Você está na página 1de 98

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Faculdade de Direito

Renata Saggioro Davis

Justiça Restaurativa aplicada à violência doméstica e familiar: um estudo


sobre limites e potencialidades a partir da experiência na Casa da Mulher
em Juiz de Fora, Minas Gerais.

Rio de Janeiro
2019

1
Renata Saggioro Davis

Justiça Restaurativa aplicada à violência doméstica e familiar: um estudo sobre limites e


potencialidades a partir da experiência na Casa da Mulher em Juiz de Fora, Minas
Gerais.

Dissertação apresentada como requisito parcial


para a obtenção do título de Mestre, ao Programa
de Pós-Graduação em Direito, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Linha de Pesquisa:
Direito Penal.

Orientadora: Profa. Dra. Vera Malaguti Batista

Rio de Janeiro
2019

2
Renata Saggioro Davis

Justiça Restaurativa aplicada à violência doméstica e familiar: um estudo sobre limites e


potencialidades a partir da experiência na Casa da Mulher em Juiz de Fora, Minas
Gerais.

Dissertação apresentada como requisito parcial


para a obtenção do título de Mestre, ao Programa
de Pós-Graduação em Direito, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Linha de Pesquisa:
Direito Penal

Banca Examinadora:

________________________________________________

Profa. Dra. Vera Malaguti Batista (Orientadora)

Faculdade de Direito - UERJ

________________________________________________
Profa. Dra. Patrícia Mothé Glioche Béze

Faculdade de Direito - UERJ

________________________________________________
Profa. Dra. Ellen Cristina Carmo Rodrigues

Universidade Federal de Juiz de Fora

Rio de Janeiro

2019
3
AGRADECIMENTOS

Escrever uma dissertação definitivamente é um processo que envolve mais do que


os dias dedicados à leitura e à escrita – apesar de estes serem muitos. Se por um lado esses
dois anos passam voando, é também um período transformador por todos os questionamentos
e reflexões que ele provoca. E esses não vêm sozinhos, são inspirados por encontros capazes
de modificar o que somos e, por consequência, fazem parte da construção do trabalho. Este,
portanto, não tem autoria única. Ainda bem que não.
Sem dúvida, a oportunidade de estudar na UERJ durante uma de suas maiores
crises comprovou o poder que um ensino público, gratuito, inclusivo e de qualidade pode
alcançar. Mesmo vindo de uma graduação em universidade pública, só fui conhecer de fato o
significado de pluralidade na primeira universidade a adotar o sistema de cotas no país. Por
isso, não há como iniciar esses agradecimentos sem lembrar de toda(o)s a(o)s aluna(o)s,
professora(e)s, servidores e funcionária(o)s que fazem da UERJ diariamente um espaço de
resistência.
Aproveito também para agradecer ao PPGD da UERJ e toda(o)s a(o)s
professora(e)s que me receberam durante esse período, contribuindo de uma forma ou de
outra para o amadurecimento das minhas reflexões.
Em especial, agradeço à minha orientadora, professora Vera, sempre tão querida e
atenciosa. Enorme fonte de inspiração, não só acadêmica - sendo a gigante que é dispensa
elogios - mas também, e principalmente, pela forma como ensina com afeto. Não há lattes que
dê conta dessa potência.
À professora Ellen Rodrigues, agradeço a generosidade com que me recebeu em
Juiz de Fora, me apresentando o trabalho desenvolvido pelo projeto de extensão do NEPCrim.
Sua disponibilidade e atenção foram determinantes para a produção desse trabalho. Às
extensionistas do projeto, às funcionárias da Casa da Mulher e à equipe da 2a Vara Criminal
do Fórum de Juiz de Fora, obrigada pela receptividade e disposição em contribuir para essa
pesquisa. Poder realizar parte desse trabalho em Minas Gerais tem um significado especial
para a mineira de coração e criação que sou.
Às alunas e alunos da disciplina eletiva com quem estive por um período, agradeço
por aceitarem dividir comigo o tempo, as experiências e estarem abertos para as trocas que
tivemos. Foi emocionante receber e ler os trabalhos finais apresentados por cada um à sua
maneira ao final do semestre.

4
Às queridas amigas e aos queridos amigos, família escolhida, agradeço pela
cumplicidade de sempre, pelo incentivo, discussões, leituras e correções, por entenderem
minhas ausências no momento da escrita. Em nome de todos vocês, agradeço aos amigos que
a UERJ me deu, Breno, Camilla, Diogo, Gabriel, Luciana, João e Vini, verdadeiro oásis no
meio do deserto que o direito representa. O universo soube escolher cada um de vocês para
compartilhar esse momento da vida e tantos outros que estão por vir.
Por fim, agradeço à minha família, mãe, pai, Patrícia e Hugo que, apesar da
distância física, nunca estão longe. Obrigada por tudo.
UERJ RESISTE!

5
RESUMO

DAVIS, Renata Saggioro. Justiça Restaurativa aplicada à violência doméstica e familiar: um


estudo sobre limites e potencialidades a partir da experiência na Casa da Mulher em Juiz de
Fora, Minas Gerais. 2019. Dissertação (Mestrado em Direito Penal) – Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

Nessa pesquisa, tentou-se compreender, inicialmente, como o direito penal historicamente e


agora a Lei Maria da Penha atuam na conformação do gênero reforçando estereótipos de
comportamento de forma a demonstrar sua incapacidade em lidar com o fenômeno da
violência doméstica e familiar contra a mulher e a pauta emancipatória feminista. A partir
desse diagnóstico, foi apresentada a proposta da Justiça Restaurativa, cujo objetivo principal é
devolver o protagonismo aos indivíduos envolvidos num conflito para que possa, através do
diálogo, tentar construir uma solução que atenda aos interesses de todos, em contraposição ao
paradigma retributivo que traz a pena privativa de liberdade como resposta única. Através de
revisão bibliográfica analisou-se a origem desse modelo de justiça alternativo, a tentativa de
conceituação, os principais documentos normativos acerca do tema, assim como
questionamentos levantados pela criminologia crítica acerca dessa proposta. Por fim, partiu-se
para uma pesquisa de campo que permitisse avaliar a implementação da justiça restaurativa no
contexto da violência doméstica. Para tanto, foram feitas algumas incursões na Casa da
Mulher, em Juiz de Fora, Minas Gerais, onde o projeto de extensão da Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Juiz de Fora realiza círculos restaurativos entre pessoas
envolvidas em conflitos domésticos, resultando num estudo de caso.

Palavras-chave: Violência doméstica e familiar contra a mulher. Lei Maria da Penha.


Criminologia crítica. Justiça Restaurativa.

6
ABSTRACT

DAVIS, Renata Saggioro. Restorative Justice applied to domestic and familiar violence: a
study about limits and potentialities from the experience at Casa da Mulher in Juiz de Fora,
Minas Gerais. 2019. Dissertação (Mestrado em Direito Penal) – Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

Initially this study represents an attempt of understanding how historically Criminal Law and
now Maria da Penha Law, act on conforming gender by reinforcing behavior stereotypes in
order to demonstrate its inability to deal with domestic violence phenomenon and the
emancipatory feminist agenda. From this diagnosis, the Restorative Justice proposal was
presented once its main goal consists on returning protagonism to all parties involved on a
conflict so that they all together can try to build, through dialogue, a solution respecting
everybody’s interests. This represents an antithesis of the retributive paradigm, which holds
deprivation of freedom as an only answer. Through bibliographic review it was analyzed its
origin, the attempt of conceptualization, the main normative documents concerning the
subject as well as Critical Criminology relevant questionings. At last, a field research was
carried out with the purpose of evaluating how Restorative Justice is beeing implemented in
domestic violence context. In order to do so, some incursions were made at Casa da Mulher,
in Juiz de Fora, Minas Gerais, where the extension project of UFJF’s Law Faculty hosts
restaurative circles among people involved in domestic conflitcts, which resulted in a case
study.

Keywords: Domestic and family violence against women. Maria da Penha Law. Critical
Criminology. Restaurative Justice.

7
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO  ....................................................................................................................................  9  
1.  O  FRACASSO  DA  POLÍTICA  PÚBLICA  PENAL  NOS  CONFLITOS  DOMÉSTICOS  ........  14  
1.1  VIRGEM,  HONESTA,  ADÚLTERA,  PROSTITUTA:  QUANDO  O  DIREITO  PENAL  
CLASSIFICA  MULHERES  ..........................................................................................................................  18  
1.1.1.  A  MULHER  E  A  LEGISLAÇÃO  PENAL  .................................................................................................  20  
A.  As  Ordenações  Filipinas  ................................................................................................................................................  20  
B.  Código  Criminal  do  Império  ........................................................................................................................................  21  
C.  Código  Penal  de  1890  .....................................................................................................................................................  22  
D.  Código  Penal  atual  ...........................................................................................................................................................  23  
1.1.2  A  LEI  MARIA  DA  PENHA  ..........................................................................................................................  25  
1.2  A  CRIMINOLOGIA  CRÍTICA  FEMINISTA  E  A  CRISE  DE  LEGITIMIDADE  DO  SISTEMA  
PENAL  ..........................................................................................................................................................  29  
2.  A  PROPOSTA  ALTERNATIVA  DA  JUSTIÇA  RESTAURATIVA  ........................................  40  
2.1  A  JUSTIÇA  RESTAURATIVA  E  SUAS  ORIGENS  ...........................................................................  41  
2.2  TENTANDO  TRAÇAR  CONTORNOS  CONCEITUAIS  ..................................................................  45  
2.3  NORMATIVA  RESTAURATIVA  .......................................................................................................  50  
2.4  JUSTIÇA  RESTAURATIVA  E  A  SUA  IMPLEMENTAÇÃO:  ALGUMAS  EXPERIÊNCIAS  
INTERNACIONAIS  E  NACIONAIS  ..........................................................................................................  57  
2.5  ESTAMOS  DE  FATO  DIANTE  DE  UMA  ALTERNATIVA  AO  PODER  PUNITIVO?  ...............  63  
3.    JUSTIÇA  RESTAURATIVA  E  VIOLÊNCIA  DOMÉSTICA:  A  EXPERIÊNCIA  NA  CASA  DA  
MULHER  ...........................................................................................................................................  71  
3.1  A  INTRODUÇÃO  NA  PESQUISA  DE  CAMPO  ................................................................................  72  
3.2  A  CASA  DA  MULHER  .........................................................................................................................  74  
3.3  A  2a  VARA  CRIMINAL  DE  JUIZ  DE  FORA  E  AS  “AUDIÊNCIAS  DE  MEDIAÇÃO”.  ................  77  
3.4  ALGUMAS  DIFICULDADES  ENFRENTADAS  ...............................................................................  80  
3.5  OS  CÍRCULOS  RESTAURATIVOS  ....................................................................................................  81  
3.5.1  VITÓRIA  E  FABIANO  ..................................................................................................................................  81  
3.5.1.1  O  PRIMEIRO  CÍRCULO  .........................................................................................................................................  82  
3.5.1.2  O  SEGUNDO  CÍRCULO  ..........................................................................................................................................  87  
CONSIDERAÇÕS  FINAIS  ...............................................................................................................  90  
REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS  ..............................................................................................  94  

8
INTRODUÇÃO

A ideia em realizar o presente estudo partiu de duas grandes inquietações. Por um


lado, há o fenômeno mundial da desigualdade de gênero informativo dos elevados índices de
violência doméstica e familiar do país. Enquanto mulher, esse é um tema que particularmente
me sensibiliza e instiga, pois além de ser uma realidade próxima de todas nós, seja porque já a
vivenciamos ou porque presenciamos outras mulheres vivenciá-la, ela reflete uma distribuição
desigual de poder que marca a sociedade contemporânea, conformando subjetividades e
minando potencialidades.
Malgrado a conquista dos movimentos feministas, que, denunciando o patriarcado
enquanto categoria estruturante, lutam para retirar da obscuridade essa questão, a
permanência desses números nos obriga a refletir sobre as demandas e estratégias utilizadas
pelo poder público para enfrentá-los. Nesse aspecto, o primeiro instrumento que nos vem a
mente, sem sombra de dúvidas, é a Lei 13.140/2006, a famosa Lei Maria da Penha. Trata-se
de uma legislação que visa atender às disposições da Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, editada pela Organização dos
Estados Americanos e ratificada pelo Brasil, um dos mais importantes documentos
internacionais acerca do tema. Entre suas finalidades centrais está o comprometimento dos
Estados Partes a empreender um maior rigor punitivo contra agressores.
Como se percebe, do próprio nome dado à Convenção se extrai a compreensão de
que a punição supostamente teria a capacidade de erradicar a violência contra a mulher. E é
justamente daí que a segunda inquietação se manifesta. Isso porque há anos a criminologia
crítica, referencial teórico desse trabalho, vem demonstrando os reais objetivos e efeitos do
sistema penal que, enquanto mecanismo de controle social a serviço dos interesses das classes
dominantes, reforça desigualdades através de uma atuação seletiva, estigmatizante que não
produz nada além de dor (BARATTA, 2011; CHRISTIE, 2017).
Seria então diferente no enfrentamento da violência de gênero? De fato, a
desigualdade sistêmica produzida e reforçada pelo poder punitivo é reconhecida pelo
movimento feminista – a necessária luta pela descriminalização do aborto, por exemplo,
evidencia essa conclusão. Não obstante, permanece ainda a ideia de que é possível se valer
dessas mesmas estruturas criminalizantes e estigmatizadoras, que selecionam autores e
vítimas determinados, para se alcançar a emancipação feminina, contanto que haja uma
“correta” aplicação.

9
Para questionar esse entendimento, emerge a necessidade de se investigar o
tratamento que o sistema penal conferiu e confere às mulheres de forma a evidenciar sua
incapacidade em lidar com essa – e qualquer outra - pauta emancipatória.
Sendo assim, a proposta do primeiro capítulo é esmiuçar esse diagnóstico a partir das
bases epistemológicas da criminologia crítica feminista. Para tanto, inicialmente, realiza-se
um apanhado histórico das legislações penais desde as Ordenações Filipinas até o Código
Penal atual naquilo que concerne a questão de gênero. O intuito é avaliar a evolução do
direito penal, instituído sob bases patriarcais, quanto às rupturas e permanências na
categorização de mulheres. Em seguida, pensar como esse processo de categorização se dá na
Lei Maria da Penha, não só pela letra expressa da lei, como pela interpretação feita pelo
Supremo Tribunal Federal de alguns dos seus dispositivos.
Com efeito, consoante os estudos criminológico-críticos, o sistema penal vem
enfrentando uma crise de legitimidade, já que, evidentemente, nunca cumpriu com as
promessas efetuadas de proteção a bens jurídicos contra toda e qualquer ofensa perpetrada
(ANDRADE, 1999). Do mesmo modo, há também uma crise de legitimidade sob o prisma de
gênero (BARATTA, 1999). Significa dizer que toda a ciência, e isso inclui a ciência jurídica
penal, é instituída sob um falso prisma de neutralidade que encobre a manutenção do poder
patriarcal. Pensar nessas implicações nos leva, imediatamente, à problematização da escolha
criminalizante para enfrentar a violência de gênero, uma vez que sem que se enfrente o poder
punitivo, sob a qual as mulheres sempre foram objeto - seja no contexto privado ou não - não
é possível falar em autonomia e liberdade.
Partindo então de uma premissa abolicionista, que além de reconhecer a
incapacidade do sistema penal em efetivar políticas públicas expõe o sofrimento estéril gerado
por ele (HULSMAN, 1993), passa-se a analisar outras perspectivas teóricas que propõem
lidar com conflitos entre indivíduos, em especial a violência doméstica e familiar. Assim, no
segundo capítulo, é introduzida a justiça restaurativa, movimento teórico e prático que vem
recebendo cada vez mais destaque no mundo por propor, ou ao menos tentar propor, uma
alternativa ao sistema de justiça formal.
Nesse momento, é feita uma revisão bibliográfica a respeito do tema, que sendo um
campo ainda recente, encontra-se em construção. Parte-se assim para uma investigação acerca
de sua origem que remonta às práticas de populações tradicionais observadas em povos da
África, América do Sul e do Norte, Nova Zelândia, entre outros. Apesar das diferenças entre
si, em diversos desses povos o modelo de pacificação de conflitos envolvia a busca pelo

10
reestabelecimento dos laços rompidos quando da quebra de uma regra de convívio
(JACCOUD, 2005, p. 164) e não a imposição de castigos deletérios.
O intuito em realizar esse resgate é demonstrar que o paradigma retributivo, esse sim
assentado no castigo e na punição, não é o único modelo existente para se lidar com questões
dessa natureza. Já sob um viés crítico do sistema penal, identifica-se, na segunda metade do
século XX, o surgimento de dois movimentos precursores que vão contribuir para o
desenvolvimento da justiça restaurativa enquanto teoria e prática: o abolicionismo penal e a
vitimologia.
Apresentada sua origem, tenta-se estabelecer seu conceito. Tentativa pois a justiça
restaurativa representa um movimento bastante amplo que abrange diversas concepções e
possibilidades, inclusive para além do enfrentamento do fenômeno criminal. Todavia,
destaca-se certo consenso entre os restaurativistas que elencam os pilares desse modelo de
justiça: o encontro entre pessoas envolvidas, a reparação da relação abalada pelo evento
danoso e sua transformação.
Sendo um modelo em expansão, com diversas iniciativas sendo colocadas em
prática, a justiça restaurativa vem passando por um processo de normatização. Dentre os
documentos mais importantes estão a Resolução n. 2002/121 da Organização das Nações
Unidas (ONU), emitida pelo Conselho Social e Econômico e, no contexto brasileiro, a
Resolução 225 do Conselho Nacional de Justiça e o Projeto de Lei 7.006/2006, em tramitação
no Congresso Nacional.
Se por um lado isso representa um esforço para que seu propósito não seja
desvirtuado, por outro, há a ameaça de se criar um engessamento incompatível com sua
proposta, além de ser cooptado por setores regidos por outras premissas, tal como o próprio
poder judiciário. Esse trabalho, inclusive, visa questionar o protagonismo desse poder no
desenvolvimento e implementação da justiça restaurativa no país, sobretudo no que tange à
(im)possibilidade de ruptura com o paradigma retributivo.
Na sequência, são apresentadas algumas metodologias restaurativas, em especial a
mediação - incluindo a problematização em classificá-la enquanto prática restaurativa - e a
metodologia circular. No Brasil, essas estão dentre as práticas mais comuns, muito embora
sejam elas adaptáveis e influenciáveis uma pelas outras.
Já ao fim do segundo capítulo, a proposta é enfrentar as críticas dirigidas à justiça
restaurativa tendo como referencial teórico a criminologia crítica. Isso porque a história nos

1
Disponível em <http://www.un.org/en/ecosoc/docs/2002/resolution%202002-12.pdf> Acesso em: 01/10/2018.

11
revela que alternativas ao sistema penal sempre implicaram em sua expansão para outras
esferas antes não abarcadas. E sendo a justiça restaurativa um modelo de justiça informal que
visa envolver a comunidade no processo de pacificação de conflitos, há o risco de que o
controle exercido pelo poder punitivo adentre esses espaços, inaugurando outras formas de
autoritarismo, que passará a ser exercido não só pelo poder estatal como pelo corpo social de
um determinado lugar (PASSETTI, 2206, p. 87). Trata-se de uma questão bastante sensível,
sobretudo num cenário em que o desenvolvimento justiça restaurativa vem sendo capitaneado
principalmente pelo poder judiciário.
Com essa importantes questões em mente, chega-se ao terceiro e último capítulo. O
objetivo, nesta etapa, é testar a hipótese levantada sobre a capacidade da justiça restaurativa
representar uma alternativa que de fato supere o paradigma retributivo do seletivo sistema de
justiça tradicional e os efeitos nocivos dele decorrentes, em especial no contexto da violência
doméstica, onde frequentemente nos deparamos com a revitimização e o silenciamento de
mulheres. A importância em se testar essa hipótese reside no fato de que a implementação da
justiça restaurativa ainda é recente no país e, portanto, são escassos os estudos a seu respeito.
Para tanto, é apresentada a pesquisa de campo realizada na Casa da Mulher, em Juiz
de Fora, Minas Gerais, local onde é realizado o projeto de extensão “Diga não à violência
contra a mulher” pelo NEPCrim (Núcleo de Extensão e Pesquisa em Ciências Criminais),
coordenado pela Professora Ellen Rodrigues, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Lá, são
realizados círculos restaurativos entre mulheres que sofreram algum tipo de violência
doméstica, os responsáveis pela agressão e eventuais apoiadores, de ambas as partes, que
desejem participar, sempre com a ajuda de um facilitador capacitado para tanto.
A decisão em realizar uma pesquisa de campo só ocorreu no curso do
desenvolvimento dessa dissertação quando conheci um dos extensionistas do projeto em um
seminário na Faculdade de Direito da UFRJ. Ao apresentar o trabalho desenvolvido pela
equipe do NEPCrim, minha curiosidade foi despertada imediatamente, e qual foi minha
surpresa descobrir que a Profa. Ellen também havia sido orientada pela Profa. Vera Malaguti,
na sua tese de doutoramento.
Assim, após receptivo contato, fui convidada a conhecer de perto o projeto de
extensão e, em cinco oportunidades diferentes, entre os meses de outubro e novembro de
2018, me dirigi à Casa da Mulher em Juiz de Fora para realizar a pesquisa de campo. Numa
dessas idas, também pude acompanhar uma manhã de audiências realizadas no fórum da
comarca, na 2a Vara Criminal, cujo objetivo é avaliar presencialmente os pedidos de medida
protetiva de urgência.
12
Para a realização da pesquisa dessa parte da pesquisa, foi utilizada a metodologia
qualitativa do tipo Observação Participante (BECKER e GEER, 1960; BECKER, 1999;
MÓNICO et al. 2017) em que, por meio do estudo de caso do círculo restaurativo que
participei, trago minhas considerações. Essa escolha se deu em razão da forma como eu havia
sido inserida no campo, já que a proposta era frequentar a Casa da Mulher, conhecer seus
funcionários e a dinâmica de trabalho, com maior destaque aos atendimentos realizados pela
equipe do NEPCrim, incluindo os círculos que ocorressem enquanto eu estivesse lá.
Entretanto, pela própria dificuldade na implementação da justiça restaurativa, durante todas as
minhas visitas à Casa, pude participar de somente um círculo integralmente, que se desdobrou
em dois encontros diferentes, resultando na decisão em realizar o referido estudo de caso.
O contato com a experiência restaurativa se mostrou revelador em diversos aspectos,
tanto de forma positiva quanto negativa como se verá. De toda sorte, sua implementação já é
uma realidade no país e a tendência é observarmos sua progressiva expansão. Justamente por
isso enxerga-se a importância em realizar estudos críticos comprometidos com as bases
epistemológicas da criminologia crítica, sempre atentos para que não estejamos diante de
mais uma experiência alternativa que vem se revelar reforçadora do poder punitivo.

13
1. O FRACASSO DA POLÍTICA PÚBLICA PENAL NOS CONFLITOS
DOMÉSTICOS

Os significativos índices de violência contra a mulher não são específicos de um ou


outro país mundo afora. Estamos diante de um fenômeno endêmico que se manifesta como
um dos desdobramentos da desigualdade entre homens e mulheres no seio das sociedades
estabelecidas sob a ordem patriarcal.
Para discorrer sobre essa espécie de violência, contudo, é preciso atenção às
dinâmicas sociais, políticas, culturais e econômicas que atravessam diferenciações entre
homens e mulheres. Nesse aspecto, as identidades masculina e feminina são determinadas
pela definição de gênero correspondente a um e outro, que incluem - mas também
ultrapassam - o mero elemento biológico. É que o gênero, enquanto construção social, funda e
constitui as relações sociais por meio da imposição de papéis diferenciados a serem
desempenhados de maneira hierarquizada em benefício da dominação masculina (SAFFIOTI,
1995, p. 23).
A noção de homem, considerado em seu aspecto tanto biológico quanto social,
foi desenvolvida com fundamento na premissa imposta, muito embora revestida
de neutralidade, de que cabe a eles realizar o papel predominante e superior,
enquanto às mulheres resta o de dominada. “A primazia universalmente
concedida aos homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e de
atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma divisão sexual do
trabalho de produção e de reprodução biológica e social, que confere aos
homens a melhor parte, bem como nos esquemas imanentes a todos os habitus:
moldados por tais condições, portanto objetivamente concordes, eles funcionam
como matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos os
membros da sociedade, como transcendentais históricos que, sendo
universalmente partilhados, impõem-se a cada agente como transcendentes”
(BOURDIEU, 2012, p. 45).

Denunciada pelos movimentos feministas 2 , a suposta neutralidade trazida pela


concepção liberal de igualdade formal esconde a normatização diferenciada de condutas
masculinas e femininas que atinge tanto a esfera pública quanto a esfera privada da vida em
sociedade e marca uma disparidade na distribuição de poder e oportunidades.
Mas não é só. Como bem evidenciaram feministas a partir da década de oitenta – que
numa perspectiva histórico-classificatória são reconhecidas por integrar a terceira onda do

2
O uso da expressão está no plural justamente por se reconhecer sua heterogeneidade, que se desdobra em
diferentes teorias, demandas, propostas e práticas, que podem se interseccionar ou não, apesar de algumas
premissas serem comumente compartilhadas como a acima.

14
movimento feminista – a categoria mulher não pode ser compreendida de modo uniforme. É
necessário se valer da chave de leitura da interseccionalidade, a qual indica que as vivências
são sempre atravessadas não apenas pela desigualdade de gênero, como também por recortes
de raça e de classe, da mesma forma responsáveis pela configuração das relações sociais
(CRENSHAW, 2002). Ou seja, o sujeito na sociedade capitalista é multifacetado em razão de
todas as complexidades que conformam sua subjetividade e qualquer análise que ignore essa
correlação de categorias não será capaz de compreender as raízes dos conflitos sociais.
A sociedade patriarcal-racista-capitalista, dessa forma, é forjada numa violência
estruturante e constitutiva e alcança as relações interpessoais. Essas instâncias – micro e
macro – se relacionam simultânea e complementarmente. Como resultado, “as normas sociais
que regulam a convivência entre homens e mulheres, de brancos e negros, de ricos e pobres,
contêm violência.” São essas normas, na realidade, que darão legitimidade ao controle social
exercido sobre os corpos (SAFFIOTI, 1995, p. 30).
Heleith Saffioti e Pierre Bourdieu desenvolvem análises acerca da violência
comportamental masculina. De acordo com a autora brasileira (1995, p. 43), a violência seria
a expressão da necessidade de afirmação que acaba por se manifestar nas relações
interpessoais. Seria, portanto, uma forma de
“compensar o massacre de que é alvo nos outros tipos de ordenamento das
relações sociais. A impotência aí gerada ultrapassa os limites destas relações
penetrando o domínio do gênero. Desta sorte, a violência masculina contra a
mulher pode ser pensada como fruto da necessidade do homem de fazer
parecer maior o pequeno poder de que goza neste tipo de relação”.

Bourdieu (2012, p. 64), por sua vez, trabalha a relação entre violência e virilidade,
esta enquanto carga que acompanha o privilégio masculino.
“O privilégio masculino é também uma cilada e encontra sua contrapartida
na tensão e contensão permanentes, levadas por vezes ao absurdo, que impõe
a todo homem o dever de afirmar, em toda e qualquer circunstância, sua
virilidade. (…) A virilidade, entendida como capacidade reprodutiva, sexual
e social, mas também como aptidão ao combate e ao exercício da violência
(sobretudo em caso de vingança), é, acima de tudo, uma carga. Em oposição
à mulher, cuja honra, essencialmente negativa, só pode ser defendida ou
perdida, sua virtude sendo sucessivamente a virgindade e a fidelidade, o
homem "verdadeiramente homem" é aquele que se sente obrigado a estar à
altura da possibilidade que lhe é oferecida de fazer crescer sua honra
buscando a glória e a distinção na esfera pública”.

15
Com efeito, na dinâmica social da violência, os homens a vivenciam no espaço
público - historicamente se trata de um espaço reservado apenas a eles - ora enquanto sujeito
ativo, ora enquanto passivo. No que se refere ao âmbito privado doméstico, ao contrário, são
eles os possuidores exclusivos do uso legítimo da força física exercida contra as mulheres3.
Fato é que, no cenário nacional, enfrentamos altos índices de violência contra a
mulher. Em 20154, foi traçado o perfil dos homicídios de mulheres brasileiras através da
investigação de dados entre os anos de 1980 e 2013 onde restou apurado um aumento de
111,11% na taxa de vítimas. Esta, que era de 2,3 por 100 mil, foi elevada para 4,8, colocando
o Brasil na 5a posição dentre uma lista de 83 países.
Mesmo com todo o avanço na discussão de pautas dos movimentos feministas, nos
sete anos anteriores à publicação do estudo, que corresponde à edição da Lei Maria da Penha,
ainda foi possível verificar o aumento da taxa em 12% (de 4,2 para 4,8 por 100 mil). Em
relação às mulheres negras, o recorte racial evidencia um aumento estarrecedor de 35% no
índice de homicídio, no mesmo período.
Embora a violência doméstica não seja a única causa dos homicídios de mulheres,
pode-se inferir que ocupa papel determinante na configuração das estatísticas. Isso porque os
dados examinados demonstram que 27,1% destes ocorreram no domicílio da vítima.
Além disso, a violência doméstica não se resume à prática de homicídios, podendo se
manifestar em outras violações da integridade física, psicológica, sexual, patrimonial e moral
que muitas vezes não chegam a integrar os dados oficiais. Segundo o levantamento do
Instituto Maria da Penha, a cada dois segundos uma mulher é vítima de violência física ou
verbal no Brasil.5
Entretanto, o fenômeno da violência de gênero não alcança somente corpos físicos.
Ele também se verifica a partir da construção do pensamento e das instituições. No paradigma
da ciência moderna a dominação masculina está assegurada na imposição do falso prisma da
objetividade e impessoalidade. A própria forma de produção do conhecimento, e tudo que
deste decorre, é instituída sob bases aparentemente universais, mas que, na realidade,
traduzem a masculinidade e a manutenção de seu privilégio como eixo fundador.

3
No contexto específico brasileiro no qual estamos inseridos, no entanto, as fronteiras entre público e privado
não são tão demarcadas. Devido à má distribuição de renda, à grandiosidade do nosso espaço geográfico e à
diversidade cultural, há uma pluralidade de formas de habitação, formações familiares e convívio comunitário
que marcam a diferença na relação da vida privada com o espaço público (SOARES, 1999, p. 40-41).
4
Ver http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf
5
Disponível em http://www.relogiosdaviolencia.com.br. Acessado em 15 de julho de 2018.

16
Com efeito, o exercício dessa dominação penetra e conforma as compreensões de
dignidade, igualdade, liberdade, sexualidade, justiça, etc. Em razão disso, cientistas feministas
propuseram um giro epistemológico que fosse capaz de enfrentar e desmantelar o paradigma
da ciência moderna a partir de um viés generificado.
Esse paradigma de gênero abrange variações conforme a teoria feminista
desenvolvida. Entretanto, o diagnóstico realizado por elas partem de premissas comuns, aqui
enunciadas pelo Professor Alessandro Baratta (1999, p. 23):

“1. As formas de pensamento, de linguagem e as instituições da nossa


civilização (assim como de todas as outras conhecidas) possuem uma
implicação estrutural com o gênero, ou seja, com a dicotomia ‘masculino-
feminino’.
2. Os gêneros não são naturais, não dependem do sexo biológico, mas, sim,
constituem o resultado de uma construção social.
3. Os pares de qualidades contrapostas atribuídas aos dois sexos são
instrumentos simbólicos da distribuição de recursos entre homens e mulheres e
das relações de poder existentes entre eles.”

Não se pode falar em superação da desigualdade de gênero se a própria ciência não


for questionada. No campo das teorias acerca da liberdade, por exemplo, feministas vêm
destacando a necessidade de se trabalhar com novos paradigmas capazes de desafiar práticas
patriarcais e costumes que negam às mulheres acesso às ferramentas necessárias para alcançá-
la. A concepção dominante de liberdade, construída ao longo dos séculos, ignora que o
patriarcado não apenas limita as opções e escolhas das mulheres, como também a percepção
de si mesmas. Para a cientista política feminista Nancy Hirschmann (2006, p. 220), se a noção
de liberdade requer uma auto-definição e esta auto-definição não é possível num cenário de
linguagens e contextos sexistas, é preciso que as mulheres os recriem para que, a partir de
uma perspectiva crítica, possam melhor avaliar suas escolhas assim como viabilizar a criação
de novas, até então impensadas.
Nessa criação de novos contextos e possibilidades, se faz necessário questionar e
superar não só as teorias como os instrumentos que se propõem hábeis a alcançar a
emancipação feminina, justamente por reconhecer que são instituídos, interpretados e
aplicados sob a égide do poder masculino branco proprietário de dominação. Nesse sentido, o
Estado, o direito e sobretudo o direito penal possuem papel central na reprodução e
manutenção da opressão sobre as mulheres.

17
1.1 VIRGEM, HONESTA, ADÚLTERA, PROSTITUTA: QUANDO O DIREITO
PENAL CLASSIFICA MULHERES
Jean Delumeau (2011) nos conta que o medo da mulher integra a história do ocidente
a muitos séculos. A relação existente entre a terra e a mulher, compreendendo a maternidade e
a fisiologia cíclica feminina, integram a ambiguidade representativa da vida e da morte
presente em diversas sociedades, exprimindo, ao mesmo tempo, adoração e repulsa ao
feminino. Todavia, foi o cristianismo o responsável por incorporar esse medo, ampliando-o,
racionalizando-o e instituindo a desigualdade de gênero a partir da noção de que apenas o
homem é feito à imagem e semelhança de deus, único dotado de discernimento e razão. O
Martelo das Feiticeiras, talvez o livro mais misógino já publicado, afirmava a torpeza e a
malícia da mulher com o objetivo de fortalecer o poder clerical patriarcal.
Com a necessidade de minar a potência feminina, foram instituídos discursos e
práticas misóginas – muitas das quais permanecem até hoje – que legitimaram o exercício do
controle sobre as mentes e os corpos das mulheres. Esse papel, contudo, não pertenceu apenas
a teólogos e médicos (estes, por séculos, à procura do ponto diabólico). Juristas também
foram responsáveis por forjar o discurso do “segundo sexo”6 de modo a assegurar a estrutural
inferioridade e incapacidade da mulher carecida da tutela masculina (DELUMEAU, 2011, p.
473).
O fato da desigualdade de gênero ter se estabelecido de tal forma a ponto de ter
atravessado os séculos permanecendo uma questão ainda atual, faz com que nesse momento
seja necessário averiguar a extensão das rupturas na programação legislativa que se propõe a
enfrentar o violência contra mulheres e garantir-lhes direitos.
Pois bem. Com o fortalecimento e avanço das pautas feministas por igualdade, o
fenômeno da violência de gênero vem sendo discutido por diferentes frentes ao redor do
mundo. No contexto internacional, um dos documentos elaborados de maior destaque foi a
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, no
seio da Organização dos Estados Americanos, em junho de 1994. Ficou conhecida como
Convenção de Belém do Pará, em referência ao local em que seus termos foram debatidos e
construídos. A normativa de direitos humanos, fruto de ampla discussão e luta feminista
brasileira (CAMPOS, 2017, p. 12), foi internalizada na ordem jurídica interna em 27 de
novembro de 1995, através do Decreto no 1.973/96.

6
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960.
18
Dentre suas disposições, os Estados Partes se comprometeram a “agir com o devido
zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher” e a “incorporar na sua
legislação interna normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam
necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher.” 7 Em 7 de agosto de
2006, uma década depois, foi promulgada a Lei 11.340/2006, popularmente conhecida como
Lei Maria da Penha, cujo objetivo seria a implementação destas diretrizes, dentre outras.
Desde então, mais doze anos se passaram, desafiando reflexões acerca da escolha
pela alternativa criminalizante e judicializada dos conflitos envolvendo a violência de gênero,
em especial no âmbito doméstico e familiar.
Com efeito, ao analisarmos historicamente o tratamento conferido à mulher pelas
legislações penais mais relevantes desde a invasão dos colonizadores portugueses no país, o
que se percebe - como será a seguir examinado - é que estas sempre representaram um
instrumento de neutralização feminina, na medida em que foram e são responsáveis pela
construção e delimitação desse gênero (BERGALLI e BODELÓN, 1992, p. 45-6 e
LARRAURI, 1994). Seja tomando-as por desviantes ao considerá-las prostitutas e adúlteras,
ou vítimas objetificadas em sua fragilidade e passividade, a régua classificatória da norma
penal extrapola o sistema punitivo formal e opera em todos os âmbitos da vida em sociedade,
moldando comportamentos de acordo com as expectativas do patriarcado enquanto regime de
dominação-exploração das mulheres pelos homens.
Isso porque o direito penal é desenvolvido a partir da interpretação de normas e
valores culturais que perpetuam os interesses de grupos dominantes. Nesse sentido, ao
incorporar determinada compreensão do “ser mulher”, não se está discutindo diferenças
biológicas entre os sexos, mas sim as estruturas patriarcais, os estereótipos de comportamento
de cada gênero e sua conformação moral na sociedade (LARRAURI, 1994).
O direito, como mecanismo de reprodução dessas estruturas de dominação, é também
sexuado e entendê-lo como “enclave do patriarcado significa refletir sobre o fato de que as
características presentes do direito estão marcadas pelo contexto patriarcal das nossas
sociedades” (BERGALLI e BODELÓN, 1992. p. 52).
Não obstante, o sistema penal 8 permanece no imaginário como meio eficaz de
reverter e superar as desigualdades estruturais da vida em sociedade. Ele se apresenta como

7
Art. 7o b e c, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm
8
Sistema penal é aqui compreendido como “a totalidade das instituições que operacionalizam o controle penal, a
totalidade das normas, dos saberes e categorias cognitivas que propagam e legitimam ideologicamente a sua atuação
e os seus vínculos com a mecânica de controle social global, na construção e reprodução da cultura e do senso

19
uma “ideologia extremamente sedutora, também para as mulheres, e com um fortíssimo apelo
legitimador (da proteção, da evitação, da solução) como se à edição de cada lei penal,
sentença, ou cumprimento de pena, fosse mecanicamente sendo cumprido o pacto mudo que
opera o traslado da barbárie ao paraíso.” (ANDRADE, 2004).
Daí então a necessidade de se evidenciar, por meio de um apanhado histórico dessas
legislações penais atinentes às mulheres, as permanências classificatórias que acompanharam
todas essas normativas ao longo dos séculos. Trazer o foco para esses mecanismos
reforçadores da desigualdade de gênero que se protraem no tempo tem por escopo
problematizar a paradoxal escolha criminalizante reivindicada por parte de alguns
movimentos feministas - e bem aceita pelos setores conservadores - que acreditam na
possibilidade de se alcançar a emancipação feminina por meio de um sistema que sempre as
presumiu e as tratou como inferiores, objetos de dominação.

1.1.1. A MULHER E A LEGISLAÇÃO PENAL

A. As Ordenações Filipinas

Quando da invasão dos colonizadores portugueses em terras brasileiras vigia em


Portugal as Ordenações Afonsinas (1447-1521). Entretanto, estas não chegaram a influenciar
a realidade colonial brasileira pois traziam uma compilação de regras anteriores que
disputavam autoridade com o direito canônico, com o direito romano e com os direitos locais.
As Ordenações Manuelinas, por sua vez, se limitaram a incluir algumas regras, mas tampouco
foram aqui aplicadas. Na realidade, o que vigorava na prática era o desregulado poder
punitivo privado (ZAFFARONI et al, 2003, p.413).
Com o processo de colonização consolidado, foram as Ordenações Filipinas as
efetivamente aplicadas no Brasil entre os anos 1603 e 1830. Sua índole bastante rigorosa é
notória, tendo em vista que o Livro V9, onde se encontravam a maior parte das disposições
criminais, trazia a pena de morte como pena principal do ordenamento.
Em relação aos dispositivos referentes ao gênero feminino, pode-se verificar no
Título XXV (“Do que dorme com mulher casada”) a disparidade no tratamento conferido ao
adultério. Isso porque a reprovabilidade da conduta recaía apenas sobre a mulher casada e o

comum punitivos que se enraízam, muito fortalecidamente, dentro de cada um de nós, na forma de microssistemas
penais” (ANDRADE, 2012).
9
Ver http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5ind.htm.

20
seu amante, ambos punidos com a pena capital. O homem casado, que nem poderia ser sujeito
ativo do referido crime, tinha-lhe garantido por lei o direito de matar sua esposa e seu amante,
assim como o de perdoá-los, nos termos do Título XXXVIII (“Do que matou sua mulher por a
achar em adultério”).
No tocante aos crimes sexuais, apenas as mulheres poderiam ser sujeito passivo,
denotando não uma preocupação com a integridade sexual, mas com o impacto dessas
violações sobre a ordem familiar. Nesse sentido, as mulheres eram categorizadas em virgens,
viúvas honestas, escravas brancas de guarda e mulheres que ganham dinheiro com seu corpo,
o que influenciava no tratamento conferido ao homem agressor. É o caso, por exemplo, dos
crimes equivalentes ao estupro e ao rapto consentido, previstos no Título XVIII (“Do que
dorme por força com qualquer mulher, ou trava dela, ou a leva por sua vontade”).
Após viger por mais de dois séculos na sociedade brasileira em formação,
estruturando, dessa forma, a concepção social do “ser mulher” com fundamento numa moral
conservadora e patriarcal, foi promulgada a Constituição do Império em 1824 e em sua
decorrência, o Código Criminal.

B. Código Criminal do Império

Em 16 de dezembro de 1830 foi promulgado o Código Criminal do Império10 e a


ótica de proteção à honra da instituição familiar foi mantida em diversos dispositivos. Apesar
dos homens serem apenas “homens” quando vítimas de crimes, a classificação de mulheres
continuou seguindo seu curso.
Os crimes de estupro, sedução e rapto encontravam-se no capítulo intitulado “Dos
crimes contra a segurança da honra”11 e a distinção entre categorias de mulheres variava entre
virgem, honesta, reputada como tal e prostituta, desafiando penas diferenciadas para o sujeito
ativo a depender da característica desta vítima mulher. Da previsão do crime de estupro
mediante violência ou ameaça contida no art. 222, é possível extrair a noção de que mulher
honesta é aquela que não é prostituta tendo em vista a explícita discrepância conferida pelo
legislador nos preceitos secundários.

10
Ver http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-
1830.htm?TSPD_101_R0=eb2a7f5efdb2e5f88598aa77de22009ao07000000000000000021d9528bffff000000000000
00000000000000005ac395bf006a5bfaa8
11
Arts. 219 a 246 do Código Criminal do Império.

21
“Art. 222. Ter copula carnal por meio de violencia, ou ameaças, com
qualquer mulher honesta.
Penas - de prisão por tres a doze annos, e de dotar a offendida.
Se a violentada fôr prostituta.
Penas - de prisão por um mez a dous annos.”
Em realidade, o que se percebe da interpretação desses artigos, e que se torna
evidente na previsão do crime de rapto12, é que estamos diante de normas que visavam
proteger o pátrio poder masculino e a concepção patriarcal de família da época. O fato do
casamento posterior com a ofendida ser aceito como causa de extinção da pena em todos estes
crimes demonstra que a intenção não era tutelar a dignidade sexual da mulher.
Além disso, o homem permanecia não sendo criminalizado pela prática de adultério
eventual, eis que a lei exigia a ocorrência do concubinato para que houvesse a
responsabilização masculina (art. 251). Quanto à mulher, bastava uma única conduta para que
fosse responsabilizada nas mesmas penas (art. 250).

C. Código Penal de 1890

Com a proclamação da república, um novo Código Penal foi editado em 1890. Alvo
de variadas críticas em razão das lacunas que apresentava, diversas leis extravagantes
tentaram solucionar esse problema. Entretanto, em razão da dificuldade em acessar toda a
legislação criminal, em 1932 foi promulgada a Consolidação das Leis Penais. De toda sorte,
naquilo que concernia às mulheres, o regramento do código da república já havia trazido as
previsões que aqui nos interessam.
Cumpre destacar que em relação aos crimes sexuais, as alterações não foram
substanciais. Permaneceu a distinção entre a mulher virgem, a honesta e a prostituta indicadas
pela quantidade de pena nos preceitos secundários. O Título VII tratava dos crimes contra a
segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje ao pudor, sendo dividido em cinco
capítulos: da violência carnal, do rapto, do lenocínio, do adultério ou infidelidade conjugal e
do ultraje ao pudor.
No capítulo sobre violência carnal, o homem passou a ser considerado sujeito
passivo do crime de atentado ao pudor. Já no crime de defloramento da menor de idade

12
Art. 226. Tirar para fim libidinoso, por violencia, qualquer mulher da casa, ou lugar em que estiver. Penas - de
dous a dez annos de prisão com trabalho, e de dotar a offendida.
Art. 227. Tirar para fim libidinoso, por meio de affagos e promessas, alguma mulher virgem, ou reputada tal, que
seja menor de dezasete annos, de casa de seu pai, tutor, curador, ou outra qualquer pessoa, em cujo poder, ou
guarda estiver. Penas - de prisão por um a tres annos, e de dotar a offendida.

22
aglutinou-se no mesmo tipo penal três hipóteses de execução: por meio da sedução, do engano
e da fraude. No tipo penal do estupro, foi cominada a mesma pena sendo a mulher virgem ou
não, contanto que honesta. Caso fosse prostituta ou mulher pública, equiparadas para os
devidos fins, perdurou a discrepante diferenciação de pena13.
Quanto ao crime de rapto, a prostituta continuou não sendo abarcada enquanto
sujeito passivo, apenas a honesta. Além disso, o consentimento da vítima entre 16 e 21 anos
não era suficiente para a exclusão do crime, e sim uma mera redução de pena, privilegiando,
novamente, o pátrio poder. Por fim, a pena dos crimes de defloramento e estupro de mulher
honesta eram extintas na hipótese de casamento.
No Capítulo IV, o art. 279 insistiu na diferenciação da caracterização do crime de
adultério praticado por homens e mulheres. Enquanto para aqueles o concubinato era
elementar do tipo, para estas o adultério esporádico possuía o mesmo grau de reprovabilidade,
aplicando-se as mesmas penas.
Ou seja, a tradição da legislação penal examinada até aqui corrobora a hipótese de
que o sistema penal possui papel fundamental na construção social do “ser mulher”. Essa
construção vai refletir não as diferenças biológicas entre os sexos, mas os estereótipos de
comportamentos de gênero e suas respectivas assunções morais (LARRAURI, 1994, p. 22-
23). Ao garantir distinções de tratamento a depender da qualidade da vítima, sempre sobre
fatos atrelados à sua sexualidade, incute-se na sociedade a noção de que para merecer a
proteção do Estado, mulheres devem se portar dentro de um padrão restrito e específico de
comportamento. Assegura-se, desta maneira, a preservação de uma lógica conservadora de
controle dos corpos femininos em que privilégios patriarcais são perpetuados.

D. Código Penal atual

Com a edição do Código Penal, em dezembro de 1940, os crimes sexuais passaram a


ser previstos no Título VI, recebendo o nome “Dos crimes contra os costumes”. É sabido que
a despeito de ser a normativa vigente atualmente, o Código sofreu diversas modificações,
inclusive no tema aqui abordado. Contudo, a análise inicial se debruçará sobre o diploma tal
qual promulgado no início da década de 40 para assim avançarmos nos reformas posteriores.

13
Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta: Pena - de prisão cellular por um a seis annos.
§ 1º Si a estuprada for mulher publica ou prostituta: Pena - de prisão cellular por seis mezes a dous annos.

23
Dos seis capítulos que trataram sobre os crimes sexuais o destaque aqui será dado
aos crimes contra a liberdade sexual, que incluem o estupro, a posse sexual mediante fraude, o
atentado ao pudor mediante fraude, o crime de sedução e o crime de rapto.
Apesar do tipo penal de estupro ter trazido a mesma pena independentemente de qual
fosse a categoria de mulher – apenas mulheres poderiam ser sujeito passivo do crime – a
diferenciação entre mulheres honestas, virgens e demais mulheres permaneceu até o ano de
2005 no ordenamento brasileiro em outros dispositivos. O art. 21514, que dispunha sobre a
posse sexual mediante fraude, assentava em seu caput que o sujeito passivo era a mulher
honesta. Já no parágrafo único, o crime se tornava qualificado na hipótese da mulher ser
virgem. O art. 21615, por seu turno, também exigia que a mulher fosse honesta para que o
crime de atentado ao pudor mediante fraude fosse configurado. O crime de rapto violento ou
mediante fraude, no mesmo sentido, privilegiava a mulher honesta, e, caso houvesse
consentimento da mulher maior de 14 anos e menor de 21, a pena seria apenas reduzida (arts.
219 e 220)16.
Embora num primeiro momento possa ser questionada a inaplicabilidade de tais
classificações já na segunda metade do século XX, é importante destacar que cabe à produção
doutrinária, enquanto uma das fontes do direito, a tarefa de desenvolver os conceitos trazidos
em tipos penais abertos, diga-se, de questionável constitucionalidade17.
Nesse sentido, em suas famosas lições, Nelson Hungria, um dos autores do
anteprojeto do Código Penal de 1940, entendia que “desonesta é a mulher fácil, que se entrega
a uns e outros, por interesse ou mera depravação” (HUNGRIA e LACERDA, 1980, p. 150).
Essa compreensão permaneceu tão enraizada que quando da reforma da parte geral do Código
Penal em 1984, a Exposição de Motivos18, em seu ponto 50, afirmou que o pouco recato da
vítima nos crimes contra os costumes deveria ser avaliado no momento da aplicação da pena,
nos termos do art. 59, atualmente em vigor.

14
Art. 215. Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude: Pena - reclusão, de um a três anos.
Parágrafo único - Se o crime é praticado contra mulher virgem, menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de dois a seis anos.
15
Art. 216. Induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou submeter-se à prática de ato libidinoso diverso da
conjunção carnal: Pena - reclusão, de um a dois anos.
16
Art. 219. Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude para fins libidinosos: Pena – reclusão,
de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.
Art. 220. Se a raptada é maior de catorze anos e menor de vinte e um, e o rapto se dá com o seu consentimento: Pena
– detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.
17
Um das dimensões do princípio da legalidade (art. 5o, XXXIX, da Constituição da República) é a necessidade da
lei penal ser certa, determinada e não vaga. Também conhecida como princípio da taxatividade ou “nullum crimen,
nulla poena sine lege certa”.
18
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1980-1987/lei-7209-11-julho-1984-356852-exposicaodemotivos-148879-
pl.html

24
De fato, o que a lei buscava salvaguardar não era nem mesmo a dignidade sexual
daquelas admitidas como honestas, mas sim os costumes - da sociedade patriarcal -, como
expressamente trazia o Título VI do Código19. Foi apenas em 2005, com a Lei 11.106, que
tais categorias foram superadas no âmbito legislativo e que o casamento como causa de
extinção da punibilidade foi revogado do ordenamento. E somente em 2009, com a Lei 12.015
que lógica de tutela dos costumes foi substituída pela da dignidade sexual.
Se essa compreensão foi retirada do ordenamento jurídico há pouco mais de dez
anos, não resta dúvida sobre a sua permanência arraigada na sociedade20 e em todo o sistema
de justiça.

1.1.2 A LEI MARIA DA PENHA


Após o exame das principais legislações anteriores, indaga-se se a Lei 11.340/2006,
cuja edição foi justificada na proteção à mulher, conseguiu se desvencilhar da lógica
categorizadora implementada ao longo desses séculos naquilo que concerne o tratamento
punitivo oferecido pelo diploma.
O que se verifica é que a lei permanece imprimindo sobre mulheres estereótipos de
gênero. Contudo, agora o faz sob a rubrica de vítima de violência doméstica. A mulher, aos
olhos da legislação, é percebida enquanto sujeito frágil, incapaz, dotado de passividade,
vítima do seu próprio destino, que deve ser protegida, inclusive de si mesma, para que não
“corra o risco” de desistir da empreitada punitiva.
O complexo fenômeno da violência entre pessoas que compartilham laços afetivos,
familiares, sociais e econômicos, é percebido por meio de um viés simplificador. A vontade
da mulher, no âmbito da jurisdição criminal, é relegada a segundo plano, uma vez que
havendo a prática de um determinado fato típico, sobrepõe-se a vontade da lei na imposição
de uma resposta punitiva. Entretanto, em estudo apresentado em 2015 ao Ministério da
Justiça, intitulado “Violência contra a mulher e as práticas institucionais”21, constatou-se que
80% das mulheres não desejam o encarceramento de seu agressor.
Apesar disso, de acordo com a normativa vigente, no momento em que ela aciona o
poder público buscando algum tipo de resolução para sua situação, é objetificada e

19
“Dos crimes contra os costumes”
20
Em estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) intitulado “Tolerância Social à
Violência contra Mulheres” (2014), atestou-se que 58,5% da população acredita que se as mulheres soubessem se
comportar, haveria menos estupros.
Ver: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres.pdf (acessado em
19 de julho de 2018)
21
Volume 52 da publicação “Pensando o Direito”. http://pensando.mj.gov.br/publicacoes/.

25
transformada em mero meio de prova para a formação da culpa do réu num processo penal. O
próprio uso das expressões “ofendida” e “agressor” implica a noção de que o conflito,
atravessado pela ótica do direito penal, afastará qualquer outra alternativa para sua solução
que não seja a pena privativa de liberdade (MONTENEGRO, 2015, p. 115).
Vejamos, então, alguns dispositivos e aplicações.
Quando da promulgação, o legislador entendeu que a natureza da ação penal nos
crimes envolvendo violência doméstica deveria ser condicionada à representação admitindo a
renúncia da ofendida. Contudo, a renúncia só pode ser realizada perante o juiz em audiência
especialmente designada para este fim, com a presença do Ministério Público22, exigência não
prevista em nenhum outro diploma do ordenamento jurídico. Ou seja, o direito subjetivo de
decidir por renunciar ao processo penal enquanto forma de solução do seu conflito está
submetido à aprovação do magistrado, uma vez que o objetivo da referida norma é o
fornecimento de alguma justificativa para o ato renunciante.
Entretanto, o tratamento verticalizante foi ainda mais agravado. Isso porque em
2012, o Supremo Tribunal Federal, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade
4.424/DF, deu interpretação conforme ao referido dispositivo entendendo que os crimes de
lesão envolvendo violência doméstica e familiar - pouco importando sua extensão ou
gravidade - seriam de ação penal pública incondicionada. Isto é, nos casos de lesão corporal a
possibilidade de renúncia ao processo foi completamente afastada deixando a mulher
destituída de escolha.
Conquanto os defensores de tal medida a justifiquem num suposto incremento de
proteção, verifica-se, na realidade, um verdadeiro silenciamento que apenas reconhece à
mulher a possibilidade de ocupar o lugar de vítima. A generalização da ideia de que toda
mulher que decide pelo não prosseguimento da ação penal só o faz por estar sendo
pressionada, ou até mesmo ameaçada, demonstra como a tutela estatal é verticalizante,
redutora e alheia às diversas nuances e complexidades dos casos concretos da vida real e dos
diferentes processos de resistência feminina que são diariamente concebidos e postos em
prática nos seios comunitários.
De fato, esse silenciamento que faz parte de toda uma cultura de subjugação
feminina não é pontual na legislação e isso reflete, inclusive, na forma como essas normas

22
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será
admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes
do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

26
penais são interpretadas. É o caso, também, do art. 4123, cuja constitucionalidade foi atestada
pelo STF na Ação Direta de Constitucionalidade 19/DF.
O referido artigo versa sobre a inaplicabilidade do procedimento e dos institutos
despenalizadores da Lei 9.099/95 – que trata das infrações de menor potencial ofensivo - aos
crimes abarcados pela Lei Maria da Penha24. Em razão disso, a possibilidade de conciliação
entre as partes, mesmo em caso de ameaça (que é uma infração de menor potencial ofensivo
punida pelo ordenamento com pena de detenção) foi completamente rechaçada com a
chancela da Corte Superior.
Todavia, a conciliação representa um interessante momento processual em que as
pessoas envolvidas no conflito, mediadas por um juiz ou conciliador, tem a possibilidade -
mesmo que restrita, uma vez que os procedimentos do sistema de justiça tradicional não
fornecem essa possibilidade a contento – de expressar seus desejos e angústias e ouvir umas
as outras.
“A conciliação parece adequada a vários tipos de conflitos, porém, nos
domésticos, em especial, entre cônjuges, irmãos e pais e filhos, a conciliação é,
sem dúvida, o melhor caminho, porque, como os envolvidos se conhecem e os
laços familiares não poderão ser rompidos, a conciliação pode apresentar uma
resposta personalizada, atendendo aos anseios dos envolvidos, que possibilita,
inclusive, restaurar laços afetivos” (MONTENEGRO, 2015, p. 97).

Fato é que o legislador, posteriormente ratificado pelo Poder Judiciário, com o


discurso de proteção à mulher, continuou se valendo do estereótipo de fragilidade e
passividade feminina que demanda cuidado especial em diversas passagens da Lei
11.340/2006.
Contudo, retirar a voz das mulheres e o seu direito de escolha só reforça sua
condição de subalternidade. Nesse sentido, impossível não se recordar de Gayatri Spivak
quando concluindo sua obra respondeu negativamente à pergunta: “pode a subalterna falar?”.
Ela não pode não porque seja impossível para ela falar, mas porque há uma incapacidade de
escuta dos grupos dominantes que tomam para si a tarefa de porta-vozes (SPIVAK, 2010) por
meio de retóricas e práticas salvacionistas que desconsideram os anseios alheios.

23
Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da
pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995.
24
O objetivo da norma é afastar a aplicação dos institutos despenalizadores – e consequentemente a pena
privativa de liberdade - trazidos pela Lei dos Juizados Especiais, como a possibilidade de composição civil dos
danos, a transação penal, a suspensão condicional do processo e a conciliação. Isso porque, antes da edição da
Lei Maria da Penha, havia a ideia de que os conflitos de violência doméstica eram banalizados pelo sistema de
justiça, haja vista que bastava o pagamento de “cesta básica” para que o homem agressor fosse liberado
(MONTENEGRO, 2015, p. 103). Assim, um maior rigor penal significaria um comprometimento com a causa.

27
Na verdade, o compromisso deveria ser com a promoção efetiva de políticas sociais
que permitissem seu acolhimento para que fossem ouvidas e seus interesses atendidos, sem
ignorar que isso pode se dar de múltiplas formas em razão de toda a complexidade que os
conflitos domésticos carregam consigo.
Mas infelizmente essa não é a realidade. Quando buscam o amparo do Judiciário por
meio do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher ou das Varas Criminais
com atribuição para tanto, a maior parte das mulheres não deseja o encarceramento de seus
maridos, companheiros, filhos, irmãos, pais, padrastos, etc. O baixo índice de condenação25
em processos que tramitam nos Juizados de Violência Doméstica demonstram que quando a
mulher tem escolha, acaba se valendo dos institutos que extinguem a punibilidade, tais como
a retratação, a renúncia/perdão, a perempção e a decadência por falta de representação26. Isso
pode ser interpretado como reflexo do silenciamento de mulheres que decidem não retomar a
versão apresentada em sede policial quando em juízo, após se darem conta de que a resposta
punitiva oferecida pelo sistema penal não é capaz de compreender, nem tampouco atender as
demandas para pacificação do seu conflito (MEDEIROS, 2015, p. 105) e sim intensificá-lo,
muitas vezes em novos processos de vitimização.
Com efeito, a percepção de 70% das mulheres é a de que suas questões poderiam ser
resolvidas de forma distinta, tais como a obrigatoriedade de frequência a grupos de agressores
para conscientização (30%) ou com a ajuda de psicólogos e/ou assistentes sociais (40%)27.
Todavia, diante do obscurantismo existente nos signos e linguagem da justiça e seus
procedimentos – incompreensível para a grande maioria da população – muitas acabam não
tendo a correta dimensão do que significa o processo criminal e o como funciona o seu
regular processamento, o que torna ainda mais perversa a impossibilidade de encerrar o
processo por vontade própria nos casos em que a lei prevê a natureza incondicionada da ação
penal.
Ou seja, o que se pode observar até aqui é que mesmo decorrido um longo período de
tempo – apesar de ter havido notório avanço e conquistas das demandas feministas - ainda
assim a normativa penal, que se autoconfere a proteção e a consequente emancipação de
mulheres, continua reforçando estereótipos de gênero (passividade, emoção, fragilidade)
25
Na cidade de Recife, a taxa de condenação no âmbito do Juizado de Violência Doméstica é de 7%; em Maceió
é de 5% Belém, 19%; Porto Alegre, 18%; Brasília, 25%; e São Paulo, 40%. Trata-se de estudo apresentado junto
ao CNJ, na 2ª Edição da Série Justiça Pesquisa. Ano 2017.
Título: Entre práticas retributivas e restaurativas: a Lei Maria da Penha e os avanços e desafios do Poder
Judiciário. Realização: Universidade Católica de Pernambuco
26
Idem.
27
Volume 52 da publicação
“Pensando o Direito”. http://pensando.mj.gov.br/publicacoes/.

28
estruturantes da sociedade patriarcal e reduplicando seu lugar desigual de poder na sociedade
no momento em que o poder público é acionado (PRANDO, 2016).
Nesse sentido, segundo Maria Filomena Gregori (1993), a tentativa de compreensão
da violência doméstica pela lente do direito penal que enxerga os envolvidos a partir da
dualidade agressor versus vítima ignora a dinâmica das relações entre homem e mulher. Essa
leitura simplificadora contribui para a autopercepção da mulher enquanto não-sujeito na
medida em que a conformação de papéis delimitados a serem desempenhados por um e outro
faz com que a mulher adira à imagem e à feminilidade a ela atribuída que necessita amparo e
proteção.
“É preciso se indignar e se contrapor à violência. Mas não tenhamos a ilusão de
que o caminho mais profícuo parta da pressuposição de uma dualidade entre
vítima e algoz – em que o primeiro termo esteja associado à passividade
(ausência de ação) e o segundo, a uma atividade destruidora e
maniqueisticamente dominadora (GREGORI, 1992, p. 184).”

Não se está afirmando que a Lei Maria da Penha não traz dispositivos que mereçam
elogio, pelo contrário. Os dispositivos que não possuem carga punitiva são potencialmente
positivos desde que colocados em prática28 - apesar de não vir sendo este o foco de atuação
dos poderes Executivo e Judiciário (CAMPOS, 2017, p. 13-15). Além disso, medidas
protetivas de urgência previstas na lei podem representar a interrupção momentânea da
violência com o afastamento do agressor, sendo determinante para a vida de diversas
mulheres - apesar do risco do seu caráter cautelar ser manejado penalmente enquanto coerção
direta (BATISTA, 2007, p. 12).
De fato, o que se quis evidenciar com essa análise legislativa é justamente a falsa
promessa emancipatória que o sistema penal se autoatribuiu. É preciso refletir sobre as
premissas que compõem a empreitada punitiva, sobretudo no momento em que minorias
encontram seus direitos ainda mais ameaçados. Quanto às mulheres, se a elas historicamente
foi reservado o espaço privado, no vazio do silenciamento, necessitada da tutela alheia, é
lastimável constatar a permanência de uma lógica salvacionista que continua deduzindo essa
falaciosa incapacidade de agência.

1.2 A CRIMINOLOGIA CRÍTICA FEMINISTA E A CRISE DE LEGITIMIDADE DO


SISTEMA PENAL

28
Os arts. 8o e 9o versam sobre importantes políticas públicas a serem implementadas e os arts. 22 e 23 elencam as
medidas protetivas de urgência de caráter não penal.

29
Vivemos, atualmente, uma crise de legitimidade do sistema penal que vem sendo
denunciada pela Criminologia Crítica enquanto movimento teórico desde a década de 70.
Se debruçando sobre a questão criminal, a Criminologia Crítica foi responsável por
deslocar a análise antes voltada para o autor do fato tido por criminoso para dar um “enfoque
macrossociológico que historiciza a realidade comportamental e ilumina as relações com a
estrutura política, econômica e social” (BATISTA, 2011, p. 89). Rompeu-se de vez com o
paradigma etiológico que, partindo de uma premissa ontológica, buscava uma explicação
causal para o fenômeno do crime. Significa dizer que a investigação deixou de ser o porquê da
prática de determinado crime, não mais percebido como ente natural, para se pensar o porquê
de apenas alguns sujeitos e atos serem criminalizados.
Através dessa ruptura metodológica, proporcionada pela politização marxista da
questão criminal, evidenciou-se que o sistema penal sempre foi um instrumento de poder das
classes dominantes a serviço de seus interesses, forjando verdadeiros processos de
criminalização. Logo, a “criminalidade” nada mais é do que um status atribuído a
determinados indivíduos por meio de uma dupla seleção: i) de bens a serem protegidos e dos
comportamentos que os ofendem; e ii) de indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos
que realizam infrações penalmente sancionadas.
Nesse sentido, o real interesse de todo esse sistema é a “contenção do desvio em
limites que não prejudiquem a funcionalidade do sistema econômico-social e os próprios
interesses e, por consequência, na manutenção da própria hegemonia no processo seletivo de
definição e perseguição da criminalidade” (BARATTA, 2011, p. 162 e 197).
Não se trata, portanto, de uma conjuntura a ser superada por reformas sucessivas que
culminarão na substituição da sua clientela preferencial. O sistema penal e suas agências
punitivas integram os mecanismos de controle e disciplina sociais estruturados na luta de
classes, no machismo e no racismo, que selecionam e estigmatizam determinado grupo de
indivíduos para a manutenção de privilégios de outros, muito embora condutas penalmente
típicas sejam praticadas generalizadamente. Não seria diferente no âmbito da violência
doméstica, em que a população criminalizada continua pertencendo às classes subalternas29,
ainda que o fenômeno da violência de gênero não seja adstrito a uma classe ou outra.

29
Foi o que demonstrou o estudo anteriormente mencionado “Entre práticas retributiva e restaurativas: a Lei Maria
da Penha e os avanços de desafios do Poder Judiciário”. Baixa escolaridade, expectativa de baixos salários,
profissões que não exigem formação universitária e residência em bairros pouco abastados integram o perfil
socioeconômico dos homens ofensores entrevistados.

30
Entretanto, este não é o objetivo declarado, anunciado. O discurso oficial do sistema
penal busca sua legitimidade com fundamento em três promessas celebradas no seio do
“igualitário” contrato social. E é justamente no seu descumprimento manifesto que a crise se
irrompe.
A primeira delas é sua suposta capacidade de proteção de bens jurídicos e valores
relevantes para toda a sociedade, indistintamente. A segunda, consiste na resposta à
criminalidade por meio da retribuição e da prevenção, tanto geral quanto especial30. A terceira
promessa descumprida, por fim, consiste em sua aplicação de forma igualitária para todos os
indivíduos (ANDRADE, 1999, p. 106).
A crise de legitimidade, dessa maneira, se dá em relação à proposta declarada do
sistema penal, quanto àquilo que ele se propõe a realizar, já que nenhuma dessas promessas
foi efetivamente realizada. Na verdade, nem serão, já que, como demonstrado, esse nunca foi
seu fim precípuo.
Eugênio Raul Zaffaroni, (2001, p.16-29) também aponta a crise de legitimidade do
sistema penal à medida que vai desconstruindo a racionalidade que se diz fundamentá-lo. Ele
sustenta que o discurso jurídico-penal enquanto construção teórica não é racional por falta de
coerência e de verdade.
No plano interno, a falta de coerência fica patente quando o discurso jurídico-penal
se justifica apenas no que diz o legislador, ou seja, com base num texto legal já elaborado, na
pura dogmática.
Ademais, o discurso-jurídico penal traz consigo uma projeção social que deveria se
realizar ao menos em alguma medida para que fosse verdadeira. Quer dizer, para que o
discurso seja socialmente verdadeiro, ele deve se realizar em dois planos de “verdade social”.
O primeiro é o abstrato, em que a criminalização de condutas é considerada o meio adequado
para alcançar os fins propostos. O segundo, concreto, exige que os operadores do sistema
penal atuem efetivamente diante dos casos reais.
Quando confrontamos os objetivos declarados do sistema penal não há como chegar
a outra conclusão senão a de que se trata de um modelo fracassado. Mesmo com a
criminalização de novas condutas – processo que se dá quase diariamente - e do aumento das
30
Sobre as teorias a respeito da finalidade da pena, há quem trabalhe com a ideia de prevenção geral e especial. A
prevenção geral é aquela voltada para o corpo social, podendo ser positiva ou negativa. Ela é positiva pois seria
capaz de demonstrar que a lei penal está vigendo e, portanto, apta a produzir efeitos na realidade. Já seu aspecto
negativo, consiste na ideia de que a atribuição abstrata de pena para determinada conduta seria capaz de impedir que
indivíduos a praticassem. A prevenção especial, por sua vez, também é classificada em positiva e negativa, mas é
pensada no ponto de vista individual, em relação àquele que pratica a conduta tida por criminosa. A prevenção
especial positiva é aquela que supõe a ressocialização da pessoa condenada após o cumprimento de pena, enquanto a
negativa é a que impediria a prática de novos fatos típicos, evitando a reincidência.

31
penas em abstrato já existentes, ainda assim as taxas de violência permanecem em ascensão
enquanto o hiperencarceramento seletivo31 opera a todo vapor. Além disso, não se pode
esquecer que o sistema penal é, em realidade, permeado pela cifra oculta32. Nessa lógica, a
ausência de racionalidade é, portanto, patente, e toda a legitimidade se desfaz. “Em nossa
região marginal, é absolutamente insustentável a racionalidade do discurso jurídico-penal que
de forma muito mais evidente que nos países centrais, não cumpre nenhum dos requisitos de
legitimidade” (ZAFFARONI, 2001, p. 19).
Mas a crise do sistema penal também é manifesta a partir do giro epistemológico
proposto pelas teorias feministas que, demandando a elaboração de explicações próprias,
evidencia o caráter androcêntrico do direito penal e, consequentemente, a sua incapacidade de
lidar com os conflitos de gênero.
Sob essa perspectiva crítica compreende-se que o Estado é masculino não só na
forma como enxerga as mulheres mas quando cria normas para sua “proteção”. É que as
normas refletem aquilo que os homens pensam sobre as mulheres com base em valores
masculinos.

“Obviamente, o Estado aparentemente neutro não pode ancorar-se senão na


objetividade alcançada através do uso da razão, qualidade, por definição,
essencialmente masculina. (...) O fato de os excessos dos homens no processo
de dominação das mulheres serem punidos, visando à sua ‘normalização’,
constitui um forte indício de que o Estado regula e garante a supremacia
masculina. Isto significa que o Estado masculino reforça a organização social de
gênero com todas as injustiças que ela contém” (SAFFIOTI, 1995, p. 202).

O direito penal é manifestação do poder punitivo. E este, enquanto poder masculino,


é intrinsicamente violento pois atua com propósito de controle. Em relação às mulheres, esse
controle pode se dar tanto formalmente, quando há a criminalização de condutas por elas

31
Atualmente o Brasil é o 3o país que mais encarcera no mundo, com mais de 726 mil presos, conforme o
Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias recém publicado. Ver
http://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presas-no-brasil/relatorio_2016_junho.pdf
32
Cifra oculta é um conceito que indica que apenas uma ínfima parcela das infrações praticadas integram os dados
oficiais. Isso porque somente um pequeno número chega ao conhecimento da autoridade policial e destes, poucos
chegam ao poder judiciário. Ou seja, “as agências do sistema penal dispõem apenas de uma capacidade operacional
ridicularmente pequena se comparada à magnitude do planificado” (2001, p. 26). A seletividade ideológica do
sistema penal fica, assim, escancarada, já que se trata de uma escolha política a persecução criminal de determinadas
pessoas e fatos.

32
praticadas33, quanto informalmente, no âmbito privado, sendo certo que ambos os planos
atuam de forma complementar (BARATTA, 1999, p. 45-46).
Como a história revela, o ambiente doméstico brasileiro foi o espaço onde o poder
punitivo privado foi empreendido arbitrariamente pelo pater. O controle sobre mentes e
corpos femininos - assim como os de povos africanos escravizados – se dava pelo exercício
desse poder que ali não encontrava quase limite algum (BATISTA, 2007; BATISTA, 2010, p.
32-3).
Atualmente, esse controle, enquanto expressão de poder e domínio, se manifesta
através dos altos índices de violência, sobretudo a sexual, vivenciada dentro de casa. Trata-se
de violência controladora e que, num sentido último, nada mais é do que pena privada
(ANDRADE, 2010, p. 153) que serve à manutenção do status quo desigual.
Dessa forma, é desarrazoado que esse mesmo poder punitivo, que sempre oprimiu
mulheres, seja eleito a via para lidar com os conflitos de gênero e para promover a
emancipação feminina. Por essa razão que se visa questionar a escolha criminalizante no
enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. Isso porque “si se afirma
que el derecho penal es un instrumento esencialmente masculino (por los valores que
incorpora, por la forma de proceder, etc.) resultará ser un medio poco eficaz en la lucha de
las mujeres”. Além disso, “resulta contradictorio que se acuse al derecho penal de ser un
medio patriarcal y se recurra a él, con lo cual, en vez de contribuir a extinguirlo, se
contribuye a engrandecerlo.” (LARRAURI, 1994)
Com efeito, o que se percebe é que os vetores criminalizantes da Lei Maria da Penha
representam uma manifestação do direito penal simbólico que vem atender anseios
punitivistas enquanto traz respostas superficiais aos problemas sociais, ou seja, incapazes de
penetrar as raízes da desigualdade de gênero e transformar a realidade.
A resposta punitiva permanece ocupando esse espaço simbólico e rarefeito de defesa
dos interesses da mulher. O exemplo mais recente é a alteração legislativa de abril de 2018,
introduzida na Lei Maria da Penha através da Lei 13.641 que passou a prever, em seu art. 24-
A, a prisão do agressor em caso de descumprimento de medida protetiva de urgência. Trata-se
de um dispositivo desnecessário, uma vez que já existe no ordenamento a previsão do crime
de desobediência à decisão judicial (art. 330 do Código Penal) e a possibilidade de prisão
preventiva para garantir a execução das medidas protetivas de urgência (art. 313, IV, do

33
Esse controle formal vem sendo exercido com cada vez mais força. Segundo o Departamento Penitenciário
Nacional (Depen) do Ministério da Justiça, o número de presas multiplicou oito vezes num período de 16 anos.

33
Código de Processo Penal). Mesmo assim, foi uma mudança amplamente celebrada por
setores progressistas e conservadores mas que, ao fim, implica em mais munição para um
atuar seletivo que não contribui efetivamente na luta por igualdade, pelo contrário.
Sem dúvida, um dos grandes méritos da luta feminista foi ter dado relevo à violência
de gênero no âmbito doméstico, por tanto tempo silenciada e banalizada pelos poderes
instituídos. E nesse aspecto, entende-se que a proposta de endurecer o tratamento penal pode
significar, numa análise mais superficial, o reconhecimento tão almejado e merecido de
pautas emancipatórias.
Entretanto, essa dinâmica, já bastante conhecida, que se dá com a organização dos
setores minoritários da sociedade exigindo o exercício do poder punitivo tem por
consequência a reafirmação desse mesmo poder que sempre será distribuído desigualmente,
inclusive sobre os próprios setores que o invocam (BATISTA et al, 2010, p. 126-127).

“O Direito Penal não constitui meio idôneo para fazer política social, e a
mulheres não podem buscar a sua emancipação através do poder punitivo e a
sua carga simbólica. Punir pessoas determinadas para utilizá-las como efeitos
simbólicos para os demais significa a coisificação de seres humanos”
(MONTENEGRO, 2015, p.).

Na verdade, as respostas punitivas para os conflitos sociais correspondem àquilo que


a Criminologia Crítica denomina populismo criminológico (BATISTA, 2011, p.100), bastante
explorado pelos meios de comunicação, que credita a solução dos conflitos sociais a um maior
rigor penal para obtenção do apoio popular. Sua lógica é instituída na autoritária e falaciosa -
pois nunca comprovada - ideia de prevenção geral, em que quanto mais dura a pena, maior
seu caráter de intimidação e que, em última análise, encerra um verdadeiro conteúdo de
vingança (ZAFFARONI, 2018, p. 103).
O problema é que além de não promover a pacificação dos conflitos, o sistema penal
ainda os intensifica. Isso porque permanece seletivo e estigmatizante, não só na seleção de
agressores determinados (os fóruns estão cheios apenas de agressores negros e pobres), como
na forma como lida com as vítimas que se diz proteger.
Fato é que a maioria das mulheres que vai em busca do amparo estatal para solução
do seu conflito integra as classes sociais mais baixas, sendo muitas vezes dependentes
econômicas, já que não possuem atividade laboral fora de casa. Isso reflete o caráter classista
da justiça penal, uma vez que aquelas que possuem superior condição financeira têm à

34
disposição outras alternativas mais eficazes e menos estigmatizantes, tal como o auxílio de
profissionais especializados, familiares, etc.
Além disso, não se pode olvidar que a lógica implementada por esse sistema implica
na revitimização dessas mulheres quando do momento em que acionam o Estado policial. A
partir daí são categorizadas como “vítimas” cuja única função em todo o procedimento é
produzir a prova da atribuição da culpa do “réu”. Não interessa como pensam, como se
sentem, como irão pagar suas despesas, como a vida dos filhos será impactada, como a
experiência do cárcere afetará suas vidas ou que tenham qualquer outro sentimento por aquele
“agressor” que não seja o desejo de vingança. São expurgadas do seu próprio conflito, agora
apropriado pelo poder estatal (CHRISTIE, 1977; FOUCAULT, 2005, p. 66; ZAFFARONI,
2007, p. 30-1).

“Seguindo essas críticas acumuladas pelas investigações criminológicas


tendemos a supor que o que vê a mulher quando o direito as olha é a
reduplicação de seu lugar desigual de poder na sociedade, de forma a
dificultar que o seu encontro com o direito nas situações de violência seja
capaz de ocasionar uma fissura e um deslocamento em sua subjetividade,
mesmo que contingencialmente” (PRANDO, 2016).

Esse processo de revitimização foi evidenciado por meio da pesquisa realizada pela
Universidade Católica de Recife, contratada pelo Conselho Nacional de Justiça34, em que
diversas mulheres usuárias do Sistema de Justiça Criminal foram entrevistadas. Constatou-se
que a maioria não se sente ouvida ou reconhecida naqueles espaços, além de enfrentar enorme
dificuldade para compreender o procedimento ao qual estão submetidas, agora vítimas de uma
“injustiça informacional”.
Isso pode ser interpretado como desdobramento do despreparo e da falta de
capacitação dos atores do sistema para lidar com o fenômeno, especialmente quando há
relatos de mulheres que se sentem culpabilizadas nesses ambientes pelos profissionais que lá
atuam. Além disso, a indefinição da duração do processo e a ausência de respostas contribuem
para a sensação de abandono, justamente a mesma experimentada no momento das agressões
domésticas que almejam interromper.
Ou seja, mais uma vez fica claro que o sistema penal permanece legitimando e
garantindo as estruturas de poder de uma sociedade patriarcal, mesmo quando se propõe a
amparar mulheres. Logo, como é que esse cenário pode ser de alguma forma frutífero para a
34
Título: Entre práticas retributivas e restaurativas: a Lei Maria da Penha e os avanços e desafios do Poder
Judiciário. Realização: Universidade Católica de Pernambuco

35
promoção de dignidade de mulheres? Como enfrentar a desigualdade de gênero sem escuta,
apenas com punição?
Ao direito penal não cabe o papel de efetivação de direitos e de promoção de
políticas públicas. Sendo este um instrumento intrinsecamente desigual, seletivo e patriarcal
desenvolvido sobre estruturas sexistas, racistas e classistas, de modo algum poderá ser o
responsável por alcançar a emancipação de minorias. Consequentemente, não se trata de uma
mera questão conjuntural de uma ou outra legislação passível de alguns ajustes.
Outrossim, trata-se de uma opção que vai na contramão das discussões abolicionistas
que vêm sendo travadas em diversos lugares do mundo, exatamente em razão da sua atestada
ineficácia em lidar com os conflitos sociais, garantir direitos e alterar positivamente a
realidade.
Foi nesse sentido que, em julho de 2017, a ativista feminista negra Angela Davis, na
Universidade Federal da Bahia, falando sobre violência doméstica e sistema penal, convidou
os presentes às seguintes reflexões:

“Nós precisamos nos perguntar qual é a fonte dessa violência que prejudica e
fere tantas mulheres negras. Qual é a relação dessa violência com a violência
policial e do sistema carcerário? Se essa violência do indivíduo está
conectada com a violência institucional e do estado, isso significa que não
conseguiremos erradicar a violência doméstica enviando aqueles que a
praticam ao sistema carcerário. Se desejamos erradicar as formas mais
endêmicas de violência do indivíduo da face da Terra, então devemos
eliminar também as fontes institucionais de violência. Este é o chamado para
a abolição do encarceramento como a forma dominante de punição para
pensarmos novas formas de abordagem para aqueles que são violentados.
Este é o chamado do feminismo negro para formas de justiça decoloniais.”35

A reflexão de Angela Davis acerca do ciclo vicioso de violência gerado pelo sistema
penal integra um cenário de inconformidade em que foi possível desenvolver críticas radicais
ao modelo punitivo de gestão de conflitos. Esse movimento foi denominado abolicionismo
penal.

“O abolicionismo penal é uma prática libertária interessada na ruína da


cultura punitiva da vingança, do ressentimento, do julgamento e da prisão.
Problematiza e contesta a lógica e a seletividade sócio-política do sistema

35
A transcrição da palestra “Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra o racismo” pode ser
acessada no site https://medium.com/revista-subjetiva/transcrição-da-palestra-de-angela-davis-atravessando-o-
tempo-e-construindo-o-futuro-da-luta-contra-6484111fe25a (acessado em 02/08/2018).

36
penal moderno, os efeitos da naturalização do castigo, a universalidade do
direito penal, e a ineficácia das prisões” (PASSETTI, 2006, p. 83).

Os abolicionistas, reconhecendo o fracasso do modelo punitivo, propõem novas


abordagens para a problemática dos conflitos existentes em sociedade. Ao mesmo tempo em
que pode ser considerado um movimento social, já que seus expoentes fundaram vários
grupos de ação contra o sistema penal36, o abolicionismo penal também é concebido enquanto
perspectiva teórica, que apesar de apresentar uma variedade de formulações, tem como cerne
o questionamento da cultura punitiva e do castigo como resposta aos problemas sociais
(ANDRADE, 2006, p. 165-168; ACHUTTI, 2016, p. 94; PASSETTI, 2006).
Louk Hulsman (1993), um dos nomes mais importantes do abolicionismo, denunciava
o caráter superficial e dicotômico do sistema penal que categoriza indivíduos em maus e bons,
culpados e inocentes, réus e vítimas, pois concebido no paradigma da teologia escolástica,
onde se conciliava a fé cristã e o sistema de pensamento racional.
Entretanto, advertia que a falsa concepção de racionalidade trazida pelo discurso
oficial esconde, na realidade, toda uma burocratização e profissionalização cujo objetivo é
somente assegurar sua própria subsistência. O problema é que essa burocratização dos
conflitos da vida, além de não permitir a escuta das pessoas envolvidas, tem a oferecer apenas
uma resposta punitiva cuja consequência é a criação e o reforço das desigualdades sociais ao
partir de uma dinâmica seletiva e estigmatizante.
Não se está sustentando, contudo, que o sistema penal deva ser abolido para que não
haja mais a responsabilização dos indivíduos. Enfrentar experiências danosas e traumáticas da
vida em comum é necessário, desafiador e demanda um diálogo que não será estabelecido por
meio do castigo e do sequestro do conflito. Trata-se de um pressuposto indispensável para se
atender aos interesses das partes de fato implicadas, com fundamento nas singularidades de
cada contexto, sem que sejam substituídas pela atuação burocrática de técnicos jurídicos
preocupados em atingir “metas de produtividade”. E a punição, como defendem os
abolicionistas, não tem o condão de reconstruir o tecido comunitário rompido, sendo apenas
uma máquina de sofrimento estéril.

“É preciso abolir o sistema penal. Isto significa romper os laços que, de


maneira incontrolada e irresponsável, em detrimento das pessoas diretamente

36
Louk Hulsman, por exemplo, fundou a Liga Coorhhert, que apresentava propostas alternativas para o Ministério de
Justiça onde atuava. Thomas Mathiesen fundou o KROM (Associação Norueguesa para a Reforma Penal) cujos
membros eram advogados, criminólogos, detentos, ex-detentos, etc. Michel Foucault fundou o Grupo de Informação
sobre os cárceres.(ANDRADE, 2006, p. 166 e FOLTER, 2008, p. 193)

37
envolvidas, sob uma ideologia de outra era e se apoiando em um falso
consenso, unem os órgãos de uma máquina cega cujo objeto mesmo é a
produção de um sofrimento estéril” (HULSMAN e CELIS, 1993, p. 91).

Em razão disso, é essencial que se problematize o próprio conceito de crime e,


consequentemente, o conceito de autor. Para tanto, Hulsman (1993, p. 95-6) propôs uma
mudança na linguagem que fosse capaz de dar conta das complexidades dos conflitos. Assim,
as palavras “crime”, “criminoso”, “criminalidade”, etc., deveriam ser substituídas por “atos
lamentáveis”, “pessoas envolvidas”, “situações problemáticas”. Segundo ele, o vocabulário
penal carrega consigo toda a carga estigmatizante que remete à punição como reação
impedindo a formação de uma nova mentalidade.
Obviamente, a mera mudança na linguagem não permitiria a total superação do
sistema, mas seria, definitivamente, um passo indispensável. Um novo vocabulário propiciaria
outras formas de se olhar para as experiências, proporcionando o surgimento de soluções
antes não ventiladas, de acordo com as particularidades de cada caso e o desejo dos
envolvidos.
Para o abolicionista norueguês Nils Christie (2017, p. 23-7) seria preciso que
procurássemos alternativas à pena e não somente penas alternativas. Isso porque o controle
social exercido pelo sistema penal, não importa se pela ideologia do tratamento ou da
prevenção, sempre foi um instrumento intencional de distribuição de dor que impede o
diálogo real necessário para se construir sistemas sociais justos e igualitários.
A desigualdade social é um fenômeno estrutural cuja responsabilidade é de toda a
sociedade. Entretanto, o sistema penal lida com ela de forma dissimulada, atribuindo culpa e
infligindo dor a comportamentos singularizados praticados por indivíduos selecionados, como
se fossem os únicos e reais responsáveis. Deixa-se, assim, de questionar a dinâmica da
economia capitalista e sua influência nas relações de raça, classe e gênero, que efetivamente
interferem na vida dos indivíduos.
Por isso, é comum na teoria abolicionista que o princípio da solidariedade seja
evocado para resgatar o senso de comunidade danificado, para se pensar numa construção
coletiva de novos modelos igualitários baseados na diversidade e na educação livre do castigo
(PASSETTI, 2006, p. 84). É justamente da solidariedade enquanto sentimento de dependência
mútua que surge o sentimento de responsabilidade (HULSMAN e CELIS, 1993, p. 22-23).
Nesse sentido, a prisão enquanto solução não é solidária com nenhum dos envolvidos.
O ofensor, por ser considerado culpado, evidentemente, não desperta nenhuma empatia. Mas
o surpreendente é que a solidariedade tampouco é direcionada à vítima – inclusive às vítimas
38
potenciais -, pois a prisão enquanto resposta não é capaz de fornecer nenhuma compensação
(MATHIESEN, 2006, p. 146-147).
Assim, é com base no princípio da solidariedade e no resgate dos valores comunitários
que se faz necessária a construção de possibilidades alternativas capazes de restaurar os laços
rompidos quando das situações problemáticas. Não se pode negar que o conflito é inerente à
condição humana e toda a complexidade que ela traz consigo, mas é a sua abordagem que
pode fazer a diferença entre permanecermos aprisionados – metafórica e literalmente – e
experimentarmos “uma nova ética que se elabora na invenção da vida e de outros costumes
para viver” (PASSETI, 2004, p. 28).
Apesar dos desafios, limites e responsabilidade envolvidos, esse percurso – ou melhor,
percursos - vêm sendo percorridos por novos horizontes.

39
2. A PROPOSTA ALTERNATIVA DA JUSTIÇA RESTAURATIVA
A crise de legitimidade do sistema penal que vem sendo apontada se manifesta tanto
pela sua incapacidade de enfrentar as questões às quais ele declaradamente se propõe - a
redução das “taxas de criminalidade” por meio da promoção de ressocialização de indivíduos
e/ou prevenção de novos crimes - quanto pela violência que a lógica punitiva produz e
reproduz, gerando movimentos críticos ao redor do mundo para repensar o modelo de justiça
penal tradicional.
É certo que esse diagnóstico não é recente. Rusche e Kirchheimer (2004) e Michel
Foucault (2001) demonstraram que a falência do modelo punitivo (inadequação para se
cumprir as promessas realizadas) que erigiu a pena de prisão como instrumento, se deu desde
a sua constituição, no século XIX. Suscintamente, Rusche foi responsável por traçar a íntima
relação entre o modelo penitenciário que surgia e o desenvolvimento do mercado de trabalho
atrelado à reserva de mão-de-obra. A essa análise, Foucault acrescentou a importância do
cárcere na implementação da disciplina e, portanto, do controle dessa mão-de-obra industrial,
dando origem a uma nova economia política do poder de punir (BARATTA, 2002, p. 191-2).
Mas a crítica que aqui se propõe remonta também a outro momento, anterior àquele
discutido nas obras acima: a formação do poder judiciário, na Alta Idade Média, quando se
deu o confisco do conflito pelo Estado. Historicamente, esse confisco tem sua origem atrelada
à formação desse poder e do sistema de justiça, que se dá como fator imprescindível para o
processo de acumulação de riquezas e que será o responsável por consolidar a formação dos
Estados absolutistas. Esse momento histórico influenciará todo o Ocidente e os modelos de
justiça nele desenvolvidos (FOUCAULT, 2001, p. 63-6).
Foi, principalmente, com o advento da noção de infração – em contrapartida à noção
de dano que vigia previamente – enquanto violação à lei e à soberania, que o soberano se
transformou em vítima primordial a ser reparada/indenizada, fazendo com que a
administração dos conflitos, antes horizontalizada entre as partes envolvidas, passasse a ser
centralizada no poder estatal (FOUCAULT, 2001, p. 66-8). Esse novo paradigma é o que
majoritariamente vigora nos sistemas de justiça ocidentais atuais.
A partir dessas críticas, diversas concepções de justiça vão se formando,
especialmente nas últimas décadas, com o objetivo de contestar o modelo retributivo e
centralizado do sistema penal estatal, visando a redução da violência gerada por ele. É então
que novas práticas criminológicas, informadas por políticas criminais diversas, passam a ser
desenvolvidas. Dentre elas, temos o que se denominou justiça restaurativa, sobre o qual esse
trabalho irá se debruçar.

40
2.1 A JUSTIÇA RESTAURATIVA E SUAS ORIGENS
Antes de adentrar o tema da justiça restaurativa em si, é preciso entender com mais
detalhes o contexto que permitiu seu desenvolvimento. Conforme a professora espanhola
Elena Larrauri (2004), há duas tendências críticas que inspiraram sua elaboração e que nos
ajudam a melhor compreendê-la, muito embora sejam campos que apresentam diferenças
substanciais entre si. A primeira identificada por ela é o movimento abolicionista, já discutido
no capítulo anterior. Para tanto, a professora trabalha como referência teórica a obra de Nils
Christie, Conflicts as Property (1977), que problematiza a apropriação estatal dos conflitos
entre os indivíduos.
Nessa obra, Christie aponta que o sistema de justiça criminal moderno foi responsável
por gerar duas grandes mudanças significativas. Primeiramente, ele identifica o surgimento da
representação. Isso significa que as partes passaram a ser representadas quando da resolução
dos conflitos: o réu pelo advogado e a vítima pelo Estado, sendo certo que os contornos
integrais que essa última representação adquiriu fizeram com que a vítima fosse
completamente afastada do procedimento e seu papel reduzido a mero desencadeador inicial
do procedimento. Para o autor norueguês, houve, portanto, uma dupla perda para a vítima:
não só em relação ao dano causado pelo conflito que a levou ao tribunal, como a negativa de
total participação no ritual de pacificação, perdendo seu caso para o Estado.
Outra mudança significativa trazida pelo autor consiste no caráter de
profissionalização incorporado pelo sistema, especialmente a dos advogados, treinados para
prevenir e solucionar conflitos. São eles, agora, os proprietários dos conflitos, detentores do
poder de decidir qual argumento é relevante ou não para a solução do caso concreto, ao invés
das pessoas diretamente envolvidas.
Christie chega a afirmar, inclusive, que a criminologia – tanto a estabelecida nos
paradigmas da prevenção e da ressocialização, quanto a crítica - contribuiu como ciência para
os profissionais do sistema de controle criminal na medida em que focou seu objeto de estudo
no ofensor, reduzindo a vítima a uma “não entidade”. Não que os conflitos não sejam
resultado do conflito de classes – essa premissa é incontestável -, mas ao enfatizar unicamente
esse seu aspecto, retira-se das partes diretamente envolvidas a possibilidade de se implicarem
na sua resolução.
Segundo ele, esse modelo de gestão dos conflitos tem por consequência uma perda
para toda a sociedade, uma perda de possibilidades pedagógicas, de oportunidades para uma
contínua discussão sobre o que representa a lei e sobre o comportamento das pessoas, além da
inexistência de qualquer restituição. Pensando nisso, Christie elabora um rascunho do que

41
seria um modelo ideal, orientado pelo interesse da vítima, que respeitasse as necessidades do
ofensor e que permitisse o envolvimento da comunidade. Seria uma espécie de tribunal da
vizinhança, que mesclaria elementos cíveis e criminais, cujo objetivo primordial não fosse a
prevenção de crimes, a diminuição da taxa de reincidência, e tampouco o tratamento de
“criminosos” como o é no modelo tradicional.
Entretanto, Elena Larrauri pontua que o abolicionismo e a justiça restaurativa possuem
uma distinção decisiva. Em sua opinião, o abolicionismo tem como proposta fundamental a
superação do sistema penal vigente. Ou seja, propõe o resgate do protagonismo dos
envolvidos para que possam gerir seus conflitos, com a participação da sociedade. E, somente
de forma alternativa, admitem a possibilidade do direito civil enquanto ferramenta. A
proposta da justiça restaurativa, por sua vez, seria distinta eis que é, majoritariamente,
pensada e desenvolvida para coexistir junto ao modelo de justiça tradicional, ou até mesmo
nele inserido.
A segunda referência também apontada pela autora como antecessora à justiça
restaurativa é o movimento vitimológico. Sua pauta principal consiste na reivindicação da
participação da vítima no processo penal, denunciando a incapacidade deste em prover
alguma reparação que contemple suas expectativas. Isso porque não opera apenas silenciando
os possíveis e reais interesses de quem sofre o dano, como oferece tratamento diferenciado a
depender de quem ocupa esse polo passivo.
A crítica realizada pela teoria da vitimologia é que tanto o direito penal quanto o
processo penal não são capazes de abarcar a perspectiva da vítima. Enquanto o primeiro se
declara protetor de bens jurídicos, o segundo lança-a a segundo plano intensificando novos
processos de vitimização, denominados vitimização secundária37 (PALLAMOLLA, 2009, p.
46).

“Estas críticas ao Direito e Processo penais despontam antes mesmo do


surgimento da justiça restaurativa, por meio da vitimologia e do movimento
de vítimas que manifestavam suas preocupações (principalmente por meio
de autores nos Estados Unidos, Canadá e Europa) com relação ao papel das
vítimas na justiça criminal, ao tratamento desigual conferido aos diferentes
tipos de vítimas e à necessidade de inclusão de seus interesses na agenda

37
O processo vitimizatório representa todas as agressões experimentadas pela vítima e compreende três
dimensões de vitimização: a primária, a secundária e a terciária. A primária consiste no dano que a vítima sofre
no momento em que o autor do fato pratica a conduta tipificada, podendo ser físico, psicológico, patrimonial,
etc. A secundária, também chamada de sobrevitimização do processo penal, se dá a partir do comportamento dos
atores do sistema de justiça, muitas vezes julgando seu comportamento, desacreditando suas palavras ou então
apenas preocupados com aspectos burocráticos do caso. A vitimização terciária é aquela que ocorre na relação
entre a vítima e seu grupo social, que pode se dar através do seu etiquetamento ou da carga atribuída a ela.

42
política. Estas ideias iniciaram seu desenvolvimento nos anos 70 e 80,
quando a reparação e a mediação entre vítima e ofensor ainda eram
incipientes e possuíam poucos defensores e projetos, sendo estes,
basicamente, extralegais e liderados por grupos religiosos ou serviços de
probation” (PALLAMOLLA, 2009, p. 47).

A vitimologia, contudo, também não é um movimento teórico homogêneo. Afirma a


autora (1992) que os estudos vitimológicos convencionais, referentes à primeira fase da
vitimologia acadêmica - atualmente já superada (PALLAMOLLA, 2014, p. 50) - tinham um
caráter positivista, fundados no paradigma etiológico, eis que buscavam compreender as
causas que levavam determinadas pessoas a serem vítimas enquanto outras não. Propunham
uma análise individualista das relações entre vítimas e ofensores, carregando uma tendência
de culpabilização daquelas. Também era alvo de críticas o fato de concentrarem seus estudos
apenas em delitos específicos.
Entretanto, na década de oitenta, desponta uma outra vitimologia, cuja preocupação
era garantir as necessidades e os direitos da vítima sem que isso representasse uma oposição
aos direitos dos ofensores. Para alguns autores, essa virada metodológica se dá com o
desenvolvimento da segunda onda do movimento feminista e seu olhar para as vítimas de
crimes sexuais e violentos praticados contra as mulheres, que vai se preocupar com o
tratamento recebido pelas vítimas no bojo do processo penal (PALLAMOLLA, 2014, p. 48).
Dessa nova vertente, deu-se origem a várias organizações nos Estados Unidos e na Europa
comprometidas com os interesses das vítimas.
Propiciou-se, dessa forma, a concretização da vitimologia enquanto ramo de estudo,
abarcando três áreas de conhecimento principais: a) as pesquisas de vitimização (informação
acerca das vítimas); b) a posição da vítima no processo penal (os direitos das vítimas); e c) a
atenção assistencial e econômica às vítimas (as necessidades das vítimas) (LARRAURI,
1991, p. 21-22).
Contudo, em relação ao sistema de justiça criminal, não é possível afirmar que houve -
ou que tampouco haja atualmente - uma uniformidade na compreensão do seu papel no
tratamento das vítimas. Isso porque a vitimologia também é um campo heterogêneo e que
apresenta aportes teóricos e práticos diferentes por todo o mundo.
Assim, há quem defenda, por exemplo, a ideia de que o direito penal e processual
penal são aliados na defesa do interesse das vítimas, bastando a implementação de reformas
para que ele possa ser um instrumento de efetiva proteção. Hulsman (2011, p. 144-5), se
valendo dos estudos de Stanley Cohen ao tratar das reformas da justiça penal, vai dizer que

43
esse movimento das vítimas de base reformista, com o intuito de se opor ao controle do
mercado, estaria, na realidade, reforçando o controle do Estado.
É o que se constata, por exemplo, em alguns setores dos movimentos feminista, negro
e LGBTI que reivindicam a criminalização de determinados comportamentos atentatórios a
sua dignidade. No Brasil, essa concepção do sistema penal foi classificada por Maria Lucia
Karam (1996) como “esquerda punitiva”.

“Distanciando-se das tendências abolicionistas e de intervenção mínima,


resultado das reflexões de criminólogos críticos e penalistas progressistas,
que vieram desvendar o papel do sistema penal como um dos mais
poderosos instrumentos de manutenção e reprodução da dominação e da
exclusão, características da formação social capitalista, aqueles amplos
setores da esquerda, percebendo apenas superficialmente a concentração da
atuação do sistema penal sobre os membros das classes subalternizadas, a
deixar inantigidas condutas socialmente negativas das classes dominantes,
não se preocuparam em entender a clara razão desta atuação desigual,
ingenuamente pretendendo que os mesmos mecanismos repressores se
dirigissem ao enfrentamento da chamada criminalidade dourada, mais
especialmente aos abusos do poder político e do poder econômico.”

Em sentido oposto, há o entendimento de que o sistema penal e o poder punitivo são,


na verdade, impeditivos para se alcançar uma justa reparação das vítimas, além de serem
responsáveis pelo processo de vitimização secundária, emergindo a necessidade de elaboração
de um novo modelo de pacificação de conflitos.
De toda sorte, a importância da vitimologia foi ter dado o necessário destaque à
situação da vítima, em especial aos processos de revitimização que sofrem no âmbito do
sistema de justiça penal, cujas necessidades são deixadas à parte ao ignorar que “muitas
vezes, querem apenas que o dano seja ressarcido, que o ofensor lhe dê explicações para que
possa compreender o ocorrido, ou, ainda, que receba um pedido de desculpas”
(PALLAMOLLA 2014, p. 52).
Contudo, é necessário frisar que não há uma equivalência entre a vitimologia e a
justiça restaurativa. Isso porque esta não tem como proposição a centralização da figura da
vítima, mas a atenção às necessidades de todas as partes envolvidas, incluindo a comunidade.
Mas não é só. Há autores que mencionam, ainda, outras influências do período da
década de sessenta e setenta que também podem ser concebidas como precursoras da justiça
restaurativa. Trata-se de movimentos sociais que partilhavam a crítica ao sistema prisional e à
violação de direitos que promoviam. São eles: i) movimentos pelos direitos civis, cuja pauta
era a denúncia da discriminação racial atrelada à redução do encarceramento, especialmente
44
em razão do racismo por trás desse fenômeno; ii) movimentos feministas que denunciavam o
sexismo e a vitimização secundária acima discutida; iii) movimentos indígenas; e iv)
iniciativas e experiências na década de 70 que representam precedentes às práticas
restaurativas que irão se desenvolver nas décadas seguintes, tais como a resolução de
conflitos, a mediação vítima-ofensor, programas de reconciliação, conferências de grupos
familiares, círculos de sentenças, dentre outras (CNJ, 2018, p. 56)38.
Em resumo, é possível dizer que o que marca o estabelecimento da justiça restaurativa
enquanto campo teórico e prático é a combinação dos processos de contestação das
instituições repressivas, a descoberta da vítima e a exaltação da comunidade (JACCOUD,
2005, p. 164).

2.2 TENTANDO TRAÇAR CONTORNOS CONCEITUAIS


O resgate histórico acima é trazido pelos defensores da justiça restaurativa com o
objetivo de demonstrar que o atual modelo de justiça criminal e as etiquetas “crime”, “vítima”
e “réu” não correspondem à única lente capaz de lidar com os conflitos entre os indivíduos.
São, na realidade, resultado de um processo histórico orientado por escolhas políticas
determinadas (ACHUTTI, 2016, p.54). E, ao contrário do que vulgarmente se pode pensar, há
toda uma multiplicidade de possibilidades para o tratamento do fenômeno criminal que
podem variar de acordo com o tempo, o local e a comunidade em análise com focos e
abordagens distintas, abrangendo, inclusive o próprio conceito daquilo que se denomina
crime.
Mas o que se compreende por justiça restaurativa? Essa é uma pergunta que os
teóricos restaurativistas enfrentam dificuldades para responder diante de toda multiplicidade
de possibilidades e caminhos que esse conceito abarca e pode vir a abarcar. Isso porque
estamos diante de uma concepção de modelo não enrijecido, em constante construção, que
deve ser sensível às particularidades de cada conjuntura na qual se insere. Por isso a

38
Registra-se que a primeira experiência restaurativa no Ocidente ocorreu na cidade canadense de Kitchener,
Ontario, em 1974, por meio de um programa de reconciliação entre vítima e ofensor (ZEHR, 2018, p. 161). Na
época, dois adolescentes foram acusados de praticar atos de vandalismo e o oficial responsável por administrar o
sistema de liberdade condicional sugeriu que eles se encontrassem com as vítimas. Depois de alguns encontros, o
juiz da causa ordenou que ambos restituíssem as vítimas como condição para obter condicional ao invés da pena
privativa de liberdade. Em razão da boa receptividade dos encontros entre vítimas e ofensores, o projeto foi
implementado na cidade, recebendo o nome de VOM (Victim Offender Reconciliation). Atualmente, representa
uma das formas em que a prática restaurativa é implementada, apesar da nomenclatura “reconciliação” ter sido
afastada por ser dúbia e causar o afastamento das pessoas (ZEHR, 2018, p. 162).

45
dificuldade em atender aos anseios classificatórios, típicos da dogmática, na tentativa de se
traçar uma definição exata.
Sua proposta reside na transferência de foco, em superação ao paradigma retributivo,
no qual o procedimento, adaptável às particularidades do caso concreto, busca a

“restauração das relações intersubjetivas e comunitárias afetadas pelo crime,


na solução do conflito, na reparação do drama e dos traumas, na satisfação
das partes – vítima, infrator e comunidade - as quais transforma em
protagonistas do procedimento decisório” (ANDRADE, 2012, p. 335).

Na verdade, falar em justiça restaurativa é falar sobre um universo de grande


complexidade, de fontes plurais e múltiplas compreensões. Em razão disso, para muitos, ela
pode ser considerada um movimento social “que, partindo de uma ampla agenda sócio-ética e
política, vai configurando um campo de investigação científica e metodológica voltado para a
transformação do modelo punitivo e do sistema de justiça penal” (CNJ, 2018, p. 56).
Nesse sentido, a justiça restaurativa enquanto alternativa crítica ao sistema penal, vai
buscar inspiração em práticas diferenciadas. Estas são oriundas de sociedades tradicionais em
que interesses coletivos são sobrepostos aos interesses individuais quando da violação de
determinada regra, para que seja possível a restauração da relação entre os envolvidos e de
todo o tecido comunitário (JACCOUD, 2005, p. 163). Tanto assim o é, que seu surgimento e
desenvolvimento pioneiro no Ocidente se deu, principalmente, em países com forte tradição
cultural de suas populações tradicionais, tais como a Nova Zelândia, Austrália, Canadá e
África do Sul, populações estas responsáveis por reivindicar o respeito e a implementação de
suas concepções de justiça após o processo violento de colonização que vivenciaram
(JACCOUD, 2005, p. 164; SICA, 2007, p. 22)39.
Quando a violação à lei deixa de ser o epicentro da gestão dos conflitos, dando lugar à
análise das necessidades das partes envolvidas, sejam as de quem sofreu o dano, as de quem o
praticou ou as de quem fora por ele eventualmente afetadas, põe-se em questionamento o “elo
multissecular entre a reação ao crime a à pena” (GARAPON, 2001, p. 254), porque pena não
implica em reparação. Pelo contrário, o cerceamento da liberdade, bem como o de outros
direitos do ofensor, muitas vezes representa um impeditivo para a realização de uma
reparação que atenda às expectativas da parte lesada.

39
Em sentido contrário, o Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária da PUC-SP), em verbete sobre a justiça
restaurativa, alega que a inserção da justiça restaurativa no direito contemporâneo expressa a “captura histórica
da experimentação abolicionista entre os Maori” para apaziguar a insurgência destes contra as políticas criminais
voltadas para suas crianças e adolescentes. Disponível em: http://www.nu-sol.org/abolicionismo-libertario-
verbetes/ Acesso em 10 de dezembro de 2018.

46
É nesse sentido que Antoine Garapon (2001, p. 269) vai afirmar que o ponto central
desse modelo de justiça é o evento do encontro entre as partes, a fim de que se possa
reequilibrar a relação rompida pelo evento danoso. Dessa forma, a justiça passa a ser
elaborada a partir do reconhecimento de que um dano foi causado e de quais formas é
possível realizar a reparação dessa relação violada.

“Um encontro transborda sempre sobre si mesmo: e tão imprevisível para a


vítima quando, em certa medida, o é para o autor. A injustiça nasce aí, nesse
mal-entendido da vida, nesta diferença entre a ação desejada e o drama
calhado em sorte, entre duas versões do vivido que não podem conciliar-se.
A justiça saberá encontrar equivalências satisfatórias para saldar esta conta
que o acaso estabeleceu? (...)
A percepção do mal na qual se apoia a justiça reconstrutiva40 é indissociável
da violação de uma relação. O único mal que lhe interesse é o que está
inscrito na relação. A indignação que sentimos perante um crime nasce do
sentimento de violação de uma relação particular (entre pai e filho, homem e
mulher, homem público e administrado) que se revela não apenas moral,
mas igualmente política” (GARAPON, 2001, p. 269-270).

O que a justiça restaurativa pretende, então, é a possibilidade de, num processo de


escuta e fala, tornar possível a criação de um ambiente em que as discussões travadas sejam
capazes não só de permitir a resolução das situações problemáticas (HULSMAN, 1997, p.
96), como também o entendimento dos fenômenos que as rodeiam. É desse encontro entre os
indivíduos que se vislumbra o surgimento da justiça, onde há alguém que, na medida da sua
compreensão e possibilidades, presta contas de seu comportamento, enquanto há outro que
reclama sua reparação.
Nesse sentido, os teóricos restaurativistas, apesar de apresentarem diferentes
concepções e definições, tendem a partilhar a ideia de que o tripé fundamental da justiça
restaurativa consiste no encontro, na reparação e na transformação (CNJ, 2018, p. 59).
Todavia, não se pode ignorar que a maior parte dos conflitos existentes é fruto do
contexto social, político, cultural e econômico no qual estão inseridos e que não serão
superados por meio do encontro entre indivíduos específicos. Muitas vezes determinadas
condutas só são percebidas como conflitivas justamente em razão desse contexto.

40
A tradução portuguesa feita pelo Instituto Piaget traduziu o termo em francês “justice reconstructive” para
justiça reconstrutiva. Antoine Garapon, ao se valer da expressão justiça reconstrutiva, o faz com o intuito de
afastar o anglicismo “restorative justice”. Segundo ele, a ideia de reconstrução é mais apropriada pois ao mesmo
tempo que identifica a existência de uma relação destruída, revela o atuar positivo do espírito construtivo.
(GARAPON, 2001, p. 250, nota n. 1)

47
“Nenhum processo, não importa o quão inclusivo, e nenhum resultado, não
importa o quão reparador, poderão magicamente desfazer os anos de
marginalização e exclusão social experimentados por tantos infratores (ver
também Polk 2001), muito menos poderão suprir a necessidade que têm as
vítimas de ajuda e aconselhamento terapêutico no longo prazo (MORRIS,
2005, p. 449)”

Entretanto, os defensores da justiça restaurativa acreditam na potência do diálogo


proporcionado por esses encontros, tendo em vista que através de uma escuta
verdadeiramente honesta, seria possível a construção de uma justiça coletiva e a promoção de
reflexões capazes de transformar a realidade como um todo.
De toda forma, esse estímulo ao encontro está em diametral oposição ao
distanciamento experimentado no processo penal que, por conta de toda sua dinâmica, gera
um ambiente fértil para que a indiferença prevaleça, impossibilitando o alcance de qualquer
reparação que se entenda justa.

“Ao contrário das filosofias anteriores, a justiça reconstrutiva não se funda


nem exclusivamente no ato, isto é, na violação da lei como no
retributivismo, nem na pessoa do autor visando a sua educação como no
modelo reabilitivo, ou no da vítima, atribuindo-se a tarefa de facilitar o seu
luto, mas no evento do seu encontro, gerador em si mesmo de créditos e
débitos novos” (GARAPON, 2001, p. 269 - 270).

Mesmo porque a burocratização de um procedimento massificado e a especialização


dos seus agentes faz com que o desejo das partes envolvidas não seja nem mesmo
considerado. E ainda que o fosse, o fato de o poder de decisão estar concentrado nas mãos de
juízes, encastelados em seus gabinetes e provenientes, majoritariamente, de uma classe social
abastarda específica, impossibilita a existência de uma pluralidade no olhar que cada situação
exige para ser resolvida.

“Adere-se, portanto, à hipótese de que há uma relação histórica, teórica e


ideológica entre o processo de formação da sociedade brasileira (e do
próprio Poder Judiciário) e as práticas observadas na Justiça brasileira. Em
apertada síntese, pode-se apontar que em razão de uma tradição autoritária,
marcada pelo colonialismo e a escravidão, na qual o saber jurídico e os
cargos no Poder Judiciário eram utilizados para que os rebentos da classe
dominante (aristocracia) pudessem se impor perante a sociedade, sem que
existisse qualquer forma de controle democrático dessa casta, gerou-se um

48
Poder Judiciário marcado por uma ideologia patriarcal e patrimonialista
(poder-se-ia dizer até aristocrática), constituída de um conjunto de valores
que se caracteriza por definir lugares sociais e de poder, nos quais a exclusão
do outro (não só no que toca às relações homem-mulher ou étnicas) e a
confusão entre o público e o privado somam-se ao gosto pela ordem, ao
apego às formas e ao conservadorismo” (CASARA, 2014).

Howard Zehr (2018), um dos restaurativistas mais consagrados, diz ser necessário
trocarmos a lente da retribuição pela lente da restauração, ainda que esta última não
represente um paradigma plenamente desenvolvido (2018, p. 184). Muito embora elabore sua
teoria a partir da conjugação da racionalidade moderna com valores da tradição cristã
(AUGUSTO, 2012, p. 35), abrangendo noções como perdão, arrependimento e sentimento de
culpa (p. 53-59) – abordagem que se distancia da concepção conduzida nesse trabalho por
estar em oposição às premissas criminológico-críticas41 – a obra de Zehr possui relevância por
ter difundido a proposta restaurativa de alteração nas chaves de leitura do fenômeno
conflituoso.
Segundo ele, através dessa lente restaurativa, o crime não mais deveria ser definido
abstratamente a partir de uma violação trazida pela lei, que atribui a determinada conduta
tipicidade, ilicitude e culpabilidade, e sim conforme os danos concretamente causados à
pessoa e à violação do relacionamento em si. Não mais dever-se-ia considerar o Estado
enquanto vítima, mas, em seu lugar, as pessoas e os relacionamentos afetados, tomando-se
por determinantes as dimensões interpessoais dos envolvidos42. O Estado deveria, assim,
perder a qualidade de parte do processo, reservando-se esta posição à vítima e ao ofensor, de
forma que as necessidades e direitos de ambos sejam respeitados. Por fim, dever-se-ia
reconhecer a natureza conflituosa do crime assim como o contexto ético, social, econômico e
político dentro do qual está inserido43.

41
Zehr chega a afirmar, inclusive, que a experiência da justiça restaurativa seria benéfica ao ofensor permitindo
uma verdadeira responsabilidade, já que “a oportunidade de corrigir o mal e de tornar-se um cidadão produtivo
poderá aumentar sua autoestima e encorajá-lo a adotar um comportamento lícito” (ZEHR, 2018, P. 51)
42
No prefácio da última edição de seu livro, Howard Zehr problematiza as categorias vítima e ofensor que foram
utilizadas por ele nas edições anteriores. Partindo da teoria criminológica do etiquetamento, afirma que tais
categorias são rotulantes e estigmatizantes, podendo acarretar numa “profecia autorrealizável” em que as partes
introjetam esse papel e se comportam de acordo com ele. Em razão disso, passa a pensar em denominações
alternativas, tais como “a pessoa que sofreu o dano” e “a pessoa que causou o dano” (ZEHR, 2018, p. 17).
43
Quanto à escolha pela terminologia “crime”, Zehr adverte que a faz na falta de um termo alternativo mais
adequado, apesar de reconhecer sua inadequação. Para ele, o termo “conflito” pode provocar engano, além de ser
perigoso. É que há casos violentos, a exemplo da violência doméstica, que ao serem tratados dessa maneira,
podem implicar numa ausência de responsabilização e até mesmo na culpabilização da vítima. Isso porque, para
ele, a violência física se encontra num patamar acima ao do conflito. Tampouco concorda com a terminologia
trazida por Hulsman, “situação problemática”. Embora reconheça sua utilidade ao atestar que há outros danos e

49
Quando o foco se torna a responsabilização, e não mais atribuição de culpa do
indivíduo A ou B, a solução dos conflitos passa a ser pensada num contexto de rede em que se
privilegia a autonomia das pessoas envolvidas. É essa participação de todos os atores
comunitários que permite a construção em conjunto de uma resposta que atenda às
necessidades de todos.
Com efeito, a reconciliação nem sempre poderá ser alcançada. Há situações que
rompem relações de forma tão profunda que alguns encontros serão incapazes de restaurá-las.
Acreditar que o sucesso de um procedimento restaurativo está numa necessária reconciliação
é ignorar que nem todos que estão dispostos a participar dele visam esse resultado. Muitas
vezes só a possibilidade de serem ouvidos em um ambiente seguro é o suficiente para que
sintam reconhecidos. Em respeito à espontaneidade das emoções humanas, a reconciliação
não pode ser um fardo, mesmo porque ao entender que cada processo é único e específico,
atrelar seu êxito a um único desfecho possível seria uma contradição em seus próprios termos.
De toda sorte, crê-se importante que a oportunidade para tanto seja ao menos proporcionada.

2.3 NORMATIVA RESTAURATIVA

Por ser essencialmente um modelo de solução de conflitos que privilegia o indivíduo,


devolvendo o poder que lhe fora tomado pelo poder punitivo estatal e centralizador, John
Braithwaite (2002) alerta sobre a necessidade de se estabelecer standards – valores – para que
se proteja os direitos humanos dos envolvidos no processo restaurativo. Trata-se de direitos
conquistados a partir de lutas democráticas e que não podem ser ignorados na via restaurativa.
Muito embora num primeiro momento possa parecer uma incongruência, já que cabe ao poder
estatal a proteção do direitos humanos, o autor destaca que estes são vitais não só para regular
tiranias da polícia, da tortura e violências estatais, como também a tirania de justiças
informais44.

conflitos para além do tipificado enquanto crime, permitindo uma maior possibilidade de aprendizado dessas
situações, afirma que o termo trazido pelo norueguês pode soar vago e, no caso de violações mais graves,
parecer minimizar as dimensões do caso concreto.
44
É o caso, por exemplo, das shame sanctions, que com o objetivo de atingir a reputação de ofensores,
promovem humilhação e degradação moral como forma de punição diferente do encarceramento.

50
Pensando nesses valores, ele estabelece três categorias diferentes e as divide da
seguinte forma: valores impositivos (constraining standards), valores orientadores do
procedimento (maximizing values) e valores emergentes (emergent standards)45.
A primeira categoria se refere a valores que obrigatoriamente devem ser
implementados nos procedimentos restaurativos por especificarem direitos e limites a serem
respeitados. Vejamos:
a) princípio da não-dominação: trata-se do valor fundamental da justiça restaurativa.
Todas as partes envolvidas no processo têm direito à voz, e a desigualdade de poder,
reconhecidamente um fenômeno estrutural, deve ser minimizada ao se estruturar um
procedimento restaurativo (BRAITHWAITE, 2002, p. 565-566).
b) empoderamento: não só dos ofensores, como das vítimas e das comunidades
afetadas, que deve ser dar de forma igual para todas as partes envolvidas. Esse valor,
diretamente relacionado ao primeiro, é implementado a partir da escuta respeitosa em que se
deve afastar qualquer forma desrespeitosa, humilhante ou degradante de reagir ou punir. A
todos os participantes deve ser garantido o direito de contar suas próprias histórias da maneira
como lhe for conveniente, assim como informar como gostaria de ser reparada
(BRAITHWAITE, 2002, p. 567 e 569).
c) respeito aos limites: impossibilidade de se impor qualquer punição que extrapole o
máximo previsto pela lei para aquele tipo específico de ofensa (BRAITHWAITE, 2002, p.
567).
d) escuta respeitosa: todas as partes envolvidas possuem o direito de serem ouvidas em
suas manifestações (BRAITHWAITE, 2002, p. 567).
e) igualdade de preocupação com todos os participantes: diretamente ligado ao
princípio da não-dominação, em que todos são ouvidos de forma igualitária
(BRAITHWAITE, 2002, p. 567).
f) direito de recorrer a um tribunal: todas as partes possuem o direito de recorrer a um
tribunal caso não se sintam atendidas pelo procedimento restaurativo, inclusive o ofensor que
discorde de uma sanção imposta (BRAITHWAITE, 2002, p. 567).
g) respeito aos direitos humanos previsto na Declaração Universal dos Direitos
Humanos e outros instrumentos de defesa desses direitos fundamentais (BRAITHWAITE,
2002, p. 569).

45
O texto em que John Braithwaite propõe standards e os divide em categorias não possui tradução para o
português. As terminologias em português adotadas aqui foram retiradas da obra de Daniel Achutti (2016, p. 72-
74).

51
Na outra categoria trazida por Braithwaite, estão os valores que irão orientar o
procedimento e direcionar aos possíveis objetivos a serem alcançados a depender das
características do conflito em questão e da vontade das partes. Ou seja, cada situação
problemática apresenta características próprias e não necessariamente visarão o mesmo
objetivo. Aqui ele enumera alguns, reconhecendo a incompletude dessa lista: restauração da
dignidade humana, da perda patrimonial, da segurança/saúde, das relações humanas violadas,
das comunidades, do meio-ambiente, restauração emocional, restauração da liberdade, da
compaixão, da paz, do senso de dever enquanto cidadão, e prevenção de futuras injustiças
(BRAITHWAITE, 2002, p. 569).
Por fim, estão os valores por ele considerados emergentes, que não são obrigatórios e
tampouco podem ser exigidos ou até mesmo esperados para que se considere um
procedimento restaurativo vitorioso. Ele menciona o pedido de desculpas, o pedido de perdão,
o arrependimento.
Entretanto, o autor expõe um preocupação com esses standards, uma vez que sua
taxatividade poderia inibir a inovação da justiça restaurativa, ainda em processo de formação.
Para ele, por se tratar de um movimento ainda incipiente, não aprendemos o suficiente sobre o
que acontece com os processos restaurativos para estarmos prontos para prescrições
regulatórias específicas. Dessa forma, o debate sobre standards embora necessário, deve se
dar de forma cautelosa.
Com efeito, nesse cenário de expansão da implementação da justiça restaurativa ao
redor do mundo, verifica-se uma tentativa de fixar determinados parâmetros para sua
aplicação tanto em documentos internacionais quanto nacionais. O de maior destaque é a
Resolução n. 2002/1246 da Organização das Nações Unidas (ONU), emitida pelo Conselho
Social e Econômico e que traz princípios básicos - não exaustivos - sobre o uso e aplicação da
justiça restaurativa em matéria criminal. Além de todas as diretrizes contidas neste
documento, o seu artigo 2347 é expresso em afirmar que a implementação do processo
restaurativo e seus princípios não pode afetar, de forma alguma, quaisquer direitos, seja do
ofensor ou da vítima, que estejam previstos em tratados internacionais.
Um outro ponto que merece destaque nesse documento é a apresentação de
terminologias de caráter informativo que podem ajudar a melhor compreender o que vem se

46
Disponível em <http://www.un.org/en/ecosoc/docs/2002/resolution%202002-12.pdf> Acesso em: 01/10/2018.
47
V. Saving clause
23. Nothing in these basic principles shall affect any rights of an offender or a victim which are established in
national law or applicable international law.

52
entendendo por justiça restaurativa. Assim, logo nos cinco primeiros parágrafos, depreende-se
que o processo restaurativo consiste na participação ativa de vítima, ofensor e qualquer
membro da comunidade na resolução das questões advindas de um crime, com a ajuda de um
facilitador, justo e imparcial, que auxiliará a participação das partes.
Traz como exemplos, em rol não taxativo, a mediação, a conciliação, a reunião
familiar ou comunitária e os círculos decisórios. E prevê, ainda, que o resultado restaurativo
consiste no acordo construído, que pode variar entre reparação, restituição e serviço
comunitário, conforme as necessidades das partes envolvidas, e na promoção da reintegração
entre vítima e ofensor.
Por fim, merece destaque a previsão do parágrafo 6o que permite o uso da justiça
restaurativa em qualquer estágio do sistema de justiça criminal. Reside aqui uma controvérsia
relevante, pois, como se verá adiante, muito se discute sobre qual o papel desse modelo
alternativo no contexto do sistema tradicional. A depender da referência teórica da justiça
restaurativa, as propostas serão distintas seja no sentido da integração ao modelo vigente, ou
em sua separação.
Em relação à produção brasileira, há documentos importantes que apresentam
diretrizes para a aplicação da justiça restaurativa. Nesse trabalho, nosso destaque será dado à
Carta de Araçatuba48 e às Resoluções 125/2010 e 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça.
A Carta de Araçatuba possui relevância por ter sido o primeiro documento nacional a
apresentar princípios de justiça restaurativa, produzido em abril de 2005, durante o I Simpósio
Brasileiro de Justiça Restaurativa. Dentre eles, destacamos a primazia da autonomia e
voluntariedade para participação de qualquer fase das práticas; a atenção à pessoa que sofreu
o dano levando em consideração às possibilidades de quem o causou; atenção às diferenças
socioeconômicas e culturais entre os participantes assim como às peculiaridades
socioculturais locais e ao pluralismo cultural; observância do princípio da legalidade quanto
ao direito material; sigilo e confidencialidade de todas as informações referentes ao processo
restaurativo; e a integração com o Sistema de Justiça, eis que o debate realizado no simpósio
assentou a imprescindibilidade, pelo menos por enquanto, do modelo institucional de justiça,
sobretudo das garantias penais e processuais asseguradas constitucionalmente.
No âmbito do Poder Judiciário, o primeiro documento que acenou para o uso de
práticas restaurativas foi a Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça que instituiu

48
Disponível em: www.comitepaz.org.br/com_aracatuba/CARTA%20DE%20ARAÇATUBA.doc Acesso em
09/11/2018.

53
a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesse. Reconheceu-
se a relevância e a necessidade de organização e uniformização de métodos consensuais de
solução de conflitos, em especial a conciliação e a mediação, para a pacificação social. E
dando implementação a essa resolução, diversos tribunais de justiça por todo o país criaram
Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (NUPEMEC) e
Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs), em que foram
desenvolvidos alguns programas de justiça restaurativa (CNJ, 2018, p. 89).
Foi então, em 2016, que um grupo de trabalho formado por juízes de todo o país com
experiência em práticas restaurativas elaborou a minuta da Resolução 225, do CNJ - na
sequência publicada -, o principal documento normativo a respeito de justiça restaurativa no
Brasil. Nesse documento, foi instituída a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito
do Poder Judiciário, com o objetivo de buscar a uniformidade de seu conceito para evitar
disparidades e garantir uma melhor aplicação, respeitando as particularidades de cada região.
O respaldo legal trazido pela resolução para permitir a utilização de tais práticas foram
as Leis 9.099/95 (Juizados Especiais Criminais) e 12.594/2012 (SINASE – regulamentação da
execução de medidas socioeducativas destinadas aos adolescentes) que já possuíam algum
conteúdo despenalizador.
Da leitura do seu art. 1o, percebe-se que o CNJ adota um conceito aberto de justiça
restaurativa ao afirmar que esta consiste num “conjunto ordenado e sistêmico de princípios,
métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores
relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os
conflitos que geram dano, concreto ou abstrato são solucionados de modo estruturado.”49
Além disso define a necessidade de participação do ofensor, da vítima (caso haja) e seus
familiares, assim como representantes da comunidade direta ou indiretamente afetada, com a
presença de ao menos um facilitador restaurativo, capacitado para tanto, e não
necessariamente dos quadros do poder judiciário.
O art. 2o, por sua vez, traz os princípios que devem orientar esses procedimentos,
sendo eles: “a corresponsabilidade, a reparação dos danos, o atendimento às necessidades de
todos os envolvidos, a informalidade, a voluntariedade, a imparcialidade, a participação, o
empoderamento, a consensualidade, a confidencialidade, a celeridade e a urbanidade.” E,
diferentemente da resolução da ONU e da Carta de Araçatuba, prevê a possibilidade de sua

49
Disponível em http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3127. Acesso em 12/11/2018.

54
utilização tanto de forma alternativa como concorrente ao procedimento convencional (art. 1o,
p. 2o).
O procedimento no âmbito do poder judiciário encontra sua previsão nos art. 7o ao 12.
De sua leitura, extrai-se que o encaminhamento para o atendimento restaurativo judicial pode
ser realizado por qualquer ator do sistema de justiça e em qualquer fase do procedimento
tradicional (pré, durante e pós) em que haverá a participação da Rede de Garantia de Direito
local, quando envolver crianças e adolescentes.
E, em respeito aos direitos e garantias fundamentais dos envolvidos, caso não haja
sucesso na empreitada restaurativa, é vedado que o que tenha se passado no procedimento
seja utilizado como majorante de pena ou até mesmo como prova (art. 8o, p. 5o). Trata-se de
uma previsão essencial sem a qual qualquer procedimento restaurativo se tornaria inócuo,
uma vez que o que viabiliza sua existência é a confiança na confidencialidade.
Por fim, dentre os marcos normativos que visam estabelecer alguns parâmetros de
aplicação de justiça restaurativa, há de se destacar o projeto de lei 7.006/200650 em trâmite no
Congresso Nacional. Com propostas de alteração do Código Penal, do Código de Processo
Penal e da lei dos Juizados Especiais, seu objetivo principal é regularizar a implementação da
justiça restaurativa no sistema de justiça criminal em casos de prática de crimes e
contravenções penais.
Como bem adverte Rafaella Pallamolla (2009, p. 177-178), apesar de sedutora a ideia
de instituirmos novas práticas no nosso modelo de justiça para enfrentarmos toda a carga
negativa que ele carrega, é preciso agir com precaução. Não se ignora que uma tentativa de
normatização pode impulsionar sua implementação e, por isso, pode ser bem-vinda.
Entretanto, para que seu potencial não seja tolhido, discussões, teorias e práticas necessitam
amplo debate nacional justamente em razão de toda a informalidade, flexibilidade e
pluralidade que os procedimentos restaurativos podem apresentar.
Como resultado dessa ausência de amplo debate, diz a autora que já podemos perceber
um problema logo no primeiro artigo do projeto. De acordo com o dispositivo, o uso dos
procedimentos restaurativos é facultativo e complementar ao sistema tradicional. A
problemática reside no fato de que, ao propor um uso facultativo sem especificar quais crimes
e contravenções estarão abarcados, corre-se o risco de este só ser usado para infrações
percebidas como menos ofensivas (PALLAMOLLA, 2009, p. 179).

50
Disponível em
https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=397016&f Acesso em 13/11/2018.

55
Helena Morgado (2019, p. 201), discordando de Rafaella, acredita que a não
delimitação das infrações é um ponto positivo eis que permitiria o encaminhamento de
qualquer situação. Todavia, compreendendo como o sistema de justiça tradicional costuma
operar, diante da resistência em aplicar práticas não punitivas, crê-se, na mesma linha de
Pallamolla, que a ausência de uma delimitação taxativa poderia implicar no seu uso apenas
em casos menos graves.
Outra crítica trazida pela autora é a disposição contida no art. 6o51 do projeto, que não
prevê a capacitação de facilitadores provenientes das comunidades, mas apenas de
profissionais interdisciplinares – preferencialmente psicólogos e assistentes sociais – se
afastando da proposta precípua de participação comunitária na pacificação dos conflitos
(2009, p. 182). Sem contar na impossibilidade do pedido de encaminhamento realizado pelas
próprias partes envolvidas (apenas os atores do sistema de justiça), que também desrespeita a
concepção basilar de protagonismo da proposta restaurativa num incentivo à sua
burocratização (MORGADO, 2018, p. 203).
Por fim, outra crítica a ser feita ao projeto por ferir valores restaurativos elementares é
quanto à previsão do art. 16, que introduz o seguinte texto ao Código de Processo Penal:
Art. 556 - Nos casos em que a personalidade e os antecedentes do agente,
bem como as circunstâncias e consequências do crime ou da contravenção
penal, recomendarem o uso de práticas restaurativas, poderá́ o juiz, com a
anuência do Ministério Publico, encaminhar os autos a núcleos de justiça
restaurativa, para propiciar às partes a faculdade de optarem,
voluntariamente, pelo procedimento restaurativo.

A insistência em se valer das regras do paradigma retributivo (que atualmente se


encontram no art. 59 do Código Penal) esvazia totalmente a proposta restaurativa.
Personalidade do agente, antecedentes, circunstâncias e consequências do delito não devem
representar a régua para o estabelecimento de nenhum procedimento restaurativo. Se no
próprio contexto do sistema de justiça tradicional o art. 59, do CP já é amplamente criticado
pelos estudos da criminologia crítica, em razão do seu notório caráter positivista, não há

51
Art. 6° - O núcleo de justiça restaurativa será composto por uma coordenação administrativa, uma
coordenação técnica interdisciplinar e uma equipe de facilitadores, que deverão atuar de forma cooperativa e
integrada.
§ 1o. À coordenação administrativa compete o gerenciamento do núcleo, apoiando as atividades da coordenação
técnica interdisciplinar.
§ 2o. - À coordenação técnica interdisciplinar, que será integrada por profissionais da área de psicologia e
serviço social, compete promover a seleção, a capacitação e a avaliação dos facilitadores, bem como a
supervisão dos procedimentos restaurativos.
§ 3o – Aos facilitadores, preferencialmente profissionais das áreas de psicologia e serviço social, especialmente
capacitados para essa função, cumpre preparar e conduzir o procedimento restaurativo.

56
porque essa disposição se repetir numa prática que visa, justamente, romper com esses laços
autoritários.
Ao contrário, como visto, o que deveria de fato importar é a vontade das partes
envolvidas, desde que haja a verificação de um suporte probatório mínimo e o
reconhecimento do fato pelo ofensor (PALLAMOLLA, 2009, p. 187). Mas o que se verifica é
ainda um total protagonismo dos atores do sistema de justiça criminal, em especial o dos
magistrados, permitindo que permaneçam avocando para si amplos poderes decisórios.
De qualquer forma, cumpre ressaltar que o projeto de lei em questão, nesses doze anos
de trâmite, encontra-se, neste momento, apensado ao PL 8.045/10 que propõe a reforma do
Código de Processo Penal.

2.4 JUSTIÇA RESTAURATIVA E A SUA IMPLEMENTAÇÃO: ALGUMAS


EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS E NACIONAIS
A justiça restaurativa vem sendo colocada em prática ao redor do mundo através de
diferentes projetos e formatos, podendo abranger conflitos envolvendo adolescentes e adultos,
sejam tipificados como infrações ou não.
Apesar de a doutrina elencar diversas práticas restaurativas com suas respectivas
características, vem se constatando uma tendência de desaparecimento dessas diferenças. Por
estarmos diante de uma proposta de justiça adaptável ao caso concreto e às necessidades das
partes envolvidas, os programas têm se valido das ferramentas de diferentes práticas, se
aproximando de uma visão multimetodológica. Mesmo porque a essência que conecta todos
esses procedimentos é o estabelecimento do diálogo, mais importante que o resultado em si
(PALLAMOLLA, 2009, p. 106).
Dentre as práticas restaurativas, há alguns modelos mais frequentes, apesar da
variedade que podem apresentar. Destaca-se aqui as conferências restaurativas, em que
integrantes da comunidade participam junto com a vítima e o ofensor; os círculos de cura,
atrelados às experiências indígenas norte-americanas que também pressupõem a participação
da comunidade em intenso processo deliberativo; e os comitês de paz, que visam pacificar
disputas e construir a paz na resolução de problemas mais amplos e estruturais (ACHUTTI,
2016, p. 79-82).
Outras duas práticas bastante conhecidas no âmbito da justiça restaurativa são a
mediação entre vítima e ofensor (victim-offender mediation) e os círculos restaurativos, que
receberão um maior destaque neste trabalho pela relevância e difusão que possuem.

57
A mediação entre vítima e ofensor, como anteriormente mencionado, foi o primeiro
programa de justiça restaurativa a ser implementado a partir da experiência ocorrida no
Canadá, na década de 70, e logo se espalhou pelo restante do mundo. Talvez por isso a
associação entre ambos seja comumente realizada, como se tratassem de sinônimos.
Entretanto, são conceitos distintos que não se confundem.
Alguns autores vão afirmar que por determinado aspecto a justiça restaurativa é mais
restrita que a mediação, uma vez que aquela tem aplicação circunscrita à esfera criminal ao
contrário desta, aplicável nos diversos ramos do direito. Todavia, essa diferença vem fazendo
cada vez menos sentido, pois com a expansão das ideias da justiça restaurativa, sua utilização
vem sendo estendida para outros campos além do criminal. No âmbito do Estado do Rio de
Janeiro, por exemplo, o Ministério Público, em parceria com o ISA (Instituto de Soluções
Avançadas), publicaram uma cartilha de aplicação da justiça restaurativa no ambiente
escolar52, em reconhecimento dos valores restaurativos como instrumentos para a pacificação
de conflitos.
Por outro lado, a justiça restaurativa é mais ampla que a mediação. Isso porque ela
compreende diversas outras práticas, como as mencionadas acima, sendo esta apenas uma
delas.
Apesar de ser possível assumir contornos variados, já que a mediação como prática
restaurativa é adaptável ao caso concreto, ela tem por essência a aproximação de indivíduos
por meio do encontro entre aquele que se sentiu lesado e aquele que causou o dano, facilitado
por um mediador, com o objetivo de alcançar uma reparação. Antes que estejam frente à
frente, ambos passam por conferências separadas com o mediador que explicará o
procedimento e averiguará a viabilidade do encontro. Durante a mediação, o mediador
comunica ao ofensor os impactos e expectativas da vítima para que ele possa, caso queira,
assumir sua responsabilidade e também apresentar suas razões e expectativas. Ao fim, há uma
tentativa de se alcançar uma forma de reparar a vítima (PALLAMOLLA, 2009, p. 109).
Também pode se dar de maneira indireta quando as partes não se encontram frente à
frente, mas por meio de encontros separados com o mediador que transmitirá os desejos e
expectativas de um para o outro. Todavia, não se trata de uma prática ideal já que o encontro e
o diálogo possuem papel importante para a melhor compreensão dos fatos e das demandas dos
envolvidos.

52
Disponível em
https://www.mprj.mp.br/documents/20184/216116/Cartilha_A_Justica_Restaurativa_no_Ambiente_Escolar.pdf
Acesso em 22/11/2018.

58
Na realidade, muito embora diversos autores e documentos – tanto internacionais
como nacionais – listem a mediação como uma prática restaurativa, essa classificação pode
ser problematizada. Como vem sendo ressaltado, a ideia estruturante da justiça restaurativa é
justamente devolver às pessoas a gestão dos seus conflitos para que possam, em conjunto,
elaborar a solução que melhor lhes aprouverem. No entanto, o que muitas vezes se percebe na
mediação inserida no contexto do sistema de justiça criminal, é um protagonismo da figura do
mediador que direciona a prática, com o intuito de alcançar um acordo. É certo que a prática
pode assumir diferentes contornos onde essa característica estará em maior ou menor
evidência, mas há preceitos básicos que constituem o modelo restaurativo e sua violação
implica em sua descaracterização.
Por ser uma realidade em outros ramos do direito, a mediação acaba por carregar
consigo a ideia de que para ser bem sucedida é preciso alcançar alguma espécie de acordo.
Ocorre que um acordo não necessariamente possui capacidade restaurativa, podendo implicar
apenas numa suspensão do conflito. Esse aspecto se distancia da proposta restaurativa dado
que o objetivo desta não é resolver conflitos, mas propiciar um ambiente onde se analisará
possibilidades de resolução.
Leonardo Sica (2007, p. 51) atento a essa questão, adverte sobre o mau uso da
mediação no contexto do sistema de justiça.
“A possibilidade de a mediação representar um elemento importante para a
superação do paradigma punitivo e, mais do que isso, a via de construção de
um novo modelo de justiça penal, recomenda um enfoque diferenciado,
distinto e distante dos projetos de reforma da justiça que se fixam nas ideias
de descongestionar o judiciário, como se o único problema fosse o excesso
de trabalho, ou de instituir mecanismos premiais de evasão ao processo,
também com a única finalidade de ‘esvaziar prateleiras’”.

A questão é que nem tudo que se autoproclama justiça restaurativa é efetivamente


justiça restaurativa. A dificuldade reside no fato de ser um procedimento não só recente, como
ainda em construção, sem regras enrijecidas, permitindo que práticas sejam implementadas
com essa definição apesar de não respeitarem seus valores estruturantes.
Seguindo, outra modalidade restaurativa são os círculos restaurativos, inicialmente
aplicados no âmbito do sistema de justiça criminal por juízes do Canadá e dos Estados Unidos
na década de noventa e que hoje encontram-se em expansão. Conforme Kay Pranis (2012, p.
15), os processos circulares são práticas tradicionais cuja origem remonta aos povos indígenas
da América do Norte. Por proporcionar a congregação de pessoas, a autora destaca sua
permanência até hoje em diversas culturas, inclusive em simples ações cotidianas, como o se

59
sentar à mesa de jantar com a família. Atualmente, essa metodologia tradicional vem sendo
adaptada e à ela agregada princípios e valores contemporâneos.
Enquanto modelo de pacificação de conflitos, são utilizados para qualquer espécie,
independentemente de sua gravidade, envolvendo jovens ou adultos, no sistema de justiça, ou
fora dele, como por exemplo em escolas, no ambiente de trabalho, em uma associação de
bairro, etc.
Sua especificidade é a possibilidade de participação não só dos indivíduos inseridos no
contexto conflituoso, como seus familiares e pessoas próximas, denominadas apoiadores,
além de qualquer pessoa da comunidade que eventualmente tenha sido afetada, contando
sempre com a presença do facilitador. O formato circular visa marcar a posição de igualdade e
horizontalidade entre os integrantes para permitir uma melhor conexão entre eles, respeitando
as diferenças existentes. Nesse ambiente, estabelece-se um ritual respeitoso de fala e escuta
marcado pela presença do bastão de fala, em que só é possível se manifestar quando em posse
deste, para que todos se sintam seguros em se expressar sem que sejam interrompidos. Ao
final, caso os envolvidos alcancem um consenso resolutivo, estabelecerão juntos os termos da
decisão.
Como se vê, as experiências restaurativas podem se dar de formas variadas, numa
pluralidade de contextos. Mas especialmente nos casos de prática de crime ou ato infracional,
há diversas experiências internacionais e nacionais de programas atrelados ao sistema de
justiça criminal tradicional.
Tais programas apresentam previsões de procedimentos restaurativos que podem se
dar em cinco fases: i) durante a fase policial, na pré-acusação; ii) ainda na pré-acusação, com
encaminhamento feito pelo juiz ou pelo membro do Ministério Público após o recebimento da
notitia criminis; iii) após oferecimento da denúncia pelo órgão acusador; iv) antes do
julgamento ou quando da sentença; e v) na fase de execução penal tanto como alternativa à
pena, quanto concomitante ao cumprimento dela (PALLAMOLLA, 2009, p. 99-100).
Em relação ao momento em que o procedimento restaurativo será instaurado, algumas
críticas são realizadas. No caso do encaminhamento realizado na fase pré-acusatória, pela
autoridade policial, há um forte receio de que essa discricionariedade na seleção dos casos
confira a ela poder exacerbado, gerando ainda mais controle social, especialmente nos países
em que a polícia possui uma atuação de caráter repressivo, como é o caso brasileiro.
Na Nova Zelândia, por exemplo, o modelo de justiça juvenil desenvolvido tende a
minimizar essa discricionariedade. Em razão da preocupação com as diferenças culturais
enfrentadas pela comunidade Maori, promulgou-se, no fim da década de 80, uma legislação

60
protetiva voltada para os jovens que haviam praticado atos infracionais. Dez anos depois, uma
nova legislação, mitigando o paradigma da retribuição, estabeleceu que sempre que a
autoridade policial se deparasse com algum adolescente cometendo ato infracional, seja ele
Maori ou não, deveria inicialmente avaliar a hipótese de aplicação de advertência ou
encaminhá-lo para um procedimento restaurativo, no caso, a reunião de grupo familiar.
Nesta oportunidade, devem estar presentes os familiares do adolescente, membros da
família estendida, a vítima e seus familiares, um representante da polícia e o facilitador,
podendo haver, caso haja indicação, a participação de um advogado de jovens designado pelo
tribunal e assistentes sociais. A finalidade é envolver o jovem e seus familiares na reparação
do dano e sua responsabilização, e promover uma participação conjunta da tomada de decisão
(MAXWELL, 2005, p. 279-283).
Outra crítica relevante ao momento em que se implementa a justiça restaurativa diz
respeito ao seu encaminhamento simultaneamente ao cumprimento de pena na fase de
execução. Para muitos autores, há uma incongruência em aplicar dois modelos tão distintos
com propósitos e racionalidades diametralmente opostos ao mesmo tempo. Como restaurar
uma relação rompida quando o ofensor sofre em seu corpo e mente os efeitos de uma pena em
consequência do mesmo evento? Não só há que se falar em bis in idem como em
revitimização da própria pessoa que sofreu o dano (PALLAMOLLA, 2009, p. 102; SICA,
2007, p. 30).
No Brasil, as primeiras experiências restaurativas no âmbito do sistema de justiça
criminal se iniciaram em 2005, em três cidades diferentes: Porto Alegre, São Caetano do Sul e
Brasília. Enquanto em Brasília, o programa se estabeleceu junto ao Juizado Especial
Criminal, nas outras duas comarcas, se desenvolveu no âmbito da justiça juvenil. Apesar de
terem se instituído quase concomitantemente, foram programas bem distintos entre si.
Em Porto Alegre, surgiu numa articulação da Associação dos Juízes do Rio Grande do
Sul no “Projeto Justiça para o Século 21”. Devido à sua inovação, foi um projeto que
influenciou o surgimento de vários outros e segue sendo uma referência nacional no tema,
agora abrangendo novas competências, como a execução penal, os juizados especiais
criminais e a violência doméstica e familiar contra a mulher.
A implementação da justiça restaurativa, que lá se deu por meio dos círculos
restaurativos, ocorria tanto na execução das medidas socioeducativas, ou seja, em
concomitância com o processo na Vara de Infância e Juventude, como de forma alternativa a
ele, em que o adolescente no momento do ingresso no sistema de justiça era encaminhado

61
para uma central de práticas restaurativas para que fosse averiguada a viabilidade de sua
aplicação em substituição da medida socioeducativa.
Já em São Caetano do Sul, o projeto se deu, inicialmente, numa Vara de Infância e o
encaminhamento para o círculo restaurativo ocorria, normalmente, na audiência de
apresentação, quando ao adolescente era aplicado uma medida de prestação de serviços à
comunidade cumulada com o acordo restaurativo (PALLAMOLLA, 2009, p. 121). Junto a
essa implementação no âmbito do poder judiciário, estabeleceu-se uma parceria com o poder
executivo para que a justiça restaurativa também alcançasse a resolução de conflitos na esfera
escolar, com a capacitação de professores, funcionários, pais e alunos de escolas públicas. Em
2006, o projeto se expandiu para abranger conflitos comunitários.
Em Brasília, o projeto se distinguia dos demais num duplo aspecto. Primeiro a justiça
restaurativa foi aplicada apenas para adultos que haviam praticado infrações de menor
potencial ofensivo e segundo pois a metodologia usada era a da mediação vítima-ofensor. Na
oportunidade, compreendia-se apenas os casos em que houvesse algum vínculo entre as
pessoas, excluídas as hipóteses de violência doméstica e uso de substância entorpecente
(PALLAMOLLA, 2009, p.122 apud RAUPP e BENEDETTI, 2007, p. 13).
Em todas as experiências iniciais, o que se percebe é que as práticas restaurativas se
deram de forma complementar ao sistema de justiça e não alternativamente a ele. Trata-se de
um aspecto significativo – e que vai marcar a posterior implementação da justiça restaurativa
no cenário atual – eis que tal complementariedade, conforme se acredita, significa um reforço
ao modelo tradicional cuja proposta crítica da justiça restaurativa de enfrentamento das bases
repressivas e punitivas visa superar.
Num segundo momento, através da edição das Resoluções 125/201053 e 225/201654,
pelo Conselho Nacional de Justiça, a implementação da justiça restaurativa no âmbito do
poder judiciário se expandiu dando origem a outros programas espalhados pelos Estados da
Federação. Em recente pesquisa contratada pelo CNJ e realizada pela Fundação José Arthur
Boiteux da Universidade Federal de Santa Catarina, com a coordenação da Prof. Doutora
Vera Regina Pereira de Andrade, foram avaliados programas de justiça restaurativa
desenvolvidos em doze cidades, espalhadas por seis Estados e no Distrito Federal55.

53
Disponível em http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=2579. Acesso em 12/11/2018.
54
Disponível em http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3127. Acesso em 12/11/2018.
55
No Rio Grande do Sul, nas cidades de Porto Alegre, Caxias do Sul e Santa Maria; em São Paulo, nas cidades
de São Paulo, Santos, Laranjal, Tatuí e Tietê; na Bahia em Salvador; em Santa Catarina, em Florianópolis; em
Minas Gerais, em Belo Horizonte; e em Pernambuco, em Recife.

62
Averigou-se que, atualmente, as condutas que majoritariamente passam pelo
procedimento da justiça restaurativa judicializada abrangem as infrações de menor potencial
ofensivo, no âmbito dos Juizados Especiais Criminais; os crimes de futebol, no Juizado do
Torcedor; os crimes de competência do Juizado de Violência Doméstica contra a Mulher,
atrelado às medidas protetivas; atos infracionais praticados por adolescentes, no Juízo da
Infância e Juventude, abrangendo, somente de forma excepcional, condutas consideradas
graves (CNJ, 2018, p. 123-4).
Quanto à metodologia realizada, há uma variedade. Enquanto alguns locais se valem
da conciliação restaurativa ou mediação, outros implementaram círculos restaurativos ou
círculos de construção da paz e, incipientemente, a constelação familiar (CNJ, 2018, p. 116-
117).
O estudo constatou que há programas restaurativos nas cinco fases processuais
anteriormente elencadas mas que, majoritariamente, juízes e promotores são os que decidem
pelo encaminhamento ou não dos casos para o procedimento restaurativo. Ademais, na maior
parte dos programas, a participação nesses procedimentos não acarreta a suspensão ou a
interrupção do procedimento tradicional, muito embora haja a previsão desses institutos no
Estatuto da Criança e do Adolescente e no SINASE e na Lei dos Juizados Especiais56 (CNJ,
2018, p. 120).
Por fim, o estudo revelou que, apesar de haver um maior entusiasmo dos ofensores em
participar dos procedimentos restaurativos, há uma baixa adesão por parte das vítimas. Muito
embora diagnosticar com exatidão as causas desse fenômeno seja difícil, as seguintes
hipóteses foram levantadas: “i) condição socioeconômica adversa para custeio das despesas
necessárias aos deslocamentos aos locais das práticas de Justiça Restaurativa.; ii)
descompasso entre a temporalidade necessária às vítimas para voluntariar-se aos
procedimentos de Justiça Restaurativa versus temporalidade necessária aos procedimentos,
não raro movidos pela celeridade; iii) insucesso, por esses motivos entre outro se pela própria
inadequação dos contatos/convites feitos pelos facilitadores para a participação das vítima nos
programas; iv) incerteza ou insegurança quanto ao conteúdo das práticas; v) reprodução de
uma cultura punitiva que não cuida das vítimas, mas pune os ofensores” (CNJ, 2018, p. 127).

2.5 ESTAMOS DE FATO DIANTE DE UMA ALTERNATIVA AO PODER


PUNITIVO?

56
Como assinalado no capítulo anterior, esses institutos nem mesmo são permitidos no âmbito da Lei Maria da
Penha (art. 41).

63
Apesar de apreciáveis propostas com alternativas que pensem a pacificação dos
conflitos a partir do enfrentamento ao modelo punitivo, a justiça restaurativa está longe de ser
um movimento de aceitação unânime. Pelo contrário, diversas são as críticas direcionadas à
sua teoria e prática. Se por um lado os retribucionistas possuem diversas objeções que partirão
de suas premissas punitivas, a proposta desse trabalho é analisar o movimento restaurativo a
partir de um viés criminológico-crítico e a essas críticas que irar-se-á ater.
Pois bem. Ser uma prática relativamente recente, de conteúdo informal e que propõe a
não existência de uma definição estanque, são características que atribuem à justiça
restaurativa uma dupla consequência.
Por determinada ótica, essa ausência de definição fechada e acabada é tomada como
uma importante qualidade, na medida em que permite uma ampla elaboração de
possibilidades que irão se adequar à resolução de casos concretos. Tem a potencialidade,
portanto, de representar um contraponto ao enrijecimento do sistema atual, cujos
procedimentos e respostas prontas inviabilizam a solução dos conflitos (ACHUTTI, 2016, p.
66).
Por outro lado, essa mesma particularidade da informalidade pode implicar no
alargamento das redes de controle penal sem que as garantias existentes nos procedimentos do
sistema de justiça sejam respeitadas, agravando ainda mais a lógica punitiva e o exercício do
poder sobre populações selecionadas, especialmente quando a proposta restaurativa inclui
uma maior participação da comunidade. Além disso, há o risco – já observado em outras
propostas que se dizem alternativas57 – de a justiça restaurativa se voltar apenas para delitos
mais leves ou até mesmo conflitos que antes não eram alcançados pelo sistema de justiça
tradicional, acarretando consequências mais gravosas aos “infratores leves” do que se não
houvessem passado pelo procedimento restaurativo (ROSENBLATT, 2014, p. 15).

“A utilização da justiça restaurativa com a pretensão de reduzir o uso do


sistema penal poderia ter um efeito perverso, na medida em que suas práticas
fossem aplicadas a situações e clientelas que de outra forma não teriam
ingressado no sistema penal. Tais casos, que normalmente receberiam
apenas uma advertência policial ou seriam redirecionadas a outros setores
que não o criminal, ao serem direcionados à justiça restaurativa, correriam o
risco de ingressar no sistema criminal nas hipóteses de não ser alcançado

57
No cenário brasileiro, foi o que se deu, por exemplo, com a promulgação da Lei dos Juizados Especiais
Criminais, em que conflitos menos graves, ou seja, de menor potencial ofensivo, antes não abarcados pelo
sistema de justiça, passaram a integrar os corredores dos fóruns, sob uma lógica eficientista que desprivilegia
garantias (MONTENEGRO, 2016, p. 68; CARVALHO, 2002, p. 156).

64
acordo no processo restaurativo ou do acordo não ser cumprido pelo
ofensor” (PALLAMOLLA, 2009, p. 139-140).

Nessa esteira, necessárias são as lições de Edson Passetti (2006, p. 84-5) ao analisar a
passagem da sociedade disciplinar para a sociedade do controle. Ensina o autor que a
sociedade disciplinar, trabalhada por Michel Foucault, se dava a partir da ameaça policial para
que os indivíduos se ajustassem à ordem, sendo a prisão o meio para se extrair docilidade e
utilidade dos corpos. Estes, quando devolvidos ao convívio social, se tornariam produtivos e
obedientes, após a introjeção dos valores morais dominantes. Para Passetti, essa compreensão
da necessidade de introjeção de valores não foi abandonada pelos reformadores da prisão e do
direito penal:
“Os reformadores da prisão e do direito penal acreditavam neste sistema e
em seus aperfeiçoamentos, e reconheciam que as condições materiais de
existência eram responsáveis pela maioria das infrações, sempre
confirmadas, a qualquer momento, pelas estatísticas. Desta maneira, o
pensamento reformista procurava associar políticas de redução das
condições de vida precárias com redução de criminalidade, ora glorificando
o liberalismo, ora o welfare-state, com mais ou menos políticas sociais”
(2006, p. 85-6).

Atualmente, o exercício do controle sobre os indivíduos se manifesta a céu aberto e a


prisão deixa de ser o destino preferencial do infrator –- apesar desse instrumento de coerção
não ter sido abandonado, especialmente no nosso contexto marginal – para se cultivar uma
lógica punitiva sem aprisionamento porém cada vez mais vigilante. É que os limites entre o
que está dentro e fora da prisão deixam ser tão claros, assumindo um caráter “desfocalizado”,
onde se rompe com a lógica do interno/externo, culpado/inocente, liberdade/prisão e,
promovendo, assim, um continuum correcional para dentro das comunidades (COHEN, 1979,
p. 344).
Nesse aspecto, Passetti inclui a proposta da justiça restaurativa, para ele de cunho
reformista, na medida em que se estabeleceria uma espécie de tribunal penal local (2006, p.
87). Segundo ele, a autoridade, conteúdo central de rechaço pelo abolicionismo penal, estaria
se deslocando do poder das autoridades judiciais para ser exercido, doravante, pela
comunidade, em meio à exaltação de valores indiretos tais como perdão, remorso e clemência.
No fim, a lógica punitiva não teria condições de ser superada, ao contrário, seria ainda mais
difundida.
Importante, portanto, que se problematize a forma como a comunidade irá interferir
nesse processo de forma a afastar um ideário romântico que ignora o fato de que estamos

65
inseridos num contexto de demanda por ordem marcado por um populismo penal exacerbado
que enxerga o castigo e a punição como solução para problemas estruturais.
“Uma análise apurada deveria questionar a existência do tribunal em nós e
em nossas vidas cotidianas, uma juridicialização da vida” (AUGUSTO,
2012, p. 33).

Mesmo porque essa ideia de aproximar a comunidade afetada quando da elaboração


de uma solução para determinado conflito permanece ainda muito abstrata (ROSENBLATT,
2014, p. 9), abstração que se dá em vários aspectos. Primeiro pois não há uma definição do
que consiste essa comunidade e por quem ela é integrada, segundo porque uma delimitação
do dano sofrido coletivamente é de difícil avaliação, e, por último, é de indagar-se quais
seriam os limites dessa legitimidade interventora.
Sem que se discuta e produza dados empíricos sobre tais indagações, o risco é que se
reproduza a lógica do sistema formal de justiça dentro das comunidades estendendo a elas o
controle do poder estatal. Isso porque a justiça restaurativa não prescinde do Estado e seu
poder. Ao contrário, se vale dele para sua instituição e promoção, o que é notório sobretudo
no contexto brasileiro, eis que seu desenvolvimento, como visto, vem sendo atrelado ao poder
judiciário.
Mas não é só. Conforme adverte Salo de Carvalho (2002, p. 145-7), o modelo de
justiça negocial penal que visa devolver o protagonismo à vítima pode gerar a “privatização
do processo penal”. Isso porque o autor parte da perspectiva de que a concentração estatal
para resolução dos conflitos é uma conquista da modernidade, especialmente sob as bases de
um processo penal democrático, haja vista que o indivíduo não possui “capacidade de
sublimação” para analisar seu próprio conflito, imperando motivações vingativas e
irracionais. O processo penal, portanto, “representa mais uma forma de autolimitação do
Estado do que um instrumento destinado à persecução penal” (CARVALHO, 2002, p. 154),
sendo responsável pela garantia dos direitos humanos.
Apesar da justiça negocial não ser equivalente à justiça restaurativa – o exemplo
daquela mais conhecido no Brasil é o modelo dos juizados em que permanece a lógica
retributiva, com atribuição de culpa e ameaça de pena, diferente da proposta restaurativa - a
ponderação é pertinente tendo em vista que o protagonismo da vítima é valorizado em ambos
os modelos. E é nessa valorização exacerbada da figura da vítima que haveria o risco de se
violar direitos e garantias fundamentais da parte contrária, assim como princípios norteadores
da intervenção penal, tais quais a legalidade, a lesividade, a humanidade das penas, a
culpabilidade, o contraditório, etc.
66
Enfrentando a crítica de que o modelo de justiça restaurativa poderia ensejar violação
de direitos humanos, Antoine Garapon aduz:
“Longe de uma demissão ou de um retorno ao estádio arcaico da vingança, a
justiça reconstrutiva inaugura novas relações entre o Estado e os cidadãos e
assume uma partilha de responsabilidades entre os interessados e os
profissionais. O Estado não fica desprovido de armas perante a violência,
mas aceita que o ritual judiciário já não seja apenas o teatro do confronto do
delinquente e da lei mas também o lufar de um frente a frente entre o autor e
a sua vítima. O Estado concebe o seu papel tanto de maneira direta na gestão
dos ilegalismos como de maneira indireta na gestão de um encontro.
Autoriza que se mantenham a montante ou paralelamente ao processo outros
encontros entre o autor e a vítima, como disso testemunha a imbricação da
mediação no próprio cerne do processo judiciário” (GARAPON, 2001, p.
328)

O objetivo, destarte, não seria reduzir o poder estatal, mas conferir a ele o seu papel
constitucional de promoção de direitos e dignidade a todas e todos, na medida em que
“participa con la elaboración de principios y estándares legales que deben ser respetados a
través de los mediadores, por medio del control judicial y suministrando los servicios para
garantizar la efectividad de los acuerdos” (LARRAURI, 2004, p. 65). Deve, assim, atuar por
meio da fiscalização dos procedimentos, do oferecimento de cursos para
facilitadores/mediadores, do estabelecimento de regras gerais, etc. Ou seja, o objetivo não é
prescindir do Estado, apenas dar maior espaço à sociedade civil (LARRAURI, 2004, p. 65,
apud BRAITHWAITE).
Além disso, como já visto, o art. 23 da Resolução n. 2202/12 da ONU é expresso em
afirmar que a implementação do processo restaurativo e seus princípios não pode afetar, de
forma nenhuma, quaisquer direitos, sejam eles do ofensor ou da vítima, previstos em tratados
internacionais. Trata-se, portanto, de valores que devem permear toda a prática restaurativa.
Na realidade, muitos desses direitos são materializados nos standards básicos propostos pelos
restaurativistas, tais como a não-dominação, a escuta respeitosa, a igualdade de preocupação
pelos participantes e o respeito aos limites estabelecidos na lei (BRAITHWAITE, 2002, p.
569).
Fato é que ambos os posicionamentos se tratam de discussões que se dão no plano
teórico. Por um lado, embora se reconheça que um processo penal democrático tem por
objetivo limitar o poder punitivo estatal exercido sobre os indivíduos, na prática, esta
concepção está longe de ser uma realidade. O que se vê é um desrespeito generalizado às
garantias mais básicas que culmina no abarrotamento de estabelecimentos prisionais com uma

67
parcela específica da população. E no mesmo sentido, há que se questionar o idealismo por
trás da visão restaurativa de que diante de um contexto alternativo, os particulares seriam
capazes de respeitar os direitos humanos e que o poder estatal atuaria prontamente para coibir
eventuais excessos.
Outra questão relacionada à crítica acima e que deve ser problematizada é a atual
posição da justiça restaurativa no âmbito do sistema de justiça criminal, que vem se
desenvolvendo de forma complementar a ele, integrando-o. Trata-se de um ponto relevante na
medida em que a proposta do abolicionismo penal de superação completa do modelo
tradicional é uma das premissas teóricas que deu origem a esse movimento mas que, hoje,
parece ter sido cooptado por perspectivas distintas.
Esse distanciamento das premissas abolicionistas fica visível na Resolução n. 2202/12
da ONU que, em seu art. 6o, prevê o uso da justiça restaurativa em qualquer estágio do
sistema de justiça criminal, além de afirmar em seu preâmbulo que sua utilização não impede
o direito subjetivo dos Estados de processar presumíveis ofensores.
No contexto nacional, o documento normativo de maior importância sobre o tema foi
editado pelo Conselho Nacional de Justiça, atrelado ao poder judiciário, o que revela o
protagonismo desse poder na implementação e uniformização da justiça restaurativa no país58.
A própria Carta de Araçatuba, elaborada num simpósio composto por diversos
restaurativistas, traz a interação com o sistema de justiça como um dos princípios norteadores.
Além disso, o sistema de justiça criminal brasileiro, apegado ao monopólio da gestão
do conflito, é regido pelos princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal,
cuja titularidade é dada ao Ministério Público. Há, portanto, uma limitação legal à
implementação da justiça restaurativa enquanto prática absolutamente alternativa.
A partir disso, a indagação que se faz é sobre qual a viabilidade de efetivação dos
princípios e valores da proposta restaurativa coexistir junto ao modelo tradicional sem que
seja contaminada por sua racionalidade diametralmente oposta. Como efetivar um projeto de
justiça baseado na alteridade, na não-dominação, na humanidade, se aquela permanecer
vinculada a um sistema que nega e sempre negou tais valores?
O que a realidade vem assinalando - pelo menos até este momento em que a
implementação da justiça restaurativa ainda se encontra em estágio inicial - é a sua

58
Muito embora o referido documento preveja o uso da justiça restaurativa de forma alternativa ao processo
convencional, o estudo realizado pelo CNJ demonstrou, como visto, que na maior parte dos casos o
encaminhamento é realizado por juízes e promotores, revelando o protagonismo desses atores, além da não
suspensão/interrupção do procedimento tradicional quando da aplicação do procedimento restaurativo, podendo
acarretar “bis in idem”.

68
impossibilidade. A própria normativa restaurativa, muitas vezes produzidas por atores do
sistema de justiça tradicional, já pode ser vista como um indicativo eis que nem mesmo capaz
de abandonar as típicas categorias punitivas. Em todos os diplomas legais analisados nesse
trabalho, atestou-se a permanência de diversas delas, tais como “vítima”, “ofensor”, “crime”,
“prevenção da criminalidade”, etc.. Sendo assim, percebe-se a preservação de uma concepção
de conflito moralizante que dificilmente será capaz de romper com o ranço punitivo que
sempre marcou a atuação do modelo tradicional, especialmente se atrelado a ele. Isso
significa, na prática, uma verdadeira relegitimação do sistema e sua consequente expansão.
Em consonância a essa discussão, foi o resultado da pesquisa encomendada pelo CNJ
para avaliar a implementação da justiça restaurativa no âmbito do poder judiciário:
“Em síntese, não tem sido alternativa nem ao processo, nem à justiça, nem
ao encarceramento. Nesse sentido é mitológico também o discurso do
desafogamento da justiça. Se não é alternativa, mas paralela e concorrente,
não desafoga, mas sobrecarrega o sistema de justiça, o que eleva também à
condição de mito a visão comum de que a JR serve para desafogar o
Judiciário.

A Justiça Restaurativa judicial, com os limites legais e ideológicos


(resistências) com que vem sendo exercida no Brasil, não tem conseguido
sequer alcançar expressivamente a justiça penal e, nos poucos casos em que
alcança, não suspende sequer o processo penal, apesar da legislação permiti-
lo e tem por objeto crimes considerados leves, iniciando-se na violência
doméstica.

Com efeito, no presente inexistem condições jurídicas e ideológicas para que


a JR dispute o conteúdo central, o núcleo criminalizador duro da justiça
penal, cuja base é o conceito positivista de criminalidade (associado à
periculosidade) e pena (associado à reintegração dos condenados à
sociedade)” (CNJ, 2018, p. 150).

Acredita-se que não será possível superar o paradigma punitivo se teoria e prática
restaurativas, distantes das premissas abolicionistas, permanecerem apegadas às antigas
categorias, ainda que abandonem tais terminologias na literalidade. A concepção binária e
totalizante de que a vítima é apenas um sujeito em sofrimento que merece reparação e o
ofensor, responsável, deve repará-lo, reforça uma “justiça” retributiva e acaba por
descontextualizar as relações interpessoais e a realidade política, econômica, racial,
generificada, na qual todos os indivíduos estão implicados e por ela influenciados.
Dizer que o objetivo da justiça restaurativa é a restauração de uma relação rompida
implica numa análise subjetiva do conflito. Todavia, essa lente não pode desconsiderar toda

69
uma estrutura de classe, raça e gênero como pano de fundo. Por isso, o cuidado em se
trabalhar com a noção responsabilidade, quando atribuída exclusivamente a um indivíduo
específico, descontextualizando seu lugar do mundo e reforçando outras relações de
desigualdade. Trata-se de um aspecto pouco enfrentado pela literatura restaurativa.
É certo que as pessoas que sofrem algum tipo de dano não podem ser ignoradas e
invisibilizadas, mas uma compreensão de justiça restrita à reparação da vítima – que
privilegia uma perspectiva subjetiva e individualizadora - tampouco será capaz de enfrentar o
paradigma punitivo. A superação do silenciamento experimentado no sistema de justiça
tradicional não pode significar a supremacia da posição da vítima no sistema de justiça
alternativo.
No contexto da violência doméstica essa cautela deve ser ainda maior. Devido ao
silenciamento histórico que sempre existiu em relação às agressões sofridas por mulheres,
especialmente no âmbito familiar, existe hoje uma importante luta por visibilidade que
reivindica o enfretamento dessa questão, inclusive na literatura restaurativa feminista.
Contudo, é preciso estar atento ao risco de que esse movimento se valha das categorias
punitivas totalizantes que enxergam mulheres apenas como vítimas passivas e seus
agressores, especialmente quando homens, como algozes. Mormente quando a questão da
violência de gênero é atravessada por outras relações também constitutivas que conformam
subjetividades e comportamentos, tanto masculinos quanto femininos.
Dito isso, teoria e prática restaurativas não devem ignorar as questões sociais que
penetram os fenômenos conflituosos, de forma a não assumir uma falsa neutralidade que nega
as condições nas quais tais conflitos são forjados - até mesmo percebidos enquanto conflitos -
como bem demonstrou a criminologia crítica ao trabalhar com os processos de
criminalização. Significa dizer que a própria concepção do que consiste um conflito desafia
um olhar crítico e atento às relações sociais.
A justiça restaurativa enquanto movimento em construção não pode perder de vista
seu objetivo de enfrentar os efeitos deletérios do sistema de justiça tradicional e para isso
deve incorporar às suas práticas uma crítica genuinamente radical. Por isso, reconhece-se a
necessidade de acompanhar de perto a implementação de programas restaurativos para que
estes possam, de fato, representar um caminho de superação do paradigma punitivo e dos
mecanismos de controle dele decorrentes.

70
3. JUSTIÇA RESTAURATIVA E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: A EXPERIÊNCIA NA
CASA DA MULHER

A violência doméstica e familiar contra a mulher é um fenômeno distinto dos demais


fenômenos classificados como crime em razão da relação existente entre as pessoas
envolvidas. Não se trata de desconhecidos cujas vidas se cruzam em um único episódio
conflituoso. Pelo contrário, são pessoas que partilham ou, no mínimo, partilharam história,
vida e afeto, muitas vezes sob o mesmo teto e com o envolvimento de familiares e amigos.
Além do mais, são vínculos que se estabelecem - não só, mas também - a partir de uma
relação de poder que provoca assimetrias em diferentes níveis e que estrutura e marca
subjetividades.
Julie Stubbs (2002, p. 2-3) trabalha com algumas das particularidades dessa espécie de
conflito doméstico e enumera algumas delas: a violência doméstica inclui uma variedade de
comportamentos e táticas coercitivas que podem não ser percebidas imediatamente; muitas
vezes é repetitiva – não se manifesta em um único evento violento – e reflete atitudes e
crenças profundamente arraigadas; além de haver dimensões sociais e culturais que dão
significado a essa violência, autorizando-a e legitimando-a, o que limita as opções das
mulheres para lidarem com ela.
Com efeito, a violência de gênero é uma realidade experimentada de forma generalizada
pelas mulheres – embora recortes raciais e de classe reflitam em diferentes graus de
incidência. No entanto, mesmo reconhecendo a existência de um padrão como o acima
descrito por Stubbs, também é verdade que cada situação problema carrega contornos
específicos conforme as circunstâncias particulares sob as quais as relações estão inseridas.
Isso posto, a proposta da justiça restaurativa de diferenciar os conflitos de acordo com
suas particularidades, e a consequente implementação dos seus valores tem o potencial de ser
uma alternativa para enfrentar os conflitos domésticos sem que seja necessário se valer do
violento e estéril modelo punitivo, especialmente no contexto brasileiro em que estudos
apontam a insatisfação das mulheres com o sistema de justiça criminal e a existência de novos
processos de revitimização.
Mas para tanto, é preciso que a compreensão acerca do fenômeno da violência
doméstica não mais se estabeleça a partir de uma falsa dicotomia. Segundo Stubbs (2002, p.
3), há, por um lado, aqueles que retratam mulheres que sofrem agressões como extremamente
vitimizadas. Como consequência, não possuem condições de realizar suas próprias escolhas e,
assim, necessitam da tutela estatal para atender a seus interesses. É o caso, por exemplo, da

71
interpretação da Lei Maria da Penha realizada pelos tribunais brasileiros, como já discutido
anteriormente.
Padecendo da mesma superficialidade generalizante, porém a partir de uma perspectiva
distinta, há quem considere essas mesmas mulheres indivíduos dotados de agência que se
empoderam através de escolhas (STUBBS, 2002, p. 3). Para a autora, é comum na literatura
restaurativa que nos deparemos com a ideia de que tais mulheres são plenamente capazes de
afirmar seus interesses no curso do processo restaurativo e que, justamente em decorrência
dele, conseguem se empoderar. Entretanto, trata-se de uma compreensão muitas vezes
romantizada, na medida em que a maior parte dos conflitos de gênero são atravessados por
outras questões, principalmente de ordem patrimonial e familiar, relacionadas aos filhos, que
impedem ou dificultam esse livre exercício de escolha.
É preciso, portanto, que as teorias restaurativas estejam atentas às particularidades
desses conflitos para que não representem mais um reforço da desigualdade de gênero que
ignora as diversas complexidades que permeiam essas relações. Inclusive, por isso, a
importância de se desenvolver teorias a partir da nossa realidade marginal que dê conta dos
processos históricos que marcam estruturas de gênero, raça e classe e influenciam a dinâmica
das relações intersubjetivas aqui travadas.
Mas tão fundamental quanto a elaboração dessas teorias, é o estudo de experiências
desenvolvidas no campo restaurativo. Não só para que se possa averiguar seu real impacto na
vida das pessoas, como para avaliar se, no plano concreto, a justiça restaurativa está alinhada
com a superação, ou, ao menos, com o retraimento, do poder punitivo. Daí então a proposta
do presente trabalho em pensar a articulação entre a teoria discutida no capítulo anterior e sua
implementação prática, à luz das premissas criminológico-críticas.

3.1 A INTRODUÇÃO NA PESQUISA DE CAMPO

A ideia inicial não era realizar pesquisa de campo. O objetivo era fazer um estudo
teórico de revisão bibliográfica acerca da aplicabilidade da justiça restaurativa no âmbito da
violência doméstica e familiar contra a mulher. Entretanto, ao longo do desenvolvimento
desse trabalho, tornou-se imprescindível desbravar experiências restaurativas concretas.
Inicialmente, porque como destacado existe pouca literatura que contemple a análise de
práticas restaurativas realizadas no Brasil. Não só por ser um campo do saber ainda recente no
país e, portanto, há um interesse em construir uma teoria restaurativa brasileira,
contextualizada à nossa realidade e emancipada das teorias internacionais, em especial as

72
anglo-saxãs, mas também porque, de fato, há, ainda, poucas dessas experiências sendo
colocadas em prática. Não se pode esquecer que os primeiros programas de justiça
restaurativa no âmbito do poder judiciário se iniciaram apenas em 2005 – nem todos
abrangiam a temática da violência doméstica - e a Resolução do Conselho Nacional de
Justiça, que versa sobre a política nacional de justiça restaurativa, ainda não completou três
anos.
Segundo, porque foi só no curso desta pesquisa – e como consequência dela - que
conheci o projeto de extensão “Diga não à violência contra a mulher”, realizado pelo
NEPCrim (Núcleo de Extensão e Pesquisa em Ciências Criminais), coordenado pela
Professora Ellen Rodrigues, da Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais, em
parceria com a Prefeitura Municipal, e que ocorre na Casa da Mulher, também situada em
Juiz de Fora. O projeto, iniciado em agosto de 2016, tem por objetivo acompanhar os
procedimentos de atendimento, assistência e prestação jurisdicional destinado às mulheres
que sofreram violência doméstica e familiar, assim como promover círculos restaurativos
entre elas e as pessoas acusadas de agressão. O trabalho desenvolvido pelos docentes e
discentes do NEPCrim é orientado pelas bases da criminologia crítica, por meio da
problematização da sistemática punitiva conferida à violência de gênero no país
(RODRIGUES, RODRIGUES e DUTRA, 2017).
Dentre as coincidências (ou não) que permeiam nossas vidas, ainda fui surpreendida ao
descobrir que, além das Minas Gerais, a Profa. Ellen e eu tínhamos também em comum a
mesma orientadora na academia. Sua tese de doutoramento foi concluída na UERJ sob
orientação da Profa. Vera, o que indiscutivelmente facilitou o contato e a aproximação entre
nós.
Diante disso, o interesse em observar e participar da prática restaurativa coordenada
pelo NEPCrim foi despertado instantaneamente, sobretudo porque a maior parte da literatura
entusiasta desse modelo de pacificação social não enfrenta as dificuldades da sua
implementação do ponto de vista prático. A oportunidade de presenciar essa aplicação,
portanto, não poderia ser perdida.
Todavia, a realização de pesquisa de campo para alguém do ramo do Direito é uma
tarefa que gera sentimentos conflitantes. Se por um lado há a curiosidade e a empolgação de ir
a campo e observar como a prática vem sendo realizada para que possamos testar algumas de
nossas hipóteses, é também um desafio inquietante na medida em que nunca fomos treinados,
nem mesmo iniciados, nessa forma de fazer pesquisa, tão comum nas outras ciências sociais,
porém desmerecida na ciência jurídica.

73
Mas ultrapassando essa ressalva inicial, importante destacar que a opção nesta etapa do
estudo foi realizar uma pesquisa qualitativa, do tipo Observação Participante, a partir de
algumas incursões na Casa da Mulher e uma no fórum da comarca, descritas a seguir. Isso
porque trata-se de uma metodologia que aproxima o pesquisador do seu objeto de estudo e
dos atores envolvidos, permitindo que haja uma compreensão mais genuína dos fatos em
consequência de sua inserção no local de investigação. Desse modo, permite-se que o
observador participe do cotidiano, interagindo, observando os acontecimentos, escutando o
que é dito e entrevistando pessoas, durante algum período de tempo (BECKER e GEER,
1960, p. 28).

“O observador participante coleta dados através de sua participação na vida


cotidiana do grupo ou organização que estuda. Ele observa as pessoasre que
está estudando para ver as situações com que se deparam normalmente e
como se comportam diante delas. Entabula conversação com alguns ou com
todos os participantes desta situação e descobre as interpretações que eles
têm sobre os acontecimentos que observou” (BECKER, 1999, p. 47).

Pois bem. Nesse capítulo proponho, a partir da sistematização os dados colhidos em


campo, descrever minhas idas a Juiz de Fora e as atividades desenvolvidas na Casa da
Mulher, dando maior destaque às práticas restaurativas. Para tanto, realizei um estudo de caso
sobre o círculo restaurativo do qual pude participar durante a pesquisa. A escolha pela
metodologia de estudar um único caso foi, antes de mais nada, circunstancial, e possui uma
íntima relação com o próprio objeto de pesquisa. Vale dizer, foi uma decisão que precisei
tomar em razão do campo em si e das dificuldades que a justiça restaurativa enfrenta para sua
implementação. De toda sorte, trata-se de um caso representativo que abrange um conjunto de
particularidades comuns aos conflitos domésticos.
No total, foram cinco idas a Juiz de Fora, sempre às quartas-feiras, entre os meses de
outubro e novembro de 2018, todas nas quais estive na Casa da Mulher. Durante este período,
entrevistei informalmente algumas das funcionárias da Casa, assim como duas extensionistas
do projeto. Em uma dessas oportunidades, também acompanhei uma manhã de audiências no
fórum da comarca, na 2a Vara Criminal, única vara cuja atribuição é processar e julgar os
casos de violência doméstica da cidade.

3.2 A CASA DA MULHER


A Casa da Mulher em Juiz de Fora é um centro de referência que foi inaugurado pela
prefeitura da cidade em maio de 2013, com o propósito de dar efetividade ao art. 35, I, da Lei
74
11.340/2006 que dispõe sobre a criação e promoção de centros de atendimento integral e
multidisciplinar para mulheres e respectivos dependentes em situação de violência. Assim,
dentro do local há um espaço para atendimento inicial, uma sala para assessoria jurídica, em
que um advogado contratado pela prefeitura divide o espaço com docentes e discentes do
projeto de extensão da UFJF (estes, a partir de agosto de 2016), outra para acompanhamento
psicológico, ambos serviços fornecidos às mulheres gratuitamente. Funcionam também no
mesmo local a Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM), que conta com duas
mulheres delegadas de polícia, além de uma sala para a Polícia Militar, para efetuar boletins
de ocorrência.
O local se diferencia das habituais repartições públicas pois, como o próprio nome
sugere, é, de fato, uma casa. Nela, há dois andares com diversas salas, áreas de convivência,
como uma cozinha e uma ampla varanda, uma garagem e uma área externa. Em todos esses
locais, os funcionários, cuja maioria é composta por mulheres, circulam livremente.
Logo na fachada, é possível avistar uma placa grande com o nome “Casa da Mulher”
inscrito ao lado do símbolo da deusa romana Vênus, usado para representar o feminino e,
mais atualmente, apropriado pelos movimentos feministas. Além disso, estão espalhados pela
casa diversos cartazes que refletem a campanha contra a violência doméstica e familiar,
sendo, portanto, um ambiente que notoriamente se propõe a ser de acolhimento para as
mulheres.
Na varanda de entrada, mulheres e seus acompanhantes podem aguardar o atendimento,
que ocorrem no turno da manhã e da tarde. Ao abrirem a porta, são convidadas a entrar, uma a
uma, para um primeiro atendimento que se dá logo na sala de entrada. Esta, que possui uma
aparência de sala de estar, contém sofás e um aparelho de televisão, quase sempre com algum
funcionário gozando de seu tempo livre. Neste primeiro momento, elas passam por uma
espécie de mini-triagem onde descrevem, de forma sucinta, o ocorrido para uma das duas
atendentes. A partir disso, diferentes encaminhamentos podem ser realizados.
Caso a mulher tenha sofrido alguma agressão de natureza física ou sexual, ela é
encaminhada para a DEAM situada no segundo piso ou para a sala da Polícia Militar, se ainda
não houver realizado o boletim de ocorrência. Registra-se que esta é a única delegacia de
polícia de atendimento especializado à mulher em toda a cidade de Juiz de Fora e redondezas,
ou seja, todos os atendimentos estão concentrados no local, inclusive relativos a situações que
não necessariamente envolvam violência doméstica. Lá, medidas de caráter penal são
tomadas como em qualquer órgão desta mesma natureza, tais como pedido de prisão cautelar
e instauração de inquérito policial; assim como o pedido de medida protetiva de urgência.

75
Na hipótese de a mulher ter sofrido agressões de natureza psicológica, patrimonial ou
moral, que, conforme os dados fornecidos pela própria Casa da Mulher, representam a
maioria dos atendimentos59 - ela é dirigida à assistência jurídica. Nesta sala, o atendimento é
realizado tanto pelo advogado contratado pela prefeitura, como pelos estagiários do
NEPCrim, sob coordenação da Professora Ellen, que também é advogada.
Ao entrarem na sala, narram com mais detalhes a agressão sofrida para que recebam
orientação jurídica detalhada, sendo averiguada a possibilidade e a vontade de ajuizarem um
pedido de medida protetiva de urgência, nos termos dos arts. 18 e seguintes da Lei 11.340/06.
Se atendidas pelo projeto de extensão - que também realiza o pedido de medida
protetiva - caso a equipe jurídica entenda ser pertinente60, lhes é apresentada a proposta de
participarem dos procedimentos de justiça restaurativa. Na oportunidade, deixa-se claro que
se trata de um procedimento integralmente voluntário, que pode ser interrompido a qualquer
tempo, e que não impede a utilização dos mecanismos formais do processo penal, como o
próprio pleito de medida protetiva. No atendimento é possível, inclusive, o encaminhamento
para a justiça restaurativa sem que o conflito tenha que passar pelo sistema de justiça
tradicional.
Assim, é explicado que tais procedimentos consistem em encontros circulares,
realizados no espaço da Casa da Mulher, onde elas estariam presentes junto à pessoa acusada
da ofensa, apoiadores eventualmente indicados por ambas as partes, os estagiários do projeto
e o facilitador. É elucidado, em seguida, que se aceitarem participar do círculo, será a equipe
do projeto a responsável pela realização do convite ao ofensor e aos apoiadores indicados por
meio de contato telefônico.
Ressalta-se que a proposta restaurativa do NEPCrim envolve três etapas distintas, sendo
elas o pré-círculo, o círculo em si e o pós-círculo. O pré-círculo corresponde à orientação
acerca do funcionamento de todo o procedimento. Ele se dá tanto presencialmente quanto por

59
Conforme informações fornecidas pela direção da Casa da Mulher, desde sua inauguração em 29 de maio de
2013 até o dia 30 de setembro de 2018, foram realizados 13.049 atendimentos no local. Destes, 5.321 se
tratavam de agressão física e 754 de agressão sexual. Agressões psicológicas compreendiam 11.188
atendimentos, enquanto as patrimoniais 2.181 e morais 5.463.
60
Em algumas das minhas visitas, acompanhei o atendimento inicial realizado pela equipe do projeto. Houve um
caso em que uma mulher narrava ameaças de morte recebidas pelo ex-companheiro enviadas para seu celular. O
homem, que estava preso, tinha informações a respeito do paradeiro dela e, a partir disso, realizava as ameaças.
Em razão da gravidade do conteúdo das ameaças, muito embora não houvesse relato de nenhuma prática de
violencia física, a equipe do projeto entendeu por bem enviar a moça à DEAM para que a medida protetiva de
urgência fosse protocolada com maior rapidez. Não foi realizada, portanto, a proposta para participação nos
procedimento restaurativos. Ao menos não naquele primeiro momento.

76
contato via telefone com as mulheres que aceitaram participar e com os apoiadores por elas
indicados.
Durante o círculo restaurativo propriamente dito, em disposição circular, sentam-se as
partes e seus eventuais apoiadores, o facilitador e os estagiários integrantes do projeto,
devidamente capacitados. Ao centro, há sempre disposto um material interativo que pode ser
usado ou não, cujo objetivo é “quebrar o gelo” de forma a melhorar a comunicação entre os
participantes. A partir desse incentivo ao diálogo, são estimulados a refletir sobre seu
comportamento e os efeitos dele decorrentes, para que tentem alcançar algum resultado
restaurativo atento às particularidades daquele conflito determinado. O verbo tentar é usado
intencionalmente aqui já que acordos restaurativos nem sempre ocorrem, não sendo um
desdobramento necessário dos círculos.
O pós-círculo, por fim, consiste numa tentativa de contato posterior, após transcorrido
um período de tempo. Por meio de ligação telefônica, a equipe extensionista conversa com a
mulher para apurar se os acordos estão sendo cumpridos e se há alguma outra necessidade que
possa ser atendida. Contudo, durante o período em que frequentei a Casa da Mulher, pude
perceber que essa fase final é a que ocorre em menor frequência em razão da dificuldade de
contatar essas mulheres. Dentre os motivos, os principais são o fato de que as ligações são
feitas em horário comercial, durante o expediente de trabalho, inviabilizando a
disponibilidade necessária para esse contato. Além disso, algumas mulheres não são
encontradas, seja porque se mudaram, seja porque trocaram o “chip” do celular. E, ainda, há
também a própria falta de interesse em reestabelecer essa comunicação.

3.3 A 2a VARA CRIMINAL DE JUIZ DE FORA E AS “AUDIÊNCIAS DE


MEDIAÇÃO”.
O encaminhamento para os procedimentos restaurativos não é feito somente pela equipe
extensionista. Isso porque o NEPCrim, visando a implementação da justiça restaurativa no
contexto de solução de conflitos em Juiz de Fora, promove, ocasionalmente, cursos de justiça
restaurativa e a capacitação de facilitadores para toda a comunidade. Sendo assim, diversos
profissionais da cidade que atuam no âmbito da violência doméstica já participaram de algum
dos cursos ou, até mesmo, se tornaram facilitadores.
É o caso, por exemplo, da servidora do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, funcionária
da 2a Vara Criminal do fórum, que possui uma relação de proximidade com os funcionários
da Casa da Mulher, inclusive com a equipe do projeto de extensão, conhecendo o programa

77
de justiça restaurativa lá desenvolvido. Apesar de não ser uma facilitadora, já frequentou
alguns cursos fornecidos pelo NEPCrim.
Inicialmente, importante explicar que, em Juiz de Fora, existe uma particularidade no
procedimento da Lei Maria da Penha. Lá, é realizada uma audiência inicial, não prevista na
legislação, em que se avalia, presencialmente, a viabilidade de concessão ou não da medida
protetiva de urgência. Trata-se de uma opção que visa uma aproximação entre o órgão
julgador e os jurisdicionados para que aquele tenha melhores condições de avaliar o caso
concreto e tomar sua decisão.
Assim, as partes são intimadas a essa audiência preliminar, que recebe o nome de
“audiência de mediação”61, cuja presença não é obrigatória. Nessa oportunidade, ambas as
partes envolvidas no conflito doméstico, sempre representadas por advogados ou defensores
públicos, são ouvidas a respeito dos fatos na presença da servidora pública. Normalmente, há
a presença de uma psicóloga que acompanha o ato. Esta possui formação restaurativa e atua
como uma das facilitadoras nos círculos restaurativos na Casa da Mulher. Quando os pedidos
cautelares são elaborados pela equipe do projeto de extensão, as audiências são
acompanhadas por um estagiário extensionista.
A mulher que sofreu algum tipo de agressão, caso não tenha advogado constituído, é
representada pela Defensoria Pública, através do seu Núcleo de Defesa do Direito da Mulher
em Situação de Violência (NUDEM). A pessoa acusada, se não estiver acompanhada por um
patrono, tem à disposição um advogado constituído para o ato. A audiência se inicia com a
oitiva da mulher, sem a presença do suposto agressor. Em seguida, se ela concordar em estar
no mesmo ambiente que ele, este adentra o recinto e também é ouvido pela servidora. Se por
alguma razão a mulher não quiser estar no mesmo espaço que o acusado, ela aguarda a oitiva
do mesmo em uma sala ao lado, sendo possível ouvir o que se passa na sala principal de
audiência.
Em que pese não haver previsão legal para a realização destas audiências, o que implica
numa informalização desse ato, elas ocorrem, como dito, em uma sala de audiência, dentro do
fórum, na mesma dinâmica de qualquer outra audiência criminal. Os papéis de vítima e

61
Embora tenha sido dado o nome “mediação” para a audiência, os atores jurídicos sabem que não se trata de
uma mediação propriamente dita, já que ausentes seus requisitos estruturais. A opção pelo nome, segundo a
servidora pública, foi feita por não haver outra nomenclatura mais apropriada. Entretanto, trata-se de uma
escolha questionável. Primeiro porque atualmente há toda uma discussão relevante a respeito do que consiste os
procedimentos ditos alternativos de solução de conflitos e tal atecnia pode ocasionar sua banalização. Segundo
porque implica numa confusão para os jurisdicionados, no sentido em que, por receberem uma carta de
intimação para uma “audiência de mediação”, acreditam que o que ocorre naquele ato é um procedimento de
mediação, contribuindo para um estado de desinformação.

78
agressor são bem demarcados não só pelo local onde cada um se assenta, acompanhados dos
respectivos patronos, mas também pela postura dos atores do sistema de justiça durante o ato,
em especial da servidora que o preside. Esta, que em algumas situações é tomada pelas partes
como magistrada, exercita sua autoridade através de um discurso por vezes intimidador,
enfatizando o fato de estarem em uma vara de proteção à mulher e que o descumprimento da
medida protetiva culmina não só num processo criminal, como também em prisão.
Mas como o enfrentamento à violência doméstica e familiar em Juiz de Fora é
desenvolvido através de um sistema de rede, há uma proximidade no relacionamento entre
funcionários do tribunal de justiça e os da Casa da Mulher, onde o trabalho de todos é
conhecido uns pelos outros, permitindo encaminhamentos recíprocos. Sendo assim, no curso
dessas “audiências de mediação”, conforme o entendimento da servidora, da psicóloga ou do
extensionista presente, é possível que haja o encaminhamento de determinado conflito para o
procedimento restaurativo, desde que haja a concordância dos envolvidos.
De fato, não há nenhuma regra previamente estabelecida que determine quais casos
deverão ou não ser remetidos ao procedimento restaurativo. Tal alternativa vai depender da
percepção dos agentes do sistema de justiça presentes que já conhecem a proposta
restaurativa. Se por um lado esse encaminhamento se dá de forma discricionária conforme o
discernimento dos presentes, essa dinâmica também permite que hipóteses consideradas
“mais graves” possam ser trabalhadas pela via restaurativa, o que normalmente não ocorre no
processo de triagem dentro da Casa da Mulher.
Entretanto, esse não é o procedimento ideal. Como se vem enfatizando, a proposta da
justiça restaurativa alinhada às bases criminológico-críticas deve enfrentar o paradigma
punitivo e todo o sofrimento estéril gerado pelo sistema de justiça tradicional. Sendo assim, o
potencial restaurativo é minimizado quando o primeiro encontro entre as partes se dá no
contexto de uma audiência criminal, mesmo que “informalizada”. Isso porque nessa ocasião a
dinâmica adversarial logo é imposta, dificultando a superação da lógica retributiva quando do
momento restaurativo posterior. Por ser uma forma de resolução de conflitos com a qual as
pessoas não estão familiarizadas, a convivência entre procedimentos tão distintos – para não
dizer opostos – pode acabar gerando às partes uma confusão, deslocando a racionalidade
retributiva, que se instituiu primeiramente na audiência, para o procedimento restaurativo.
Tendo essa crítica em mente, a equipe do projeto de extensão empreende esforços para que os
círculos restaurativos ocorram preferencialmente antes das “audiências de mediação” no
fórum, o que nem sempre é possível.

79
3.4 ALGUMAS DIFICULDADES ENFRENTADAS
Na realidade, a implementação da justiça restaurativa enfrenta diversos obstáculos. Há
uma ordem de motivos de natureza operacional que, conjugada com o preconceito e
desconhecimento do procedimento, bem como com a situação socioeconômica das partes,
representa um empecilho para o melhor desenvolvimento do projeto.
Por se tratar de uma proposta ainda desconhecida pelas pessoas, gera a desconfiança das
partes, que acabam optando por não participar. Até mesmo quando aceitam, muitas desistem
nas vésperas e o círculo é cancelado.
Nota-se um receio das pessoas em participarem por não se sentirem confortáveis em
estar na presença da outra parte. De um lado, há uma parcela de mulheres bastante vulnerável
e, para elas, estar na presença do agressor é intimidante e amedrontador. A própria equipe da
Casa da Mulher relatou uma apreensão inicial com a proposta do NEPCrim de realizar os
círculos, temendo que agressões ocorressem naquele espaço.
Mas a desconfiança também é sentida pelos acusados de agressão que temem sofrer
algum tipo de retaliação e acabam se recusando a participar do procedimento, muito embora a
equipe tenha o cuidado de esclarecer que isso não é possível. No entanto, não se pode
esquecer que os círculos ocorrem em um espaço notoriamente destinado à defesa da mulher,
com policiais fardados circulando livremente pela casa, o que pode representar um ambiente
ameaçador para uma pessoa acusada de agredir uma mulher.
Além disso, embora o NEPCrim esteja diariamente na Casa da Mulher realizando
atendimentos e encaminhamentos para os círculos restaurativos, atualmente estes só são
realizados às quartas-feiras, no período da tarde, entre 14h e 17h, em razão da disponibilidade
de horário dos facilitadores. Logo, há uma dificuldade no ajuste da agenda destes e das
demais partes envolvidas. É que, ao contrário dos dados colhidos na pesquisa de âmbito
nacional62, a maior parte das mulheres atendidas pelo projeto, não é “do lar”, ou seja, mesmo
sendo de baixa renda, exerce atividade econômica e, por isso, não possui a disponibilidade
para estar presente no horário pré-determinado, o que também vale para as partes acusadas de
agressão.
É comum, ainda, que o intervalo de tempo entre o primeiro atendimento à mulher e a
data do círculo seja considerável, perdendo a atualidade que a justiça restaurativa requer.
Nesse período as partes podem se reconciliar, podem achar outras formas de resolver o

62
Entre práticas retributivas e restaurativas: a Lei Maria da Penha e os avanços e desafios do Poder Judiciário.
Realização: Universidade Católica de Pernambuco, Conselho Nacional de Justiça, p. 54-5.

80
problema, ou podem, simplesmente, romper com a expectativa inicial de participarem do
círculo.
Por fim, outro fator dificultoso não menos importante é a própria concepção que as
pessoas possuem da justiça restaurativa no âmbito da violência doméstica e familiar,
relacionando sua proposta informalizada e despenalizadora com um suposto descaso frente ao
fenômeno e a sua consequente impunidade.

3.5 OS CÍRCULOS RESTAURATIVOS


Os obstáculos acima descritos se tornaram evidentes ao longo do desenvolvimento do
campo e refletiram na escolha em realizar um estudo de caso. Explico. É que em razão deles,
das cinco vezes que estive em Juiz de Fora pude participar de dois círculos, sendo que apenas
um deles de forma integral, o qual se desdobrou em dois encontros. Não obstante isso
representar uma frustração inicial, logo restou compreendido que a dificuldade na realização
dos círculos fazia parte do objeto de pesquisa em si, se mostrando um dado revelador.
Mesmo assim, preocupada com o fato de que estava ali para pesquisar sobre os círculos
e após duas idas a Juiz de Fora sem que nenhum houvesse ocorrido, a equipe do projeto
decidiu agendar para o mesmo dia dois círculos diferentes, para não corrermos o risco de um
agendamento único ser cancelado de última hora, mais uma vez. Deste modo, na terceira ida à
Casa da Mulher duas histórias diferentes passaram pelo procedimento restaurativo.
Entretanto, como participei integralmente de um deles, irei me ater à sua descrição e análise.
Ainda assim, a simultaneidade dos encontros foi um fator que influenciou o desenvolvimento
do procedimento do qual participei, como se verá.

3.5.1 VITÓRIA E FABIANO


Primeiramente, cumpre salientar que em respeito à intimidade das pessoas envolvidas
no procedimento restaurativo, optou-se por alterar o nome dos participantes. Dessa forma,
chamaremos a esposa de Vitória, o esposo de Fabiano e o único filho presente, o mais velho,
será identificado dessa forma.
A história de Vitória e Fabiano é, de muitas maneiras, uma história comum. Casados há
49 anos, possuem quatro filhos juntos. Ele, 72 anos, profissional do tipo faz tudo: pedreiro,
eletricista, bombeiro, foi quem construiu a única casa que possuem e habita. Ela, com 66, “do
lar”, saiu da roça aos dezessete anos para se casar e dedicou toda sua vida aos filhos e marido.
Nessa vivência em conjunto, diversos foram os abusos suportados por Vitória no
decorrer dos anos: agressões físicas e psicológicas, traições, proibição de trabalhar fora de

81
casa e de sair sem a companhia do marido. A soma desses e de outros abusos somados ao
péssimo relacionamento entre Fabiano e os quatro filhos foram afastando o casal que, embora
ainda dividam o mesmo teto, há tempos não mais compartilham a vida e, por isso, não
conseguem estabelecer nenhum diálogo.
Na verdade, é justamente esse mesmo teto o pano de fundo do conflito que os levou ao
sistema de justiça. A casa de dois andares construída por Fabiano - que não esconde o orgulho
do feito ao trazer um álbum de fotografias na mão - é o único patrimônio do casal,
arduamente conquistado “do zero”. Mas ali a convivência foi se tornando insuportável, palco
de diversas brigas, discussões e provocações. Já dormindo em quartos separados, Vitória
decidiu abandonar o papel de esposa exercido por tanto tempo, não mais realizando as
atividades domésticas para o marido, como lavar sua roupa, preparar sua comida ou limpar
seu quarto. Até a aliança de casamento Vitória devolveu, deixando-a sobre a cama dele em
um dia qualquer. Fabiano, por sua vez, em resposta, a provocava: largava o lixo varrido na
porta do quarto, ouvia música na altura que desejava e, em tom ameaçador, sempre dizia a ela
que os filhos não teriam nenhum direito à casa, que ele a venderia a “preço de banana”.
Todo um cenário conflituoso permeado pela total falta de comunicação fez com que
Vitória procurasse o poder judiciário, acreditando que este poderia trazer as soluções que
precisava. Para tanto, ajuizou pedido de medida protetiva de urgência e, seguindo o regular
trâmite procedimental de Juiz de Fora, foi com Fabiano para a “audiência de mediação” no
fórum.
Lá, entendeu-se pela não concessão da medida pois nos termos da lei Maria da Penha
não havia uma situação de violência grave o suficiente pra justificar a retirada de Fabiano de
casa. Mesmo porque, não teria ele para onde ir, o que poderia tensionar ainda mais a relação
conturbada entre ambos. Com efeito, o sistema de justiça não consegue oferecer respostas
eficazes aos problemas das pessoas especialmente quando questões estruturais de classe
atravessam a experiência cotidiana e imprimem sua marca nos conflitos entre indivíduos.
Foi então que a servidora da vara criminal e a psicóloga presentes no ato decidiram
encaminhar o casal para a justiça restaurativa, na tentativa de que, em um ambiente favorável
ao diálogo, pudessem chegar - ou ao menos tentar chegar - a um consenso que atendesse ao
interesse de ambos. Estes, aceitando a proposta, foram assim encaminhados à Casa da
Mulher.

3.5.1.1 O PRIMEIRO CÍRCULO

82
Quando chegam na Casa da Mulher para a realização do círculo, é entregue às partes o
termo de consentimento e assim são encaminhadas para o local onde ocorrerá a prática.
Normalmente, ela ocorre na parte de trás da casa, onde há um espaço mais íntimo com menos
pessoas circulando. Ocorre que se trata de uma área descoberta e por causa do clima, tanto
excesso de calor quanto chuva, o círculo também pode acontecer numa varanda localizada no
segundo piso, protegido por um telhado, espaço que é dividido com a DEAM e as pessoas que
lá aguardam atendimento.
A tarde em que ocorreu o primeiro encontro estava muito quente. Logo que cheguei na
Casa da Mulher encontrei uma senhora junto a um rapaz mais novo sentados na varanda de
espera. Não demorou muito para perceber que era Vitória e seu filho mais velho, que mora
nos fundos da casa dos pais e acompanha de perto o confronto entre eles. Pouco tempo
depois, Fabiano chegou e se sentou numa das cadeiras ao lado.
A equipe extensionista se dirigiu a eles para que assinassem o termo de consentimento,
informando que todos poderiam subir, inclusive o filho mais velho. Este, contudo, sem
hesitar, avisou que não tinha interesse em participar porquanto não conseguia “nem olhar na
cara daquele homem”. O clima de animosidade ficou claro desde o início.
Já no segundo andar, todos os presentes se sentaram nas cadeiras dispostas de forma
circular com o material interativo posicionado ao centro. Neste dia, estavam presentes além
de Vitória e Fabiano, duas facilitadoras (uma delas era a psicóloga do fórum, já conhecida
pelas partes) e eu, que como não fui identificada como pesquisadora, era como se integrasse o
projeto. O filho mais velho, que preferiu não subir, aguardou na varanda de entrada durante
todo o tempo.
As cadeiras e o material que seriam usados no outro círculo, também agendado para a
mesma tarde, já estavam posicionados do outro lado da varanda embora não tivesse ainda
começado. Em razão do atraso das outras partes, as duas facilitadoras presentes
permaneceram no círculo de Vitória e Fabiano.
Iniciando o círculo restaurativo, a eles foi explicado a existência de três regras: i) o
acordo que porventura fosse ali estabelecido seria levado ao poder judiciário; ii) a pessoa só
poderia falar caso estivesse segurando o bastão da fala, que, no nosso caso, era um bolinha de
pelúcia sorridente; e iii) quando se manifestassem, a fala não poderia ser agressiva pois havia
um tom de respeito mútuo a ser mantido.
Explicadas as regras, a primeira facilitadora pediu que cada um, na sua respectiva vez,
se apresentasse e falasse como estava se sentindo no momento. De forma leve, ela começou

83
falando de si, trazendo informações triviais, tais como o calor e o cansaço que sentia, assim
como a expectativa positiva que tinha em relação ao círculo que se iniciava.
Seguindo a direção horário, foi a vez de Fabiano falar. Em suas breves palavras, foi
possível percebê-lo na defensiva, alegando seu descontentamento em estar ali. Fazendo
menção aos cartazes da DEAM sobre a campanha de enfrentamento à violência contra a
mulher – logo que subiu para o segundo andar, notei que ele parou de frente para os cartazes e
os leu um por um – disse que entendia que o local era de proteção à mulher, mas que não
tinha razão de ele estar ali, pois era um homem trabalhador, um bom profissional. E assim,
nesse primeiro momento, exaltou seus méritos no trabalho, sem fazer qualquer menção ao seu
comportamento enquanto marido e pai.
Na sequência, foi a vez da segunda facilitadora,. Rapidamente, falou sobre seu
entusiasmo em relação aos encontros restaurativos pela sua capacidade de permitir o diálogo
entre as pessoas.
Passado o bastão para Vitória, logo que se apresentou, exprimiu a tristeza em estar ali e,
diferentemente de todos que haviam se manifestado anteriormente, foi direito ao tema que a
trazia ao local. Falou bastante e de forma intensa sobre os diversos conflitos que lhe
atordoaram e atordoavam, como o fato dele ser “mulherengo” e boêmio, o péssimo
relacionamento que tinha com os filhos, a forma como ele a explorou como esposa ao longo
do casamento, como ele a provocava, as agressões físicas do passado, etc. Enquanto ela falava
ininterruptamente, em vários momentos se percebia o desconforto e, por vezes, uma
expressão de deboche de Fabiano.
Após uma longa fala, de quase dez minutos, repleta de acusações, Vitória passou para
mim o bastão. Percebendo o abalo em sua figura e no clima de maior tensão, tentei ser o mais
breve possível. Assim como a primeira facilitadora, falei pouco sobre como estava me
sentindo fisicamente e da expectativa positiva do diálogo enquanto ferramenta para
enfrentarmos nossos problemas.
Finalizada a primeira rodada, uma nova atividade foi proposta para os participantes.
Dentro de um pequeno saco, havia algumas perguntas que deveriam ser sorteadas por cada
um de nós e respondidas no momento oportuno. A primeira pergunta, respondida pela
primeira facilitadora, questionava alguma experiência de justiça que ela vivenciou. Em sua
resposta, narrou um caso que havia passado por ela num outro círculo, em que um marido
praticava estupro marital acreditando ser um direito dele e que, através da justiça restaurativa,
foi possível resolver as questões necessárias para que a separação ocorresse, a mulher pudesse
sair de casa e a divisão de bens fosse devidamente realizada.

84
Para Fabiano, a pergunta questionava o que ele entendia por experiência. Novamente,
sua reposta tangenciou somente o aspecto profissional e não o familiar. Em meio a algumas
alfinetadas a Vitória, falou sobre obras que havia realizado nas redondezas e em nenhum
momento enfrentou as acusações que haviam sido feitas por ela poucos minutos antes.
Em seguida, a segunda facilitadora respondeu brevemente sobre o que ela entendia por
poder. Foi então a vez de Vitória. Sem nem responder à pergunta que havia sorteado, falou
mais uma vez copiosamente sobre seus conflitos com o marido, por um período ainda maior
de tempo. Durante sua fala, contudo, algo chamava a atenção de todos, inclusive a dela. O
outro círculo já havia começado, e do local em que estávamos era possível perceber os ânimos
de lá bem exaltados, pois ouvíamos o tom enraivecido da outra mulher.
Chegou então a minha vez e novamente me ative a responder brevemente à pergunta,
tentando relacioná-la com o contexto do círculo.
Na rodada seguinte, a primeira facilitadora se dirigiu diretamente a Fabiano. De acordo
com a percepção dela, todas as respostas dadas por ele o colocavam numa posição de vítima e
de injustiçado, nunca abordando seu papel de chefe de família, mesmo com as falas enfáticas
de Vitória acerca do mau relacionamento que tinha com todos os filhos. Novamente,
respondendo de forma efusiva e com algumas outras alfinetadas, mencionou um episódio
específico sobre amiga de Vitória, o que a deixou bastante enfurecida.
Nesse momento, contudo, no outro círculo, os ânimos ficaram ainda mais inflamados.
Por ter começado com um pouco de atraso, estava sendo guiado por duas extensionistas
presentes, porém menos experientes. Em razão disso, a primeira facilitadora pediu licença e se
dirigiu ao outro encontro.
Apesar de não poder afirmar absolutamente, foi possível perceber que a exaltação de
ânimos no outro círculo influenciou a dinâmica do círculo do qual participávamos, na medida
em que ao ver outra mulher também exaltada, Vitória se sentiu confortável em expor, de
forma ainda mais agressiva, o que sentia. Isso foi discutido pela equipe do projeto que, ao
final do dia, decidiu que não mais agendariam mais de um encontro para a mesma data. De
fato, a justiça restaurativa e sua flexibilidade procedimental faz com que sua implementação
seja construída diariamente, através de erros e acertos em direção ao seu aperfeiçoamento.
Aproveitando a interrupção causada pelo outro círculo, Vitória retomou a palavra.
Dessa vez bem mais enfurecida, falou alto, narrando diversos episódios problemáticos
envolvendo o marido, um seguido do outro, sempre dizendo que não aguentava mais e que ela
estava mal, deprimida. Muitos desses conflitos que envolviam o cotidiano do casal,

85
aparentemente pouco significativos se analisados de forma isolada, em conjunto,
demonstravam que o convívio havia alcançado seu limite.
Na medida em que falava, ia se enervando mais e mais, o que gerou enorme dificuldade
para a segunda facilitadora aquietá-la. Quando tentava interrompê-la, dizia: “eu quero falar”.
Diante da perda do controle, a primeira facilitadora se levantou do outro círculo e veio até
nós. Em tom bastante firme disse ser inaceitável o comportamento de Vitória, que havia
descumprido a regra de não agressividade proposta logo no início da prática. Mesmo assim,
Vitória ainda continuou por um tempo esbravejando até que a primeira facilitadora precisou
elevar a voz para que ela parasse de falar. Naquele cenário, qualquer restauração seria
impensável.
Finalizado então o círculo, a primeira facilitadora acompanhou Vitória até a saída e
pediu a Fabiano que permanecesse. O objetivo em conversar com ele naquele momento era
evitar que ele saísse da lá superiormente. É que de acordo com o senso comum machista,
mulheres efusivas são comumente taxadas de loucas e descontroladas e havia um receio de
que Fabiano usasse isso a seu favor, o que prejudicaria ainda mais o relacionamento entre
eles.
Nessa conversa, a primeira facilitadora chamou atenção para diversas questões
colocadas por Vitória, dando razão a ela e concordando com o fato de que o convívio tinha
atingido níveis intoleráveis, mas que como ela não estava mais presente, eles não falariam
dela. Assim, perguntou-lhe se vislumbrava alguma solução para a situação deles, pois Vitória
havia dito anteriormente que não gostaria de vender a casa.
Fabiano respondeu que não tinha para onde ir. Sendo um senhor idoso, apesar de
aparentar menos idade, não trabalhava como antes e não poderia arcar com o aluguel em outro
lugar. Desse modo, a facilitadora sugeriu que ele, se valendo das habilidades de pedreiro,
construísse um banheiro no primeiro andar e para lá se mudasse para que cada um pudesse ter
seu espaço de intimidade, ainda que debaixo do mesmo teto. Fabiano demonstrou concordar
com a ideia, afinal, poderia permanecer na casa. Assim, a facilitadora lhe disse que entraria
em contato com Vitória e ela mesma seria a responsável por oferecer-lhe essa proposta.
Tanto a equipe do projeto quanto eu encerramos as atividades sensibilizadas com o
resultado do círculo. Da mesma forma em que havia uma frustração pelo fato do círculo ter
terminado naqueles termos, com os ânimos tão aflorados, também reconhecemos a relevância
de Vitória, mulher negra e pobre, sempre silenciada, ter se sentido segura o suficiente para
expor, de forma catártica, as queixas que tinha do marido. E foi para a surpresa de todos que,
em contato posterior, ela concordou em participar de um novo círculo, dizendo que nunca

86
tinha tido a oportunidade de falar o que havia sido dito naquele dia e que estava disposta a
encontrar uma solução para sua situação.

3.5.1.2 O SEGUNDO CÍRCULO


Duas semanas depois Fabiano e Vitória estavam de volta à Casa da Mulher. Desta vez,
o filho mais velho aceitou participar como apoiador de sua mãe. Além de mim, um das
facilitadoras do primeiro círculo e uma extensionista também estavam presentes.
A dinâmica desse círculo foi diferente da outra pois não houve atividades para a
“quebra do gelo”. Já se havia entendido que o objetivo era tentar resolver a situação da
moradia de ambos e os termos precisavam ser estabelecidos. Para tanto, a facilitadora adotou
uma postura muito mais proativa e pragmática do que na vez anterior.
O procedimento foi iniciado apenas com Vitória e o filho para que fosse apresentada a
proposta de construção do banheiro no andar de baixo. Ainda, nesta oportunidade, lhes foi
explicado que o divórcio poderia ser feito pela via judicial ou pelo cartório, em caso de
acordo, e que, ao final, cada um teria direito a 50% do valor. A venda do imóvel, por sua vez,
só poderia ser realizada desde que ambos concordassem com os termos da venda e os quatro
filhos do casal só teriam direito a receber sua quota parte nas hipóteses de doação ou herança.
Como se percebe, o tema da violência doméstica é atravessado por outras questões
familiares e patrimoniais determinantes que influenciam diretamente na dinâmica dos fatos.
Nesse sentido, o fornecimento de assistência jurídica tem papel relevante na justiça
restaurativa na medida em que permite às partes uma melhor compreensão dos seus direitos
para que haja um pouco mais de liberdade na construção de uma solução.
Vitória, contudo, não concordou com a proposta de Fabiano, embora não tenha
oferecido uma contraproposta. Ele, então, foi convidado a subir para que o círculo fosse
estabelecido. Assim que lhe foi dito que Vitória não aceitara a proposta, ele mencionou que
havia algumas pessoas interessadas na compra da casa e que esta poderia ser uma alternativa.
Nesse momento, a facilitadora o demandou a respeito da regulamentação do imóvel e
lhe pediu que trouxesse os documentos comprobatórios, já que havia um receio de que ele
pudesse estar escondendo informações registrais. Disse, ainda, que caso Fabiano recebesse
alguma proposta de compra da casa, deveria contatar a própria facilitadora para que ela
conversasse com Vitória, informando a ele que era direito da esposa participar da negociação
da venda. De fato, era evidente que o diálogo não seria reestabelecido sem que houvesse uma
condução mais ativa por parte da facilitadora, mesmo porque durante todo o tempo em que
estiveram no mesmo local, só se dirigiam um ao outro de forma agressiva e provocativa.

87
Vitória novamente não concordou. Percebendo sua desconfiança em aceitar qualquer
proposta que fosse oferecida pelo marido, a facilitadora se dirigiu a ela dizendo que estava ali
para garantir seus direitos e que atuaria como representante dos seus interesses. Todavia,
advertiu que para encontrarem uma solução era preciso que ambas as partes cedessem, pois,
caso contrário, o impasse acerca da moradia nunca se resolveria. Vitória pareceu concordar.
Assim, ajustaram que Fabiano deveria enviar os documentos para a facilitadora e que
em dois meses ela retornaria o contato para saber em que pé andava a venda da casa. Um
termo final com esse encaminhamento foi assinado por ele que, em seguida, foi embora
apressado para um compromisso do trabalho. Vitória e seu filho permaneceram no local e
receberam outras orientações jurídicas, bem como o incentivo para que ela fosse morar com
um dos filhos enquanto a venda não ocorresse. Isso porque era perceptível a preocupação de
que a saída de casa representasse a vitória do marido, quando, na verdade, poderia significar
sua libertação.
Vitória ouviu então as orientações dadas e pareceu mais otimista e segura com a
possibilidade de ir morar em outro local, entendendo que isso não precisaria implicar,
necessariamente, na venda da casa, se não fosse essa sua vontade. Aceitou, inclusive, a
sugestão de realizar sessões com a psicóloga, oferecidas gratuitamente na Casa da Mulher e,
assim, se despediu de nós.
Com esse círculo, o NEPCrim encerrou as atividades do projeto no ano de 2018 para o
início das férias e, até a conclusão deste trabalho, não houve a realização do pós-círculo.
Mesmo porque é importante o decurso de tempo para que reflexões e providências sejam
tomadas. Sendo assim, os desdobramentos do caso ainda não são conhecidos.
Fato é que, do ponto de vista de Vitória, pode-se afirmar que os círculos trouxeram
resultados positivos, ao menos neste primeiro momento. Segundo a mesma, entre a realização
dos dois encontros restaurativos, Fabiano não mais a importunou e isso, para ela, era
significativo. Ressalta-se, ademais, que uma das questões mais sensíveis no fenômeno da
violência doméstica e familiar é a busca pelo reconhecimento das agressões sofridas. Não só
daquelas que são tipificadas na lei, tais como tapas, socos e ameaças, mas também das
pequenas violações do dia a dia que ao longo dos anos geram enorme sofrimento e que,
normalmente, não são ouvidas numa audiência criminal. Nesse ponto, não houve dúvida que
Vitória se sentiu acolhida, tanto que voltou para um segundo círculo mesmo tendo saído do
primeiro indiscutivelmente abalada. Trata-se de uma importante marca distintiva quando
comparado ao procedimento do sistema de justiça tradicional.

88
Contudo, não se pode ignorar os recortes de classe e raça que marcam a violência
doméstica, cuja complexidade compromete o exercício da liberdade de diversas mulheres.
Isto é, a despeito de Vitória vislumbrar a possibilidade de sair de casa, esse desfecho pode
estar prejudicado em razão de circunstâncias para além do seu desejo, como por exemplo a
impossibilidade financeira de arcar com aluguel. Nesse aspecto, encontros restaurativos pouco
podem fazer.
Fabiano, por sua vez, teve uma experiência distinta no tocante ao acolhimento recebido.
Obviamente que a mulher nessa situação se encontra numa posição de maior fragilidade e, por
esse motivo, o tratamento conferido às partes não será o mesmo. Entretanto, acredito que ao
longo do círculo não foi possível romper o signo de “ofensor” que normalmente uma
acusação de violência doméstica carrega. Não só porque o local onde a prática restaurativa
ocorreu não contribui para tanto, mas também devido à dinâmica adquirida no círculo de
proteção proeminente aos interesses de Vitória. A saída apressada de Fabiano no segundo
círculo – ele não permaneceu no local nem vinte minutos - é um indicativo do seu desconforto
em estar ali.
Diante dessa experiência, foi possível constatar que ainda que o procedimento
restaurativo afete positivamente a vida de pessoas determinadas, caso mantenha uma próxima
relação com o sistema de justiça tradicional, as categorias deste permanecerão marcando essa
via alternativa e dificilmente terá o condão de superar o paradigma punitivo. No contexto
específico da violência de gênero esse fator ainda é agravado na medida em que é perceptível
a existência de um movimento atual de reconhecimento dessa conflito que dá primazia aos
interesses da mulher com o objetivo de evitar a “impunidade”. E é nessa simbiose entre
ambos os modelos e suas racionalidades opostas que mora o risco de expansão de novas redes
de controle alertada pela crítica.

89
CONSIDERAÇÕS FINAIS
Este trabalho visou percorrer um caminho a partir de três etapas. A primeira delas
consistiu na problematização das demandas pela política pública penal no enfrentamento da
violência doméstica e familiar contra a mulher por parte de setores progressistas
comprometidos com pautas emancipatórias. Mesmo diante dos estudos realizados pela
criminologia crítica, e em especial a criminologia crítica feminista, que diagnosticaram a
falaciosa promessa do seletivo e deletério sistema penal em dar conta desse fenômeno, ainda
assim permanece a fé nesse poder punitivo que apenas reforça tais desigualdades
estruturantes.
Apesar de se reconhecer que o objetivo da produção científica não envolve,
necessariamente, a proposta de soluções para os problemas por ela identificados, a justiça
restaurativa se apresentou, num primeiro momento, como uma alternativa que merecia ser
investigada. Sendo assim, as segunda e terceira etapas desse estudo consistiram numa revisão
bibliográfica acerca do tema e uma pesquisa de campo para averiguar sua implementação na
prática, respectivamente.
Pois bem. Apesar desse estudo ter se iniciado com um franco otimismo quanto ao
modelo restaurativo, nessas considerações finais encerro-o trazendo alguns questionamentos
que me surgiram após a realização de toda a pesquisa e como decorrência dela.
Durante o contato com a literatura restaurativa, o maior incômodo se deu quanto ao
tratamento conferido à responsabilidade do agressor, em relação à posição de destaque
ocupada pela vítima que reclama uma reparação.
“A filosofia reconstrutiva não quer separar o fim e os meios. Ela aposta que
é responsabilizando o autor de uma infracção que se desenvolverá nele o
sentido da responsabilidade; não se pode encontrar melhor educador para
ele... que ele próprio. Por trás da filosofia reconstrutiva, esconde-se assim
uma nova concepção da intervenção pública que, ao contrário do movimento
de espoliamento das vítimas pelo Estado do seu direito de se vingar, procura
restituir ao agressor a ao agredido a sua capacidade ética” (GARAPON,
2002, p. 316)
No contexto da violência de gênero, não se pode ignorar que a sociedade patriarcal
conforma não só comportamentos femininos como masculinos. Sendo assim, indaga-se se a
responsabilidade sobre a performatividade da masculinidade agressiva pode recair
exclusivamente sobre homens agressores. O intuito aqui não é negar a responsabilidade sobre
comportamentos danosos, mas questionar a ausência do debate acerca dessa realidade sob a
qual todos indivíduos estão implicados e por ela influenciados. Não enfrentar os processos
que conformam a masculinidade em uma sociedade patriarcal gera o risco de ontologização

90
desses comportamentos que classifica homens em agressores e não agressores e em nada
contribui para o entendimento e enfrentamento da violência de gênero.
No curso das minhas leituras, não foi incomum me deparar com uma despolitização no
conteúdo dessa responsabilidade que, frequentemente, é inserida na equação, supostamente
neutra, de responsabilidade x reparação que não enfrenta as relações de poder de uma
sociedade marcada pela divisão de classe, raça e gênero. A ideia de que o sujeito é
plenamente responsável e capaz de reparar um dano por ele causado ignora a realidade das
nossas margens onde a desigualdade na distribuição de bens e poder é obscena. Indaga-se,
dessa forma, se a lente subjetiva que analisa os conflitos somente sob uma perspectiva
individualista não acabaria por reforçar ainda mais essa desigualdade.
Apesar de haver concentrado a análise desse estudo para a violência doméstica e
familiar contra a mulher, a mesma inquietação se aplica para outros conflitos, como por
exemplo, os patrimoniais. Como lidar com o protagonismo que a vítima recebe na justiça
restaurativa quando estivermos diante de um conflito tipificado como roubo no qual os
personagens envolvidos pertencem a classes sociais completamente distintas? Que noção de
responsabilidade se quer promover para esses “agressores” quando o fundamento do conflito
é a divisão de classes e raças geradora de uma injusta distribuição de renda? Não haveria aqui
um risco de se continuar a selecionar indivíduos e moralizar conflitos? E mais, está a justiça
restaurativa aberta a problematizar aquilo que compreendemos enquanto conflito, sobretudo
no seio de uma sociedade neoliberal globalizada?
Outro questionamento bastante sensível que se revelou ao longo desse estudo é a
posição ocupada pela justiça restaurativa em relação ao sistema de justiça tradicional. Como
visto, no Brasil ela vem sendo implementada majoritariamente em subordinação a ele. E isso,
na prática, inviabiliza a ruptura com o paradigma retributivo. Nesse aspecto, os estudos
demonstram (CNJ, 2018), assim como minha experiência em campo, a dificuldade em se
romper não só com as categorias do sistema punitivo, sobretudo o de “vítima” e “agressor”,
como o protagonismo dos atores do sistema tradicional que permanecem sequestrando o
conflito, ainda em que os envolvidos tenham adquirido uma maior participação. Além disso,
nessa conjuntura, percebe-se a incapacidade da justiça restaurativa em influenciar os
processos de criminalização primária e secundária, fazendo com que a seletividade, intrínseca
ao sistema penal, também opere no modelo alternativo.
Questiona-se, então, de que forma a justiça restaurativa poderia representar uma
oposição ao sistema de justiça tradicional e ao paradigma retributivo que o acompanha. Com
efeito, atualmente, permanece distante uma implementação fora do contexto do poder
91
judiciário e isso reflete, do ponto de vista criminológico-crítico, uma barreira intransponível
para o arrefecimento do poder punitivo. Assiste razão, portanto, aos críticos quando alertam
para o risco de expansão das redes de controle, tal qual se deu em outras propostas de cunho
reformista.
Destaca-se, ainda, que em razão dessa seletividade operante no sistema de justiça
tradicional que também atinge a justiça restaurativa, nota-se, no contexto dos conflitos
domésticos, um recorte de classe e raça específico na sua clientela preferencial. Isso significa
que, usualmente, a violência contra a mulher submetida aos procedimentos restaurativos vem
acompanhada de outros obstáculos que atravessam e agravam o cenário conflituoso, como
questões de ordem patrimonial e familiar, como por exemplo a dependência financeira entre
os envolvidos e a existência de filhos menores que não têm com quem ficar. Nesse aspecto, a
justiça restaurativa encontra limitações, já que pouco pode fazer para enfrentar essas
situações, na medida em que lhe falta recursos necessários para tanto.
Além disso, a experiência revela que o modelo restaurativo não é capaz de proporcionar
soluções para todo e qualquer conflito. Sem dúvidas, o propósito em oportunizar um ambiente
propício ao estabelecimento da comunicação entre pessoas é salutar e deve ser estimulado.
Todavia, o conflito doméstico em especial se manifesta, muitas vezes, num cenário de
perdurável ausência de diálogo, como é o caso de Vitória e Fabiano. Dessa forma, seu
reestabelecimento não necessariamente irá se concretizar e dessa frustração outros conflitos
podem erigir.
De toda sorte, por ser um modelo que preza pela interdisciplinaridade, possui uma gama
maior de ferramentas para lidar com diferentes tipos de situações problemáticas, o que
representa um avanço quando comparado ao engessado e compartimentado sistema de justiça
tradicional. Ademais, não se pode negar que a proposta restaurativa oferece um espaço de
acolhimento e escuta não existente no modelo tradicional e isso é bastante significativo,
sobretudo na violência contra a mulher, esta que por tanto tempo foi silenciada e
invisibilizada em suas dores.
Contudo, os questionamentos trazidos não visam minar a proposta da justiça
restaurativa. Pelo contrário, permaneço entusiasta das proposições que têm o diálogo como
eixo central para enfrentar situações problemáticas e que rechaçam as categorias totalizantes
da justiça retributiva. Talvez a questão gire em torno da ideia de não ser possível depositar
confiança em nenhum modelo de solução de conflitos (seja ele qual for) para superar conflitos
estruturais da sociedade, eis que dificilmente possuirá artifícios para inverter a lógica desigual
e abusiva a que estamos submetidos. Sem dúvidas, é possível que haja formas menos
92
violentas de lidar com eles, mas são as relações de poder que marcam esses conflitos que, de
fato, precisam ser enfrentadas e, nesse aspecto, a despolitização dos conflitos tende a
fortalecer precisamente aquilo que se visa suprimir.

93
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACHUTTI, Daniel. Justiça Restaurativa e Abolicionismo Penal: contribuições para um


novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2a ed. São Paulo: Editora Saraiva,
2016.

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal
no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, n. 48, p. 260-90, maio/junho 2004.

_______________. Minimalismos e abolicionismos: a crise do sistema penal entre a


deslegitimação e a expansão. Revista Sequencia, n. 52, p. 163-182, jul 2006.

_______________. O paradigma de gênero: da questão criminal à questão humana. In:


CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999.

_______________. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão.


1a ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2012.

AUGUSTO, Acácio. Juridicialização da vida: democracia e participação. Anarquia e o


que resta. Psicol. Soc. [online]. 2012, vol.24, n.spe, pp.31-38.

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à


sociologia do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002.

BATISTA, Nilo. Só Carolina não viu - violência doméstica e políticas criminais no Brasil.
In: Mello, A. R. (Org.). Comentários à Lei de Violência Doméstica e Familiar Contra a
Mulher. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editores, 2007.

BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro:


Editora Revan, 2011.

BECKER, Howard S. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Hucitec, 1999.

________________, e GEER, Blanche. Participant observation: The analysis of qualitative


field data. In R. N. Adams, & J. J. Preiss (Eds.), Human Organization Research. Dorsey:
Homewood, 1960, p. 28-32

BERGALLI, Roberto e BODELÓN Encarna. La cuestión de las mujeres y el derecho penal


simbólico. Anuario de Filosofía del Derecho IX. p. 43-73, 1992.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 11a edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
2012.

BRAITHWAITE, John. Setting standards for restorative justice. The British Journal of
Criminology. 2002. p. 563-577

BRANDÃO, Cristiane. Violência contra a mulher e as prática institucionais. Ministério da


Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos. Brasília. Ipea, 2015. Disponível em:

94
http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2016/02/PoD_52_Cristiane_web-1.pdf Acesso
em 10 de julho de 2017.
Brasil, (2014). Tolerância Social à Violência contra as Mulheres. IPEA (Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada). Disponível em:
https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres.pd
f Acesso em 20 de julho de 2018.

CAMPOS, C.H. Lei Maria da Penha: necessidade um novo giro paradigmático. RBSP, v.
11, n. 1, p. 10-22. 2017.

CARVALHO, Salo de. Considerações sobre as incongruências da justiça penal


consensual: retórica garantista, prática abolicionista. In: WUNDERLICH, Alexandre;
CARVALHO, Salo de (orgs.). Diálogos sobre a justiça dialogal: teses e antíteses sobre os
processos de informalização e privatização da justiça penal. Rio de Janeiro, 2002.

CASARA, Rubens R. R. Poder Judiciário: tradição e opressão. Disponível em:


http://justificando.cartacapital.com.br/2014/11/15/poder-judiciario-tradicao-e-opressao/
Acesso em 15 /11/2018.

CHRISTIE, Nils. Conflicts as Property. In: The British Journal of Criminology, vol. 17, n. 1,
1977.

_____________ Limites à dor: O Papel da Punição na Política Criminal – 2a tiragem –


Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017.

COHEN, Stanley. The Punitive City: Notes on the Dispersal of Social Control.
Contemporary Crises 3. 1979, p. 339-363.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Entre práticas retributivas e restaurativas: a Lei


Maria da Penha e os avanços e desafios do Poder Judiciário. 2a Edição da Série justiça
Pesquisa. Realização: Universidade Católica de Pernambuco. 2017. Disponível em
http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/04/69f98306e01d7a679720c82bf016b8ea.p
df Acesso em 03 de agosto de 2018.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Pilotando a Justiça Restaurativa: o papel do


Poder Judiciário. Relatório Analítico Propositivo Justiça e Pesquisa Direitos e Garantias
Fundamentais. Realização: Fundação José Arthur Boiteux da Universidade Federal de Santa
Catarina – Florianópolis. 2018.
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
Disponível em:

CRENSHAW, Kimberle. A interseccionalidade da discriminação de raça e gênero. 2002.


Disponível em: http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp- content/uploads/2012/09/Kimberle-
Crenshaw.pdf Acesso em: 13 de novembro de 2017.

DAVIS, Angela. Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra o racismo.


Transcrição da palestra proferida na Universidade Federal da Bahia. Disponível em
https://medium.com/revista-subjetiva/transcrição-da-palestra-de-angela-davis-atravessando-o-
tempo-e-construindo-o-futuro-da-luta-contra-6484111fe25a Acesso em 02/08/2018.

95
DE FOLTER, Rolf S. Sobre a fundamentação metodológica do enfoque abolicionista do
sistema de justiça penal – uma comparação das ideias de Hulsman, Mathiesen e
Foucault. Revista Verve, n. 14, p. 180-215, 2008.

DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1330-1800: uma cidade sitiada.


Tradução Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

DE VITTO, Renato Campos Pinto. Justiça Criminal, Justiça Restaurativa e Direitos Humanos.
In: BRASIL. Ministério da Justiça. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento –
PNUD. Justiça Restaurativa: coletânea de artigos. C. Slakmon, R. de Vitto, R. Gomes Pinto
(org.). Brasília, 2005, p. 41-51

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Editora Nau, 2005.

GARAPON, Antoine. A justiça reconstrutiva. In: GARAPON, Antoine; GROS, Frédéric;


PECH, Thierry. Punir em democracia. E a justiça será. Lisboa: Piaget, 2001.
http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm Acesso em 20 de julho de 2018.

GREGORI, Maria Filomena. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações


violentas e a prática feminista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

HULSMAN, Louk. In pensar em clave abolicionista. In: Novos estudos de vitimologia /


Ester Kosovski, Heitor Piedade Junior, organizadores. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2011.

_____________ e CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas: o sistema penal em


questão. Trad.: Maria Lúcia Karan. 1ª edição. Niterói: Editora LUAM, 1993.

HUNGRIA, Nelson e LACERDA, Romão Côrtes de. Comentários ao Código Penal. Vol.
VIII. Arts. 197 a 249. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

JACCOUD, Myléne. Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiça


Restaurativa. In: BRASIL. Ministério da Justiça. Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento – PNUD. Justiça Restaurativa: coletânea de artigos. C. Slakmon, R. de
Vitto, R. Gomes Pinto (org.). Brasilia, 2005, p. 163-187.

KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. Discursos Sediciosos: Crime, direito e sociedade.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, ano 1, n. 1,1996.

LARRAURI, Elena. Mujeres, derecho penal y criminología. Madrid. Siglo veintiuno, 1994.

_______________. Tendencias actuales de la justicia restauradora. Revista Brasileira de


Ciências Criminais, ano 12, no 51. São Paulo: RT, pp. 67-105, 2004.

_______________. ¿Victmología: quienes son las victimas? ¿Cuales sus derechos? Cuales
sus necesidades? Jueces para la Democracia. N. 15. 1992, p. 21-31.

MATHIESEN, Thomas. Prison On Trial. Criminal Policy Series. Third Edition. Winchester
UK: Waterside Press, 2006.

96
MAXWELL, Gabrielle. A Justiça Restaurativa na Nova Zelândia. In: SLAKMON, C.; DE
VITTO, R.; PINTO, R. Gomes (Org.). Justiça Restaurativa. Brasília, DF: Ministério da Justiça
e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, 2005, p. 279-293.

MEDEIROS, Carolina Salazar l’Armée Queiroga de. Reflexões sobre o punitivismo da lei
“Maria da Penha” com base em pesquisa empírica numa vara de violência doméstica e
familiar contra a mulher do Recife. 2015. 158 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito,
Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2015.

MÔNICO, Lisete et al. A Observação Participante enquanto metodologia de investigação


qualitativa. In: CONGRESO ÍBERO-AMERICANO EM INVESTIGACIÓN
CUALITATIVA, 6, 2017, Salamanca, Espanha. Anais... Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/318702823_A_Observacao_Participante_enquanto_
metodologia_de_investigacao_qualitativa. Acesso em: 05 dezembro de 2018

MONTENEGRO, Marília. Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica. 1a


edição. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2015.

MORGADO, Helena Zani. Direito Penal Restaurativo: em busca de um modelo adequado


de justiça criminal. 1a edição. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2018.

MORRIS, Allison. “Criticando os Críticos. Uma breve resposta aos críticos da Justiça
Restaurativa”. In: SLAKMON, C.; DE VITTO, R.; PINTO, R. Gomes (Org.). Justiça
Restaurativa. Brasília, DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento - PNUD, 2005, p. 446

PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça Restaurativa: da teoria à prática. São


Paulo: IBCCRIM, 2009.

PASSETTI, Edson et al (orgs.). A atualidade do abolicionismo penal. Curso livre de


abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Editora Revan. p. 13-33. 2004

_______________. Ensaio sobre um abolicionismo penal. Revista Verve, n.9, 2006.

PRANDO, Camila Cardoso de Mello. O que veem as mulheres quando o direitos as olha?
Reflexões sobre as possibilidades e os alcances de intervenção do direito nos casos de
violência doméstica. Revista de Estudos Criminais 60. Janeiro/Março 2016.

PRANIS, Kay. Processos Circulares. São Paulo: Palas Athenas, 2012.

RAUPP, Mariana; BENEDETTI, Juliana Cardoso. A implementação da Justiça


Restaurativa no Brasil: Uma Avaliação dos Programas de Justiça Restaurativa de São
Caetano do Sul, Brasília e Porto Alegre. Revista Ultima Ratio. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007

RODRIGUES, Ellen; RODRIGUES, Sueli; DUTRA, Yasmin. Diga não à violência contra a
mulher: reflexões e possibilidades à luz da extensão acadêmica. Artigo publicado nos
Anais do 8o Congresso de Ciências Criminais – PUCRS, 2017.

97
ROSENBLATT, Fernanda Fonseca. Em Busca das Respostas Perdidas: Uma perspectiva
crítica sobre a justiça restaurativa. In: Gisele Mendes de Carvalho; Felipe Augusto Forte de
Negreiros Deodato; Felix Araújo Neto. (Org.). Criminologias e Política Criminal II. 1a ed.
Florianópolis: CONPEDI, 2014, v., p. 443-467.

RUSCHE, G.; KIRCHHEIMER, O. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

SAFFIOTI, H.I.B., ALMEIDA, S.S. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de


Janeiro: Revinter, 1995

SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: o novo modelo de justiça criminal e
de gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007

SOARES, Barbara Musumeci. Mulheres invisíveis: violência conjugal e as novas políticas


de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

SPIVAK, C. Gayatri. Pode o subalterno falar? Trad. de Sandra Regina Goulart Almeida;
Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

STUBBS, Julie. Domestic violence and women’s safety: Feminist challenges to restorative
justice In Strang H & Braithwaite J (eds.) Restorative justice and family violence Cambridge
University Press, Melbourne, 2002. p 42-61

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015. Homicídio de Mulheres no Brasil.


Brasília, Ministério da Justiça, 2015. Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br
Acesso em 20 de novembro de 2017.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal


Brasileiro. 12a edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl et. al. Direito Penal Brasileiro. Primeiro Volume – Teoria
Geral do Direito Penal. 2a edição. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

_______________. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema


penal. Tradução Vania Romano Pedrosa, Amir Lopez Conceição. 5a edição. Rio de Janeiro:
Ed. Revan, 2001.

_______________. O inimigo no direito penal. Tradução Sérgio Lamarão – Rio de Janeiro:


Editora Revan 2a edição,r 2014.

ZEHR, Howard. Trocando as lentes: justiça restaurativa para o nosso tempo. 3a edição.
São Paulo: Palas Atenas, 2018.

98

Você também pode gostar