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DESCORTINANDO A INCRIMINAÇÃO
EM CASOS DE HOMICÍDIO DOLOSO1
Klarissa Almeida Silva
Doutora em Ciências Humanas/ Sociologia (PPGSA/UFRJ).
E-mail: silva.klarissa@gmail.com
RESUMO
Relatos como laudos periciais, relatórios de inquérito policial, denúncias e sentenças são vistos
da perspectiva de dar satisfação e de prestar contas, e como espaço privilegiado de criação da
realidade social. Laudos são utilizados por juízes como forma de sustentar a morte como um
homicídio e os relatos são construídos com base no embate entre acusação e defesa. Durante a
incriminação no rito do tribunal do júri, as sentenças de pronúncia reiteram as denúncias e os
processos judiciais chegam ao conselho de sentença. Deste modo, as tipificações jurídicas das
sentenças finais tendem a ser idênticas às das denúncias, que são muito semelhantes ao indicado
nos relatórios de conclusão dos inquéritos policiais. Já os laudos das perícias em local de morte
registrada cumprem uma função cerimonial desde o inquérito policial até a sentença final.
Palavras-chaves: Laudo de “local de crime”, Homicídio doloso, Incriminação
ABSTRACT
Accounts as expert reports, reports of police investigation, complaints and sentences are seen
from the perspective of giving satisfaction and accountability, and as a privileged space for
creation of social reality. Experts reports are used by judges as a way to sustain the death as
a homicide and the accounts are built based on the clash between prosecution and defence.
During the criminality in the rite of trial by jury, the sentences of pronunciation reiterate the
complaints and court proceedings reach the jurors. In this way, the legal crime of final sen-
tences tend to be identical to those complaints, which are very similar to the indicated in the
reports of completion of police inquests. Since the reports “crime scene investigation” of dea-
th recorded with a ceremonial function since the police investigation until the final sentence.
Keywords: Report “crime scene investigation”, Homicide, Incrimination
1
Este artigo foi originalmente apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, no Grupo de Trabalho (GT) no 75 “Sensibili-
dades jurídicas e sentidos de justiça na contemporaneidade: interlocução entre antropologia e direito”, coordenado pelos professores
196 CONFLUÊNCIAS
Jacqueline | Revista
Sinhoretto (UFSCar), KátiaInterdisciplinar de Sociologia
Sento-Sé Mello (UFRJ) e Direito.
e Fábio Motta (UFF),Vol.
em16, nº sob
2014, 3, 2014. pp.“A196-219
o título incriminação em casos de
homicídio doloso: a denúncia como relato determinante da condenação e o laudo de ‘local de morte’ como relato de caráter cerimonial”.
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SILVA, Klarissa Almeida
Analiso esses processos visando lado, meu olhar para os relatos da defesa,
identificar possíveis elementos que pa- bem como as falas transcritas dos acu-
recem determinar a decisão do conselho sados, segue o entendimento de accounts
de sentença para condenar os acusados. segundo a perspectiva de Scott e Lyman:
Em minhas análises, não estarei falando
de práticas rotineiras de promotores de “afirmação feita por um
justiça, defensores, juízes e jurados, já ator social para explicar um
que eu não as observei. Por isso, é im- comportamento imprevisto ou
portante destacar também que, apesar de impróprio - seja este comporta-
considerar a decisão tomada pelo conse- mento seu ou de outra pessoa,
lho de sentença, eu não analiso a sessão quer o motivo imediato para a
de julgamento, o ritual do tribunal do afirmação parta do próprio ator
júri propriamente dito. Este vem sendo ou de alguém mais” (SCOTT;
estudado principalmente por antropólo- LYMAN, 1968[2008], p. 138).
gos que destacam como a verdade jurí-
dica é construída com base em aspectos Ao buscar identificar elementos que
lúdicos, textuais e dramatúrgicos deste podem determinar a condenação dos
ritual (SCHRITZMEYER, 2001, 2012; acusados, analiso como a incriminação é
FIGUEIRA, 2008). Portanto, valho-me construída ao longo da instrução crimi-
de análise documental referente ao rito nal no rito do tribunal do júri, desde a de-
(e não ritual) do tribunal do júri. núncia até a sentença final passando pela
O que a fonte de dados aqui contem- sentença de pronúncia, momento este
plada me permite, em termos metodoló- que delimita a transição entre a primeira
gicos, é analisar esse material com base e a segunda fase do rito. Consulto prio-
nos relatos de acusação pública (pro- ritariamente os processos localizados e
duzidos por promotores de justiça) aos acessíveis para análise que já contivessem
quais se contrapõem os relatos da defesa “sentença transitada em julgado”, isto é,
(produzidos pelos defensores públicos já finalizados e arquivados em definitivo
ou advogados e pelos próprios acusados no Arquivo do Fórum Lafayette, em Belo
em seus interrogatórios), bem como as Horizonte/MG. Em menor medida, con-
decisões dos juízes tomadas com base sulto também os processos cujas senten-
nesses relatos. Nesse sentido, meu olhar ças finais tiveram como decisão do conse-
para os relatos de acusação e da senten- lho de sentença, a absolvição do acusado.
ça está orientado pelo entendimento de O objetivo em olhar esses processos é o
Garfinkel (1967) sobre accounts: relatos de pensar o oposto (MILLS, 1975[1959]):
que justificam a tomada de decisão em identificar se os elementos determinantes
ambiente organizacional. E, de outro para a absolvição são os que correspon-
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tos com vistas a dar satisfação e prestar processo de incriminação. Pela primeira
contas do que é decidido em cada etapa vez, e só agora, a defesa entra legalmen-
da instrução criminal. Se cada relato é a te no processo de incriminação. Diante
interpretação de interpretações feitas de disso, o acusado é obrigado a apresentar
relatos anteriores, feitos por diferentes sua defesa prévia, seja por advogado
operadores, a interpretação que eu faço particular ou por defensor público.
desses relatos é o resultado compilado Dando prosseguimento ao fluxo no
de uma leitura de terceira, quarta mão. rito do tribunal do júri, oferecida e acei-
No Brasil, as regras de procedimen- ta a denúncia, citado o réu e apresen-
to que orientam as receitas práticas dos tada sua defesa prévia, são iniciados os
operadores do sistema de justiça estão procedimentos necessários à instrução
contidas no Código de Processo Penal4. criminal na primeira fase do rito, com
Uma dessas regras diz respeito à formu- a tomada de depoimento das testemu-
lação da denúncia, peça inicial de uma nhas e do interrogatório do réu, pela
ação penal pública, elaborada pelos segunda vez. A primeira vez dá-se na
promotores de justiça. Esse documen- instrução preliminar do inquérito poli-
to deve conter todas as informações do cial, na etapa policial. A diferença des-
fato delituoso, de forma a possibilitar a ses procedimentos realizados dentro do
defesa do réu. Para isso, a narração nela rito do tribunal do júri em relação aos
contida deve, segundo o texto, ser su- mesmos procedimentos da fase policial
cinta, clara e justa. O inquérito policial converge para o caráter público que os
segue entranhado ao processo judicial mesmos passam a adquirir e pela pre-
e tem a função, tal como expresso tam- sença obrigatória de defensor para o
bém no Código de Processo Penal, de acusado. As pessoas não falam mais
embasar o promotor de justiça para o para um delegado ou para policiais em
oferecimento da denúncia. um ambiente secreto, mas para um juiz
Uma vez que a denúncia é ofereci- em um “plenário” onde há espaço para
da e aceita pelo juiz, ocorre a citação do o público interessado em assistir a essas
réu, isto é, a comunicação oficial e pú- “audiências de instrução”.
blica ao sujeito que está sendo alvo do Ouvidos novamente testemunhas e
4
o acusado, os “autos” são encaminha-
Leis de 2008 (no 11.689/08, no 11.719/08, no 11.690/08) e
de 2009 (no 11.900/09) alteraram alguns artigos do Código
dos ao juiz responsável pela primeira
de Processo Penal. Dos processos dos quais partem minhas fase do rito, o mesmo que ministrou (ou
análises, 9 contêm sentenças de pronúncia com datas pos-
teriores a 2008. Entretanto, 57% deles contêm sentenças fi-
deveria ter ministrado) as audiências,
nais datadas após 2008. Como minha intenção é identificar para que ele possa tomar uma dentre
possíveis elementos que podem determinar a decisão dos
jurados pela condenação dos acusados, decidi utilizar o Có-
três decisões: pronunciar, impronunciar
digo de Processo Penal de 2013. ou absolver sumariamente o acusado.
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É O RELATÓRIO.”
“A Denúncia foi recebida [sentença de pronúncia, Pro-
em 14/06/2005, à f. 131. cesso no 8, destaques do juiz].
ACD [isto é, auto de corpo
de delito] às ff. 113/115. Os accounts dos juízes no encerra-
Auto de apreensão às ff. 38 e 86. mento da primeira fase do rito do tri-
Laudo de vistoria em tele- bunal do júri têm continuidade com
fone celular às ff. 44/55. as argumentações destes frente às ale-
Termo de restituição à f. 56. gações da defesa, apresentadas em ac-
Laudo de levantamento de counts que ora neutralizam a culpa, ora
local e anexo às ff. 57/76. justificam o ato do acusado. Os juízes
Laudo de determinação de constroem linhas argumentativas nos
calibre à f. 77. accounts valendo-se ora das jurispru-
Fac [isto é, ficha de antece- dências e doutrina jurídica, ora dos
dentes criminais] às ff. 97/101, trechos de depoimentos de testemu-
126/129 e 177/180. nhas e dos interrogatórios dos acusa-
Laudo toxicológico à f. 116. dos para sustentar e justificar suas de-
Cac [isto é, certidão de antece- cisões. Estas se referem não somente ao
dentes criminais] às ff. 130 e 176. pronunciamento (ou não) do réu para
O acusado foi interrogado ser julgado pelo conselho de sentença
às ff. 138/140. no ritual do tribunal do júri, mas tam-
Durante a instrução foram bém a outros pedidos da defesa como,
ouvidas 3 (três) testemunhas ar- e principalmente, a liberdade provisó-
roladas em comum pela acusa- ria dos réus que se encontram presos.
ção e defesa, às ff. 158/160. É recorrente que esses accounts sejam
Em alegações finais, o Mi- demarcados por um subtítulo: “Passo
nistério Público pediu a pro- à fundamentação” ou “Passo a funda-
núncia do acusado como in- mentar e a decidir”. Cabe lembrar que
curso nas sanções do art. 121, a sentença pode ser reformada pelos
§2º, incisos I, III e IV, do CPB. desembargadores do Tribunal de Justi-
A defesa do acusado, em ça. E, neste sentido, é um account a ser
alegações finais, arguiu, em apreciado por superiores.
preliminar, nulidade absoluta
do processo, aduzindo, em sín- “É o relatório. Passo a fun-
tese, que não houve a citação damentar e a decidir.
do réu. Pediu, ainda, a desqua- A análise atenta dos autos
lificação do delito. está a indicar ser o réu [NOME]
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ze) anos de reclusão, a serem tima defesa, o que foi acatado pelo conse-
cumpridos em Estabeleci- lho de sentença, que o absolveu.
mento Penitenciário próprio,
em REGIME FECHADO [...]” “A materialidade do delito
[sentença final, Processo n o
ficou comprovada pelo relató-
106, destaques do juiz]. rio de necropsia às fls. 24/25 do
inquérito policial acostado nos
Em complemento a estas análises, autos. (...) As demais provas car-
busquei os processos cujo resultado foi readas não trouxeram elementos
a absolvição, no intuito de perceber se para os autos capazes de desnatu-
os elementos que parecem determinar as rar, nesta quadra, a pretensão mi-
condenações estão ausentes nas absolvi- nisterial. (...) Sendo a pronúncia
ções. O processo que tomo como exem- um mero juízo de admissibilida-
plo é o de um acusado policial militar que, de da acusação, adstrito à prova
em serviço, matara um indivíduo . A tipi- 8
da existência da materialidade do
ficação contida na denúncia correspondia delito e suficientes indícios da au-
a homicídio por motivação simples (arti- toria, deve-se evitar aprofundado
go 121, §2º, “caput”, do Código Penal do exame da prova, a fim de não in-
Brasil). Foi possível perceber, neste caso, fluir no convencimento daqueles
que o relato da acusação baseou-se em que são os juízes naturais da cau-
argumentos curtos e pouco elaborados. sa. Nesta fase, os elementos in-
Contrariamente, os accounts da defesa fo- diciários coligidos para os autos
ram tão extensos que demandaram serem não estão a indicar, sem sobres-
apensados ao processo. A defesa adicio- saltos de dúvidas, o acolhimento
nou cartas e certidões do alto comando da tese defensiva de excludente
da Polícia Militar cujo teor era o de enal- de ilicitude, seja a legítima defe-
tecimento à bravura e ao profissionalismo sa ou o estrito cumprimento do
do acusado. Paralelamente à extensão dos dever legal. (...) Assim sendo, não
depoimentos das testemunhas de defesa, vislumbro elementos de provas
foi perceptível a ausência de depoimentos estremes de dúvidas quanto ao
de testemunhas de acusação, desenhando pleito da defesa. No mais, a tese
um aspecto não observado nos demais esboçada pela defesa, qual seja,
processos analisados. Os accounts de de- de que o acusado agiu amparado
fesa convergiram para o argumento de pelas duas excludentes de ilicitu-
estrito cumprimento do dever legal e legí- de, legítima defesa e estrito cum-
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Dos outros quatro processos consultados, dois referem-se a
primento do dever legal, verifico
homicídio do tipo conflitos cotidianos e dois ao tipo caput. que se houver qualquer dúvida
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relação aos accounts de defesa após a res- denúncia. Logo, é possível dizer que a
posta do Ministério Público. Analisando organização que determina o resultado
esses processos, pude perceber que mui- final do processo de incriminação na
to raramente o juiz apresenta decisão dis- primeira fase do rito do júri é a mesma
cordante dos relatos apresentados pela que a inicia, o Ministério Público. A de-
acusação. Desse modo, a incriminação núncia se mostra como a peça principal
parece ganhar subsídios quase que irre- e o seu conteúdo se amplia na medida
versíveis pelo fato de os juízes tenderem a em que os relatos da acusação são aca-
decidir em conformidade com os relatos tados pelo juiz. Isso permite dizer que
da acusação, o que se torna muito visível uma vez acusado publicamente de um
nas sentenças de pronúncia que formal- desvio, principalmente quando a regra
mente só fazem reiterar a denúncia e pre- quebrada é a “não matarás”, dificilmente
parar o processo para julgamento pelo o indivíduo deixará de ser um “desviante
júri. Talvez por essa razão, tenha sido puro” (BECKER, 2009[1963]). Uma vez
possível perceber que a tipificação conti- acusado publicamente de ter cometido o
da na denúncia é, na grande maioria dos evento criminado como homicídio dolo-
casos analisados, mantida na sentença de so, o resultado da reação social será re-
pronúncia. Nesse sentido, a denúncia é o presentado pela punição deste indivíduo
mais determinante da condenação que e o cumprimento da pena pelo mesmo.
todas as etapas subsequentes do rito. A fixação da pena pelo juiz é feita me-
Na sentença de pronúncia, o juiz diante um cálculo matemático-jurídico
toma sua decisão de acordo com o prin- baseado, a meu ver, também no princí-
cípio do “livre convencimento motiva- pio do livre convencimento motivado. A
do”. Mendes (2012) mostra como este decisão do conselho de sentença, quan-
princípio vem sendo atualizado pelos to a absolvição ou condenação do réu,
juízes e influenciando na reprodução da parece ser de caráter cerimonial, com o
distribuição desigual de justiça. A exis- intuito de passar à sociedade a imagem
tência deste princípio, sobretudo no rito de que a justiça é democrática, igualitá-
que dá subsídio ao entendimento de que ria. O fato da decisão do conselho não
o sistema de justiça brasileiro seria de ca- demandar a produção de um account,
ráter misto, gera mais uma incoerência em qualquer um dos sentidos (já que o
interna, e fornece bases para classificá-lo account poderia ser demandado de cada
como plenamente inquisitório. jurado ou do conselho enquanto um ins-
Com base na análise mais geral sobre tituto), é útil para pensar a este respeito.
este conjunto de processos, a tipificação Pude observar que os laudos periciais
penal contida na sentença de pronúncia são apenas mencionados pelos juízes
raramente se diferencia do apontado na como forma de constatarem a materia-
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