rápido; que
práticas. Essa prática ilegal, por isso es- o declarante já assassinou umas
condida, e tradicional (VARGAS, 2012) quatro pessoas; que matar uma
não é considerada real por quem está jul- pessoa a mais ou a menos não
gando o acusado, já que, embora ele diga altera nada na vida do declaran-
que tenha confessado o crime por ter te; que às vezes se arrepende do
sido torturado na delegacia, ele não tem que fez e às vezes não; que caso
meios de “provar” que o que está dizen- o declarante saia da cadeia, ma-
do é verdade. Diante disso, um limite de tará o marido da vítima; que o
uma das metodologias que utilizo, a aná- declarante tem uns vinte ou trin-
lise documental, é que os resultados ob- ta desafetos que ainda pretende
tidos acabam limitados por um jargão do assassinar; que os desafetos que
campo do Direito segundo o qual “o que cruzam o caminho do declaran-
não está nos autos não está no mundo”. te são assassinados.”
Ainda assim, pude observar al- [trecho de interrogatório re-
guns trechos de confissão que foram produzido na sentença de pro-
reproduzidos pelos juízes em suas núncia, Processo no 49].
sentenças de pronúncia e percebi que
esta é uma prática mais comum en- Construindo seus accounts desta
tre os incriminados por homicídio maneira, os juízes concluem suas sen-
do tipo drogas/tráfico6. Destaco, na tenças de pronúncia informando a tipi-
leitura, a transposição do relato para ficação segundo a qual o acusado será
6
Construí uma tipologia como maneira de classificar o con-
submetido à decisão do conselho de
junto de processos coletados. Entretanto, para os fins deste sentença na sessão de julgamento. É
artigo não se mostra necessário recorrer a ela. Para mais
detalhes sobre esta metodologia e sobre as análises feitas a
neste momento que o formato-padrão
partir dela, ver Silva (2013) especialmente Capítulo 4. se torna mais visível, já que eles se ba-
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 196-219 209
SILVA, Klarissa Almeida

seiam na regra de procedimento segun- com fins no art. 408 do CPP,


do a qual “a fundamentação da sentença PRONUNCIO o réu [NOME],
de pronúncia limitar-se-á à indicação como incurso nas sanções do
da materialidade do fato e da existência 121, §2º , incisos I e IV c/c art.
de indícios suficientes de autoria ou de 29, todos do CP, pela prática de
participação” (BRASIL, 2013, Código homicídio duplamente qualifi-
de Processo Penal, artigo 4137, §1º). Fa- cado contra a vítima [Nome],
zem-no da seguinte maneira: na data, local e circunstâncias
descritos na Denúncia”.
“A materialidade tem su- [sentença de pronúncia, Pro-
porte no relatório de necropsia cesso no 90, destaques do juiz].
(fls. 64/66).
Não podendo, pois, ser afas- O trecho anterior é útil para mostrar
tadas, de plano, autoria e mate- como certos accounts podem ser desa-
rialidade, não há como impro- creditados, seja porque os atos são con-
nunciar o acusado. No caso sub siderados graves excedendo ao account
judice, restaram preenchidos oferecido, seja porque os motivos da-
os requisitos necessários para dos não são aceitos (SCOTT; LYMAN,
uma decisão de pronúncia [...]. 2008[1968]). Chamou-me a atenção, na
Quanto às qualificadoras leitura desses processos, que os accounts
descritas na denúncia, sabe- de defesa, nas alegações finais que an-
-se que somente devem ser tecedem a sentença de pronúncia apre-
arredadas do dispositivo da sentam mais de uma tese defensiva, de-
pronúncia quando manifes- monstrando, com isso, que o sistema de
tamente impertinentes e des- justiça criminal brasileiro é uma espécie
cabidas. No caso em pauta, as de “jogo de soma zero”, onde um ganha
mesmas parecem evidenciadas e outro perde. A negociação e o acordo
nos motivos e nas circunstân- parecem ser, ao menos para o rito do tri-
cias em que se deram os fatos, bunal do júri, inexistentes. Outra carac-
razão por que restam mantidas terística observada é que, como a defesa
para a apreciação dos Jurados. é obrigatória na instrução criminal judi-
Ante o exposto, e por tudo cial, esta usa todas as alternativas dispo-
o mais que dos autos consta, níveis para amenizar a derrota inevitável.
7
A correspondência no Código de Processo Penal anterior a
Neste sentido, merece destaque a
2008 é artigo 408. Apesar da numeração diferenciada, a re- hiperbolização de alguns accounts de
dação da regra é muito similar: “Se o juiz se convencer da
existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor,
defesa, tal como pode ser observado no
pronunciá-lo-á, dando os motivos de seu convencimento”. trecho transcrito abaixo. Neste processo
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DESCORTINANDO A INCRIMINAÇÃO EM CASOS DE HOMICÍDIO DOLOSO

de um homicídio relacionado a questões ruas do Beco São José exibindo


de drogas/tráfico de drogas, onde houve a cabeça da vítima como se fos-
a decapitação da vítima, a incriminação se um ‘troféu’. [...] Muito bem.
sugerida na denúncia foi: a) homicídio Temos que reconhecer forçosa-
doloso, qualificado como motivação mente que não houve em mo-
fútil e por meio cruel, que dificultou a mento algum ultraje ao cadáver
defesa da vítima (artigo 121, § 2º., I e IV, da vítima praticado pelo acu-
Código Penal do Brasil); b) destruição, sado. O mesmo, desesperado
subtração ou ocultação de cadáver (ar- com o que havia acontecido,
tigo 211, Código Penal do Brasil) e; c) vindo só depois a ter noção de
vilipêndio do cadáver ou de suas cinzas que havia decapitado a vítima,
(artigo 212, Código Penal do Brasil). apenas estava tentando se livrar
Este é um caso atípico em que a senten- daquele membro que estava em
ça do juiz não seguiu a denúncia em to- seu poder. Inclusive procurou a
das as acusações. namorada para que lhe ajudas-
se a se livrar daquele pedaço de
“[...] ora, de certo que o cadáver. [...] Requer a defesa o
segmento corporal, cabeça, reconhecimento da legítima
foi extirpado do resto do cor- defesa como causa excludente
po, mas não podemos admitir de ilicitude e a consequente ab-
que a este fato se atribua o sta- solvição sumária do acusado.
tus de um crime de destruição Alternativamente, o decote das
de cadáver posto que todos os qualificadoras por manifesta-
componentes deste seguimento mente improcedentes, confor-
foram preservados. [...] O real me demonstrado. Quanto aos
significado do termo destrui- crimes de destruição, subtração
ção refere-se a demolir, destro- ou ocultação de cadáver e o cri-
çar, fazer desaparecer. Isto não me de vilipêndio a cadáver, a
aconteceu no caso em tela. A defesa requer a impronúncia do
cabeça mesmo retirada do seu acusado por estes crimes, pelas
local de origem, permaneceu razões demonstradas acima.”
intacta. A ocultação do cadá- [alegações finais, Processo no 130].
ver também não merece ser
acolhida. Se o acusado tivesse Pronunciados, os acusados são julga-
mesmo a intenção de ocultar o dos pelo conselho de sentença na sessão
cadáver, não teria, como a pró- de julgamento, que é chamada simples-
pria denúncia narra, saído pelas mente “o júri”. Os antropólogos têm se
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 196-219 211
SILVA, Klarissa Almeida

dedicado à observação dessas receitas materialidade e letalidade, re-


práticas ao realizarem etnografias sobre futou as teses de legítima de-
este ritual. Um ponto comum entre esses fesa putativa e do homicídio
estudos converge para a observação de privilegiado, acatou as qualifi-
que a decisão dos jurados no conselho de cadoras do motivo torpe e do
sentença advém de moralidades que são recurso que impossibilitou a
expostas por promotores e defensores se- defesa da vítima e, finalmente
gundo aspectos como drama ou o jogo inacolheu a atenuante da con-
(SCHRITZMEYER, 2001; FIGUEIRA, fissão espontânea, considero o
2008), ou por um processo de acumula- réu [NOME] culpado do cri-
ção social da violência, segundo o qual os me de homicídio qualificado
acusados já chegam condenados porque e, por isso, incurso nas sanções
compõem o tipo social dos incrimináveis penais do artigo 121, §2º inci-
e, portanto, dos condenáveis (MOREI- sos I e IV do CP, [...] passando
RA-LEITE, 2006, 2008). Não observei por isso a impor-lhe a pena:
as sessões de julgamento relacionadas a Atendendo a culpabilidade
esses incriminados. Mas pude perceber [...], aos antecedentes (bons), a
nas sentenças finais que a decisão tomada personalidade do agente (boa),
pelo conselho de sentença não demanda a conduta social (sem notícias
justificações, nem prestação de contas, desabonadoras), aos motivos
ou seja, não demanda nenhum dos dois (injustificáveis, quaisquer que
sentidos de accounts, seja no sentido sejam, muito menos aqueles
de Scott e Lyman (2008[1968]), seja no apresentado pelo réu em seu
sentido colocado por Garfinkel (1967). interrogatório em plenário; le-
A decisão do conselho de sentença é vado aqui em conta a torpeza
descrita em poucas linhas pelo juiz-pre- reconhecida pelo Conselho de
sidente nas sentenças finais. E, só após, Sentença), as circunstâncias
ele passa a fixar a pena ao incriminado, (graves pela própria natureza,
redigindo o seu account, em primeira mas que já se constituem em
pessoa do singular, baseado em classifi- elementar do tipo legal), bem
cações sobre o acusado, tais como: cul- como atento ao comporta-
pabilidade, antecedentes, personalidade, mento natural da vítima, fixo a
conduta social e motivos. pena base de 14 (catorze) anos
de reclusão, sendo que, ante a
“Na conformidade da de- ausência de circunstâncias ou
cisão do Conselho de Senten- causas modificativas, concreti-
ça que reconheceu a autoria, zo a pena do réu em 14 (cator-
212 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 196-219
DESCORTINANDO A INCRIMINAÇÃO EM CASOS DE HOMICÍDIO DOLOSO

ze) anos de reclusão, a serem tima defesa, o que foi acatado pelo conse-
cumpridos em Estabeleci- lho de sentença, que o absolveu.
mento Penitenciário próprio,
em REGIME FECHADO [...]” “A materialidade do delito
[sentença final, Processo n o
ficou comprovada pelo relató-
106, destaques do juiz]. rio de necropsia às fls. 24/25 do
inquérito policial acostado nos
Em complemento a estas análises, autos. (...) As demais provas car-
busquei os processos cujo resultado foi readas não trouxeram elementos
a absolvição, no intuito de perceber se para os autos capazes de desnatu-
os elementos que parecem determinar as rar, nesta quadra, a pretensão mi-
condenações estão ausentes nas absolvi- nisterial. (...) Sendo a pronúncia
ções. O processo que tomo como exem- um mero juízo de admissibilida-
plo é o de um acusado policial militar que, de da acusação, adstrito à prova
em serviço, matara um indivíduo . A tipi- 8
da existência da materialidade do
ficação contida na denúncia correspondia delito e suficientes indícios da au-
a homicídio por motivação simples (arti- toria, deve-se evitar aprofundado
go 121, §2º, “caput”, do Código Penal do exame da prova, a fim de não in-
Brasil). Foi possível perceber, neste caso, fluir no convencimento daqueles
que o relato da acusação baseou-se em que são os juízes naturais da cau-
argumentos curtos e pouco elaborados. sa. Nesta fase, os elementos in-
Contrariamente, os accounts da defesa fo- diciários coligidos para os autos
ram tão extensos que demandaram serem não estão a indicar, sem sobres-
apensados ao processo. A defesa adicio- saltos de dúvidas, o acolhimento
nou cartas e certidões do alto comando da tese defensiva de excludente
da Polícia Militar cujo teor era o de enal- de ilicitude, seja a legítima defe-
tecimento à bravura e ao profissionalismo sa ou o estrito cumprimento do
do acusado. Paralelamente à extensão dos dever legal. (...) Assim sendo, não
depoimentos das testemunhas de defesa, vislumbro elementos de provas
foi perceptível a ausência de depoimentos estremes de dúvidas quanto ao
de testemunhas de acusação, desenhando pleito da defesa. No mais, a tese
um aspecto não observado nos demais esboçada pela defesa, qual seja,
processos analisados. Os accounts de de- de que o acusado agiu amparado
fesa convergiram para o argumento de pelas duas excludentes de ilicitu-
estrito cumprimento do dever legal e legí- de, legítima defesa e estrito cum-
8
Dos outros quatro processos consultados, dois referem-se a
primento do dever legal, verifico
homicídio do tipo conflitos cotidianos e dois ao tipo caput. que se houver qualquer dúvida
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 196-219 213
SILVA, Klarissa Almeida

quanto à excludente ou justifica- Identificação, dando-se baixa


tiva, a solução é “pro societate”. na distribuição.
POSTO ISSO, é por tudo mais Custas, como de lei.
que dos autos consta, PRONUN- Publicadas nesta assentada
CIO o acusado: [nome], quali- de julgamentos, dou as partes
ficado nos autos, como incurso por intimadas.
nas sanções do art. 121 caput do Registre-se e cumpra-se”
CPB, submetendo-o a julgamen- [sentença final, Processo no 26].
to perante o Tribunal do Júri Po-
pular desta Comarca” Uma percepção, que pode funda-
[sentença de pronúncia, Pro- mentar uma hipótese de pesquisa, refe-
cesso no 26]. re-se ao tamanho dos depoimentos das
testemunhas. Pelo que pude perceber
“[NOME], devidamente qua- ao folhear os processos, os depoimentos
lificado, foi pronunciado como das testemunhas de acusação preenchem
incurso nas sanções do art. 121, mais folhas, ocupam mais espaço dentro
caput, do Código Penal Brasilei- de um processo. Isto se deve, provavel-
ro, sob a acusação de ter, [data, mente, ao peso diferenciado da acusação
hora, local] efetuado um dispa- em relação à defesa no processo. O exem-
ro de arma de fogo, utilizando plo dado acima auxilia essa reflexão.
uma pistola Taurus, calibre 9mm, Com base nas análises desses pro-
no. TRA 62797, contra a vítima cessos, pude notar, em um primeiro
[nome], causando-lhe as lesões momento mais abrangente, que algumas
corporais descritas no relatório de palavras parecem ser escolhidas cuida-
necropsia acostado às ff. 36/40 dos dosamente tanto por acusadores quanto
autos complementares em apenso por defensores. Ao elaborar seus relatos,
que foram a causa de sua morte. esses operadores reforçam a linguagem
Nesta data procedeu-se ao típica do meio jurídico, fazendo uso de
seu julgamento. um vocabulário alheio à linguagem co-
O Conselho de Sentença aca- tidiana da sociedade brasileira. Assim
tou a tese defensiva da legítima agindo, os operadores do sistema de jus-
defesa. Por isso, em obediência à tiça não apenas delimitam um território
soberania dos veredictos do Júri, especial e pouco acessível, mas passam
fica o réu [NOME], ABSOLVI- a demarcar uma fronteira que nunca foi
DO da imputação que lhe foi feita. - e jamais poderia ser - invisível. Parece
Com o trânsito em julgado ser imprescindível separar, diferenciar
desta, oficie-se ao Instituto de categoricamente o mundo do Direito do
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DESCORTINANDO A INCRIMINAÇÃO EM CASOS DE HOMICÍDIO DOLOSO

mundo comum, promovendo a realida- COMENTÁRIOS FINAIS


de à outra dimensão. Parece ser preciso Os inquéritos que são concluídos pe-
orientar as “pessoas comuns”, aquelas ex- los delegados de polícia chegam aos pro-
ternas ao ambiente forense, sobre como motores de justiça no Ministério Público.
se comportar nesse outro mundo. Diz as regras de procedimento que estes
É através desta linguagem específica devem redigir as denúncias, inaugurando
que o processo de incriminação é cons- a instrução criminal no judiciário, e tor-
truído institucionalmente, através de nando a acusação pública. No caso da ins-
accounts, tanto no sentido definido por trução criminal pelo rito do tribunal do
Garfinkel (1967) como no sentido ex- júri, a incriminação se dá em duas fases.
posto por Scott e Lyman (2008[1968]). A primeira é encerrada pela sentença de
De um lado, as denúncias dos promoto- pronúncia do juiz, quando ele decide por
res de justiça e, as sentenças dos juízes, remeter (ou não) o acusado a julgamen-
devem ser vistos como uma maneira tí- to pelo conselho de sentença, o júri. Essa
pica de relacionar eventos e indivíduos fase caracteriza-se, principalmente, pela
a categorias abstratas dos códigos (CI- repetição das chamadas “oitivas” das tes-
COUREL, 1968). São relatos constru- temunhas e do interrogatório do acusado,
ídos por meio do conhecimento típico visto que esses procedimentos já ocorre-
adquirido na socialização profissional: ram na fase policial. A diferença, agora,
determinados tipos de vítimas, certos ti- é que obrigatoriamente o acusado deve
pos de cenários onde esses eventos cos- estar acompanhado de seu defensor, seja
tumam ocorrer (SUDNOW, 1965). De público ou constituído. Uma vez pronun-
outro, as alegações da defesa e os inter- ciado, o acusado aguarda a data de seu
rogatórios dos acusados no sentido de julgamento pelo ritual do júri. Após a de-
produzir desculpas ou justificações. Nos cisão tomada pelo conselho de sentença
accounts do tipo desculpas, o ator admi- (júri), o juiz-presidente redige a sentença
te que o ato foi impróprio ou inadequa- final mencionando a decisão do conselho
do, mas nega ter responsabilidade sobre e fixando a pena que deverá ser cumprida
o mesmo. Nas justificações, o ator aceita pelo condenado (ou a extinção da punibi-
a responsabilidade pelo ato, mas não o lidade, nos casos de absolvição).
caráter pejorativo associado ao mesmo Ao longo do processo de incrimina-
(SCOTT; LYMAN, 1968[2008]). Neste ção, na primeira fase do rito do tribunal
sentido, a incriminação no rito do tri- do júri, vão sendo apresentados ao juiz
bunal do júri pode ser compreendida os relatos de acusação pública e os accou-
como o resultado de um processo cons- nts de defesa. Ao receber os accounts de
truído entre os relatos da acusação pú- defesa, o juiz “abre vistas” ao promotor
blica e os accounts de defesa. de justiça, só tomando a sua decisão em
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 196-219 215
SILVA, Klarissa Almeida

relação aos accounts de defesa após a res- denúncia. Logo, é possível dizer que a
posta do Ministério Público. Analisando organização que determina o resultado
esses processos, pude perceber que mui- final do processo de incriminação na
to raramente o juiz apresenta decisão dis- primeira fase do rito do júri é a mesma
cordante dos relatos apresentados pela que a inicia, o Ministério Público. A de-
acusação. Desse modo, a incriminação núncia se mostra como a peça principal
parece ganhar subsídios quase que irre- e o seu conteúdo se amplia na medida
versíveis pelo fato de os juízes tenderem a em que os relatos da acusação são aca-
decidir em conformidade com os relatos tados pelo juiz. Isso permite dizer que
da acusação, o que se torna muito visível uma vez acusado publicamente de um
nas sentenças de pronúncia que formal- desvio, principalmente quando a regra
mente só fazem reiterar a denúncia e pre- quebrada é a “não matarás”, dificilmente
parar o processo para julgamento pelo o indivíduo deixará de ser um “desviante
júri. Talvez por essa razão, tenha sido puro” (BECKER, 2009[1963]). Uma vez
possível perceber que a tipificação conti- acusado publicamente de ter cometido o
da na denúncia é, na grande maioria dos evento criminado como homicídio dolo-
casos analisados, mantida na sentença de so, o resultado da reação social será re-
pronúncia. Nesse sentido, a denúncia é o presentado pela punição deste indivíduo
mais determinante da condenação que e o cumprimento da pena pelo mesmo.
todas as etapas subsequentes do rito. A fixação da pena pelo juiz é feita me-
Na sentença de pronúncia, o juiz diante um cálculo matemático-jurídico
toma sua decisão de acordo com o prin- baseado, a meu ver, também no princí-
cípio do “livre convencimento motiva- pio do livre convencimento motivado. A
do”. Mendes (2012) mostra como este decisão do conselho de sentença, quan-
princípio vem sendo atualizado pelos to a absolvição ou condenação do réu,
juízes e influenciando na reprodução da parece ser de caráter cerimonial, com o
distribuição desigual de justiça. A exis- intuito de passar à sociedade a imagem
tência deste princípio, sobretudo no rito de que a justiça é democrática, igualitá-
que dá subsídio ao entendimento de que ria. O fato da decisão do conselho não
o sistema de justiça brasileiro seria de ca- demandar a produção de um account,
ráter misto, gera mais uma incoerência em qualquer um dos sentidos (já que o
interna, e fornece bases para classificá-lo account poderia ser demandado de cada
como plenamente inquisitório. jurado ou do conselho enquanto um ins-
Com base na análise mais geral sobre tituto), é útil para pensar a este respeito.
este conjunto de processos, a tipificação Pude observar que os laudos periciais
penal contida na sentença de pronúncia são apenas mencionados pelos juízes
raramente se diferencia do apontado na como forma de constatarem a materia-
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DESCORTINANDO A INCRIMINAÇÃO EM CASOS DE HOMICÍDIO DOLOSO

lidade comprovada, sendo que o laudo da condenação. Assim, a organização que


mais valorizado é o de necropsia – pois inicia a instrução judicial, o Ministério
é neste que reside a causa mortis – e não Público, é a que determina o modo como
os de “perícia de local do crime”. Assim, a incriminação será concluída.
os laudos periciais não acrescentam ele-
mentos às decisões dos juízes quanto ao REFERÊNCIAS
pronunciamento do réu ao julgamento BEATO FILHO, 1992. “Definição
pelo conselho de sentença. Dessa ma- de um fato: homicídio ou suicídio?”.
neira, os laudos construídos pela perícia Análise & Conjuntura. Vol. 07, n. 2 e 3,
cumprem uma função cerimonial na fase maio/dez. Belo Horizonte, Brasil.
judicial, já que não configuram como BECKER, Howard. 2009 [1963]. Out-
elemento determinante para a decisão do siders: Estudos de Sociologia do Desvio.
juiz quanto à indicação da autoria. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 231p.
Se os accounts dos juízes não são em- BRASIL. 2013. Código de Processo
basados pelos relatos dos peritos, eles o são Penal. GOMES, Luiz Flávio (org.). São
no embate entre os accounts de acusação Paulo: Editora Revista dos Tribunais
e os accounts de defesa. Para tanto, o juiz (RT MiniCódigos).
se vale de seu conhecimento jurídico so- ______. 2013. Código Penal. GO-
bre a doutrina e sobre as jurisprudências, MES, Luiz Flávio (org.). São Paulo: Editora
além de transcrever trechos presentes nos Revista dos Tribunais (RT MiniCódigos).
“autos” para fundamentar o seu “livre con- CICOUREL, Aaron V. 1968. The
vencimento motivado”. Observei que o ac- Social Organization of Juvenile Jus-
count dado pelo juiz mostra como este se tice. New York, John Wiley & Sons, Inc.
alia ao account do promotor de justiça, em FIGUEIRA, Luiz Eduardo. 2008. O ri-
conflito com o do defensor, que tem seu tual judiciário do Tribunal do Júri. Porto
papel limitado pela falta de credibilidade Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor.
dada ao seu relato, já que as regras de de- GARAPON, Antoine; PAPADO-
cisão não obrigam o réu a dizer a verdade. POULOS, Ioannis. 2008. Julgar nos
Se os laudos periciais, principalmente Estados Unidos e na França: cultura
os laudos das perícias em local de morte jurídica francesa e Common Law em
registrada, cumprem uma função ceri- uma perspectiva comparada. Coleção
monial desde o inquérito policial até a Conflitos, Direitos e Cultura. Rio de Ja-
sentença final, passando pela sentença de neiro, Editora Lúmen Júris.
pronúncia, a denúncia apresenta o account GARFINKEL, Harold. 1967. Stud-
que será reproduzido ao longo das etapas ies in Ethnomethodology. Englewood
do rito do tribunal do júri. Por isso, pos- Cliffs: Prentice Hall.
so apontá-la como o mais determinante GRINOVER, Ada Pellegrini. 1998.
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