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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Faculdade de Direito

Mariel Muraro

UPP E UPS: UM PROJETO DE GOVERNAMENTALIDADE


NEOLIBERAL

Rio de Janeiro
2018
Mariel Muraro

UPP e UPS: Um projeto de governamentalidade neoliberal

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Direito, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro como requisito
parcial para obtenção do título de Doutor.
Área de concentração: Cidadania, Estado
e Globalização. Linha de Pesquisa: Direito
Penal.

Orientadora: Prof.a Dr.a Vera Malaguti Batista

Rio de Janeiro
2018
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CCS/C

M972 Muraro, Mariel.

UPP e UPS: um projeto de governamentalidade neoliberal / Mariel


Muraro. - 2018.
347 f.
Orientador: Prof.ª Dra. Vera Malaguti Batista.

Tese (Doutorado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro,


Faculdade de Direito.

1. Policiamento comunitário - Teses. 2. Biopolítica – Teses. 3. Racismo –


Teses. I. Batista, Vera Malaguti. II. Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Faculdade de Direito. III. Título.

CDU 351.74

Bibliotecária: Marcela Rodrigues de Souza CRB7/5906

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que
citada a fonte.

_______________________________________ _____________________
Assinatura Data
Mariel Muraro

UPP e UPS: Um projeto de Governamentalidade Neoliberal

Dissertação apresentada, ao Programa de


Pós-graduação Stricto Sensu da Faculdade
do Estado do Rio de Janeiro como requisito
parcial para a obtenção do título de
Doutor em Direito Penal.

Aprovada em 07 de fevereiro de 2018.


Banca Examinadora:

____________________________________________
Prof.a Dr.a Vera Malaguti Batista (Orientadora)
Faculdade de Direito - UERJ

____________________________________________
Prof. Dr. Nilo Batista
Faculdade de Direito - UERJ

____________________________________________
Prof. Dr. Davi Tangerino
Faculdade de Direito - UERJ

____________________________________________
Prof.a Dr.a Katie Silene Cáceres Argüello
Universidade Federal do Paraná

____________________________________________
Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos
Universidade Federal do Paraná

Rio de Janeiro
2018
À Favela.
AGRADECIMENTOS

São muitas as pessoas que tenho que agradecer, uma vez que considero
esse momento reflexo de todo o trabalho acadêmico e científico.
Gostaria de agradecer inicialmente à minha orientadora, professora Dra. Vera
Malaguti Batista, que com toda a delicadeza e carinho me orientou durante o período
do doutorado, além de ser uma grande criminóloga, o que nos inspira a seguir em
frente. Agradecer aos membros da banca, especialmente ao professor Dr. Juarez
Cirino dos Santos que desde o início acreditou em mim, à professora Dra. Katie Silene
Cáceres Argüello, que me orientou no mestrado e sempre me incentivou a seguir em
frente, e ao professor Dr. Maurício Stegemann Dieter, que me fez acreditar que era
possível o doutorado na UERJ.
Tenho que agradecer a minha família, que me deu todo o suporte para chegar
até aqui, minha mãe, meu pai e meu irmão. Preciso agradecer a meu marido Guilherme
que sempre me apoia e me incentiva, em todos os sentidos, em assumir projetos
como este e a sua família. Gostaria de agradecer ainda à Elizabeth, que foi uma
grande amiga, praticamente segunda mãe, me acolhendo no Rio de Janeiro.
Preciso ainda fazer um agradecimento especial ao meu sócio, Rafael Augusto
da Silva, que esteve sempre pronto para me auxiliar e me substituir no escritório
quando necessário.
Gostaria, ainda, de agradecer à direção, professores e alunos da FAPI –
Faculdade de Pinhais, ambiente que tem estimulado discussões e tem dado apoio aos
projetos acadêmicos. Agradecer à UFPR, que foi minha casa durante a graduação e o
mestrado, e que me recebeu como professora substituta do Núcleo de Prática Jurídica.
Agradeço a todos os meus amigos que estimularam tantas reflexões, me
indicaram bibliografias, ou simplesmente torceram para que tudo desse certo, Bruno
Zavataro, Michelle Gironda Cabrera, Edna Torres Felício Câmara, Thais Oliveira
Lima, Marcos Roberto de Souza Peres, Washington Pereira da Silva dos Reis, Caio
Patrício de Almeida, Cassio Eduardo Zen, Eduardo Henrique Titão Mota, Semirames
Katthar, Camilla Medeiros, Lucas Matos, João Guilherme Rooda, Ana Luisa Leão,
Gabriel Schulman, Instituto Raízes em Movimento e todos os seus colaboradores e
colaboradoras, e APOIO.
Eu não preciso te provar nem tampouco me justificar,
é só olhar a manchete do jornal, tá explícito lá,
Duda, Eduardo, os cinco meninos mortos em costa barros
mostra a triste realidade dos fatos que nos acompanham
desde a época em que o nosso povo foi escravizado.
Somos humilhados, marginalizados, exterminados,
nossos direitos diariamente são violados.
É louco quem não se importa com choro de uma mãe
enterrando o seu segundo filho.
Eu falo da guerra e da falsa paz,
pois o meu poema é universal,
é o pobre que sofre, é o pobre que geme,
é o poema do povo oprimido,
dessa minha raça que sangra, que chora,
é o poema da multidão.
Mc Martina
RESUMO

MURARO, Mariel. UPP e UPS: um projeto de governamentalidade neoliberal. 2018.


347 f. Tese (Doutorado em Direito Penal) – Faculdade de Direito. Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018.

O presente trabalho procura fazer uma análise da instalação das Unidades de


Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro, comparando com o caso das Unidades Paraná
Seguro. Para tanto, adota como marco teórico a Criminologia Crítica e procura
desenvolver uma metodologia de inspiração etnográfica. A presente pesquisa tem o
objetivo de verificar a forma de incidência do mecanismo penal da seletividade e do
controle social, com os quais operam a “polícia comunitária”, bem como verificar de
que forma se coloca em prática essa seletividade, dirigida especialmente para as
regiões da cidade consideradas pelo Estado como mais violentas e onde supostamente
atua o tráfico de drogas. Apesar de ser uma proposta de polícia comunitária, nenhuma
alteração significativa quanto à atuação policial fora percebida, sendo constantes as
denúncias da população de abusos e violência sofridas por parte desses agentes.
Diante desse quadro é possível concluir que essa política pública de segurança
objetiva aumentar o controle social a partir da atuação dos órgãos policiais sobre as
áreas pobres da cidade, para fins de maior contenção social e neutralização,
executando um projeto de governamentalidade neoliberal.

Palavras-chave: UPP. UPS. Policiamento Comunitário. Governamentalidade.


Biopolítica. Racismo. Pobreza. Marginalização.
ABSTRACT

MURARO, Mariel. UPP and UPS: A Project Neoliberal governmentality. 2018. 347 f.
Thesis (Doctorate in Criminal Law) - Law School. State University of Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, 2018.
This thesis attempts to analyze the installation of Police Pacification Unit in Rio
de Janeiro, compared to the case of Paraná Pacification Units. Therefore, the theoretical
framework adopts the Critical Criminology and seeks to develop a ethnographic
inspiration methodology. This research aims to verify the form of incidence of the
criminal mechanism of selectivity and social control, with which the "community
police" operates. Also verifies how this selectivity is put into practice, aimed for
particular regions in the city. These, considered by the state as most violent areas
and, supposedly, where drug trafficking happens. Although a proposal for community
police, no significant changes in the police action was perceived. With constant
complaints from the population of abuse and violence perpetrated by these agents.
Given this situation we can conclude that this safety public policy objectifies the
increase of social control from the actions of law enforcement agencies on poor
areas of the city. For the purpose of greater social containment and neutralization,
running a neoliberal governmentality project.
Keywords: UPP. UPS. Community Policing. Governmentality. Biopolitics. Racism.
Poverty. Marginalization.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Mapa com a localização das UPPs ................................................... 149


Figura 2 – UPP do Alemão ................................................................................. 170
Figura 3 – Vista do Morro do Alemão ................................................................. 170
Figura 4 – Estação do teleférico do Alemão ....................................................... 171
Figura 5 – Abordagem policial ............................................................................ 192
Figura 6 – Calendário de tiros ............................................................................ 199
Figura 7 – Reportagem do jornal o Estado de São Paulo .................................. 202
Figura 8 – Mapa da Vila Zumbi .......................................................................... 245
Figura 9 – Mapa da UPS da Vila Zumbi e Liberdade ......................................... 245
Figura 10 – Foto tirada em uma das visitas na Vila Zumbi, mostrando as vias
ainda sem asfalto .............................................................................. 246
Figura 11 – Sobradinhos 1 ................................................................................... 247
Figura 12 – Sobradinhos 2 ................................................................................... 248
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................... 12
1 O POLICIAMENTO COMUNITÁRIO COMO UM PROJETO DE
GOVERNAMENTALIDADE .................................................................. 25
1.1 Governamentalidade, dispositivos de segurança e biopolítica ...... 26
1.1.1 Biopolítica e racismo: a potência letal do projeto de “segurança
pública” .................................................................................................. 30
1.2 Do Estado Social ao Estado Penal: o uso da violência como
meio de manutenção de privilégios ................................................... 42
1.3 UPP e UPS: um projeto de governamentalidade neoliberal ............ 57
1.4 Direito à segurança versus segurança dos direitos ......................... 64
1.4.1 A Remilitarização como renovação do belicismo nas favelas ............... 65
1.4.2 Segurança aos direitos .......................................................................... 75
1.5 Mídia: a segurança como produto e o medo como vetor da
violência ............................................................................................... 80
2 AS BASES HISTÓRICAS E IDEOLÓGICAS PARA O
SURGIMENTO DAS UNIDADES DE POLÍCIA DE PACIFICAÇÃO
NO BRASIL ........................................................................................... 85
2.1 A instituição policial: do Brasil Colônia e Imperial à reabertura
democrática ......................................................................................... 86
2.1.1 Brasil Colônia e Império: a força do poder real como combate à
desordem............................................................................................... 86
2.1.2 A Polícia na República Velha: A Formação do Poder Bélico-Militar e
o Positivismo Criminológico ................................................................... 89
2.1.3 República Nova e a Atuação Policial na Repressão Política ................. 99
2.1.4 1964-1985: A Ditadura Militar e o Crime como Guerrilha Urbana ......... 102
2.1.5 Reabertura Democrática: as décadas de 1980 e 1990 e a crítica do
contexto ................................................................................................. 106
2.2 Guerra às drogas: o estereótipo do traficante como novo inimigo .... 112
2.2.1 O surgimento do discurso médico-jurídico em torno das drogas ........... 112
2.2.2 O discurso da transnacionalização ........................................................ 116
2.2.3 As bases ideológicas que sustentam o sistema brasileiro de
proibição de drogas ............................................................................... 118
2.2.3.1 Ideologia da Defesa Social .................................................................... 118
2.2.3.2 Doutrina da Segurança Nacional ........................................................... 120
2.2.3.3 Movimentos de Lei e Ordem.................................................................. 123
2.2.3.4 Estado de Exceção e Direito Penal do Inimigo ...................................... 129
2.2.4 Crítica ao discurso da criminalização das drogas .................................. 132
3 A IMPLANTAÇÃO DAS UNIDADES DE POLÍCIA PACIFICADORA ..... 136
3.1 O policiamento comunitário como eufemismo ................................. 138
3.2 A implantação das UPPs no Rio de Janeiro: o prenúncio de
uma tragédia urbana ........................................................................... 145
3.2.1 A implantação da UPP no Complexo do Alemão .................................. 151
3.3 Primeira visita ao Complexo do Alemão ........................................... 156
3.3.1 A favela.................................................................................................. 157
3.3.2 O Movimento ......................................................................................... 159
3.3.3 A Polícia e a UPP .................................................................................. 160
3.3.4 Fim da visita .......................................................................................... 162
3.4 Instituto Raízes em Movimento .......................................................... 164
3.4.1 Vamos desenrolar ................................................................................. 166
3.5 A perspectiva dos moradores sobre a relação entre população,
polícia e tráfico .................................................................................... 169
3.5.1 O Morro do Alemão e o teleférico .......................................................... 169
3.5.2 O início do movimento ........................................................................... 173
3.5.3 A UPP: a experiência dos moradores .................................................... 176
3.5.4 Guerra e medo: a estratégia bélico-militar imposta aos favelados ........ 179
3.5.5 A relação do morador com a polícia ...................................................... 186
3.5.5.1 Corrupção policial e o “direito penal subterrâneo” ................................. 190
3.5.6 Relação do morador com o tráfico ......................................................... 193
3.5.7 A Posição do Estado e a Rotulação da “Classe Suspeita” .................... 195
3.5.8 Futuro da UPP ....................................................................................... 196
4 EXPERIÊNCIAS DE POLICIAMENTO COMUNITÁRIO NO
PARANÁ ............................................................................................... 200
4.1 Sistema Modular de Policiamento Urbano ........................................ 200
4.2 Projeto Povo ........................................................................................ 205
4.3 Totens Policiais ................................................................................... 207
4.4 Retorno do Projeto Povo e Crise no Sistema Penitenciário ............ 208
4.5 Policiamento comunitário no Paraná e o Sistema Koban................ 209
4.6 Projeto Paraná Seguro ........................................................................ 216
4.6.1 Unidades Paraná Seguro (UPS) ............................................................ 218
4.6.2 A implantação da UPS na Vila Zumbi .................................................... 231
4.6.3 O cotidiano dos moradores da Vila Zumbi ............................................. 243
4.6.3.1 Contornos da Vila Zumbi e Liberdade e os conflitos por moradia ......... 244
4.6.3.2 Comércio varejista de drogas ................................................................ 249
4.6.3.3 A relação da comunidade com a polícia ................................................ 253
CONCLUSÃO ....................................................................................... 257
REFERÊNCIAS ..................................................................................... 260
ANEXO 1 - DECRETO N.o 41.650, DE 21 DE JANEIRO DE 2009....... 280
ANEXO 2 - DECRETO N.o 41.653, DE 22 DE JANEIRO DE 2009....... 282
ANEXO 3 - DECRETO N.o 42.787, DE 06 DE JANEIRO DE 2011....... 284
ANEXO 4 - DECRETO N.o 44.177, DE 26 DE ABRIL DE 2013............ 293
ANEXO 5 - DECRETO N.o 45.186, DE 17 DE MARÇO DE 2015 ......... 299
ANEXO 6 - INFORMAÇÃO 007/2017 – 1.o CRPM ............................... 307
ANEXO 7 - LEI N.o 16.583, DE 29 DE SETEMBRO DE 2010 .............. 316
ANEXO 8 - LEI N.o 18.377, DE 15 DE DEZEMBRO DE 2014 .............. 319
ANEXO 9 - DECRETO N.o 8.306, DE 24 DE MAIO DE 2013 ............... 322
ANEXO 10 - TERMO DE COOPERAÇÃO TÉCNICA N.o 001/2013 ..... 326
ANEXO 11 - AÇÕES DE DESENVOLVIMENTO LOCAL E
CIDADANIA – UNIDADE/PARANÁ SEGURO (UPS) ........................... 336
ANEXO 12 - TERMO DE COOPERAÇÃO TÉCNICA N.o 013/2014 ..... 339
12

INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende apresentar um paralelo entre as políticas de


implantação do policiamento comunitário no Rio de Janeiro e no Paraná, especialmente
apresentando o resultado da pesquisa realizada nas áreas de UPPs e UPSs.
O interesse nesse tema surgiu durante a pesquisa do mestrado, na qual foi
possível verificar o grande apelo dos órgãos midiáticos do Paraná para a estruturação
de uma forma de policiamento que pudesse estar mais próxima da população, a fim
de se evitar a crescente violência e “criminalidade”, que, supostamente, representam
a maior preocupação da população. Esse apelo procurava traçar um paralelo com as
políticas de segurança pública do Rio de Janeiro, especialmente em razão da
implantação das Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs.
No entanto, o que se viu foi sempre o apelo a um policiamento ostensivo e
não preventivo, a um policiamento violento e não pacífico, em especial nas áreas em
que supostamente essa “criminalidade” estaria concentrada, com supostos vínculos
com o tráfico de drogas, com o escopo de defender os "cidadãos de bem".
Esse discurso é internalizado pelos órgãos policiais, os quais reproduzem a
seletividade, tanto do crime, quanto da pessoa criminalizada, bem como da necessidade
de expansão do seu controle social, o que ocorreu com a implantação das Unidades
de Polícia Pacificadora na cidade de Curitiba, chamadas de UPS – Unidades Paraná
Seguro, a partir de março de 2012, com o apoio da companha do Jornal Gazeta do
Povo, intitulada "Paz sem voz é medo".
Tal campanha, objeto de análise durante o mestrado, utilizava como argumento
para convencimento da população quanto à implantação da UPS no Paraná o exemplo
carioca de implantação das UPPs, trazendo uma série de reportagens sobre o tema.
Durante essa campanha foi constantemente sugerido como solução para a
suposta violência e "criminalidade" que assolam as cidades o reforço da instituição
policial. No entanto, seu contexto é a realização dos Jogos da Copa do Mundo e as
Olimpíadas, no ano de 2014 a 2016. Assim, foram implantadas Unidades de Polícia
Pacificadora em praticamente todas as capitais que foram sedes dos jogos, tendo
como modelo as UPPs, no Rio de Janeiro.
Apesar de esta "nova polícia" se intitular pacificadora, tem-se encontrado relatos
de abusos de autoridade e de violência, não se verificando, na prática, uma mudança
13

de atitude ou de mentalidade da forma de atuação dos órgãos policiais. Ou seja,


apesar de ser uma proposta de “polícia pacífica”, de polícia próxima da comunidade,
a mesma concepção de ordem, de controle da moralidade e violência empregadas
no trabalho policial continuam sendo reproduzidas.
A pergunta que não foi respondida quando da finalização do trabalho de
mestrado é se mais segurança se faz com mais polícia, sendo essa a problemática
motivadora da presente pesquisa, propondo-se agora a verificação da implantação
das UPPs e UPSs, bem como se esses projetos entregam o que prometem. Como
estudado naquela oportunidade, a mídia de massa comercializa o conceito de
segurança como sendo mais polícia, no sentido amplo: polícia militar, civil, municipal,
força nacional, e é possível dizer que o senso comum também acredita que a
segurança será alcançada com a presença de mais policiais e com seu aparelhamento
com armamento, monitoramento eletrônico, carros e "caveirões".
A hipótese levantada no presente trabalho seria de que a polícia age de forma
ostensiva, violenta e discricionária, não havendo mudança desse agir quando da
implantação das Unidades de Polícia Pacificadora na Cidade de Curitiba e na Cidade
do Rio de Janeiro. Ainda, que a implantação das UPSs e UPPs não passa de uma
política pública de segurança que procura aumentar o controle social a partir da
atuação dos órgãos policiais sobre a população “marginalizada” 1 da sociedade, para
fins de maior contenção social e segregação.
A UPP e a UPS seriam um projeto para o aumento do controle social sobre a
população marginalizada e para a tomada do território por parte do Estado, com a
consequente comercialização desse espaço para investimentos privados, além da
contenção militarizada dos indesejados. Embora no início do projeto tenha sido
verificado o aumento da sensação de segurança nas ruas, especialmente no modelo
carioca, sentida pela classe média e pelos turistas, bem como uma redução nos índices
de homicídio em ambas as localidades, a violência migrou para outras regiões, e

1 Para o presente trabalho, o conceito de marginalização será trabalhado no léxico de Loïc Wacquant e
compreendida como lugares e pessoas que são colocados à margem da sociedade, são estigmatizados
como párias urbanos, atraindo a atenção negativa da sociedade e das políticas do Estado, uma
vez que são considerados problema, violentos, imorais e por isso são temidos. (WACQUANT, L.
Os condenados da cidade: estudos sobre marginalidade avançada. 2.ed. Tradução de João Roberto
Martins Filho. Rio de Janeiro: Revan/FASE, 2005).
14

hoje esses índices não são mais verificados devido à ruína do projeto, quando
observado a partir dos objetivos estatais declarados.
Assim, quando se busca analisar sobre a perspectiva marxista da aparência e
da essência2, essa ruína é, na verdade, um sucesso. Em outras palavras, as funções
declaradas não foram atingidas, como implantação de serviços básicos sociais, inserção
social, deslocamento do tráfico de drogas, mas as funções ocultas foram alcançadas,
pois essa política conseguiu aumentar o controle social nas áreas pobres com a
utilização de forças militares, promovendo uma militarização da segurança pública; a
apropriação da economia popular das favelas; estabelecendo o controle do lugar; e
os ganhos políticos e econômicos por parte do Estado com a visibilidade do projeto.
Essa proposta de instalação das UPPs teve como contexto a promoção da
segurança para a realização dos megaeventos – Copa do Mundo e Olimpíadas –,
por isso colocada de forma estratégica no território para a formação de um cinturão
para a passagem dos turistas. Já as UPSs vieram no mesmo período em que
Curitiba iria receber a Copa do Mundo, sendo também escolhidos os lugares de
forma estratégica para a realização com segurança desse evento, mas também para
atender a outros interesses privados.
Pretende-se, portanto, apresentar a ruína desse projeto chamado de polícia
comunitária ou de proximidade e suas inconsistências, bem como a impossibilidade
de o Estado mantê-lo e como ele de fato se deu, uma vez que não foi implementada
a questão social, prometida no projeto original. Pretende-se, ainda contrapor a esse
abandono às "conquistas" estatais versus a resistência popular.
Para tanto, serão analisadas as razões dessa atuação policial e desse projeto
de segurança pública que iniciou no Rio de Janeiro e foi recebido no Paraná, assim
como em outros estados.
Ao longo da tese, será demonstrado que, em diversos momentos, a atuação
policial é flagrantemente violadora dos direitos humanos, sendo violenta e seletiva,
justificando-se, assim, o estudo do tema a partir do marco teórico da criminologia

2 Marx descreve, no 18 Brumário, a relação entre o par dialético aparência e essência: "E assim
como na vida privada distingue-se o que um homem pensa e diz de si mesmo daquilo que ele é e
faz na realidade, convém igualmente, nas lutas históricas, distinguir ainda mais a retórica e as
fantasias dos partidos, de um lado, de sua verdadeira natureza e de seus verdadeiros interesses,
de outro, distinguir o que eles imaginam ser daquilo que eles realmente são". (MARX, K. O 18
brumário e cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p.52).
15

crítica, bem como a necessidade de serem desenvolvidas reflexões a respeito da


atuação do órgão de controle social em questão.
A Criminologia Crítica teve início com a mudança de paradigma no estudo da
questão criminal, que, no paradigma etiológico, preocupava-se em explicar a origem da
conduta criminosa, voltando-se ao estudo no delinquente e das razões pelas quais
ele foi levado à prática do delito.
A criminologia tradicional, de base positivista, serve para mistificar os mecanismos
de atuação do sistema penal, reproduzindo os estereótipos e preconceitos a partir
do paradigma etiológico, o qual atribui determinadas características psicológicas,
biológicas e socioambientais a certos indivíduos, as quais indicariam a sua possível
propensão à prática criminosa, conforme será exposto brevemente no segundo capítulo.
Autoriza-se, portanto, a eliminação e neutralização daqueles que apresentam essas
características sob a ideologia da defesa social ainda presente contemporaneamente.
Porém, a partir do desenvolvimento das teorias sociológicas criminais, nas
décadas de 1950 e 1960, a teoria do labeling approach, ou também chamada de
teoria da reação social, transforma a visão sociológica a respeito do crime e do
criminoso, passando a afirmar que o crime é uma construção social. Nesse sentido,
o crime se constitui a partir da rotulação de determinadas condutas como ilícitas,
com a criação de leis criminalizadoras, bem como se define "o criminoso" por meio
do controle exercido sobre a população, pelas agências do controle social, as quais
englobam a instituição policial. A teoria da rotulação se fundamenta em dois conceitos:
1) "o crime não é uma qualidade do ato, mas um ato qualificado como
criminoso por agências de controle social"3, ou seja, um ato é definido
como crime de acordo com um interesse maior, que influencia as
agências de controle social;
2) são as agências de controle social que produzem o crime, e não o
crime que dá origem ao controle social. O homem é rotulado quando
pratica um ato qualificado como desviante, de forma que esse
processo ocorre pela criminalização primária, ou seja, a criação da
norma penal que qualifica o ato como criminoso, e pela criminalização

3 BECKER, H. S. Outsiders: studies in the sociology of desviance. New York: Free Press, 1963. p.9.
16

secundária, que enquadra o ato praticado por um sujeito nas condições


da criminalização primária.4

Assim, as teorias da reação social indicavam que, na verdade, as agências do


Estado selecionam determinadas condutas e pessoas para lhes atribuir um rótulo, o
de criminoso. A partir desses preceitos, a criminologia crítica busca aprofundar essa
análise, sob a perspectiva de que "A criminalidade é [...] um 'bem negativo', distribuído
desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixada no sistema socioeconômico
e conforme a desigualdade social entre os indivíduos".5
A Criminologia Crítica procurou, portanto, entender os processos de
criminalização para que tal rotulação aconteça, passando a explicar tais fenômenos
a partir da análise econômica das sociedades, apontando a seletividade do sistema
penal como uma variável estrutural do empreendimento capitalista. Essa teoria
adota, portanto, uma postura materialista dialética quando assume que a punição
encabeçada pelo sistema penal seria funcional ao processo de acumulação de
capital, como um instrumento utilizado por ele como parte da estratégia de
contenção social de um certo número de pessoas que foram sendo excluídas do
processo de produção e consumo.6 Nesse sentido, haveria uma forte influência da
economia na forma de atuação estatal, que, por sua vez, determina a forma de
atuação de suas instituições, economia hoje neoliberal.
Rusche e Kirchheimer7 demonstraram, em seu estudo, "Punição e Estrutura
Social", que a toda forma de economia corresponde uma forma de punição, que são
as relações de produção que determinam os métodos de punição, influenciados
assim, pelas forças econômicas e fiscais.
Assim, o sistema penal, através de sua seletividade estigmatizante, submetido a
uma ordem econômica, teria a função de neutralização daqueles selecionados, exclusão
e contenção daqueles que não estão inseridos na forma de produção, atingindo

4 BECKER, H. S. Outsiders: studies in the sociology of desviance. New York: Free Press, 1963.

5 BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal.
Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia,
2002. p.161.

6 GIORGI, A. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan – ICC, 2006.

7 RUSCHE, G.; KIRCHHEIMER. Punição e estrutura social. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan - ICC, 2004.
17

frequentemente pessoas marginalizadas e as condutas mais frequentemente praticadas


por elas, sob a bandeira da proteção social, a qual funciona como uma justificativa
para encobrir os reais objetivos e efeitos dessa atuação seletiva, justificando-se na
redução dos riscos criminais sociais, na medida em que a punição alcança grupos
de pessoas com potencial criminoso.
Como será demonstrado, a ordem econômica neoliberal influencia a forma de
atuação do estado e suas políticas de controle social, aumentando o sentimento de
insegurança, exacerbando o individualismo e determinando uma maior estratificação
social, deixando um contingente de pessoas fora da ordem de produção e consumo,
utilizando-se do Sistema Penal8 como instrumento de gerenciamento desses sujeitos
excluídos.
Daí porque se revela de grande importância o estudo a respeito da forma de
atuação das agências de controle social, em especial da polícia, pois é o órgão que faz
normalmente o primeiro contato com o crime e o criminalizado e acaba por aplicar tais
critérios seletivos, que contribuem para o aumento do encarceramento, juntamente
com os padrões institucionais de atuação policial, a política de guerra às drogas e
políticas importadas de tolerância zero, o estado de exceção, a doutrina da
segurança nacional e a permanência do positivismo criminológico como cultura,
gerando um aumento nos índices de encarceramento, alinhado com o afastamento da
assistência social e uma mudança no tratamento dos setores mais marginalizados
da população, que hoje passam a ser clientes do sistema penal.
A presente pesquisa, portanto, parte do pressuposto de que na linha de frente do
sistema penal está a instituição policial, que sofre os constrangimentos estatais, bem
como é levada a agir, nesse contexto, de forma arbitrária. Como aponta Zaffaroni,
Nilo Batista e outros autores9, na América Latina, os atores das agências de controle
social são recrutados nas camadas sociais mais vitimizadas, especialmente aqueles
que serão incorporados à instituição policial e, que por sua vez, fazem o trabalho

8 O sistema penal consiste nos aparelhos criados pelos Estado para controlar o delito, desde a sua
detecção até a execução da pena pelo eventual delinquente, ou seja, o sistema penal é o "controle
social punitivo institucionalizado". (ZAFFARONI, E. R.; PIERANGELI, J. H. Manual de direito penal
brasileiro: parte geral. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v.1. p.63).

9 ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito penal brasileiro. 4.ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2011. v.1.
18

mais sujo e recebem, para tanto, as piores remunerações, o que é chamado de


seleção policizante, e por ser a população marginalizada a que mais sofre com a
ausência do Estado e com as mazelas da criminalização, ela também é a mais
repressora, ou seja, apoia políticas autoritárias e irracionais, o que é chamado de
seleção vitimizante. Como a polícia, em geral, provém desses setores, os próprios
policiais já chegam à corporação com uma mentalidade repressora em relação ao
crime e tendo já incorporados os estigmas e conflitos existentes nessa camada social.
Assim, é necessário aprofundar essas questões e contextualizá-las por meio
da pesquisa empírica, para verificar a forma de incidência do mecanismo penal da
seletividade, que atua tanto em relação à polícia, quanto em relação à população,
bem como, para verificar de que forma a polícia coloca em prática essa seletividade.
Por isso, optou-se por produzir uma pesquisa com inspiração etnográfica no
sentido da desconstrução dessa visão preconceituosa e colonizadora, que busca
construir um canal para dar voz a pessoas silenciadas pela violência e opressão
estatal, produzida pela presença policial. Pensando nessa perspectiva, foi ouvida a
opinião dos moradores do Complexo do Alemão e da Vila Zumbi a respeito da
polícia de pacificação, produzindo observações sobre o campo e entrevistas com
moradores locais.
Janice Caiafa, em seu livro "Aventura das Cidades"10, apresenta um grande
repertório de recomendações a serem adotadas durante a produção de um trabalho
etnográfico. Segundo a autora, a pesquisa etnográfica leva em conta a profusão de
impressões e informações encontradas no campo, não é algo fechado, está sempre
à procura de pistas, devendo afastar-se da tentação de promover uma retificação
pós-fato, de introduzir uma coerência ilusória, pois seria produzir um modelo totalizante.
A pesquisa etnográfica deve se afastar dessa pretensão totalizante, guardando as
particularidades do seu objeto, o que se pretende com a escrita dessa tese.
A pesquisa etnográfica revela questões singulares. Em interessante pesquisa
promovida por Alba Zaluar11, nos anos 80, na favela Cidade de Deus, no Rio de
Janeiro, ela relata que, embora soubesse que o pobre é tratado de forma diferente

10 CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.

11 ZALUAR, A. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo:


Brasiliense, 1985.
19

pela lei e pela distribuição de riqueza, nunca imaginava que encontraria tantas
barreiras para estabelecer um contato mais íntimo, pois acreditava que já tinha esse
contato nos espaços de encontros.
Essa mesma dificuldade foi sentida quando, para a proposta da tese,
iniciaram-se os primeiros contatos. Foram cerca de dois anos para conseguir acesso
aos mesmos lugares e pessoas com as se tentou uma aproximação. Apenas quando
uma pessoa conhecida por estas pessoas me levou até elas, é que me foi oportunizada
a pesquisa. Fui apresentada ao Instituto Raízes em Movimento, com sede no Morro
do Alemão, uma das 13 favelas do Complexo do Alemão, pelo professor Cunca
Bocayuva, que me colocou em contato com os articuladores desse instituto, e fui
convidada para participar de uma reunião de pesquisadores sobre o Complexo do
Alemão. Depois desse primeiro contato, estabeleci uma relação de ajuda mútua,
auxiliando o Instituto na pesquisa sobre as memórias do Alemão, e eles me auxiliaram
na pesquisa empírica colocando-me em contato com vários moradores locais.
Essa percepção também está presente na pesquisa realizada por Tiago
Fabres de Carvalho e José Maria Terra12, de que existe uma divisão entre o que foi
denominado moradores do asfalto e da favela, que causa a demonização do outro
lado da linha. Essa diferenciação entre asfalto e favela é muito peculiar no texto dos
autores, pois procura demonstrar por meio das falas dos moradores da favela, ou
seja, das testemunhas, como as pessoas de fora são vistas, marcando as diferenças
entre essas realidades.
Em Matrix, como chamam o lugar onde fora realizada a pesquisa, a ideia de
ser desenvolvido, conforme transparece na fala das testemunhas, está atrelada à
ideia de ter o habitus do asfalto. E essa tentativa de assimilação se daria por sofrerem
constante humilhação, ou seja, criminalização de sua cultura, sua forma de vestir, de
falar e de se comportar, de modo geral. Essa forma de comportamento é interpretada
pelas pessoas do asfalto como algo problemático.13

12 TERRA, J. M.; CARVALHO, T. F. Justiça paralela: criminologia crítica, pluralismo jurídico e


(sub)cidadania em uma favela do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

13 TERRA, J. M.; CARVALHO, T. F. Justiça paralela: criminologia crítica, pluralismo jurídico e


(sub)cidadania em uma favela do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.
20

Essa visão do asfalto, da cidade codificada, é que promove a situação de


subcidadania aos moradores da favela. São vistos como mera força de trabalho,
como ralé estrutural14, e não como cidadãos portadores de direitos e de identidade.
Embora não concorde com essa divisão caricata entre morro e asfalto, já que
o uso dessas expressões promove uma visão sectarista ao invés de aproximá-los,
as diferenças entre essas realidades ficam perceptíveis quando se inicia a pesquisa
etnográfica.
Segundo Janice Caiafa15, a experiência do campo deve se sobrepor à escrita
e à autoridade do pesquisador. A interpretação não pode obstar a autoridade e a
novidade do campo e isso trabalha contra a tendência generalizante e simplificadora
da vida social. A experiência do campo é que deve inspirar a teoria, ou seja, as
culturas devem ser lidas como um texto e assim interpretadas. O texto deve se
apresentar com a densidade de metáforas, comparações e aproximações que o
etnógrafo cria para garantir a compreensão dos fatos.
No entanto, quando se está em campo, os preconceitos do pesquisador se
afloram, havendo grande frustração e sofrimento diante desse processo, manifestando-se
sentimentos ambíguos. Além de tudo, leva-se tempo até que as pessoas se sintam à
vontade com a presença estranha e que o pesquisador, da mesma forma, se sinta à
vontade para perguntar às pessoas sobre suas experiências de vida.
O que ficou marcado na pesquisa foi que o tema do meu trabalho, ou seja, a
polícia, não era tema das conversas do cotidiano das pessoas. Parecia não haver uma
preocupação específica com a polícia, o que também se apresentou como dificuldade,
uma vez que as pessoas podem não querer falar sobre o tema pesquisado.
Outra recomendação que Caiafa16 faz é de que as pessoas não podem ser
achatadas; deve haver o cuidado para que as pessoas não se tornem "papelão",
proposta da antropologia interpretativa. Existe uma tendência de se preocupar com a
especificidade do acontecimento, no entanto, essa preocupação deve ceder lugar ao
que o campo representa no contexto da cultura. Ou seja, o etnógrafo deve tomar cuidado

14 TERRA, J. M.; CARVALHO, T. F. Justiça paralela: criminologia crítica, pluralismo jurídico e


(sub)cidadania em uma favela do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

15 CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.

16 CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
21

para não se distanciar dos acontecimentos presenciados no campo, reduzindo a


experiência complexa do campo à experiência pessoal do pesquisador como decifrador.
Na pesquisa etnográfica é o campo que traz a possibilidade de desfamiliarização,
de alcançar o estranhamento buscado pelo etnógrafo. Esse estranhamento somente
ocorrerá quando o pesquisador se deixar afetar pelo lugar novo. É preciso estar
disponível. O estranho é um processo, uma qualidade que pode ser atingida e que
depende de um conjunto de acontecimentos no campo. Não só a voz do pesquisador,
mas também outras vozes devem emergir no texto etnográfico. São as marcas de
uma produção coletiva descritas por um escritor etnógrafo.17
Cremos que o que Caiafa recomenda é que o pesquisador não deve julgar as
informações, os dados e as pessoas com as quais tem contato a partir de suas
próprias experiências, o que também se revela uma tarefa muito difícil, pois possuímos
uma forma de enxergar o mundo que deve ser relativizada. Além disso, o pesquisador
deve respeitar as opiniões e a cultura na qual está se inserindo.
Ou seja, a questão levantada é de qual o limite da distância ou da proximidade
que permita o engajamento criador. Como achar o lugar perfeito? A distância teria
um olhar "asseptizado", enquanto que a proximidade um olhar de "contágio". Nessas
duas hipóteses, o etnógrafo perde a força da alteridade e a composição com o
heterogêneo. Por isso, a subjetividade, como um processo de construção coletiva,
que se produz no registro social, deve ser despertada pela simpatia pelo objeto, este
seria o caminho para o campo, pois impede o olhar asséptico, possibilitando uma
aproximação sóbria. Observar e participar é estar lado a lado e atuante com a
preocupação da pesquisa.18
Viveiros de Castro, buscando escrever sobre uma visão antinarcísica da
antropologia, questiona qual é o papel da disciplina em relação ao seu objeto de
estudo. Para essa pergunta afirma que a antropologia está superando o colonialismo de
seus a priori históricos e que está pronta para assumir a missão "[...] de ser a teoria-
prática da descolonização permanente do pensamento"19, ainda que haja discordâncias.

17 CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
18 CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
19 VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutual.
São Paulo: Cosac Naify, 2015. p.20.
22

A visão clássica sobre a antropologia é de que ela trata o outro como "seu"
objeto, representado segundo os interesses do Ocidente, de que haveria um
paternalismo complacente do pesquisador, que descreve o outro como uma ficção,
produto de sua imaginação ocidental.20
Do contrário, uma verdadeira antropologia permitiria o confronto do pesquisador
consigo mesmo, permitindo a reflexão sobre a sua própria cultura. A proposta da
nova antropologia é "pensar com outra mente", produzindo um processo reflexivo, de
criatividade e de imaginação conceitual, "[...] inerentes à vida de todo coletivo,
humano e não-humano".21
Nesse sentido, a etnografia pode ser uma grande aliada metodológica na
desconstrução da visão e divisão que existem entre os diferentes atores da cidade e
na produção da subjetividade e do autoconhecimento, pois coloca o pesquisador de
frente com sua própria forma de viver, questionando seus valores.
Nesse contato com os moradores do Morro do Alemão, foi possível perceber
como o modo de vida capitalista pautava minha estética, minhas preocupações
profissionais e acadêmicas, o que me fez justamente pensar a respeito do lugar em
que estou inserida nessa sociedade.
Por isso, acredito que, observadas as recomendações de uma antropologia
pós-estrutural, conforme preconiza Viveiros de Castro, e atentando-se às reflexões
de Janice Caiafa, é possível pensar a questão da favela de outro viés, não pela falta,
mas pelas suas particularidades.
O pesquisador deve se policiar para não assumir o papel de autoridade, para
construir em conjunto com as pessoas ouvidas e observadas, assim como com o
leitor, um diálogo emancipador e não colonizador.
Não é tarefa fácil desvencilhar-se do seu próprio eu enquanto pesquisador, o
que exige o constante policiamento, para manter o estranhamento necessário sem
objetificar e planificar o campo, ou mesmo exotizar o objeto, para produzir uma
pesquisa etnográfica.

20 VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutual.


São Paulo: Cosac Naify, 2015.

21 VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutual.


São Paulo: Cosac Naify, 2015. p.25.
23

Durante a pesquisa ainda foi estabelecida uma rede de contatos que hoje são
acompanhadas via redes sociais (Facebook), e que frequentemente reproduzem ali
reflexões e preocupações com o cotidiano do lugar, as quais também serão exploradas
como fonte para reflexão a respeito do objeto da pesquisa.
A Netnografia seria a aplicação do método etnográfico nas redes sociais,
compreendidas como artefatos culturais construídos por seus usuários, e possibilita
uma relação com o pesquisador que pode ser tanto ativa quanto de mera observação.22
Assim, o que se pretende é também buscar no Facebook a manifestação de
determinados atores com os quais se teve contato durante a pesquisa in loco, para
analisar a sua opinião sobre as UPPs. No caso das UPSs não foi possível estabelecer
esses relacionamentos, diante do pouco tempo em que foi mantido contato com os
moradores da Vila Zumbi e Liberdade.
No entanto, no caso do Paraná, foi possível trazer também a visão institucional a
respeito do projeto de policiamento comunitário, tendo sido entrevistados policiais
militares que participaram da concepção e que executaram a política, em especial,
na Vila Zumbi e Liberdade.
Neste trabalho não se tem a pretensão de produzir uma pesquisa etnográfica
com o rigor antropológico, no entanto, busca na etnografia a inspiração para a reflexão
a respeito do tema proposto.
Assim, o primeiro capítulo busca anallisar o projeto de policiamento comunitário
ou de proximidade como um todo, e traz a noção de governamentalidade em Foucault,
bem como a de biopolítica e do racismo, como ferramentas de análise das UPPs e
UPSs. Apresenta-se o funcionamento do neoliberalismo e as suas influências no
sistema penal, dando especial atenção ao Brasil, e discute-se a questão da militarização
da polícia e o próprio conceito de Segurança. Demonstra-se, por fim, como o apoio
midiático foi essencial para a consolidação desse projeto.

22 AMARAL, A.; NATAL, G.; VIANA, L. Netnografia como aporte metodológico da pesquisa em
comunicação digital. Famecos, Porto Alegre, v.13, n.20, p.34-40, dez. 2008. Disponível em:
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/famecos/article/viewFile/4829/3687>. Acesso em:
03 ago. 2017.
24

No segundo capítulo, são trazidas algumas reflexões de base para se pensar


o projeto de pacificação23 das favelas, em especial, procura-se fazer um breve
histórico sobre a atuação das forças policiais, indo do Brasil Colônia até o período da
Ditadura Militar. Apresenta-se, ainda, a questão da guerra às drogas como sendo o
grande argumento para justificar essa proposição de política de segurança, atrelado
aos temas das teorias de tolerância zero, doutrina de segurança nacional, estado de
exceção e direito penal do inimigo.
No terceiro capítulo trata-se do caso do Rio de Janeiro, apresentando o histórico
sobre a discussão da implantação das UPPs e trazendo posteriormente a visão dos
moradores sobre essa política e por vários temas que seccionam essa questão.
No quarto e último capítulo, é apresentado o caso paranaense de instalação
das UPSs, que é baseado no modelo de polícia comunitária japonesa. Além disso,
apresenta-se um breve histórico sobre os projetos de segurança pública implantados no
estado desde o fim da ditadura militar até o presente e finalizando com a implantação
da UPS na Vila Zumbi e Liberdade em Colombo, região metropolitana de Curitiba.
Segundo observa Edson Passetti, "a seletividade é a política do sistema
penal: [ou seja,] não há crime que não seja político".24 Dessa forma, verificamos que
a atuação do sistema penal é uma decisão política que administra os conflitos
sociais gerados pela falta através do Estado penal e, como o encarceramento já não
dá conta dessa neutralização, transformam-se as favelas em prisões a céu aberto.

23 O projeto de pacificação das favelas pode ser visto como uma continuidade da política de pacificação
das rebeliões republicanas e abolicionistas, no período pós-independência, que envolviam a
conquista e ocupação de territórios. (BATISTA, V. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois
tempos de uma história. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003).

24 PASSETTI, E. A atualidade do abolicionismo penal. In: Curso livre de abolicionismo penal. 2.ed.
Rio de Janeiro: Revan, 2012. p.27.
25

1 O POLICIAMENTO COMUNITÁRIO COMO UM PROJETO DE


GOVERNAMENTALIDADE

Garland, fazendo uma análise da cultura do controle nos Estados Unidos e na


Grã-Bretanha, afirma que, a partir da década de 1960, tendo em vista a incapacidade
de se manter uma política de lei e ordem, as instituições e os reformistas começaram a
apostar no discurso de que o ambiente comunitário tem que reprimir a “criminalidade"25.
Assim, assistimos a várias propostas comunitaristas e correcionalistas, como o
policiamento comunitário, o cumprimento da pena na comunidade, a prevenção
comunitária do crime, a justiça comunitária, ou seja, a comunidade se tornou a
solução polivalente.26
Nesse contexto, o policiamento comunitário passa a ser uma proposta de redução
do estilo reativo de policiamento, buscando promover a imagem da polícia por meio
do trabalho mais próximo e responsável junto dos líderes comunitários, apostando
na presença de policiais nas escolas, realizando consultas ao público, entre outras
ações capazes de fomentar um certo grau de confiança. Esses eram os métodos
para buscar um nível adequado de cooperação da comunidade e evitar a imagem de
uma polícia hostil.27
Já na década de 1980 o policiamento comunitário se transformou numa retórica
disseminada e utilizada para nomear qualquer tipo de prática policial, mesmo que
não se encontrassem mudanças significativas nos padrões de policiamento.28

25 Garland, como um realista de esquerda, utiliza a expressão “criminalidade”. No entanto, essa


palavra será utilizada entre aspas pois, a partir da criminologia crítica, entende-se que não se trata
do crime em sua forma ontológica, mas sim como um processo de controle social que criminaliza
certas condutas e pessoas.

26 GARLAND, D. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução


de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

27 GARLAND, D. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução


de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

28 GARLAND, D. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução


de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
26

Para Garland29, chamar a comunidade e o setor privado para articularem


estratégias de prevenção é um processo de responsabilização desses novos atores,
ou seja, é uma mudança estratégica de ação por parte do Estado, que passa a
admitir o seu fracasso nessa atividade e afirma estar criando uma rede otimizada de
controle do crime, buscando, portanto, responsabilizar a comunidade. Assim, a partir
dos anos de 1980 até hoje se coloca o policiamento comunitário como panaceia.
Com esse processo de responsabilização, o estado de justiça criminal secciona
seu estilo soberano de governar, aproximando-se do que Michel Foucault chamou
de governamentalidade.30
Insere-se, nessa análise, as propostas de policiamento comunitário analisadas
neste trabalho, a UPP e a UPS. Conforme bem observou Julia Leite Valente31, o projeto
das UPPs não é um projeto de segurança pública, mas de governança neoliberal.

1.1 Governamentalidade, dispositivos de segurança e biopolítica

Foucault32 utiliza a expressão governamentalidade no curso Segurança, Território


e População. Embora não tenha dado contornos muito precisos ou finalizado a ideia
do que seja a governamentalidade, ele atrela essa concepção à ideia de uma
população, como o governo de uma população, os mecanismos de poder capazes
de dirigir a conduta de uma determinada população.
O autor afirma que população é uma noção que nasce como um novo sujeito
político. Ela aparece como objeto para o qual são dirigidos os mecanismos de poder;

29 GARLAND, D. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução


de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

30 GARLAND, D. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução


de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

31 VALENTE, J. L. UPPs: governo militarizado e a ideia de pacificação. Rio de Janeiro: Revan, 2016.

32 FOUCAULT, M. Segurança, território e população: curso dado no College de France (1977-1978).


Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
27

assim, o conceito de população traz a noção de unidade como sujeito-objeto coletivo


dos dispositivos de poder.33
O desenvolvimento da cidade e o abandono do sistema feudal entre os
séculos XVII e XIX foi um problema que obrigou a criação de novos mecanismos de
poder, o que Foucault34 chama de mecanismos de segurança. Diferente do que
acontecia antes, em que o soberano exercia sua relação de autoridade e obrigava a
cumprir determinadas regras, agora, esses mecanismos de segurança procuram
organizar esses elementos para funcionar um em relação aos outros, de forma
"natural". Em outras palavras, são um conjunto de mecanismos tornados pertinentes
para o governo e para os que governam. É o governo das populações.35
Assim, governamentalidade deve ser compreendida como

[...] o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e


reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer uma forma bem
específica, embora muito complexa, de poder que tem como alvo principal a
população, por principal forma de saber a economia política e por
instrumento técnico essencial aos dispositivos de segurança. 36

Vivemos na era da governamentalização do Estado, já que o governo estatal


se tornou um governo administrativo. Essa descoberta do século XVIII foi o que
permitiu ao Estado sobreviver e que corresponde a uma sociedade controlada pelos
dispositivos de segurança, compreendida como a relação e o desenvolvimento das
forças internas e cada um dos elementos de sua junção.
Para o controle da força foram criados dois dispositivos de poder: o
dispositivo diplomático-militar e o dispositivo da polícia. Este último, criado no final
do século XVIII, tem como função garantir a manutenção das relações de força e
incrementar cada uma das forças sem que haja ruptura do conjunto.

33 FOUCAULT, M. Segurança, território e população: curso dado no College de France (1977-1978).


Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
34 FOUCAULT, M. Segurança, território e população: curso dado no College de France (1977-1978).
Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
35 FOUCAULT, M. Segurança, território e população: curso dado no College de France (1977-1978).
Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
36 FOUCAULT, M. Segurança, território e população: curso dado no College de France (1977-1978).
Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p.143.
28

Polícia seria, portanto, um aparelho para fazer "a razão de Estado funcionar"37,
sendo que essa razão do Estado é o aumento da força. Assim, a polícia era
compreendida como "[...] o cálculo e a técnica que possibilitarão estabelecer uma
relação móvel, mas apesar de tudo estável e controlável, entre a ordem interna do
Estado e o crescimento das suas forças".38
Ou seja, para Foucault, a polícia não teria o papel de exterminar bandidos e
ladrões, mas sim o de administrar as ocupações dos subordinados ao governo em
um aspecto amplo, tornando suas atividades úteis à gestão do Estado.
O objeto fundamental da governamentalidade será, portanto, a segurança
desses "fenômenos naturais", que são os processos econômicos e os fenômenos
ligados à população, como a mão invisível do mercado e a formação das
sociedades, respectivamente.
O liberalismo do século XVIII entende que é um risco o governo demasiado.
Isto se funda na ideia de que a sociedade civil e as leis da economia são entidades
quase "naturais". De acordo com o liberalismo, a função do governo é criar
mecanismos de segurança para garantir o funcionamento autônomo da sociedade
civil, da economia ou do indivíduo.39
Portanto, para Foucault40, a governamentalidade tem um limite para a
intervenção, ou seja, "é preciso deixar fazer". Em outras palavras, só se pode
governar "bem" se houver respeito a um certo limite de liberdade. Com isso, a noção
de polícia se marginaliza e adquire um sentido negativo. 41 Ou seja, essa noção do
que é a polícia vai se alterar com a noção de governamentalidade, quando a polícia
passa a ter um sentido de repressão, como a conhecemos hoje.

37 FOUCAULT, M. Segurança, território e população: curso dado no College de France (1977-1978).


Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p.371.

38 FOUCAULT, M. Segurança, território e população: curso dado no College de France (1977-1978).


Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p.421.

39 SOZZO, M. Polícia, governo e racionalidade: incursões a partir de Michel Foucault. Discursos


Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, v.17, n.19/20, p.511-554, 1.o e 2.o semestre de 2012.

40 FOUCAULT, M. Segurança, território e população: curso dado no College de France (1977-1978).


Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p.474.

41 FOUCAULT, M. Segurança, território e população: curso dado no College de France (1977-1978).


Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
29

Máximo Sozzo se pergunta como definir a atividade da polícia a partir da noção


de governabilidade, uma vez que, para Foucault, o governo 42 só pode ser exercido
em face de sujeitos livres e a polícia, como um aparato do Estado, passa a ser
definida pela sua possibilidade de utilizar a força.
A resposta que ele dá é a de que, para se compreender a atividade da polícia
como uma atividade de governo, deve-se pensar a polícia justamente a partir da
possibilidade do uso da violência, ou seja, na violência como uma potencialidade,
empregada no sentido da governabilidade de certas práticas da população, dentro
do limite de sua liberdade.43
A polícia, em princípio, estaria atrelada a uma pluralidade de temas segundo
os manuais de profissionalização da polícia alemães e franceses do século XVII.
Mas, a partir da centralidade da pobreza, encontra-se a chave para compreender a
verdadeira função da polícia, construída entre os séculos XVII e XVIII, que teria como
projeto a produção de bem-estar e, para tanto, teria que acelerar a acumulação de
capital, incrementando o grau de exploração do trabalho.44
Esse processo é descrito por Foucault quando ele afirma que, no
funcionamento da economia da cidade, a polícia não pode estar dissociada de uma
prática governamental colocada desde o mercantilismo, o qual exige que a população
seja a mais numerosa possível, colocada inteiramente para trabalhar, com os
salários mais baixos possíveis para que o preço das mercadorias sejam igualmente
baixos, para que se possa exportar essas mercadorias a preços competitivos, o que
garantirá a importação do ouro, como lastro financeiro do país. Isso, por sua vez,
possibilitará recrutar o maior número de soldados e da força militar para o
crescimento do Estado em prol do equilíbrio europeu. Ao descrever esse processo,

42 No texto de Sozzo a atividade policial é tratada como uma prática governamental e governo como
uma gestão do poder (SOZZO, M. Polícia, governo e racionalidade: incursões a partir de Michel
Foucault. Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, v.17, n.19/20, p.511-554, 1.o e 2.o
semestre de 2012).

43 SOZZO, M. Polícia, governo e racionalidade: incursões a partir de Michel Foucault. Discursos


Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, v.17, n.19/20, p.511-554, 1.o e 2.o semestre de 2012.

44 SOZZO, M. Polícia, governo e racionalidade: incursões a partir de Michel Foucault. Discursos


Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, v.17, n.19/20, p.511-554, 1.o e 2.o semestre de 2012.
30

Foucault afirma que a governamentalidade do Estado se interessa, pela primeira


vez, na materialidade da existência e coexistência humanas.45
O governo liberal requer que os indivíduos governem a si mesmos, requer
que exerçam a sua liberdade, mas isto deve ocorrer dentro de um conjunto de
discursos e práticas que regulam essa individualidade e prometem criar o bem-estar,
ou seja, oferecem a prosperidade e a felicidade. Dentro desse formato se inscrevem
a disciplina do corpo e a biopolítica da população.46
Cria-se, portanto, uma série de instituições como hospitais, asilos e prisões47
para atuarem onde a polícia não pode atuar, disciplinando, assim, os espaços não
disciplinados e disciplinando os corpos dos sujeitos. A polícia é também o que
Foucault chama de nacionalização dos mecanismos de disciplina.48

1.1.1 Biopolítica e racismo: a potência letal do projeto de “segurança pública”

A fórmula para se produzir o bem-estar da população dependeria primordialmente


da polícia. Assim, a polícia participa agora da gestão da vida, abarcada por essa
noção de bem-estar, ou seja, participaria da função de "fazer viver, deixar morrer".
Esse direito de vida e morte do poder soberano é o exercício da violência na sua
potencialidade mais extrema.
A polícia contribui, desde o século XVIII, para a consolidação dessa técnica
de governo chamada biopolítica, que anda lado a lado com a disciplina, modificando-

45 FOUCAULT, M. Segurança, território e população: curso dado no College de France (1977-1978).


Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

46 SOZZO, M. Polícia, governo e racionalidade: incursões a partir de Michel Foucault. Discursos


Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, v.17, n.19/20, p.511-554, 1.o e 2.o semestre de 2012.

47 Por essa razão é que, nesse mesmo período, verifica-se uma mudança no discurso da pena, que
deixa de ser uma pena cruel, que destrói o corpo, para se falar em humanização das penas, que
objetivam a preservação do corpo, compreendido como unidade material de produção dessa nova
ordem econômica. (MURARO, M. Sistema penitenciário e execução penal. Curitiba: Intersaberes,
2017. e RUSCHE, G.; KIRCHHEIMER. Punição e estrutura social. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan -
ICC, 2004.).

48 SOZZO, M. Polícia, governo e racionalidade: incursões a partir de Michel Foucault. Discursos


Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, v.17, n.19/20, p.511-554, 1.o e 2.o semestre de 2012.
31

a e englobando-a. A biopolítica não tem como foco o corpo, mas a espécie, por isso,
o processo de morte passa a ser desqualificado, enquanto as novas tecnologias de
poder, junto com as técnicas soberanas e disciplinadoras, passam a ter a vocação
de fazer viver.49
Segundo Foucault, é a partir da segunda metade do século XVIII que se
desenvolve esta espécie de poder, diferente daquele anteriormente pensado pelas
teorias contratualistas. Quando o homem firma o contrato social, ele o faz para
proteger sua vida, portanto, neste momento, inclui a vida no sistema de proteção do
Estado. No século XVII e início do século XVIII, fala-se, portanto, que o soberano
tinha o direito de vida e morte sobre o homem, ele "podia fazer morrer e deixar
viver". Hoje essa expressão se inverte para "fazer viver e deixar morrer" 50, que é
quando o Estado passa a empregar a biopolítica na gestão das populações.
A preocupação de Foucault era dirigida para a forma de subordinação desse
indivíduo, o que nas sociedades modernas se volta para o fator biológico, ou seja, o
que se tem é a estatização da vida biológica, a estatização do ser humano como ser
vivo. Para o biopoder, o ser humano é visto como membro da espécie humana, e
não como corpo individual submetido à disciplinaridade.51
O biopoder representa essa forma de poder exercida sobre a vida dos homens,
que os tomam como ser vivo e não mais como corpo. Toma-se o homem como
"massa global" afetada pelos processos da vida (nascimento, morte, reprodução,
doença). Ao exercício desse poder Foucault52 dá o nome de biopolítica, que significa
justamente o gerenciamento dessa massa de seres vivos por meio de taxas, medições
estatísticas, proporções etc. A biopolítica observa o ser humano enquanto ser vivo
pertencente a uma população, os fenômenos coletivos, que produzem efeitos
econômicos e políticos e que perduram no tempo, os quais isoladamente não

49 SOZZO, M. Polícia, governo e racionalidade: incursões a partir de Michel Foucault. Discursos


Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, v.17, n.19/20, p.511-554, 1.o e 2.o semestre de 2012.
50 FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de
Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.286.
51 ASMANN, S. A diferença da biopolítica em Foucault e Agamben. Curitiba, 06 jun. 2011. Palestra
ministrada no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR.
52 FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de
Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.289.
32

pareciam previsíveis, mas coletivamente tornam possível o gerenciamento com o fim


de otimizar a vida.
Ou seja, contrário ao poder soberano, que tinha o poder de fazer morrer e deixar
viver, agora, a biopolítica tem o direito de fazer viver e deixar morrer, invertendo-se a
proposição vida e morte. Antes, o soberano tinha o "poder de morte", de negar, de
destruir a vida; agora, o poder é de construir, produzir, crescer a vida, mas também
de desassistir outros biologicamente inviáveis.
Há uma certa divergência em relação aos termos biopolítica e biopoder.
Foucault vincula o tema da biopolítica à governabilidade, portanto, pode-se usar
biopolítica como biopoder, que representa uma série de fenômenos importantes
tomados em conjunto com mecanismos que constituem as características biológicas
fundamentais do ser humano tomados pela política.53
Biopoder, portanto, é a própria "estatização do biológico"54, podendo o soberano
dispor dessa vida nua conforme interesses maiores, hoje ditados pela economia
neoliberal, que influencia diretamente a forma de gestão política estatal.
Esse direito do soberano sobre a vida e morte se justificaria pelo racismo,
utilizado como instrumento capaz de estabelecer uma censura de determinado tipo
biológico, autorizando contra ele o exercício do direito de morte ou de deixar morrer,
para promover a vida dos demais, como forma de fortalecimento e purificação da
raça eleita, por meio de uma relação biológica e partindo da ideia de guerra, de que,
quanto mais morrer o inimigo, mais você viverá. Portanto, o discurso científico serve
aqui como justificativa para o discurso político.55
Na segunda aula do curso "Em defesa da sociedade", Foucault se pergunta
"qual é esse tipo de poder capaz de produzir discursos de verdade que são, numa
sociedade como a nossa, dotados de efeitos tão potentes?"56 Sem a intenção de

53 ASMANN, S. A diferença da biopolítica em Foucault e Agamben. Curitiba, 06 jun. 2011. Palestra


ministrada no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR.

54 FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de


Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.286.

55 FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de


Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

56 FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de


Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.28.
33

problematizar a noção de verdade em Foucault, mas partindo dessa proposição


como ferramenta, é possível afirmar que é o biopoder que permite produzir o racismo
como uma verdade no mundo contemporâneo.
Michel Foucault57 se pergunta como esse poder de fazer viver pode deixar
morrer? A resposta é através do racismo. Assim, a primeira função do racismo seria
promover "um corte: entre o que deve viver e o que deve morrer". Isso porque as raças
são distintas no seu aspecto biológico e essa distinção permite uma hierarquização,
uma classificação entre quem vive e quem morre, é "uma maneira de fragmentar o
campo biológico". É possível, a partir desse critério, estabelecer um tipo biológico
para o domínio e em seu favor estabelecer uma censura biológica do outro.
A segunda função do racismo é estabelecer uma relação positiva no sentido
de "quanto mais você deixar morrer, mais, por isso mesmo, você viverá. [...] É uma
relação guerreira: 'para viver, é preciso que você massacre seus inimigos'"58, e o
racismo coloca para funcionar esse mecanismo. A morte do ruim deixa a "vida boa"
mais sadia. Isso se faz para o fortalecimento biológico da população, eliminando os
riscos e perigos biológicos.
O racismo "é [, portanto,] a condição para que se possa exercer o direito de
matar"59 e a morte deve ser entendida de diversas formas, não somente a morte
direta, mas também a morte indireta, expor ao risco de morte ou simplesmente a
rejeição e neutralização política.
Para Michel Foucault, o discurso da evolução das espécies é uma noção
naturalizada, no século XIX, "[...] é uma maneira de pensar as relações de colonização,
a necessidade das guerras, a criminalidade, os fenômenos da loucura e da doença
mental, a história das sociedades com suas diferentes classes, etc." 60

57 FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de


Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.304.

58 FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de


Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.305.

59 FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de


Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.306.

60 FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de


Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.307.
34

Foucault61 faz ainda mais uma indagação: como é possível expor os próprios
cidadãos à guerra? Ativando o racismo como um poder, para regenerar a própria
raça, para fazer viverem os mais fortes.

[...] o racismo é ligado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a


utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação da raça para exercer seu
poder soberano. A justaposição, ou melhor, o funcionamento, através do
biopoder, do velho poder soberano do direito de morte implica o funcionamento,
a introdução e a ativação do racismo.62

Acoplando-se o racismo ao liberalismo real, criam-se certas práticas divisórias,


diferenciando duas categorias de população, mas apenas uma com status de sujeitos
livres e racionais, a quem se direciona o governo da vida através da liberdade.63
O nazismo foi um exemplo disso, de absolutização do biopoder, que generalizou o
direito soberano de matar. Segundo Zaffaroni, "o nazismo penal renasceu nos
Estados Unidos"64 e é ofertado como modelo mundial.
Buscando um paralelo entre o liberalismo e o autoritarismo, Sozzo afirma que o
autoritarismo faz aparecer o lado obscuro da biopolítica, estruturado sobre o racismo
moderno, o qual se dirige a determinados grupos em condições biologicamente
peculiares, os quais, sendo eliminados, possam fazer viver um outro grupo, unindo-se o
objetivo da defesa com o objetivo da melhora. Extrapola-se a relação biológica com
o inimigo político e o poder de matar já não tem limites na governamentalidade
liberal. O poder reside agora não no direito de matar, mas no de exercer a vida
manipulando os fenômenos de massa da população.65

61 FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de


Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.304.

62 FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de


Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.309.

63 SOZZO, M. Polícia, governo e racionalidade: incursões a partir de Michel Foucault. Discursos


Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, v.17, n.19/20, p.511-554, 1.o e 2.o semestre de 2012.

64 ZAFFARONI, E. R. A questão criminal. Tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan,


2013. p.173.

65 SOZZO, M. Polícia, governo e racionalidade: incursões a partir de Michel Foucault. Discursos


Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, v.17, n.19/20, p.511-554, 1.o e 2.o semestre de 2012.
35

Partindo da proposição de Foucault66 sobre a relação do biopoder e do


racismo, Mbembe67 afirma que essa noção de biopoder não é suficiente para se
refletir a respeito da submissão da vida ao poder da morte, por isso, ele propõe que
se trata, na verdade, de uma necropolítica, pois existiria ainda uma tecnologia de
guerra empregada para criar mortos-vivos, ou seja, populações submetidas a
condições de existência isolada e segregada.
Nesse contexto, Mbembe68 afirma que a escravidão pode ser considerada a
primeira manifestação da experimentação biopolítica. Para ele, a condição de
escravo é como se fosse uma morte em vida, que coloca em contradição os direitos
à propriedade com os direitos da pessoa. A humanidade do escravo se dissolve
como pessoa, na medida em que é considerado propriedade de seu amo.
Também em relação às colônias, é visível a forma de tratamento diferenciado
entre os colonizados, já que os colonizadores não pretendiam tratar os colonizados
como tratavam suas próprias populações. Isso se justificaria, seja pelo argumento
naturalista de que a raça colonizada é inferior, ou pelo argumento do historicismo,
fundado na ideia de que os colonizados seriam ainda subdesenvolvidos. As colônias
seriam o lugar da guerra e da desordem, em que se confundem as figuras dos inimigos
interno e externo. As colônias também são lugares em que várias garantias judiciais
podem ser suspensas e a violência do Estado de exceção ocorre com fins civilizatórios.69

66 FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de


Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

67 MBEMBE, A. Necropolítica. Disponível em: <https://aphuuruguay.files.wordpress.com/2014/08/


achille-mbembe-necropolc3adtica-seguido-de-sobre-el-gobierno-privado-indirecto.pdf>. Acesso
em: 21 set. 2017.

68 MBEMBE, A. Necropolítica. Disponível em: <https://aphuuruguay.files.wordpress.com/2014/08/


achille-mbembe-necropolc3adtica-seguido-de-sobre-el-gobierno-privado-indirecto.pdf>. Acesso
em: 21 set. 2017.

69 MBEMBE, A. Necropolítica. Disponível em: <https://aphuuruguay.files.wordpress.com/2014/08/


achille-mbembe-necropolc3adtica-seguido-de-sobre-el-gobierno-privado-indirecto.pdf>. Acesso
em: 21 set. 2017.
36

Nesse sentido, Mbembe está de acordo com Foucault70, que afirma que o
racismo acompanha o genocídio colonizador. Essa atuação do racismo e do biopoder
pode ser visto no Brasil.
No Brasil colônia, o liberalismo, a biopolítica e o racismo passaram a ser
discutidos com a chegada da família real, que se deparou com uma cidade africana,
e que aos poucos foi sendo construída pautada pelo medo. Vera Malaguti Batista 71
conta essa história em seu livro "O medo na cidade do Rio de Janeiro", tendo como
hipótese central que o medo é o indutor das políticas autoritárias de controle social,
sendo a força motriz da hegemonia conservadora. Tendo como foco o século XIX,
sua análise mostra como o medo dos afrodescendentes pautou as políticas estatais
de gestão da vida. Era o medo dos miasmas e o medo da africanização, já que, em
1849, o Rio de Janeiro tem a maior população negra escravizada das Américas.
É com a consolidação da medicina no Brasil que se percebe a aplicação da
biopolítica e do racismo, baseado nos preceitos positivistas desenvolvidos desde o
social darwinismo e de Lombroso. A medicina da época trata de transformar a
convivência com os africanos escravizados, que era tranquila e confortável, em uma
ameaça de doença e de imoralidade.72
Como afirma Vera Malaguti Batista73, os miasmas eram considerados mais
perigosos que os próprios africanos, conforme se podia ler nos diversos artigos e
teses publicados da época, que tinham como escopo demarcar as fronteiras entre os
inimigos internos. Um dos exemplos são os artigos científicos que descrevem os
perigos de se entregar as crianças para as amas de leite amamentarem, situação
que era apontada como responsável pela degenerescência dos filhos dos brancos.
Falando sobre os discursos midiáticos, começam a aparecer argumentos
biopolíticos antiescravidão e antitráfico, transfigurados em ilegalidades, quando o

70 FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de


Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

71 BATISTA, V. M. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2.ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2003.

72 BATISTA, V. M. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2.ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2003.

73 BATISTA, V. M. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2.ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2003.
37

tráfico de escravos é abolido em 1831, e se instala uma nova contradição entre o


direito e o liberalismo tropical, que fez continuar o tráfico lucrativo de escravos até 1850.
Nesse contexto, Vera Malaguti Batista chama esse movimento de "abolicionismo
de resultados".74 O "[...] abolicionismo de resultados é o discurso que tenta dar conta
da africanização das ruas, das gentes e das almas"75; é um discurso utilitário, já que
a escravidão deixa de ser lucrativa para se tornar perigosa, por gerar um risco de
contágio. É o risco biológico de que falava Foucault. Isso é o resultado do liberalismo
conservador brasileiro, pois o que se quer, na verdade, é livrar-se do incômodo que
os afrodescendentes representam.
O medo branco promoveu a perseguição dos afrodescendentes e empregou
métodos de punição e de mortandade. Embora a imprensa dissidente noticiasse que
o governo não queria dar emprego aos afrodescendentes, noticiasse também que só
por ser “mulato” se era levado à prisão, estampando a questão racial nos jornais e
pasquins, essa versão era desconstruída pela imprensa conservadora, que bradava
com argumentos higienistas, legalistas, utilitários e até mesmo humanitários de que a
abolição era necessária. Planejava-se acabar com os quilombos buscando implantar
um projeto disciplinar de urbanização para a cidade, dirigida aos africanos pobres
em geral.76
Segundo o jornal Pão de Açúcar, em publicação de 7 de abril de 1835, as
forças de ordem, tal como a polícia, devem vigiar os passos dos africanos para que
previnam tensões pavorosas; é preciso armar a polícia para que "inspirem confiança
[aos brancos] e aos escravos infundem terror". Essa é a matriz discursiva que funda
a prática policial brasileira: "Uma polícia que inspire confiança às elites e que aos
escravos infunda terror".77

74 BATISTA, V. M. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2.ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2003.

75 BATISTA, V. M. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2.ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2003. p.187.

76 BATISTA, V. M. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2.ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2003.

77 BATISTA, V. M. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2.ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2003. p.192-193.
38

Dentro da modernização à brasileira, propõe-se que os africanos sejam mandados


de volta para a África e que o Brasil receba os estrangeiros brancos e europeus de
braços abertos, assim como estão fazendo Estados Unidos e as repúblicas do Sul,
buscando o embranquecimento da sociedade brasileira. "O que era bom para os
Estados Unidos já podia ser bom para o Brasil".78
Porém, o projeto de se montar uma colônia brasileira na África nunca aconteceu,
mas a entrada dos europeus, através da facilitação de políticas de imigração e
colonização acontece no final do Império, a partir da década de 1870, intensificando-
se quanto mais certa era a abolição da escravatura, até o final do século.
A partir de então, criam-se outros medos, como o medo dos socialistas, dos
anarquistas e dos sindicalistas, que implica em novas ondas de criminalização. 79 Ou
seja, a polícia sempre esteve à serviço da classe mais abastada, criminalizando as
condutas indesejáveis praticadas pelos pobres e afrodescendentes.
Ainda, nesse processo de "resolver os seus problemas", o Brasil continua a
importar soluções do "primeiro mundo". No entanto, essas soluções têm consequências
nefastas quando acopladas com as origens da escravidão brasileira, o que se verifica
com os reflexos da política neoliberal hoje.
Ocorre que essa nova gestão biopolítica toma determinados sujeitos como
homo-sacer, excluídos pelo modo de produção neoliberal como vida biológica e não
como sujeitos de direito, através de políticas penais que buscam neutralizá-los
e eliminá-los.
O Brasil se divide em raças e cores, promove classificações e hierarquias,
atribuindo qualidades a uns e bestializando outros, e a polícia deve atuar nesta
missão, colocando em ação o controle social racista e biológico naturalizado no
Brasil contemporâneo na figura dos pretos, pobres, favelados, traficantes de drogas
"[...] apresentados ao deleite da mídia [e que] fazem parte do cenário vivo do teatro
da escravidão".80

78 BATISTA, V. M. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2.ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2003. p.200.
79 BATISTA, V. M. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2.ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2003.
80 BATISTA, V. M. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2.ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2003. p.169.
39

Analisando o uso do racismo e da biopolítica em Foucault, Argüello 81 se


pergunta se o que se tem hoje é uma guerra às drogas ou um "racismo de Estado".
Respondendo a essa pergunta, ela afirma que se tem, na realidade, uma "tanatopolítica"
ou uma "necropolítica", como proposto por Mbembe.
A necropolítica seria uma gestão biológica dos afrodescendentes, colocados
como inferiores e, por isso, matáveis, justificada pela política de guerra às drogas.
Isso fica explícito nas estatísticas de homicídios praticados pela polícia, que
vitimizam mais negros que brancos, bem como pelas taxas de homicídio de jovens
afrodescendentes, que podem ser compreendidas como uma política que é
renovada com vistas no futuro, buscando o extermínio desse contingente. O projeto
das UPPs também seria a manifestação de uma necropolítica, pois elas foram
instaladas apenas nas favelas, de forma estratégica, promovendo uma gestão
policial da vida.82
É possível recorrer também à noção de necropolítica de Mbembe 83, pois ele
trabalha com a concepção de território fragmentado, diferenciando-o entre aqueles
que são considerados importantes e os que não são, sendo que a estes últimos se
tem dado prioridade para as ocupações militares. Assim, a guerra hoje acontece em
determinados territórios, entre grupos armados que atuam sob o manto do Estado
contra grupos armados sem Estado.
As guerras modernas são guerras voltadas à destruição e, ao lado dos exércitos,
estão as máquinas de guerra ou máquinas da morte, como um conjunto de homens
armados com determinadas tarefas específicas, difusas e polimórficas, muitas vezes
chancelados pelo Estado e com autorização para matar. Essas máquinas de guerra
geram uma nova economia de produtos e produzem uma nova forma de
governamentalidade, que consiste na gestão das multidões através do massacre. As
máquinas de guerra ainda, de forma contraditória, neutralizam espacialmente

81 ARGÜELLO, K. S. C. Guerra às drogas ou racismo de Estado? A necropolítica de segurança


pública. 2017. Artigo recebido por email pela autora.

82 ARGÜELLO, K. S. C. Guerra às drogas ou racismo de Estado? A necropolítica de segurança


pública. 2017. Artigo recebido por email pela autora.

83 MBEMBE, A. Necropolítica. Disponível em: <https://aphuuruguay.files.wordpress.com/2014/08/


achille-mbembe-necropolc3adtica-seguido-de-sobre-el-gobierno-privado-indirecto.pdf>. Acesso
em: 21 set. 2017.
40

determinadas categorias de pessoas para forçá-las a sair e atingir outros limites


territoriais, provocando o êxodo ou sua concentração em zonas de exceção.84
Essas ocupações territoriais militares dão aos comandantes locais a liberdade
para matar quem desejam. As opções são a céu aberto e se combinam matanças
invisíveis com autorização institucional. Por isso seria uma necropolítica85, ou um
massacre a conta gotas, como diz Zaffaroni.86
Embora Mbembe não esteja falando sobre a realidade brasileira, é possível
transportar essa análise para essa realidade. Com o fim da escravidão no Brasil se
tem uma massa de pessoas que não foi incluída no mercado de trabalho formal e,
por sua vez, foi abandonada pelo Estado. Essas pessoas são identificadas como um
risco biológico, o que legitima o seu tratamento pelo sistema penal como não
pessoa. Ele é hostil, retratado pela figura do traficante de drogas, afrodescendente,
jovem, homem, pobre, vida nua, sentenciado com a pena de morte.
Jessé Souza87, usando outras categorias de análise para reconstruir o processo
de modernização brasileira, verifica como se dá a formação de uma classe de pessoas
consideradas sub-cidadãos.
A partir da proposta de Florestan Fernandes, Souza 88 analisa como o povo
emerge na história brasileira. O autor verifica o contexto no qual o povo afrodescendente
se posiciona na sociedade atual, partindo da proposição de que essas pessoas foram
abandonadas pelos seus senhores e pela sociedade em geral, encontrando
dificuldades, pois não dispunham de meios materiais ou morais para sobreviver em
uma sociedade de um capitalismo e economia competitivos. Faltava-lhes, segundo a

84 MBEMBE, A. Necropolítica. Disponível em: <https://aphuuruguay.files.wordpress.com/2014/08/


achille-mbembe-necropolc3adtica-seguido-de-sobre-el-gobierno-privado-indirecto.pdf>. Acesso
em: 21 set. 2017.

85 MBEMBE, A. Necropolítica. Disponível em: <https://aphuuruguay.files.wordpress.com/2014/08/


achille-mbembe-necropolc3adtica-seguido-de-sobre-el-gobierno-privado-indirecto.pdf>. Acesso
em: 21 set. 2017.

86 ZAFFARONI, E. R. A questão criminal. Tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

87 SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade


periférica. 2.ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

88 SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade


periférica. 2.ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
41

obra de Florestan, a vontade de se dedicar às atividades consideradas degradantes


e a ânsia pela riqueza.
Entre as classes sociais, existiam as famílias proprietárias, que ofereciam
pouca competição e, logo abaixo, prevalecia a ideia individualista e liberal de que se
deve ser o homem certo e estar no lugar certo. Vistos sob essa perspectiva, os
estrangeiros, especialmente o imigrante italiano, era considerado a esperança de um
progresso rápido, o que, combinado com o racismo, fazia com que o negro não
tivesse condições de concorrer, sequer no mercado proletário, sendo taxado de
vagabundo ou criminoso.89
Os afrodescendentes, segundo a análise de Souza sobre a obra de Florestan,
manifestavam uma espécie de desespero mudo, submergindo nas lavouras de
subsistência e concentrando-se nas crescentes favelas, tal como uma escolha
desesperada, um protesto silencioso, uma autocondenação ao ostracismo. A anomia
familiar fechava o ciclo. As mulheres, nesse contexto, tinham mais condições de
trabalho que os homens, pois se dedicavam aos trabalhos domésticos, dos quais
tinham quase monopólio, por isso as famílias afrodescendentes e pobres brasileiras são
constituídas na "matrifocalidade".90
Partindo dessa proposta, Jessé Souza91 afirma que o fato de serem incorporados
e transmitidos certos valores e certo individualismo no ambiente familiar teria como
ponto central a formação e reprodução de um habitus precário, como causa de uma
inadaptação e marginalização desses grupos, fato que não está, portanto, diretamente
ligado à cor da pele. Em outras palavras, a marginalização social não está ligada à
cor da pele, mas sim a um certo tipo de personalidade julgada improdutiva e imoral.
O problema enfrentado pela marginalização é, assim, a combinação do abandono social
com a inadaptação à sociedade capitalista burguesa.

89 SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade


periférica. 2.ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

90 SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade


periférica. 2.ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

91 SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade


periférica. 2.ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
42

Ora, é precisamente o abandono secular do negro e do dependente de


qualquer cor à própria sorte a "causa" obvia de sua inadaptação. Foi este
abandono que criou condições perversas de eternização de um "habitus
precário", que constrange esses grupos à uma vida marginal e humilhante à
margem da sociedade incluída.92

Hoje, o que está em jogo é uma redefinição moderna do negro e do dependente


como imprestáveis para exercer qualquer atividade produtiva no contexto do capitalismo
de periferia, para o que se atribui essa condição de marginalidade, tornando-se
subcidadão.

1.2 Do Estado Social ao Estado Penal: o uso da violência como meio de


manutenção de privilégios

Já no século XX, pode-se falar em um liberalismo que se tornou mais acirrado,


mais violento, chamado de neoliberalismo e que tem impactado as políticas penais.
Nesse sentido, cabe olhar para o neoliberalismo não como uma política econômica,
mas como uma racionalidade governamental, como propôs Foucault.
A partir da crise do welfare state, quando o Estado deixou de dar assistência
aos necessitados e de promover políticas públicas para implementar os direitos sociais,
entrou em ação o sistema penal para controlar esses desassistidos, improdutivos e
imorais. Com a crise do welfare, as políticas sociais foram substituídas por políticas
penais, como forma de governança da população marginalizada, representando
esse momento a passagem do Estado Social para o Estado Penal. Conforme
observa Nilo Batista, as relações de produção são ditadas pela política neoliberal, a
qual "[...] precisa de um poder punitivo, onipresente a capilarizado, para o controle
penal dos contingentes humanos que ele mesmo marginaliza".93

92 SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade


periférica. 2.ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. p.160.

93 BATISTA, N. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos Sediciosos – Crime, Direito e
Sociedade, Rio de Janeiro, v.7, n.12, p.272, 2.o semestre de 2002.
43

Para exemplificar historicamente essa análise, observa-se que nos Estados


Unidos ocorreu um grande encarceramento no início dos anos 1950, sendo que a
maior parte dos encarcerados era constituída por afrodescendentes. Esses índices
foram aumentando até a década de 1990, quando se viu que o encarceramento
cresceu vertiginosamente, em especial da população afro. No entanto, os índices de
violência dos Estados Unidos eram iguais aos dos demais países, porém, eles
puniam mais e com penas mais severas furtos e delitos envolvidos com drogas.94
Já na Europa ainda subsistiram algumas políticas do Estado Social, mas com
altas taxas de desemprego, se comparado aos EUA. Ocorria, na verdade, que os
Estados Unidos não incluíam nas suas taxas de desemprego o número de pessoas
encarceradas, ao passo que na Europa ainda havia essa tentativa de promover
políticas sociais e não penais.95 Assim, o superencarceramento era uma forma de
controle do desemprego.
A principal diferença entre os capitalismos americano e europeu é a forma de
distribuição do excedente, pois, se comparados os níveis de crescimento econômico
(PIB per capita), não haverá grandes diferenças. Até os anos de 1990, a Europa tinha
maiores rendimentos; depois foram os Estados Unidos que avançaram, aumentando
as horas de trabalho por pessoa, melhorando a produção, estagnando os salários e
fazendo crescer a desigualdade de remuneração. A Europa, por sua vez, aumentou a
produtividade, diminuiu as horas de trabalho, aumentou os salários reais e diminuiu
a desigualdade dos lucros.96
No entanto, ainda que a Europa tentasse uma reestruturação do welfare,
também se verificou a hipertrofia do sistema penal. As taxas de desemprego na
Inglaterra durante o período de crise econômica eram elevadas e, ao mesmo tempo,
encontrou-se uma maior punitividade do sistema repressivo. Não que o cárcere seja
uma estrutura monolítica, condicionado às necessidades do capital, mas é possível,

94 WESTER, B.; BECKETT, K.; HARDING, D. Sistema Penal e Mercado de Trabalho nos Estados
Unidos. Discursos Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro, v.7, n.11, p.43-54, 2002.

95 FREEMAN, R. B. O modelo econômico dos EUA num teste comparativo. Discursos Sediciosos –
Crime, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro, v.7, n.11, p.55-70, 2002.

96 FREEMAN, R. B. O modelo econômico dos EUA num teste comparativo. Discursos Sediciosos –
Crime, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro, v.7, n.11, p.55-70, 2002.
44

a partir da análise dessa relação, constatar que ele reproduz, sim, um estereótipo
dominante do criminoso diretamente ligado a questões econômicas.97
Assim, enquanto a Europa ainda procurava manter algumas políticas sociais,
os Estados Unidos substituíram totalmente suas políticas sociais por políticas penais
e é esse o modelo de Estado que foi sendo exportado, o norte-americano, chamado
de "Estado-Centauro", porque ele tem uma cabeça liberal e um corpo autoritário,
sendo responsável por tornar popular a utilização do sistema penal para tentar
conter as "desordens geradas pela acumulação do capital", tais como a exclusão
social, o desemprego, o trabalho precarizado, criminalizando os mais vulneráveis,
por meio de dois mecanismos: programas sociais que atuam como um sistema de
vigilância e o superencarceramento para os pobres.98
Nas palavras de Alessandro de Giorgi: "A gestão do desemprego e da
precariedade social parecer ter passado, em suma, do universo das políticas sociais
para o da política criminal".99
Segundo Nils Christie100, esse sistema de controle social influenciado pela
economia neoliberal é chamado de "Indústria de controle do crime". Nesta obra, o autor
aponta como problema comum das sociedades ocidentais de hoje a má distribuição
de renda e de trabalho. Essa indústria do controle do crime promove a ganância, o
trabalho e o controle sobre quem perturba esse processo. Nessa indústria não falta
matéria-prima, ela limpa os espaços sociais dos elementos indesejados. Ela também
é imbuída do impulso de expansão e ainda tem vantagens sobre isso: vende armas
para a guerra permanente contra o crime. O motor dessa indústria é a crença na
manutenção da guerra contra o crime, reforçada pelo conceito de lei como reguladora
de valores, o que apoia o crescimento da indústria do crime. Desse panorama

97 GIORGI, A. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan – ICC, 2006.

98 ARGÜELLO, K. S. C. Do estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem. Discursos


Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro, v.17, n.19/20, p.210, 1. o e 2.o semestres
de 2012.

99 GIORGI, A. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan – ICC, 2006. p.53.

100 CHRISTIE, N. La industria del control del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires:
Editores del Puerto, 1993.
45

somente se pode esperar, além do aumento do encarceramento, o aumento das


políticas de controle social.
A acumulação de capital de forma desigual se dá pela apropriação da mais
valia absoluta e relativa, bem como somam-se a esse quadro as altas taxas de
desemprego e a ditadura das taxas de juros. O livre mercado utiliza-se da tecnologia
para substituir a mão de obra. A soma desses fatores é a fórmula de sucesso do
livre capital101, determinando-se, nesse contexto, a atuação desse sistema político-
econômico refletido pelo sistema penal.
No mercado formal observou-se a superação do modelo fordista de produção.
A economia mudou radicalmente, resultando em novas formas de acumulação do
capital pós-segunda grande guerra. O modelo de organização do trabalho da grande
fábrica desaparece, ocorre a crise da estratégia fordista de regulamentação salarial
e se rompe com a união do conjunto rendimento, operário, produtividade social e
consumo de massa.102
O capital também não é mais mundial, mas global, criando um espaço de
valorização sem fronteiras, e seu espaço é denominado "Império", um império liso no
qual circulam dinheiro, trabalho, informação, sujeitos e regime de controles diferenciados.
Tem-se, agora, não só nos países capitalistas dominantes, o desemprego como
estrutural, a economia de informação e uma força de trabalho global. Esse novo
capitalismo está presente, com suas diferenças, em todo o globo e essas diferenças
são resultado da dinâmica da força de trabalho global e do domínio capitalista sobre
a produtividade social.103
O modelo fordista deu lugar ao modelo do "espírito Toyota", cuja forma de
organização se tornou diferenciada, pois produzia apenas conforme a demanda,
possuía estoques reduzidos e passou a produzir produtos personalizados, sendo
necessário criar seus próprios fornecedores para que pudesse atingir seus objetivos.
Esses fornecedores são empresas locais que têm seus interesses descartados em

101 ARGÜELLO, K. S. C. Do estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem.


Discursos Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro, v.17, n.19/20, p.207-230, 1.o e
2.o semestres de 2012.

102 GIORGI, A. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan – ICC, 2006.

103 GIORGI, A. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan – ICC, 2006.
46

razão do interesse global, assumindo a empresa principal o gerenciamento do


produto final e detendo a tecnologia-chave.104
Já no mercado informal, o modelo fordista se fortaleceu, pois as empresas
locais, tratadas como fornecedoras das globais-formais, foram cada vez mais se
informalizando e diminuindo as condições de seus trabalhadores, adotando ainda
esse modelo produtivo just-in-time.105
Ou seja, as economias formais exigiram de seus fornecedores a informalização e
a manutenção do modelo fordista de produção para garantir a extração da máxima
mais-valia, não se responsabilizando pelos efeitos sociais da implementação desse
modo produtivo, jogando os trabalhadores cada vez mais na informalidade, a qual
acaba tendo íntima relação, e por vezes coincidindo, com o mercado ilícito.
Nesse contexto se dá a formação de um "excesso negativo", pois esse novo
regime econômico de produção não necessita da mesma quantidade de mão de
obra para manter seu ciclo produtivo, o que ocorre, entre outros fatores, pela adoção
de novas tecnologias, fazendo a demanda por trabalho vivo diminuir ou até se extinguir,
passando o desemprego a ser um problema estrutural.106 Ao mesmo tempo, as
garantias sociais são afetadas pelo "assalto neo-liberal ao welfare"107, que incentiva
a incerteza, a flexibilidade e novas formas de escravidão da força de trabalho, que
reforça as economias submersas.
Veja-se o exemplo do consumo mundial de produtos chineses. É sabido que a
sua produção se dá de forma escrava, ilegal, pois submete crianças, mulheres e
homens a um regime de trabalho indigno, sem qualquer assistência ou condição
existencial. No entanto, todos esses produtos ganham o mundo e são consumidos
legalmente a preços aviltantes, inclusive afetando a economia dos países que
adotam um modo produtivo formal, forçando, assim, sua informalidade, para que os
preços se tornem competitivos.

104 GIORGI, A. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan – ICC, 2006.

105 RUGGIERO, V. Crimes e mercados: ensaios de anticriminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

106 GIORGI, A. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan – ICC, 2006.

107 GIORGI, A. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan – ICC, 2006. p.67.
47

Assim, os trabalhadores com menor qualificação, menor possibilidade de


mobilidade nesse modelo produtivo são colocados gradualmente no mercado informal e
ilícito. Vicenzo Ruggiero108 faz uma análise interessante de como a economia formal se
relaciona com a economia informal e como esta acaba, muitas vezes, se relacionando
com condutas criminosas e reproduzindo a forma organizacional da primeira.
Refutando algumas teorias tradicionais da criminologia, o autor afirma que aqueles
que são excluídos pela economia formal, capitalista-neoliberal, acabam encontrando
espaço nos mercados informais e, por sua vez, ilegais, o que ele chamou de
"bazares urbanos".109
Especialmente no mercado das drogas é possível ver essa relação do mercado
formal com o ilegal, a começar pela forma organizacional do mercado informal, que
atendia ao modelo fordista de produção no qual ocorria o gerenciamento do trabalho, a
repetição de atividades, a alienação do trabalhador e o seu descontentamento,
produzindo mão de obra desqualificada e divisão social do trabalho e de seus
benefícios. Nesse contexto, o sistema prisional teve um papel importante, pois
possibilitou o disciplinamento do trabalho, implantando ética e rotina no trabalhador
do mercado informal de entorpecentes110, desde as casas de correição.
E a prisão deve ainda seguir o princípio do less eligibility, ou seja, deve
oferecer uma condição pior se comparada com a do mercado informal, para evitar com
que esses trabalhadores informais prefiram ser encarcerados a trabalhar submetidos
a esse modelo econômico produtivo, sendo que essa fórmula produz uma ameaça
constante e repressiva sobre a classe operária de elevar a performance, ou seja, de
diminuir as condições de trabalho e seus salários, aumentando os níveis de exploração
e produção. Assim, quanto maior a demanda por performance, maior será a pressão
sobre esses trabalhadores, chamados de underclass.111

108 RUGGIERO, V. Crimes e mercados: ensaios de anticriminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

109 RUGGIERO, V. Crimes e mercados: ensaios de anticriminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008. p.5.

110 RUGGIERO, V. Crimes e mercados: ensaios de anticriminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

111 GIORGI, A. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan – ICC, 2006.
48

"Nesse sentido, atividades informais, marginais ou ocultas podem ser definidas


como formas ilegais de obter renda, o que [...] compensaria as perdas provocadas
pela falência do estado de bem-estar social aos membros sociais desfavorecidos".112
Frise-se que se forma ainda um contingente de pessoas as quais sequer se
inserem no mercado informal-ilegal e passam a ser igualmente perseguidas pelo
sistema penal, como uma tentativa de disciplinamento e regulação sob o manto da
defesa social, que, em verdade, torna-se defesa do modo de produção neoliberal,
possuindo o cárcere não só a função de neutralização dessas pessoas, mas também
de disciplinamento para o mercado informal-criminal, formando um exército de
reserva para o mercado ilícito, na medida em que o cárcere reproduz o senso
comum de que a cadeia é a "escola do crime".
Essa sociedade salarial produz uma nova articulação entre trabalho, rendimento
e cidadania, adquirindo a palavra emprego outro significado, ou seja, emprego significaria
trabalho e segurança, composto por dignidade, garantias, direitos fundamentais e
estabilidade. Quando o salário/emprego exclui a cidadania, ele deixa desassistida
essa massa de pessoas que têm trabalho, o qual, porém não é o suficiente para se
obter a cidadania. Neste momento, vinculam-se os direitos à cidadania, salário e
inclusão social ao exercício de um trabalho-emprego. Esse excesso negativo se daria,
portanto, quando a dinâmica produtiva excede o direito à cidadania social.113
Hoje esse excesso parece incapaz de ser corrigido ou controlado. Esse
contingente de pessoas experimenta o dualismo trabalho x emprego, portanto, sofrem
os efeitos de um excesso negativo, bem como da violência do poder e do controle
sobre a força de trabalho, negando-lhes o domínio do capital, o poder de consumo e
a própria condição de cidadão, a quem se dirige o poder biopolítico de vida e morte.
O neoliberalismo consagra-se como a política do individualismo, da exclusão dos
não iguais, e o Estado passa a dividir sua responsabilidade social com as grandes
empresas, geridas pelos grandes capitais internacionais, privatizando-a.

112 RUGGIERO, V. Crimes e mercados: ensaios de anticriminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008. p.69.

113 GIORGI, A. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan – ICC, 2006.
49

Para Bozza114, o neoliberalismo tem três fundamentos da ordem social, em


contraposição aos do liberalismo. No liberalismo se falava em liberdade, igualdade e
fraternidade. Já no neoliberalismo, os fundamentos são desigualdade, competição
e eficiência.
A desigualdade não é só no sentido da exclusão econômica e social, mas também
de uma relação de assimetria entre competidores do mercado. A competição como
um elemento impulsionador do mercado, dividindo a sociedade entre vencedores e
perdedores, sendo que nesta competição não existem limites éticos ou jurídicos
entre os concorrentes. E o terceiro elemento, que é a eficiência técnica, está ligado
intimamente à competição, mas não basta simplesmente competir, deve-se ser o
melhor para poder vencer sempre e, para isso, deve-se ter os meios adequados,
colocando em prática a lógica "dos fins que justificam os meios".115
E a América Latina é o lugar privilegiado dos desiguais, estigmatizados e
excluídos. Como nação periférica, nesse jogo mundial da econômica neoliberal,
portanto, luta para sobreviver com as armas que tem, nada adequadas para essa
competição, com consequências desastrosas. Sob essa perspectiva, temos que nos ater
às consequências do neoliberalismo global na periferia do capital, ou na periferia da
barbárie, para utilizar a expressão da professora Vera Malaguti Batista, olhando para
as particularidades dessa racionalidade econômica nessa realidade específica.
Na América Latina, e em especial no Brasil, não é possível se falar em estado do
bem-estar social, posto que o Estado não tinha como foco políticas previdenciárias
ou inclusivas, pois, nesse período de expansão do neoliberalismo nos Estados
Unidos e Europa, o Brasil passava pela ditadura militar (1969-1984), que, apesar de
registrar um grande avanço econômico, o fez às custas do agigantamento da dívida
externa e do favorecimento da concentração de renda.
Ou seja, no século XIX, o processo de modernização brasileira apostava na
urbanização e, a partir da década de 1930, o Brasil passa por uma expansão industrial,

114 BOZZA, F. S. Política Criminal contemporânea e neoliberalismo. REDES – Revista Eletrônica


Direito e Sociedade, Canoas, v.3, p.63-82, maio 2015. Disponível em:
<http://www.revistas.unilasalle.edu.br/index.php/redes/article/view/2116>. Acesso em: 03 jan. 2018.

115 BOZZA, F. S. Política Criminal contemporânea e neoliberalismo. REDES – Revista Eletrônica


Direito e Sociedade, Canoas, v.3, p.63-82, maio 2015. Disponível em:
<http://www.revistas.unilasalle.edu.br/index.php/redes/article/view/2116>. Acesso em: 03 jan. 2018.
50

numa política de substituição das importações, voltando-se para o crescimento


econômico. Essa expansão industrial iniciou com um Estado reformador, na década
de 1930, dando ênfase nas indústrias de siderurgia e petróleo, além do crescimento
capitalista em larga escala. Esse modelo dura até 1980, quando entra em crise e se
tem uma nova expressão política dos trabalhadores.116
O Brasil foi o último país da América Latina a implantar um projeto neoliberal
e, quando o fez, não havia um planejamento prévio, por isso, sua conformação se
deu na prática. Isso deveu-se ao fato de que era difícil aglutinar os interesses da
classe burguesa, bem como porque se teve um grande movimento da classe
trabalhadora com a criação, na década de 1980, do MST, da CUT e do PT, além de
cinco greves gerais entre os anos de 1983 e 1989.117
Diante desse movimento do proletariado, as diversas frações do capital se
uniram, frente ao temor de perder o controle político da sociedade. Assim, na década
de 1990, o neoliberalismo se implanta no Brasil, a partir do governo Collor (1990-
1992), que combinou a abertura política com as privatizações.118
O projeto neoliberal passou por três momentos distintos: a primeira fase, na
década de 1990, bastante turbulenta, rompeu com o MSI – Modelo de Substituição
de Importações e implantou as primeiras ações concretas de natureza neoliberal; a
segunda fase, de ampliação e consolidação da ordem econômico-social neoliberal,
ocorreu no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998); por último,

116 SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade
periférica. 2.ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

117 FILGUEIRAS, L. O neoliberalismo no Brasil: estrutura, dinâmica e ajuste do modelo econômico.


In: BASUALDO, E. M.; ARCEO, E. Neoliberalismo y sectores dominantes. Tendencias globales
y experiencias nacionales. Buenos Aires: CLACSO, 2006. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/grupos/basua/C05Filgueiras.pdf>. Acesso em: 04
jan. 2018.

118 FILGUEIRAS, L. O neoliberalismo no Brasil: estrutura, dinâmica e ajuste do modelo econômico.


In: BASUALDO, E. M.; ARCEO, E. Neoliberalismo y sectores dominantes. Tendencias globales
y experiencias nacionales. Buenos Aires: CLACSO, 2006. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/grupos/basua/C05Filgueiras.pdf>. Acesso em: 04
jan. 2018.
51

uma fase de aperfeiçoamento e ajuste, que ocorreu no segundo governo FHC


(1999-2002) e no governo Lula (2003-2010).119
Boito120 destaca, inicialmente, dentro do projeto neoliberal brasileiro, a hegemonia
política do grande capital financeiro que se mantém desde o governo Collor até o
governo Lula, priorizando os interesses dos investidores internacionais e dos bancos e
fundos de investimento nacionais. Já na segunda fase do neoliberalismo ocorreram
pressões da burguesia interna, o que possibilitou alianças com o capital financeiro e
garantiu o crescimento nas exportações e a receita em dólar. Ao final, o governo
Lula manteve a política que herdou do governo FHC, implementando uma política
social meramente compensatória.
A primeira questão a ser analisada como parte da consolidação do projeto
neoliberal no Brasil são as pressões para desregulamentação do mercado de
trabalho, redução dos salários e redução dos gastos com direitos sociais, além das
altas taxas de desemprego.

[...] assistiu-se, desde o início da implementação do modelo neoliberal, a


uma redução da participação do montante total dos rendimentos do trabalho na
renda nacional (de mais de 50% para apenas 36%), tendo por contrapartida
o crescimento da participação do montante total dos rendimentos do capital,
especialmente os juros do capital financeiro, e das receitas fiscais do Estado.121

Ainda, a distribuição de renda mostra que o Brasil conserva grandes curvas


de desigualdade social. Em 2016 houve um aumento na quantidade de ricos e de
suas posses em relação ao governo anterior:

119 FILGUEIRAS, L. O neoliberalismo no Brasil: estrutura, dinâmica e ajuste do modelo econômico.


In: BASUALDO, E. M.; ARCEO, E. Neoliberalismo y sectores dominantes. Tendencias globales
y experiencias nacionales. Buenos Aires: CLACSO, 2006. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/grupos/basua/C05Filgueiras.pdf>. Acesso em: 04
jan. 2018.

120 BOITO JR., A. As relações de classe na nova fase do neoliberalismo no Brasil. Buenos Aires: CLACSO,
2006. Disponível em: <http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/gt/20101020015225/9PIICdos.pdf>.
Acesso em: 04 jan. 2018.

121 FILGUEIRAS, L. O neoliberalismo no Brasil: estrutura, dinâmica e ajuste do modelo econômico.


In: BASUALDO, E. M.; ARCEO, E. Neoliberalismo y sectores dominantes. Tendencias globales
y experiencias nacionales. Buenos Aires: CLACSO, 2006. p.188. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/grupos/basua/C05Filgueiras.pdf>. Acesso em: 04
jan. 2018.
52

O ganho médio de uma pessoa que integra o grupo de 1% mais rico da


população era equivalente a 36 vezes do ganho de uma pessoa que integra
o grupo da metade mais pobre do país. 889 mil é o número de pessoas que
integram o grupo de 1% mais rico, que em 2016 teve rendimento médio de
R$ 27 mil/mês. 44,4 milhões é o número de pessoas que integram o grupo
de 50% com menor renda e que em 2016 ganhou R$ 747 em média por
mês, inferior ao salário mínimo.122

Além disso, o governo PT promoveu uma reforma na Previdência Social, retirando


direitos previdenciários dos trabalhadores do setor público e estimulando os fundos
privados de pensão123; cooptou as centrais sindicais, facilitando os acordos de cúpula e
o controle do movimento grevista, enfraquecendo os sindicatos de base; e terceirizou
o trabalho através de subcontratações, permitindo uma articulação orgânica entre
as distintas frações do capital, tornando possível o processo de precarização das
condições de trabalho.124
O segundo fator da política neoliberal no Brasil são as privatizações. As empresas
estatais colocadas a leilão no governo Collor-Itamar e nos governos FHC foram
arrematadas pelo setor bancário, industrial e da construção civil, sendo privatizadas
companhias de energia elétrica e de telefonia, arrematadas pelo capital estrangeiro.
Frise-se que as privatizações só podem ter como participantes grandes empresas
que pertencem a um grupo seleto, os quais defendem os discursos de livre
concorrência e da defesa do mercado.125
Já no governo Lula as privatizações das estatais foram suspensas, mas
criaram-se propostas de privatização dos serviços, com o projeto das parcerias

122 VENTURINI, L. Como está a desigualdade de renda no Brasil, segundo o IBGE. Nexo, 20 nov.
2017. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/11/30/Como-est%C3%A1-a-
desigualdade-de-renda-no-Brasil-segundo-o-IBGE>. Acesso em: 05 jan. 2018.

123 BOITO JR., A. As relações de classe na nova fase do neoliberalismo no Brasil. Buenos Aires: CLACSO,
2006. Disponível em: <http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/gt/20101020015225/9PIICdos.pdf>.
Acesso em: 04 jan. 2018.

124 FILGUEIRAS, L. O neoliberalismo no Brasil: estrutura, dinâmica e ajuste do modelo econômico.


In: BASUALDO, E. M.; ARCEO, E. Neoliberalismo y sectores dominantes. Tendencias globales
y experiencias nacionales. Buenos Aires: CLACSO, 2006. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/grupos/basua/C05Filgueiras.pdf>. Acesso em: 04
jan. 2018.

125 BOITO JR., A. As relações de classe na nova fase do neoliberalismo no Brasil. Buenos Aires: CLACSO,
2006. Disponível em: <http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/gt/20101020015225/9PIICdos.pdf>.
Acesso em: 04 jan. 2018.
53

público-privadas, as chamadas PPPs, aprovadas com a Lei n. o 11.079, de 30 de


dezembro de 2004, que igualmente privilegiam seletos grupos econômicos.126
O terceiro aspecto na política neoliberal é a abertura comercial e a
desregulamentação ou abertura financeira, que teve início no segundo mandato do
FHC e foi continuada no governo Lula. A desregulamentação financeira junto da política
de juros altos e da estabilidade monetária contempla os investimentos financeiros
estrangeiros e os grandes bancos nacionais. Durante o governo Lula, os bancos bateram
recordes de lucratividade, embora os juros altos e a abertura comercial tenham
desfavorecido o setor industrial e essa política tenha sido alvo de manifestações da
Federação das Indústrias, mas que resolveram essa questão repassando para os
consumidores o seu prejuízo.127
No governo FHC houve a redução no valor da moeda, o que possibilitou a
entrada de investimento estrangeiro no país e, no governo Lula, isso avança na mesma
direção, mas, diante da grande dívida externa, busca-se aumentar as exportações,
empregando uma verdadeira política de "caça aos dólares" contando com a exportação
do setor agrícola e da extração mineral.128
Assim, temos hoje, de um lado, o capital financeiro interno e estrangeiro e
de outro uma burguesia industrial, voltada para exportação e monocultura de
exportação, em especial do agronegócio. Ou seja, a política do Estado brasileiro
apenas contribuiu para unificar um único bloco no poder em torno da política
capitalista hegemônica neoliberal.
Esse projeto obteve sucesso no Brasil, pois, ao mesmo tempo em que
estimulou um processo de transnacionalização dos grandes grupos econômicos
nacionais, fortaleceu o bloco capitalista dominante interior, além de expor a fragilidade
financeira do Estado e a sua subordinação crescente à economia dos fluxos

126 BOITO JR., A. As relações de classe na nova fase do neoliberalismo no Brasil. Buenos Aires: CLACSO,
2006. Disponível em: <http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/gt/20101020015225/9PIICdos.pdf>.
Acesso em: 04 jan. 2018.

127 BOITO JR., A. As relações de classe na nova fase do neoliberalismo no Brasil. Buenos Aires: CLACSO,
2006. Disponível em: <http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/gt/20101020015225/9PIICdos.pdf>.
Acesso em: 04 jan. 2018.

128 BOITO JR., A. As relações de classe na nova fase do neoliberalismo no Brasil. Buenos Aires: CLACSO,
2006. Disponível em: <http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/gt/20101020015225/9PIICdos.pdf>.
Acesso em: 04 jan. 2018.
54

internacionais de capitais. Ou seja, esse processo consolidou o domínio dos grandes


grupos hegemônicos da economia nacional e manteve os ganhos das grandes
empresas, que, com a globalização, também aplicaram seus rendimentos no mercado
financeiro.129 Ao mesmo tempo, o discurso neoliberal ganhou adeptos inclusive entre
as classes trabalhadoras porque prega uma redução dos gastos excessivos do Estado
e uma redução dos privilégios, criando um novo domínio ideológico da burguesia
no Brasil.130
A sociedade capitalista cria uma ideologia espontânea e opaca, que se
mostra como universal e neutra, naturalizando a desigualdade periférica e que não
chega à consciência de suas vítimas, justamente por ser ideológica, por fazer parte
da dominação simbólica subpolítica.131
Nem é preciso dizer que esse processo gerou no Brasil diferenças sociais
abissais que crescem a cada dia. Embora tenham sido minimizadas durante o governo
petista, não foram estancadas, deixando a influência do capital financeiro determinar
as políticas públicas, produzindo mais pobreza.
Milton Santos132, falando sobe a pobreza urbana, afirma que a teoria dos países
subdesenvolvidos ou regiões subdesenvolvidas veio para estimular o crescimento e
estimular a superação das desigualdades. Nesse modelo a adoção da industrialização
parecia ser a solução para o desenvolvimento.
Todavia, essa ideia é, na verdade, um cavalo de Tróia, pois o crescimento
deveria ser alcançado independente da forma ou dos seus objetivos, sem levar em
conta a realidade local, enquanto que o status quo era mantido ou agravado. Assim,

129 FILGUEIRAS, L. O neoliberalismo no Brasil: estrutura, dinâmica e ajuste do modelo econômico.


In: BASUALDO, E. M.; ARCEO, E. Neoliberalismo y sectores dominantes. Tendencias globales
y experiencias nacionales. Buenos Aires: CLACSO, 2006. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/grupos/basua/C05Filgueiras.pdf>. Acesso em: 04
jan. 2018.

130 FILGUEIRAS, L. O neoliberalismo no Brasil: estrutura, dinâmica e ajuste do modelo econômico.


In: BASUALDO, E. M.; ARCEO, E. Neoliberalismo y sectores dominantes. Tendencias globales
y experiencias nacionales. Buenos Aires: CLACSO, 2006. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/grupos/basua/C05Filgueiras.pdf>. Acesso em: 04
jan. 2018.

131 SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade
periférica. 2.ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

132 SANTOS, M. Pobreza urbana. 3.ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2013.
55

os conceitos de desenvolvimento e planejamento sempre se impuseram como


ideias-força, embora a desigualdade continuasse a crescer.133
Hoje o que se tem é um crescimento econômico totalmente dissociado dos
índices de desenvolvimento social, mostrando que essa concepção foi realmente
uma farsa. Ao mesmo tempo, essa ideia-força deu margem para a entrada do capital
estrangeiro, sob o falso argumento de que o problema seria a falta de dinheiro
interno para financiar esse desenvolvimento.134
Por isso, Milton Santos135 diz que é preciso perceber que se trata, na verdade,
de uma crise global e uma crise urbana, referindo-se à formação da pobreza. Os
países centrais comandam a economia mundial e exercem influência sobre os
países da periferia, na sua forma de se organizar, de administrar sua economia, sua
sociedade e seu espaço, fazendo uma transferência de civilização, cujas bases não
dependem dos países atingidos.
O modelo capitalista adotado nos países subdesenvolvidos, somado à explosão
demográfica, resultou numa concentração de riqueza e pobreza nas cidades. Essa
pobreza, diz Santos136, não pode ser chamada de marginal137 porque participa da
sociedade, nem pode ser chamada de inútil, pois tem um papel fundamental no atual
sistema capitalista, que seria o de facilitar "a acumulação no centro e na periferia".

133 SANTOS, M. Pobreza urbana. 3.ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2013.

134 SANTOS, M. Pobreza urbana. 3.ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2013.

135 SANTOS, M. Pobreza urbana. 3.ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2013.

136 SANTOS, M. Pobreza urbana. 3.ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2013. p.40.

137 Segundo Santos, o surgimento da expressão marginalidade foi amplamente discutida e acaba sendo
sinônimo de pobreza. A população marginal de uma cidade é julgada excedente ou inútil. Não é
possível considerar também a favela como um mundo autônomo, isolado e à parte, assim como
os marginais não podem se contrapor a sociedade global, já que esta não pode ser definida sem
os pobres, que são maioria numérica, embora sejam minorias sociológicas. Os pobres não são
marginais, mas rejeitados, economicamente explorados e politicamente reprimidos (SANTOS, M.
Pobreza urbana. 3.ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2013. p.36).
56

Ainda nesse compasso, mas com outras ferramentas, Jessé Souza 138 analisa
a construção da subcidadania no Brasil a partir da noção de habitus, em Bourdieu.
Nesse contexto, o "habitus primário" seria

[...] um conjunto de predisposições psicossociais, refletindo, na esfera da


personalidade, a presença da economia emocional e das precondições cognitivas
para um desempenho adequado ao atendimento das demandas (variáveis
no tempo e no espaço) do papel de produtor, com reflexos diretos no papel
de cidadão, sob condições capitalistas modernas.139

E o habitus precário refere-se ao comportamento de um segmento de


inadaptados, como um fenômeno de massa presente também nas sociedades periféricas
como a brasileira, produto da ampliação do habitus primário, que tem início no
século XIX e se intensifica a partir de 1930, com o processo de reeuropeização do
país, sendo a linha divisória traçada entre aqueles que atendem às novas demandas
produtivas e sociais e os que não atendem, relegados ao processo crescente e
permanente de marginalização.140
Nesse contexto, o neoliberalismo decompõe a sociedade entre incluídos e
excluídos e coloca à margem aqueles que não detêm ferramentas financeiras para
competir. O sujeito pobre brasileiro, não europeu, que não compartilha desses valores,
perde a sua característica de ser humano, ou melhor, não é visto como ser humano,
mas como subgente ou subcidadão.
São as instituições do mercado e do Estado que, através de prêmios e castigos,
como o salário, o lucro, o emprego, a repressão policial, conformam a concepção de
mundo e definem quais pessoas podem ou não ser consideradas gente, quem é ou
não cidadão, como algo natural e objetivo.141

138 SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade
periférica. 2.ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

139 SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade
periférica. 2.ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. p.171.

140 SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade
periférica. 2.ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

141 SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade
periférica. 2.ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
57

Nesse quadro, é possível perceber que os projetos de polícia de pacificação ou


de polícia comunitária inserem-se na lógica neoliberal, em parte, como privatização da
segurança, a partir da responsabilização da comunidade, em parceria com empresas
privadas, e porque emprega suas forças na gestão desse contingente de pessoas
pobres e excluída das relações financeiras. Como afirma Bauman: "A responsabilidade
pela situação humana foi privatizada e os instrumentos e métodos de responsabilidade
foram desregulamentados".142 O Estado exime-se de mais essa tarefa e, quando o
projeto não der certo, é porque a comunidade ou o setor privado não investiram ou
não acreditaram o suficiente, ou porque esse contingente de subcidadão é vagabundo,
imoral ou preguiçoso.

1.3 UPP E UPS: um projeto de governamentalidade neoliberal

Para Garland, os dilemas do último terço do século XX são "a normalidade de


altas taxas de criminalidade" e o reconhecimento "das limitações do Estado de justiça
criminal".143 As altas taxas de criminalização se tornaram um fato social normal, algo
rotineiro, assim como o fracasso das penas do Estado penal e da possibilidade de
prover “lei e ordem” dentro de um território, especialmente no tempo em que a
soberania estatal está sob ataque.
Passando a admitir isso, o Estado afirma que não é mais capaz de garantir
sozinho a prevenção dos delitos e que é a comunidade quem deve assumir essa
responsabilidade. Para tanto, busca, através de parcerias com entidades privadas e
com o apoio da comunidade, a implantação de tecnologias de segurança mais
amplas, ampliando as forças do controle social e ampliando o próprio Estado penal.
Esse modelo de polícia proposto nos discursos políticos e acadêmicos não
implica um retorno ao liberalismo, que seria pensado a partir da minimização do

142 BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama, Cláudia Martinelli


Gama. Revisão técnica de Luís Carlos Fridman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.54.

143 GARLAND, D. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução
de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p.243.
58

Estado; na verdade, amplia as esferas de intervenção policial para além dos delitos,
abarcando desordens, incivilidades e emergências ligadas à qualidade de vida no
âmbito urbano, como foi declarado nas políticas de tolerância zero e nas janelas
quebradas. Mas, segundo Sozzo 144, sem dúvida, existe uma afinidade eletiva entre
esses discursos e o neoliberalismo.
Esse neoliberalismo incentivou certas inovações na técnica governamental, dentre
as quais a construção de indivíduos ativos e independentes, ou seja, responsabilizando
a comunidade e o setor privado pela busca da segurança, buscando o seu engajamento
nessa pauta e a mudança das instituições, inclusive estatais, para o modelo "empresa
comercial", fazendo com que a polícia passe a se organizar como uma empresa que
deve atender às necessidades do cliente, já que a doutrina de polícia comunitária
prega que é a comunidade que deve identificar os seus problemas, que deve se
mobilizar para a sua própria segurança em parceria com a polícia e buscar sempre a
prevenção, além de ser tarefa desse modelo de polícia remover a impressão de que
a polícia é violenta, corrupta e ineficaz.
O neoliberalismo, com a privatização das atividades estatais, instaura uma
nova técnica positiva de governo, privatizando a segurança pública e responsabilizando
as empresas privadas, chamando isso de "prudencialismo privatizado", diante da
possibilidade de reconfigurar uma comunidade, gerenciando especialmente a massa
de excluídos e sobrantes.145 É uma parceria público-privada estabelecida entre a
polícia e a comunidade para a gestão da pobreza que incomoda.
Para Garland146, o passo mais importante desse projeto foi chamar atores não
estatais para as práticas preventivas, focando nas práticas informais. Chamar a
comunidade e o setor privado para essa prevenção é uma forma de responsabilização,
sendo uma mudança estratégica de ação por parte do governo, criando uma rede
otimizada de controle do crime. Segundo essa visão, todos devem prevenir o crime,
sendo que isso não é uma tarefa apenas da polícia.

144 SOZZO, M. Polícia, governo e racionalidade: incursões a partir de Michel Foucault. Discursos
Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, v.17, n.19/20, p.511-554, 1.o e 2.o semestre de 2012.
145 SOZZO, M. Polícia, governo e racionalidade: incursões a partir de Michel Foucault. Discursos
Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, v.17, n.19/20, p.511-554, 1.o e 2.o semestre de 2012.
146 GARLAND, D. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução
de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
59

Quando se deu a instalação das UPPs, ficou claro que era essa a intenção
das forças de ordem, uma vez que o projeto foi entabulado pelo governo federal e
estadual em conjunto com empresários, desde o planejamento até o financiamento,
buscando criar a imagem de uma cidade atraente para investimentos. Investimentos
de empresas como "Coca-Cola, Souza Cruz, Firjan, Bradesco Seguros, Light, CBF e
a empresa EBX, do multimilionário Eike Batista"147 remontam à quantia de 60
milhões de reais, apoiados pelas propagandas institucionais que comercializavam o
modelo de pacificação pela UPP como uma grife.
Nesse contexto, colocou-se a favela com a imagem de que ela é um "problema"
paisagístico e ambiental de forte visibilidade que precisava ser modificado 148, sob o
discurso de que era um lugar violento e de concentração de crimes, sob o domínio
do tráfico de entorpecentes e, por isso, devia ser também pacificado.
A intervenção urbana na favela se justificaria porque a cidade foi construída
sem planejamento e agora, em razão dos megaeventos, precisa ser replanejada,
passando a ser administrada como uma cidade-empresa.149
A abertura de microcréditos a pequenos empresários, junto com a venda da
cultura do morro e com os teleféricos construídos com o dinheiro do PAC, trouxe o
turismo para a favela e auxiliou no processo de gentrificação do território, os quais
tiveram uma valorização de 400%, inviabilizando, inclusive, a presença dos moradores
tradicionais150, expulsos pela especulação do mercado mobiliário.
Vera Malaguti Batista151 argumenta que a cidade do Rio de Janeiro fora
transformada em commodities que estão à venda, tal como uma cidade-empresa a
ser comercializada na "bolsa de imagens urbanas". Tanto é que, além da crescente
valorização imobiliária na região, houve o encarecimento dos serviços públicos, o

147 GRANJA, P. UPP: o novo dono da favela: cadê o Amarildo? Rio de Janeiro: Revan, 2015. p.25.

148 VALENTE, J. L. UPPs: governo militarizado e a ideia de pacificação. Rio de Janeiro: Revan, 2016.

149 BRITO, F. Considerações sobre a regulação armada dos territórios cariocas. In: BRITO, F.;
OLIVEIRA, P. R. (Orgs.). Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida
social. São Paulo: Boitempo, 2013.

150 BRITO, F. Considerações sobre a regulação armada dos territórios cariocas. In: BRITO, F.;
OLIVEIRA, P. R. (Orgs.). Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida
social. São Paulo: Boitempo, 2013.

151 BATISTA, V. M. O Alemão é muito mais complexo. In: Paz armada. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012.
60

que tem causado esse processo de migração dos moradores para outras áreas com
menor custo de vida.
A mesma relação é perceptível nas UPSs, que, para a implementação das
Unidades, firmaram compromissos de cooperação com a Federação das Indústrias do
Paraná (FIEP), para que pudessem fornecer dados sobre a implantação dos 8 objetivos
de desenvolvimento do milênio152 e promover reuniões nos locais que receberam as
UPSs. Além disso, no termo de cooperação para o Município de Colombo para a
UPS da Vila Zumbi, cabia à FIEP o apoio institucional ao projeto, buscando promover
ações sinérgicas para potencializar os resultados; SESI e SENAI deveriam capacitar
os moradores atendidos pela UPS e ofertar cursos de profissionalização básica.
Frise-se também que, em especial, a Vila Zumbi e Liberdade estão em uma
região cercada por grandes empresas, como o Condomínio Alphaville, o Centro Industrial
Mauá e o Clube de Campo Santa Mônica, espaços frequentados por pessoas de alto
poder aquisitivo que querem ter a sua segurança preservada, além de ser apoiada
de diversas formas por essas empresas.
É com razão que Garland153, ao comentar o caso britânico, afirma que "o
investimento na criminalidade e os dispositivos de segurança são, portanto, impostos
cada vez mais por forças econômicas do que pela política pública", demonstrando
que a motivação dessa política de "pacificação" é o interesse econômico nos territórios
escolhidos e arredores, bem como nas economias populares.
Ao mesmo tempo, a polícia também exige que os seus clientes tomem mais
cuidado, empregando uma lógica de prevenção situacional154, recomendando, por
exemplo, para não andar com dinheiro na bolsa, apenas o cartão; verificar o portão
de casa antes de entrar para ver se não tem ninguém estranho; morar em condomínios
fechados; não andar em lugares suspeitos; não sair à noite sozinho, fomentando a
indústria da segurança privada.

152 OBJETIVOS DO MILÉNIO. 8 jeitos de mudar o mundo. Disponível em:


<http://www.objetivosdomilenio.org.br/>. Acesso em: 07 jan. 2018.
153 GARLAND, D. As contradições da "sociedade punitiva": o caso britânico. In: BOURDIEU, P. (Org.).
De L'Etat social al Etat penal. Discursos Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro,
v.7, n.11, p.83, 2002.
154 GARLAND, D. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução
de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
61

Além disso, a discussão de que o projeto de policiamento comunitário instalado


no Brasil, em especial os dois modelos tratados nesse trabalho, que são o fluminense e
o paranaense, se consolidam como projeto de governabilidade neoliberal fica patente,
em especial, pelo fato de que tanto as UPPs quanto as UPSs obtiveram recursos do
BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento, com sede em Washington e com a
participação de 30% nos fundos pelos Estados Unidos. O banco financia programas
sociais dos países membros, desde que sigam a cartilha neoliberal.155
Segundo as informações recebidas pelo 1.o CRPM-PR, os recursos do BID
recebidos no Paraná foram de 84,5 milhões, a serem gastos entre março de 2013 e
dezembro de 2017, com a implantação de Unidades Modulares da Polícia, aquisição de
viaturas, rádio, computadores, desenvolvimento de um sistema integrado de informação
entre as polícias e o oferecimento de cursos de formação em policiamento comunitário
para os profissionais envolvidos no projeto, além de monitorar e acompanhar a
família de jovens em conflitos com a lei. Esses recursos foram empregados com o
objetivo de aumentar a eficácia da polícia civil e militar, para o controle e prevenção
do delito e evitar a reincidência da população jovem.
Portanto, o liberalismo oferece a possibilidade de se fazer um governo à
distância. Isso seria feito através da identificação de questões e a mobilização de
vários atores, sugerindo-lhes uma determinada atuação sem retirar sua autonomia
ou existência. O governo à distância procura formar uma rede de agentes e agências,
buscando dar-lhes um direcionamento comum em um determinado problema. Isso
constitui uma ambiguidade fundamental156, já que os próprios moradores afetados por
essa política não foram ouvidos. Quem desenvolveu "soluções" para os "problemas"
das favelas foram os "brancos do asfalto", com a sua racionalidade neoliberal,
pensando na promoção de sua vida e segurança em detrimento da deles.
Por isso, o projeto de uma polícia comunitária se inscreve dentro de uma crise
de soberania e seria, portanto, um projeto de governamentalidade, de governo à
distância. Essa estratégia é motivada por uma

155 BID MELHORANDO VIDAS. Disponível em: <https://www.iadb.org/pt>. Acesso em: 07 jan. 2018.

156 SOZZO, M. Polícia, governo e racionalidade: incursões a partir de Michel Foucault. Discursos
Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, v.17, n.19/20, p.511-554, 1.o e 2.o semestre de 2012.
62

[...] nova concepção de exercício de poder no campo do controle do crime,


uma nova forma de 'governar à distância' que introduz princípios e técnicas
de governo que, a essa altura, já estão bem sedimentadas em outras áreas
da política econômica e social.157

Para Garland, a soberania, como um conceito complexo, pode ser compreendida


como a capacidade do Estado de governar um território e garantir a resistência de
inimigos internos e externos, ao menos, isso faz parte da promessa do Estado aos
seus cidadãos. No entanto, essa noção de soberania se tornou insustentável, já
que o Estado não consegue mais garantir o afastamento e a neutralização de
seus "inimigos".158
Ainda, cabe observar que Foucault159 também vai atrelar a noção de soberania à
noção de território, afirmando que a soberania se exerce sobre um território, mas
essa noção se amplia com a concepção de população e finalmente com a noção de
governamentalidade.
Mesmo admitindo-se o fracasso e reposicionando os objetivos estatais, a polícia
ainda diz ter a possibilidade de resolver crimes graves e levar criminosos perigosos
a julgamento e, recentemente, a polícia norte-americana disse que era possível
tornar as ruas mais seguras e empregou suas forças contra crimes leves e pequenos
distúrbios, com a política de tolerância zero, mas ela também avisa que não pode
agir contra crimes aleatórios.160
O discurso ambivalente e esquizofrênico da política de segurança é retratado no
Brasil tanto pela corporação policial quanto pelas mídias de massa, que pedem mais
polícia, mais prisão e mais julgamentos.
Dentro das agências estatais também é preciso provocar algumas mudanças na
organização, procurando o planejamento estratégico e a cooperação interagências,

157 GARLAND, D. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução
de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p.273-274.

158 GARLAND, D. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução
de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

159 FOUCAULT, M. Segurança, território e população: curso dado no College de France (1977-1978).
Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

160 GARLAND, D. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução
de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
63

além do compartilhamento de decisões entre os departamentos que antes operavam


apartadamente.161 Isso também pode ser identificado no projeto brasileiro, em especial
do Paraná, em que se estabeleceram convênios entre o município, o estado e a
federação das indústrias, buscando a mobilização e a injeção de recursos no projeto
das UPSs, bem como a integração entre as diversas secretarias municipais e estaduais
que não atuam em conjunto em outras regiões.
Essas políticas são, portanto, esquizofrênicas, já que, de um lado, afirmam
que o Estado não é capaz de "combater o crime" e, de outro, continuam pregando a
necessidade de um Estado fortemente armado. Garland162 chama esses discursos
de uma "criminologia do eu", que coloca o sujeito criminalizado como um sujeito
normal, e uma "criminologia do outro", que o coloca como inimigo. Uma é invocada
para banalizar o medo do crime e a outra para demonizá-lo.
Essa soma de argumentos dá sustentação para qualquer política de segurança,
o que tem como reflexo o agigantamento do sistema penal, que passa a ser
administrado tanto para fins neoliberais, quanto para fins neoconservadores, ou seja,
existe uma política para ambas as criminologias e essas políticas coexistem, por isso
o sistema penal se expande.
Essas duas políticas somente coexistem porque são forjadas dentro do
neoliberalismo e dentro do neoconservadorismo, como ambiente ideológico, porque
são ambivalentes, assim como as próprias políticas penais decorrentes destas são
ambivalentes. Por isso Garland acerta quando afirma que "a soberania do Estado
sobre o crime é simultaneamente negada e simbolicamente reafirmada".163
Assim, o Estado aumenta o controle social sobre aqueles que são excluídos e
marginalizados, embora reconheça cada vez mais a inadequação desta estratégia
soberana, criando novas formas de governo à distância, como o policiamento
dito comunitário.

161 GARLAND, D. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução
de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
162 GARLAND, D. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução
de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
163 GARLAND, D. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução
de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p.289.
64

1.4 Direito à segurança versus segurança dos direitos

A polícia, conforme compreendida por Bayley164, seria um grupo de pessoas


autorizadas a fazer uso da força física para controlar as condutas de outro grupo de
pessoas. Assim, ela se diferencia do exército porque é utilizada para aplicar essa força
dentro de um determinado território, além de possuir supostamente uma autorização
coletiva para agir.
Porém, como constata Bayley165, a força policial tende a ser maior em países
quando este território está associado a uma desigualdade social, ou seja, em matéria
de educação, emprego e rendimentos, fatos estes que ensejam uma maior atuação
policial, que se destina a controlar os problemas sociais.
Essa visão também se reproduz nos mitos formados em torno dos problemas
ou fracassos das políticas de segurança pública:

- "segurança pública é caso de polícia";


- "é preciso uma polícia dura, os direitos humanos deveriam existir apenas
para cidadãos de bem";
- "o problema é social, a polícia só pode enxugar gelo";
- "a questão é muito complexa, depende de toda a sociedade, e os
governos pouco ou nada podem fazer";
- "o problema é meramente de falta de recursos; com mais dinheiro os
problemas serão resolvidos";
- "com mais viaturas e policiais resolveremos o problema";
- "com o crescimento econômico o problema será resolvido".166

Essa constatação apenas se justifica enquanto discurso midiático e inverte as


proposições de segurança pública ofertadas pelo governo neoliberal, pois quanto
maior a quantidade de polícia não se teria mais segurança, pelo contrário, é sinal de

164 BAYLEY, D. H. Padrões de policiamento: uma análise internacional comparativa. Tradução de Renê
Alexandre Belmonte. 2.ed. 1.a reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
165 BAYLEY, D. H. Padrões de policiamento: uma análise internacional comparativa. Tradução de Renê
Alexandre Belmonte. 2.ed. 1.a reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
166 CERQUEIRA, D.; LOBÃO, W.; CARVALHO, A. O jogo dos sete mitos e a miséria da segurança
pública no Brasil. In: CRUZ, M. V. G.; BATITUCCI, E. C. (Org.). Homicídios no Brasil. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2007. p.143.
65

que se tem mais problemas sociais decorrentes das crescentes desigualdades, que
vitimam em especial as pessoas e os países periféricos.

1.4.1 A Remilitarização como renovação do belicismo nas favelas

Após o período da ditadura militar no Brasil, as forças policiais foram


reorganizadas. A administração das forças policiais se deslocou do Exército para o
governador do Estado, que passou a administrar a política de segurança pública local.
Porém, esse contato mantém até hoje a ideia de que a polícia, além de promover a
ordem pública, deve reproduzir a lógica militar.167 Ou seja, o legado do militarismo e
da doutrina de segurança nacional permaneceram vivos na organização.
No contexto pós-guerra fria houve um avanço da militarização, a partir do
paradigma estadunidense, na América Latina e no Brasil, conforme será tratado no
segundo capítulo. Como a América Latina é formada por democracias fracas, com
pouca integração do seu território, isso facilitou de forma acelerada a militarização
da política e da sociedade, ao invés de fortalecer a democracia.168
Perseguiu-se dentro do contexto militar um segmento político, uma unidade
de pensamento político, que criou organizações com regimes políticos militares, não
democráticos e autoritários, ao buscar combater os movimentos inimigos de comunistas
e de neocomunistas, e a tomada de decisões em relação à segurança passou a
estar subordinada à cúpula do poder civil e militar, em que o poder armado parece
ganhar força e espaço.169
Vários fatores levaram, portanto, ao processo de modelação da polícia sobre
as bases militares, em especial a existência de conflitos políticos e a possibilidade

167 HOLLANDA, C. B. Polícia e direitos humanos: política de segurança pública no primeiro governo
Brizola (Rio de Janeiro: 1983-1986). Rio de Janeiro: Revan, 2005.
168 MACHILLANDA, J. La remilitarización de la seguridad en América Latina. Nueva Sociedad, v.198,
p.130-144, jul./ago. 2005. Disponível em: <http://nuso.org/media/articles/downloads/3276_1.pdf>.
Acesso em: 18 dez. 2017.
169 MACHILLANDA, J. La remilitarización de la seguridad en América Latina. Nueva Sociedad, v.198,
p.130-144, jul./ago. 2005. Disponível em: <http://nuso.org/media/articles/downloads/3276_1.pdf>.
Acesso em: 18 dez. 2017.
66

de serem dirimidos através da violência. A militarização também está estruturalmente


conectada à questão dos inimigos políticos, os quais são representados de forma
privilegiada pelo movimento trabalhador.170
Falando sobre a formação da polícia argentina, Sozzo 171 afirma que a junção
da gramática do inimigo político com a do inimigo biológico "se inscreve num jogo
governamental autoritário, onde o sujeito a governar não é visualizado como um
'sujeito livre e racional'", mas simplesmente como um inimigo a ser neutralizado.
Nesse jogo governamental autoritário, a figura do policial é concebida como
uma "missão-vocação" de defender a sociedade, e nisso ele se diferencia dos
demais cidadãos, sendo convocado a atuar na qualidade de "herói-mártir", já que a
figura do inimigo só pode ser combatida com uma guerra e, nessa guerra, a polícia
deve estar disposta a arriscar a sua vida para chegar à vitória e se tornar herói, ou
sacrificá-la para se tornar um mártir. Assim, a atividade policial é pensada a partir da
"metáfora da guerra", e por isso se justificaria o uso da violência de forma irrestrita.172
Essa metáfora da guerra esteve presente no Brasil a partir da doutrina de
segurança nacional e se renova com a figura do traficante como inimigo. Nesse
contexto, o conceito de "guerra suja" passa a vigorar como política pública, que
consiste em utilizar todo tipo de armamento e de táticas para eliminar o inimigo, sem
qualquer respeito às leis vigentes, uma vez que o inimigo também não respeitaria
essas leis.173
A metáfora da guerra fica clara na política das UPPs, pois Beltrame 174 admite
que, embora planejasse as ações policiais para evitar mortes, algumas delas seriam
inevitáveis. Interessante notar que o secretário se pergunta: "Como agir dentro da Lei
no lugar onde a lei já não vigora há tanto tempo?" Isso demonstra o real estado de

170 SOZZO, M. Polícia, governo e racionalidade: incursões a partir de Michel Foucault. Discursos
Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, v.17, n.19/20, p.511-554, 1.o e 2.o semestre de 2012.

171 SOZZO, M. Polícia, governo e racionalidade: incursões a partir de Michel Foucault. Discursos
Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, v.17, n.19/20, p.535, 1.o e 2.o semestre de 2012.

172 SOZZO, M. Polícia, governo e racionalidade: incursões a partir de Michel Foucault. Discursos
Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, v.17, n.19/20, p.511-554, 1.o e 2.o semestre de 2012.

173 ZACCONE, O.; SERRA, C. H. A. Guerra é paz: os paradoxos da política de segurança de confronto
humanitário. In: BATISTA, Vera Malaguti (Org.). Paz armada. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012.

174 BELTRAME, J. M. Todo dia é segunda-feira. Rio de Janeiro: Sextante, 2014. p.132.
67

exceção do qual se está falando, bem como que a linguagem de guerra continua na
mentalidade dos operadores da segurança pública, quando fala que a "batalha"
poderia se transformar numa carnificina, quando assume a necessidade de chamar as
forças armadas e blindados para dar conta da ocupação na Vila Cruzeiro, por exemplo.
Para Zaccone e Serra175, a remilitarização das agências policiais é um novo
modelo de controle social e decorre da doutrina de segurança nacional, o que resulta
no "uso rotineiro da violência letal pelas polícias, transformando em técnica de
governabilidade e eliminação de inimigos", abrindo espaço para a segurança cidadã.
Pensando em uma tipologia que combina o poder de fogo com o ethos,
Brodeur176 propõe quatro tipos de organizações, compreendo por ethos a descrição
das regras e a forma de conduta exterior determinados por fatores contextuais.
A primeira tipologia seria aquela que combina o ethos policial com poder de fogo
policial; a segunda, aquela que combina o ethos militar com o poder de fogo militar;
a terceira é a polícia militarizada que tem um ethos militar com poder de fogo policial;
e o última forma seriam as forças internacionais, que combinam ethos policial com
um poder de fogo militar.
O ethos da polícia decorre do seu monopólio do uso legítimo da força, o que é
uma grande vantagem em face daqueles contra os quais se exerce a violência, mas que
deveria fazer a polícia usar a força com moderação, para garantir a sua legitimidade.
Portanto, o seu ethos é da força mínima. O ethos policial é voltado ao controle da
ordem e tem um baixo poder de fogo, mas estrutura suas carreiras como no exército,
e os altos cargos têm a função de gestão e disciplina.177
Já o exército tem o ethos militar e o poder de fogo máximo, mas procura uma
nova função, já que depois do fim da guerra fria perdeu o seu principal inimigo, se é
que já não encontrou. Para os militares, é difícil falar em ethos do uso da força,

175 ZACCONE, O.; SERRA, C. H. A. Guerra é paz: os paradoxos da política de segurança de confronto
humanitário. In: BATISTA, Vera Malaguti (Org.). Paz armada. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012. p.30.

176 BRODEUR, J. P. Por uma sociologia da força pública: considerações sobre a força policial e militar.
Caderno CRH - Dossiê: Gênero, Idades, Gerações, Salvador, v.17, n.42, p.481-489, 2004. Disponível
em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/crh/article/view/18507>. Acesso em: 18 dez. 2017.

177 BRODEUR, J. P. Por uma sociologia da força pública: considerações sobre a força policial e militar.
Caderno CRH - Dossiê: Gênero, Idades, Gerações, Salvador, v.17, n.42, p.481-489, 2004. Disponível
em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/crh/article/view/18507>. Acesso em: 18 dez. 2017.
68

porque ele pode se confundir com uma força terminal, como de uma arma nuclear.
Assim, tem-se definido que os militares têm o objetivo de subjugar o adversário e
vencê-lo, provocando o mínimo de perda, ou seja, nenhuma morte.178
Em relação ao contexto de intervenção, é necessário frisar que o exército
intervém em um contexto de guerra declarada. Na guerra se busca sair vitorioso e
abater ou aniquilar o inimigo. A polícia, pelo contrário, busca estabelecer uma ordem
provisória, ou seja, a polícia deve agir em face de um ou vários grupos e, quando ela
enfrenta um grupo mais forte, deve sair em retirada, aguardando o momento de
retornar. Depois, os exércitos estão sempre fardados, enquanto a polícia, em uma
situação de confronto, só ela está fardada.179
O que temos, pensando nessas tipologias, quando avaliamos as UPPs, é um
tipo híbrido, de uma polícia militarizada, que normalmente se organiza com o baixo
poder de fogo, mas se opõe a grupos armados como se estivesse em guerra. Ainda,
no projeto das ocupações de pacificação, viu-se o poder de fogo da polícia aumentar,
bem como o seu contato com os militares e a intervenção militar no território da
cidade. Percebeu-se uma combinação dos dois ethos, ou seja, o que se enfrentou
no Rio de Janeiro foi um processo de remilitarização da polícia e da segurança
pública, como já havia alertado Cerqueira em relação à operação Rio 92.
A remilitarização, conforme o conceito formulado por Machillanda 180, deve ser
compreendida como um processo político protagonizado pelo estamento armado, o
qual cria um novo espaço político próprio para o militar, com capacidade de incidir
nas definições de políticas dos Estados. Ou seja, a remilitarização seria um novo
espaço de poder político-militar, invocado pela militarização da segurança regional,
sub-regional e pública.

178 BRODEUR, J. P. Por uma sociologia da força pública: considerações sobre a força policial e militar.
Caderno CRH - Dossiê: Gênero, Idades, Gerações, Salvador, v.17, n.42, p.481-489, 2004. Disponível
em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/crh/article/view/18507>. Acesso em: 18 dez. 2017.

179 BRODEUR, J. P. Por uma sociologia da força pública: considerações sobre a força policial e militar.
Caderno CRH - Dossiê: Gênero, Idades, Gerações, Salvador, v.17, n.42, p.481-489, 2004. Disponível
em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/crh/article/view/18507>. Acesso em: 18 dez. 2017.

180 MACHILLANDA, J. La remilitarización de la seguridad en América Latina. Nueva Sociedad, v.198,


p.130-144, jul./ago. 2005. Disponível em: <http://nuso.org/media/articles/downloads/3276_1.pdf>.
Acesso em: 18 dez. 2017.
69

A partir desse conceito, é possível tratar o projeto das UPPs como de uma
política de segurança pública numa perspectiva militarizada, pois essas Unidades de
Polícia consagraram o paradigma de que a segurança militar é a porta de entrada da
cidadania. Ao menos, esse é o discurso que legitima a sua implantação 181, após a
intervenção maciça das forças policiais e militares.
Como bem observa Pedro Rocha de Oliveira, "O resultado é uma comunidade
de reféns que se mantém coesa, de um lado, pela ponta do fuzil e, de outro, pelo
mecanismo que a psicanálise chama de identificação com o agressor".182
Assim, com a implantação das UPPs e as constantes intervenções militares
ocorridas no Rio de Janeiro nos anos de 2016 e 2017, é possível verificar como a
chamada segurança pública é tratada pelo paradigma militar, podendo se falar em
um processo de remilitarização dentro do projeto de governamentalidade neoliberal.
No Paraná, a implantação das UPSs não teve o apoio das forças do exército
e não teve uma ampliação do poder de fogo da polícia de forma expressiva, mas a
mentalidade da guerra ao crime e da Doutrina de Segurança Nacional, de que se tem
um inimigo interno a ser combatido, está presente nos oficiais que pensaram a política,
como se pode constatar a partir das suas entrevistas apresentadas no quarto capítulo.
Também o ritual de hastear uma bandeira no topo do morro, utilizado durante
as ocupações das favelas cariocas, é demonstrativo da ideia de conquista territorial
que baseava o planejamento das ações. No Paraná não houve esse ritual, porém,
durante a fase de congelamento das UPSs, várias viaturas, motos e até mesmo
helicópteros eram exibidos para os inimigos moradores das favelas como forma de
intimidação, formando um cerco nos limites territoriais da área que receberia a
unidade de polícia para abordar todos que entravam e saíam desses lugares.
Ainda, é possível pensar que a ocupação dos militares no Paraná teve início
quatro anos antes da abertura democrática, ou seja, em 1980, quando se pensou a
implantação das unidades modulares de polícia, ou seja, antes que a polícia militar

181 BRITO, F. Considerações sobre a regulação armada dos territórios cariocas. In: BRITO, F.;
OLIVEIRA, P. R. (Orgs.). Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida
social. São Paulo: Boitempo, 2013.

182 OLIVEIRA, P. R. Golpes de vista. In: BRITO, F. OLIVEIRA, P. R. (Orgs.). Até o último homem:
visões cariocas da administração armada da vida social. São Paulo: Boitempo, 2013. p.29-30.
70

perdesse o controle sobre o Estado Brasileiro, pensou-se em uma forma de espraiar


o domínio territorial da polícia militar do Paraná através dos módulos policiais.
Na mentalidade dos policiais militares, aqueles que violam as leis merecem ser
tratados com maior severidade que "as pessoas de bem". Para tanto, institucionaliza-se
a violência oficiosa e se mata ao invés de investir em escola ou prisão. Ou seja, a
ampliação do Estado penal por um viés militar promove a militarização da própria vida.
Portanto, a violência é utilitariamente retratada como algo natural. Assim
como se retrata com naturalidade a condição do pobre, a existência de um traficante
e se autoriza sua execução183, autoriza-se a atuação do direito penal subterrâneo184
contra a população sobrante, autoriza-se a sua morte e eliminação física, bem como
a ocupação do território.
A banalização e o enaltecimento da violência executada pela ação da polícia
ficam ainda mais evidentes quando se ouve o lema das tropas de elite:

O interrogatório é muito fácil de fazer: pega o favelado e dá porrada até


doer. O interrogatório é muito fácil de acabar: pega o bandido e dá porrada
até matar.
Bandido favelado não se varre com vassoura, se varre com granada, com
fuzil e metralhadora.
Ó homem de preto, qual é a sua missão? Entrar na favela e deixar o corpo
no chão.
A mãe dá a luz, a Rota apaga.185

O ethos híbrido policial-militar da polícia brasileira pode ser representado pela


figura do famoso inspetor da polícia civil conhecido como Trovão, que, em uma cena
estampada pelos jornais, com uma farda militar, acende um charuto sobre os corpos
de homens, afrodescendentes e favelados mortos pela polícia. Após esse episódio,

183 OLIVEIRA, P. R. Golpes de vista. In: BRITO, F. OLIVEIRA, P. R. (Orgs.). Até o último homem:
visões cariocas da administração armada da vida social. São Paulo: Boitempo, 2013.

184 É o conjunto de delitos cometidos por operadores das próprias agências do sistema penal. Atua
de forma ampla na razão direta das agências executivas e na razão inversa do controle que
sofrem de outras agências. Conta com a participação ativa ou omissa dos operadores das demais
agências. (ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito penal brasileiro:
teoria geral do direito penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v.1).

185 BRITO, F. Considerações sobre a regulação armada dos territórios cariocas. In: BRITO, F.;
OLIVEIRA, P. R. (Orgs.). Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida
social. São Paulo: Boitempo, 2013. p.67.
71

Trovão foi também vítima do sistema penal, pois foi preso na Operação Guilhotina186,
que tinha como objetivo investigar como funcionava o esquema de corrupção das
polícias no Estado do Rio de Janeiro. Nessa operação ficou demonstrado que os
policiais, como conheciam os lugares onde estavam os traficantes, teriam realizado
acordos com estes em troca de informações, tendo sido autorizados a pilhar as
favelas, durante as ocupações da Vila Cruzeiro e o Complexo do Alemão.187
Assim, é possível verificar que homens afrodescendentes e favelados são
constantemente tratados como inimigos a serem mortos na guerra contra o crime e
contra o tráfico. Embora o Mapa da Violência de 2015 aponte um decréscimo no
número de homicídios por arma de fogo no Rio de Janeiro, cuja taxa, se comparada a
de 2011 com 2012, é de 11,7%188, o relatório da Anistia Internacional sobre as
mortes provocadas pela polícia afirma que

Em um período de dez anos (2005-2014), foram registrados 8.466 casos de


homicídio decorrente de intervenção policial no estado do Rio de Janeiro;
5.132 casos apenas na capital. Apesar da tendência de queda observada
a partir de 2011, um aumento de quase 39,4% foi verificado entre 2013
e 2014. O número de pessoas mortas pela Polícia representa parcela
significativa do total de homicídios. Em 2014, por exemplo, os homicídios
praticados por policiais em serviço corresponderam a 15,6% do número total
de homicídios na cidade do Rio de Janeiro.189

186 Em uma reportagem exibida no Fantástico, é possível verificar como foi a cobertura midiática da Rede
Globo à Operação Guilhotina. (POLICIAIS negociam armas e drogas no Complexo do Alemão.
Fantástico, 13 fev. 2011. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=UISGPGnN8cw>.
Acesso em: 07 jan. 2018).

187 OLIVEIRA, P. R. Golpes de vista. In: BRITO, F. OLIVEIRA, P. R. (Orgs.). Até o último homem:
visões cariocas da administração armada da vida social. São Paulo: Boitempo, 2013.

188 WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência: mortes matadas por arma de fogo. Brasília, 2015.
Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/mapaViolencia2015.pdf>. Acesso
em: 23 out. 2015.

189 ANISTIA INTERNACIONAL. Quem matou meu filho? Homicídios cometidos pela polícia militar na
cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Anistia Internacional, 2015. p.6. Disponível em:
<https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2015/07/Voce-matou-meu-filho_Anistia-Internacional-
2015.pdf>. Acesso em: 23 out. 2015.
72

Do total de mortes registradas, constata-se, ainda, que 99,5% eram homens,


79% eram negros e 75% tinham entre 15 e 29 anos de idade. 190 Em 2016, o número
de mortes provocadas pela polícia cresceu vertiginosamente, superando o número
de mortes dos últimos 10 anos, no Rio de Janeiro.
Ou seja, sob o discurso da pacificação, da ordem e da paz se deu continuidade
à guerra contra o inimigo interno, que é a população marginalizada.

A paz é a guerra. A paz é manter sobre o controle armado a população que


o capital já considera sobrante; é tornar expedientes cotidianos os autos de
resistência e a ocupação militar [...] é fazer proliferar as periferias,
reconhecê-las como tal e cercá-las da maneira mais violenta e menos
custosa possível.191

Orlando Zaccone192 reúne informações em sua tese a respeito dos pedidos de


arquivamento realizados pelo Ministério Público em autos de resistência 193, durante
os anos de 2003 a 2009. Nessa pesquisa foi possível constatar que a definição do
inimigo toma como base os territórios segregados e legitima as mortes ocorridas em
suposto confronto; em outras palavras, se é favelado, pode matar. Em vários casos
analisados e arquivados sob a alegação de que o policial teria agido em legítima
defesa, foram levados em consideração em sua fundamentação os seguintes
argumentos: a) fora encontrado junto do corpo arma e drogas; b) tem passagem pela
polícia e antecedentes criminais; e c) morava na favela.
A justificativa da violência institucional está diretamente ligada à execução da
chamada guerra às drogas, bem como está intimamente ligada à condição de
favelado, à visão de que a favela é o locus do mal e que todos que ali residem são

190 ANISTIA INTERNACIONAL. Quem matou meu filho? Homicídios cometidos pela polícia militar na
cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Anistia Internacional, 2015. Disponível em:
<https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2015/07/Voce-matou-meu-filho_Anistia-Internacional-
2015.pdf>. Acesso em: 23 out. 2015.

191 BRITO, F. Considerações sobre a regulação armada dos territórios cariocas. In: BRITO, F.;
OLIVEIRA, P. R. (Orgs.). Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida
social. São Paulo: Boitempo, 2013. p.83.

192 ZACCONE, O. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

193 Autos de resistência são instaurados quando ocorre uma morte supostamente decorrente de
confronto policial.
73

desprovidos da condição de cidadãos, portadores de direitos, fica explicitamente


defendida pelo órgão do Ministério Público quando das promoções de arquivamento
e amplamente aceita pelos órgãos do poder judiciário. O morto não tem sequer
direito a ter sua execução investigada, delineando-se a forma do estado de exceção
para estes retratados como inimigos.

O discurso da defesa social, voltado para legitimar ações letais praticadas a


partir de intervenções policiais, encontra amparo não só nas palavras dos
promotores de justiça criminal. Uma cultura punitiva se estabelece como
forma de sociabilidade na qual a criação e manutenção da ordem se
indeterminam não apenas a partir do chamado monopólio do uso da força
pela polícia, mas principalmente pelos discursos punitivos, presentes em
outras inúmeras agências de controle social com destaque para os
discursos midiáticos.194

Um caso de "desaparecimento" dentro de uma unidade de polícia pacificadora


instalada na Rocinha acabou ganhando ampla repercussão. Amarildo Dias Souza
era pedreiro e morador da Rocinha. No dia 14 de julho de 2013, foi levado por
policiais militares para a sede da UPP supostamente para um interrogatório. No
entanto, embora a polícia afirme que ele foi liberado às 19h30, nas câmeras do local
não é possível ver a sua saída, bem como vizinhos afirmam que não viram Amarildo
deixando a UPP. Tal desaparecimento foi motivo de diversos protestos por parte dos
moradores e só por isso acabou ganhando repercussão nacional. Os familiares
apenas manifestam seu interesse em ter maiores detalhes e poderem enterrar o
corpo de Amarildo em entrevista ao jornal "A Nova Democracia".195 Até hoje não se
sabe exatamente o que foi que aconteceu, embora os policiais tenham sido condenados
pelo júri popular.
Infelizmente, este não é um caso isolado. Foram registradas várias mortes, em
especial de adolescentes, por policiais vinculados às UPPs, assim como de mortos
por balas perdidas. Recentemente foi noticiada a morte de um adolescente de 17
anos na favela da Providência e a ação dos policiais plantando drogas e arma na
cena do crime ganhou grande repercussão, demonstrando a forma de agir para

194 ZACCONE, O. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015. p.203.

195 GRANJA, P. UPP: o novo dono da favela: cadê o Amarildo? Rio de Janeiro: Revan, 2015.
74

incriminar e justificar essas mortes.196 Cenas como essa têm se repetido todos os
dias no Rio de Janeiro.
Nesse sentido, o processo de "pacificação" das favelas do Rio de Janeiro alimenta
a violência como resposta a uma suposta resistência ao progresso, à colonização do
"morro" pelo "asfalto", "[...] fazendo com que a pacificação acabe por operar mecanismos
de guerra no interior do próprio Estado".197
Porém, é preciso alertar que os territórios "pacificados" foram escolhidos
estrategicamente, pensando-se na segurança para a realização da Copa do Mundo e
dos Jogos Olímpicos, conforme esclareceu o coronel da Polícia Militar que encabeçou o
projeto das UPPs em entrevista ao "Le Monde Diplomatique Brasil":

O coronel Robson Rodrigues, da Polícia Militar do Rio, uma das cabeças


pensantes do projeto de pacificação, reconhece de bom grado: "Realmente
são as Olimpíadas que ditam nossa escolha. Eu diria até que, sem esse
evento, a pacificação nunca teria acontecido". 198

As UPPs, com essa proposta de formar um cinturão de segurança nas áreas


de interesse e promovendo essa gestão empresarial da cidade, realiza, por exemplo,
para a construção do projeto Porto Maravilha, a remoção de várias favelas, vendendo a
cidade em partes para o setor privado, incentivando o processo de gentrificação e
especulação imobiliária em vários pontos que serão aqueles vistos pelos turistas.
A localização dessa polícia de pacificação nas áreas estratégicas, que ajudarão
a formar um cinturão de proteção para o acontecimento dos Jogos Olímpicos,
portanto, aprofunda as diferenças sociais e a segregação socioespacial na cidade199,
além de promover mais violência.

196 TORRES, L. Imagens mostram PMs mexendo em cena de homicídio na Providência, Rio. O Globo,
Rio de Janeiro, 29 set. 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/09/
imagens-mostram-pms-mexendo-em-cena-de-homicidio-na-providencia-rio.html>. Acesso em: 30
set. 2015.

197 ZACCONE, O. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015. p.210.

198 VIGNA, A. UPP: o poder simplesmente mudou de mãos? Le monde diplomatique Brasil, 07 jan.
2013. Disponível em: <http://diplomatique.org.br/artigo.php?id=1328>. Acesso em: 11 jan. 2013.

199 BATISTA, V. M. O Alemão é muito mais complexo. In: Paz armada. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012.
75

"'As UPPs promovem, portanto, uma regulação armada de determinados


territórios considerados estratégicos para a realização desse modelo empresarial
de cidade [...]', tratando mais uma vez a questão social e econômica como caso
de polícia".200
Já nas UPSs esse interesse não ficou tão claro, pois Curitiba recebeu apenas
alguns jogos da Copa do Mundo. No entanto, a escolha estratégica dos lugares se
deu com base em uma análise atuarial da violência combinada com os interesses do
setor privado em determinados territórios.
No projeto de governamentalidade neoliberal, as favelas militarizadas se
tonaram prisões a céu aberto, como metáforas sociais de uma sociedade burguesa
contemporânea autoritária, pois as penas cruéis perderam seu espaço e as
aglomerações ameaçam a democracia liberal201, devendo ser controladas pelo
Estado penal.

1.4.2 Segurança aos direitos

Bauman, falando a respeito dos sentimentos de incerteza, garantia e insegurança,


utiliza a palavra Sicherheit, do alemão, que linguisticamente abarca esses três
sentimentos para demonstrar o sentimento pessoal de medo e ansiedade exacerbados
pelo excesso de liberdade individual. A Sicherheit é reduzida, portanto, ao sentimento de
segurança e se torna um produto explorado pelo capital e pelos meios de comunicação
de massa, dando a impressão de que o número de crimes e criminosos é muito
superior à realidade e que tem como "efeito geral a autopropulsão do medo".202

200 BRITO, F. Considerações sobre a regulação armada dos territórios cariocas. In: BRITO, F.;
OLIVEIRA, P. R. (Orgs.). Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida
social. São Paulo: Boitempo, 2013. p.99.

201 MENEGAT, M. Prisões a céu aberto. In: MENEGAT, M. Estudos sobre ruínas. Rio de Janeiro:
Revan e Instituto Carioca de Criminologia, 2012.

202 BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p.127.
76

Assim, os governos constroem prisões, aumentam o número efetivo de policiais,


permitem-se torturas e mortes, tudo para garantir a suposta segurança pessoal da
população e não podem ser acusados de não fazer nada, ao mesmo tempo em que
são convincentes, dando maior valor à "espetaculosidade" do que à eficácia punitiva.203
As forças do mercado querem que os Estados se preocupem exclusivamente
em cuidar de promover um "ambiente seguro". "No mundo das finanças globais, os
governos detêm pouco mais que o papel de distritos policiais superdimensionados".204
Essas atitudes são avaliadas pelo mercado e decisivas sobre onde investir ou retirar
investimentos.
Nessa função, os Estados alimentam a noção de que se deve buscar um direito
à segurança, quando ele, na verdade, não existe. Ele é um problema mal formulado,
pois não se pode falar em um direito à segurança. Conforme afirma Baratta 205, ele
carece de conteúdo próprio, ou, conforme afirma o professor Nilo Batista 206, ela é
uma palavra suspeita, perigosa, pois pode se unir a qualquer proposição e, numa
sociedade de classes, a expressão segurança pública, por exemplo, retratada pela
Constituição como sendo um dever do Estado e o direito e responsabilidade dos
cidadãos, faz com que seja a tarefa do governante preservar as relações sociais tal
como as encontrou, o que pode resultar em um regime repressivo e violento. Nas
próprias palavras do professor Nilo Batista:

A palavra segurança constitui o eixo aglutinador de todos os dispositivos


daquela violência que Benjamin denominou precisamente "conservadora",
para distingui-la da violência "fundadora", que pode ser a festejada parteira
da história que remove tirania e desigualdades, ou pode ser a inauguração
de um regime arbitrário e cruel.207

203 BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

204 BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p.128.

205 BARATTA, A. Seguridad. In: ELBERT, C. A. (Dir.); BELLOQUI, L. (Coord.). Alessandro Baratta:
Criminología y sistema penal: compilación in memoriam. Buenos Aires: B de F, 2004.

206 BATISTA, N. Criminologia sem segurança pública. Revista Derecho Penal y Criminología, v.10,
p.86-90, 2013.

207 BATISTA, N. Criminologia sem segurança pública. Revista Derecho Penal y Criminología, v.10,
p.89, 2013.
77

Por isso, trazemos a análise pontual e certeira de Baratta208, que afirma que
uma política de segurança pode adotar dois modelos, um do "direito à segurança" e
outro "da segurança dos direitos". Esse primeiro modelo é o dominante, mas o segundo
modelo é que deveria ser observado.
Comentando essa proposição, Pavarini afirma que o direito à segurança
nasceu como um direito com o processo de privatização do bem "segurança", face à
crise do estado social de direito, que "[...] ao garantir os direitos e a liberdade dos
cidadãos, abre espaço à segurança como um bem privado".209
Segundo Pavarini210, quando se tem o estado do bem-estar social, se tem uma
política inclusiva, a qual pode ser chamada de "bulímica", já que ela atua para incluir
as pessoas, eliminando o déficit do livre mercado, inspirando um direito à segurança
social. Normalmente esta política se dirige para aquelas pessoas estigmatizadas por
uma carência, não só econômica, mas também cultural, intelectual, de informação
ou simplesmente moral, como se fosse um remédio que poderá curar esse mal,
favorecendo sua inclusão social.
Já no pós-welfare, o que se tem é um modelo exclusivo, ou que se pode
denominar de "anoréxico", a partir do momento em que exclui, isola e neutraliza
quem é estigmatizado com as mesmas carências sociais, econômicas, culturais
e intelectuais.211
Por isso, a política criminal do direito à segurança propõe medidas pós Estado
social que, basicamente, consistem em dar atenção à vítima, dar uma resposta
privada à questão criminal, colocar o risco como questão central, demonstra

208 BARATTA, A. Seguridad. In: ELBERT, C. A. (Dir.); BELLOQUI, L. (Coord.). Alessandro Baratta:
Criminología y sistema penal: compilación in memoriam. Buenos Aires: B de F, 2004.

209 PAVARINI, M. Democracia y seguridad (notas de una conferencia jamás impartida). In: PORTALES,
R. E. A. (Coord.). Políticas de Seguridad Pública: Análisis y tendencias criminológicas y políticas
actuales. México: Editorial Porrúa, 2011. p.6.

210 PAVARINI, M. Democracia y seguridad (notas de una conferencia jamás impartida). In: PORTALES,
R. E. A. (Coord.). Políticas de Seguridad Pública: Análisis y tendencias criminológicas y políticas
actuales. México: Editorial Porrúa, 2011.

211 PAVARINI, M. Democracia y seguridad (notas de una conferencia jamás impartida). In: PORTALES,
R. E. A. (Coord.). Políticas de Seguridad Pública: Análisis y tendencias criminológicas y políticas
actuales. México: Editorial Porrúa, 2011.
78

preocupação com as consequências e substitui a prevenção social pela previsão


atuarial, sendo, portanto, exclusiva e não inclusiva.212
Essa privatização do direito à segurança ainda eleva o poder de segurança
conforme o poder econômico e social, sendo uma proteção desigual e seletiva face
ao delito. Além disso, esse modelo "criminaliza mais pobres que ricos e defende
mais ricos do que pobres".213
Já o segundo modelo, da segurança dos direitos, para Baratta 214, é uma
alternativa legítima e possível que consiste em uma política de satisfação integral
dos direitos fundamentais e humanos. O modelo de inclusão de realização e garantia
dos direitos para todos é o modelo de política de segurança, bem como do
desenvolvimento econômico e humano. Portanto, uma política de segurança como
política dos direitos somente será alcançada com um processo democrático; somente
esse projeto é um projeto de segurança da cidade.
Para isso se deve buscar políticas não repressivas, mas participativas, no
sentido da prevenção da marginalização social que envolvem Estado, comunidade local e
múltiplas agências. Assim, haveria uma desconstrução do sentimento de insegurança e
da demanda por pena da opinião pública e haveria ainda a demanda por direitos de
uma comunidade política. Deve-se adotar como política a integral satisfação de
direitos, já que o direito penal não pode prevenir o crime. Essa é também uma luta
contra a exclusão social e os mecanismos da escravização neoliberal. 215
A segurança, tratada como um direito, tem privilegiado a expansão do controle
social para áreas estatisticamente escolhidas com base em uma análise de risco.
Essa maior intervenção exaspera a pressão da opinião pública sobre a indicação
dos grupos sociais e da realidade que constituem os alvos da ação de controle.

212 PAVARINI, M. Democracia y seguridad (notas de una conferencia jamás impartida). In: PORTALES,
R. E. A. (Coord.). Políticas de Seguridad Pública: Análisis y tendencias criminológicas y políticas
actuales. México: Editorial Porrúa, 2011.

213 BARATTA, A. Seguridad. In: ELBERT, C. A. (Dir.); BELLOQUI, L. (Coord.). Alessandro Baratta:
Criminología y sistema penal: compilación in memoriam. Buenos Aires: B de F, 2004. p.215.

214 BARATTA, A. Seguridad. In: ELBERT, C. A. (Dir.); BELLOQUI, L. (Coord.). Alessandro Baratta:
Criminología y sistema penal: compilación in memoriam. Buenos Aires: B de F, 2004.
215 BARATTA, A. Seguridad. In: ELBERT, C. A. (Dir.); BELLOQUI, L. (Coord.). Alessandro Baratta:
Criminología y sistema penal: compilación in memoriam. Buenos Aires: B de F, 2004.
79

A política criminal atuarial seria o emprego da lógica atuarial para o controle


de grupos sociais considerados de risco, perigosos, promovendo sua incapacitação
seletiva. A manifestação mais evidente é o uso de dados estatísticos de determinado
grupo que define políticas penais a serem aplicadas aos membros desses grupos.216
A utilização da lógica atuarial, embora violadora dos princípios da dignidade e
da cidadania, das falhas de prognósticos, e por não reduzir a criminalização, acaba
se sustentando porque é mais barata do que as políticas de welfare e por ser útil
para controlar as taxas de desemprego.217
Segundo a tese de Dieter218, a política criminal atuarial confirma a tese de
Ruche e Kirchheimer, pois se legitima como instrumento de incapacitação seletiva
por ser adequada às relações de produção atuais.
Assim, para os criminólogos críticos, a lógica atuarial é eficiente para a gestão
dos excluídos das promessas de mobilidade social, formada predominantemente por
afrodescendentes, no caso do Brasil, como um grupo social marginal, incapaz de
compor até mesmo o exército de reserva. A miséria seria resultado de sua culpa
moral, de sua preguiça, da promiscuidade e da delinquência.
A UPP e a UPS utilizam a criminologia atuarial para decidir quais espaços
devem ser monitorados, baseando-se nos índices de violência criminal, tal como
taxas de homicídios e tráfico de entorpecentes. Por essa razão, escolheram-se as
áreas para receberem essas unidades com base na combinação desses interesses
com os interesses do mercado. Ou seja, é uma análise de custo-benefício que
pautou essas escolhas.
E, nesse sentido, a lógica atuarial se liga à segurança cidadã, como um modelo
de controle social que consagra o modelo do direito à segurança, pautado no medo da
vitimização e o completo abandono da satisfação de direitos para muitos considerados
pobres e criminalizados.
Deveria existir, do contrário, uma política não voltada à segurança pública,
mas, sim, voltada à segurança dos direitos, sendo postulada por tantos criminólogos

216 DIETER, M. S. Política criminal atuarial: a criminologia do fim da história. Rio de Janeiro: Revan, 2013.
217 DIETER, M. S. Política criminal atuarial: a criminologia do fim da história. Rio de Janeiro: Revan, 2013.
218 DIETER, M. S. Política criminal atuarial: a criminologia do fim da história. Rio de Janeiro: Revan, 2013.
80

a adoção de políticas governamentais preventivas baseadas na promoção social,


cultural e solidária.

1.5 Mídia: a segurança como produto e o medo como vetor da violência

É preciso, por fim, dizer que as UPPs e UPSs foram parte também de um
projeto midiático em torno do qual se produziu um "macabro consenso" promovido
pela mídia, em nome da "reconquista de território".219
O Governo do Rio de Janeiro, entre 2007 e 2010, gastou 420,1 milhões de
reais dos cofres públicos com propaganda, além de contar com o apoio incondicional
da Rede Globo de televisão, cuja maior fatia foi tomada pela propaganda das UPPs.220
No Paraná foi possível acompanhar a repercussão midiática dessa política
durante a realização da pesquisa de mestrado, em que fizemos o monitoramento do
Jornal Gazeta do Povo, em especial da campanha "Paz sem voz é medo", que teve a
duração de um ano. Durante a campanha é que o projeto de “pacificação” do Rio de
Janeiro ganhou visibilidade, em especial com a ocupação do Complexo do Alemão.221
Quando houve, portanto, essa grande operação, o jornal paranaense passou
a fazer uma análise das ações governamentais, e da crítica inicial passou a destacar
os benefícios dessa política, até que o secretário de segurança pública apoiasse a
ideia que foi posteriormente chamada de UPS – Unidades Paraná Seguro.222
Assim, o termo segurança passa a ser explorado pela mídia de forma
pornográfica, fazendo da segurança um espetáculo. E as mídias propalam o falacioso

219 BATISTA, V. M. O Alemão é muito mais complexo. In: Paz armada. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012.

220 GRANJA, P. UPP: o novo dono da favela: cadê o Amarildo? Rio de Janeiro: Revan, 2015.

221 MURARO, M. Crime, violência e segurança: um estudo de caso da campanha Paz sem voz é
medo do Jornal Gazeta do Povo. 2013. Dissertação (Mestrado em Direito) –UFPR, Curitiba, 2013.

222 MURARO, M. Crime, violência e segurança: um estudo de caso da campanha Paz sem voz é
medo do Jornal Gazeta do Povo. 2013. Dissertação (Mestrado em Direito) –UFPR, Curitiba, 2013.
81

argumento de que quanto mais polícia, quando mais tecnologia de vigilância e controle
forem empregadas, mais seguras as pessoas estarão.223
A visão midiática sobre segurança pública obtida com a pesquisa da campanha
"Paz sem voz é medo" deixou isto bastante claro, que a mídia de massa acredita e
defende que quanto mais polícia mais segurança, e que ela deve trabalhar com
critérios de alta seletividade em face das condutas mais perigosas, tais como
homicídio, roubo e tráfico de drogas, para conter riscos sociais.224
A mídia de massa faz da notícia uma mercadoria com valor de troca para o
mercado e valor de uso para o receptor, atribuindo um valor às formas simbólicas
que são comercializadas pelas televisões, jornais e revistas.225 Já aquelas informações
trocadas na internet não podem ser chamadas de mídias de massa, porque o fluxo
de informação se dá nos dois sentidos, produzindo web-atores.226
Nessa produção de mercadorias midiáticas, hoje, o que se verifica é a formação
de grandes conglomerados do entretenimento que abarcam a produção de notícias, bem
como canais de internet e de telefonia, colocando a força hegemônica estadunidense
na distribuição e produção de conteúdo.227. Segundo o Professor Nilo Batista228,
essa formação de conglomerados midiáticos está adaptada à lógica econômica do
capitalismo tardio e reproduz a crença sagrada na pena e em todo o sistema penal
como forma de controle social eficaz.
Além desse entrelaçamento da mídia com o poder econômico, verificam-se os
laços da mídia com o poder político, sendo uma via de mão dupla, pois o político

223 MURARO, M. O discurso midiático sobre segurança pública no Estado do Paraná: uma análise da
campanha Paz sem voz é medo, do jornal Gazeta do Povo. Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro,
v.20, n.23/24, p.547 - 567, 1.o e 2.o semestres de 2016.

224 MURARO, M. Crime, violência e segurança: um estudo de caso da campanha Paz sem voz é
medo do Jornal Gazeta do Povo. 2013. Dissertação (Mestrado em Direito) –UFPR, Curitiba, 2013.

225 THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Tradução de Wagner de
Oliveira Brandão. Revisão de Leonardo Avritzer. 13.ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2012.

226 RAMONET, I. A explosão do jornalismo: das mídias de massa à massa de mídias. Tradução de
Douglas Estevam. São Paulo: Publisher Brasil, 2012.

227 MENDONÇA, K. A punição pela audiência: um estudo do Linha Direta. Rio de Janeiro: Quartet. 2007.

228 BATISTA, N. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos Sediciosos – Crime, Direito e
Sociedade, Rio de Janeiro, v.7, n.12, p.271-290, 2.o semestre de 2002.
82

precisa da aprovação da mídia em suas campanhas e governo, e a mídia, por sua


vez, precisa do apoio político para dominar o campo de produção de notícias. Isso
ficou claro na análise da campanha "Paz sem voz é medo", em que o jornal Gazeta
do Povo, de propriedade da RPC, filiada à Rede Globo, que mantém o monopólio da
mídia no Paraná, incentivou a adoção de políticas de segurança pública policialescas
por parte do governo do Estado e as apoiou quando foram efetivamente lançadas.229
Esse engajamento da mídia em forma de conglomerados e com poder político
é adotada como estratégia de sobrevivência. Ao mesmo tempo, os políticos são
questionados pela mídia e, para respondê-las, adotam medidas paradoxais, reproduzindo
o que Zaffaroni chama de criminologia midiática. Segundo Zaffaroni230, a maior parte
dos políticos não tem ideia de como resolver um determinado problema e se pautam
pela criminologia midiática.
A criminologia midiática cria verdades, é maniqueísta, divide as pessoas em
estereótipos entre bons e maus, normais e diferentes, cria a sensação de insegurança e
indica que a polícia deve cuidar da segurança de todos. Essa criminologia ainda
dissemina estereótipos de praticantes de crimes violentos, colocando-os como "outros",
como "eles", como inimigos que devem ser criminalizados e eliminados, tomados
como bodes expiatórios para difundir o medo e encarnar todas as aflições do
neoliberalismo individualista, que prega o não merecimento da piedade para "eles".231
A criminologia midiática ainda naturaliza a necrofilia bélica estatal, incentiva o
surgimento de vingadores e justiceiros e disfarça homicídios em autos de resistência.
Ela também reproduz o discurso da higiene social, o qual Zaffaroni destaca, e que
coloca a polícia como "[...] limpadores de fezes e o Código Penal como um regulamento
para condutas de despejos cloacais".232

229 MURARO, M. Crime, violência e segurança: um estudo de caso da campanha Paz sem voz é
medo do Jornal Gazeta do Povo. 2013. Dissertação (Mestrado em Direito) –UFPR, Curitiba, 2013.

230 ZAFFARONI, E. R. A questão criminal. Tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

231 ZAFFARONI, E. R. A questão criminal. Tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

232 ZAFFARONI, E. R. A questão criminal. Tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan,
2013. p.200.
83

Pierre Bourdieu233 chama a atenção para o fato de que a mídia seleciona


determinadas condutas para serem publicadas e outras para serem omitidas, bem
como que normalmente essa seleção são de notícias que não promovem disputas
nem questionamentos, para formar um consenso que interessa ao mundo. Esses fatos
selecionados são chamados de fatos omnibus. Isso explica a forma com que as
mídias de massa trabalham com o tema da segurança, vinculando-o especialmente
à ideia da violência e do crime para formar um consenso. Além disso, a formação de
consensos se faz em torno de ideias comuns e banais, chamadas de fast-thinkers,
criando um efeito de realidade234, bem como de facilitar a compreensão do receptor
e consumidor dessa mercadoria.
Chomsky235 afirma que a propaganda é uma forma de promover a obediência,
a apatia e a passividade do cidadão, que responde aos interesses de uma elite
especializada que comanda a arte democrática de controlar esse "rebanho assustado"
e "fabricar consensos", ao mesmo tempo em que despolitiza determinados temas,
criminalizando-os.
Ou seja, os veículos midiáticos podem ser utilizados como um aparelho
hegemônico do Estado, no sentido gramsciano, para produzir consensos culturais e
pautar a opinião do senso comum, em especial, sobre a utilização da violência
institucional no controle do desvio, da guerra contra o crime e do inimigo comum. 236
E por que as pessoas aceitam essa construção? Porque se sentem mais seguras
diante da angústia da violência difusa que tangencia a questão criminal.237
Zaffaroni238 afirma que existe uma "política-espetáculo", a qual busca o seu
triunfo eleitoral perante a mídia, no entanto, os políticos não percebem que ao

233 BOURDIEU, P. A televisão. Tradução de Maria Lúcia Machado. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1997.

234 BOURDIEU, P. A televisão. Tradução de Maria Lúcia Machado. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1997.

235 CHOMSKY, N. Controle da mídia: os espetaculares efeitos da propaganda. Tradução de Antônio


Augusto Fontes. Rio de Janeiro: Graphia, 2003.
236 MURARO, M. Crime, violência e segurança: um estudo de caso da campanha Paz sem voz é
medo do Jornal Gazeta do Povo. 2013. Dissertação (Mestrado em Direito) –UFPR, Curitiba, 2013.
237 ZAFFARONI, E. R. A questão criminal. Tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2013.
238 ZAFFARONI, E. R. A questão criminal. Tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2013.
84

perderem a sua identidade, ao ficarem excessivamente parecidos com os demais,


abrem espaço para sua crítica.
Essa figura da política-espetáculo se adequa perfeitamente à campanha
midiática feita em torno das UPPs e UPSs, projeto hoje que está completamente
desmoronado, desmontado, justamente porque, ao se tornar um espetáculo, pôde
também mostrar suas cínicas deficiências.
O apoio midiático às campanhas de pacificação é destacado na entrevista de
Beltrame239, que afirma entender necessário este apoio para que a política pudesse
ter sucesso. Ao mesmo tempo, as UPS foram instaladas nesse reflexo da política-
espetáculo carioca e contaram com o apoio das mídias locais.
Essa criminologia midiática clama por mais sistema penal e promove a criação
de indústrias de segurança e, ao clamar por mais segurança, amplia, na verdade, a
restrição à liberdade.240
Nesse sentido, pretende-se demonstrar como essa política adquire tais contornos,
seja a partir da experiência de “pacificação belicista” empregada como política de
segurança pública carioca ou do caso paranaense.

239 BELTRAME, J. M. Todo dia é segunda-feira. Rio de Janeiro: Sextante, 2014.


240 ZAFFARONI, E. R. A questão criminal. Tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2013.
85

2 AS BASES HISTÓRICAS E IDEOLÓGICAS PARA O SURGIMENTO DAS


UNIDADES DE POLÍCIA DE PACIFICAÇÃO NO BRASIL

O Brasil construiu a sua política de repressão às classes sociais inferiorizadas


sob algumas bases históricas e ideológicas. Assim, é preciso destacar que o Brasil
incorpora diversos postulados europeus e estadunidenses, comportando-se como
colônia mesmo após a constituição do Estado Moderno, pois constrói seu saber-
poder a partir das contradições positivas em face do saber central, por isso, deve ser
visto como uma instituição de sequestro.241
Após analisar as discussões ocorridas nos congressos, seminários e cursos
internacionais sobre a questão criminal, Rosa del Olmo242 demonstra como a participação
de representantes da América Latina foi capaz de levar para estes países aquela
forma de enxergar os problemas do capitalismo como se fossem seus.
Os problemas e as soluções tratadas por eles foram difundidos como se
fossem normas universais. Acostumadas a serem colônia, as classes dominantes da
América Latina buscavam encontrar soluções para as suas realidades, mas olhavam
para a Europa e para os Estados Unidos e, de forma subordinada, mimetizavam seu
comportamento, pois, mesmo depois de terem se tornado independentes, não
deixaram de se comportar dessa maneira. Havia a necessidade de formar uma nova
consciência independente, mas isso não ocorreu e a colonização do pensamento
permaneceu. "[...] A assimilação das ideias europeias em sua versão latino-americana
não somente foi deformada e artificial, mas deu lugar a uma alienação ideológica [...]".243
Como o Brasil não se desvinculou da sua posição de colônia, os fenômenos
que ocorrem nos países centrais refletem-se aqui, com suas particularidades, sendo

241 ZAFFARONI, E. R. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal.
Tradução de Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

242 OLMO, R. América Latina e sua criminologia. Tradução de Francisco Eduardo Pizzolante e Sylvia
Moretzsohn. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2004.

243 OLMO, R. América Latina e sua criminologia. Tradução de Francisco Eduardo Pizzolante e Sylvia
Moretzsohn. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2004. p.161.
86

que as colônias são enxertadas nesses novos parâmetros tecnológicos, gerando


perda de sua autonomia e destruição da sua identidade étnica.244
Ou seja, a partir das questões que vêm dos países centrais, a colônia desenvolve
sua própria tecnologia de poder-saber, tal como ocorreu com o desenvolvimento da
polícia, da repressão aos africanos libertos, da repressão ao comunismo e da guerra
às drogas. Por isso, temos uma política brasileira enxertada na política estadunidense,
de guerra às drogas e de lei e ordem, as quais são impostas por meio de um saber-
poder para atender interesses do poder central.

2.1 A instituição policial: do Brasil Colônia e Imperial à reabertura democrática

Pretende-se apresentar de forma breve as bases históricas sobre as quais a


polícia focou a sua repressão penal, sempre voltada para a gestão das ilegalidades
atribuídas às classes criminalizadas, com o objetivo de demonstrar que a atual
"polícia de pacificação" é uma permanência dessa atuação policial.

2.1.1 Brasil Colônia e Império: a força do poder real como combate à desordem

Assim que a comitiva real portuguesa chegou ao Rio de Janeiro fugindo das
guerras napoleônicas, foi criada, em 10 de maio de 1808, a Intendência Geral de
Polícia da Corte e do Estado do Brasil, baseada no modelo francês, introduzida em
Portugal, a qual mais tarde se tornou a polícia civil. O gabinete do Intendente Geral
de Polícia se tornou responsável pelas obras públicas, pelo abastecimento da
cidade, além da segurança pessoal e coletiva, da ordem pública, da vigilância das

244 ZAFFARONI, E. R. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal.
Tradução de Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
p.64-65.
87

pessoas, da investigação de crimes e pela captura de criminosos. O poder do


intendente englobava tanto poderes legislativos quanto executivos e judiciais.245
Em 1809 foi criada também a Guarda Real da Polícia, subordinada à intendência.
Era uma polícia organizada militarmente e a quem competia manter a ordem pública
e perseguir criminosos, a qual, mais tarde, deu origem à polícia militar.246
Esses apontamentos são feitos por Thomas Holloway247, que propõe apresentar
um estudo sobre a polícia utilizando a dialética da repressão e da resistência. Para tanto,
analisa os relatórios diários da polícia do Rio de Janeiro que eram encaminhados
para a corte, no período de 1808 a 1889, pois percebe aí um rico material de pesquisa.
Nesse material ele pretende analisar a figura de pessoas marginalizadas para contar
a história da polícia sobre uma outra perspectiva.
Sua tese é de que a polícia é criada para cumprir a tarefa de proteger a
propriedade que antes estava relegada aos cuidados particulares, executada pelos
capitães do mato e pelos senhores de escravos, bem como para manter a classe de
escravos e homens livres pobres dentro de determinados limites do comportamento
público traçado pela elite como aceitável.248

A polícia era um exército permanente travando uma guerra social contra


adversários que ocupavam o espaço a seu redor. O contato com o inimigo
adivinha de ações guerrilheiras dos bandos de capoeira, de atos subversivos
como fugir ao controle de seu dono e recusar-se a trabalhar, e de uma
infinidade de pequenas violações individuais, que iam do pequeno furto ao
atrevimento de ficar nas ruas depois do toque de recolher. Ainda nos moldes do
exército permanente, concebia-se a força policial como o instrumento coercitivo
daqueles que tinham criado e que a mantinham e controlavam.249

245 HOLLOWAY, T. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX.
Tradução de Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.

246 HOLLOWAY, T. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX.
Tradução de Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.

247 HOLLOWAY, T. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX.
Tradução de Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.

248 HOLLOWAY, T. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX.
Tradução de Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.

249 HOLLOWAY, T. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX.
Tradução de Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas,
1997. p.50.
88

As infrações mais comuns eram a fuga de escravos – os quais eram devolvidos


ao seu senhor e teriam que prestar trabalhos ao setor público – e a capoeira. O termo
capoeira se referia a várias atividades exercidas por afrodescendentes escravizados
de forma coletiva, não exclusivamente a ginástica ou a dança, como vemos hoje,
mas incluía ações como arremessos de pedra, porte de arma e até mesmo assoviar
como capoeira, como forma de comunicação entre o grupo. O delito de capoeira
somente foi positivado como crime pelo Código Penal de 1890, ou seja, ainda que
nesse período não houvesse a previsão legal, a capoeira era reprimida com força
policial. Registre-se que a maioria das pessoas presas era de afrodescendentes
escravizados ou ex-escravizados, e que somente 1% da população livre nunca tinha
sido escravizada.250
Da descrição dessas condutas e das pessoas que eram normalmente alvo da
repressão policial, é perceptível que o foco são as ações e atitudes praticadas
por pobres e afrodescendentes escravizados, população considerada hostil e perigosa,
não discriminando ações praticadas pela elite branca como reprováveis.
A polícia também se tornou responsável pela prática dos açoites, punição
utilizada para os africanos escravizados com o objetivo de manter a mão de obra
ativa para o seu dono, além de identificar e simbolizar a sua condição de escravo e
impor uma punição equivalente à pena de prisão para os não-escravos.251

Num contexto mais amplo, sendo a escravidão tão difundida no Rio de


Janeiro do início do século XIX e tão importante para as relações
econômicas e estrutura de classes da sociedade brasileira, o serviço de
açoite significava a manutenção do sistema. Ele põe claramente em relevo o
papel do Estado como instrumento de classe dominante, atendendo a sua
necessidade de controlar, por meio da violência física, os que forneciam a
força muscular de que dependia toda a economia.252

250 HOLLOWAY, T. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX.
Tradução de Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.

251 HOLLOWAY, T. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX.
Tradução de Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.

252 HOLLOWAY, T. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX.
Tradução de Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas,
1997. p.64.
89

No entanto, diante da abolição do regime escravocrata seria necessário repensar


a posição dos afrodescendentes recém libertos dentro da sociedade brasileira liberal
e republicana, alterando-se igualmente o papel da polícia.

2.1.2 A Polícia na República Velha: A Formação do Poder Bélico-Militar e o


Positivismo Criminológico

Chalhoub253 afirma que a luta dos afrodescendentes em favor da abolição da


escravatura não era uma luta pelos ideais republicanos, ou seja, de inserção na
lógica da sociedade capitalista, e uma das teses levantadas seria de que a própria
República teria sido instalada justamente como medida de combate e contenção
dessa cidade negra revoltosa e para manutenção do poder da elite proprietária.
Esses movimentos contra a escravidão do século XIX, que lutaram silenciosamente
contra o cativeiro, produziram uma racionalidade própria contra a qual se opôs o
movimento republicano.
Cada vez mais o meio urbano dificultava a diferenciação entre escravos e
pretos livres, por isso também cada vez mais se construiu a cidade que desconfiava,
ao transformar todos os afrodescendentes em "suspeitos". Era "o medo branco
dessas almas negras". Antes, porém, buscou-se desconfigurar a ideia da cidade
como esconderijo, impondo-se várias medidas denominadas código de posturas,
para evitar circulação indevida e reunião de afrodescendentes escravizados com fins
de unirem-se em revolta.254
A complexificação da sociedade com a abolição da escravatura, a vinda de
imigrantes para substituir a mão de obra escrava e a implantação de uma cultura

253 CHALHOUB, S. Medo branco de almas negras: escravos, libertos e republicanos na cidade do
Rio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.8, n.16, p.83-105, mar./ago. 1988. Disponível em:
<www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3676>. Acesso em: 29 jun. 2017.

254 CHALHOUB, S. Medo branco de almas negras: escravos, libertos e republicanos na cidade do
Rio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.8, n.16, p.83-105, mar./ago. 1988. Disponível em:
<www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3676>. Acesso em: 29 jun. 2017.
90

burguesa tiveram reflexos nas instituições policiais, que se tornaram mais profissionais
e militares, interferindo, também, no discurso de ordem.255
À medida que a sociedade se tornava mais heterogênea, as técnicas de
controle estatais se modificaram. Não seria um exagero dizer que a criação da
polícia foi uma condição necessária para a transição da escravatura para o regime
de trabalho livre, já que "o desenvolvimento do aparato de repressão [...] possibilitou
à elite política e econômica conservar a vantagem na guerra social, controlar os
escravos e seus sucessores funcionais e manter a ralé acuada".256
A polícia foi criada para servir as elites e para controlar inicialmente os
escravos revoltosos, considerados propriedade. E, com o fim da escravidão, passou
a controlar parte da população que praticava desordem pública, tanto que os delitos
mais perseguidos eram os que envolviam violação do toque de recolher, beber em
locais públicos, fazer arruaça na rua, entre outros tipos de conduta. Assim, a polícia
servia para controlar, após a abolição da escravatura, os ex-escravos, os brancos
não escravos, mas pobres, e os estrangeiros também pobres.
Com a campanha republicana estava em jogo a construção de um novo
regime político, mas também a conservação de uma hierarquia social, que, de um
lado, abrigava as elites proprietárias rurais e, de outro, uma grande massa de
escravos e uma diminuta classe média urbana. Ou seja, as diferenças sociais foram
explicadas com argumentos científicos e justificadas a partir das variações raciais.257
Segundo Chalhoub, "Os republicanos construíram todo um belo discurso como
justificação de suas ações contra a cidade negra. Agiram em nome da higiene, da
moral e dos bons costumes, do progresso e da civilização".258

255 SALÉM, M. D. A polícia na república velha: a serviço das classes dominantes. Discursos Sediciosos,
Rio de Janeiro, v.11, n.15/16, p.279-293, 1.o e 2.o semestres de 2007.

256 HOLLOWAY, T. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX.
Tradução de Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas,
1997. p.264.

257 SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

258 CHALHOUB, S. Medo branco de almas negras: escravos, libertos e republicanos na cidade do
Rio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.8, n.16, p.104, mar./ago. 1988. Disponível em:
<www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3676>. Acesso em: 29 jun. 2017.
91

Acompanhadas dessa visão, chegam ao Brasil as teorias evolucionistas e


social-darwinistas, que justificam práticas imperialistas de dominação. A burguesia
brasileira procurava assemelhar-se aos modelos europeus de conhecimento e civilidade.
O exemplo disso é o jornal Província de São Paulo, futuro Estado de São Paulo,
criado em 1875, que divulgava cotidianamente ideias de Darwin, Spencer e Comte,
como se esses ideários evolutivo-positivistas estivessem associados a conceitos
científicos e de modernidade. Esse cientificismo retórico se difundia no senso
comum.259
O consumo dessa ciência pela burguesia brasileira trazia a sensação de
aproximação com a Europa e supostamente aproximava o Brasil do progresso e da
civilização, ao mesmo tempo em que expunha também as fragilidades de um país
miscigenado.260
Vários autores que estiveram no país retratavam a miscigenação de forma
negativa, contribuindo para a visão de que o Brasil é o modelo "da falta e do atraso"
em função de sua composição étnica e racial.261
As bases para essas teorias remontam ao século XIX, quando surge uma nova
concepção, como uma reação ao iluminismo e a sua visão unitária de humanidade.
Nessa linha, surge a observação de Lombroso a respeito da natureza biológica do
comportamento criminoso, chamada antropologia criminal.
O determinismo racial, apoiado no darwinismo-social262 e na teoria das raças, via
a miscigenação de forma negativa. Entendem-se as raças como resultados imutáveis, e
que o cruzamento não transmite suas características – por isso a miscigenação era

259 SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

260 SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

261 SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

262 É com a publicação da Origem das Espécies, em 1859, de Charles Darwin, e a sua associação a
várias disciplinas sociais que se formou o social-darwinismo. Conceitos como competição,
seleção do mais forte, evolução e hereditariedade passam a ser aplicados aos mais variados
ramos do conhecimento. Na política, o Darwinismo deu as bases para uma política bastante
conservadora. (SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão
racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993).
92

um erro, considerada uma degeneração racial, mas também social, concepção que
questionava inclusive as bases do darwinismo social.263
Nesse sentido, um dos exemplos brasileiros de intelectuais que absorveram
esses ideais foi Nina Rodrigues, que localizava seus estudos no perigo social que o
grupo de não-brancos representavam, buscando entender se entre as raças humanas,
ou seja, americanos e afrodescendentes, havia o desenvolvimento da capacidade de
compreender o caráter ilícito de determinadas condutas, bem como se eles possuíam a
capacidade do livre arbítrio. Tinha como objetivo, com esse questionamento, redefinir o
controle social, o qual permitia a supremacia da elite branca, concluindo que o
sistema penal brasileiro era contraditório e cumpria o objetivo de garantir essa
supremacia e manter o controle social sobre os não-brancos.264
As raças inferiores teriam uma incapacidade orgânica de compreender o caráter
ilícito de suas condutas. Assim, Nina Rodrigues estabelecia um rígido determinismo
biológico, dentro de uma ordem natural hierarquizada.265
Nesse compasso, o conceito de degeneração aos poucos vai se afirmando e
substituindo a ideia de evolução, "como metáfora para explicar os caminhos e os
desvios do progresso ocidental".266
No Brasil, "O modelo racial servia para explicar as diferenças e hierarquias,
mas, feitos certos rearranjos teóricos, não impedia pensar na viabilidade de uma
nação mestiça".267
Ou seja, diante do enfraquecimento da escravidão e de um novo projeto
político para o Brasil, as teorias raciais, enquanto modelo teórico, foram viáveis para
justificar esse jogo de interesses. Mais do que substituir a mão de obra e manter

263 SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

264 DUARTE, E.C. P. Criminologia e racismo: Introdução à criminologia brasileira. 4.a tiragem. Curitiba:
Juruá, 2006.

265 DUARTE, E.C. P. Criminologia e racismo: Introdução à criminologia brasileira. 4.a tiragem. Curitiba:
Juruá, 2006.

266 SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p.80.

267 SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p.85.
93

uma hierarquia social, era necessário estabelecer critérios diferenciados de


cidadania. Por isso o tema racial se transformou em um argumento de sucesso para
explicar as diferenças sociais encontradas no Brasil e naturalizá-las.
Nas palavras da professora Vera Malaguti Batista, "Tendo como objetivo
maior a manutenção da ordem social projetada da escravidão para a República, o
positivismo criminológico se travestia de técnica, encobrindo com o fetiche criminal
sua natureza política".268

Assim, temos que o discurso do sistema penal republicano substituiu a


inferioridade jurídica do escravismo pela inferioridade biológica, e esta, ao
contrário da primeira (de natureza legal), necessitava ser cientificamente
provada, o que explica a permanência do racismo no discurso penalístico
republicano.269

O positivismo, visto na longa duração, nutre dispositivos de objetificação e


verticalização de um determinismo biológico, substituindo os argumentos teológicos
por argumentos científicos, que legitimam a dominação do mundo colonial e permitem a
gestão da população de forma biopolítica. Assim, o positivismo se consolida como
uma cultura, presente em diversos momentos da história, e influenciando a forma de
ver a própria sociedade.270
Em outras palavras, a construção da ordem burguesa no Brasil e o projeto
de nação promoveram a individualização dos conflitos através do processo de
criminalização, baseadas no modelo racista e positivista271, que influenciou e determinou
a atuação das polícias e inaugurou uma governamentalidade tropical.
A polícia adota, portanto, essa concepção criminológica positivista e postula
uma polícia científica, em contraponto com a polícia empírica. Em 1907, houve, por
exemplo, a criação do gabinete de identificação, que tinha por objetivo cadastrar

268 BATISTA, V. M. O positivismo como cultura. Passagens – Revista Internacional de História


Política e Cultura Jurídica, Rio de Janeiro, v.8, n.2, p.300, maio/ago. 2016.

269 SALÉM, M. D. A polícia na república velha: a serviço das classes dominantes. Discursos Sediciosos,
Rio de Janeiro, v.11, n.15/16, p.280, 1.o e 2.o semestres de 2007.

270 BATISTA, V. M. O positivismo como cultura. Passagens – Revista Internacional de História


Política e Cultura Jurídica, Rio de Janeiro, v.8, n.2, p.293-307, maio/ago. 2016.

271 BATISTA, V. M. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2.ed. Revan, 2003.
94

todas as pessoas, registrando traços característicos de seu tipo físico com o fim de
conhecer o criminoso.272
Houve também um planejamento urbano capitaneado por projetistas da
disciplina e do controle social, iniciado em 1906 e encabeçado pelo engenheiro e
Prefeito Pereira Passos, que reorganizou a cidade por classes, removendo ex-
escravos das áreas centrais e colocando em prática um projeto excludente e
autoritário. É possível verificar que esse processo de guetização da cidade favorecia
o controle das classes excluídas.273
Segundo Marcos Luiz Bretas274, em 1904, o prefeito Pereira Passos, dando
início ao projeto de urbanização da cidade, demoliu uma parte do velho centro,
desalojando cerca de 13.000 pessoas. Sua intenção era transformar o Rio de Janeiro
numa Paris para se assemelhar aos grandes centros urbanos da época.
Uma cidade moderna era incompatível com a pobreza que habitava o centro
da cidade, mas não era suficiente simplesmente expulsá-los de suas moradias, uma
vez que eram mão de obra necessária à elite. Assim, a polícia teve como principal
papel controlar a massa de trabalhadores pobres.275
Durante a república, portanto, a polícia foi ampliada, modernizada e a segurança
pública ganhou mais recursos, renovando seus quadros e se profissionalizando.
Legislações dos anos de 1900 e 1903 regulamentaram a organização policial, atribuindo
a ela o papel de proteção dos direitos individuais e manutenção da ordem pública.276
Em 1904, durante a Revolta da Vacina, ficou clara a desaprovação da população
em face da presença policial nas ruas, demarcando o insucesso da polícia militar de
controlar multidões, dada a sua forma violenta de agir. Esse fato determinou a criação

272 SALÉM, M. D. A polícia na república velha: a serviço das classes dominantes. Discursos Sediciosos,
Rio de Janeiro, v.11, n.15/16, p.280, 1.o e 2.o semestres de 2007.

273 SALÉM, M. D. A polícia na república velha: a serviço das classes dominantes. Discursos Sediciosos,
Rio de Janeiro, v.11, n.15/16, p.280, 1.o e 2.o semestres de 2007.

274 BRETAS, M. L. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro
1907-1930. Tradição. Antônio Lopes. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

275 BRETAS, M. L. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro
1907-1930. Tradição. Antônio Lopes. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

276 SALÉM, M. D. A polícia na república velha: a serviço das classes dominantes. Discursos Sediciosos,
Rio de Janeiro, v.11, n.15/16, p.279-293, 1.o e 2.o semestres de 2007.
95

de uma nova polícia uniformizada para realizar o patrulhamento da cidade, que foi a
guarda civil, em 1905. Suas atribuições compreendiam o policiamento do centro da
cidade e dos principais edifícios, recebendo apoio financeiro de diversas fontes.277
Em 1907, a polícia passou por uma nova reestruturação, trazendo o cientificismo
para os exames periciais e a criação da identificação criminal, produzindo uma galeria
dos ladrões. A polícia militar passou a ser chamada de Brigada Policial da Capital
Federal e Força Policial do Distrito Federal, sendo comandada por um Coronel ou
um General do Exército, que respondiam ao Ministro da Justiça, organizando sua
estrutura conforme a graduação do exército.278
A partir da década de 1910 houve uma estabilização dos movimentos na
cidade, o que produziu uma mudança no foco de atuação da polícia. O foco da rotina
policial se voltou para a vadiagem, cujo perfil dos presos era formado por pessoas
predominantemente nacionais não-brancos. Esse perfil se repetia para as pessoas
que eram consideradas criminosas, registrando-se uma sobrerrepresentação dos
não-brancos.279
Havia um sentimento de que a cidade era um local violento, o que Bretas 280
chama de grande medo em relação aos desocupados e desordeiros, ofendendo a
moral e ameaçando de violência física. Essas figuras constituíam o medo da elite.
A partir dessas prisões, a polícia começou a catalogar, dentre a população
pobre, certas pessoas consideradas criminosas. Essas pessoas eram identificadas
pela polícia, encaminhadas para fotografia e para tirar suas impressões digitais,
dados que passavam a fazer parte do catálogo do corpo de segurança, onde eram
arquivados. Para se livrar das acusações de vadiagem, era necessário comprovar
residência fixa e trabalho determinado, o que não era uma tarefa muito fácil. Frise-se
que, em períodos de festas, como os carnavais, a polícia preferia que esses identificados

277 BRETAS, M. L. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro
1907-1930. Tradição. Antônio Lopes. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

278 SALÉM, M. D. A polícia na república velha: a serviço das classes dominantes. Discursos Sediciosos,
Rio de Janeiro, v.11, n.15/16, p.279-293, 1.o e 2.o semestres de 2007.

279 BRETAS, M. L. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro
1907-1930. Tradição. Antônio Lopes. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

280 BRETAS, M. L. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro
1907-1930. Tradição. Antônio Lopes. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
96

não estivessem à solta, por isso constantemente eram alvo de perseguições policiais
a partir dessa identificação.281
Já a classe mais abastada, presume-se que devia ser protegida e não investigada,
sendo seus conflitos resolvidos normalmente na esfera privada. Assim, essa classe
ia à delegacia como vítima e não como ré. Os delitos que podiam levá-los a serem
investigados eram os passionais, delitos envolvendo automóveis e o comércio de
drogas, o qual estava associado à cafetinagem e à prostituição.282
Vale destacar, ainda, a criação da escola de polícia, em 1912 283, que também
se deu sob a concepção positivista, de forma que isso contribui para a reprodução
da perspectiva lombrosiana até hoje na formação policial, uma vez que o processo
de formação se dá apenas com atores internos.
Desde o início da república, o movimento operário do Rio de Janeiro e de São
Paulo questionava o aparelho estatal e a estrutura de poder oligárquica. Diante do
crescimento das indústrias e das muitas greves, de 1917 até 1919, sob a liderança
anarco-sindicalista, o papel da polícia sofreu uma reestruturação.284
O setor fabril, de serviços e o setor financeiro temiam o movimento operário
paulista e carioca, muito bem organizado. Parlamento e grupos políticos estavam
tomados de medo. Enquanto isso, o nacionalismo e o belicismo se ampliavam nos
discursos tanto da pequena quanto da alta burguesia, e a reação, portanto, apostava
nos dispositivos policiais e judiciários para manutenção da ordem.285
Com receio desse movimento, em 3 de maio de 1917, foi instaurada a
conferência judiciária-policial na Cidade do Rio de Janeiro, que contou inclusive com
a presença do Presidente da República e seus ministérios. A conferência tinha como

281 BRETAS, M. L. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro
1907-1930. Tradição. Antônio Lopes. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
282 BRETAS, M. L. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro
1907-1930. Tradição. Antônio Lopes. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
283 SALÉM, M. D. A polícia na república velha: a serviço das classes dominantes. Discursos Sediciosos,
Rio de Janeiro, v.11, n.15/16, p.279-293, 1.o e 2.o semestres de 2007.
284 BRETAS, M. L. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro
1907-1930. Tradição. Antônio Lopes. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
285 TÓRTIMA, P. A conferência judiciária-policial de 1917 no Rio de Janeiro, DF: uma radical virada
conservadora no Estado Brasileiro. Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.241-258, 2.o
semestre de 1996.
97

objetivo estabelecer elementos jurídicos e justificativas legais que embasariam a


repressão dessas forças que colocavam sob ameaça novamente a classe dominante
e o Estado, cujos interesses eram de preservação da ordem burguesa.286
Participaram Aurelino Leal, chefe de polícia do DF, e Augusto Olympio Viveiros
de Castro, Ministro do STF, como representantes do conservadorismo direitista. Chama
a atenção na análise de Tórtima287, a participação do poder judiciário, o que garantiu
a incorporação das teses vencedoras na jurisprudência, quando, na verdade, esperava-
se que o poder judiciário atuasse como fiscal da atividade policial.
A conferência, que durou três meses, estabeleceu 27 teses que traziam
discussões a respeito de problemas sociais que afligiam a classe dominante, como
as greves, comícios operários, reuniões suspeitas, prostituição, moradia do estrangeiro,
gestão do espaço urbano, o controle de correspondências, a concessão de habeas
corpus, a imprensa, os vadios, os capoeiras, a identificação do cidadão e de formas
de controle e pressão social.288 Além das teses aventadas, discutiu-se, ainda, a
vigilância policial nas sociedades operárias, a autoridade policial para internar loucos
e mendigos, o jogo do bicho e o poder regulamentar do chefe de polícia. 289
O papel da polícia era justamente evitar que a ordem pública fosse turbada,
ou seja, as questões sociais eram vistas como uma questão unicamente de polícia.
Assim, a liberdade de locomoção é vista como um problema da polícia e práticas
religiosas não cristãs são perseguidas justamente porque fugiam do controle estatal.
Foi instaurado também o controle em relação às reuniões, as quais deveriam ser

286 SALÉM, M. D. A polícia na república velha: a serviço das classes dominantes. Discursos Sediciosos,
Rio de Janeiro, v.11, n.15/16, p.279-293, 1.o e 2.o semestres de 2007.

287 TÓRTIMA, P. A conferência judiciária-policial de 1917 no Rio de Janeiro, DF: uma radical virada
conservadora no Estado Brasileiro. Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.241-258, 2.o
semestre de 1996.

288 SALÉM, M. D. A polícia na república velha: a serviço das classes dominantes. Discursos Sediciosos,
Rio de Janeiro, v.11, n.15/16, p.279-293, 1.o e 2.o semestres de 2007.

289 TÓRTIMA, P. A conferência judiciária-policial de 1917 no Rio de Janeiro, DF: uma radical virada
conservadora no Estado Brasileiro. Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.241-258, 2.o
semestre de 1996.
98

proibidas ou reprimidas caso provocassem tumultos ou tivessem intuito sedicioso,


sob a justificativa de que colocavam em perigo novamente a ordem pública.290
Chama a atenção a discussão sobre o enunciado que trata da prostituição,
em cuja redação Aurelino Leal procurava demonstrar sua erudição. Nessas discussões
deixou-se claro que os poderes instituídos entendem que a prostituição é um mal
necessário, uma válvula de escape, que ajuda na manutenção da ordem. As prostitutas
e os cáftens deveriam ser controlados, por isso houve a sugestão de que eles ficassem
localizados numa área limitada da cidade, em ruas específicas, para que os
trabalhadores honestos não precisassem frequentar tais lugares. O que se questionava
não era a prostituição em si, mas a exposição das mulheres na via pública.291
Eram reprimidas, portanto, práticas de cafetinagem, além da vadiagem e do
anarquismo, como forma de controle das lideranças operárias, para reprimir as greves e
revoltas populares. A prática do anarquismo, por exemplo, era constantemente utilizada
para expulsão de estrangeiros, após a conclusão de um processo inquisitorial e
reservado. Ainda nessa conferência, a classe dominante não hesitou em retirar direitos
e autorizar a repressão ao operariado.292
As teses elaboradas e discutidas tinham um clima autoritário e antipopular. No
final da conferência saiu ganhador o conservadorismo. A conclusão de Tórtima 293
em relação a essa conferência é de que houve a reunião de diversas instituições
estatais, além da igreja e de grandes empresas, que, unidos, procuravam sufocar o
movimento operário organizado.
No fim da República Velha, a polícia parecia estar bastante burocratizada, sendo
que nos registros policiais os principais delitos registrados eram as ofensas físicas,

290 TÓRTIMA, P. A conferência judiciária-policial de 1917 no Rio de Janeiro, DF: uma radical virada
conservadora no Estado Brasileiro. Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.241-258, 2.o
semestre de 1996.

291 TÓRTIMA, P. A conferência judiciária-policial de 1917 no Rio de Janeiro, DF: uma radical virada
conservadora no Estado Brasileiro. Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.241-258, 2.o
semestre de 1996.

292 SALÉM, M. D. A polícia na república velha: a serviço das classes dominantes. Discursos Sediciosos,
Rio de Janeiro, v.11, n.15/16, p.279-293, 1.o e 2.o semestres de 2007.

293 TÓRTIMA, P. A conferência judiciária-policial de 1917 no Rio de Janeiro, DF: uma radical virada
conservadora no Estado Brasileiro. Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.241-258, 2.o
semestre de 1996.
99

seguidas dos delitos contra a propriedade e da vadiagem, a qual ainda era muito útil
para o controle da ordem urbana. A partir da década de 1920, o papel da polícia era
voltado para o controle do tráfego de veículos e para o consumo de drogas, bem
como para o medo do comunismo.294
Esses relatos demonstram que a polícia manteve, desde a sua criação, uma
atuação voltada para o controle daqueles que eram considerados imorais e perigosos,
com o fim de manter as hierarquias sociais e garantir a propriedade dos poderosos, assim
como a manutenção do Estado, já operando as bases da biopolítica e do racismo.

2.1.3 República Nova e a Atuação Policial na Repressão Política

Quando teve início o governo Vargas, os alvos das perseguições criminais


continuaram sendo os mesmos, tanto que os delitos que mais levavam pessoas aos
cárceres eram o alcoolismo e a desordem. No entanto, somou-se à criminalização
tradicional a perseguição aos dissidentes políticos, sendo as forças repressivas
direcionadas também para o silenciamento dos comunistas e revolucionários.
Desenha-se um Estado industrializado, intervencionista e previdenciário.
Assim, a principal intenção do Estado era manter seu poder totalitário e, para tanto,
aplicava uma dinâmica de neutralizar seus opositores.
Também a legislação penal sofreu mudanças. Zaffaroni e Batista afirmam que
a acusação de que o Código Penal de 1940 incorporou a criminologia positivista é um
exagero, pois a antropologia criminal ganhou sim repercussão nas faculdades de
medicina, manicômios e penitenciárias. No entanto, era comum a sua refutação por
penalistas como Nelson Hungria, um dos redatores do Código Penal de 1940, e
Magalhães Noronha, que destacava o caráter dualista do código, o qual apresentava
ligações com as tradições liberais. Frise-se que o Código Penal de 1940 teria a função
de criminalizar o Estado previdenciário que se formava, por isso sobrevive até hoje.295

294 BRETAS, M. L. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro
1907-1930. Tradição. Antônio Lopes. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

295 ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito penal brasileiro: teoria geral
do direito penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v.1.
100

Os decretos-leis editados antes do Código Penal de 1940 trouxeram a


criminalização de delitos contra a economia popular, abuso de poder econômico,
usura e direito do consumo. Um exemplo da política penal foram os decretos que
indultaram condenados e acusados por vadiagem e capoeiragem. Embora a
vadiagem estivesse prevista na Lei de Contravenções Penais de 1941, houve uma
redução na criminalização e um abrandamento das penas, se comparado com o
período anterior.296
Além disso, foi criado o Tribunal de Segurança Nacional - TSN, incumbido da
repressão penal política, o qual tinha como alvo principal os comunistas, persseguindo
o partido comunista, fundado em 1922, a Aliança Nacional Libertadora, que teve um
curto período de existência, ou seja, cerca de 3 meses apenas, e a ação integralista
brasileira. Para fazer essa repressão, a polícia foi reformada em 1934, pelo Decreto-
Lei n.o 24.531, de 2 de julho. Depois, a Lei n.o 38, de 4 de abril de 1935, tratou de
definir os crimes contra a ordem política e social, criminalizando entre outras
condutas, a participação em partidos ou agremiações proibidas.297
A comoção para a greve foi considerada subversiva e equiparada ao “estado
de guerra”, permitindo a atuação do Tribunal de Segurança Nacional (TSN) que teve
ampliada a sua competência. Com a ressalva da Constituição de 1937, entrou em
vigor o Decreto-lei n.o 88, de 20 de dezembro de 1937, modificando a configuração
do TSN, cujos membros poderiam então decidir monocraticamente em primeira
instância e as decisões dos recursos de apelação tornar-se-iam irrecorríveis.
Também se autoriza a pena de morte para crimes políticos e homicídio qualificado,
embora não tenha sido executada.298
Assim, a atuação da polícia era no sentido de conter o comunista e também o
estrangeiro, figuras apontadas como inimigos em potencial. Os comunistas passaram
a ser alvo da ação da polícia, já que poderia perturbar a produção e a ordem moral e

296 ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito penal brasileiro: teoria geral
do direito penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v.1.

297 ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito penal brasileiro: teoria geral
do direito penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v.1.
298 ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito penal brasileiro: teoria geral
do direito penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v.1.
101

social. Eles eram vistos como os que procuravam impedir a prosperidade econômica
e social do país e essa imagem era recepcionada por grande parte da população.
Como o período é marcado por contradições, Vargas, em 1945, concedeu
anistia aos presos por crimes políticos, desde julho de 1934, e o TSN foi extinto em
novembro de 1945.299
Ainda nesse período, tem início a segunda guerra mundial e um corpo de
expedicionários é enviado para lutar na Itália ao lado dos americanos. Com isso,
tiveram contato com o sistema de segurança dos Estados Unidos que desejavam
adotar no Brasil. Os americanos ajudaram, assim, a fundar a Escola Nacional de Guerra
em 1949. Ou seja, os militares tiveram cerca de 15 anos para planejar a tomada das
forças de Estado, sendo auxiliados pelas forças estadunidenses.300
Após o final da Segunda Guerra Mundial, em outubro de 1945, o governo
Vargas foi deposto, mas assumiu a presidência o general Dutra, dando continuidade
a práticas autoritárias que já estavam enraizadas no trabalho policial, ou seja,
continuaram a ser praticadas diversas arbitrariedades contra o cidadão. A Força
Pública301, a maior corporação policial do Estado, reprimia de forma violenta os grevistas,
mesmo com as pressões do Partido Comunista tentando persuadir a polícia com
panfletos que os incitavam a desobedecer às ordens de repressão aos protestos.302
Havia notícias, ainda, sobre o desrespeito aos direitos dos cidadãos praticados
pela polícia, que também apontava para a sua atuação de forma extremamente
arbitrária. A polícia não abandonou suas técnicas de tortura utilizadas nos interrogatórios
e prisões. O DOPS – Departamento de Ordem Política e Social, por exemplo, era
acusado de prender arbitrariamente, espancar e matar operários.303

299 ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito penal brasileiro: teoria geral
do direito penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v.1.

300 COMBLIN, J. A ideologia da segurança nacional: o poder militar na América Latina. Rio de
Janeiro, 1978.

301 A Força Pública foi criada em 1831, sendo uma corporação militar submissa ao Exército, que poderia
ser utilizada tanto para guerras externas quanto para guerras internas, conforme a Constituição
de 1946. (BATTIBUGLI, T. Polícia democracia e política em São Paulo (1946/1964). São Paulo:
Humanitas, 2010).

302 BATTIBUGLI, T. Polícia democracia e política em São Paulo (1946/1964). São Paulo: Humanitas, 2010.

303 BATTIBUGLI, T. Polícia democracia e política em São Paulo (1946/1964). São Paulo: Humanitas, 2010.
102

Vale destacar que, nesse período, houve um grande crescimento demográfico


em todo o Brasil, que fez a população brasileira praticamente dobrar, concentrando-
se a maior parte na região urbana, como no caso da cidade de São Paulo, a qual
teve um crescimento de mais de 100% da sua população urbana. Não espanta que
nesse período os crimes contra o patrimônio foram os que mais cresceram nas
estatísticas, não só em São Paulo, mas também em países como os Estados Unidos
e Inglaterra.304
Battibugli, em seu estudo sobre a polícia nesse período, destaca que:

Dos anos 40 ao final dos anos 70, tanto o Brasil como a região metropolitana de
São Paulo mudaram de forma dramática e paradoxal: a urbanização acelerada
e desordenada, aliada ao forte crescimento populacional e ao desenvolvimento
econômico concentrador de renda, gerou grandes problemas sociais. [...]
[Que] trazia como ônus a pobreza e a sensação de insegurança social
demonstrada pelos jornais e por discursos políticos da época. 305

Os Estados Unidos, nessa época, eram considerados modelos de sucesso e


bem-estar, e policiais paulistas foram enviados para lá para modernizar suas técnicas.
Mas a polícia estadunidense também era acusada de ser arbitrária e violenta. 306
Frise-se que o mundo se dividia na chamada Guerra Fria, em que EUA e Rússia
disputavam tecnologia armamentista e informação.

2.1.4 1964-1985: A Ditadura Militar e o Crime como Guerrilha Urbana

Foi nesse contexto da Guerra Fria que, em 1.o de abril de 1964, o Estado
brasileiro sofre um golpe militar, sob a justificativa de livrar o Brasil da ameaça
comunista e para uma renovação da economia segundo as receitas ortodoxas do

304 BATTIBUGLI, T. Polícia democracia e política em São Paulo (1946/1964). São Paulo: Humanitas, 2010.

305 BATTIBUGLI, T. Polícia democracia e política em São Paulo (1946/1964). São Paulo: Humanitas,
2010. p.94.

306 BATTIBUGLI, T. Polícia democracia e política em São Paulo (1946/1964). São Paulo: Humanitas, 2010.
103

capitalismo. Frise-se que nesse mesmo período a América Latina foi tomada pelos
regimes totalitários.
Participaram do golpe militar de 64 a mídia, empresários, membros da própria
OAB e da Igreja, que apoiaram o movimento pelo "restabelecimento da ordem".307
Vários grupos entre civis e militares preparavam o golpe de Estado para
derrubar João Goulart. Os oficiais da Escola Nacional de Guerra eram apenas mais
um grupo que souberam se colocar no momento do golpe, colocando um dos seus
na presidência.308
Castelo Branco é eleito na mesma semana, após a edição do Ato Institucional
número um, o qual tinha como principal medida a instalação das eleições presidenciais
de forma indireta.
Costa e Silva, em dezembro de 1968, edita o Ato Institucional número 5 instalando
o capítulo mais sangrento dessa história, determinando ilegalidades disfarçadas de
legalidades, como o recesso do congresso nacional, a censura da imprensa e a
suspensão das garantias individuais. Assumiram ainda a presidência o General Médici
e, mais tarde, o General Geisel e, por fim, Figueiredo.
A ideologia da segurança nacional articulou de forma intransigente a luta
anticomunista ao desenvolvimento de um modelo econômico e o elitismo militar.
Para tanto, o golpe afastou todos os líderes da base civil, mesmo aqueles que
tinham prestígio, e constituiu uma linha militar homogênea com o Serviço Nacional
de Informações como o centro do sistema de poder.309
A opressão também foi atrás dos líderes operários, estudantis, movimentos
sociais e dirigentes sindicais para evitar o nascedouro de um poder político popular,
reprimido desde a era Vargas. Essa tarefa foi finalizada com o AI n. o 5. O presidente

307 GABARDO, E.; NEVES, O. O estado de exceção e as normas aprovadas por decurso de prazo: uma
História da exacerbação do poder executivo na ditadura de 1964. In: CONGRESSO BRASILEIRO
DE HISTÓRIA DO DIREITO, 5., 2013, Curitiba. Anais... Curitiba: IBHD, 2013.

308 COMBLIN, J. A ideologia da segurança nacional: o poder militar na América Latina. Rio de
Janeiro, 1978.

309 COMBLIN, J. A ideologia da segurança nacional: o poder militar na América Latina. Rio de
Janeiro, 1978.
104

e o serviço de inteligência serviam como mecanismos de repressão, assim como a


polícia Secreta.310
Mas sempre havia atos de oposição que desempenhavam um papel importante
na manutenção do sistema de segurança nacional. Esses atos eram pretextos para
manutenção da linha dura.311 Existiam, portanto, diversos grupos dissidentes e que
em vários momentos protestavam contra o regime autoritário que havia se instalado,
gerando conflitos como a Guerra do Araguaia, torturas e desaparecimento forçado
de pessoas, em especial durante o período Médici.
Até a década de 70, as forças armadas se diziam mal equipadas para combater
a subversão interna, quando o DOPS, que era a polícia social e política e as polícias
civis dos estados se prepararam também para a repressão política, ou seja, a polícia
teve um papel substancial no uso da violência pelas forças de segurança.312
Antes do golpe militar, as polícias municipais e estaduais eram independentes
entre si. A polícia militar fazia o policiamento ostensivo e era subordinada ao governador
do estado. As polícias civis faziam o trabalho de investigação do fato e estavam
subordinadas ao Secretário de Segurança Pública do estado. Dentro da polícia civil
estavam as polícias política e social voltadas para investigação criminal da repressão.313
Em 69 as polícias civil e militar passaram a estar subordinadas às forças
armadas. A polícia fardada de cada estado foi denominada polícia militar, bem como
começaram a criar órgãos operacionais de inteligência, formados pela polícia civil,
militar e Forças Armadas como o grupo de operações especiais (GOE), do Rio de
Janeiro, a operação Bandeirantes de São Paulo e a diretoria central de informação
do Rio Grande do Sul.314

310 COMBLIN, J. A ideologia da segurança nacional: o poder militar na América Latina. Rio de
Janeiro, 1978.

311 COMBLIN, J. A ideologia da segurança nacional: o poder militar na América Latina. Rio de
Janeiro, 1978.

312 HUGGINS, M. Heranças do autoritarismo: reformulação da memória de torturadores e assassinos


brasileiros. In: CANCELLI, E. L. Histórias de violência, lei e crimes no Brasil. Brasília: UnB, 2004.

313 HUGGINS, M. Heranças do autoritarismo: reformulação da memória de torturadores e assassinos


brasileiros. In: CANCELLI, E. L. Histórias de violência, lei e crimes no Brasil. Brasília: UnB, 2004.

314 HUGGINS, M. Heranças do autoritarismo: reformulação da memória de torturadores e assassinos


brasileiros. In: CANCELLI, E. L. Histórias de violência, lei e crimes no Brasil. Brasília: UnB, 2004.
105

Em 1970 foi instituída uma organização híbrida de âmbito nacional conhecida


como DOI/Codi – Destacamento de Operações/Centro de Operações de Defesa
Interna com jurisdição em todas as "zonas de segurança nacional". Na verdade,
cada uma dessas zonas possuía uma seccional do DOI/Codi.315
A formação dos grupos de operações especiais, treinados para o combate
urbano e rural, passaram a tratar o delito como uma questão de guerrilha urbana,
sendo combatido o criminoso como inimigo interno.316
Assim, consagrou-se uma ideologia militarizada para ser aplicada ao policiamento
ostensivo e para a investigação criminal, autorizando-se, por exemplo, a prisão para
investigação. Essa ideologia, descompromissada com a garantia de direitos e com a
imposição de limites ao poder de polícia, é hoje reclamada pelos regimes democráticos.317
O processo de militarização ocorre com a instalação de um novo modelo
teórico para as políticas de segurança, que pregam a guerra e uma ideologia militar
para a polícia.318
A partir de diversos fatores após a Segunda Guerra Mundial, a segurança
nacional foi elevada à categoria de valor supremo. Com a Guerra Fria, a mística da
segurança nacional assumiu a forma de operações militares a curto prazo, estabelecendo
um critério infalível para diferenciar o bem do mal, apontando tudo o que era
supostamente vinculado ao comunismo como algo que deveria ser combatido, além
de elevar a segurança a valor absoluto. No entanto, este conceito teoricamente aberto é
fluido, vago e flexível, autorizando por isso as práticas imperialistas estadunidenses,
que conceberam a doutrina da segurança nacional trazida para o Brasil. 319

315 HUGGINS, M. Heranças do autoritarismo: reformulação da memória de torturadores e assassinos


brasileiros. In: CANCELLI, E. L. Histórias de violência, lei e crimes no Brasil. Brasília: UnB, 2004.

316 CERQUEIRA, C. M. N. Remilitarização da Segurança Pública: a operação rio. In: O futuro de uma
ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.

317 CERQUEIRA, C. M. N. Remilitarização da Segurança Pública: a operação rio. In: O futuro de uma
ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.

318 CERQUEIRA, C. M. N. Remilitarização da Segurança Pública: a operação rio. In: O futuro de uma
ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.

319 COMBLIN, J. A ideologia da segurança nacional: o poder militar na América Latina. Rio de
Janeiro, 1978.
106

Ou seja, mesmo após a abertura democrática, com as Diretas Já, na década


de 1980, essa visão a respeito da segurança pública permanece sendo executada
pelas polícias no Brasil. Historicamente se percebe uma permanência da militarização
do tratamento policial às questões urbanas, ou seja, a militarização e a hierarquia
das forças policiais antecedem o período militar, mas a lógica de guerra e eliminação
do inimigo são inseridas nesse contexto pela doutrina da segurança nacional, na qual
os delitos tradicionais são combatidos com o mesmo rigor que os delitos políticos.

2.1.5 Reabertura Democrática: as décadas de 1980 e 1990 e a crítica do contexto

No período de 1983 a 1987, quando Carlos Magno Nazareth Cerqueira 320


assumiu o comando das polícias militares, durante o governo de Leonel Brizola, no
Rio de Janeiro, foram feitas diversas propostas para repensar a estrutura da polícia
e da segurança pública. Para a instalação de polícias democráticas, segundo Carlos
Magno Nazareth Cerqueira321, é preciso afastar a metodologia da doutrina da segurança
nacional. Outra preocupação é quanto a organização e a estrutura das polícias militares
que se assemelham ao exército. Sua proposta foi desconstruir a ideia de que a polícia
está em guerra e de que existe o inimigo a combater; defendeu uma reconfiguração
do conceito de ordem pública, buscando a integração com a comunidade; e propôs a
retirada do exército das questões de segurança pública e a vinculação da Polícia
Militar ao Ministério da Justiça.
No entanto, essa proposta não se concretizou porque nem os policiais nem a
sociedade queriam esse modelo de polícia democrático, preferindo o modelo de uma

320 CERQUEIRA, C. M. N. Remilitarização da Segurança Pública: a operação rio. In: O futuro de uma
ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.

321 CERQUEIRA, C. M. N. Remilitarização da Segurança Pública: a operação rio. In: O futuro de uma
ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.
107

polícia autoritária, que prometia acabar com o “crime organizado” em 6 meses


invadindo favelas.322
Já em vigor a Constituição de 88, ela é acusada de implantar muitas garantias
individuais e imobilizar a ação policial, e o saudosismo em relação ao regime
ditatorial começa a ser trabalhada em diferentes setores da sociedade, criando um
ambiente favorável à remilitarização.323
Em um segundo momento, durante o mandato de 1991 a 1994, Cerqueira 324
retorna à gestão do Estado sobre a coordenação do vice-governador Nilo Batista. Na
pauta da segurança pública adotaram-se princípios gerais que orientaram a gestão,
tais como o envolvimento da comunidade; a priorização da ação preventiva; o
tratamento globalizante das situações problema; a busca da articulação entre polícia
civil, polícia militar e o corpo de bombeiros; a facilitação da acessibilidade aos
serviços policiais pela população em geral; e o combate às intervenções policiais
ilegais ou abusivas.
No entanto, havia a ocorrência de determinados delitos gerando uma insegurança
objetiva e subjetiva, exagerada e alimentada pela mídia de massa. No período eleitoral
também surgiram diversos atores que traziam propostas contrárias à política que
estava sendo executada e contra os direitos humanos, apoiando a intervenção federal.325
Para coadunar com a proposta de intervenção federal, foi vendido ao público
a ideia de que a presença do exército tinha reduzido a violência no Rio de Janeiro
durante o evento Rio 92. Outro episódio foi o General Tasso Vilar de Aquino, que
defendeu perante a imprensa que a Constituição Federal permite aos militares

322 CERQUEIRA, C. M. N. Remilitarização da Segurança Pública: a operação rio. In: O futuro de uma
ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.

323 CERQUEIRA, C. M. N. Remilitarização da Segurança Pública: a operação rio. In: O futuro de uma
ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.

324 CERQUEIRA, C. M. N. Remilitarização da Segurança Pública: a operação rio. In: O futuro de uma
ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.

325 CERQUEIRA, C. M. N. Remilitarização da Segurança Pública: a operação rio. In: O futuro de uma
ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.
108

exterminar “bandidos”. Advogados e historiadores também se manifestaram a favor


da intervenção federal.326
Ou seja, a intervenção federal chamada por Cerqueira 327 de remilitarização,
ocorreu em 94, e foi justificada com base em um contexto que afastava a ordem
constitucional da pauta e retomava a doutrina da segurança nacional no estado do
Rio de Janeiro.
Tempos depois o presidente reclama a intervenção federal, cuja determinação
o governo passa a cumprir e um termo de cooperação entre União e Estado é
estabelecido, nascendo o programa "Operação Rio". Essa operação não teve o
aporte da polícia federal e o exército apenas promoveu invasões nas favelas.328
Nessa teia estariam envolvidas a doutrina da segurança nacional e a ideologia
da defesa social, teorias que, na visão de Cerqueira329, podem perfeitamente
dialogar para justificar essa forma de atuação das forças policiais e militares na
gestão da segurança pública.
Nas palavras de Maria Lucia Karam330, a militarização não deriva da simples
colaboração entre as polícias e o exército, ou da sua denominação como militar.
É preciso questionar a própria "militarização ideológica da Segurança Pública",
amplamente tolerada e apoiada por vários setores da sociedade.

326 CERQUEIRA, C. M. N. Remilitarização da Segurança Pública: a operação rio. In: O futuro de uma
ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.

327 CERQUEIRA, C. M. N. Remilitarização da Segurança Pública: a operação rio. In: O futuro de uma
ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.

328 CERQUEIRA, C. M. N. Remilitarização da Segurança Pública: a operação rio. In: O futuro de uma
ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.

329 CERQUEIRA, C. M. N. Remilitarização da Segurança Pública: a operação rio. In: O futuro de uma
ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.

330 KARAM, M. L. Violência, militarização e 'guerra às drogas'. In: KUCINSKI, B.; DUNKER, C. I. L. Bala
perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo,
2015. p.35.
109

A Operação Rio, em 1994, foi uma atuação ilegítima das Forças Armadas que
passaram a exercer tarefas de segurança pública e que só foram abandonadas
porque não atingiram os objetivos esperados pela "fantasia da ideologia repressora".331
Essa operação foi, para o Rio de Janeiro, o marco para a remilitarização,
como chamou Cerqueira, pois, após esse momento, como veremos, com as UPPs,
novamente as tropas federais são chamadas para atuarem frente a segurança
pública estadual.
Esses episódios são concretizações inseridas na lógica do que Wacquant 332
chama de Estado Penal, uma vez que empregadas no controle das classes baixas e
da “criminalidade” de rua com objetivo sanitarista, de assepsia, para controlar a
desregulamentação do mercado de trabalho e a falta da seguridade social, como um
produto do neoliberalismo, muito mais sedutor e nefasto quando atinge países com
profundas desigualdades sociais e econômicas.
A violência policial no Brasil é forjada a partir da tradição de controle dos
despossuídos, que advém desde a história da implantação das forças policiais, desde a
violência produzida pela escravidão colonial e conflitos agrários, reforçada pelo regime
Vargas e pela ditadura militar, que disfarçou a subversão interna como repressão da
delinquência.
Essa questão é agravada pela discriminação baseada na cor da pele e na
estratificação racial empregadas no Brasil, cuja tradição tem associado negritude e
periculosidade, o que remete às lutas contra a escravidão e ao positivismo
criminológico cientificista.
Esse quadro caótico é reforçado pela adoção de políticas punitivas vindas dos
EUA como uma suposta política penal avançada de um país "mais civilizado" que a
América Latina. Essa política produz efeitos muito semelhantes entre essas diferentes
realidades da América Latina e EUA333:

331 KARAM, M. L. Violência, militarização e 'guerra às drogas'. In: KUCINSKI, B.; DUNKER, C. I. L. Bala
perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo,
2015. p.35.

332 WACQUANT, L. Rumo à militarização da marginalização urbana. Discursos Sediciosos, Rio de


Janeiro, v.11, n.15/16, p.203-220, 1.o e 2.o semestres de 2007.

333 WACQUANT, L. Rumo à militarização da marginalização urbana. Discursos Sediciosos, Rio de


Janeiro, v.11, n.15/16, p.203-220, 1.o e 2.o semestres de 2007.
110

a) a maciça intervenção policial nos bairros estigmatizados;


b) a precarização do trabalho e da economia de subsistência, que
justifica a elaboração de uma estratégia penal;
c) a divisão etno-racial originada da escravidão e a sua perseguição
pela política repressiva dirigida para subgrupos de subproletariados
urbanos e afrodescendentes; e
d) a conexão desses grupos com o sistema carcerário de seu país
pela prisionização.

A realidade das favelas brasileiras resulta numa total "militarização das clivagens
urbanas" ao se verificar a relação da justiça criminal com as forças repressivas, que
revelam as tendências subterrâneas e históricas de eliminação daquelas pessoas
consideradas detritos humanos, em uma sociedade que transforma as relações
humanas em mercadoria. Esses detritos humanos são desprovidos da proteção
burocrática e humanista burguesa frente a articulação da extrema desigualdade, da
violência nas ruas e da punição em massa, refletida pela economia de mercado, que
estimula o Estado a ser reduzido exclusivamente às suas forças repressivas,
fundindo as forças militares e civis para manutenção da ordem.334
Vera Malaguti Batista335 afirma que a saída das ditaduras militares produziu
um deslocamento do paradigma da segurança nacional para a segurança urbana,
brutalizando as polícias e realizando um massacre a conta-gotas, para utilizar a
expressão de Zaffaroni.
Chamando essa política de gestão policial da vida ou de gestão penal da
pobreza, conforme Wacquant, Vera Malaguti Batista336 diz que a expressão de
Edson Pasetti, "de controle a céu aberto", que faz referência aos bairros pobres e
favelas, nunca foi tão atual, ao retratar esses espaços com a ideia de "campo" no
qual todos os aspectos da vida dessas pessoas são tutelados pela polícia. Isso faz

334 WACQUANT, L. Rumo à militarização da marginalização urbana. Discursos Sediciosos, Rio de


Janeiro, v.11, n.15/16, p.203-220, 1.o e 2.o semestres de 2007.

335 BATISTA, V. M. Estado de polícia. In: KUCINSKI, B.; DUNKER, C. I. L. Bala perdida: a violência
policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo, 2015.

336 BATISTA, V. M. Estado de polícia. In: KUCINSKI, B.; DUNKER, C. I. L. Bala perdida: a violência
policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo, 2015.
111

parte de um projeto de militarização das intervenções urbanas difundidas pelo


mundo a partir de tecnologias estadunidenses.
Próximo dessa questão, Stephen Graham337 advoga a tese de que a urbanização
das cidades hoje aposta em um modelo militar, compartilhando tecnologias de poder
entre Estados Unidos, Europa e Ásia Oriental, que agrega doutrinas securitárias e
militares, baseadas em discursos da direita e ultradireita política, e que entendem a
cidade como espaços problemáticos, locais de subversão e resistência, que desafiam o
estado de segurança nacional.
Junto com essa nova política, surge uma nova economia securitária que
funde empresas do ramo securitário militar com empresas de tecnologia, vigilância e
entretenimento, as quais trabalham em conjunto em atividades altamente lucrativas,
que buscam atingir os passos e comportamentos cotidianos das cidades e seus
arredores.338 Da utilização de drones ao "caveirão", essas tecnologias são empregadas
no controle urbano militarizado.
Essas indústrias de segurança interna são também chamadas de indústrias
de pacificação e estão em alta, em conjunto com noções fundamentalistas de respeito à
ordem social, econômica e política. Esse novo urbanismo militar produz um conjunto
de ideias, técnicas de segurança e violência política empregado na reorganização das
arquiteturas e das experiências básicas da vida urbana, criminalizando o dissenso,
afastando a garantia de direitos e escorando sociedades cada vez mais desiguais.339
Com a globalização, foi possível não só o compartilhamento de ideologias de
segurança, mas também de tecnologias militares de poder e vigilância, empregadas
hoje no controle de condutas rotuladas como ilegais e por serem praticadas normalmente
por aqueles indesejados, ou representados como inimigos, colocados à margem da
sociedade e tornados mais vulneráveis à incidência das violências estatais.

337 GRAHAM, S. O bumerangue de Foucault: o novo urbanismo militar. In: KUCINSKI, B.; DUNKER,
C. I. L. Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo:
Boitempo, 2015.

338 GRAHAM, S. O bumerangue de Foucault: o novo urbanismo militar. In: KUCINSKI, B.; DUNKER,
C. I. L. Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo:
Boitempo, 2015.

339 GRAHAM, S. O bumerangue de Foucault: o novo urbanismo militar. In: KUCINSKI, B.; DUNKER,
C. I. L. Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo:
Boitempo, 2015.
112

2.2 Guerra às drogas: o estereótipo do traficante como novo inimigo

Depois de apresentado o histórico da repressão policial, no qual colocou-se


em destaque, como fio condutor, os alvos dessa repressão, é importante acrescentar
a política de guerra às drogas como um grande argumento incorporado às táticas de
controle social, importadas das estratégias estadunidenses e que justificam hoje o
emprego do aparelho violento e militarizado da polícia.

2.2.1 O surgimento do discurso médico-jurídico em torno das drogas

Para o professor Nilo Batista340, é possível dizer que a gestão das drogas se
divide em dois momentos no Brasil. O primeiro momento seria o sanitário, cujo início
está associado à assinatura do protocolo suplementar da Conferência Internacional
do Ópio, em 1912, e que colocava a questão nos moldes higienista, ao tratar o
adicto como um doente. O segundo momento seria o belicista, que tem início com o
golpe Militar em 1964, no qual o Brasil participa da polarização capitalismo versus
comunismo alinhado aos Estados Unidos, e coloca nos termos da doutrina de
segurança nacional os dissidentes como inimigos internos, associando os usuários e
comerciantes de drogas com esse estereótipo, já que a droga seria uma estratégia
comunista para desvirtuar a juventude ocidental.
A partir da década de 1940, o Brasil começa a tratar a questão, incorporando
o modelo internacional de controle, ao se adequar à convenção de Genebra de
1936, quando passa a proibir a produção, o tráfico e o consumo de substâncias
entorpecentes, sendo essa proibição finalmente incorporada ao Código Penal de
1940, em seu artigo 281.341

340 BATISTA, N. Política criminal com derramamento de sangue. Revista Discursos Sediciosos, Rio
de Janeiro, n.5 e 6, p.77-94, 1998.

341 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
113

Em Nova York, o protocolo para regulamentar o cultivo da papoula e o comércio


de ópio, promulgado em 1953, representa esse discurso ético-jurídico em nível
internacional. Ainda, com a convenção única sobre entorpecentes, também aprovada
em Nova York, em 1961, é que os primeiros passos para a transnacionalização do
controle acontecem. No Brasil, com aprovação e promulgação da convenção única
sobre entorpecentes, em 1964, ou seja, em plena ditadura militar, é que se consolida
nacionalmente esse cenário repressivo internacional.342
Rosa Del Olmo343 contribui para essa reflexão ao contar a história oculta da
criminalização das drogas na América desde a década de 1950 até a década de
1980. Nas décadas de 1950 e 1960, as drogas que causavam a preocupação
estadunidense eram a maconha e as derivadas do ópio. Outras drogas sintéticas já
eram consumidas, mas não eram mencionadas pelo discurso repressor, como os
barbitúricos, por exemplo.
Na década de 1970, entrou no cenário das drogas a cocaína. Ela surge como
uma droga elegante, associada a personalidades de prestígio profissional e artístico,
como uma droga recreacional, que produz bem-estar e euforia, além de ter a reputação
de não criar dependência e não ser perigosa. A mídia, nesse período, estimulava o
consumo retratando o uso por "heróis" na época, como estrelas do rock, do cinema e
esportistas famosos. Ao mesmo tempo surgiram mercados que vendiam "parafernalhas"
para facilitar o consumo.344
Em 1975, a Comissão de Entorpecentes da ONU registra que a quantidade de
cocaína consumida nos Estados Unidos já é maior do que a de heroína, que atingiu
seu pico de uso na década de 1960. Os países da América Latina vão instalar,
portanto, uma indústria com características próprias e a princípio não ilícitas. 345
Assim, é possível resumir que a cocaína teve três etapas nos Estados Unidos:
a primeira etapa, de 1970 a 1979, na qual o discurso em relação à droga é de que
ela seria recreacional, de consumo esporádico, sendo incentivada pela mídia; a

342 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
343 OLMO, R. A face oculta da droga. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
344 OLMO, R. A face oculta da droga. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
345 OLMO, R. A face oculta da droga. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
114

segunda etapa, de 1978 a 1982, quando o seu uso se altera e passa a causar mais
dependência (em 79, por exemplo, foi considerado o ano de pico do uso da
maconha e da cocaína e o de menor consumo de heroína); a terceira etapa, de 1982
a 1984, quando a cocaína passa a ser utilizada por todas as classes sociais.346
A queda da indústria de "parafernalha", que auxiliava na medição da quantidade
de droga, assim como a falta de controle sobre a qualidade, transformou a questão em
um problema real de saúde pública, o que fez ressurgir o discurso médico-jurídico em
torno das drogas, nascido na década de 1960. O discurso jurídico enfatiza o estereótipo
do criminoso, normalmente associado ao pequeno distribuidor, revendedor de rua,
que provinha dos guetos, enquanto o discurso médico classifica o usuário como
doente e aplica o modelo sanitário de controle. Estabelece-se, portanto, a distinção
entre consumidor e traficante, doente e delinquente, mas agora esse estereótipo se
forma em torno da cocaína.347
Quando Reagan, em 1981, assumiu a presidência dos Estados Unidos, ele
instituiu como política de perseguição às drogas um esquema de controle do dinheiro
do narcotráfico, inclusive para além das fronteiras. O DEA – Drug Enforcement
Administration, departamento criado em 1973, passa a fiscalizar, portanto, a saída
de recursos dos Estados Unidos por meio dos bancos, que enviam o dinheiro da
droga para Suíça, Panamá e Bahamas, e introduzem novamente nos Estados Unidos
como investimentos legais. Isso marcou a mudança de estratégia desse órgão, que
passou a controlar os chamados narcodólares.348
Para reforçar essa noção do inimigo externo, resgata-se o termo em inglês,
narcóticos, que estava associada aos opiáceos e passe-se a associá-lo à cocaína.
Por isso, a mídia fez questão de difundir as expressões narcotráfico, para qualificar o
inimigo no seu aspecto econômico, e narcoterrorismo, para identificar o inimigo em
seu aspecto político, e a expansão desses termos ajudou na expansão da política
orientada de maneira transnacional.349

346 OLMO, R. A face oculta da droga. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

347 OLMO, R. A face oculta da droga. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

348 OLMO, R. A face oculta da droga. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

349 OLMO, R. A face oculta da droga. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
115

Segundo o Comitê Econômico Conjunto, em 1983, calcula-se que a economia


subterrânea da droga nos Estados Unidos sonegava 222 milhões de dólares, ou seja,
7,5% do produto nacional bruto. Estima-se que só o mercado das drogas movimentou
mais de 100 milhões de dólares, equivalente a 10% da produção industrial do EUA.
A questão econômica se destaca, portanto, e passa a ser uma necessidade o controle
da economia subterrânea para além dos Estados Unidos, o que dá espaço para o
discurso jurídico transnacional, ou seja, que as drogas produzidas no exterior não
deviam chegar nos Estados Unidos, com ênfase na cocaína, que é a droga mais
cara. Com isso, se preparava o terreno para dizer que a responsabilidade era dos
imigrantes ilegais, os quais também eram vinculados a outras ilegalidades.350
Reagan também convoca as forças armadas e os serviços policiais para
participarem mais da defesa nacional contra o comércio de drogas, que passa a ser
considerado como um problema de segurança nacional e que pode desestabilizar
democracias, mediante a corrupção das instituições351, muito semelhante ao que
aconteceu no Rio de Janeiro, com a participação do Exército e da Marinha na
ocupação das favelas para a instalação das UPPs.
Em 1986, triplica seu orçamento destinado a campanhas contra drogas, além
da nova legislação acolher os seis pontos do programa de Reagan, que são:
1. Estabelecer programas de prevenção, tratamento e reabilitação; 2. Criar programas
para ajudar os governos estaduais e municipais a criarem instituições educativas
para prevenir o consumo entre os estudantes; 3. Criar fundos de tratamento e
reabilitação; 4. A emenda Mansfield, que permitia aos agentes da lei participarem de
apreensões de drogas no exterior, além de facilitar a deportação de estrangeiros
ilegais envolvidos com tráfico; 5. Aumenta as penas e institui a prisão perpétua; 6.
Amplia as medidas de prevenção contra o uso de drogas e álcool, criando uma
comissão presidencial para difundir essa informação.352
É com a entrada da cocaína, portanto, que o governo dos Estados Unidos
passa a adotar "a guerra às drogas", embora o discurso sobre a perseguição

350 OLMO, R. A face oculta da droga. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

351 OLMO, R. A face oculta da droga. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
352 OLMO, R. A face oculta da droga. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
116

criminal sobre as drogas já tivesse ganhado contornos transnacionais e já fosse alvo


no Brasil das políticas repressivas.

2.2.2 O discurso da transnacionalização

Rosa del Olmo353 afirma que foi no final da década de 1970 e início da década
de 1980 que os Estados Unidos investiram na transnacionalização do discurso
repressivo e declararam oficialmente a guerra às drogas, que se torna um "discurso
geopolítico", dividindo a política externa em países-vítima e países-algoz.
A principal preocupação agora é a droga vinda do exterior e o aspecto
econômico e político do tráfico de cocaína. Não se pode esquecer que um quilo de
cocaína tem o mesmo valor que uma tonelada de maconha, e tanto a fabricação,
quanto a distribuição, o consumo e a criminalização geram lucro.
O projeto de transnacionalização do combate às drogas acontece para fazer
um controle das drogas para além das fronteiras estadunidenses, cujo fundamento
está no movimento de Defesa Social, que trata o delito de forma a-histórica e
abstrata, justamente para retirar a especificidade concreta e social de cada realidade
em particular, apenas destacando o princípio do bem e do mal, da culpabilidade, da
necessidade de centralizar e unificar as formas de combate ao que se considera
moralmente inapropriado.354
A partir disso, criam-se modelos totalizantes de repressão, como o modelo
médico-sanitário-jurídico, colocando o traficante sobre o discurso jurídico-penal e o
usuário sobre o discurso médico-psiquiátrico.355
A ONU – Organização das Nações Unidas e a OMS – Organização Mundial da
Saúde contribuíram no mundo ocidental do pós-guerra para universalizar os discursos

353 OLMO, R. A face oculta da droga. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

354 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

355 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
117

proibitivos, sendo que a ONU levanta a bandeira do discurso jurídico, e a OMS o


discurso médico, desde a Convenção Única Sobre Entorpecentes, de 1961, e o Protocolo
de 1972, bem como o Convênio Sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971.356
No Brasil, a Lei n.o 6.368/76 instaurou o modelo transnacional de controle de
drogas e consagrou o discurso médico-jurídico, que diferencia o consumidor-doente
do traficante-delinquente, colocando o traficante como inimigo interno a partir do final
da década de 70, o que passa a justificar sua supressão de direitos.357
Esse discurso de combate transnacional, que fragmenta a questão e demoniza a
droga, elege novos inimigos. Ele instaura um modelo genocida de segurança pública,
bélica e militarizada, porque aposta nas guerras internas.
Na América Latina, o efeito dessa política foi um etnocídio do povo andino
que mantinha uma cultura secular de cultivo da folha de coca.358
Essas medidas mostram o quanto central é essa questão para a administração
estadunidense nesse período, e como a guerra às drogas está focada no inimigo
externo, apostando no discurso geopolítico e incorporando os postulados da doutrina
de segurança nacional ao tema das drogas.
Nessa lógica militarizada, os mecanismos da Segurança Pública se densificam.
Junto desse cenário, um tripé ideológico sustenta o sistema brasileiro de proibição
de drogas. Ou seja, a hipótese de trabalho de Salo de Carvalho359 é de que a
Ideologia da Defesa Social, a Ideologia da Segurança Nacional e o Movimento de
Lei e Ordem são bases ideológicas operadas respectivamente no nível dogmático,
no nível da segurança pública e em nível legislativo que fundamentam o sistema
proibicionista da guerra às drogas.

356 OLMO, R. A face oculta da droga. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

357 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

358 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

359 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
118

2.2.3 As bases ideológicas que sustentam o sistema brasileiro de proibição de drogas

Embora sejam indicadas como bases ideológicas para o discurso de proibição


e criminalização das drogas, a reunião da ideologia da defesa social, com a
ideologia da defesa social, as políticas de lei e ordem, o estado de exceção e o
direito penal do inimigo, é importante destacar que, como afirma Nilo Batista, esse é um
discurso plástico, que se amolda à subjetividade das necessidades naquele determinado
momento e situação.
Nesse sentido, tais discursos são amplamente utilizados também para justificar a
perseguição a outras situações criminalizadas, encobrindo a conflitividade social.

2.2.3.1 Ideologia da Defesa Social

O programa de Defesa Social se apresenta de duas formas: uma no sentido


negativo, que é a ideologia e que serve como pano de fundo para justificação do
senso comum, e outro, no sentido positivo, que se concretiza no movimento de Defesa
Social, que tem como objetivo a transnacionalização de determinados projetos de
reforma penal.360
Essa forma de pensar o delito é compartilhada tanto pela escola clássica
quanto pela escola positivista e tem a percepção de que, uma vez praticado o delito,
a sociedade seria afetada, por isso precisa reagir para a sua defesa e conservação.
Para tanto, aplica-se uma pena, que seria a forma de se realizar essa defesa.
A ideologia da defesa social é, portanto, fundadora, ou seja, justifica e racionaliza
todo o sistema legislativo-punitivo empregado pelo direito penal moderno, trazendo a
sensação irrefletida de que o faz em nome de uma certa justiça.361

360 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
361 BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito
penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de
Criminologia, 2002.
119

Ela é baseada em alguns princípios que, com o tempo, foram se tornado


comuns à ideologia popular, também denominados every day theories. Baratta362
sintetiza esses princípios:
a) Legitimidade: o Estado é visto como legítimo para reprimir o crime
por meio de seus órgãos de controle social. Reprova-se a ação
individual do delinquente e reafirmam-se os valores e a moral social;
b) Bem e Mal: o crime e o delinquente são o mal e a sociedade o bem;
c) Culpabilidade: o delito seria "expressão de uma atitude interior
reprovável", contrária aos valores e normas sociais;363
d) Finalidade ou Prevenção: além de retribuir, a pena também deve
buscar prevenir a ocorrência do crime, colocando uma
"contramotivação" para o sujeito;
e) Igualdade: a lei aplica-se de forma igualitária para todas as pessoas;
f) Princípio do interesse social e do delito natural: "Os interesses
protegidos pelo direito penal são interesses comuns a todos os
cidadãos." Apenas uns poucos delitos decorrem de "arranjos político
e econômicos".364
Em outras palavras, a ideologia da Defesa Social, fortalecida no Estado liberal
e com as permanências do positivismo criminológico, cria no senso comum a ideia
de que deve haver uma resposta criminal punitiva, racional e científica ao delito, ou
seja, opera de forma transversal na conformação do senso comum e teórico sobre a
questão criminal. Já o movimento de Defesa Social são gerações político-criminais

362 BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito
penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de
Criminologia, 2002.

363 BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito
penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de
Criminologia, 2002. p.42.

364 BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito
penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de
Criminologia, 2002. p.42.
120

no sentido repressivo e que busca a unificação metodológica das instituições e leis


penais a partir de um modelo universal.365

2.2.3.2 Doutrina da Segurança Nacional

A partir da década de 1960, a América Latina se torna palco de várias ditaduras


militares que trazem os postulados ideológicos da segurança nacional, os quais tratam
o inimigo político como um sujeito que deve ser eliminado, conforme foi demonstrado
no primeiro tópico deste capítulo.
O regime militar instalado no Brasil, em 64, desenvolveu como política repressiva
a chamada doutrina da segurança nacional, trazida por autores franceses e por
escolas de guerra norte-americanas às Américas. Essa doutrina considerava que existia
um estado de guerra permanente e identificava como principal inimigo o comunismo.
Para sua defesa, suprimiam direitos de todos em prol da ordem estatal, o que
justificava a atuação dos sistemas formal, administrativo e subterrâneo, este último
representado pela prática de grupos de extermínio, tortura, sequestros e
desaparecimentos forçados.366
A ideologia da segurança nacional tem início no período da guerra fria, com a
bipolarização Leste-Oeste e com a América Latina tendo que aderir a um desses
blocos.367 Utilizando a mesma lógica dualista, a ideologia da defesa social propõe a
adoção do princípio do bem e do mal, retratando a sociedade como o bem e o
inimigo/traficante como o mal.

365 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
366 ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito penal brasileiro. 4.ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2011. v.1.

367 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
121

Falando da experiência argentina nesse período, Augusto Monteiro 368 afirma


que a doutrina de segurança nacional encobre um conjunto complexo de princípios
ideológicos e técnicas não escritas, mas práticas, que foram trazidas pelos Estados Unidos
e pela França, adaptadas à realidade da América Latina e que tinham como objetivo
monitorar e neutralizar os inimigos internos, considerados revolucionários comunistas.
Esse novo inimigo interno, que deveria ser controlado pelas forças militares,
ressignificou também o papel da inteligência, que deveria articular as informações
entre serviços civis e militares, concentrando a comunicação entre elas, ou seja,
encarregada de buscar, controlar e centralizar a informação.369
Essa nova visão sobre a guerra e sobre o inimigo trouxe uma nova forma de
organização das forças de segurança nacional, mudando a visão dos seus dirigentes
em relação às instituições policiais, que passaram a figurar como a principal arma de
guerra contrarrevolucionária. Tanto as forças armadas francesas como estadunidenses
acreditavam que as instituições policiais deveriam estar subordinadas às
Forças Armadas.370
Uma característica visível dessa intercessão entre as forças militares e
policiais é que figuras vinculadas às Forças Armadas ou de segurança ocuparam
cargos estratégicos nas instituições policiais, além de que essas pessoas foram
treinadas, muitas vezes, pela polícia estadunidense ou francesa. Esses cursos, em
muitos casos promovidos pela CIA, difundiam a doutrina da segurança nacional e
normalmente aceitavam os cargos e patentes mais altas.371
Outra evidência é a de que as polícias ganham novos papéis nesse processo
de obtenção e circulação de informações, elemento central das polícias modernas.

368 MONTEIRO, A. Las polícias y la Doctrina de la seguridad nacional em la Argentina. Primeira


aproximación. In: BERGALLI, R.; BEIRAS, I. R.; BOMBINI, G. Violencia y sistema penal. Buenos
Aires: Del Perto, 2008.
369 MONTEIRO, A. Las polícias y la Doctrina de la seguridad nacional em la Argentina. Primeira
aproximación. In: BERGALLI, R.; BEIRAS, I. R.; BOMBINI, G. Violencia y sistema penal. Buenos
Aires: Del Perto, 2008.
370 MONTEIRO, A. Las polícias y la Doctrina de la seguridad nacional em la Argentina. Primeira
aproximación. In: BERGALLI, R.; BEIRAS, I. R.; BOMBINI, G. Violencia y sistema penal. Buenos
Aires: Del Perto, 2008.
371 MONTEIRO, A. Las polícias y la Doctrina de la seguridad nacional em la Argentina. Primeira
aproximación. In: BERGALLI, R.; BEIRAS, I. R.; BOMBINI, G. Violencia y sistema penal. Buenos
Aires: Del Perto, 2008.
122

A tortura, por exemplo, era um meio de se obter informações e foi recuperada nessa
função histórica, como o esquema repressivo próprio da doutrina de segurança nacional.372
As legislações nesse período também passam a vincular as polícias e a
segurança nacional, o que era central para essa doutrina, ou seja, a subordinação
das polícias às forças armadas, que começaram a tomar forma no final da década
de 1950, quando as polícias passaram a operar frente ao controle operacional do
Exército, da Marinha e da Aeronáutica.373
Por fim, outra evidência da vinculação das polícias com a doutrina de segurança
nacional é que elas participavam dos esquemas paralelos de repressão. Não se
tratava de duas polícias, mas de uma dupla repressão. A polícia desempenhava uma
função formal, que era superficial, que levaram adiante de maneira visível, mas
atuaram em um sistema subterrâneo e paralelo como membros das instituições militares.
Isso significava que as funções superficiais eram legais e as subterrâneas ilegais. 374
Esses fatores deram condições para que o esquema repressivo atuasse sem
um mínimo de legalidade e deixando de observar os direitos fundamentais de quem
era definido como inimigo. A ideologia da segurança nacional é estruturada na ideia
de que o inimigo deve ser eliminado, bem como que a segurança nacional deve ser
protegida a qualquer custo e que a violência empregada nesta defesa é legítima.

Com a incorporação dos postulados da Doutrina de Segurança Nacional


(DSN) no sistema de seguridade pública a partir do Golpe de 1964, o Brasil
passa a dispor do modelo repressivo militarizado centrado na lógica bélica
de eliminação/neutralização de inimigos. [...] Categorias como geopolítica,
bipolaridade, guerra total, adicionadas a noção de inimigo interno, formatam
o sistema repressivo que se origina durante o regime militar e se mantém no
período pós transição democrática.375

372 MONTEIRO, A. Las polícias y la Doctrina de la seguridad nacional em la Argentina. Primeira


aproximación. In: BERGALLI, R.; BEIRAS, I. R.; BOMBINI, G. Violencia y sistema penal. Buenos
Aires: Del Perto, 2008.

373 MONTEIRO, A. Las polícias y la Doctrina de la seguridad nacional em la Argentina. Primeira


aproximación. In: BERGALLI, R.; BEIRAS, I. R.; BOMBINI, G. Violencia y sistema penal. Buenos
Aires: Del Perto, 2008.

374 MONTEIRO, A. Las polícias y la Doctrina de la seguridad nacional em la Argentina. Primeira


aproximación. In: BERGALLI, R.; BEIRAS, I. R.; BOMBINI, G. Violencia y sistema penal. Buenos
Aires: Del Perto, 2008.

375 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p.75.
123

Programas do direito penal militar são incorporados ao direito penal comum, tais
como a ordem do corpo social e a eficácia das ações, o que consolida uma lógica
militarizada do treinamento das polícias militares e civis e implica na hierarquização
de seu funcionamento, ainda que isso resulte na constante violação da legalidade.
Esse discurso se alinha à Ideologia da Defesa Social e constrói uma pauta
rigorosa de combate à “criminalidade” comum. A junção dessas ideologias faz surgir
o estado de guerra total e permanente contra o crime. Nas palavras de Salo de
Carvalho: "[...] as agências de controle alimentarão o desejo insaciável de poder
punitivo"376, pois são moldadas no militarismo.

2.2.3.3 Movimentos de Lei e Ordem

Os movimentos de Lei e Ordem são o terceiro pilar do discurso autoritário da


política criminal de guerra às drogas no Brasil. Eles têm origem nos Estados Unidos,
na década de 60, e trazem programas de resistência à contracultura, para salvar os
princípios éticos e morais cristãos da sociedade ocidental.377
A política de tolerância zero, como parte do pacote lei e ordem, começou em
Nova York, sob a administração do prefeito Giuliani e com o projeto de segurança de
William Bratton, em 1994, e se alastrou pelo mundo sob o slogan "em Nova York
sabemos onde está o inimigo". Como sugere a frase, lança-se a campanha por
identificar o inimigo, que seria, na expressão da teoria das janelas quebradas – teoria
resgatada pelo movimento –, aquele que produzisse uma lesão ou violasse uma regra,
o desordeiro, ainda que incapaz de produzir qualquer dano, como quebrar uma janela.
Assim Kelling e Wilson378, os principais mentores da Broken Windows Theory,
acreditavam que a polícia, estando nas ruas, ajudaria a controlar os desordeiros tais

376 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p.99.
377 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
378 KELLING, G. L. WILSON, J. K. Broken windows: the police and the neighborhoods safety. Atlantic
Magazin, mar. 1982. Disponível em: <http://www.theatlantic.com/magazine/print/1982/03/broken-
windows/304465/>. Acesso em: 18 dez. 2012.
124

como pichadores, mendigos, viciados, prostitutas, bêbados, e que, controlando esses


desordeiros, devolveriam a ordem e a tranquilidade para os "cidadãos de bem"
aproveitarem seu bairro e se sentirem seguros. Segundo postulavam, a desordem e a
“criminalidade” são indissociáveis, elas andam juntas. Nessa concepção, as pequenas
desordens devem ser punidas para evitar o aparecimento da “criminalidade”,
especialmente violenta. Por isso a polícia deve ser como um guardião, que deve
manter a ordem a salvo de ameaças, restringindo a atuação desses indesejáveis.
Saliente-se que James Q. Wilson tornou-se o criminólogo referência da direita
conservadora e punitiva nos EUA, já na década de 1970, pois iniciou um trabalho de
desconstrução do pensamento crítico no momento em que se postulava uma
criminologia do cotidiano, baseado na simplicidade da oposição entre bom e mau.
Esse movimento, na verdade, foi uma mistura de várias teorias e, dentre elas, resgatou
o positivismo criminológico formulando explicações racistas e preconceituosas para
justificar o controle da “criminalidade”.379
A punição se justificaria porque parte desses pequenos atos de desordem o
início da “criminalidade”, acreditando que os pequenos delitos seriam a porta de
entrada para os maiores, ou seja, pequenas incivilidades deveriam ser reprimidas
para evitar que crimes mais graves ocorressem.380
Para isso, Wilson propunha que a polícia saísse dos gabinetes e carros e
fizesse rondas a pé, para elevar o nível de ordem nas ruas, bem como essa polícia
deveria ser mais barata, eficiente e mais próxima da população. E uma interessante
correlação temporal com a realidade das UPPs e UPSs se apresenta, uma vez que
essa polícia foi pensada para a realização dos Jogos Olímpicos de 1984.381
Os Estados Unidos vendem para os países do globo a ideia de que foram
assolados por uma alta “criminalidade” e que, por inovações policiais e penais,
resolveram a questão, tendo como exemplo a cidade de Nova York. O relatório do
Manhattan Institute diz que a redução das estatísticas criminais nos Estados Unidos

379 ANITUA, G. I. História dos pensamentos criminológicos. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de
Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2008.
380 ANITUA, G. I. História dos pensamentos criminológicos. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de
Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2008.
381 ANITUA, G. I. História dos pensamentos criminológicos. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de
Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2008.
125

deveu-se, portanto, ao enérgico e inovador uso das forças de ordem, mas estudos
demonstram que a polícia não foi o motor dessas mudanças.382
As mudanças realizadas no policiamento de Nova York consistiram em uma
reestruturação burocrática da organização policial, descentralizando suas bases,
relativizando a hierarquia e reduzindo a idade dos chefes de polícia, que seriam
responsabilizados diretamente, sendo sua remuneração e promoção baseadas nos
índices de “criminalidade” produzidos. Além disso, foram expandidos os recursos
financeiros aplicados à polícia, e também se adotaram novas tecnologias para o
registro das estatísticas criminais.383 Por fim, foram implantados novos planos de
ação com base na expertise empresarial.384 Frise-se que tais medidas têm grande
semelhança com o projeto das UPSs, pois igualmente foram adotados esses
critérios para a implantação de uma nova polícia, sob o slogan comunitário.
Porém, contrariamente ao que foi noticiado pela mídia, a primeira evidência
de que a redução da violência criminal em Nova York não se deu por conta da
reformulação das instituições policiais, ou pelo recrudescimento das punições, afirma
Wacquant385, é que essa redução teve início antes mesmo da gestão de Giuliani e
continuou no mesmo ritmo após seu mandato.
Outras cidades americanas que não adotaram essas políticas repressivas tiveram
igualmente uma redução nos índices de registro de ocorrências, como Boston, São
Francisco e San Diego, por exemplo, que apostaram num modelo de policiamento
que procurava estabelecer relações de continuidade com os moradores para
prevenir as infrações, sem apostar na punição excessiva.386

382 WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [a onda punitiva].
3.ed. Tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

383 O Paraná adota o business intelligence – BI para o registro das ocorrências e que pode ser
consultado instantaneamente para a produção das estatísticas. No entanto, o acesso a esses
dados é restrito aos agentes estatais.

384 WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [a onda punitiva].
3.ed. Tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

385 WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [a onda punitiva].
3.ed. Tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

386 WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [a onda punitiva].
3.ed. Tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
126

Além desses fatores, Wacquant387 lista outras questões que contribuíram para
a redução dos índices de crimes violentos, nos anos de 1990, nos Estados Unidos e
que não têm conexão com os padrões de policiamento:
1) O crescimento econômico e o aumento das taxas de emprego, ainda
que com baixos salários, proporcionaram aos jovens a possibilidade
de um trabalho e um ganho econômico, embora nos bairros
segregados não tenha havido redução da pobreza.
2) A venda de crack se estabilizou e reduziu o uso de violência na
disputa entre gangues rivais. Além disso, o setor foi oligopolizado,
o que reduziu os índices de homicídios. Os usuários de crack
também migraram para outras drogas como as opiáceas, a
maconha, a heroína e a metanfetamina.
3) Houve a redução da população de jovens, decorrente da pandemia
da AIDS entre os usuários de heroína; as mortes por overdose; os
jovens mortos por seus rivais; e as prisões.
4) Também teve influência a migração predominantemente feminina,
na década de 90, a qual acessou, por meio de seus nichos étnicos,
a economia local, permitindo que o entorno dos grandes guetos
reconquistasse os espaços públicos e abandonasse as atividades
criminosas.
5) Conta-se também com o efeito da aprendizagem geracional, que
fez com que os jovens nascidos após esse período não quisessem
manter o mesmo estilo de vida que seus irmãos mais velhos, primos
e amigos, que tiveram como resultado a morte ou a prisão.
6) Foram assinados tratados de paz pelas gangues que controlavam
os territórios de Los Angeles, Chicago, Detroit e Boston, na década
de 90, o que reduziu significativamente o número de homicídios
entre jovens pobres.

387 WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [a onda punitiva].
3.ed. Tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
127

7) Coletivos de mães vítimas de chacinas, além de igrejas, escolas,


associações e clubes de bairro organizaram-se e passaram a exercer
o controle social informal entre os jovens.

Assim, a reunião desses fatores, ao mesmo tempo, foi determinante para a


redução da violência em várias cidades americanas, e a polícia de Nova York utilizou
esse quadro para retratá-lo como decorrente da eficiência da repressão policial,
aplicando supostamente uma releitura da teoria das Janelas Quebradas.
Frise-se que Bratton, comissário de polícia de Nova York da gestão de Giuliani,
assim como Kelling, negam que a política de tolerância zero tenha relação com a
filosofia das janelas quebradas. Bratton, em evento na cidade de Westminster, nega
que teria colocado em prática uma política de tolerância zero, afirmando que é vital
para o bom policiamento saber discernir quais atitudes devem ser reprimidas, e que
isso depende da elaboração de planos em conjunto com a comunidade, levando em
questão suas prioridades e preferências. Ele admite que é necessário ampliar o
controle sobre crimes e incivilidades, mas afastando-se da fala de tolerância zero, o
que decepcionou a plateia. Afirmou ainda que a “criminalidade” não pode ser
perseguida com a imposição de um rígido controle policial, pois o policiamento era
só o primeiro passo.388
Nesse sentido, a política de tolerância zero teria sido uma releitura das velhas
práticas policiais, ou seja, da sabedoria popular policial, ainda que negada por seus
executores, mas que fora aplicada sob a justificativa "científica" da teoria das janelas
quebradas.
"Afinal, a tática de assédio policial permanente dos pobres nas ruas empreendidas
em Nova York nada mais é do que a aplicação sistemática e deliberada de 'teorias'
folclóricas baseadas no bom senso prático dos policiais".389 Essas teorias são
desprovidas de qualquer validade científica. Sua validade, em verdade, está
baseada numa "fé coletiva", propagada pela mídia sem fundamentação na realidade.

388 YOUNG, J. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade


recente. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2002.

389 WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [a onda punitiva].
3.ed. Tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p.441.
128

Elas retratam uma limpeza de classes e atuam sobre bairros e populações consideradas
suspeitas previamente.
É uma política higienista, pois promove uma gestão policial e judiciária da
"pobreza que incomoda", com fins eleitoreiros, uma vez que busca elevar a sensação
de segurança da sociedade em relação a essa pobreza, propagando tais fundamentos
de forma transnacional, juntamente com a "retórica militar da 'guerra' ao crime e da
'reconquista' do espaço público".390
Ou seja, tais ideias foram implementadas sob a justificativa de moralizar as
classes inferiores e garantir a qualidade de vida na cidade, pois a função da polícia
era justamente restringir o acesso dos pobres, chamados de squeegee men, aos
espaços públicos, para frear o medo das classes média e alta. Os recursos utilizados
para tanto consistiam na contratação de mais efetivo policial, a cobrança de
resultados estatísticos, a implementação de tecnologias para vigilância e registro da
ocorrência, além de punições mais severas como a pena de prisão perpétua para
quem tivesse três condenações criminais.391
Assim, o Brasil importa o movimento de lei e ordem que instituiu a perseguição
aos pobres, incentivou a criminalização primária, inflacionando o sistema penal de
leis repressoras criminais esparsas, causou o endurecimento das penas e restringiu
os direitos e as garantias do cidadão, colocando-se à venda através dos meios de
comunicação de massa, fazendo propaganda das medidas repressivas como único
remédio capaz de combater os males sociais.
Definida a estética delitiva, entram em ação os movimentos de Defesa Social
e o movimento de Lei e Ordem, que se somam ao modelo belicista, originado na
experiência dos governos autoritários, de gestão da Segurança Pública, e elege o
inimigo que deve ser eliminado.

390 WACQUANT, L. Prisões da miséria. Tradução de André Telles, Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001. p.30.

391 WACQUANT, L. Prisões da miséria. Tradução de André Telles, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
129

2.2.3.4 Estado de Exceção e Direito Penal do Inimigo

Segundo Salo de Carvalho392, outros dois paradigmas contemporâneos entram


em ação quando se fala de guerra às drogas, que seria o direito penal do inimigo e o
estado de exceção.
O estado de exceção é de difícil definição e quem procurou formular conceitos
mais precisos foi Giorgio Agamben, afirmando que este pode ser verificado durante
o período de guerra civil, insurreição e resistência, e esse momento se situa diante
de uma "zona de indecidibilidade", ou seja, são respostas políticas, e não jurídicas,
dadas aos conflitos, portanto, "o estado de exceção apresenta-se como a forma
legal daquilo que não pode ter forma legal".393
A política de segurança pública retrata fielmente a ideia da implementação do
estado de exceção, pois se instala uma guerra civil legal, por meio da qual é possível
eliminar os adversários políticos e pessoas do povo não integrantes do sistema
sócio-econômico, sob a bandeira da defesa da própria lei, ou seja, para defendê-la é
preciso deixar de aplicá-la. "É como se o direito contivesse uma fratura essencial
entre o estabelecimento de uma norma e sua aplicação e que, em caso extremo, só
pudesse ser preenchida pelo estado de exceção [...]".394
Portanto, o estado de exceção passou a ser adotado inclusive nas atuais
democracias contemporâneas e transformou a estrutura e o sentido de diversas
instituições estatais como a polícia, que hoje funciona como o ator principal da
execução dessa política. A partir do momento em que o estado de exceção vira a
regra, ele se apresenta mais como técnica de governo do que medida excepcional.
Soma-se a essa visão o direito penal do inimigo, que classifica as pessoas em
dois grupos: o cidadão e o inimigo. A implementação desse estado de exceção, ou a
declaração de que determinado sujeito já não é cidadão, mas inimigo, e que a ele já
não pertence mais a assistência da lei e do Estado, permitindo o uso da violência

392 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

393 AGAMBEN, G. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p.12.

394 AGAMBEN, G. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p.49.
130

para sua neutralização e eliminação física, torna esse sujeito e seus espaços vitais
"vida nua", ou seja, torna-se uma vida matável, autorizando-se, assim, a intervenção
letal da polícia no controle desses inimigos.395
Aos cidadãos que praticam delitos de forma esporádica fica reservada a aplicação
do Direito Penal de garantias, que observa a formulação normativa moderna, respeitando
os postulados da legalidade e da jurisdicionalidade. Para estes, a punição teria a
função de restabelecer a confiança na lei. Para aqueles que costumam praticar delitos
de forma rotineira seria lícito retirar-lhe a condição de cidadão, excluindo-os do sistema
de privilégios jurídicos e desconsiderando-os como pessoa, tornando-se inimigos.
Para Jakobs e Meliá396, a condição de inimigo é uma realidade ontológica,
identificada mediante a análise da personalidade e a partir de um prognóstico de
periculosidade futura, de quem se comporta de forma insubordinada à lei, opondo-se
à sociedade ao desafiar seu sistema social. Os principais delitos que indicariam a
condição de inimigo seriam os crimes econômicos e o “crime organizado”, o que
inclui aqui o mercado das drogas, além dos crimes sexuais e o terrorismo, pois
atentam contra o Estado, ao passo que o cidadão tem a capacidade de preservar as
expectativas normativas porque não desafia o sistema social, pois não pratica delitos
contra o Estado.397
Essa concepção é pulverizada por todo o aparelho repressor penal e reduz a
possibilidade do direito de regular as violências públicas ou privadas desmedidas.
Esse discurso abre caminho para a justificação do terrorismo do Estado, já que o
objetivo do direito penal do inimigo não é aplicar a norma, mas eliminar um perigo. 398

395 AGAMBEN, G. Homo-sacer: o poder soberano e a vida-nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

396 JAKOBS, G.; MELIÁ, M. C. Derecho Penal del Enemigo. Madrid: Civitas, 2003.

397 CIRINO DOS SANTOS, J. O direito penal do inimigo: ou o discurso do direito penal desigual. In:
Liber Amicorum: homenagem ao Prof. Doutor António José Avelãs Nunes. Coimbra: Coimbra,
2009. p.541-555.

398 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
131

Segundo Zaffaroni399, sob o pretexto de gerenciar situações de emergência,


há cerca de três décadas, tem-se justificado o estado de exceção e construído um
direito penal do inimigo, uma vez que o poder punitivo é discriminatório e trata os
considerados perigosos como inimigos, negando-lhes as garantias do direito penal.
Segundo Carl Schmitt400, o inimigo seria apenas o externo, eleito pelo Estado, e
que poderia ser submetido à eliminação por meio da guerra, uma vez que o objetivo
do Soberano seria manter a ordem, o que somente seria possível com a homogeneidade
da sociedade. No entanto, verificamos, hoje, que mesmo o interno pode ser elevado
à categoria de inimigo quando rompe com a ordem interna. Nesse sentido é que
Jakobs e Meliá401 formulam a concepção do Direito Penal do Inimigo, afirmando que
aquele que não tem capacidade de se comportar conforme a ordem constitucional
deve ser tratado como inimigo, perdendo as suas garantias legais e autorizando-se a
guerra como forma de combater e eliminar o inimigo.
O dispositivo inimigo introduz a guerra como exceção no estado de direito. 402
Ou seja, os regimes democráticos têm uma fratura por onde penetra o autoritarismo
do estado de polícia, cada vez mais presente nas democracias modernas.
Na América Latina, o discurso repressivo legitimou as políticas criminais de
guerra às drogas, colocando como inimigo visível a ser combatido o “crime organizado”.
A partir da década de 80, a ideia de uma “criminalidade” dita organizada ressignifica
as metarregras estabelecidas pela ideia de inimigo como narcotraficante, legitimando
um direito penal de emergência403 e tornando o direito penal do inimigo um programa
político-criminal.

399 ZAFFARONI, E. R. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2.ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2007.

400 SCHMITT, C. O conceito do político. Tradução de Alvaro L. M. Valls. Rio de Janeiro: Vozes, 1992.

401 JAKOBS, G.; MELIÁ, M. C. Derecho Penal del Enemigo. Madrid: Civitas, 2003.

402 ZAFFARONI, E. R. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2.ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2007.

403 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
132

Em face dessa leitura, "[...] tentações autoritárias brotam com aparência de


instrumentos eficazes ao restabelecimento da lei e da ordem"404 e, no cálculo de custo-
benefício, sacrificar direitos e garantias parece razoável para se retomar a segurança.
Isto é, a maior falácia distribuída ao público é de que existe uma oposição entre os
direitos e garantias penais individuais e a segurança democrática, o que torna uma escolha
mais fácil a identificação dessa pessoa que terá seus direitos suprimidos como inimigo.

2.2.4 Crítica ao discurso da criminalização das drogas

Esse sistema criminal, que manipula a ideologia da defesa social, a doutrina


de segurança nacional, as doutrinas de tolerância zero, o direito penal do inimigo e o
estado de exceção, utilizado de forma transnacional, permite violações sistemáticas
de direitos daqueles sujeitos mais vulneráveis à incidência das agências punitivas.

Os alvos preferenciais da 'guerra às drogas' são os mais vulneráveis dentre


estes produtores, comerciantes e consumidores. Os 'inimigos' nessa guerra
são os pobres, os marginalizados, os negros, os desprovidos de poder, como
os vendedores de drogas do varejo das favelas do Rio de Janeiro, demonizados
como 'traficantes', ou aqueles que a eles se assemelham, pela cor da pele,
pelas mesmas condições de pobreza e marginalização, pelo local de
moradia que, conforme o paradigma bélico, não deve ser policiado como os
demais locais de moradia, mas sim militarmente 'conquistado' e ocupado.405

O argumento da guerra às drogas é a desculpa utilizada hoje para ocupação


dos territórios favelados, sob a justificativa de que era necessário pacificar comunidades
pobres dominadas pelo tráfico de drogas. Sob essa constatação, Maria Lucia
Karam406 afirma que é justamente a proibição às drogas o motor da militarização das
atividades policiais no Rio de Janeiro, no Brasil e em outras partes do mundo.

404 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p.132.
405 KARAM, M. L. Violência, militarização e 'guerra às drogas'. In: KUCINSKI, B.; DUNKER, C. I. L. Bala
perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo,
2015. p.36-37.
406 KARAM, M. L. Violência, militarização e 'guerra às drogas'. In: KUCINSKI, B.; DUNKER, C. I. L. Bala
perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo, 2015.
133

Na mesma linha, Salo de Carvalho407 afirma que a política de drogas passa a


definir uma espécie ideal de repressão operada pelo sistema penal, transnacionalizada
pelas agências centrais aos países periféricos.
É importante perceber que esse processo de constante violação de direitos
humanos e práticas ilegais produzido por policiais, em sua maioria militares, não é
só tolerado como apoiado e, até mesmo, incentivado pelo Ministério Público, Poder
Judiciário, governantes, legisladores, pela mídia e pela sociedade como um todo.408
A droga hoje é o cerne da diferenciação do controle entre ricos e pobres, do
privilégio e da exclusão social, por meio da aplicação de estereótipos negativos e
periculosistas. O que move o sistema não é a realização do delito, propriamente dito,
mas o controle dessa população pobre, considerada "classe perigosa" 409, sob os
mecanismos de poder da governamentalidade.
Segundo Salo de Carvalho410, o processo de criminalização das drogas
advém de um discurso moralizador, que pune opções pessoais e prolifera culpas e
ressentimentos próprios de uma cultura judaico-cristã ocidental. Mas, alinhado com
isso, existe um conjunto de elementos, teorias e ideologias sobrepostas que sustenta
o discurso criminalizador.
Como a palavra droga não traz um conceito exato, verifica-se que não é
precisamente a sua conceituação que importa, também não é a própria substância
ou os seus efeitos, mas o discurso que se constrói em torno dela, sendo classificadas
entre proibidas e permitidas conforme a conveniência, definição essa que acaba
vinculada à natureza ou à condição do vendedor e do consumidor. 411 Por isso, a

407 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

408 KARAM, M. L. Violência, militarização e 'guerra às drogas'. In: KUCINSKI, B.; DUNKER, C. I. L. Bala
perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo, 2015.

409 BATISTA, V. M. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2.ed. Revan, 2003.

410 CARVALHO, S. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/2006. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

411 OLMO, R. A face oculta da droga. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
134

definição do termo droga não é uma definição descritiva, mas avaliativa, "é uma
senha que implica automaticamente uma proibição".412
No entanto, essa política proibicionista não fez com que o consumo da droga
diminuísse; pelo contrário, o número de usuários só tem crescido, o que fez o mercado se
expandir a ponto de se tornar um vultuoso negócio com trágicas consequências sociais.413
A droga se tornou responsável por todos os males, "é o bode expiatório por
excelência".414 A droga é uma questão econômica e política, mas tem sua face
oculta que a transforma num mito, e colocar a questão nesses termos permite que
sejam ignoradas as reais dimensões psicológicas e sociais, políticas e econômicas.
O mito da droga e a sua criminalização são utilizados como suporte para o
controle social dos jovens pobres não-brancos, através do poder do sistema penal
"positivo configurador", dirigido as classes baixas e pobres. Em outras palavras,
instituições de controle social têm a finalidade de intimidar essas pessoas mais
vulneráveis e o marco desse sistema é o genocídio de quem ontem era escravo e
hoje é uma massa marginalizada urbana.415
Vera Malaguti Batista416, em sua análise a respeito da criminalização da juventude
pobre no Rio de Janeiro envolvida com drogas, aponta que, quando são ricos e brancos,
os jovens são enquadrados na categoria usuário e o conflito se resolve na esfera
privada, abstendo-se o Estado de impor algum tipo de sanção, ou seja, quando se
trata de jovens brancos de classe média, aplica-se o paradigma médico, e não o
criminal. Somente a partir da década de 1980 é que a classe média aparece envolvida
nos processos sobre drogas.
De outro lado, quando são afrodescendentes, os jovens são detidos pelo Estado,
destacando-se o olhar seletivo, moral e periculosista das equipes multidisciplinares,
reprodutoras de um positivismo lombrosiano e de um darwinismo social. Esses

412 RUGGIERO, V. Crimes e mercados: ensaios de anticriminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

413 ARGÜELLO, K. S. C.; MURARO, M. Política criminal de drogas alternativa: para enfrentar a guerra às
drogas no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v.113, p.317-356, mar./abr. 2015.

414 OLMO, R. A face oculta da droga. Tradução de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p.22.

415 BATISTA, V. M. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2.ed. Revan, 2003.

416 BATISTA, V. M. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2.ed. Revan, 2003.
135

profissionais estão inseridos em um sistema tecnicista, cuja função seria disfarçar a


violência exercida pelo Estado, utilizando justamente esse manto da técnica.417
A estrutura familiar é sempre utilizada como parâmetro para definir a severidade
da punição. O internamento nas unidades de correção também é entendido como
curativo a partir das oficinas de trabalho, pois o trabalho seria uma forma de recuperação
e também de manter esses jovens em suas ocupações subalternas. De maneira
ambígua, a mesma atividade que exerciam na rua, considerada como atividade
suspeita, é estimulada como forma de recuperação dentro dessas unidades.418
A partir da década de 1970, cresce o consumo de cocaína e a mão de obra que
se especializa é a da periferia. Gradualmente, a venda de substâncias entorpecentes
vai adquirindo a forma de profissão e a boca de fumo vai se armando, como reflexo
da entrada da cocaína no mercado brasileiro.419
Vera Malaguti Batista420 reflete que, na globalização da economia e com a
supremacia do mercado, a tentativa de combater um negócio altamente lucrativo é
impossível, o que ocorre com o mercado da cocaína. O seu preço é regulado conforme
o uso da violência estatal empregada no seu controle, por isso tem alta rentabilidade,
inserindo-se no mercado neoliberal, como descrito por Ruggiero. O negócio se estrutura
com a divisão formal do trabalho, no qual a classe média é o principal consumidor e a
venda é pulverizada em pequenas unidades dispersas, sendo uma alternativa de
trabalho rápida e lucrativa para os jovens.
Esse controle social, hoje militarizado e vertical, incide sobre setores mais pobres
da população, sobre os dissidentes que vendem substâncias entorpecentes como
forma de se inserir na economia neoliberal informal e que assumem o estereótipo do
traficante. Assim, o discurso de guerra às drogas, construído sobre esses pilares,
justifica hoje a atuação repressiva do Estado e sua política de exclusão de direitos, bem
como a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora, que de paz não têm nada.

417 BATISTA, V. M. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2.ed. Revan, 2003.

418 BATISTA, V. M. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2.ed. Revan, 2003.

419 BATISTA, V. M. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2.ed. Revan, 2003.

420 BATISTA, V. M. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2.ed. Revan, 2003.
136

3 A IMPLANTAÇÃO DAS UNIDADES DE POLÍCIA PACIFICADORA

Com exceção do período autoritário, em que as forças policiais estavam sobre


o controle do Governo Federal, nos períodos republicanos, as polícias estiveram sob
o controle dos governos estaduais, que gozavam de grande autonomia na sua gestão.
Porém, o governo federal procurou centralizar essa questão, criando em 1997
a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP)421. Nos primeiros anos de
gestão da SENASP, ela cumpriu um papel mais gerencialista do que promoveu
mudança no cenário da Segurança Pública.
Quando foi concebido o primeiro Plano Nacional de Segurança Pública 422, nos
anos 2000, é que efetivamente essa questão foi colocada em prática, pois o plano
tinha como objetivo aperfeiçoar a segurança pública, propondo integrar políticas de
segurança, políticas sociais e ações comunitárias para prevenir e reprimir o crime,
reduzir a impunidade e aumentar a sensação de tranquilidade do cidadão.
Frise-se, nesse plano, que o primeiro compromisso nacional assumido pelo
Governo Federal foi de combater o narcotráfico e o “crime organizado”. Embora tenha
dado foco na integração entre as polícias, para o tratamento global das ilicitudes,
sua aposta foi no fortalecimento das instituições voltadas à aplicação da justiça criminal
e no aparelhamento das polícias, bem como no melhoramento dos seus meios de
ação, ou seja, o foco do plano era a ação policial.
Foi criado, ainda, o Fundo Nacional de Segurança Pública423, que visava
apoiar financeiramente o reaparelhamento das polícias estaduais e destinava a
verba para projetos que tinham como objetivo a redução da “criminalidade”.

421 BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. A Senasp. Disponível em:


<http://www.justica.gov.br/sua-seguranca/seguranca-publica/senasp-1/a-senasp>. Acesso em: 20
dez. 2017.

422 OBSERVATÓRIO DE SEGURANÇA. Plano Nacional de Segurançca Pública. Brasília, 2000.


Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/PNSP%202000.pdf>. Acesso em:
20 dez. 2017.

423 BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Fundo Nacional de Segurança Pública. Disponível
em: <http://www.justica.gov.br/sua-seguranca/seguranca-publica/senasp-1/fundo-nacional-de-
seguranca-publica>. Acesso em: 20 dez. 2017.
137

O primeiro plano de segurança nacional não colocou em debate o sistema de


justiça penal e suas heranças autoritárias, focando apenas na eficácia institucional.
Já o projeto de segurança pública de 2002/2003424 foi apresentado já na
campanha eleitoral do governo Lula. Esse plano apresentava propostas de prevenção
social e situacional inspirada nos referenciais preventivos modernos. Previa a
criação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP)425, que buscava integrar as
polícias militares, civis, bombeiros e guardas municipais. Embora tenha trazido
inovações, como a integração das guardas municipais e das seguranças privadas na
gestão da segurança pública, em termos nacionais, o plano ainda ficou restrito à
questão da violência urbana.
Esse plano tem uma racionalidade técnica-gerencial e procurou articular
diagnóstico, planejamento e monitoramento pela SENASP. Esse plano também ampliou
o rol de resultados esperados e para isso modificou a lei que regulamentava o
Fundo Nacional de Segurança Pública, aprovando a Lei n. o 10.746, de 10 de outubro
de 2003, que possibilitou a realização de termos de cooperação intergovernamental,
o que demonstra, por si só, a transformação para esse modo de governabilidade
articulada em torno do ideal de políticas multissetoriais.
O terceiro Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI),
aprovado em 2007, institucionalizado pela Lei n.o 11.530, de 24 de outubro de 2007,
tinha como objetivo principal articular prevenção, controle e repressão, através da
segurança pública. Além da integração entre estado, Distrito Federal e municípios
com a União, ele prevê a participação das famílias e da comunidade.
Uma das diretrizes do PRONASCI era justamente o fortalecimento das redes
sociais e comunitárias, que foram implantadas na prática pelo SUSP, como as
unidades de polícia comunitária e de proximidade, chamadas de UPP no Rio de
Janeiro e a UPS no Paraná.

424 INSTITUTO CIDADANIA; FUNDAÇÃO DJALMA GUIMARÃES. Projeto Segurança Pública para o
Brasil. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/redebrasil/executivo/nacional/anexos/pnsp.pdf>.
Acesso em: 20 dez. 2017.

425 BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP). Sistema
Único de Segurança Pública: 2003, 2004, 2005, 2006. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/
dados/relatorios/r_senasp/r_senasp_susp_2007.pdf>. Acesso em: 20 dez. 2017.
138

Esses programas de segurança pública traçados pela União, que buscavam a


integração entre as forças policiais do estado e municipais, são o primeiro indício de
que as UPPs e UPSs se inserem no projeto de governamentalidade neoliberal. Na
tentativa de trazer um novo discurso de ordem, a proposta comunitarista é colocada
como solução para a questão da segurança urbana.
Além disso, essas instituições têm um orçamento limitado e são gerenciadas
pelo Estado, perdendo parte de sua liberdade para exercer as suas funções, sendo
constantemente fiscalizados, como destacado por Garland.426 A instalação da própria
SENASP, que passa a estabelecer políticas nacionais de segurança, e o SUSP, que
passa a gerenciar os recursos financeiros que serão repassados aos estados e que
serão empregados nesses projetos, são o exemplo dessa política.

3.1 O policiamento comunitário como eufemismo

Segundo a concepção exposta no Curso Nacional de Promotor de Polícia


Comunitária da SENASP, o policiamento comunitário é:

[...] uma filosofia operacional orientada à divisão de responsabilidades entre a


polícia e cidadãos no planejamento e na implementação das políticas públicas
de segurança. O conceito revela a consciência de que a construção de uma
relação sólida e construtiva com a sociedade pressupõe um empenho da
polícia em adequar as suas estratégias e prioridades às expectativas e
necessidades locais.
Se não houver uma disposição da polícia de pelo menos tolerar a influência do
público sobre suas operações, o Policiamento Comunitário será percebido
como "relações públicas" e a distância entre a polícia e o público será cada
vez maior.427

426 GARLAND, D. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução
de André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

427 BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP). Curso Nacional
de Promotor de Polícia Comunitária da SENASP. Brasília: Ministério da Justiça, 2007. p.24.
139

Ou seja, o curso visa trazer uma outra visão para a polícia, por meio da filosofia
do policiamento comunitário, que tem como prioridade a relação estreita com a
comunidade, que deve ser ouvida e atendida em seus anseios e necessidades.
O conceito de polícia comunitária, segundo este curso, coloca em destaque,
ainda, a visão maniqueísta de bem e mal; a concepção de uma polícia para uma
sociedade democrática; a segurança como um bem maior em contraposição ao
medo do crime; questões levantadas de forma leviana e sem o mínimo de
criticidade, ainda que de início destaquem as possíveis causas dessa violência como
sendo uma sociedade desigual.428
Um tópico que procura desfazer equívocos sobre a concepção de polícia
comunitária chama a atenção e merece destaque:

Policiamento Comunitário não é condescendente com o Crime – os policiais


comunitários respondem às chamadas e fazem prisões como quaisquer
outros policiais: são enérgicos e agem dentro da lei com os marginais e os
agressores da sociedade. Contudo atuam próximos a sociedade orientando
o cidadão de bem, os jovens e buscam estabelecer ações preventivas que
busquem melhorar a qualidade de vida no local onde trabalham. Parece
utópico, mas inúmeros policiais já vem [vêm] adotando o comportamento
preventivo com resultados excepcionais. Outro ponto importante é que
como está próximo da comunidade, o policial comunitário também é uma
fonte de informações para a polícia de investigação (Polícia Civil) e para as
forças táticas, quando forem necessárias ações repressivas ou de
estabelecimento da ordem pública;429

Essa visão demonstra a clara classificação das pessoas entre "cidadãos de


bem" e "bandidos", trabalhadores e "marginais", apontando que o policiamento
comunitário serve apenas aos cidadãos de bem, combatendo com a mesma energia
que a polícia tradicional reprime “o criminoso”, inclusive fornecendo informações
privilegiadas para os setores da inteligência e forças especiais.
Essa imagem, na verdade, informa que esse policiamento ainda está pautado
nos paradigmas da escola clássica e positivista, que dividem as pessoas em boas e

428 BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP). Curso Nacional
de Promotor de Polícia Comunitária da SENASP. Brasília: Ministério da Justiça, 2007.

429 BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP). Curso Nacional
de Promotor de Polícia Comunitária da SENASP. Brasília: Ministério da Justiça, 2007. p.43.
140

más. Acertadamente, Cerqueira430 afirma que essa concepção maniqueísta favorece a


violência policial e a sua tolerância pela sociedade ao retratar o outro como perigoso,
justificando ações bélicas de força e de aniquilamento, trazendo a imagem de uma
guerra contra o crime. Afirma, ainda, que essa é uma das razões pelas quais a
segurança pública acaba sendo militarizada e não requer muito esforço.
Esse discurso ativa a criminologia do outro, o que permite olhar para os
criminalizados comerciantes de substâncias ilícitas como inimigos, a quem são negados
direitos, e ativa o mecanismo da biopolítica e do racismo.
Questionando esse posicionamento, Cerqueira431 define diferentes padrões
de comportamento para o policiamento tradicional e o policiamento comunitário,
conforme o quadro esquemático a seguir:

Quadro 1 – Padrões de policiamento


Policiamento tradicional Policiamento comunitário
Além da Lei e do profissionalismo,
Fonte de autoridade A Lei e o profissionalismo o aspecto político do apoio
comunitário
Prioriza a prevenção do crime
Objetivo principal A imposição da lei através da metodologia de
resolução de problemas
Principal função Controle do crime Prevenção e controle do crime
Planejamento organizacional Centralizado Descentralizado
Atende as demandas advindas
Atende as chamadas via central dos problemas que afetam a
Tecnologia e táticas
de operações comunidade e utiliza o
policiamento ostensivo a pé
É imparcial, neutro e distante, Procura ouvir as pessoas e
Relacionamento não se preocupa com as emoções atender as suas demandas sem
da vítima ou do agressor. desprezar a lei e o profissionalismo
Medidos pela prisão dos Medido pela qualidade de vida e
Resultados
criminosos e controle do crime satisfação dos cidadãos
Fonte: Elaborado com base no texto: CERQUEIRA, C. M. N. Polícia comunitária: uma nova visão
de política de segurança pública. In: O futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia.
Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.

430 CERQUEIRA, C. M. N. Polícia comunitária: uma nova visão de política de segurança pública. In:
O futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.

431 CERQUEIRA, C. M. N. Polícia comunitária: uma nova visão de política de segurança pública. In:
O futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.
141

Cerqueira432 destaca, portanto, que há uma grande diferença entre o modelo


tradicional e o policiamento comunitário. Na verdade, policiamento comunitário, para
ele, é mais do que o simples policiamento; é, na verdade, uma política de segurança
pública em que se priorizam as demandas da comunidade, que deve ser ouvida para
apresentar seus problemas e as soluções devem ser pensadas na perspectiva de
prevenção do delito, sendo que a tomada de decisões deve ser descentralizada, a
fim de atender as realidades daquela comunidade.
Enquanto fenômeno social, a criminalização não é o problema da polícia, mas
de todos. Essa visão exige mudanças práticas em relação ao comportamento da
polícia, deve ser executado atendendo aos valores inscritos em um estado
democrático de direito e sob a perspectiva dos valores institucionais, abandonando a
ideia de que se está em guerra e de que o inimigo é perigoso.
Alinhando-se a essa visão, Skolnick e Bayley433 afirmam que, para se falar em
um verdadeiro policiamento comunitário, é necessário estabelecer uma série de
estratégias de operação e táticas, incorporando a filosofia nessas práticas. Para esses
autores, é preciso envolver a comunidade para que ela em conjunto possa auxiliar
na manutenção da ordem e da segurança como coprodutora, e o policiamento
comunitário traz uma nova responsabilidade para polícia, que é a de criar esses
mecanismos de associação entre a comunidade e a polícia para a manutenção da
lei e da ordem.
O policiamento comunitário se distancia das velhas práticas operacionais da
polícia e, para demonstrar isso, Skolnick e Bayley pesquisaram diversas experiências
que se intitulavam policiamento comunitário e reuniram quatro características que
são compartilhadas por esses modelos:

432 CERQUEIRA, C. M. N. Polícia comunitária: uma nova visão de política de segurança pública. In:
O futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.

433 SKOLNICK, J. H.; BAYLEY, D. H. Policiamento comunitário: questões e práticas através do mundo.
Tradução de Ana Luiza Amendola Pinheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.
142

1. Organizar a prevenção do crime tendo como base a comunidade;


2. Reorientar as atividades de patrulhamento para enfatizar os serviços não-
emergenciais; 3. Aumentar a responsabilização das comunidades locais; e
4. Descentralizar o comando.434

A primeira característica é muito utilizada no programa de vigilância de bairro,


que procura desenvolver o sentimento de comunidade, ou seja, o sentimento de
pertencimento ao bairro, produzindo entre os moradores da região uma identidade.435
Ainda nessa perspectiva da vigilância de bairro, os policiais são designados
muitas vezes para fazê-la em rondas, acreditando-se que a presença dos policiais
nas ruas previne a prática de delitos, mas pesquisas demonstram a pouca eficácia
desse sistema para a prevenção do delito. Também essas rondas não incentivam a
aproximação do policial com a comunidade, pois nelas o policial deveria conversar
com a comunidade e incentivar que eles busquem ações preventivas com ajuda
da polícia.436
O que se tem feito para incentivar o maior contato da polícia com a comunidade
é estabelecer delegacias ou postos policiais de forma descentralizada, colocando
pontos de policiamento no bairro, e que fazem todo o trabalho policial, com exceção
da investigação criminal.437
Em relação à reorientação do patrulhamento, as rondas a pé e montadas são
estratégias de policiamento que estão voltando. Em alguns lugares, segundo Skolnick
e Bayley438, como Singapura e Japão, as rondas a pé são realizadas nos bairros e nos
prédios residenciais, mas em outras cidades a ronda a pé normalmente é destinada a

434 SKOLNICK, J. H.; BAYLEY, D. H. Policiamento comunitário: questões e práticas através do mundo.
Tradução de Ana Luiza Amendola Pinheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2002. p.19.

435 SKOLNICK, J. H.; BAYLEY, D. H. Policiamento comunitário: questões e práticas através do mundo.
Tradução de Ana Luiza Amendola Pinheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

436 SKOLNICK, J. H.; BAYLEY, D. H. Policiamento comunitário: questões e práticas através do mundo.
Tradução de Ana Luiza Amendola Pinheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

437 SKOLNICK, J. H.; BAYLEY, D. H. Policiamento comunitário: questões e práticas através do mundo.
Tradução de Ana Luiza Amendola Pinheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

438 SKOLNICK, J. H.; BAYLEY, D. H. Policiamento comunitário: questões e práticas através do mundo.
Tradução de Ana Luiza Amendola Pinheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.
143

lugares com grande trânsito de pedestres, como praças, shopping centers, corredores
de entretenimento e estações de transporte público.
A ronda a pé é bastante ressaltada no artigo de Wilson e Kelling, sobre as
janelas quebradas, sendo que essa forma de policiamento pode ser executada de
maneira autoritária e sem a responsabilização da comunidade local, e isso não se
conforma à visão do policiamento comunitário, ou pode ser realizada dentro dessa
visão se for orientada para atender aos anseios da comunidade.439
O terceiro requisito que seria da responsabilização da polícia é pensado como
uma forma de abrir caminhos para ouvir com simpatia a comunidade, o que é um
grande passo, já que essa abertura pode dar ensejo a críticas, supostamente injustas,
pois muitos policiais se veem como "autoridade" no assunto, mas, se o policiamento
quer gozar do apoio da população, deve estar aberto a ouvir críticas também. O modelo
de parceria é um importante componente para o policiamento comunitário, pois
enfatiza a necessidade de a polícia manter contato e saber a opinião do cidadão, para
que ele se envolva na prevenção do crime.440
E, por fim, o quarto e último requisito, da descentralização do comando, significa
que o comandante e seus subordinados devem ter liberdade de agir para encontrar
soluções específicas para os problemas de cada comunidade, de forma a atender às
particularidades de cada lugar. Assim, o policiamento comunitário, ou o policiamento
para solução de problemas, exige que os policiais desenvolvam a habilidade de
identificar os problemas sociais e encontrar soluções conjuntas para essas questões
que afetam a vida da comunidade.441
No entanto, esse projeto enfrenta muitas barreiras, como a descrença entre
os próprios policiais e a falta de apoio do público, pois o que se tem feito hoje é dar o
nome de policiamento comunitário a muitas experiências que, na verdade, são
apenas velhas práticas policiais.

439 SKOLNICK, J. H.; BAYLEY, D. H. Policiamento comunitário: questões e práticas através do mundo.
Tradução de Ana Luiza Amendola Pinheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

440 SKOLNICK, J. H.; BAYLEY, D. H. Policiamento comunitário: questões e práticas através do mundo.
Tradução de Ana Luiza Amendola Pinheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

441 SKOLNICK, J. H.; BAYLEY, D. H. Policiamento comunitário: questões e práticas através do mundo.
Tradução de Ana Luiza Amendola Pinheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.
144

Na conclusão de seu trabalho, Skolnick e Bayley afirmam que o policiamento


comunitário é mais retórico do que realidade. Seria apenas uma expressão da moda
e, se nada mudar nesses lugares onde se diz que ele está sendo praticado, "o futuro
mais provável para o policiamento comunitário é que ele seja lembrado como uma
outra tentativa de se colocar vinho velho em garrafas novas".442
No mesmo sentido se posiciona Cerqueira443, de que se dá o nome de policiamento
comunitário a muitas experiências que, na verdade, não se alinham ao modelo
prevencionista, o qual acredita na melhor integração entre as agências de controle social
formal e informal, e não tanto na efetividade do aparato oficial de controle penal.
Esse novo paradigma leva em conta as críticas feitas pela sociologia criminal
americana ao modelo de defesa social e serve para ser aplicado em sociedades
pluralistas e democráticas, mas não avança muito em relação à visão da criminologia
crítica, que exige mudanças mais amplas e profundas. É um movimento compatível
com uma sociedade democrática e pluralista, alinhada com a visão capitalista da
sociedade, e que quer humanizar as estratégias de prevenção criminal.444
Na verdade, o policiamento comunitário pouco ou nenhum efeito tem
alcançado no Brasil, pois ele é utilizado apenas como bandeira de propaganda
política para justificar as velhas práticas de controle social violento e genocida sobre
os pobres favelados, não passando de mero eufemismo.

442 SKOLNICK, J. H.; BAYLEY, D. H. Policiamento comunitário: questões e práticas através do


mundo. Tradução de Ana Luiza Amendola Pinheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2002. p.120.

443 CERQUEIRA, C. M. N. Polícia comunitária: uma nova visão de política de segurança pública. In:
O futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.

444 CERQUEIRA, C. M. N. Polícia comunitária: uma nova visão de política de segurança pública. In:
O futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.
145

3.2 A implantação das UPPs no Rio de Janeiro: o prenúncio de uma tragédia


urbana

O discurso sobre polícia comunitária é retomado no cenário brasileiro quando,


a partir de 2008, o Rio de Janeiro implantou as Unidades de Polícia Pacificadora,
popularmente conhecidas como UPPs.
A UPP é um projeto de segurança pública implantado pela Secretaria de Estado
de Segurança do Rio de Janeiro, em parceria com os governos municipal, estadual e
federal, atendendo aos eixos programáticos do PRONASCI.
Segundo a página oficial da UPP, esse projeto teria o objetivo de retomar o
território de forma "permanente de comunidades dominadas pelo tráfico, assim como
a garantia da proximidade do Estado com a população".445
Com a política das UPPs, as forças armadas com tanques de guerra, fuzis e
metralhadoras ocuparam algumas favelas, hasteando bandeiras como símbolo de
ocupação do território inimigo, o que não deixa dúvidas quanto à manutenção do
paradigma bélico.446
Ainda, segundo o site da UPP, ela teria a função de desenvolver social e
economicamente as localidades que receberam esse serviço com a entrada também dos
serviços públicos, projetos sociais, esportivos e culturais e com investimentos privados,
o que não aconteceu.
Ou seja, as UPPs buscam, segundo seu discurso legitimador, após uma
intervenção maciça da polícia especializada do BOPE em conjunto com o Exército,
espantar ou matar os "bandidos" traficantes de drogas, estabelecer unidades de
polícia nas favelas e implantar policiais com o objetivo de se aproximarem dos
moradores, buscando uma relação de proximidade com a comunidade, em conjunto
com políticas públicas e oferecimento de serviços básicos.

445 GOVERNO DO RIO DE JANEIRO. UPP - Unidade de Política Pacificadora. Disponível em:
<http://www.upprj.com/>. Acesso em: 04 out. 2017.
446 KARAM, M. L. Violência, militarização e 'guerra às drogas'. In: KUCINSKI, B.; DUNKER, C. I. L. Bala
perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo, 2015.
146

A primeira UPP foi instalada no morro Dona Marta em 2008, localizado no


bairro Botafogo, zona sul da cidade. Esse ponto foi escolhido por ser estratégico na
zona sul, por ter apenas duas entradas e ser pouco populoso. Segundo informações
recebidas pela Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, os traficantes da
região saíram de casa e desceram o morro como pessoas "normais". Após a ocupação,
o secretário de segurança pública fez uma reunião com os principais representantes
comunitários do lugar e chamou ainda alguns outros profissionais para levarem os
serviços públicos para a região. Era uma reunião aberta da qual a imprensa também
participou, mas havia muita descrença dos moradores acostumados com os policiais
e sua forma de tratamento corrupta e violenta.447
Paloma Menezes448, relatando sobre a instalação da UPP no Morro Santa Marta,
afirma que foi uma oportunidade que surgiu ainda durante a gestação do projeto.
O governador Sérgio Cabral fez questão de visitar uma creche inaugurada no alto do
morro, mas, por ser um ponto estratégico, os "traficantes" da região não deixavam
as crianças se matricularem. Como teria que ser feita a segurança do Governador,
Beltrame, então Secretário de Segurança Pública, sugeriu que a polícia que estava
lotada nessa operação não saísse mais do morro.
Com uma semana de diferença houve uma incursão na favela Cidade de
Deus, noticiada como sendo de combate ao tráfico de drogas, na qual também não
havia a perspectiva de manutenção da polícia no local. Posteriormente foi anunciada
a criação de um Batalhão de Polícia específico para atuar na região e a polícia se
fixou no local.449
No entanto, só no fim de janeiro de 2009 é que foi oficialmente criada a
nomenclatura UPP, por meio do Decreto n.o 41.650, de 21 de janeiro. Esse decreto
cria uma força especial, dentro da polícia militar, voltada para a pacificação e
manutenção da ordem nas comunidades carentes. Depois o Decreto n. o 41.653, de

447 BELTRAME, J. M. Todo dia é segunda-feira. Rio de Janeiro: Sextante, 2014.

448 MENEZES, P. V. Entre o "fogo cruzado" e o "campo minado": uma etnografia do processo de
"pacificação" de favelas cariocas. 2015. 432 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – de Estudos
Sociais e Políticos, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

449 MENEZES, P. V. Entre o "fogo cruzado" e o "campo minado": uma etnografia do processo de
"pacificação" de favelas cariocas. 2015. 432 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – de Estudos
Sociais e Políticos, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
147

22 de janeiro de 2009, estabeleceu uma gratificação de R$ 500,00 (quinhentos reais)


para os policiais lotados na UPP, tendo em vista a necessidade de treinamento
específico para tanto, bem como por estar executando ações especiais de pacificação.
Só em 6 de janeiro de 2011, com o Decreto n.o 42.787, é que houve a divulgação
sobre a implantação, estrutura, atuação e funcionamento das UPPs. O decreto
afirma que a polícia lotada nas UPPs deverá pautar-se pela filosofia do policiamento
de proximidade, atuando em "comunidades pobres, com baixa institucionalidade e
alto grau de informalidade, em que a instalação oportunista de grupos criminosos
ostensivamente armados afronta o Estado Democrático de Direito", prometendo o
desenvolvimento da paz social e da tranquilidade pública.
Na experiência de policiamento comunitário na América Latina se utiliza a
expressão "policiamento de proximidade", mas que traz em seu seio a mesma
filosofia do policiamento comunitário, segundo o Curso Nacional de Promotor de
Polícia Comunitária da SENASP.450
Especificamente, os decretos que instituíram as UPPs utilizam a expressão "polícia
de proximidade", inspirados no modelo Colombiano, que foi aplicado especificamente na
cidade de Medellín, visitada por Beltrame, na companhia de Aécio Neves e José
Roberto Arruda, em 2007, e na qual puderam verificar como se dá a organização policial,
bem como o investimento público em obras de infraestrutura, como por exemplo a
constrição de um teleférico.451
Durante a visita puderam também assistir a uma palestra com Hugo Acero,
sociólogo que concebeu o projeto de pacificação colombiano, o qual deixou claro,
entre outras ideias, que segurança pública se faz em conjunto com cidadania; que o
espaço territorial deve ser retomado pelo Estado para se estabelecer a relação de
confiança com a comunidade; frisou a necessidade da população colaborar com a
repressão; e, por fim, salientou a necessidade das áreas serem também ocupadas
por projetos sociais.452

450 BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP). Curso
Nacional de Promotor de Polícia Comunitária da SENASP. Brasília: Ministério da Justiça, 2007.
451 TARDÁGUILA, C. Polícia, câmera, ação. Folha de S.Paulo, Piauí, ago. 2010. Disponível em:
<http://piaui.folha.uol.com.br/materia/policia-camera-acao/>. Acesso em: 21 dez. 2017.
452 TARDÁGUILA, Cristina. Polícia, câmera, ação. Folha de S.Paulo, Piauí, ago. 2010. Disponível
em: <http://piaui.folha.uol.com.br/materia/policia-camera-acao/>. Acesso em: 21 dez. 2017.
148

Além desses, o Decreto n.o 42.787 estabeleceu uma normatização para as


UPPs, embora já tivesse acontecendo da forma publicizada, tanto na ocupação do
Chapéu Mangueira quanto na Babilônia, em 2009.453 A ocupação envolve quatro
etapas distintas: a primeira seria de intervenção tática, com a incursão na favela com
blindado e apoio do BOPE; na segunda fase de estabilização, em que se continuam
as intervenções táticas e a área da UPP é cercada, são realizadas rondas para o
controle do território, além da prisão de criminosos atuando na área; a terceira etapa
é de implantação da UPP efetivamente, em que entra o policial com outra farda,
normalmente recém-formado, e com formação na filosofia da polícia de proximidade;
e a quarta etapa seria de avaliação e monitoramento.454
A Coordenadoria da Polícia Pacificadora foi criada pelo Decreto n.o 42.787,
de 06 de janeiro de 2011, que seria o órgão designado para coordenar as ações
operacionais das UPPs e para atuar nessa quarta etapa.455 Depois, o Decreto n.o
45.186, de 17 de março de 2015, também trouxe uma nova regulamentação às UPPs,
acrescentando a etapa de análise estratégica, que envolve a coleta de dados para a
decisão da implantação de novas unidades.
Recentemente foi aprovado o projeto de Lei que repassa a gestão das UPPs,
que era realizada pela Coordenadoria de Polícia Pacificadora, para os batalhões de
polícia, alocados nas áreas de UPPs.456 Essa lei, segundo reportagem do jornal
Extra, decreta o fim das UPPs, pois, além da redução drástica de orçamento, o efetivo de
policiais lotados nas UPPs servirá ao policiamento da região do batalhão, que está

453 MENEZES, P. V. Entre o "fogo cruzado" e o "campo minado": uma etnografia do processo de
"pacificação" de favelas cariocas. 2015. 432 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – de Estudos
Sociais e Políticos, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

454 MENEZES, P. V. Entre o "fogo cruzado" e o "campo minado": uma etnografia do processo de
"pacificação" de favelas cariocas. 2015. 432 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – de Estudos
Sociais e Políticos, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

455 MENEZES, P. V. Entre o "fogo cruzado" e o "campo minado": uma etnografia do processo de
"pacificação" de favelas cariocas. 2015. 432 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – de Estudos
Sociais e Políticos, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

456 ALERJ aprova lei que subordina comando de UPPS a batalhões. Veja, 09 nov. 2017. Disponível em:
<https://vejario.abril.com.br/cidades/alerj-aprova-lei-que-subordina-comando-de-upps-a-batalhoes/>.
Acesso em: 06 dez. 2017.
149

com seu efetivo reduzido, saindo das áreas de risco. Segundo um policial ouvido pela
entrevista, a UPP "Já acabou. Só estamos aguardando a ordem para sairmos daqui".457
Essa lei também transforma o cargo de Coordenadoria de Polícia Comunitária
em um órgão de supervisão, no qual o comandante terá apenas o papel de orientar
e definir as áreas de risco, mas a implantação ou desativação de Unidade de Polícia
de Pacificação será agora decidida pelo Comandante Geral da PM, sendo afetado
diretamente o princípio da descentralização das decisões policiais, concepção
defendida pelo policiamento comunitário.
O Rio de Janeiro, no período de 2008 a 2017, implantou 38 UPPs. Conforme
mapa abaixo, é possível visualizar a localização das UPPs instaladas até 2013 frise-se
apenas em favelas, consideradas área de risco, e a maioria na zona sul da cidade:

Figura 1 – Mapa com a localização das UPPs

Fonte: FORÇAS de segurança ocupam conjunto de favelas do Lins no Rio. Alagoas


24 horas, 06 out. 2013.

457 OUCHANA, G. '(A UPP) Já acabou. Só estamos aguardando a ordem para sairmos daqui', diz policial.
Extra, 14 dez. 2017. Disponível em: <https://extra.globo.com/noticias/rio/a-upp-ja-acabou-so-estamos-
aguardando-ordem-para-sairmos-daqui-diz-policial-22190205.html>. Acesso em: 22 dez. 2017.
150

Além destas, foram ainda instaladas as UPPs no Lins (02/12/13), Camarista


Méier (02/12/13), Mangueirinha (07/02/14) e Vila Kennedy (23/05/14).458
Segundo o secretário de segurança pública da gestão que implantou a UPP, o
papel dessa política seria o de abalar o domínio do território do traficante para lhe
tornar mais vulnerável, facilitando a sua prisão. Para ele, era preciso acabar com o que
sustentava os negócios do tráfico, ou seja, "[...] o domínio do território imposto por
armas de guerra".459 O secretário afirma, com todas as palavras, que o propósito da UPP
não era acabar com o tráfico, mas minar o domínio do traficante sobre um determinado
território, deixando-o desnorteado e confuso para facilitar a sua prisão. Frisa-se, ainda,
que a polícia não dá conta de todos os problemas e que o Estado deve intervir com
outros serviços para ter sucesso na política de ocupação/pacificação.
No entanto, esses serviços básicos não chegaram a ser implementados e,
nesse sentido, a UPP torna-se um projeto que une os objetivos de controle dos
pobres e de manutenção da ordem com a pacificação do território, sendo, portanto,
um projeto de gestão policial da vida.460
A ideia da UPP não é uma ideia nova. Segundo Beltrame461, outras experiências
anteriores já tinham tentado ocupar determinados espaços como GPAEs, implantados
na gestão do secretário Josias Quintal, e as DPOs. O que não teria dado certo
desses dois modelos era que a lógica seria prender o traficante e reprimir a venda
de drogas, e esse envolvimento dos policiais com as favelas acabou gerando várias
ilicitudes, pois havia um pacto de convivência entre policiais e traficantes. O que
mudou em relação à UPP era a lógica agora de retomada do território e de desalojar
o traficante do seu lugar simbólico de chefe do morro.
Nessa entrevista, Beltrame não ressalta, em nenhum momento, o foco no contato
com o morador e a sua aproximação com a polícia; não menciona nenhum dos princípios
ou experiências que apontam para o policiamento comunitário; bem como utiliza
como justificativa a entrega de serviços públicos para a favela que não ocorreram;

458 GOVERNO DO RIO DE JANEIRO. UPP - Unidade de Política Pacificadora. Disponível em:
<http://www.upprj.com/>. Acesso em: 04 out. 2017.
459 BELTRAME, J. M. Todo dia é segunda-feira. Rio de Janeiro: Sextante, 2014. p.81.
460 VALENTE, J. L. UPPs: governo militarizado e a ideia de pacificação. Rio de Janeiro: Revan, 2016.
461 BELTRAME, J. M. Todo dia é segunda-feira. Rio de Janeiro: Sextante, 2014.
151

de forma que as UPPs nunca foram, na prática, polícias comunitárias ou polícias de


pacificação, mas, como afirma o professor Nilo Batista, são "polícias de fricção",
executando o velho policiamento tradicional, sob o paradigma da guerra e do inimigo,
utilizados, por sua vez, como dispositivos de poder para uma governamentalidade.

3.2.1 A implantação da UPP no Complexo do Alemão

O Complexo do Alemão é formado por 13 favelas e recebe essa denominação


porque, em sua origem, era uma fazenda de propriedade de Leonard Kaczmarkiewicz,
de nacionalidade polonesa. A ocupação desse espaço se deu por famílias de
operários e famílias nordestinas, sendo que esse complexo ocupa bairros centrais
da cidade, tendo uma população estimada de 400 mil pessoas. Ainda, o Complexo do
Alemão foi considerado pelo IBGE um dos bairros com menor índice de desenvolvimento
Social do Rio de Janeiro:

Segundo o índice, nas 13 favelas do Complexo do Alemão, 15% das residências


não contam com rede de esgoto; 36,43% dos chefes de família têm menos
de quatro anos de estudo; um em cada 11 moradores com mais de 15 anos
de idade é analfabeto; na faixa etária entre 15 e 17 anos, 11,37% das
meninas (menores de idade) já são mães; 60,55% dos trabalhadores
ganham, no máximo, dois salários mínimos; na faixa etária dos 15 aos 17
anos, 27,83% dos jovens não frequentam a escola; 462

Segundo a pesquisa de Couto e Rodrigues463 sobre moradias no Complexo


do Alemão, publicada pelo IPEA, na década de 1930 teve início a migração para
essas áreas da região norte da cidade do Rio de Janeiro, sendo predominantemente
ocupada por pessoas vindas da região da mata de Minas Gerais e pessoas vindas
da região norte e noroeste do Estado do Rio. Depois, na década de 1950, a região
recebeu migrantes da região do nordeste brasileiro.

462 GRANJA, P. UPP: o novo dono da favela: cadê o Amarildo? Rio de Janeiro: Revan, 2015. p.24.

463 COUTO, P. B.; RODRIGUES, R. I. A gramática da moradia no Complexo do Alemão: história,


documentos e narrativas. Rio de Janeiro: IPEA, 2013. Disponível em: <http://ipea.gov.br/agencia/
images/stories/PDFs/131003_favelas_rio_gramaticadamoradia.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2017.
152

Como essa área foi objeto de ocupação, os primeiros barracos ali construídos
foram feitos pelos próprios moradores, que aproveitavam o período da noite e da
madrugada para a construção, especialmente na região de Nova Brasília e depois
no Morro do Alemão. Assim, os primeiros conflitos com a polícia eram travados em
face da ocupação daquelas terras. A polícia tinha o trabalho de derrubar os barracos
durante o dia e, segundo o relato do morador ouvido na pesquisa, eles não faziam nada
enquanto a polícia derrubava o barraco, mas esperavam a noite chegar para fazer um
novo barraco e colocavam uma família dentro para dificultar o trabalho da polícia. 464
Na década de 1980 e 1990 é que a cocaína entra no Complexo do Alemão e
que esse comércio se fortalece com a compra de armamentos. O China foi o primeiro
"chefe do tráfico" na região, morto e sucedido por Orlando Jogador, reconhecido
como quem teria expandido o comércio de drogas na cidade do Rio de Janeiro,
fazendo a ligação com as favelas da Zona Sul e colocando o Complexo do Alemão
como uma opção de entreposto para o Comando Vermelho. Orlando Jogador foi
traído por Uê, seu braço direito, mas ficou pouco tempo no comando, assumindo
Marcinho VP.465
Com a entrada da cocaína e o domínio desse comércio pelo Comando Vermelho,
as disputas com a polícia se tornaram cada vez mais violentas. Dois episódios que
antecedem a ocupação do Complexo do Alemão em 2010 chamam a atenção: as
chacinas de Nova Brasília, de 1994 e 1995, e a chacina do Pan, em 2007. Elas mostram
como era a relação entre a favela e a polícia nesse período dos anos 1990 e 2000.
O Brasil foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos por ter
sido negligente e não ter investigado e responsabilizado criminalmente os executores
das chacinas de Nova Brasília, de 1994 e 1995, episódio no qual 26 pessoas foram
mortas pela violência policial. Segundo relatos, três adolescentes foram estupradas
e mortas pela polícia, além das demais mortes, durante uma incursão na favela de
Nova Brasília, pertencente ao Complexo do Alemão, mas tiveram suas mortes

464 COUTO, P. B.; RODRIGUES, R. I. A gramática da moradia no Complexo do Alemão: história,


documentos e narrativas. Rio de Janeiro: IPEA, 2013. Disponível em: <http://ipea.gov.br/agencia/
images/stories/PDFs/131003_favelas_rio_gramaticadamoradia.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2017.
465 GUERRAS, traições e mortes marcam história do Complexo do Alemão. Terra, 28 nov. 2010.
Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/policia/guerras-traicoes-e-mortes-marcam-
historia-do-complexo-do-alemao,76dc58cdd459a310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>.
Acesso em: 22 dez. 2017.
153

registradas como autos de resistência e por serem identificados como representantes


de "organizações criminosas" ligadas ao tráfico de drogas. Segundo relatório da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, essas mortes foram, inclusive,
patrocinadas pelas instituições estatais.466
O outro episódio também teve ampla repercussão e ficou conhecido como a
chacina do Pan. O Rio de Janeiro sediaria os jogos Pan-Americanos em 2007 e, já
na gestão do governo de Sergio Cabral e com Beltrame na Secretaria de Segurança
Pública do Estado, foram tomadas medidas drásticas supostamente na tentativa de
se manter a segurança para a realização dos jogos.
Uma dessas medidas foi a intervenção militarizada no Complexo do Alemão,
que durou de maio até junho daquele ano, resultando na morte de 43 pessoas, além
de 85 feridos467.468 Especificamente no dia 27 de junho de 2007, uma megaoperação,
contando com "mais de mil e trezentos policiais, entre militares, civis e soldados da
Força Nacional de Segurança Pública, [...] três carros blindados ('caveirões'), um
helicóptero e uma dezena de viaturas"469 foi realizada no Complexo do Alemão e
resultou nesse número de mortos.
Esses dois episódios mostram que a relação da polícia com a favela nesse
período que antecedeu a implantação das UPPs foi sempre uma relação violenta e
de promoção de ações de "limpeza" com o aval do Estado.
Em 2010 teve início o projeto de "pacificação" do Complexo do Alemão.
Nesse período, a secretaria de segurança pública preferiu ocupar primeiro o Complexo
da Penha, onde se localiza a Vila Cruzeiro, que tem ligação pela Serra da Misericórdia

466 CIDH apresenta caso sobre o Brasil à Corte IDH. OEA, 12 jun. de 2015. Disponível em:
<http://www.oas.org/pt/cidh/prensa/notas/2015/069.asp>. Acesso em: 22 dez. 2017; CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil. Disponível
em:
<http://www.itamaraty.gov.br/images/Banco_de_imagens/RESUMEN_OFICIAL_PORTUGUES.pdf
. Acesso em: 22 dez. 2017.
467 Esse número é variável, dependendo da fonte utilizada.
468 COMITÊ POPULAR DA COPA E OLIMPÍADAS DO RIO DE JANEIRO. Olimpíada Rio 2016, os
jogos da exclusão. Megaeventos e violações dos direitos humanos no Rio de Janeiro – Dossiê do
Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, nov. 2015. Disponível em:
<http://www.childrenwin.org/wp-content/uploads/2015/12/Dossie-Comit%C3%AA-
Rio2015_low.pdf>. Acesso em: 20 out. 2016.
469 ALVARENGA FILHO, J. R. A "Chacina do Pan" e a produção de vidas descartáveis. Fractal:
Revista de Psicologia, v.28, n.1, p.112, jan./abr. 2016.
154

com o Complexo do Alemão. A Vila Cruzeiro sofreu uma grande intervenção, motivada
supostamente pelos ataques do "crime organizado", tendo em vista que a implantação
das UPPs nas favelas da Zona Sul deslocou os traficantes para a região do Complexo
do Alemão, por ser vinculada também ao Comando Vermelho, o que acabou motivando,
uma semana depois, a ocupação do Complexo do Alemão e a instalação de uma UPP,
que não estava prevista no planejamento originário da Secretaria de Segurança Pública.470
Destaca-se a grande repercussão dessa operação, transmitida pela Rede Globo,
canal de televisão que tem a hegemonia dos meios de comunicação da massa. A rede
Globo divulgava, em cadeia nacional e com inserções ao vivo durante a programação,
como ocorreu a ocupação da região, mostrando principalmente a imagem do helicóptero
da polícia sobrevoando a Serra da Misericórdia por onde várias pessoas corriam,
rotulados como traficantes, e do helicóptero a polícia efetuava diversos disparos de
fuzil, atingindo alguns dos que passavam por ali.471
Por conta da ampla cobertura midiática, outros estados se viram motivados a
também aderir a esse programa, o que aconteceu no caso de Curitiba. Durante este
período eu estava realizando minha pesquisa de mestrado e pude acompanhar
pelas mídias as informações que chegavam em Curitiba. Essa foi a razão da escolha
do local para a pesquisa.
Segundo o site oficial do governo do estado do Rio de Janeiro, a UPP do
Complexo do Alemão representou

[...] um marco para a Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Esta


foi a maior ofensiva contra o tráfico de drogas e contou com uma tropa de
2,7 mil homens, sendo 1,2 mil policiais militares, 400 policiais civis, 300
policiais federais e 800 militares do Exército. Uma união de forças estadual
e federal inédita no país.472

470 BARREIRA, M.; BOTELHO, M. L. O exército nas ruas: da operação Rio à ocupação do complexo
do Alemão: notas para uma reconstituição da exceção urbana. In: BRITO, F.; OLIVEIRA, P. R.
(Orgs.). Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. São Paulo:
Boitempo, 2013.
471 TRAFICANTES em fuga Complexo Alemão. Rede Globo, 06 jul 2014. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=ttomN4__bTQ>. Acesso em: 99 out. 2017.
472 GOVERNO DO RIO DE JANEIRO. UPP - Unidade de Política Pacificadora. UPP Alemão: dados
sobre a implantação. Disponível em: <http://www.upprj.com/index.php/informacao/informacao-
selecionado/ficha-tecnica-upp-alemaeo/Alem%C3%A3o>. Acesso em: 09 out. 2017.
155

Foram registrados ainda o uso de "caveirões" e blindados na operação.


Patrick Granja, repórter do jornal "A Nova Democracia", acompanhou junto
dos moradores o processo de “pacificação” do Complexo do Alemão, colhendo
relatos de insatisfação e violência, não retratados pela mídia hegemônica.
Várias casas foram invadidas e revistadas por policiais e oficiais do exército,
sendo que foram relatados inúmeros casos de casas saqueadas, portas arrombadas,
além de produtos danificados pela violência policial. Foram registrados pelos moradores
diversos casos de agressões e homicídios não divulgados oficialmente. No dia seguinte
ao da ocupação do Alemão, ainda eram vistos três corpos "[...] no local sendo devorados
por urubus e porcos". Outros corpos foram vistos na Serra da Misericórdia,
provavelmente não contabilizados entre as 19 mortes oficialmente divulgadas.473
Com essa operação, o Alemão encontra-se em estado de sítio, estando
permanentemente ocupado por militares e em conflito com a população local, que já
não aguenta mais tal situação. Policiais ficam posicionados em becos portando fuzis
dia e noite.
Hoje o Complexo do Alemão encontra-se ocupado com a presença de quatro
UPPs, localizadas no Morro do Alemão, em Nova Brasília, na Fazendinha e no
Morro do Adeus/Baiana.474 Ainda, em março de 2017, o comandante da UPP de
Nova Brasília solicitou a construção de um "bunker" a prova de balas para abrigar os
policiais. Nele não existem janelas, apenas buracos para a polícia apoiar seus fuzis
e barricadas feitas com tonéis na entrada.475
Os tiroteios no Complexo do Alemão são diários e se intensificaram de forma
progressiva nos anos de 2013, 2014 e 2015. A implantação de um Contêiner da
UPP ao lado do Colégio Theóphilo de Souza Pinto, em Nova Brasília, deixou a

473 GRANJA, P. UPP: o novo dono da favela: cadê o Amarildo? Rio de Janeiro: Revan, 2015. p.14-20.

474 RIO + SOCIAL. Complexo do Alemão. Disponível em: <http://www.riomaissocial.org/territorios/


complexo-do-alemao/>. Acesso em: 09 out. 2017.

475 MORADOR vive em campo de guerra no Complexo do Alemão. O Dia, 26 mar. 2017. Disponível em:
<http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2017-03-26/morador-vive-em-campo-de-guerra-no-complexo-
do-alemao.html>. Acesso em: 99 out. 2017.
156

escola com várias marcas de tiro que são recobertas com adesivos de borboletas e
corações para tentar diminuir o medo diário que afeta, inclusive, as crianças.476
Motivada por essa situação, buscou-se realizar a pesquisa no Complexo
do Alemão, no ano de 2016, focando na perspectiva dos moradores em relação a
essa política.

3.3 Primeira visita ao Complexo do Alemão

Essas falas foram colhidas durante o segundo semestre de 2016, em que


frequentei o Complexo do Alemão, e no último semestre do ano de 2017 é que houve o
monitoramento das redes sociais. Nesse período, contávamos com seis e sete anos
da ocupação.
A primeira vez em que estive no Complexo foi em 02 de setembro de 2016, na
favela de Nova Brasília, integrante do conjunto de favelas do Complexo do Alemão.
Combinei com a primeira informante de nos encontrarmos no ponto do metrô de
Inhaúma. Fiquei esperando cerca de meia hora, no ponto do mototáxi, até que ela
viesse me buscar.
Conheci a primeira informante pessoalmente assim. Ela estava com sua
companheira, ambas são formadas em direito pela UERJ. A primeira informante
nasceu e cresceu em Nova Brasília, embora tenha se mudado dali há cerca de um
ano. Ela perguntou o que eu estava estudando e eu disse que meu projeto de tese
pretendia investigar qual a relação da comunidade com a polícia. Ela, rindo, disse
que não tem relação.
Andamos de carro cerca de uns 15 minutos e logo na entrada do Complexo
havia alguns policiais na rua. A primeira informante acendeu a luz de dentro do carro
e baixou os vidros das janelas para passar por eles. Os policiais estavam armados.

476 COMITÊ POPULAR DA COPA E OLIMPÍADAS DO RIO DE JANEIRO. Olimpíada Rio 2016, os
jogos da exclusão. Megaeventos e violações dos direitos humanos no Rio de Janeiro – Dossiê do
Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, nov. 2015. Disponível em:
<http://www.childrenwin.org/wp-content/uploads/2015/12/Dossie-Comit%C3%AA-Rio2015_low.pdf>.
Acesso em: 20 out. 2016.
157

Ao passar pelos policiais, logo estacionamos próximo a um muro grande e


fomos caminhando até o Bistrô do Complexo. A primeira informante e sua companheira
conheciam o atendente do bistrô. Ele trouxe o cardápio de cervejas com muitas
opções de cerveja gourmet. Achei isso interessante porque não tinha cervejas como
Skol, Antarctica, inclusive tinha uma cerveja chamada Complexo do Alemão e foi
com essa que começamos a conversa. A primeira informante chamou alguns amigos.
Entre algumas cervejas e bolinhos, essa conversa, que começou às 19h, foi
até as 3h da manhã. Depois, fomos dar uma volta para chegar até onde estava
acontecendo o baile funk. Andando pelas ruas do local, percebi que as casas são de
alvenaria, relativamente grandes, não tem lixo na rua e existe saneamento básico.
O que tinha em comum com outras favelas eram os "gatos" de luz, ou seja, muitos
fios ligados aos postes de iluminação pública. Também percebi que o tempo todo
passava muita gente pelo bistrô de carro e moto. Quem anda de moto anda sem
capacete. Havia muitas meninas e meninos bastante jovens.

3.3.1 A favela

A primeira informante começou a contar que morava ali desde pequena, que
sua família ainda mora ali, tio, tias e primos, embora seus pais tenham se mudado
há cerca de um ano por causa da exigência da legalização da Kombi de transporte,
que iniciou no governo Paes, pois seu pai trabalha com isso. No Rio de Janeiro, as
UPPs impuseram o controle sobre o transporte no morro, como Kombis e mototáxis,
que acabaram sendo proibidos, em alguns lugares, sob a justificativa de serem
ilegais477, exigindo para que continuassem a funcionar registros e autorizações
legais o que implica no pagamento mensal de impostos.
A primeira informante disse que seus pais vieram morar ali quando ainda
tinham vacas e cavalos, com poucas construções.Também contou que são muitas
comunidades dentro do Alemão, com mais de 300 mil pessoas, e não é possível
conhecer tudo, porque é muito grande.

477 GRANJA, P. UPP: o novo dono da favela: cadê o Amarildo? Rio de Janeiro: Revan, 2015.
158

Ela e sua companheira moravam ali, mas se mudaram há pouco tempo.


Durante esse período ficaram em três casas, uma delas de sua tia, que havia se
mudado, mas resolveu voltar. Sua tia tentou morar em diversos outros lugares, porém,
acabou voltando. Ela, brincando, disse que conversa com a tia que ela não consegue
sair da favela, que ela pode até sair da favela, mas a favela não sai dela.
Muitos moradores têm dinheiro. Vi carros novos passando por onde estávamos,
como Megane, Honda Fit e outros. A primeira informante chamou a atenção para
uma moto esportiva que passava e que custa mais de 30 mil reais, segundo ela, e
essas pessoas, mesmo com dinheiro, continuam na favela, não querem sair.
A primeira informante e sua amiga, ficaram dizendo que são tipo favela
mesmo, barraqueiras, falam alto, como se essa fosse a forma de se comportar de um
favelado. Interessante observar a constatação de que hoje é "cult" dizer que mora na
favela. Antigamente mentiam sobre o lugar onde moravam e hoje já não têm mais
vergonha, pois percebem um empoderamento da favela, mas que ainda precisa ser
mais valorizada essa cultura. Percebem que hoje muitos têm orgulho do lugar onde
vivem e de onde vieram.
A favela, segundo elas, não dorme, é o tempo todo, a noite toda, todos os
dias as pessoas na rua.
A primeira informante também comentou sobre o jornal Voz da Comunidade, que
é gerenciado pelo Rene Silva, que auxilia na divulgação das coisas que acontecem no
Alemão para fora. Ele deu grande cobertura à ocupação do Alemão, mas criticou sua
atuação porque convida jovens para escrever, mas não os remunera adequadamente.
Como não existe mais baile como antigamente, porque foram proibidos, o jornal
acaba promovendo alguns eventos na comunidade.
Os imóveis não possuem registro, foram ocupados irregularmente, por isso, o
documento que comprova a posse do terreno é o registro na associação de moradores.
A associação de moradores tem um forte vínculo com "o movimento", que é como a
primeira informante se refere ao comércio varejista de substâncias entorpecentes.
No Alemão há uma igreja evangélica a cada esquina, pois muitos moradores
são evangélicos, inclusive o pessoal do movimento. Quando o pastor passa por eles,
pede para deixarem as armas e as drogas de lado e os abençoa.
159

3.3.2 O Movimento478

No Alemão é o Comando Vermelho quem lidera o comércio de substâncias


entorpecentes e, até hoje, os comandantes são Fernandinho Beira Mar e Marcinho V. P.,
segundo a primeira informante. Houve uma tentativa de milícia com o Pereira, mas
não se consolidou. O movimento hoje tem o gerente e os seus braços-direito.
Antes da instalação da UPP o movimento controlava muita coisa, como o
comércio, que não pode vender ou fornecer qualquer tipo de serviço para os policiais.
Policial não pode morar no morro, o movimento aceita somente bombeiros.
O movimento não se integra muito à comunidade, é fechado, só faz parte do
movimento quem é "cria", ou seja, quem nasceu e viveu na favela.
O movimento tem uma justiça própria que, por incrível que pareça, "funciona"
para inibir as pessoas, segundo a primeira informante. O tráfico não aceita estupradores,
estes são condenados ao micro-ondas.479 Os moradores sabem que alguém morreu
no micro-ondas porque as chamas e a fumaça são muito altas e visíveis para todos.
O roubo na favela também não é aceito e o culpado também é executado no micro-
ondas. Outras discussões, como entre marido e mulher também são levadas ao
movimento, que decide de diferentes maneiras. Há uma certa imprecisão na pena, e às
vezes aquele que é considerado culpado leva uma surra. Outro exemplo é quando
duas meninas brigam por causa de um menino, nesse caso eles raspam o cabelo
delas. Um exemplo de justiça do movimento foi com um cara que atropelou e matou
um pedreiro. Como não tinha certeza da culpa dele no acidente, ele levou uma surra
como punição, mas não o mataram. Hoje o tráfico está voltando a utilizar armas e a
circular mais.
Quando morre um membro, eles pagam o funeral e também pagam aposentadoria.
Um primo da primeira informante era do movimento e foi assassinado. Quando
estavam fazendo o seu velório, alguns integrantes foram na casa da sua tia e
disseram que pagariam tudo. O primo dela não tinha muito dinheiro, diz que vivia
pedindo dinheiro para a tia e que não conseguiu comprar nada com isso.

478 O “movimento” refere-se aos comérciantes varejista de substâncias ilícitas nas favelas.
479 Pilha de pneus em que a pessoa é colocada dentro, jogam combustível e ateiam fogo.
160

Quando o movimento estava forte, eles expulsavam os "cracudos" da favela.


O movimento não vende crack, mas vende cocaína, maconha e sintéticos, pois
existe uma preocupação com a aparência de ordem, o que é bastante interessante de
se perceber, pois o objetivo é não chamar a atenção da polícia e das forças de ordem.

3.3.3 A Polícia e a UPP

A instalação da UPP foi em 2010 e, durante um certo tempo, até esse ano,
não se viam na parte de baixo de Nova Brasília traficantes armados, havendo uma
restrição na sua circulação pela favela. Nesse espaço existem quatro UPPs e uma
central de inteligência, que fica na parte de baixo, que coordena as UPPs.
A parte de cima do Complexo é mais pobre e tem mais violência, mais troca
de tiros, mas o local mais violento é na entrada da Grota, na parte de baixo, onde
acontecem diversos conflitos armados pois é onde há resistência do movimento à
circulação da polícia.
Depois da UPP não existe mais baile funk, e outras festas acabam sendo
reprimidas também, porque as pessoas fazem churrasco na rua, festa de aniversário,
e a polícia manda parar quando está passando. Ou seja, a promessa da polícia
comunitária de controle das incivilidades e desordens urbanas proíbe a realização
dos bailes funk, desde a perseguição aos proibidões a partir dos anos 2000, que se
estendeu a festas de aniversários e outras comemorações, restringindo quanquer
atividade de lazer e cultura da favela.
Segundo a primeira informante, com a redução do tráfico, muitos comércios
fecharam, justamente porque diminuiu a circulação de dinheiro na favela. Numa rua
próxima do local onde estávamos, algumas lojas foram demolidas pelo "choque de
ordem", que também reprime mototáxi, barraca de frutas, festa junina... Alguns
moradores voltaram a ocupar essas lojas ou montaram uma espécie de camelô em
frente a sua antiga loja; outros estão colocando até a porta de metal para fechar.
Milton Santos, falando sobre o setor informal da economia, afirma que eles
teriam a função de difundir o modelo capitalista para os pobres através do consumo,
ao mesmo tempo em que absorvem para o circuito superior (setor formal) a poupança e
a mais-valia desses, através da máquina financeira. Os canais para essa transmissão
161

seriam as agências bancárias, cooperativas e o próprio Estado, por meio da taxação e


da distribuição desigual de recursos, ou seja, esse fluxo "[...] continua empobrecendo
uns e enriquecendo outros".480
Comerciantes do Complexo do Alemão, após a ocupação, também passaram
a sofrer ameaças de demolição e desapropriação de suas residências e comércios
que não possuíssem registro ou alvará. Esse processo de fechamento do comercio
local é realizado pelo "choque de ordem", que são agentes fiscais da prefeitura, que
controlam o comércio ambulante e exigem a retirada das barracas, dos camelôs e do
comércio em geral que não possui autorização de funcionamento, sem contar os
relatos de que se apropriam das mercadorias apreendidas, quando não o fazem
à força.481
Esse processo de remoção dos comércios ilegais e da cooptação das economias
populares gerou a migração dos moradores, por conta do aumento dos custos de vida
nas favelas "pacificadas", como ocorreu com os pais da primeira informante,
possibilitando a recolonização do espaço da favela482 pelo capital.
É necessário fazer ainda mais críticas à UPP. Segundo a primeira informante os
policiais são muito mal preparados, eles não conhecem o território, e depois de muitos
anos de ausência do Estado, quando se quis fazer presente, foi de forma violenta. A
UPP não trouxe nada para os moradores, que esperavam muitos serviços para a
população – e isso não aconteceu.
O que foi feito foi antes da UPP, com o dinheiro do PAC. Colocaram um
Banco 24 horas dentro da favela, asfalto onde antes escorria esgoto a céu aberto, um
centro de tecnologia para os jovens e um cinema. Eu fiquei com a impressão de que,
como o dinheiro do PAC entrou na favela antes da UPP e trouxe essa infraestrutura,
muitos moradores acreditaram que a UPP poderia trazer mudanças, como a promessa
da oferta de serviços que não se efetivaram.
Para a polícia, o morador tem que provar que é trabalhador, pois do contrário
será tratado como “bandido”, reproduzindo a lógica maniqueísta da ideologia da defesa

480 SANTOS, M. Pobreza urbana. 3.ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2013. p.71.

481 GRANJA, P. UPP: o novo dono da favela: cadê o Amarildo? Rio de Janeiro: Revan, 2015.

482 VALENTE, J. L. UPPs: governo militarizado e a ideia de pacificação. Rio de Janeiro: Revan, 2016.
162

social de que todo favelado é “bandido” e deve ser neutralizado. Como retrato dessa
situação, conta a primeira informante que, uma vez, seu irmão, indo para casa,
encontrou com os policiais em perseguição e estes disseram que era para ele subir
gritando "morador... morador...", para não ser alvejado pela polícia. Ela disse ainda: "a
polícia mata por cagada", pois "encontra a pessoa e atira sem saber muitas vezes se
ela é bandido ou não", como se a polícia tivesse autorização para matar "bandido".
Desse jeito a polícia matou o primo dela. Não foi em confronto. Segundo ela, ele não
reagiu, embora estivesse armado.
Esse relato ainda demonstra o uso da violência por parte das forças policiais
vinculadas à UPP que, como já dito, nada têm de pacíficas ou comunitárias.
As pessoas da favela não se sentem donas de seu próprio espaço, pois antes
era o movimento quem controlava sua liberdade de ir e vir, agora é a polícia. Em
nenhum momento os moradores foram chamados para conversar, para dar a sua
opinião, e por isso não se sentem proprietários e não podem agir de forma livre.

3.3.4 Fim da visita

Andando pelas ruas, eles foram me mostrando onde tinha uma vala por onde
escorria esgoto e hoje tem asfalto, até chegarmos à quadra de esportes. Devia ter
cerca de umas 300 a 400 pessoas no local, a maioria jovens. Bem perto da quadra
passamos por várias pessoas portando arma de fogo, inclusive uma que me chamou
a atenção era um fuzil prateado, mas as pessoas agiam com normalidade, com
exceção de quem estava comigo. Percebi que eles estavam com muito medo e receio
por ter encontrado com essas pessoas armadas. Segundo a primeira informante e
seus amigos, há muito tempo não viam o pessoal ali embaixo armados. Alguns deles
não queriam estar ali, outros estavam curtindo e queriam ficar mais.
Uma das amigas da primeira informante depois me contou que chegou para
um dos que ostentavam arma e falou para ele esconder um pouco a arma por minha
causa. Percebi que muitos ali estavam armados. Segundo a primeira informante, o
baile das antigas tinha muito mais gente e mais caixa de som. Eu não conseguia
ouvir a música que estava tocando. Muitos estavam fumando maconha ou cheirando
lança perfume. Ficamos ali cerca de uns 20 minutos e paramos um pouco para
163

observar em um ponto que estava menos movimentado. Chamou a atenção um cara


branco, que se diferenciava muito dos demais, com uma moto superesportiva,
tentando sair dali e atrapalhando as pessoas que estavam curtindo o baile.
Saindo dali ficamos conversando sobre o que estava acontecendo. A amiga
da primeira informante me falou que parou perto do lugar onde compraram uma
cerveja porque ali tinha uma viela por onde podiam correr, caso entrasse o caveirão.
A primeira informante falou que de vez em quando o caveirão entra ali “do nada”
para dar uma volta. Ela também falou que num tiroteio a melhor opção é ficar longe
dos policiais e longe das pessoas armadas, porque eles são o alvo, e que devo ficar
atenta à cintura da pessoa, porque, mesmo parecendo sonso, essa pessoa podia estar
armada, como o cara ao nosso lado.
Isso me deixou bastante reflexiva, já que os moradores formulam estratégias
para se abrigar e proteger diante da possibilidade de um conflito. Cada um mantém
a atenção em determinadas questões que seriam necessárias no caso de a polícia
invadir e haver troca de tiros. Quem não vive essa realidade sequer pensa nisso.
Dali fomos para a casa dos amigos da primeira informante. Conheci uma das
casas, um quartinho pequeno, de uma peça. A outra casa é de classe média, com
bons móveis, decoração, cozinha bem equipada. Fiquei ali até a primeira informante
e a sua companheira irem embora. Fui com elas pegar o metrô às 6 horas da
manhã. Todos, muito simpáticos, me convidaram para dormir ali, mas acabei
recusando porque estava sem roupa.
Segundo eles, o "esquema" é andar sempre com uma muda de roupa, para
poder dormir em qualquer lugar. Essa questão também me pareceu reflexo da
violência em que vivem os moradores, pois sempre cogitam a possibilidade de não
poderem voltar para casa.
Todos foram muito simpáticos, em especial a primeira informante, que se
prontificou a ajudar. Percebi que ela é bem crítica da UPP. Repetiu várias vezes que o
Estado nunca esteve presente, que a polícia é mal preparada porque não conhece o
território e que a favela nunca dorme.
164

3.4 Instituto Raízes em Movimento

A segunda vez em que estive no Complexo do Alemão foi no dia 22 de


setembro de 2016, a convite do professor Cunca Bocayuva, professor da UFRJ, para
visitar o Instituto Raízes em Movimento. O Instituto, localizado na Avenida Central do
Morro do Alemão, tem a missão de

[...] promover o desenvolvimento humano, social e cultural do Complexo do


Alemão e demais comunidades por meio da participação de atores locais
como protagonistas desses processos, tendo como foco o fortalecimento e
ampliação do capital social dessas comunidades. 483

O Instituto surgiu em outubro de 2001, a partir do protagonismo de jovens


universitários moradores da área ou envolvidos em trabalhos sociais.

Inicialmente o grupo contabilizou as potencialidades e recursos existentes –


materiais, humanos e articulações – para traçar as primeiras estratégias de
atuação. As primeiras atuações do grupo foram: trabalhar a questão ambiental,
promover atividades esportivas e ações para a educação e cultura, além da
484
capacitação constante de seus integrantes para o fortalecimento institucional.

Hoje os principais colaboradores do Raízes, como vou passar a me referir ao


instituto, são Alan Brum, Renato Tutsis, Ricardo, David Amén, Thiago Matiolli e o Sr.
Sidney, mas existem várias pessoas que circulam pelo instituto e auxiliam na elaboração
dos eventos e dos projetos.
Um dos projetos de que pude participar, com o qual tive contato nessa
primeira visita, foi o encontro de pesquisadores sobre o Complexo do Alemão, que
se reúne uma vez por mês para trocar experiências e ideias sobre as questões que
pretendem trabalhar envolvendo o Alemão.

483 INSTITUTO RAÍZES EM MOVIMENTO. Complexo do Alemão: missão. Facebook. Disponível em:
<https://www.facebook.com/pg/raizesemmovimento/about/?ref=page_internal>. Acesso em: 14
out. 2017.

484 INSTITUTO RAÍZES EM MOVIMENTO. Complexo do Alemão: história. Facebook. Disponível em:
<https://www.facebook.com/pg/raizesemmovimento/about/?ref=page_internal>. Acesso em: 14
out. 2017.
165

Nessa reunião foi discutido o projeto "Memórias do Alemão", um trabalho de


compilação e classificação de todos os textos acadêmicos e institucionais já escritos
sobre o Complexo do Alemão. Por isso, esse encontro tinha como objetivo reunir
pessoas que têm interesse em auxiliar na catalogação e classificação desses trabalhos.
Depois disso, pretendem pesquisar questões sobre o Complexo do Alemão nos órgãos
públicos. A proposta seria verificar como se dá esse olhar de fora para dentro.485
Na conversa com Thiago a respeito da minha pesquisa, ele afirmou que o beco é
o ponto de enfrentamento, o que me marcou bastante. Sugeriu alguns materiais para
consulta como o dossiê dos Megaeventos e outras pesquisas já realizadas nesse
contexto. Ele também abriu a oportunidade para que eu pudesse frequentar o Raízes
nos dias em que estivesse no Rio de Janeiro e fazer a minha pesquisa a partir dos seus
contatos. Para isso, conversou com o Alan Brum, um dos fundadores do Raízes, que
concordou e me apresentou o senhor Sidney, morador do prédio do Raízes e membro
do Instituto há 5 anos, além de estar no Alemão há bastante tempo, pedindo a ele
que me auxiliasse na pesquisa e me apresentasse a alguns moradores locais.
Nas semanas seguintes voltei ao Raízes todas as quintas e sextas-feiras, para
participar das atividades do Instituto e para auxiliar no projeto Memórias do Alemão.
Nesses dias em que estava no Raízes, eu conversava muito com o segundo
informante. Ele me contou que foi o Davi do "verdejar" que o convidou para participar do
Instituto pela primeira vez. No começo achou que esse projeto era coisa de "marginal",
e tinha divergências com algumas lideranças, mas, participando das reuniões, recebeu
o convite para integrar o instituto. Acredita que tenha sido por seu jeito de tratar as
pessoas. Acabou aceitando e ficou porque essas lideranças com quem tinha divergências
saíram. Deu a entender, mas não deixou claro, que essas pessoas tinham vícios
com os quais ele não concordava, ou seja, parece que faziam uso de drogas.
O segundo informante contou dos filhos e dos netos, da esposa de quem se
separou, contou que foi seu aniversário no dia anterior, dia 29 de setembro de 2016,
por isso ganhou um bolo surpresa dos filhos. Ele me ofereceu um pedaço do bolo de
chocolate, que estava uma delícia. Contou que se converteu e passou a frequentar a

485 O livro com esse trabalho foi lançado recentemente, no dia 09 de dezembro de 2017, durante um
evento organizado por eles, que é o Circulando, e que está discutindo "rolebilidade" urbana. O título do
livro é "Complexo do Alemão: uma bibliografia comentada".
166

igreja evangélica e mudou, inclusive, a forma de se vestir. Seu pastor é o quinto


informante, a quem tive a grata satisfação de entrevistar.
A praça em frente ao Raízes foi construída com verba da Petrobrás e da
secretaria de cultura, mas o projeto é deles, por isso cuidam desse espaço. Esse
apoio foi cortado quando negaram apoio ao governo Sergio Cabral.
Havia ainda outros projetos, tal como uma parceria firmada com uma ONG,
que pagava R$ 150,00 (cento e cinquenta reais) por mês para o professor dar quatro
horas de aula de informática por semana. Apesar do projeto ser voltado para as
crianças, o Raízes mudou e começou a ensinar as pessoas mais velhas. Em uma
visita de verificação, a responsável viu que havia muitas senhoras aprendendo. Na
hora achou legal, mas, quando reportou ao chefe sobre a divergência no projeto,
que custeava a luz e a manutenção dos computadores, ele não concordou e deixou
de repassar essa verba, extinguindo-se o projeto.
Assim, o instituto propõe diversas ações que buscam fomentar a vida na favela,
com o apoio financeiro de agências governamentais e também do setor privado,
trazendo alternativas, discussões e cursos para os jovens moradores do Complexo.

3.4.1 Vamos desenrolar

O Raízes promove ainda algumas discussões sobre temas variados na


comunidade, em lugares abertos e para todos que tiverem interesse, convidando
alguns pesquisadores, mas também moradores do Alemão para participarem como
dinamizadores do evento.
O primeiro Vamos Desenrolar que acompanhei foi sobre o tema Mulheres.
Nesse dia fui ao Raízes para ver se alguém de lá iria até o EDUCAP onde haveria o
evento, mas não encontrei ninguém, apenas o Sr. Sidney, que não iria participar. Eu
fui até lá de mototáxi, sistema de transporte que utilizei algumas vezes. Então o Sr.
Sidney explicou para o mototaxista onde era e ele aceitou me deixar no local.
Foi uma experiência única andar pela favela de mototáxi, pois pude conhecer
melhor as casas e ver como a vida se estrutura nos becos e vielas, algumas tão
estreitas que só passava a moto. O esgoto e o lixo infelizmente estão na rua
constantemente. Quando chegamos à região da Grota, da qual eu tinha notícias de
167

ser um lugar muito perigoso, o mototaxista me disse que eu podia tirar o capacete.
Sem entender o porquê e pensando que seria melhor para a minha segurança, fiz o
que ele recomendou, retirei o capacete e ficamos andando mais uns minutos até
chegarmos ao lugar do evento. Ele contou que morava por ali. Eu perguntei se tinha
polícia por lá e ele disse que não, que estava tranquilo.
Para a realização de eventos como esse é preciso pegar da polícia o "nada a
opor". Para isso é necessário encaminhar um ofício para a UPP, informando a data e
o local do evento e a polícia assinar o "nada opor", liberando a sua realização.
Várias mulheres foram convidadas a falar, como dinamizadoras, sobre a sua
experiência como mulheres moradoras do CPX486 e pesquisadoras. Dentre vários
assuntos que foram abordados, com ênfase no feminismo e no lugar do feminino na
sociedade e na favela, uma questão levantada chama muito atenção e tem conexão
com a temática aqui exposta, que foi uma fala do Sergio Cabral, logo no início do
seu mandato como governador do Rio de Janeiro, em apoio à legalização do aborto,
já que o corpo feminino favelado seria uma "fábrica de produzir marginal", pois
acredita que essa seria uma medida para reduzir a violência. Apenas para ilustrar,
segue o trecho da entrevista citada:

Sou favorável ao direito da mulher de interromper uma gravidez indesejada.


Sou cristão, católico, mas que visão é essa? Esses atrasos são muito graves.
Não vejo a classe política discutir isso. Fico muito aflito. Tem tudo a ver com
violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas,
Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha.
É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal. O Estado
não dá conta. Não tem oferta da rede pública para que essas meninas possam
interromper a gravidez. Isso é uma maluquice só.487

Nesse evento, uma das dinamizadoras fez menção a essa fala para contextualizar
a disputa sobre os corpos afrodescendentes e favelados, afirmando que as mulheres
da favela são por isso ameaçadas, ou seja, têm o seu corpo e a sua sexualidade

486 CPX é utilizado como abreviação de Complexo do Alemão.

487 FREIRE, A. Cabral defende aborto contra violência no Rio de Janeiro. Globo, 24 out. 2007. Disponível
em: <http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00-CABRAL+DEFENDE+
ABORTO+CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.html. Acesso em: 14 out. 2017.
168

controlados, além de terem mencionado também que a maioria das crianças na


favela é criada unicamente por mulheres.
Essa fala é muito marcante, pois é possível perceber que a favela está
consciente de como o poder público lhe enxerga e dirige políticas de extermínio e
controle dos corpos dos afrodescendentes.
Outro evento como esse aconteceu no dia 05 de novembro, sobre o tema arte
urbana. Foi muito interessante porque, ao mesmo tempo em que se discutia sobre o
funk, a pichação e outras manifestações como movimentos culturais da favela,
vários pichadores faziam desenhos nos muros do bar da torre, onde foi o evento.
Uma questão que foi mencionada por um dos dinamizadores é que a polícia hoje
proíbe essas manifestações. Ela quer controlar todos esses espaços e oprime quem
tenta se manifestar dessa forma. Um dos dinamizadores falou sobre a intervenção
da polícia na Batalha de Rima de Olaria, que sofreu várias intervenções policiais.
E o último Vamos Desenrolar do qual participei foi sobre cartografia social, no
dia 26 de novembro de 2016. Foi muito interessante aprender sobre esse tema, em
especial a fala do Fransérgio, de Manguinhos, que utiliza a cartografia como forma
de resistência, chamada de cartografia de conflito. Experiências desse tipo são feitas
de várias formas, por exemplo, construindo uma cartografia coletiva, deixando mapas
nos pontos dos ônibus e estimulando os moradores a sinalizarem coisas no mapa.
Segundo Fransérgio, é necessário dar visibilidade ao morador porque alguém está
sendo oprimido. A favela é oprimida por grupos hegemônicos que a invisibilizam, sendo
a cartografia uma forma de emancipação, de reconhecimento e de luta. "Cartografias
insurgentes" seria a nomenclatura mais adequada para denominar quem tem lutado,
é uma cartografia que nunca está acabada, é construída pelas relações sociais.
Algumas cartografias foram produzidas pelos moradores das favelas chamados
para participar de serviços que seriam oferecidos pelos órgãos estatais durante as
obras do PAC e da UPP social. Em alguns territórios essas cartografias foram
identificando os becos e lugares de conflito, por exemplo, e posteriormente esses
dados foram utilizados para planejar a ocupação do território pelas UPPs, ou seja, os
serviços prometidos não chegaram, mas as informações repassadas foram
encaminhadas diretamente para a Secretaria de Segurança Pública.
Partindo dessa concepção, foram produzidos dois aplicativos para monitorar o
impacto da militarização nas favelas. Um é o Nóspornós e outro é o Defezap. O Nóspornós
169

reúne informações de 15 favelas e o aplicativo serve para denunciar a violência


policial, enquanto o Defezap recebe vídeos e fotos de abusos policiais pelo WhatsApp.
Essa é uma iniciativa da própria favela, que passou a utilizar as novas tecnologias
para realizar denúncias e monitorar as ações de repressão e violência. Além desses
aplicativos específicos para denúncia, os moradores também se comunicam via Facebook,
que hoje conta com várias comunidades que buscam reunir os grupos de interesses para
os mais diversos assuntos a serem compartilhados. E utilizam também o WhatsApp.
Existe um grupo no WhatsApp dos moradores do complexo que serve para comunicar,
por exemplo, quando está havendo tiroteio, quando está entrando o caveirão ou a polícia.

3.5 A perspectiva dos moradores sobre a relação entre população, polícia


e tráfico

Foram entrevistados cinco moradores no total, além da primeira informante já


mencionada. Todos eles aceitaram espontaneamente conceder as entrevistas, porém
não serão nomeados para preservar suas identidades.
Apresento também relatos de conversas com outras pessoas com as quais
pude manter contato. Como essas conversas informais não foram autorizadas, deixo
igualmente de mencionar os nomes daqueles que me repassaram essas informações.
Procurei estruturar as falas em nove tópicos, identificando-os a partir das
próprias entrevistas. No entanto, nem todos os entrevistados falaram sobre o mesmo
tema, já que as entrevistas eram abertas.

3.5.1 O Morro do Alemão e o teleférico

No segundo dia em que estava no instituto, fui dar uma caminhada com o
segundo informante para conhecer o Morro do Alemão, uma das favelas do
Complexo. Fomos até o alto do morro, onde fica o teleférico e, ao lado do teleférico,
a sede da UPP do Alemão.
170

Figura 2 – UPP do Alemão

Fonte: Arquivo pessoal.

De frente para esse lugar fica a sede de uma outra UPP, ao lado do teleférico,
o que se pode ver na foto a seguir:

Figura 3 – Vista do Morro do Alemão

Fonte: Arquivo pessoal.

O segundo informante foi me explicando que aquela rua pela qual estávamos
caminhando foi aberta com as obras do PAC, antes disso não passava carro por ali.
Nesse período o governo veio até a comunidade dizendo que queria ouvi-la, mas, no
final das contas, só ouviu, não fez nada do que foi solicitado e acabou construindo o
teleférico, informação que foi confirmada pela terceira informante.
A comunidade tinha outras necessidades, como a construção de casas para
alguns moradores muito pobres e que ainda moravam em casas de barro e serragem,
171

por isso não queriam a construção do teleférico. No entanto, depois da construção,


quem mora em cima do morro acabou gostando, e quem mora embaixo não vê utilidade
alguma. Foram gastos cerca de 600 milhões, mais ou menos, para a construção do
teleférico e cerca de 100 famílias foram removidas, tendo sido indenizadas.

Figura 4 – Estação do teleférico do Alemão

Fonte: Arquivo pessoal.

Algumas dessas pessoas continuaram morando no morro, compraram outro


barraco, outras foram removidas para apartamentos e outras foram para mais longe.
No entanto, alguns prédios que foram desapropriados não foram demolidos, e agora
as pessoas estão invadindo, batendo laje e voltando a morar ali. Conforme o segundo
informante, o Estado deveria ter demolido essas casas que foram indenizadas, mas não
fizeram isso e elas não serão indenizadas novamente para quem voltou a ocupar.
A terceira informante foi indenizada pelo Estado porque sua casa sofreu o
processo de desapropriação para a construção do teleférico. Com esse dinheiro, ela
comprou um apartamento no pé do morro para morar, perto do colégio Tim Lopes.
Ela mantém no local desapropriado um restaurante, já que não foi destruído. Para
outras pessoas que não foram indenizadas, o Estado paga o aluguel social.
Eu soube que, no Rio de Janeiro, cerca de 1.750 famílias vivem do Bolsa
Aluguel, ou seja, foram removidas de suas casas e não receberam outra moradia.
Muitas pessoas ficaram nessa situação porque eles tiraram as casas. Tudo ali na
região foi indenizado para a construção da estação de teleférico.
172

O Estado dava preferência por entregar o apartamento do que pegar o


dinheiro, mas a terceira informante conseguiu pegar o dinheiro porque tinha o
restaurante embaixo e a pizzaria em cima. Se fosse residência, tinha que ficar com o
apartamento. As famílias que receberam o apartamento não voltaram a morar ali.
Isso aconteceu em 2009, quando começaram as desapropriações. Primeiro foi
construído o teleférico e só depois a polícia entrou.
Depois da construção do teleférico houve mais movimento na favela. O teleférico
ajudou bastante, no final foi bom, pois fazia fila de gente para almoçar no seu restaurante,
afirma a terceira informante. "Foi muito bom, não só para mim, mas para todos os
moradores". Mas o teleférico está parado há mais de um ano, inclusive os funcionários
do CRAS e da bolsa família, que ficam no mesmo local, estão sem água. Segundo a
terceira informante ouviu dizer, vão mandar embora 150 pessoas que trabalhavam ali
e, preocupada, pergunta: "vão se virar que jeito?"
O quarto informante afirma que a inauguração do teleférico trouxe muitos
turistas, e isso lhe beneficiava porque fazia berimbau de enfeite para vender e também
faziam aula de capoeira, mas os tiros afastaram os turistas.
Durante o período em que frequentei o Raízes, o teleférico não estava
funcionando por falta de verba da prefeitura, que não repassava para a agência de
transportes que gerenciava os teleféricos. Até hoje o teleférico não voltou a funcionar.
Uma postagem do Coletivo Papo Reto, canal de mídia independente formado
por jovens moradores do Complexo do Alemão e da Penha, denuncia o descaso
com o dinheiro público utilizado na construção do teleférico:

TELEFÉRICO:
Imagens do Descaso!
#ESTAÇÃOdoADEUS.
Está semana estivemos fazendo imagens ~de celular~ em algumas das
estações de teleférico do Complexo do Alemão, que está há quase um ano
parado!
Em poucos dias, a estrutura fará 6 anos de existência e as imagens
mostram um pouco do descaso com o dinheiro público que foi gasto com
essa obra milionária.
Lonas gigantes despencando, portas caindo, peças caríssimas abandonadas a
sol e chuva e dai para pior!
Você pagou, E seu dinheiro virou isso: 488

488 COLETIVO PAPO RETO. Postagem no Facebook, 22 jun. 2017. Disponível em:
<https://www.facebook.com/ColetivoPapoReto/>. Acesso em: 17 dez. 2017..
173

Agora, com a paralisação do teleférico, as vendas da terceira informante caíram


em 70%, mas lembra que no começo vinha muito turista, especialmente quando teve
a visita do Papa. Durante o período da Copa e das Olimpíadas, já não teve mais
turista, porque ficava aparecendo na televisão que o Alemão tinha tiroteio e as
pessoas têm medo, mesmo o teleférico estando de graça, tudo de graça. O morador
tem direito a duas passagens grátis por dia, ida e volta, depois aumentaram a taxa
para os turistas – foi para R$ 5,00 (cinco reais).
Assim, a construção do teleférico provocou muitas remoções, deslocando diversas
famílias da região, embora os lugares que não foram propriamente utilizados na
edificação não tenham sido destruídos, e que hoje estejam sendo ocupados novamente.
Percebe-se, também, o gradual abandono do Estado em relação ao próprio serviço
de transporte ofertado pelo teleférico, que não é mais oferecido. Dessa forma, cabe
aos moradores continuarem utilizando o serviço de Kombi ou de Mototáxi para
chegarem até as suas casas, que é de difícil acesso, pois subir a ladeira do morro
não é nada fácil, os quais também sofreram pressão para a legalização e o pagamento
de impostos.

3.5.2 O início do movimento

Também conversei com um professor de capoeira, denominado aqui de quarto


informante. Ele dá aulas para crianças em um espaço do teleférico. Na época em que
veio para o Alemão, ele conta que não tinha casa no morro, os trabalhadores das
fábricas da região costumavam morar em Inhaúma, mas a polícia não deixava fazer
casa, o que só foi liberado depois de um tempo. No começo, instalaram-se muitas
fábricas no entorno, mas depois que a favela aumentou elas foram saindo, Coca-
Cola, fabrica de gás, metalúrgica e outras.
Seus pais vieram de Minas Gerais, seu pai era professor, trabalhava numa
fábrica de doces na região e foi da associação de moradores, por isso a escola tem
o nome do seu falecido pai. Sua família não tinha muitos recursos, seu pai fazia
comida na lenha até, moravam no alto do moro. Segundo ele, hoje tem mais
nordestino que mineiro no morro.
174

Perguntei qual era a sua primeira lembrança da polícia e ele falou que tinha a
vadiagem e, para não ser pego por isso, tinha que ter assinatura na carteira. Se
fosse pego mais de uma vez, ficava preso por três meses porque era vadio. Por isso,
quem era maior tinha que trabalhar, enquanto que o menor tinha a carteirinha verde
de trabalho, depois ficava por conta do exército.
A capoeira também era crime, mas era a malandragem que usava para brigar
com os outros. Tinha até um toque no berimbau que avisava da polícia, então faziam
a roda de capoeira que era utilizada como luta, como defesa, não era como é hoje.
Antigamente, não tinha tráfico e não tinha ladrão, porque os moradores se
reuniam e matavam, se matava na faca, era a chamada "polícia mineira". À noite alguns
moradores ficavam rondando a favela para fazer a segurança. "Não tinha roubo aqui,
os caras vinham fumar maconha aqui e não podiam, não é como hoje". Antigamente
também não tinha facção, o que tinha era muito ladrão, "os caras roubavam o carro
lá em baixo, roubavam lá fora e traziam pra cá". O tráfico só vendia maconha, mas
não era um comércio forte, não tinha pó, "aí depois começou uma guerra". O primeiro
chefe do tráfico foi o Carlinhos da Pedrina, ele era jogador de futebol e a sua mãe
era parteira. Quando ele saiu é que começou a briga, aí ficou o Cabeça.
Sobre esse tema ainda conversei com o quinto informante, que mora no
morro desde que nasceu, ou seja, há 65 anos. Seu pai veio de Minas Gerais e sua
mãe de Recife. Hoje ele exerce a função de pastor.
Quando começamos a conversar sobre a polícia, ele disse que "polícia é
autoridade", mas hoje já não é bem assim, especialmente pelo que acontece no morro.
"Era aquele tipo de autoridade que fazia, sim, ser respeitada, porque respeitava.
Então você respeitava porque ela também respeitava". Acredita que não havia tanta
criminalização por essa forma de tratamento entre as pessoas e a polícia. Não havia
tanta bandidagem, embora sempre terem existido os fora da lei, como o Maturi – o
nome dele era Alencar e ele era “bandido”. Na verdade, essa nomenclatura, “bandido”,
não era utilizada antigamente, mas vagabundo sempre existiu: aquele cara que não
gostava de fazer nada, tinha a vida no bar, tinha a feira da semana "atrás do outro" e
vivia assim.
Mesmo na passagem da sua infância para a adolescência, o quinto informante
lembra que, para conseguir um revólver calibre 32 ou 22, era um absurdo. Todo
mundo entrava em pânico, mas realmente não tinha.
175

Também não existia droga, entre aspas, porque havia a droga e haviam os
viciados, mas era mais um hábito. A maconha, por exemplo, era mais um hábito
daquelas pessoas que usavam, mas era uma coisa restrita, tinha seus lugares para
usar, a pessoa não usava liberalmente como hoje em dia se faz. As pessoas se
escondiam para usar as drogas.
Depois de um certo tempo, depois dos anos 70 é que começou essa questão
das drogas em grande escala, de disputa de poder pelo rendimento que a droga
oferece, "e de lá pra cá as coisas só pioraram, só pioraram", pois cada vez tem mais
drogas, mais viciados, mais medo, mais armas para cada um defender os seus
territórios e, consequentemente, cada vez mais criminalização e mais corruptos,
desabafa o quinto informante.
No passado, tinha a Invernada de Olaria, que era como se fosse uma delegacia
de polícia, tinha uma proteção um pouco maior, mas não chegava a ser um batalhão.
Essa delegacia de polícia era respeitada e dava conta de prover a segurança dos
moradores, porque só a presença dos policiais circulando pela área já impunha respeito.
Eles costumavam circular, andar. Não era sempre, mas também faziam incursões,
o que já não era tão comum. A polícia vinha de vez em quando, vinha uma vez por
mês, mais ou menos, às vezes uma vez por semana. "Quase não dava pra prender
ninguém", segundo o quinto informante, porque quem usava drogas, por exemplo, fazia
isso no reservado, dentro de casa. "Era a sua casa, não tem problema, ninguém vai
invadir a tua casa, isso diz respeito a você, ali você pode fazer o que quiser". Se
essa ronda passasse, normalmente com dois ou três policiais, no máximo quatro, e
se nessa passagem sentissem cheiro de alguma coisa, eles averiguariam, e se
encontrassem podiam até levar para a delegacia, "mas ele não levava como se
fosse um bandido, um criminoso, ele levava como se fosse um viciado, um fora da
lei", ou seja, não havia a criminalização.
Foi a partir dos anos 70 que começou, segundo o quinto informante, porque a
população aumentou, aumentou o número de viciados, aumentou o consumo, aumentou
a renda e aumentou a cobiça, "aí começou um querer roubar o ponto do outro,
começou um matar o outro pra tomar a posse daquele ponto".
O Comando Vermelho se instalou ali quase nos anos 80, antigamente não
havia facções. Foi com o Orlando Jogador, "quando ele assumiu aqui no beco que
começou". Quando o Orlando Jogador chefiava o morro, ele não deixava ter troca de
176

tiros, mas, depois que ele foi preso em Bangu e morto, os "bandidos" passaram a
atacar a polícia.
Na visão do quinto informante, com a pressão desses comandos, dessas
organizações, para definir seu espaço, é que aumentou a criminalização e, talvez
por isso, também tenha tido a necessidade de adotar um contingente policial para
dar conta da demanda, pois eram muitos espaços dominados pela contravenção e
poucos policiais para dar conta de tudo.
Importante notar que a noção de que a polícia precisou aumentar o seu
contingente estaria diretamente ligado ao aumento do comércio de substâncias
entorpecentes e da entrada dessa economia como atividade lucrativa da favela.

3.5.3 A UPP: a experiência dos moradores

Quando Beltrame assumiu o cargo de Secretário de Segurança Pública e fez


as primeiras ocupações das favelas da zona sul, os "traficantes" vieram para o
Complexo do Alemão, que é o QG do Comando Vermelho, na região da Grota. O
exército ocupou o Complexo do Alemão por cerca de dois anos, até que houvesse a
formação de policiais para ocupar as UPPs como polícia de "proximidade".
Perguntei ao segundo informante se com a UPP as coisas melhoraram e ele
disse que não, que pioraram, porque os “bandidos”, ao invés de ficarem quietos
quando a polícia passa, resolvem provocar, e não pensam nos moradores. Segundo
ele, os moradores hoje servem de escudo nas disputas entre polícia e “bandidos”.
Já a terceira informante diz que, quando chegou a UPP, melhorou, porque
antes você tinha pessoas vendendo pó e fumando maconha perto de casa e agora
não tem mais, pois não havia respeito com ninguém e isso acabou depois da UPP;
agora podem até fazer, mas escondido. Mas ela também relata que, depois da UPP,
morreram mais pessoas, já que antes não tinha polícia, então não tinha tanto tiro.
Para o quinto informante, quando a UPP entrou, em 2010, houve uma certa
mudança, mas é muito relativa, porque o tráfico não parou, "e a realidade é essa mesmo".
177

Eu posso até dizer que melhorou entre aspas, melhorou, por quê? Eu já não
vejo tanto, hoje, igual antes teve muito, mas eu não vejo tanto hoje, tanta
morte, né, tanta morte como eu via, né, eu já vi espalhado pela comunidade
afora aí, já vi dez corpos espalhado pela comunidade, ali onde é o teleférico
ali, esqueci o nome dela, praça da morte, aí parece que o tráfico que fazia o
local de morte por ali, sem ter que ir ali. (Quinto informante)

Essas mortes ocorriam por disputa do poder, um querendo dominar o território


do outro e isso era constante. Por isso começou essa guerra, que não se tem a
esperança de parar, e os jovens crescem sem esperança de nada, afirma o quinto
informante. "A comunidade pouco oferece, né, as autoridades nada oferecem, né,
então o tráfico oferece, aí o jovem vai e vai pro tráfico, aí vai só aumentando o
contingente consequentemente vai só aumentando o número de mortos, né?"
No começo, então, houve uma melhoria segundo o quinto informante. "De uma
certa forma, a UPP foi para melhor" porque não tem mais aquele viciado fumando na
sua casa, agora fumam em lugares restritos, opinião também compartilhada pela
terceira informante.
Ou seja, percebe-se um certo constrangimento dos informantes em dizer que a
UPP não foi boa ou que não funcionou, mas ao longo dos depoimentos é perceptível
a opressão e a violência que os moradores sofrem por conta dessa guerra entre o
movimento e a polícia.
Sobre a pacificação, o quinto informante afirma que "essa palavra pacificadora
tá muito a dever", que a pacificação não ocorreu, pois acredita que pacificar é
promover a paz de verdade, não a paz "aparente" e, mesmo que tente ter paz em
sua vida, ainda que inconscientemente, tem aquela tensão.
A primeira coisa que eles tinham que fazer é olhar para a criança e para o
pré-adolescente e pensar em promover alguma atividade de forma recreativa no
espaço da favela, pensar em alguma coisa direcionada para a criação do caráter de
cidadão, afirma o quinto informante. Mas a polícia não fez nada disso, entrou
simplesmente para reprimir o crime de qualquer forma, mais preocupado com o
relatório quantitativo do que qualitativo. "Isso aí não é pacificar, pacificar agredindo,
pacificar matando, pacificar humilhando, isso não é pacificar, pacificar criando
revolta aos moradores". Com essa fala, percebe-se a grande crítica ao projeto que
não concretiza seus discursos oficiais de trazer a paz para a favela, pelo contrário, o
projeto trouze mais violência, mais mortes e mais revolta dos moradores.
178

No dia 10 de dezembro de 2016, enquanto estava acontecendo a festa de fim de


ano do Raízes, chamada Circulando, pude conversar com o sexto informante, última
pessoa que entrevistei no Complexo do Alemão. O sexto informante é professor e dá
aulas no Ensino Médio, além de ser formado em Direito, estar cursando mestrado em
Direitos Humanos e ser morador de Nova Brasília.
Para ele, a UPP é um misto de sentimentos como ceticismo, esperança e
decepção, porque a UPP acabou, os moradores da favela não querem a UPP. A política
de integração entre a favela e a cidade utilizou a UPP como um verniz, porque, de
fato, não houve essa integração. A favela é um projeto de anticidade, um projeto de
exclusão social e o tráfico não é um problema da favela, mas um problema geral. Ele
não está só na favela, ele está na cidade.
E esse movimento de rejeição da política de UPP ele viu nascer nos seus alunos
da favela da Rocinha. "A escola é um laboratório do que acontece na comunidade, e
a violência da comunidade vai para a escola porque o pai, o tio são do movimento".
No início da implantação das UPPs, esse discurso parou, mas está voltando com
toda força. Agora tem até funk falando da UPP e as pichações do CV e RL se
intensificaram nos últimos tempos, o que serve também para marcar o território.
Está claro que o projeto das UPPs trata da gestão da vida de uma determinada
população em um determinado território, a favela. Em uma entrevista realizada com
Alan Brum, um dos fundadores do Raízes, pela Fundação Heinrich Böll, organização
que financia alguns dos projetos do instituto, ele é questionado a respeito do projeto
UPP e deixa clara a sua descrença desde o início, confirmando a noção de
governamentalidade:

hbs: Mesmo no período do auge das UPPs, tinha muito problema aqui,
não é?!
ABP: Sempre houve problema. Não havia problema no restante da cidade.
O restante da cidade se sentia seguro com uma imagem de que as
favelas, os pobres, estavam controlados. Nunca foi uma política
pública para promover segurança para os favelados, e sim para
promover a sensação de segurança para determinadas partes da
cidade. Isso pra nós sempre foi uma leitura muito clara. Se as pessoas e os
próprios estudiosos atentarem para as políticas de segurança que tivemos
no Rio de Janeiro desde 1982, com [o então governador Leonel] Brizola, a
UPP não tem nada de novidade. Nada. Já teve vários momentos: a polícia
da paz, a polícia de faroeste do Marcelo Allencar, a política do GPAE do
[Anthony] Garotinho. O GPAE era muito parecido com as UPPs. A questão
é que nunca se mexe com a estrutura, os equipamentos. Então se cria uma
teoria que na prática não se realiza. E isso está acontecendo em todos os
lugares. Pelo menos no início tinha comando. Hoje nem isso tem mais. Hoje
179

só existe controle do Comando Geral da PM para o Comando Geral das


UPPs. Não existe mais do Comando Geral das UPPs para os comandantes
de cada uma das UPPs. Já quebrou. Estamos vendo isso na prática. Você
tem subgrupos mas estamos fazendo reivindicação, problematizando.489

Thainã de Medeiros, um dos integrantes do Coletivo Papo Reto, também fez


uma postagem recente sobre a atual condição das UPPs:

A anúncio de que será criado um batalhão de upp específico para o Complexo


do Alemão e Penha não significa que o Estado esteja assumindo a falência
das upps, significa que o Estado não sabe lidar com a população favelada e
não tem intenção de aprender.
O batalhão de upp assim como o exército no Jacaré é silenciamento da
massa favelada. Uma resposta as nossas reivindicações.
Este é momento, mais do nunca do debate sobre a cidade ter a favela e
suas pautas como centrais.490

É perceptível que não há nenhuma relação entre a polícia e a comunidade, o que


deveria ser prioritário nessa política. Talvez, em parte, porque o movimento reprime
qualquer relação com a polícia, mas também pela cultura formada de que o policial
está ali para reprimir e dar esculacho em morador, o que não se alterou com a
entrada da UPP. Para o morador, a UPP tem a função de silenciá-los, contê-los para
que os turistas e as classes média e alta tenham a sensação de segurança no asfalto.

3.5.4 Guerra e medo: a estratégia bélico-militar imposta aos favelados

Muitos dos entrevistados utilizaram as palavras "guerra" e "conflito" para descrever


a relação da polícia com o movimento e a realidade da favela. Um texto escrito por
Daiene Mendes, moradora de Nova Brasília, descreve o que seria a guerra para
os favelados:

489 UCHOAS, L. Raízes: a resistência no Alemão em forma de cultura. Heinrich Böll Brasil, 23 jun.
2017. Disponível em: <http://br.boell.org/pt-br/2017/06/23/raizes-resistencia-no-alemao-em-forma-
de-cultura>. Acesso em: 16 out. 2017. (Grifou-se).

490 THAINÃ DE MEDEIROS. Postagem no Facebook. Disponível em: <https://www.facebook.com/


thainasfdemedeiros>. Acesso em: 22 ago. 2017.
180

A guerra, para nós, é o barulho ensurdecedor do silêncio, do medo, do


pavor, das ruas vazias. É o som metálico que sai do conflito entre policiais e
traficantes nas tentativas frustradas do Estado de garantir um ideal de paz,
baseado em estratégias de guerra. Não sei qual é a solução, mas sei que é
preciso continuar. Até lá, compartilho uma única certeza: vocês não sabem
nada sobre a paz.491

Na conversa com a terceira informante, uma coisa que me chamou bastante a


atenção foi o que seu esposo me falou: "a paz acabou com a polícia e pessoas
armadas, morador fica no meio do conflito". Essa frase resumiu minha impressão
sobre o que os moradores pensam da presença constante da polícia na favela e traz
a expressão da guerra para o cotidiano.
Segundo a terceira informante, antes, quando a polícia aparecia, tinha os
fogueteiros nas entradas da favela que soltavam fogos, avisando que a polícia
chegava, aí já se sabia que tinha polícia no morro. As pessoas já ficavam em casa,
pegavam as crianças na escola, e hoje não é assim, não tem como saber.

Hoje a gente não sabe quando a polícia está entrando naquele beco, porque
não tem mais fogueteiro, o tráfico pagava para eles soltarem fogos para
avisar que tinha polícia no morro, hoje eles entram na Grota e os bandidos
já estão dando tiro, e ali tem muita gente, é uma avenida principal onde tem
bastante gente circulando, as vezes não dá nem tempo. (Terceira informante)

Perguntei para a terceira informante se ela lembrava de antes da UPP, como


era quando a polícia entrava na favela, e ela disse que tinha tiroteio umas duas a
três vezes por semana; dependia muito, vinha o BOPE, por exemplo, e o "bandido"
fazia buraco na rua e jogava ferro e a polícia não entrava, mas aí eles voltavam com
o caveirão. Antigamente tinha muita facção, uma querendo tomar o território da
outra. Já teve muito disso quando era criança, aí vinha um chefe de outro morro
querendo tomar esse aqui, aí tinha guerra entre eles, hoje tem o CV. Resumindo,
sempre o morador é o que mais sofre.
Hoje o tráfico se concentra mais na Grota segundo a terceira informante, lá a
polícia não passa. "Assim que invadiram", referindo-se à UPP, eles até entravam,
mas depois a polícia não entrou mais. Perguntei se isso era algum acordo com a

491 MENDES, D. Vocês não sabem nada sobre paz. Projeto Colabora, 29 out. 2017. Disponível em:
<https://projetocolabora.com.br/cidadania/voces-nao-sabem-nada-sobre-paz/>. Acesso em: 30
out. 2017.
181

polícia e ela me disse que não tem acordo. Se a polícia entrar, os “bandidos” metem
tiro neles, deixam a polícia encurralada se eles passam de determinado ponto, é
muito tiro.

Aí bandido mete tiro neles, eles metem tiro no bandido, tiro, tiro, tiro, aí que
que acontece? Morador, só pega morador, criança, já aconteceu muito de
ter tiroteio e pegar morador. (Terceira informante)

Como disse o segundo informante, não existe bala perdida, pois ela "sempre
encontra alguém". Por esse motivo, a terceira informante relata que gostaria de sair
do morro porque já está cheia desse negócio de tiroteio. Fica pensando nas pessoas
que estão na rua, na sua mãe que mora na Grota, por exemplo (ela tem 78 anos).

O cachorro da minha mãe fica desesperado com o tiroteio, meu neto


agarrando as pernas da minha filha quando escutou fogos porque achou
que era tiro, as crianças têm medo dos tiros, as crianças sentem medo, o
cachorro tem medo. (Terceira informante)

Esse medo é constante nos moradores, é difícil morar ali. Existem pessoas
que falam que moram porque gostam, mas a terceira informante diz que não gosta.
Onde ela mora hoje não é no morro, não é em cima da favela, mas também tem tiro.
Seu carro, parado na frente do prédio, foi atingido por um tiro:

Botaram uma boca de fumo lá perto e a polícia chegou atirando e não pegou
nenhum traficante, minha vizinha se jogou no chão com a criança e meu carro
ficou com o retrovisor furado, e ficou por isso mesmo. (Terceira informante)

Interessante a visão que ela tem, de que sofre com esse conflito entre a polícia e
os comerciantes de drogas. Segunda ela, a polícia não vai acabar com o tráfico porque
não tem como, deve ter peixe grande envolvido, e "os garotos aí são os buchas né,
coitados, eles estão aí para morrer". Recentemente um rapaz de 14 anos, perto da
casa da sua vizinha, em Olaria, morreu. A vizinha mandou a foto do menino, que
parecia uma criança. 14 anos é uma criança, o governo oferece cursos, "eu não sei
porque os jovens se envolvem com o tráfico". Antigamente eram mais velhos e
agora são muito jovens. E hoje é como se fosse uma aventura, "querem ficar com a
arma na mão e não sabem fazer nada com uma arma na mão e morrem".
182

Ainda que não perceba a falta de oportunidade que muitos tem, uma oportunidade
de inserção na economia informal-ilícita que é oferecida pelo movimento, a moradora
percebe que esses meninos que trabalham no comércio varejista de drogas são
“buchas”, colocados como escudo dessas disputas territoriais e de poder, destinados
à pena de morte, ao controle necropolítico estatal.
O quarto informante afirma que, quando a polícia entrou, começaram os tiros
com mais frequência. "A polícia tomou conta disso aqui, a polícia veio para a favela e
o bandido recuou, depois veio chegando um de cada vez e tá tudo aí". Segundo ele,

Hoje piorou, morre gente inocente, é uma barulhada, parece até o Vietnã, é
guerra mesmo, tinha que ficar num canto esperando acabar, a polícia vem,
não quer saber se está passando na frente, se vai atingir o morador, fura o
transformador, ali em baixo ficou no escuro, piorou sim, virou uma merda, os
caras não saem e o Estado também não sai... (Quarto informante)

O segundo informante relatou que um dia em que teve confronto, veio a


ordem de que era para fechar tudo, referindo-se ao comércio, depois veio a ordem
de que não era para vender nada para os policiais, contudo rolou o boato de que o
rapaz, dono de um self-service, "fechava com a polícia". Mas não era verdade, quando
o cara foi avisado sobre isso ele pediu para falar com o chefe, na época era o
"Orelha", que hoje está morto, e ele teve a oportunidade de esclarecer que era "cria"
e que não "fechava com a polícia", então não sofreu nenhuma punição, mas quem
"caguetou" com certeza levou uma surra por contar mentira. Se ele não tivesse ido
conversar com o "chefe", não tinha chance, porque geralmente quando o "chefe"
chama já não dá mais tempo de se defender.
E o morador é questionado nesses termos, se fecha com o tráfico ou se fecha
com a polícia. Na central, rua que dá acesso ao Morro do Alemão, tem muitos olheiros.
Conforme o segundo informante, eles não recebem nada por isso, mas fazem esse
trabalho para dizer que "fecham com o tráfico". Ele acha que esses olheiros são todos
vagabundos, que a polícia vê todo dia o cara parado no mesmo lugar, que não sai
do morro para nada, e depois quer dizer com arrogância que é trabalhador, que é
estudante, quando não bateu nenhum prego ali dentro.
O segundo informante também não concorda com isso e não concorda com
os direitos humanos porque eles não defendem os policiais que também morrem.
Ele relatou que mataram um policial à paisana que subia o morro para pegar no
183

trabalho. Um carro e uma van fecharam a passagem dele e o mataram com tiros na
cabeça, e não precisavam fazer isso, já que o policial não estava armado.
Esse relato demonstra como o discurso ambivalente dessa política é também
reproduzido pelos próprios moradores, que mesmo acuados, mesmo tendo seus direitos
constantemente violados, denigrem a imagem dos direitos humanos reproduzindo o
senso comum de que os direitos humanos só pretegem “bandidos”, o que é
constantemente reforçado pelas mídias de massa e pela própria corporação policial.
Assim, percebe-se que o controle não é só físico, mas também ideológico, da imagem
do direito à segurança e não da segurança dos direitos.
Nesse mesmo dia, indo para casa, no ponto de ônibus, ouvi uma conversa entre
uma moradora e um vendedor ambulante. O vendedor estava falando que a polícia
também sofre, que tinha três parentes que eram polícia e um morreu assassinado
jogando bola. Era polícia militar e, no meio do jogo, na favela, souberam que ele era
polícia e o executaram. Outro parente era segurança e estava estudando para ser
polícia. Ao ser abordado, como tinha a carteira do curso, foi morto no ônibus. O vendedor
destacou que tem policial bom, mas que eles acabam saindo por causa dos corruptos,
com o que a mulher no ponto concordou, mas afirmou que tem muita polícia que é
má. Um primo de Manaus do vendedor, que é policial, teve que ajudar na ocupação
do Complexo da Maré, mas depois disso saiu da polícia porque não aguentava mais
ver tantos absurdos.
Essa opinião demonstra que o vendedor, de alguma forma, enxerga a polícia
como semelhante, que também é vítima dessa necropolítica. Como afirma Zaffaroni
e Nilo Batista492, a polícia é selecionada dos mesmos estratos sociais que os alvos
da política repressiva, o que vai ser chamado de seleção policizantes, e ela também
é vítima dessa política, conforme destado pelo vendedor.
A mulher comentou que, naquele exato momento, estava cheio de polícia "lá
dentro" e criticou perguntando "por que que a polícia tem que entrar nessa hora",
entre 17h e 18h? Esse horário é que as crianças estão saindo da escola e o vendedor
concluiu que a polícia faz as crianças e os moradores de escudo.

492 ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito penal brasileiro: teoria geral
do direito penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v.1.
184

No Raízes conversávamos sobre como se comportar numa situação de tiroteio,


que as pessoas têm diferentes reações, pois tem gente que trava, outros conseguem
correr. Um deles falou que, na semana anterior, estava saindo do morro e, perto de
onde corta o cabelo, começou um tiroteio. Às vezes, você pede abrigo na casa de
alguém, mas a pessoa não abre porque acha que você é do tráfico ou é da polícia.
Eles também comentaram que, em uma ocasião, um cara estava no bar
fazendo um lanche e a polícia mandou fechar o bar e o dono do bar ficou com ele
aberto. Então a polícia disse que achou droga com o rapaz que estava ali, fazendo
um lanche, mesmo que ele não tivesse nada a ver com a situação, e acabou o levando
preso, hoje está cumprindo pena.
Uma das pessoas que frequentava o Raízes contou que, em 2010, durante a
ocupação do Alemão, estava indo visitar a sua mãe, porque tentou por diversas vezes
falar com ela, mas ela não atendeu o telefone. Então, resolveu ir pessoalmente até a
casa para verificar se estava tudo bem e, quando chegou perto, o "caveirão" estava
passando na rua e teve muito tiro, por isso teve que se abrigar. Depois foi descobrir
que sua mãe estava na casa de uma amiga ali perto, que tinha dado abrigo para ela,
por sorte.
Não tem como naturalizar a violência nesse tipo de situação. Existem muitas
crianças com déficit de atenção e que não conseguem estudar simplesmente porque
estão traumatizadas com tanta violência, opressão e tiro, e isso não é levado em
conta. Além disso, há muitas pessoas com depressão e pânico na favela por causa
dessa situação.
Uma postagem compartilhada pelo Coletivo Papo Reto mostra a indignação e
o sofrimento dos moradores frente a essa violência:

Vanessa Santos, 10 anos Moradora da Boca do Mato, Complexo do Lins é


a mais nova vítima da "GUERRA AS DROGAS ", classifico como guerra aos
POBRES como NÓS.
Vanessa uma criança cheia de direitos que foram violados nessa tarde.
Vanessa podia ser minha filha. Me doeu na alma como MÃE receber mais
uma foto de mais uma criança morta. Me dói como mulher de Favela, negra,
carregar mais uma das nossas crianças...
Estou sentindo uma dor, não a dor da mãe de Vanessa, pois não sei o
tamanho de sua dor, mais uma dor na alma. Gostaria [de] poder abraçar
essa mulher, queria poder confortar e lhe dar todo o meu apoio. Estou fraca,
me sentindo um lixo. Buscando forças pra poder continuar.
Parem por favor de matar nossas CRIANÇAS, deixem elas VIVEREM.
185

Vou pedir a DEUS força pra essa MÃEZINHA. Não tenho mais condições de
continuar a escrever pois a dor me assola.
#Vanessapresente.493

Mais do que isso, os moradores tentam ser fortes e solidários uns com os
outros para suportar essa realidade:

Um dos lugares mais violentos do Rio de Janeiro!!


Aqui você precisa de muita energia pra sobreviver diariamente a toda essa
confusão que é!
Aqui ou você tem força e determinação ou é esmagado pelo sistema!
Aqui, o inimigo está todo tempo querendo violar o seu espaço e o seu
corpo. Punho cerrado e cara fechada é obrigação!
Aqui você olha pro lado e sempre encontra alguém sofrendo igual e
consegue ser solidária somente pelo olhar! 494

Percebi, voltando para a Zona Sul, onde estava hospedada, que lá também há
muitos policiais, um em cada esquina. Tive essa reflexão porque, ao descer do metrô,
deparei-me com a polícia ostentando suas armas, o que me causou desconforto e
me fez refletir sobre a cidade do Rio de Janeiro ser uma cidade militarizada e em
estado de guerra, porque as forças policiais estão em todos os lugares, mas claramente
com objetivos diferentes. Enquanto na favela qualquer um é "bandido" e potencial
alvo, na zona sul, a polícia serve aos brancos, classe média e alta, privilegiados, que
não têm medo da polícia, pois eles estão ali para agir contra os "bandidos", que são
aqueles que vêm da favela.
Mas, claro, é diferente e quem não vive na favela e quem não é afrodescendente
não sabe como é viver dessa forma:

Quando alguém que NÃO MORA NA FAVELA diz que o MESMO MEDO DE
QUEM VIVE NA FAVELA TAMBÉM É VIVENCIADO POR QUEM MORA
FORA...
Medo DENTRO E FORA DA FAVELA SÃO IGUAIS???? Cidadão de BEM
tem medo de ser assaltado? Estudar é de GRAÇA??
Vamos lá! Os policiais INVADEM CASAS E CHAMAM MORADORXS DE
BANDIDOS. Acontece isso FORA DA FAVELA?

493 COLETIVO PAPO RETO. Postagem no Facebook, 04 jul. 2017 Disponível em:
<https://www.facebook.com/ColetivoPapoReto/>. Acesso em: 17 dez. 2017.

494 LANA DE SOUZA. Postagem do Facebook, 19 dez. 2017. Disponível em:


<https://www.facebook.com/lana.desouza.1>. Acesso em: 17 dez. 2017.
186

Todxs sentem o MESMO MEDO DE SEREM ASSALTADOS... Maaasss, os


policiais, seguranças de shoppings NÃO REVISTAM BRANCOS OU OS
SEGUEM NAS RUAS E LOJAS!!
Estudar é de GRAÇA... Pra QUEM??? Acabaram de citar que são 10 DIAS
SEM AULAS!!!
Que MUNDO VOCÊ VIVE??495

A gestão do medo, do subcidadão, da favela se faz pela ponta do fuzil. Nas


palvras da professora Vera Malaguti Batista, o fim da escravidão ou a instalação da
república, conforme desmonstrado, não “romperam com o legado da fantasia
absolutista do controle social, da obediência cadavérica. A atuação da polícia nas
favelas cariocas nos dias de hoje é a prova viva desse legado.”496

3.5.5 A relação do morador com a polícia

O segundo informante contou que nunca tomou tapa de polícia, porque


sempre a respeitou. Uma vez foi obrigado a voltar para casa porque tinha saído sem
documento e a polícia o acompanhou até uma parte do caminho, mas, quando
entrou no beco, viu que a polícia não veio atrás. Então, preferiu ficar encostado no
muro esperando e, quando se aproximaram e perguntaram por que ele não correu,
disse que não devia nada para ninguém e que estava indo até a sua casa pegar o
documento, conforme solicitado. Quando os policiais o acompanharam até sua casa
e conferiram o documento, aconselharam-no a nunca sair sem documento, porque
se ele fosse, por exemplo, atropelado, não teriam como identificar o corpo. Diz ele
que ensinou seus filhos a tratarem a polícia por "senhor" e até hoje eles nunca
tiveram problemas com ela, concluindo que acha certa essa atitude da polícia.
Mas essa visão do segundo informante é relativizada e talvez nem ele tenha
consciência de que se sente oprimido com essa situação, pois, na conversa com o
quinto informante, que relatava do seu receio da polícia, o segundo informante afirma

495 ARTHUR LUCENA. Postagem no Facebook, 21 ago. 2017. Disponível em:


<https://www.facebook.com/arthur.lucena.587>. Acesso em: 17 dez. 2017.

496 BATISTA, V. M. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2.ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2003. p.32.
187

que tem medo de sair quando está chovendo, porque tem que sair de guarda-chuva e
quando volta e parou de chover, pode encontrar a polícia no beco e ela confundir o
guarda-chuva com uma arma.
O quinto informante relata que

fica imaginando mesmo, como que um policial consegue andar na comunidade,


é estresse puro, eu desço todo o tempo pra olhar esse negócio de remédio,
fisioterapia, aí eu desço e olha aí, a senhora acredita que eu tenho medo de
subir pra cá? Qual é o meu medo? Aí de repente eu surgir num beco assim,
com a minha bengala e o policial vem estressado, acha que é uma arma e
já sair atirando... Fico tremendo. (Quinto informante)

Para o quinto informante, essa situação traz o sentimento de que o cidadão é


refém de alguma coisa, já que não tem aquela liberdade de quando era criança, que
brincava na rua, no mato, brincava de herói, pegava um pau para fazer de arma.
Havia uma inocência nessa brincadeira; hoje não se pode admitir que as crianças
peguem um pau para brincar de "arminha", porque eles já estão sofrendo a
influência de tantas armas, que eles veem passar toda hora, a influência de tantas
mortes e eles perderam a inocência da infância, da brincadeira.
O quinto informante conta que há a questão do abuso de autoridade por parte
de muitos policiais, que não é praticado por todos, mas, infelizmente, são muitos que
abusam do seu poder. "No nosso tempo polícia era um herói". Hoje não é assim, é
"a polícia vai te queimar, hein. E aí? Eles invadem a sua casa e te ameaçam de
tomar um tapa na cara, e era de patente, eles são autoridade". E as crianças veem
isso e vão reagir como? Ele relata que a polícia já invadiu a sua casa. No começo
eles fizeram isso em todas as casas.

O cara entrou na minha casa, eu tinha problema no coração, comecei a


passar mal, fui até lá falar com ele, ele me meteu um cala a boca senão eu
te dou um tapa, aí como assim, como você vai me dar um tapa, eu sou
cidadão, como é que eu vou respeitar uma autoridade, uma pessoa vem
invadir minha casa do jeito que o senhor invadiu, eu sou um cidadão, eu tô
passando mal... (Quinto informante)

Esse tipo de atitude da polícia faz com que muitos tenham esse conceito de
que "a polícia é mais bandido do que bandido, o conceito geral aqui é esse, que
polícia é mais bandido do que bandido, é quase unanimidade esse conceito aqui em
cima", relata o quinto informante. Essa concepção passou a existir depois da entrada
188

da polícia na comunidade e da forma agressiva com que eles abordam o cidadão, de


tratar o cidadão como se estivesse tratando um bandido, "como se todo mundo
fosse bandido".
Uma coisa interessante que descobri numa conversa com um fotógrafo que
trabalha com fotojornalismo independente é que existe uma diferença na atuação da
polícia, dependendo do chefe do batalhão, que se chama "bonde", identificando o
"bonde dos carecas", em que o comandante e os policiais do batalhão são todos
carecas, e o "bonde do oclinhos", no qual o comandante usa óculos. O bonde dos
carecas é considerado o mais violento porque eles gostam de bater em morador,
então, quando o morador vê esse bonde na rua já sabe que vão "barbarizar".
Essa questão também é problematizada na entrevista concedida por Alan
Brum à Fundação Heinrich Böll:

Ficamos assim à mercê de pequenos grupos de policiais. Tem lugares do


Alemão onde as pessoas já sabem quem são os policiais de plantão, e agem
de forma diferente dependendo de quem seja. Tem determinado grupo de
policiais que o plantão deles é o dia do terror. Você tem que ficar mais
arredio, mais atento, com mais cuidado, porque pegam mais pesado ainda
com a população. A forma de abordagem já é criminalizante. Não é uma
garantia de segurança – porque é direito fazer abordagem. Mas é uma
forma de dizer: 'todos são traficantes até que provem contrário'. Então, a
criminalização é constante, sobretudo da juventude, dos rapazes, sobretudo
dos negros. Então, você vai aprofundando o recorte: população-jovens-
homens-negros. Nesse corte, o acirramento é maior. Se é jovem, homem e
negro, ele é traficante no olhar da polícia.497

Esse comandante do bonde dos carecas deu um tiro com bala de borracha
em um Repórter do Coletivo Papo Reto, enquanto ele cobria a remoção na favelinha
da Skol.498 Lembro que tive a oportunidade de conversar pessoalmente com esse
repórter em uma das edições do "Vamos Desenrolar". Ele me explicou que utiliza um

497 UCHOAS, L. Raízes: a resistência no Alemão em forma de cultura. Heinrich Böll Brasil, 23 jun.
2017. Disponível em: <http://br.boell.org/pt-br/2017/06/23/raizes-resistencia-no-alemao-em-forma-
de-cultura>. Acesso em: 16 out. 2017.

498 Mais informações: LONGAIGH, C. N. Moradores da Favela da Skol sofrem remoção violenta pela
UPP no Complexo do Alemão. Racismo Ambiental, 10 out. 2016. Disponível em:
<http://racismoambiental.net.br/2016/10/10/moradores-da-favela-da-skol-sofrem-remocao-
violenta-pela-upp-no-complexo-do-alemao/>. Acesso em: 16 out. 2017; e O GLOBO. Policiais
militares agridem jovem no Alemão, durante remoção da Favelinha da Skol. Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/rio/policiais-militares-agridem-jovem-no-alemao-durante-remocao-da-
favelinha-da-skol-20214918>. Acesso em: 16 out. 2017.
189

aplicativo de telefone que ativa a câmera, mas deixa a tela desligada para filmar a
ação policial de forma disfarçada. Durante a ocupação da favela da Skol, ele levou um
tiro de bala de borracha porque o policial o reconheceu como sendo jornalista. O vídeo
publicado no YouTube desse episódio mostra que o tiro foi dado propositalmente.499
Essas falas reforçam a noção de como os moradores de favela se sentem,
sempre rotulados como “bandidos”, retratado pelo estereótipo do homem, jovem,
favelado e negro. Essa figura é o alvo principal da polícia, rotulados como inimigos.
Percebe-se que essa noção é compartilhada pelos agentes policiais, que reproduzem
esse controle social ainda que tenha havido um desmonte na política das UPPs,
afastando-se o comando. Essa tática incentiva a formação dos esquadrões da morte500,
dos bondes da barbárie, muito utilizados durante o período da ditadura militar.
Em uma dessas conversas sobre a pacificação, o fotógrafo me disse que a
pacificação não aconteceu, o que aconteceu foi ocupação. Perguntei a ele sobre a
história de que, quando o "caveirão" entrava na favela, ele falava "vim buscar a sua
alma", e ele confirmou. Segundo ele, "teve uma vez que o caveirão tocou funk e a
galera foi chegando achando que era baile e eles começaram a atirar". Hoje isso não
acontece mais, depois da entrada da UPP.
Seja preto ou branco, o caveirão continua trazendo o conflito para a favela.
Daiene Mendes foi convidada a escrever para o jornal The Guardian sobre a favela
e, em um de seus textos, ela relata uma noite de horror:

Há algumas semanas, eu estava dormindo até que ouvi muitos disparos. Parecia
ser bem perto, mas o sono não me deixou perceber que estava em perigo.
Sonolenta e enrolada no lençol, eu me deitei no chão. Olhando pela janela,
consegui ver um carro branco, bem grande, desses que parece transportar
dinheiro. Eram 2am, deitada no chão, meu telefone toca, é uma amiga em
desespero me avisando que um tiroteio estava acontecendo bem na minha porta.
O que eu via pela janela era um carro blindado da polícia militar. Usualmente
preto e todo morador de favela conhece bem. O caveirão na favela representa
tiroteio. O carro blindado utilizado pela PM protege os policiais que – de
dentro dele – realizam disparos com seus fuzis, mas o que separa a minha casa,

499 CARLOS Coutinho, jornalista do Coletivo Papo Reto, atingido por bala de borracha. The Intercept
Brasil, 1.o out. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rGO3vpkAtbs>. Acesso
em: 18 out. 2017.

500 ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito penal brasileiro: teoria geral
do direito penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v.1.
190

da rua é apenas uma parede. O que torna favorável e seguro o "trabalho" da


PM, coloca a minha vida e a vida de milhares de pessoas que moram nos
estreitos becos e vielas das favelas, na linha do tiro para a morte. 501

Olhando para essas falas, elas comprovam a visão da primeira informante, de que
não existe relação entre a polícia e o morador, não há nem o mínimo diálogo do bom dia,
boa noite, e não parece ter havido esforços nesse sentido. Além disso, a polícia,
quando entra na favela, é com o caveirão. Com essas falas foi possível perceber
como o morador enxerga a polícia, que é uma visão bastante negativa, de alguém
que age com violência e sem respeito algum, e que existe um grande temor de
encontrar a polícia ou o caveirão num beco e tomar um tiro. O morador se sente alvo
dessa política de massacre a conta gotas.

3.5.5.1 Corrupção policial e o “direito penal subterrâneo”

Sobre a corrupção, o quinto informante acredita que hoje isso não acontece
mais, não abertamente, pelo menos, mas acredita que não existe "por causa dessa
resistência né, que a comunidade tem com relação à presença deles aqui".
Uma recente manifestação dos mototaxistas, que protestaram contra as
cobranças de "arrego" por parte da polícia da UPP, que estava cobrando R$ 20,00
por semana de cada mototaxista, mostra essa resistência do favelado com a corrupção
policial. "Segundo eles, quem não paga o famoso 'café' é ameaçado com multa ou
tem sua motocicleta apreendida".502
No entanto, esse protesto sofreu retaliações. A polícia baleou um mototaxista
que foi acusado de entrar em confronto, mas prontamente os familiares da vítima
pediram ajuda ao Coletivo Papo Reto, que postou a seguinte mensagem:

501 MENDES, D. A visão das favelas: 'O legado para Rio deveria ser paz, mas estamos em guerra'.
The Guardian, 19 ago. 2017. Disponível em: <https://www.theguardian.com/global-
development/2017/aug/19/a-visao-das-favelas-rio-de-janeiro-olimpicos-o-legado-para-rio-deveria-
ser-paz-mas-estamos-em-guerra>. Acesso em: 20 ago. 2017.
502 COLETIVO PAPO RETO. Postagem no Facebook, 14 dez. 2017. Disponível em:
<https://www.facebook.com/ColetivoPapoReto/>. Acesso em: 14 dez. 2017.
191

#URGENTE: TIROS ESSA MADRUGADA, MOTO TAXISTA FERIDO,


FAMÍLIA E AMIGOS ALERTA para ele não ser forjado!
13h22 - Atualizando: O moto taxista teve suas roupas cortadas pelos
médicos que foram fazer a limpeza e cuidados do ferimento. O irmão dele
chegou com uma bermuda e uma blusa para ele no hospital e a polícia não
deixou entregar, mesmo com autorização das médicas.
12h20 - PESSOAL, essa madrugada, entre 5h e 6h da manhã, houve um
confronto em uma área aqui da favela é um moto-taxista que estava
trabalhando e de colete foi atingido na perna.
ELE foi levado para o hospital Salgado Filho e está sob custódia da PM. Um
familiar tentou falar o rapaz mas não o deixaram entrar.
Fazemos essa postagem para que vocês fiquem de sobre aviso, caso
tentem acusar o Rafinha de estar envolvido em alguma coisa.
Força Rafa!
— Abaixo, mensagens de um familiar e um amigo de trabalho dele, pedindo
ajuda para não o forjarem.
#NósporNós
#FavelaSempre
#ColetivoPapoReto.503

A fala do segundo informante também demonstra essa perspectiva de que o


morador não tolera mais esse tipo de situação, pois ele diz que seria só pagar a
polícia e pronto, que não deveria haver tanto confronto.
É importante destacar essas falas porque elas simbolizam a atitude da favela
em relação à polícia, que é uma atitude de resistência, desde o período das ocupações
até hoje, com a presença das UPPs.
Num dos dias em que estive no Raízes, pude acompanhar, no final da tarde,
uma abordagem policial. A polícia estava abordando um homem de moto, aparentemente
porque estava sem habilitação. Vários familiares desciam e subiam a Central falando
com o rapaz. Fiquei observando aquela situação e soube, depois, que o levaram
para a delegacia. Segundo o pessoal que acompanhou o caso, foi porque ele não
pagou o arrego.

503 COLETIVO PAPO RETO. Postagem no Facebook, 17 dez. 2017. Disponível em:
<https://www.facebook.com/ColetivoPapoReto/>. Acesso em: 17 dez. 2017.
192

Figura 5 – Abordagem policial

Fonte: Arquivo pessoal.

Logo no início da observação, o fotógrafo chama a atenção para a casa que


foi invadida pela polícia, perto do beco, e onde fica agora um policial com um fuzil na
laje. Na foto acima, durante a abordagem é possível ver outro policial abrindo a porta
da casa. Os policiais da UPP invadiram diversas casas durante os meses de setembro
e outubro de 2016, para fazer de centro de observação. Segundo a polícia, essas
casas estavam vazias, por isso foram ocupadas, mas não foi isso que os moradores
disseram. Eles denunciaram ao Ministério Público e à Defensoria Pública que estavam
sendo expulsos de suas casas ou que eram obrigados a deixar a polícia entrar.
Depois de várias denúncias nos órgãos estatais a respeito dessa situação, houve
uma decisão judicial determinando o afastamento dos policiais desses locais;504
Durante essa observação, uma viatura estava subindo e um outro carro
descendo, ambos ficaram parados frente a frente uns segundos até que o carro deu
a ré e foi para o lado da rua, deixando a viatura passar. Nesse momento em que a
viatura cruzou com o outro carro, o policial que estava dirigindo falou alto para o
morador "dessa vez passa", como se ele tivesse preferência de dirigir naquela situação
e como se o morador tivesse que ceder o espaço da rua para a polícia, demonstrando
que a opressão policial sobre o morador é cotidiana.

504 Em face dessa situação foi aberta uma página na internet em que você pode apoiar os moradores
nessa luta contra a ocupação das casas pela polícia: <https://www.respeitaomorador.meurio.org.br/>
193

3.5.6 Relação do morador com o tráfico

Confirmando o que primeira e a terceira informante disseram, o segundo


informante falou que a região da Grota é o lugar mais violento, onde tem troca de
tiros constantemente. Com as obras do PAC, era para ter aberto a rua que existe lá
embaixo, mas a "bandidagem" não deixou. Como morador da região, o segundo
informante não aprova esse tipo de coisa, porque, segundo ele, o tráfico não se
preocupa com as necessidades da comunidade e isso é uma falta de respeito com
o morador.
Contou, ainda, que tinha um projeto do Raízes para a construção de uma
quadra de futebol, e me mostrou a maquete. Haviam recebido inclusive apoio do
Estado e a cessão do espaço, projeto esse que foi desenvolvido pelos alunos de
arquitetura da UFRJ, mas o Raízes recebeu o recado para, antes de construir, falar
com o "chefe". E, quando foram falar com ele, não foi autorizada a construção. Hoje
precisariam receber uma contraordem autorizando a construção da quadra. Talvez,
quando mudar o chefe, seja possível uma nova conversa. Havia a intenção, segundo
o chefe, de construir um prédio para os familiares de presos e parentes virem morar,
mas até agora nada foi feito e o lugar continua sendo utilizado como estacionamento.
Perguntei para a terceira informante quem era o chefe do tráfico, mas ela
disse que o último foi preso. Era conhecido como Moreira e agora não sabe quem
assumiu o lugar dele e nem quer saber, porque, se acontece alguma coisa, vão
desconfiar de quem sabe. Por isso, ela orienta os filhos também dessa forma, que é
bom não saber de nada. A relação dos moradores com o tráfico é assim: "a gente
não se mete com a vida deles, tem que ser muda, surda e cega, pra vida toda, não
pode ficar falando, se viu, finge que não viu".
Ela relata um episódio em que foi chamada pelo tráfico porque estava
vendendo para a polícia, mas pergunta o que podia fazer. Se está com a loja aberta,
tem que vender para todo mundo. Mas teve um período em que veio a ordem para
não vender para a polícia, assim como às vezes vem a ordem de fechar o comércio,
normalmente quando morre um traficante, um chefe.
Um dia aconteceu, num sábado, tinha acabado de descer com as coisas e
mataram um chefe, "não foi nem aqui, foi em Niterói, aí bem na hora teve que baixar
a porta, eles não querem saber", isso já faz um certo tempo. Segundo ela, o que
194

está acontecendo é de sempre morrer um bandidinho, mas aí não precisa fechar,


porque dizem que é soldado e não chefe. Se morre gerente ou chefe tem que
fechar. Essa ordem é dada por um rapaz que passa gritando: "Arreia a porta! Arreia
a porta!" E se não fechar depois já sabe. Se não tiver sorte, eles podem até matar a
pessoa, porque não obedeceu à ordem.
O quarto informante tenta, com a capoeira, dar um outro futuro para a molecada,
mas nem sempre consegue. "Tentei recuperar um aluno meu, mas largou a luta e foi
pro tráfico". Esse aluno foi morto com um tiro na cara, tinha entre 14 e 15 anos.
"Antigamente, quem trabalhava com o tráfico era mais adulto, de idade, cascudo,
hoje é uma molecada do caramba", normalmente nessa idade de 14, 15 anos. "Se
quiser sair do tráfico, até pode, desde que não esteja devendo pros caras e não
saiba demais". O tráfico hoje no Alemão não tem um dono certo, como tinha
antigamente, "hoje é a molecada mesmo que domina".
Pensando na relação do "bandido" com a comunidade, o quinto informante
falou que o bandido não age da mesma forma violenta como a polícia, mas acha que
com a UPP melhorou, porque agora não vê as pessoas subindo, sabendo que é a
última vez que vai vê-la viva. Nem todos os líderes eram de ouvir alguma coisa a
respeito da pessoa e averiguar se a notícia é real e dar a chance da pessoa se
defender. Isso dependia de quem era o líder, já que cada um estabelecia as suas
regras. Se você tem uma briga com o vizinho, por exemplo, as pessoas ainda levam
para a boca para resolver, mesmo com a polícia. Mas eles também não querem
parar para julgar uma causa; a questão deles hoje está mais voltada para a sua
segurança pessoal e do seu território.
O primeiro "bandido" desse meio, o Cabeça, era uma exceção à regra segundo o
quinto informante, porque, para ele, todo cara era bom e ele andava pelo morro
descamisado, andava no meio das pessoas. Todo mundo sabia, mas ninguém dizia
que ele era certo. E, talvez por ser uma pessoa muito inocente, ele foi traído e
morreu da forma que morreu. O próprio gerente dele, o China, que matou ele.
Depois desse China é que começou o descontrole geral.
Um desfecho interessante foi a fala do segundo informante, afirmando que na
favela as pessoas já nascem acreditando que a polícia não presta, que quem presta
é o traficante, pois eles admiram os bandidos e fazem de tudo para contribuir com
eles. "Bandido na favela é herói", o que desconstrói, em parte, a noção de que o
morador é vitima da violência exercida pelo comércio varejista de drogas.
195

3.5.7 A Posição do Estado e a Rotulação da “Classe Suspeita”

O quinto informante diz que essa situação do tráfico e da polícia é muito difícil
porque movimenta muita coisa, mas questiona: se o Estado sabe por onde a droga
entra, por que é que não barra ela lá e não deixa ela chegar no morro? Ele acredita
que, se tivesse algum tipo de trabalho para as drogas não entrarem no país, não
haveria a necessidade de ter tanta polícia, de ter tantas forças armadas. "Porque
esse contingente tão grande de militar é justamente por causa dessa quantidade
também imensa, né, de pessoas, vamos dizer assim, é... fora da lei, entendeu?"
Por isso, em sua fala, dá a entender que só existe tanta polícia hoje por causa
da droga e das disputas por ela ocasionadas. O segundo informante, do mesmo
jeito, acredita que, se o Estado quisesse, acabava com tudo isso, mas que o Estado
não quer, não tem interesse. Já a terceira informante deixa claro que não acredita na
possibilidade de acabar com esse negócio.
Essa imagem traz a noção de que o Estado quer acabar com o comércio de
substâncias ilícitas pela força e que isso seria possível. Não há entre os moradores
entrevistados uma reflexão sobre a descriminalização das drogas, nem mesmo a
percepção de que essa política de guerra aos pobres é decorrente dessa criminalização
das drogas, sendo o tema construído sobre o mito de que falava Rosa Del Olmo, o
mito de que é possível acabar com “as substâncias demoníacas” por meio da guerra.
No entanto, essa discussão começa a ser feita pelos moradores mais jovens, como
é possível perceber através das redes sociais.
Quanto a questão da rotulação, embora já mencionado nos tópicos anteriores,
cabe destacar que nessas conversas, alguns frequentadores do Raízes disseram
que na favela tem pessoas que trabalham, que fazem universidade, que não tem
como dizer favela é isso ou aquilo. "A favela é plural" e cada lugar e cada pessoa
tem a sua história.
O correto, para o quinto informante, seria a polícia cumprimentar as pessoas,
não importa se é “bandido” ou não. O policial não sabe que é “bandido”, não está
rotulado “bandido”, e depois tem que saber que a pessoa está se sentindo invadida na
sua privacidade, porque é a privacidade da pessoa, que nunca viu uma autoridade
tão presente na vida dela. "Ah, esse menino trata mal, então, é porque é tudo farinha
196

do mesmo saco, não é, é tudo rotulação". Então, tem que respeitar a cultura das
pessoas e tentar mudar aos poucos.
"A autoridade veio e aumentou a autoridade na força, tem que ser assim, eu
sou autoridade e vocês são, são o quê? Não sei. Nós não somos bandido, nem todo
mundo é bandido, mas é como se eu fosse, é como se eu fosse". (Quinto informante).
O sexto informante reforça que a polícia tem essa visão preconceituosa do
favelado, pois afirma que essa ideia da UPP de retomar o território porque ele nunca
foi do Estado é a ideia de que a favela tem que ser erradicada de dentro para fora e
está associada com a ideia de que a polícia tem que entrar atirando, matando, ou
seja, o objetivo dessa política é acabar com a favela e com o favelado. O morador de
favela é considerado subcidadão, porque qualquer pessoa é suspeita e a UPP é o
verniz que dá o poder de matar na comunidade, o que é aplaudido por quem é de
fora e pela mídia. "É preciso ressignificar a favela".
A favela é lida ainda na chave da falta e do atraso, como era o Brasil do
século XIX.

3.5.8 Futuro da UPP

Sobre o futuro das UPPs, o quarto informante acha que a polícia vai continuar
no morro. "Agora que o Estado colocou a polícia aí não vai tirar, isso lá fora vai dar
uma repercussão do caramba, a polícia não vai largar". O problema da polícia é o
tráfico que rola na comunidade, eles querem parar e não têm o que para com isso,
"eu era garoto e já tinha isso!" A polícia acha que vai chegar e vai acabar, mas não
tem como. Vai morrendo polícia e vai morrendo gente.
A respeito desse quadro, o quinto informante acredita que a polícia fica no
morro, "até porque a comunidade, aos poucos, ainda que com muita resistência, mas
aos poucos ela tá, né, aceitando mais a presença, né, dos policiais", por isso acredita
que ela tem que ficar porque, se não, os caras vão querer mostrar o seu poderio,
montar um quartel general. Já está havendo, inclusive, união com o pessoal de São
Paulo, referindo-se ao PCC, para fortalecer as armas e a venda de drogas. Então, o
Estado tem que mostrar quem manda e pensar em uma política para acabar com
isso, embora não acredite que a “criminalidade” possa acabar.
197

Havia um boato de que a UPP duraria até o fim dos jogos Olímpicos e, com a
sanção da lei que reduz os poderes da Coordenadoria de Polícia de Pacificação e o
orçamento da polícia, um morador fez a seguinte manifestação:

O "engraçado" é pensar que 9 entre 10 favelados sempre falaram "UPP é


projeto pra turista, copa, olimpíadas, em 2016 isso tudo acaba, essa
maquiagem passa e volta tudo como antes." Não que a gente tivesse
descoberto a pólvora, mas né, muita gente no asfalto quando viu aquele
circo no complexo do alemão, rendendo prêmios de reportagem a rede
globo, acreditou que isso iria salvar a lavoura!
Nada de novo sob o sol escaldante do Rio de Janeiro. 505

Sobre o mesmo tema e compartilhando o post acima, Fransergio faz a seguinte


manifestação no Facebook:

Reforço afirmando: As Favelas diziam desde sempre isso, mas boa parte da
esquerda dita progressista e outra grande parte dos escrotxs pesquisadores
(as)defendiam as Upps.
Estamos de olho!
Agora não tem mais volta, seus escrotxs, é #NósporNós. Estamos nas
Universidades e em todos os espaços e isso mete medo em vcs seus
privilegiadxs. Ninguém fala e nem constroi conhecimento por nós mais. Vcs
surtam, estão com medo,e que bom! 506

Essas mensagens reverberam o boato que a favela já sabia, de que a UPP não
duraria muito tempo, que foi um projeto para garantir apenas a imagem de "pacificação"
do Rio de Janeiro durante a realização dos eventos mundiais e garantir a sensação
de segurança para os turistas e para os bairros ricos da cidade, não significando
uma pacificação verdadeira, mas uma "paz armada", vigiada, violenta e homicida.
Em recente estatística, o número de mortes causadas pela polícia foi o maior
dos últimos dez anos, chegando a 1.035 pessoas mortas de janeiro a novembro de
2017. Na outra ponta, no mesmo período, 27 policiais militares foram mortos em

505 KOSMI FELIPPSEN O FAVELADO. Postagem no Facebook, 21 dez. 2017. Disponível em:
<https://www.facebook.com/cosme.felippsen?hc_ref=ARR731qgdW1kez3Q-edi4tU_vSq6-
vi7gaTHVejhB68oA5KCvC14xRj7u75ZtKExxRw&fref=nf&pnref=story.unseen-section>. Acesso
em: 21 dez. 2017.

506 FRANSÉRGIO GOULART GOULART. Postagem no Facebook, 21 dez. 2017. Disponível em:
<https://www.facebook.com/fransergiogoulart?hc_ref=ARR4ga7_pfED94cCNegd3zMHB4JqT0fZ7
oikxI-UR9OlrA_fg92YbMYxZG-_LGDHbKg>. Acesso em: 21 dez. 2017.
198

serviço e, se forem somados os policiais que morreram no período de folga, teremos


o número de 129 agentes mortos. Do total de 6.173 mortes no Estado, 17% são de
mortes causadas pela polícia.507
O Coletivo Papo Reto organiza um calendário de tiros que é assustador:

#CalendáriodosTiros Ano Letivo 2017


Desde o início do ano, nós do Coletivo Papo Reto estamos contabilizando
tiros que são ouvidos por moradores ao redor do Complexo do Alemão e
organizando estes dados em calendários e gráficos.
Para formulação desde calendário, foi usado como base o fornecido pelo
site do Governo do Estado disponibilizado no site
http://www.rj.gov.br/c/document_library/get_file…
Metodologia:
Os "X" marcam dias em que algum morador ouviu som de tiro em alguma
localidade do Complexo do Alemão, mas não significam que aulas tenham
sido suspensas.
Para fins metodológicos, decidimos considerar também os dias de Conselho
de classe.
Embora saibamos que é comum as instituições escolares "enforcarem" sextas
feiras que caem após um feriado de quinta, ou segundas feiras que caem
antes de um feriado na terça, consideramos tanto essas sextas e segundas
como dias letivos pois a marcação funciona dentro do calendário oficial
fornecido pelo Governo do Estado.
Seguem os números atualizados:
Fevereiro: de 16 dias de aula, 16 de tiros: 100% de dias de tiros;
Março: de 23 dias de aula, 21 de tiro: 91,30% de dias de tiro;
Abril: de 18 dias de aula, 13 de tiro: 72,22% de dias de tiro;
Maio: de 22 dias de aula, 16 de tiro: 72,73% de dias de tiro;
Junho: de 21 dias de aula, 17 de tiro: 80,95% de dias de tiro;
Julho: de 10 dias de aula, 8 de tiro: 80% de dias de tiro;
Agosto: de 23 dias de aula, 14 de tiro: 60,87% de dias de tiro;
Setembro: de 20 dias de aula, 14 de tiro: 70% de dias de tiro;
Outubro: de 21 dias de aula, 15 de tiro: 71,43% de dias de tiro;
Novembro: de 19 dias de aula, 13 de tiro: 68,42% de dias de tiro;
Total de dias de aula: 193
Total de dias de tiro: 147
76,17 % do ano letivo alguém ouviu tiro no Complexo do Alemão. 508

507 BIANCHI, P. Número de mortos pelas polícias no RJ passa de 1.000 e já é o maior em quase 10
anos. Uol, 18 dez. 2017. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2017/12/18/numero-de-mortos-pela-polica-no-rio-ultrapassa-os-1000-e-ja-o-maior-em-
quase-10-anos.htm>. Acesso em: 18 dez. 2017.

508 COLETIVO PAPO RETO. Calendário dos tiros: ano letivo 2017. Postagem no Facebook, 13 dez.
2017. Disponível em: https://www.facebook.com/ColetivoPapoReto/photos/a.490209187772332.
1073741829.487948524665065/1416207238505851/?type=3&theater>. Acesso em: 13 dez. 2017.
199

Figura 6 – Calendário de tiros

Fonte: COLETIVO PAPO RETO. Calendário dos tiros: ano letivo 2017. Postagem no Facebook,
13 dez. 2017.

Esse calendário mostra a relação de tiros e das aulas da rede pública de ensino
e como a educação é afetada por essa violência. Não é só a educação, mas o trabalho,
a sanidade física e mental de quem vive na favela são amplamente afetados por
essa cultura de guerra aos pobres, aos afrodescendentes e aos favelados.
É visível que não houve qualquer pacificação da relação entre a polícia, o
movimento e o morador, pelo contrário, essas disputas se intensificaram ainda mais
com a derrocada e o abandono do projeto das UPPs, assim como o número de mortos,
configurando práticas da gestão policial militarizada da vida favelada, atingindo o
ápice do projeto de governamentalidade neoliberal.
200

4 EXPERIÊNCIAS DE POLICIAMENTO COMUNITÁRIO NO PARANÁ

No Paraná também houve a implantação de unidades de polícia comunitária,


denominadas UPSs – Unidades Paraná Seguro, mas ela não foi a primeira experiência
paranaense com essa filosofia.
Assim, pretende-se traçar brevemente o caminho das políticas de segurança
púbica praticadas no estado, até a implantação da UPS. Para tanto, será utilizado
como fio condutor dessa análise a entrevista realizada com o Coronel Cesar Alberto
Souza, um verdadeiro entusiasta do policiamento comunitário, que, dentro da Polícia
Militar do Paraná, participou das discussões a respeito da implantação das UPSs e
participou dos vários projetos de segurança pública do Paraná, em especial sobre o
percurso da polícia comunitária no Paraná.

4.1 Sistema Modular de Policiamento Urbano

Poucos anos antes da abertura democrática, o Paraná concebeu uma nova


forma de policiamento, que seria o sistema modular de policiamento urbano, apresentado
pelo Cel. Manoel Abreu de Morais na reunião de comandantes gerais. Aprovado o
projeto, ele foi implementado em março de 1980, no bairro Guabirotuba, que seria a
experiência piloto. Ele era chamado de Posto Policial de Socorro Familiar,
expandindo-se pela cidade a atingindo o número de 8 módulos.509
A proposta era dividir a cidade em áreas e distribuir nelas os batalhões, ou
seja, seria um sistema de policiamento particularizado por áreas. Os módulos tinham
uma divisão militar: um pelotão, uma companhia e um batalhão. Era colocado um pelotão
no módulo, com um policial de trânsito com motocicleta, que cuidava, na época, da
entrada e saída de escolas além do próprio trânsito; um tenente comandante que
cuidava do módulo; um sargento que era o motorista da viatura; um subcomandante
que era um cabo, responsável por manter a organização do módulo e o atendimento

509 SOUZA, C. A. Polícia comunitária e gestão integrada. Curitiba: Intersaberes, 2017.


201

dos usuários, estando de forma permanente no módulo para receber as pessoas e


as queixas; um telefone; um rádio; e uma equipe de seis policiais que faziam o
policiamento a pé.510
A ideia inicial era que sempre saíssem duplas a pé e, quando eles encontrassem
uma ocorrência, chamassem o sargento com o HT (rádio) e ele se dirigisse com a
viatura para atendê-la. Caso na ocorrência houvesse uma pessoa detida, o preso
era colocado na viatura e levado para a delegacia da área. Caso não houvesse
detido, mas houvesse uma pessoa realizando uma denúncia, a vítima entrava na
viatura e iria, em conjunto com o sargento e os policiais, procurar o agressor. Interessante
notar que sempre eram os mesmos policiais no mesmo bairro.511
Ao invés de eles irem para o batalhão fazer a instrução, o tenente, uma vez
por semana, reunia todo o pessoal e fazia a instrução em dois dias da semana para
que todos pudessem participar. A instrução era, basicamente, repassar os crimes
que aconteceram no bairro e os boletins que traziam as novidades do quartel. Na
época da ditadura, a polícia militar era aquartelada, todo mundo ficava em forma,
liam-se os boletins, aí as patrulhas saíam para patrulhar. No módulo não funcionava
assim, na instrução passava-se tudo o que aconteceu, ou seja, os mandados de
prisão, os veículos que tinham sido furtados, o que poderia acontecer, qual crime
estava ocorrendo com mais frequência, para promover a interação de todos os que
trabalhavam no módulo.512
O Coronel Bonilauri chamava de força centrífuga e força centrípeda. Centrífuga
era tudo aquilo que estava irradiando de policiamento para a comunidade e
centrípeda tudo aquilo que a comunidade trazia. 513 Essa instrução atualizava todos
os policiais do que estava acontecendo, e essa era a obrigação do oficial, que
recebia de todos os sargentos e preparava as instruções semanais. Assim era o
funcionamento do sistema modular.

510 Entrevista Cesar Alberto Souza. Entrevista concedida à autora no dia 27 de outubro de 2017 na
sede da AMAI – Associação de Defesa dos Direitos dos policiais militares ativos, inativos e
pensionistas.

511 Entrevista Cesar Alberto Souza.

512 Entrevista Cesar Alberto Souza.

513 SOUZA, C. A. Polícia comunitária e gestão integrada. Curitiba: Intersaberes, 2017.


202

Quando perguntado sobre documentos oficiais que comprovassem essa


experiência, isso não foi possível de ser obtido, mesmo após o contato com vários
membros da corporação. No entanto, uma reportagem do jornal o Estado de São
Paulo, publicada em primeiro de janeiro de 1981, afirma que o Paraná está adotando
um modelo de policiamento diferenciado, utilizando o policiamento modular:

Figura 7 – Reportagem do jornal o Estado de São Paulo

Fonte: GOMES, L. Paraná testa um novo sistema de policiamento.


Estado de São Paulo, 1.o jan, 1981. Disponível em:
<http://www.arqanalagoa.ufscar.br/db/resultado_pesquis
aRecortes.asp?PagePosition=18&campo=14&search=p
olicia&mode=allwords>. Acesso em: 18 jan. 2018.
203

Na mesma época, quando o Coronel Angelo Rogério Bonilauri, um dos


idealizadores do sistema modular, fez o PDPU, o Carlos Magno Nazaré Cerqueira,
também inspirado por essa concepção de uma polícia voltada para a defesa dos
direitos humanos e da cidadania, implanta no Rio de Janeiro os DPOs, no bairro de
Copacabana, com o auxílio dos conselhos comunitários e associações de bairro. 514

O coronel Cerqueira, ele vai encontrar o coordenador americano Robert


Trajanowicz, de polícia comunitária, e vai ganhar o manual, e a Mina Seinfeld
Carakushansky, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ela vai traduzir pra
ele, e aí ele vai pegar todo aquele material pra implantar a primeira unidade
dele lá em 84. Os primeiros, eu acho, que foi no bairro da Guanabara, e,
inclusive, a Cisesp, o Ciesc, o Centro de Estudos Inter-religiosos lá do Rio
de Janeiro vai acompanhar, esse trabalho e vai fazer um trabalho científico em
cima, então, o Rio de Janeiro ganha com o comando do Coronel Cerqueira,
ganha grande repercussão nacional, e traz, finalmente, a doutrina.515

Nesse primeiro momento, a expressão "polícia comunitária" não era utilizada.


Não existia no Brasil uma experiência como essa, mas o artigo que vai difundir essa
ideia é o artigo, em 1982, do Kelling e Wilson, sobre a Teoria das Janelas Quebradas,
que vem, portanto, dos Estados Unidos, embora eles não sejam uma referência em
polícia comunitária. Nesse artigo, segundo o Coronel Cesar, conta o que você tem
que fazer como policial, que o policial tem resistência a sair da viatura, mas que só
começaria a ter polícia comunitária quando ele sai da viatura, semelhante ao que o
Coronel Bonilauri fez, modelo no qual os policiais estão a pé e o carro é apenas um
apoio.516 Ressalva-se que Skolnick e Bayley517 já alertavam que o simples fato de
fazer as rondas a pé não poderia, necessariamente, ser chamado de polícia comunitária.
Assim, a polícia militar prepara a expansão desse projeto para implantar o
sistema modular completo em todo o Paraná. O primeiro módulo foi instalado em
março de 1980 e, nos seis meses seguintes, vários outros módulos foram instalados

514 GOEDERT FILHO, V. Práticas comunitárias da Polícia Militar do Paraná? Reflexões na perspectiva da
psicologia social comunitária como processo educativo. 2016. 173 f. Dissertação (Mestrado em
Educação) – UFPR, Curitiba, 2016.
515 Entrevista Cesar Alberto Souza.
516 Entrevista Cesar Alberto Souza.
517 SKOLNICK, J. H.; BAYLEY, D. H. Policiamento comunitário: questões e práticas através do
mundo. Tradução de Ana Luiza Amendola Pinheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2002.
204

já compostos por policiais, sargentos, oficiais e soldados. O objetivo dos módulos


era pensar em uma nova estratégia de policiamento, que se diferenciasse do modelo
militarizado e fosse voltado para o policiamento ostensivo urbano, e que pudesse
atender pessoalmente as pessoas da comunidade.
Para acelerar esse projeto, os novos ingressos nos quadros da polícia militar
foram direcionados da escola de oficiais para o concurso de sargentos, e assim,
para se tornarem comandantes dos módulos, com o intuito de viabilizar que cada
módulo tivesse quatro sargentos. Também as escolas de soldado, no Paraná inteiro,
foram orientadas para a formação de soldados para ocuparem os módulos policiais.518
A polícia militar, de 1980 até 1986, vai implantar módulos e trabalhar no sistema
modular, atingindo um alto nível de segurança pública, segundo o entrevistado.
Nesse período o número de homicídios era de 5 por 100 mil habitantes. Então, "o Paraná
é um mar de tranquilidade". Como cada local tinha um módulo, havia um sistema em
que, se houvesse um roubo, os módulos fechavam todas as saídas da cidade,
porque eles já estavam ativos e estrategicamente localizados.519
A taxa de homicídios em Curitiba, em 1980, era de 6,7 homicídios por 100 mil
habitantes, já em 1981 cai para 5, mas em 82 e 83 ele cresce para 8,4 e em 84
atinge 9 homicídios por 100 mil habitantes, havendo, nos anos seguintes algumas
variações, tornando a crescer em 1988, atingindo 12 homicídios por 100 mil habitantes
e, no ano seguinte, 15 homicídios por 100 mil habitantes.520 Essas informações
demonstram que a perspectiva do mar de tranquilidade durou pouco tempo.
Essa experiência é avaliada por uma pesquisa de opinião em 1982 e, segundo a
pesquisa, o sistema modular foi aceito pela população, que passou a utilizá-lo com
mais frequência, apontando a educação no atendimento, a apresentação pessoal e
a não discriminação de classe social como aspectos positivos. Já entre os aspectos

518 Entrevista Cesar Alberto Souza.

519 Entrevista Cesar Alberto Souza.

520 Informações do artigo de SOUZA, E. R. de. Mortalidade por homicídios na década de 80: Brasil e
capitais de regiões metropolitanas. p.12. Disponível em: <http://books.scielo.org/id/889m2/pdf/barreto-
9788575412626-16.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2017.
205

negativos foram listados a falta de efetivo, a falta de viaturas, de mais módulos


e patrulhamento.521
Ainda nesse período surgem os Conselhos Comunitários de Segurança –
CONSEGS, em Londrina e em Maringá, em 1982 e 1983, respectivamente. 522 Esses
conselhos reúnem pessoas do bairro interessadas em discutir questões relativas à
segurança da sua comunidade, mais um indicativo de que a polícia militar do Paraná
buscava alternativas comunitárias de policiamento. Frise-se que, no início dessa
política, estava na administração o governador Ney Braga, que construiu sua
carreira política a partir das forças militares, tendo assumido em 1983 José Richa,
pai do atual governador do estado.
Esse sistema modular de policiamento ficou marcado na memória dos curitibanos
como uma política de segurança pública que deu certo e que trouxe segurança para a
cidade. Tanto que esse sistema modular é sempre lembrado nas campanhas políticas,
inclusive sendo pautado no projeto de governo do último governador do estado, que
implantou as UPSs.

4.2 Projeto Povo

Quando o governador Álvaro Dias assumiu o governo do Paraná, de 1987 a 1991,


não houve a criação de um novo programa de segurança pública nem investimentos
na área. Esta não era uma preocupação do governo, que fez apenas a manutenção
dos módulos policiais já instalados. Não se instalam novos módulos e não se
contratam novos policiais.523
Quando o governador Roberto Requião assume o seu primeiro mandato, de
1991 a 1994, é assolado por diversos pedidos de instalação de módulos policiais.
Então, o capitão Marco Aurélio de Morais Sarmento, já falecido, formula um projeto,

521 SOUZA, C. A. Polícia comunitária e gestão integrada. Curitiba: Intersaberes, 2017.

522 SOUZA, C. A. Polícia comunitária e gestão integrada. Curitiba: Intersaberes, 2017.

523 Entrevista Cesar Alberto Souza.


206

baseado no modelo americano de patrulhamento, e apresenta para o governador,


mas este insiste na manutenção dos módulos policiais, criando, no entanto, os
módulos móveis524, denominado projeto POVO – policiamento ostensivo volante.
O projeto dos módulos móveis consistia em fazer o patrulhamento no bairro,
semelhante ao que o módulo fixo fazia, mas sem uma sede fixa. Foram adquiridas
150 Kombis, destinadas ao patrulhamento dos 75 bairros de Curitiba, ficando uma
Kombi e 12 policiais em cada região.525 Cada equipe era responsável por um bairro
e visava a aproximação com os moradores, por isso possuíam um aparelho celular,
cujo número era divulgado na viatura.526
O projeto tinha a finalidade de integrar a polícia com a comunidade, reduzir a
“criminalidade” e a sensação de insegurança, utilizando-se de técnicas preventivas
para a eliminação daqueles fatores que afetam a ordem pública.527
Para a população, o módulo móvel é aceito como aquilo que elas queriam, ou
seja, "o módulo", e ainda com a propaganda de que era melhor porque era móvel.
No entanto, esse conceito é, na verdade, rádio patrulha, ou seja, a mesma coisa que
a polícia faz desde que desceu do cavalo e comprou o carro: a polícia vai quando é
acionada, ela corre atrás dos problemas, e isso não é polícia comunitária.528 Esse
projeto foi executado a partir de outubro de 1993, mas teve uma descontinuidade no
governo posterior.

524 Entrevista Cesar Alberto Souza.

525 Entrevista Cesar Alberto Souza.

526 GOEDERT FILHO, V. Práticas comunitárias da Polícia Militar do Paraná? Reflexões na


perspectiva da psicologia social comunitária como processo educativo. 2016. 173 f. Dissertação
(Mestrado em Educação) – UFPR, Curitiba, 2016.

527 CORREIA, F. J.; PURIFICAÇÃO, R. R.; PEIXE, B. C. S. Estudo do projeto povo: avaliação do
desempenho da polícia militar na visão de polícia comunitária na cidade de Curitiba. Disponível em:
<http://s.busca.pr.gov.br/search?q=cache:5lzlIGJMfpIJ:www.escoladegestao.pr.gov.br/arquivos/Fil
e/gestao_de_politicas_publicas_no_parana_coletanea_de_estudos/cap_4_seguranca_publica/ca
pitulo_4_1.pdf+projeto+povo++site:documentador.pr.gov.br+OR+site:escoladegestao.pr.gov.br&si
te=administracao_collection&client=administracao_frontend&output=xml_no_dtd&proxystylesheet
=administracao_frontend&ie=UTF-8&access=p&oe=UTF-8>. Acesso em: 26 dez. 2017.

528 Entrevista Cesar Alberto Souza.


207

4.3 Totens Policiais

Já no governo Jaime Lerner, de 1995 a 2003, foram inaugurados totens Policiais,


concebidos pela equipe do governo e não pela polícia, o que gerou grande dificuldade
de aceitação interna. Nesse sistema eram utilizadas motonetas que passavam nas
principais vias a cada 8 minutos, havia uma estação de totem, que era acionada por
qualquer pessoa que apertasse um botão, e a viatura mais próxima era chamada
para se dirigir até o totem.529
Já no primeiro dia essa política foi fortemente criticada pela mídia local, que
ficou observando um dos totens instalados no bairro Alto Boqueirão, durante o período
de quatro horas, em que o totem fica vazio, sem a polícia aparecer. A repercussão
negativa em relação ao projeto fez com que o governador determinasse que a
polícia ficasse junto do totem, então, quando amanhecia o dia, estava lá uma viatura
e um policial em cada totem da cidade, mas eram muitos totens, pois a proposta era
de que a polícia fosse passando em todos. Por falta de efetivo, com o passar do
tempo, vieram policiais até do interior para ficar nos totens e estes não sabiam nem
orientar a população quanto às ruas próximas.530
Isso causou também um transtorno em relação ao número de viaturas, que eram
em número inferior ao número de totens e ainda tinham que atender às ocorrências,
o que fez com que viaturas mais velhas, até as que não andavam mais, fossem
guinchadas para ficar em frente ao módulo paradas. Na opinião do entrevistado, os
totens foram a pior experiência de Segurança Pública, o que refletiu, no ano de
1998, o Paraná enfrentar picos de extrema violência e criminalização.531
Apesar da referência aos picos de violência, em taxas de homicídio, o Paraná,
nesse período, ficava abaixo da média nacional, apresentando no ano de 1998 um

529 Entrevista Cesar Alberto Souza.

530 Entrevista Cesar Alberto Souza.

531 Entrevista Cesar Alberto Souza.


208

índice de 17,6 homicídio por 100 mil habitantes, enquanto a média nacional era de
25,9 homicídios por 100 mil habitantes.532

4.4 Retorno do Projeto Povo e Crise no Sistema Penitenciário

Quando o governo Requião volta ao poder do estado, em 2003/2004, o projeto


POVO é retomado. Sob a orientação do Coronel Cesar e outros, o projeto Povo foi
readequado para a implantação da polícia comunitária, ou seja, buscando a reunião
de esforços com a comunidade e a mudança de mentalidade do policial, o que tornou
possível executar alguns projetos de polícia comunitária, inclusive com a realização
de visitas pela polícia às casas dos moradores do bairro, e que se manteve até o
final do governo Requião.533
Porém, ainda no governo Requião, o Paraná passa a enfrentar uma grande
crise no sistema penitenciário, com superlotação, diversas rebeliões, que acabaram
desviando o foco dos esforços políticos para essas situações. Em 2005 o Paraná
tinha 10.817 presos, em 2006 esse número cresceu para 18.157, ou seja, quase
dobrou. Em 2008 chegou a atingir 23.195 presos e no final do ano de 2009 o Paraná
tinha 350,36 presos por 100 mil habitantes, segundo dados do DEPEN.534
No final da gestão do então governador Roberto Requião, em 2010, o Paraná é
recorde de presos encarcerados em delegacias se comparado com o restante do país,
contando com 16.462 presos provisórios, e destes, 3,5 mil já tinham condenação.535

532 WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência 2012: os novos padrões da violência homicida no Brasil.
Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_pr.pdf>. Acesso em: 28
dez. 2017.

533 Entrevista Cesar Alberto Souza.

534 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL (DEPEN). Sistema penitenciário no Brasil:


dados consolidados. Brasília: Ministério da Justiça, 2009.

535 WALTRICK, R. Paraná tem a maior população de presos em delegacias do país. Gazeta do Povo,
Curitiba, 28 jul. 2011. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/especiais/paz-tem-voz/
parana-tem-a-maior-populacao-de-presos-em-delegacias-do-pais-bexi1os8qbt33epnmab8v4evi>.
Acesso em: 06 dez. 2017.
209

Na tentativa de conter essas rebeliões, que acabaram também desencadeando


outros problemas, a polícia militar é acionada para reprimir essas ações, o que faz
com que a política de prevenção fosse esquecida novamente.
Cabe destacar que esse aumento do encarceramento, a falta de estrutura nos
cárceres e as rebeliões são reflexo dessa política repressiva contínua e de
policiamento ostensivo, que tinha como foco a prisão. Essa política era baseada na
teoria das janelas quebradas, a qual buscava o controle das mínimas incivilidades,
resultando no aumento exponencial do encarceramento, especialmente provisório, o
qual atinge seu ápice no ano de 2010.

4.5 Policiamento comunitário no Paraná e o Sistema Koban

No Paraná, a discussão sobre polícia comunitária teve início quando o Coronel


Roberson Luiz Bondaruk fez o Curso Nacional de Polícia Comunitária, no estado de
São Paulo. Esse curso estava sob a coordenação do Coronel Bibório Cavalcanti.
Bondaruk trouxe essa experiência para o Paraná e montou um projeto-piloto, baseado
no modelo canadense.536

Nós assistimos aí aquele documentário do Canadá, sobre como é a polícia


comunitária, como foi implantada, como ela respeita, como que no Canadá
tem o melhor nível de segurança aqui das américas, né? Então ele tinha
essa inspiração teórica, inclusive a polícia de São Paulo foi até o Canadá,
fez uma visita, veio uma equipe do Canadá, então é o modelo paulista de
polícia comunitária, que fez o congresso nacional de polícia comunitária,
junto com, né, sendo espraiado pro Brasil.537

Quando essa experiência chegou ao Paraná, já tinha o sistema modular de


polícia, por isso houve uma combinação das propostas. Para alinhar essas ideias, o
entrevistado, em conjunto com o Coronel Bondaruk, escreveu um livro chamado
Polícia comunitária: polícia cidadã para um povo cidadão, cuja primeira edição foi

536 Entrevista Cesar Alberto Souza.

537 Entrevista Cesar Alberto Souza.


210

publicada em 2003.538 Inclusive fui presenteada com um exemplar desse livro,


editado em 2014.
A primeira experiência de escrita desse material foi na forma de apostila,
aprovada pela SENASP, e posteriormente o livro, que também foi distribuído pela
SENASP. Os autores ainda participaram do projeto dando aulas, o que contribuiu
para a sua consolidação, tendo como objetivo mudar a cabeça do policial para que
ele possa compreender as bases do policiamento comunitário.539
Porém, o modelo Canadense demora muito tempo para instalar. São dez anos
conhecendo, formando, acertando, conhecendo, escrevendo, implantando, fazendo as
delegacias, os conselhos de bairro e, se a comunidade não aderir, não vai dar certo.
Então, é uma construção social muito boa, que deu muito certo para eles e que
funciona no sistema de legislação, ou seja, é um projeto extremamente democrático,
mas de longo prazo.540
Ainda no começo dos anos 2000, é realizado um Congresso Internacional em
São Paulo, no qual foram apresentados os modelos canadense e japonês, e o modelo
japonês acaba sendo escolhido como mais eficaz para o Brasil.541
Assim, dos anos 2000 a 2004, intensificou-se a conversa com a polícia
japonesa e em janeiro de 2005 foi assinado um acordo internacional de cooperação
técnica com agência japonesa de cooperação internacional – JICA.542
O projeto-piloto de São Paulo previa a implantação de oito unidades com
base no sistema Koban, que seriam bases comunitárias de segurança. Em 2007
esse número foi ampliado para 20, incluindo a região metropolitana de São Paulo, e
na terceira fase desse convênio esse sistema foi implantado em 54 localidades.543

538 Entrevista Cesar Alberto Souza.

539 Entrevista Cesar Alberto Souza.

540 Entrevista Cesar Alberto Souza.

541 Entrevista Cesar Alberto Souza.

542 FERRAGI, C. A. Z. Sistema koban e o policiamento comunitário Paulista. Revista Brasileira de


Segurança Pública, São Paulo, v.5, Edição 8, p.60-77, fev./mar. 2011.

543 FERRAGI, C. A. Z. Sistema koban e o policiamento comunitário Paulista. Revista Brasileira de


Segurança Pública, São Paulo, v.5, Edição 8, p.60-77, fev./mar. 2011.
211

Em novembro de 2008 foi firmado o novo Acordo de Cooperação Técnica,


entre a JICA e a PMESP, com duração de 03 (três) anos, onde a PMESP
comprometeu-se a ser o polo difusor do policiamento comunitário aos demais
estados brasileiros e aos países da América Latina. Para a concretização de
tais objetivos, foram incorporados dois novos parceiros ao Acordo: a
Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), ligado ao Ministério
da Justiça e a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), ligada ao Ministério
das Relações Exteriores. Como parte do Acordo, a SENASP responsabiliza-
se a implantar e implementar o policiamento comunitário no modelo japonês
(sistema Koban) aos estados brasileiros e a ABC responsabiliza-se com
relação aos países da América Latina (Nicarágua, Costa Rica, Guatemala,
Honduras e El Salvador). A PMESP desenvolveu o material didático e o
currículo do Curso Internacional de Polícia Comunitária (Sistema Koban) para
formação de Oficiais das polícias militares de 11 (onze) estados brasileiros
(Acre, Pará, Alagoas, Distrito Federal, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia,
Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Mato Grosso e Goiás) e Oficiais de 05
(cinco) países da América Central (Nicarágua, Honduras, Guatemala,
El Salvador e Costa Rica), que após formados estarão encarregados de difundir
e implantar a filosofia e doutrina do policiamento comunitário aos integrantes
de suas instituições. O Acordo prevê também a participação da PMESP na
assessoria aos estados brasileiros e países da América Central, para implantação
e implementação das BCS, BCSD e Bases Comunitárias Móveis (BCM). 544

O modelo Koban representa, portanto, uma forma de tentar institucionalmente


construir novos objetivos e métodos distintos daqueles aplicados pela Polícia Militar.
O que se viu inicialmente no Estado de São Paulo foi o engajamento dos policiais
mais novos na prática do policiamento sistema Koban, trazendo os problemas da
comunidade e colocando em discussão com seus superiores possíveis soluções.545
O apoio das lideranças da Polícia Militar ao sistema Koban foi fundamental
para implantar esse novo modelo de policiamento comunitário. Essa iniciativa surgiu
da necessidade de melhorar o desempenho institucional e moral da polícia, bem
como para a construção de um novo organismo social integrado à comunidade.546
O Paraná passa a adotar o modelo japonês de policiamento comunitário, chamado
Koban, nesse projeto de expansão da polícia paulista. É a partir desse modelo que o
Paraná organizou as UPSs. Com o sistema Koban e aproveitando a expertise dos

544 POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO. Polícia comunitária: a comunidade e a sua
segurança. Disponível em: <http://www4.policiamilitar.sp.gov.br/unidades/dpcdh/index.php/policia-
comunitaria/>. Acesso em: 25 dez. 2017.

545 FERRAGI, C. A. Z. Sistema koban e o policiamento comunitário Paulista. Revista Brasileira de


Segurança Pública, São Paulo, v.5, Edição 8, p.60-77, fev./mar. 2011.

546 FERRAGI, C. A. Z. Sistema koban e o policiamento comunitário Paulista. Revista Brasileira de


Segurança Pública, São Paulo, v.5, Edição 8, p.60-77, fev./mar. 2011.
212

japoneses, é possível implantar as UPSs em menos tempo. Por isso esse sistema é
muito mais rápido, porque já existe o manual de como fazer, dos lugares para o
policial visitar, já se sabe o que colocar no questionário. Ele é baseado na ideia de
polícia comunitária e o policial presente de forma permanente no local. E, com essas
obrigações definidas, é muito mais rápida e mais eficaz a sua implantação.547
O Paraná tem 10 oficiais da PM que fizeram o curso do sistema Koban, em
2015 e, recentemente, mais quatro comandantes de UPSs da capital também
fizeram esse curso.548 O Paraná tem, ainda, uma coordenadoria de polícia comunitária,
criada em 2010, hoje comandada pelo Tenete-Coronel Rothenburg, que reúne esse
grupo em torno de 15 a 16 policiais. O foco da coordenadoria é tudo o que se refere
à polícia comunitária na Polícia Militar, desde a designação de bases comunitárias
móveis e fixas, até a própria definição de cursos, das diretrizes para procedimentos
operacionais padrão na área de polícia comunitária, ou seja, são vários focos e a
UPS é um deles. Em outras palavras, o objetivo da coordenadoria é estender a
doutrina de polícia comunitária como um todo e fazer com que ela seja bem
aplicada, desmistificar algumas imagens existentes na própria polícia, de uma
subcultura policial de antipatia pela doutrina. O objetivo é passar uma imagem para a
população de que a polícia não está ali só para reprimir, mas para prevenir. 549
Segundo a Tenente Pegorini, primeira comandante da UPS da Vila Zumbi, da
qual se tratará com mais detalhes, o conceito de polícia comunitária é uma doutrina de
polícia voltada para a união de esforços de vários setores da sociedade, em prol de
uma comunidade, para resolver conjuntamente os problemas e alcançar a tão
almejada paz social naquele local. Essa é a polícia comunitária. Policiamento
comunitário já é o ato de você atuar realizando a polícia comunitária; isso é
policiamento comunitário, é a execução da doutrina. Então, há algum tempo, as
escolas de formação da PMPR têm a disciplina de polícia comunitária, tanto no CFO,
que é o curso de oficiais, como no curso de soldados ou qualquer curso interno,

547 Entrevista Cesar Alberto Souza.

548 Entrevista concedida à autora pela Tenente Fernanda Pegorini na sede da Polícia Militar do
Paraná no dia 20 de outubro de 2017.

549 Entrevista concedida à autora pelo Tenete-Coronel Rothenburg na sede da Polícia Militar do
Paraná no dia 20 de outubro de 2017.
213

todos têm polícia comunitária e, inclusive, com uma das maiores cargas horárias,
porque há uma parte teórica e uma parte prática, já que os alunos vão a campo para
praticar a polícia comunitária.550
A corporação, hoje, oferece os cursos de multiplicador e promotor de polícia
comunitária para a tropa em si, além dos cursos em EAD, da SENASP, ou seja,
muitos policiais no Paraná carregam o brevê de polícia comunitária. Do promotor de
polícia comunitária, pelo menos, a maioria carrega. A Polícia Militar do Paraná hoje
está pautada na doutrina de polícia comunitária, em vários aspectos, tanto é que a
Coordenadoria de Polícia Comunitária e o Comandante Geral primam por isso.
O objetivo é falar que todos são policiais comunitários, ou seja, é institucional, tendo
como foco principal a humanização da Polícia como um todo.551
Para Skolnick e Bayley552, realmente o modelo mais abrangente e extenso
existente hoje de polícia comunitária é o japonês, que desenvolveu há muitos anos
esse sentimento de coletividade e participação das pessoas em prol da segurança
local. Essas pessoas organizavam-se em movimentos e cobravam das autoridades
estatais medidas para a melhoria no bairro, passavam informações locais e buscavam
a atuação da polícia para garantir a sua segurança.
Em Tóquio se tem uma média de um policial para cada 200, 218 habitantes, ou
seja, mais do que a cidade do Rio de Janeiro. Tóquio tem 36 milhões de habitantes
e um índice de 0,3 homicídios por 100 mil habitantes. Essa realidade é fruto da
polícia comunitária considerada milenar, sengundo a opinião do Cel. Cesar.553
O policial passa pelo menos duas vezes por ano na casa de cada pessoa
perguntando "como está?" e fazendo entrevistas para saber sobre a realidade dos
moradores daquela casa. Por isso, as pessoas recebem um policiamento personalizado,
além do manual de prevenção, e são convidadas a visitarem o Koban caso tenham

550 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.

551 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.

552 SKOLNICK, J. H.; BAYLEY, D. H. Policiamento comunitário: questões e práticas através do mundo.
Tradução de Ana Luiza Amendola Pinheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

553 Entrevista Cesar Alberto Souza.


214

algum problema, ou seja, o policial acompanha as pessoas e por isso Tóquio é


considerada a cidade mais segura do mundo, porque investe na prevenção.554
Segundo o site da Polícia de São Paulo, no Japão, os Kobans e Chuzaishos
são promovidos na modalidade de policiamento de bairro, instalando-se bases fixas
em territórios delimitados, que vão buscar o apoio da comunidade para promover
uma polícia cidadã, com respeito aos Direitos Humanos, atendendo às expectativas
da comunidade que participam em conjunto com "entidades públicas e privadas na
identificação e resolução rápida dos problemas ligados à segurança".555
No entanto, na pesquisa realizada por Ferragi556, a polícia japonesa é de ciclo
completo, ou seja, realiza todas as funções, desde a investigação, o controle da
ordem pública e o policiamento urbano. Assim, a polícia nacional japonesa vai
especializando essas funções dentro de cada delegacia, isto é, ela apresenta uma
divisão intraorganizacional.
O sistema de polícia japonês é estruturado na forma de polícias provinciais
que estão subordinadas aos municípios através da Agência Nacional de Polícia, que,
por sua vez, é subordinada à Comissão Nacional de Segurança Pública, ou seja, o
sistema policial japonês é harmonizado, como se houvesse uma polícia única, e faz
a parte do policiamento preventivo e da polícia judiciária. A Agência Nacional de
Polícia – JNPA é dividida no departamento administrativo, investigação criminal,
trânsito, segurança e comunicações. Especialmente em Tóquio existe ainda um
Departamento de Polícia Metropolitana.557
O policiamento é dividido em subáreas e com uma estação de polícia com
competência sobre aquela parte da cidade, ficando encarregada da manutenção da
ordem pública e da prevenção criminal.558

554 Entrevista Cesar Alberto Souza.

555 POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO. Polícia comunitária: a comunidade e a sua
segurança. Disponível em: <http://www4.policiamilitar.sp.gov.br/unidades/dpcdh/index.php/policia-
comunitaria/>. Acesso em: 25 dez. 2017.

556 FERRAGI, C. A. Z. Sistema koban e o policiamento comunitário Paulista. Revista Brasileira de


Segurança Pública, São Paulo, v.5, Edição 8, p.60-77, fev./mar. 2011.

557 SOUZA, C. A. Polícia comunitária e gestão integrada. Curitiba: Intersaberes, 2017.

558 SOUZA, C. A. Polícia comunitária e gestão integrada. Curitiba: Intersaberes, 2017.


215

Em cada local existem instalados os módulos policiais, que podem ser de três
tipos: os comuns, chamados de Koban, que seguem a arquitetura do lugar onde
estão instalados e normalmente se destinam a centros urbanos e lugares com grande
fluxo de pessoas, como zonas comerciais e turísticas; os residenciais, chamados de
Chuzaichos, que são destinados para pequenas comunidades e áreas residenciais, e
se destinam também à residência do policial junto de sua família, tendo suas despesas
cobertas pela prefeitura; e os módulos de segurança policial, utilizados em determinadas
instalações. O número de policiais é variado, dependendo das necessidades de cada
lugar. Importante ressaltar que eles funcionam 24 horas por dia.559
Já no Brasil a especialização é extraorganizacional, ou seja, a investigação
criminal é realizada por uma polícia, enquanto o policiamento comunitário é outra
polícia, ambas estaduais. Isso causou desconforto entre os policiais instrutores
japoneses que trabalharam na polícia de São Paulo.560
No Japão o policiamento comunitário, portanto, é vivenciado em todas as
áreas da polícia, já em São Paulo se quer que o policiamento comunitário aconteça
com uma polícia apenas e em determinados lugares, com isso, altera-se o foco do
trabalho policial que antes estava buscando eficiência no controle da “criminalidade”
e hoje busca a adesão da comunidade, o que, na visão de Ferragi 561, é feito apenas
com o intuito de garantir a sua própria legitimidade.
A crítica que se pode apresentar, portanto, a essa adaptação do modelo japonês
à realidade brasileira é de que a polícia comunitária busca maneiras subterrâneas de
legitimar as velhas práticas policiais, busca a mera legitimação da polícia, por isso
se divide em duas, sendo uma comunitária, que colhe informações do cidadão
disfarçando-se de democrática, para repassar a essa segunda polícia, que continua
sendo ostensiva e violenta. Ainda, deve-se observar que o policiamento comunitário
no Japão é feito em todas as áreas da cidade, não se destinando apenas àquelas
áreas consideradas mais pobres ou de risco.

559 SOUZA, C. A. Polícia comunitária e gestão integrada. Curitiba: Intersaberes, 2017.

560 FERRAGI, C. A. Z. Sistema koban e o policiamento comunitário Paulista. Revista Brasileira de


Segurança Pública, São Paulo, v.5, Edição 8, p.60-77, fev./mar. 2011.

561 FERRAGI, C. A. Z. Sistema koban e o policiamento comunitário Paulista. Revista Brasileira de


Segurança Pública, São Paulo, v.5, Edição 8, p.60-77, fev./mar. 2011.
216

A fala da Tenente Pegorini confirma essa tese: "O foco da polícia comunitária
não é proteger o criminoso, e sim proteger o cidadão direito, o cidadão que está ali
esperando pela segurança pública". Ou seja, existe uma polícia para cuidar do
"criminoso", a qual continua empregando os velhos meios policiais, e uma polícia
comunitária para cuidar do "cidadão de bem".
Outra crítica que o Coronel Cesar Alberto Souza teceu em sua entrevista é de
que a ideia da polícia comunitária está viva. Muitos foram formados nessa concepção e
isso faz com que as pessoas façam das tripas coração para mantê-la, mas, diante da
crise de recursos no Brasil, os governantes acabam cortando recursos da segurança.
Foi assim no Rio de Janeiro e também no Paraná. A classe política brasileira como
um todo não valoriza a segurança pública, pois é preciso fazer a manutenção do
número de policiais atuantes. A classe política não vê a segurança pública como
prioridade e as pessoas ainda não conseguem se mobilizar para cobrar.
A polícia comunitária depende muito de a comunidade exigir e participar. É uma
polícia para chamar de sua. Ela está ali para cuidar do bairro todos os dias, e o dia
em que falhar é importante que a comunidade se reúna para cobrar providências 562,
sendo um projeto a longo prazo, o que não atende às demandas eleitorais de curto
prazo como são administradas no Brasil.
Além disso, é preciso realmente superar os preconceitos nos quais o Brasil e
a polícia são forjados. A polícia como sendo o braço repressivo do Estado, coloca
em prática o racismo de Estado seja em face dos afrodescendentes, seja em face da
classe menos favorecida, que são os alvos dessa política que, no modelo brasileiro,
não tem como foco a aproximação com a comunidade, mas a sua neutralização e
morte no sentido biopolítico.

4.6 Projeto Paraná Seguro

No governo Beto Richa, ele se elege com a campanha pela volta dos módulos
policias para as 40 maiores cidades do estado. Frise-se que havia alguns módulos

562 Entrevista Cesar Alberto Souza.


217

fixos, outros móveis, algumas viaturas da POVO, havendo uma mescla dessas políticas
adotadas anteriormente. Nessa gestão, é inaugurado o Escritório de Projetos, e o
então secretário de segurança pública, Reinaldo de Almeida César, convida o Coronel
Cesar para trabalhar em conjunto, quando ele tem a oportunidade de apontar que
apenas o módulo policial não resolveria a questão da segurança.563
Assim, dentro do escritório de projetos, em 2011, havia um grande problema,
que era a falta de recursos para a segurança pública, falta de recursos para investimento,
além de uma série de questões problemáticas, como o encarceramento provisório
em delegacias, a intervenção da polícia militar desde 2001 na Penitenciária Central do
Estado, por conta da rebelião, muitos corpos no IML sem identificação, entre outras
questões. Para resolver essa situação, foi concebido o projeto Paraná Seguro, que
contou com cento e quarenta fontes de financiamento, reaproximação com a Secretaria
Nacional de Segurança Pública, reaproximação com a Secretaria Antidrogas, Criança e
Adolescente, a Patrulha Escolar, que foi reforçada para poder atender prioritariamente
a parte de prevenção com a questão do Proerd em todas as escolas.564
O Projeto Paraná Seguro fora lançado em 16 de agosto de 2011 e previa,
além do aumento de orçamento para a área de segurança pública, a contratação de
novos policiais, delegados da polícia civil, a instalação de mais 400 módulos móveis,
aquisição de viaturas, construção de mais delegacias de polícia, entre outras
propostas de ampliação das forças de segurança pública. Nesse período o Paraná
tinha 17.473 policiais militares e a promessa era de aumentar esse efetivo para
26.747 até 2014.565

563 Entrevista Cesar Alberto Souza.

564 Entrevista Cesar Alberto Souza.

565 RIBEIRO, D.; BOREKI, V. Segurança no PR terá aporte de R$ 500 mi. Gazeta do Povo, Curitiba,
17 ago. 2011. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/pazsemvozemedo/conteudo.
phtml?id=1158857&tit =Seguranca-no-PR-tera-aporte-de-R-500-mi>. Acesso em: 09 dez. 2012.
218

4.6.1 Unidades Paraná Seguro (UPS)

Para as áreas mais vulneráveis, o Coronel Cesar concebeu uma Polícia da


Família, que teria como objetivo cuidar da família, cuidar e melhorar a região como
um todo, trazendo a polícia comunitária, o Proerd e a Patrulha Escolar para todas as
escolas, além de um trabalho de inteligência para retirar toda a “criminalidade” do
local. Assim, estava montada essa polícia da família. É claro, ele vai discutir com o
secretário de segurança pública e com o governador, que já tinham aprovado o
projeto Paraná Seguro. Nesse ínterim foi feita uma carta-consulta ao BID566, que
aprovou o financiamento do projeto. Agora bastava decidir questões estratégicas,
como uma data e um local para instalação dessa polícia.567
Em janeiro de 2012, com a repercussão midiática que se deu sobre o Rio de
Janeiro (frise-se que nesse período as UPPs já estavam instaladas), e orientado
pelo PRONASCI, o governo do Paraná resolve adotar medidas similares e anuncia a
implantação das UPSs – Unidades Paraná Seguro. Mesmo antes de o Governador
anunciar a instalação das UPSs, o Secretário de Segurança Pública já se mostrava
entusiasmado com a ideia, chegando a declarar que o Paraná precisava de algo
semelhante, que o Paraná podia ter a sua própria UPPar. 568
O nome UPS foi atribuído pelo governador durante uma entrevista para a
mídia sobre o projeto Paraná Seguro, em que acabou chamando-as de Unidades
Paraná Seguro.
Tanto o Rio de Janeiro quanto o Paraná investiram nesse modelo, com uma
diferença: o Rio de Janeiro conseguiu entrar nas favelas com o apoio do exército e
das forças especiais do BOPE, retomando o território dos "chefes do morro" para

566 Frise-se que o BID também investiu nas áreas de UPP. (MOURA, A. BID acerta empréstimo de
US$ 70 milhões para ações sociais em áreas com UPP. O Globo, 16 abr. 2012. Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/rio/bid-acerta-emprestimo-de-us-70-milhoes-para-acoes-sociais-em-
areas-com-upp-4661914>. Acesso em: 10 dez. 2017).

567 Entrevista Cesar Alberto Souza.

568 BREMBATTI, K. Estado pode criar suas próprias "UPPar". Gazeta do Povo, Curitiba, 1.o ago.
2011. Caderno Vida e Cidadania, p.6.
219

depois implantar uma unidade permanente de "polícia comunitária", prometendo um


porvir com serviços básicos à população.
Antes de instalar a UPS, policiais do Paraná, inclusive o entrevistado, visitaram
algumas sedes de UPPs.

Até foi muito engraçado porque lá no UPP Cidade de Deus o Major Romeu,
que era comandante, ele abriu a gaveta assim e disse "á, não sei o que cê
tá perguntando, que a gente faz o que o senhor ensinou, aliás, aproveita
aqui e me dá um autógrafo aqui no livro, por favor, que eu já usei pra fazer".569

No entanto, as UPPs, no Rio de Janeiro, segundo Cesar, não são um modelo de


polícia comunitária, mas sim de polícia de proximidade, baseado no modelo francês
de polícia. O então secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, Beltrame, foi
até a Colômbia e conheceu um modelo de polícia de proximidade, experiência na
qual a UPP foi inspirada. O policiamento de proximidade surge de uma canetada, ela
surge dos técnicos se reunirem e dizerem, "não, agora nós vamos, vai ser assim".570
As UPSs foram instaladas sem o apoio do exército, atuando somente as polícias
militar, civil e guarda municipal, além das forças policiais especiais. Seu objetivo era
intervir nas áreas "com alta taxa de tráfico de drogas e homicídios, seguindo critérios
técnicos e estatísticas de criminalidade [...]"571, segundo informação do site da
Secretaria de Segurança Pública do estado.
Conforme informações recebidas do 1.o Comando Regional da Polícia Militar do
Paraná, as Unidades Paraná Seguro foram instaladas na vigência do Projeto Paraná
em Ação, instituído pela Lei n.o 16.583/2010, que tinha como objetivo promover a
cidadania e a inclusão social. As UPSs foram posteriormente regulamentadas pelo
Decreto n.o 8.306/2013, ou seja, após a implantação das primeiras UPSs, determinou-se
a criação de um Grupo Técnico de Execução de políticas públicas de segurança e
desenvolvimento social. Ainda, foi sancionada a Lei n.o 18.377/2014, que tinha foco nas

569 Entrevista Cesar Alberto Souza.

570 Entrevista Cesar Alberto Souza.

571 PARANÁ. Secretaria da Segurança Pública e Administração Penitenciária. Unidade Paraná Seguro.
Disponível em: <http://www.seguranca.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=89>.
Acesso em: 04 dez. 2017.
220

parcerias entre os entes federativos e as entidades privadas, e editado o Decreto


n.o 2.596/2015, que regulamentava as ações promovidas por este grupo.
A proposta do Coronel Cesar era colocar junto das UPSs outros serviços, como
a Secretaria da Criança e da Família, para acompanhar os adolescentes em conflito
com a lei, verificar se o adolescente vai para uma escola, encaminhá-lo para os clubes
de serviço, onde ele tem oportunidade de emprego e renda, ou seja, tem que resolver.
A comunidade e a prefeitura vão fazer aquilo que se chama de "arquitetura contra o
crime", promovendo uma economia contra o “crime” e investindo em educação,
ressocialização e policiamento ostensivo 24 horas por dia. Com isso seria possível
ocupar permanentemente o lugar do “crime organizado”. Coloca-se a estrutura do
Estado e uma forte participação da polícia para que se tenha realmente o policiamento
comunitário muito bem estruturado. Então, as unidades foram projetadas para ter suas
sedes nas associações de bairro, no clube de mães, ou lugares semelhantes, onde se
pode encontrar emprego, renda e cidadania.572
Segundo informações do Portal da Secretaria de Segurança Pública573, precedia
à instalação das UPSs operações inteligência, buscando "prender traficantes, homicidas
e outros criminosos", para, posteriormente, promover operações de congelamento
da área, que levam cerca de 07 (sete) dias, período durante o qual os policiais
chegam à área e fiscalizam os movimentos dos moradores do bairro. Após essa fase
é que se instala efetivamente a UPS, sendo esta composta por policiais militares que
fizeram o curso de policiamento comunitário.
Segundo entrevista com o Coronel Cesar, que esteve à frente do projeto de
instalação das UPSs pela Polícia Militar do Paraná, o primeiro passo na instalação
da UPS é a inteligência, que faz o levantamento dos mandados de prisão e de busca
expedidos na área, bem como identifica possíveis criminosos. Após o levantamento,
delimita-se qual é o espaço onde vai funcionar a UPS e vai chegar o momento em que
será feito o congelamento, no qual são cumpridos os mandados de segurança que
ainda faltam. Tenta-se ao máximo retirar todas as armas, toda a droga, fazer as

572 Entrevista Cesar Alberto Souza.

573 PARANÁ. Secretaria da Segurança Pública e Administração Penitenciária. Unidade Paraná Seguro.
Disponível em: <http://www.seguranca.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=89>.
Acesso em: 04 dez. 2017.
221

buscas e apreensões, fechar bares que são irregulares, "fazer uma limpeza". Feito o
congelamento com o choque, o batalhão de trânsito e a cavalaria, ou seja, com as
unidades que não têm um território específico para cuidar, baseado no modelo das
OSTEs, de São Paulo, Operação Saturação por Tropas Especiais, a região fica sob
os cuidados da polícia durante o período de 30 ou 60 dias.
Depois do congelamento, os policiais, que foram especialmente capacitados
(pois todos fizeram um curso de polícia comunitária para comunidades carentes, do
comandante ao soldado) assumem as UPSs com o compromisso do Estado de
mantê-los por pelo menos um ano na unidade.574
É necessário avaliar esse discurso do Coronel Cesar, pois ainda que grande
entusiasta de uma democratização da polícia, apresenta, desde o início, estar
impregnado da visão de que é necessário fazer uma "higiene social", olhando para o
lugar como se fosse uma região feia, suja, habitada por pessoas doentes, perigosas, e
que o policiamento comunitário é voltado para comunidades carentes, como se
houvesse legitimamente um outro tipo de policiamento comunitário voltado para
comunidades mais abastadas, de sorte que a visão da polícia militar ainda está
impregnada dos postulados da defesa social e do positivismo criminológico.
Na sequência da entrevista, Cesar explica que, quando houver a necessidade
de mudança do efetivo lotado na UPS, vai chegar alguém que fez o curso, que passou
por um estágio de 30 dias, e depois de incorporado é que o outro policial pode sair,
essa é dinâmica planejada. Não é possível garantir que hoje esteja acontecendo
assim, mas até fevereiro de 2013 aconteceu rigorosamente assim. Todos os policiais
que ocuparam as UPSs tinham o curso, mas parte das tropas especiais permaneceram
na área enquanto os novos policiais começam a fazer as visitas nos domicílios,
cadastrar os comércios, implantar em todas as escolas o Proerd575, a patrulha escolar,
começar as reuniões com os conselhos comunitários, uma vez por mês, tendo
as eleições.

574 Entrevista Cesar Alberto Souza.

575 Programa Educacional de Resistência às Drogas e à violência executado por policiais militares
fardados e com um treinamento especifico para essa prevenção.
222

Os policiais que vão para a patrulha escolar e para o Proerd também


participam do curso de polícia comunitária para estarem integrados. Eles frequentam
as UPSs, já que o material deles de Proerd e a viatura ficam no container.576
Depois da implantação da UPS, começa a fase de transparência, que consiste
em reportar aos superiores os acontecimentos, e, por fim, a fase da consolidação.
As fases da UPS são, portanto, inteligência, congelamento, implantação definitiva e
consolidação com um feedback.577
Em Curitiba, o primeiro bairro a receber a UPS foi o Uberaba, em 08 de março
de 2012, segundo o secretário de Segurança Pública do Paraná, por razões
técnicas.578 Ela foi instalada nas Vilas Audi-União, no bairro Uberaba. Essa região foi
escolhida porque ela é emblemática, segundo o Coronel Cesar. Lá houve uma
chacina em 2009, uma guerra de quadrilhas, e com o trabalho de inteligência da
Polícia Civil foi possível identificar as duas quadrilhas, todas as lideranças; no final
de 2011, foram realizadas as prisões dos envolvidos. Cumpridos todos os mandados
e feita "a limpeza", a primeira polícia da família foi instalada, mas acabou sendo
chamada de Unidade Paraná Seguro.579
Durante o processo de instalação da primeira UPS, foram utilizados para o
congelamento e estabilização da área 450 policiais militares e 115 guardas municipais,
durante sete dias. Após esse primeiro trabalho, foi inaugurada a Unidade com um
efetivo inicial de 60 policiais militares, segundo informações do 1.o Comando Regional
da Polícia Militar do Paraná.

576 Entrevista Cesar Alberto Souza.

577 Entrevista Cesar Alberto Souza.

578 LEITÓLES, F.; TAVARES, O. Unidade Paraná Seguro é instalada na região do Uberaba. Gazeta
do Povo, Curitiba, 1.o mar. 2012. Disponível em: <www.gazetadopovo.com.br/pazsemvozemedo/
conteudo.phtml?tl=1&id=1229015&tit=Unidade-Para>. Acesso em: 17 dez. 2012.

579 Entrevista Cesar Alberto Souza.


223

Na primeira reportagem do Jornal Gazeta do Povo sobre a UPS no Uberaba,


noticia-se que

Três pessoas foram presas e 34 mandados de busca e apreensão foram ser


cumpridos na região do Uberaba. Os malotes com os itens apreendidos
foram encaminhados para o 7.o Distrito Policial. Não foi divulgado o que foi
apreendido e nem o motivo da[s] prisões.580

Segundo informações do Primeiro Comando Regional da PMPR, foram realizadas


2.371 abordagens a pessoas e 1.351 abordagens a veículos, além do cumprimento
de 17 mandados de prisão. Consta também das informações prestadas que houve
uma redução de 33% dos homicídios e de 39% de roubo nos seis primeiros meses da
implantação da Unidade de Polícia em relação ao mesmo período do ano anterior.
Quanto aos serviços que são ofertados à população local, destacou o
secretário municipal de Planejamento e Gestão da época, Carlos Homero Giacomini:
"Temos 20 equipamentos públicos naquela área, entre escolas, faróis do saber,
unidades de saúde e outros serviços. A prefeitura não está ausente" [...] "Podemos
agora ampliar a atividade nesses locais". O secretário acredita que após a “pacificação”
o setor privado irá investir na região.581
Após 24 horas de instalação da primeira UPS, o jornal Gazeta do Povo ouve
uma líder comunitária da região que diz não ter sido avisada pela polícia daquela
operação e que os moradores temiam a repetição da chacina que houve na região,
em 2009.582
A segunda UPS foi instalada no bairro Parolin, no dia 10 de maio de 2012.
A operação de congelamento iniciou na semana anterior, com 300 policiais militares e
52 guardas municipais, fazendo 23 pontos de bloqueio. No primeiro dia foram feitas

580 LEITÓLES, F.; TAVARES, O. Unidade Paraná Seguro é instalada na região do Uberaba. Gazeta
do Povo, Curitiba, 1.o mar. 2012. Disponível em: <www.gazetadopovo.com.br/pazsemvozemedo/
conteudo.phtml?tl=1&id=1229015&tit=Unidade-Para>. Acesso em: 17 dez. 2012.
581 TAVARES, O. Governo promete ações sociais no Uberaba a partir de 4. a feira. Gazeta do Povo,
Curitiba, 03 mar. 2012. Disponível em: <www.gazetadopovo.com.br/ pazsemvozemedo/
conteudo.phtml?tl=1&id=1229570&tit=Governo-pro>. Acesso em: 17 dez. 2012.
582 KÖNIG, M.; RIBEIRO, D.; ANÍBAL, F. Um dia e uma noite na primeira UPP do Paraná. Gazeta do
Povo, Curitiba, 03 mar. 2012. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/especiais/paz-
tem-voz/um-dia-e-uma-noite-na-primeira-upp-do-parana-74kx4pyjx6umrtqntppks107i>. Acesso
em: 17 dez. 2012.
224

248 abordagens a pessoas e a 95 veículos. Também houve a apreensão de um


quilo de pasta base de cocaína, 889 gramas de maconha, 50 gramas de crack e 11
máquinas caça-níqueis. A UPS foi inaugurada com um efetivo de 30 policiais com
treinamento em policiamento comunitário, segundo dados do Primeiro Comando
Regional da PMPR.
Consta ainda das informações prestadas pelo Primeiro Comando Regional da
PMPR uma redução de 40% dos homicídios e de 22% de roubo nos seis primeiros
meses da implantação da Unidade de Polícia em relação ao mesmo período do
ano anterior.
Já o CIC tinha a atuação do “crime organizado”, mas uma quantidade irrisória
de policiais, onde uma Unidade de Paraná Seguro apenas não seria suficiente, segundo
o Coronel Cesar. Assim, dentro do Programa Paraná Seguro, foi criado um batalhão
da cidadania, que seria o 23.o Batalhão, com cinco Unidades Paraná Seguro
cuidando só daquele bairro. Na Cidade Industrial também foi implantado um Juizado
Especial Cível e Criminal para atender a região e, com isso, todos os pequenos
problemas são resolvidos ali. Foi solicitado à Polícia Civil que fizesse a mesma coisa em
relação a ter uma delegacia só para o CIC, mas isso infelizmente não foi possível.
Isto seria fundamental na opinião do entrevistado, pois, enquanto a polícia militar foi
para as unidades Paraná Seguro, a polícia civil não foi com a mesma intensidade.583
Também foi criado o 22.o Batalhão, para permitir que fossem instaladas Unidades
Paraná Seguro em Colombo e em São José dos Pinhais, e posteriormente a instalação
de um terceiro novo batalhão reunindo as cidades de Araucária e da Lapa, para
instalar também ali uma Unidade Paraná Seguro. Haveria outra Unidade Paraná
Seguro na região de Pinhais e Piraquara, e com isso se fechariam as cinco regiões
metropolitanas de Curitiba584, mas nem todas essas regiões foram contempladas.
Os critérios que baseavam a escolha dos lugares onde seriam instaladas
essas unidades eram os índices de vulnerabilidade social e de ocorrência de delitos,
segundo entrevista com Cel. Cesar Alberto Souza, bem como pelas informações
recebidas do 1.o CRPM.

583 Entrevista Cesar Alberto Souza.

584 Entrevista Cesar Alberto Souza.


225

Segundo o Coronel Cesar, na primeira fase, ficou definido que seriam implantadas
20 Unidades Paraná Seguro, sendo 10 em Curitiba, cinco na região metropolitana e
cinco no interior do estado. Os comandos regionais da polícia militar e da polícia civil
foram reunidos para que identificassem as comunidades vulneráveis, mas, ao mesmo
tempo, que tivessem uma certa organização para poder dar sustentabilidade, ou
seja, que tivessem um conselho comunitário ou um clube de mães. Também foram
reformados os conselhos comunitários e a coordenação desses conselhos começou a
fazer curso de formação de líderes, curso de organização e mobilização comunitária,
curso de polícia comunitária, cursos em EAD de polícia comunitária, para a
comunidade, no Paraná inteiro, ou seja, trabalhando e fomentando as comunidades
identificadas como vulneráveis.585
No total, as localidades mapeadas que receberam as Unidade Paraná Seguro
foram 14 até o momento, segundo a Secretaria de Segurança Pública do Paraná:

1. Dia 1.o de março de 2012: Bairro Uberaba – Curitiba


2. Dia 3 de maio de 2012: Bairro Parolin – Curitiba
3. Dia 17 de julho de 2012: Vila Sabará – Cidade Industrial de Curitiba –
Curitiba
4. Dia 17 de julho de 2012: Vila Verde – Cidade Industrial de Curitiba – Curitiba
5. Dia 17 de julho de 2012: Vila Nossa Senhora da Luz – Cidade Industrial
de Curitiba – Curitiba
6. Dia 17 de julho de 2012: Vila Caiuá – Cidade Industrial de Curitiba – Curitiba
7. Dia 03 de agosto de 2012: Vila Osternack/Sítio Cercado – Curitiba
8. Dia 17 de setembro de 2012: Vila Sandra/Cidade Industrial de Curitiba –
Curitiba
9. Dia 1.o de outubro de 2012: Vila Ludovica/Tatuquara – Curitiba
10. Dia 13 de outubro de 2012: Vila Trindade/Cajuru – Curitiba
11. Dia 19 de outubro de 2012: Jardim Interlagos – Cascavel
12. Dia 07 de dezembro de 2012: Jardim União da Vitória – Londrina
13. Dia 07 de maio de 2013: Vilas Zumbi e Liberdade – Colombo
14. Dia 08 de junho de 2013: Bairros Guatupê, Cristal e Ipê – São José
dos Pinhais.586

Uma das críticas que o projeto da UPS recebeu é não ter sido colocada uma
unidade na Vila Torres, ainda que tenha sido identificada como área vulnerável e por
ser rota de trânsito entre o aeroporto e o centro da cidade. Segundo o Cel. Cesar, a

585 Entrevista Cesar Alberto Souza.

586 PARANÁ. Secretaria da Segurança Pública e Administração Penitenciária. Unidade Paraná Seguro.
Disponível em: <http://www.seguranca.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=89>.
Acesso em: 04 dez. 2017.
226

comunidade da Vila Torres não estava preparada. Ela tem um poder paralelo, que
se instala onde o tráfico de drogas é muito forte. Embora em Curitiba exista um
tráfico de passagem, há uma parte do tráfico de drogas na área central, que vai do
Largo da Ordem, o Centro Velho, para o Parolin, até chegar na Vila Torres.

que é assim, muito difícil de ser erradicado, porque a demanda é muito


grande. Você fica com dó de ver aqueles rapazes que tão trabalhando em
escritório de advocacia, que são funcionários, gravata na hora do almoço e
dão uma corridinha ali, e pegam a sua pedrinha, porque caíram na coisa.
Quando você entra no problema da droga você não entra num problema
policial, você entra num problema social muito grande. Um problema de
saúde pública e de sociedade. Então, a problemática das drogas é a maior
hipocrisia do Brasil.587

O tráfico de drogas e a hipocrisia com que é tratado desestrutura a sociedade,


o que dificulta a organização para prover a segurança de todos, na opinião do
Coronel entrevistado. Na Vila Torres, além do tráfico de drogas, existe um cartel de
reciclados e recicláveis muito grande. Esse cartel domina as pessoas mais pobres,
mais desassistidas, estabelecendo o que pode e quem pode, o que armazena, quem
pode vender, estabelecendo um controle com violência. No último levantamento feito
pelo entrevistado, havia na Vila Torres 14 becos sem iluminação, sem possibilidade de
passar uma viatura da polícia, vielas pelas quais não passa um carro de bombeiro.
Foram feitas ruas, algumas travessas, um trabalho forte da polícia, mas ainda não
existe ali uma comunidade que foi reorganizada.588
Segundo o Cel. Cesar não seria pela falta de ONGs, uma vez que a PUC-PR faz
trabalhos comunitários nessa região, além de outras instituições que fazem trabalhos
sociais, como "as margaridas" e o clube de mães. Mas, para fazer a reestruturação
desse local seria necessário realocar essas pessoas, construir uma praça, alargar as
ruas e essa medida não seria compatível com a filosofia da polícia comunitária.
Assim, seria preciso investir em educação, legalização dos barracos, e a prefeitura
teria que pagar indenizações para poder alargar as ruas, por exemplo.589

587 Entrevista Cesar Alberto Souza.

588 Entrevista Cesar Alberto Souza.

589 Entrevista Cesar Alberto Souza.


227

"A UPS ela vai aonde tá desestruturado pra tentar onde tem uma comunidade
organizada, onde tem um potencial que você pode aproveitar, que foi, foram as que
a gente instalou. Então é isso que a gente fala".590
Importante destacar que, nesse processo de instalação da UPS, não houve
confronto com a polícia e, na visão da polícia militar, a comunidade recebeu muito
bem o projeto, tanto que o governo era procurado pelas comunidades para pedir a sua
UPS, ou seja, nenhuma área ofereceu resistência, mas isso porque os criminosos
foram identificados e presos na operação de inteligência, o que foi fundamental para
o sucesso da UPS.591
Quanto a situações de abuso de autoridade por parte da polícia, nesse momento
de instalação da UPS, houve uma denúncia no Uberaba de que teria havido um
abuso de autoridade. Foi aberta uma sindicância, foi trazida toda a comunidade Afro
porque era um rapaz negro que teria sido agredido, porém, feita toda a avaliação,
embora a notícia tenha saído no dia como sendo da UPS, não era, segundo o
coronel Cesar. Os policiais prenderam um rapaz que estava cometendo um furto e o
produto do furto estava numa residência que era dentro da área da UPS, mas o fato
ocorreu no Cajuru. Então eles foram lá buscar e depois foram para a delegacia. Assim,
foi feita a investigação pela Polícia Civil, pela Polícia Militar, com acompanhamento do
Ministério Público, e se constatou que não houve nenhum abuso na implantação da UPS,
de ninguém, em momento algum, em todas as 14 que o entrevistado acompanhou.592
Esse fato foi noticiado pela imprensa, que conversou com a vítima e informou
que chegou a sofrer agressões físicas, como choque, além de agressões
psicológicas e racismo por parte dos policiais militares que ficaram por algumas
horas com o rapaz. Não tendo sido localizada qualquer prova, ele foi liberado.593
Conclui o Cel. Cesar que essa política consegue colocar Curitiba a níveis
suportáveis de violência, porque, além das Unidades Paraná Seguro, existem módulos

590 Entrevista Cesar Alberto Souza.

591 Entrevista Cesar Alberto Souza.

592 Entrevista Cesar Alberto Souza.

593 TAVARES, O. OAB denuncia PM por tortura. Gazeta do Povo, Curitiba, 06 mar. 2012. Disponível em:
<www.gazetadopovo.com.br/pazsemvozemedo/conteudo.phtml?tl=1&id=1230463&tit=OABdenunci>.
Acesso em: 17 dez. 2012.
228

móveis que são colocados na praça, na feira, em frente ao shopping, os quais estão
dentro do bairro atuando e com os policiais sempre presentes. Então, com essa
conjugação dos módulos móveis, das Unidades Paraná Seguro e dos novos policiais,
do batalhão de patrulha escolar, é possível fazer com que Curitiba, aos poucos, atinja
níveis suportáveis de violência. Em 2013, o Coronel Cesar, entrevistado, entrou para
a reserva e o projeto não teve continuidade da forma como foi concebido.
Segundo informações prestadas pelo 1.o CRPM, o plano de trabalho da UPS,
elaborado em 2013, atestou que, em um ano de instalação, as Unidades contavam
apenas com a presença da Polícia Militar, e que as regiões contempladas com essa
política voltaram a sofrer problemas na segurança pública, fato que provocava descrença
no Programa Paraná Seguro pela população.
Os principais problemas listados pelos comandantes de UPS verificados no
diagnóstico preliminar nas áreas policiadas são:

a) saneamento básico, áreas de invasão, lixo acumulado nas ruas, vias


públicas sem asfalto e calçada, falta de iluminação pública em praças, ruas
e parques, estrutura de segurança, mato alto, construções abandonadas;
b) crianças fora da escola no contraturno;
c) gravidez na adolescência;
d) envolvimento de crianças e adolescentes com drogas;
e) Consumo de álcool e drogas por grande parte da população de baixa renda;
f) Falta de documentos;
g) Falta de trabalho e renda para jovens e adultos;

Para tanto, buscando colocar em prática as ideias iniciais do projeto, houve a


criação de um Termo de Cooperação Técnica n.o 001/2013 – SEJU, firmado entre Estado
do Paraná, Município de Curitiba, Tribunal de Constas do Paraná, Ministério Público do
Paraná e Federação das Indústrias do Paraná, cujo objeto era:

[...] compatibilizar, no âmbito de interesse, competência e atribuição dos


partícipes, o planejamento e a execução de ações integradas de
desenvolvimento e cidadania nas Unidades Paraná Seguro (UPS), capazes
de contribuir para a melhoria da segurança pública e da qualidade de vida
das pessoas e a paz social iniciando-se por Curitiba.

Ou seja, fica claro o atendimento ao setor privado da economia que precisa


se expandir, o qual recebe apoio estatal, bem como que nada diferente será feito,
além de medidas paliativas, como a confecção de documentos e a limpeza de
terrenos. Nenhum serviço será ampliado ou mesmo oferta de vagas no mercado de
229

trabalho estão previstos no plano de ação, não havendo uma verdadeira política de
inclusão e reconhecimento.
Isso fica claro nas conclusões apresentadas nas informações prestadas pelo
Primeiro Comando Regional da PMPR, de que, embora os resultados iniciais tenham
sido positivos, após cinco anos de implantação das UPSs, não é possível verificar
evolução no projeto, já que o envolvimento de esforços dos órgãos públicos e entidades
privadas não se concretizou.

Várias ações foram iniciadas ao logo nos primeiros meses da implantação da


UPS pelos atores envolvidos, mas com curta duração ou resultados pouco
significativos; suas ações ficaram restritas, ainda, há mutirões realizados em
datas específicas nas comunidades, não representando uma tomada de
responsabilidade social de maneira efetiva e duradoura e apenas relegando
esta missão à Polícia Militar, que permanece nos locais até hoje. Dados
mais atuais sobre os projetos desenvolvidos apontam uma redução da
concentração de esforços linearmente ao decurso do tempo, em especial à
relativa à participação dos stakeholders protagonistas nos anos anteriores.
A questão material atualmente não é a ideal. Em 2017, são 10 o UPS em
Curitiba. Uma delas (UPS Trindade – Cajuru) teve sua sede transferida, e
atualmente seu efetivo usa como sede a UPS Uberaba. Das outras, 4 estão
instaladas em inadequadas e provisórias estruturas feitas de Container
metálico (Nossa Senhora da Luz, Vila Verde, Caiuá e Osternack); e somente 4
estão em instalações adequadas para garantir a dignidade dos policiais e a
plenitude do atendimento comunitário.
[...]
Contudo é inegável que o projeto não atingiu completamente as metas
estabelecidas durante sua implementação, menos por falta de uma visão
institucional voltada à concretização dos objetivos do programa do que por
falta de coordenação e apoio dos demais órgãos envolvidos e essenciais à
estratégia do policiamento comunitário, participativo e social. 594

Atualmente, o governo estadual parece ter abandonado o projeto, não investindo


na manutenção das UPSs. Inclusive algumas UPSs foram desinstaladas, como é o
caso do Cajuru, Ludovica e Tatuquara. A UPS da Vila Trindade foi unificada com a
UPS Uberaba595 e constata-se também a redução de policiais nas unidades.
Além disso, os atuais índices de violência de Curitiba não refletem a visão de
que as UPSs previnem a ocorrência de delitos. Segundo a reportagem do G1, nos
três primeiros meses do ano de 2016, Curitiba registrou um aumento do número de

594 Anexo 6 – Informação 007/2017 – 1.o CRPM.

595 RIBEIRO, D.; ANTONELLI, D. Unidades Paraná Seguro: população critica programa parado.
Gazeta do Povo, Curitiba, 25 fev. 2016.
230

homicídios de 11,5%, se comparado com o mesmo período do ano anterior. Chama


a atenção, ainda, o fato de que justamente os bairros onde foram instaladas as UPS
estão no topo da lista em número de homicídios no primeiro trimestre do ano de 2016:

- Cidade Industrial – 19
- Cajuru – 14
- Sitio Cercado – 13
- Tatuquara – 11
- Uberaba – 8
- Umbará – 8596

Nas regiões metropolitanas o fenômeno se repete, sendo apontadas


principalmente aquelas cidades que receberam as UPSs como as cidades com o
maior número de homicídios no primeiro trimestre de 2016:

- São José dos Pinhais – 42


- Colombo – 30
- Araucária – 17
- Fazenda Rio Grande – 16
- Almirante Tamandaré – 15597

Assim, verifica-se que a UPS foi um projeto temporário e que foi utilizado
também para fins eleitorais, aproveitando a veiculação midiática do projeto das
UPPs no Rio de Janeiro e a injeção de recursos do BID e da União no âmbito da
segurança pública, não tendo produzido resultados efetivos de prevenção e redução
da violência a médio e longo prazo, que foi apenas deslocada das áreas alvo dessa
política. Ademais, a falência do projeto hoje é atribuída à falta de esforços da
comunidade em geral, que não permaneceu engajada no projeto, conforme já havia
alertado Garland.
É visível que o Paraná, embora com menor ostentação de armas, aplica o
paradigma do direito à segurança, e que a população e as mídias locais acreditam

596 DIONÍSIO. B. Número de homicídios cresce 11,5% em Curitiba no primeiro trimestre. Globo, 26
maio 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/05/numero-de-homicidios-
cresce-115-em-curitiba-no-primeiro-trimestre.html>. Acesso em: 22 dez. 2017.

597 DIONÍSIO. B. Número de homicídios cresce 11,5% em Curitiba no primeiro trimestre. Globo, 26
maio 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/05/numero-de-homicidios-
cresce-115-em-curitiba-no-primeiro-trimestre.html>. Acesso em: 22 dez. 2017.
231

que a presença da polícia nas ruas é eficaz para reduzir a violência. Em nenhum
momento a reflexão leva em consideração as causas da violência, apostando apenas
na repressão das consequências visíveis, reproduzindo a concepção de que mais
polícia é mais segurança, ou de que a segurança depende da polícia.

4.6.2 A implantação da UPS na Vila Zumbi

Também tive a oportunidade de entrevistar a Tenente Fernanda Pegorini,


primeira comandante da UPS da Vila Zumbi, implantada oficialmente em 8 de maio
de 2013. Essa entrevista guiará a exposição nesse tópico da implantação da UPS da
Vila Zumbi, que foi uma das últimas unidades a serem instaladas no estado.
Embora a inauguração da UPS tenha uma data fixa, o trabalho para que ela
fosse instalada começou em torno de dois a três meses antes, em decorrência do
planejamento, da fase de inteligência, que é a primeira etapa de instalação de uma
UPS, bem como o planejamento do local, o conhecimento das pessoas, dos líderes
comunitários e das reuniões. A seleção de área e o planejamento é feito pela
Secretaria do Estado de Segurança Pública (SESP).598
Sendo verificado que uma determinada área tem uma alta taxa de homicídios,
como era o caso da Vila Zumbi e Liberdade, seja em decorrência do tráfico, seja em
decorrência de roubos e latrocínio, aliada à associação ao tráfico e outros crimes,
esses são fatores determinantes na seleção como área chave para a instalação de
uma Unidade Paraná Seguro. Todas as UPS seguiram essa linha.599
No começo, o planejamento foi feito pela SESP, que verificou a área, levantou
alguns pontos problemáticos e, junto com a polícia civil, executou os mandados de
busca e apreensão e de prisão, com o apoio do Ministério Público e do poder judiciário
de Colombo, ou seja, todas as autoridades locais também foram envolvidas nesse

598 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.

599 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.


232

processo. Com essa ajuda conjunta, foi possível verificar onde estavam os pontos-
problema para fazer o congelamento.600
No dia do congelamento em si, foi solicitado apoio de várias unidades da capital,
como o BPTRAN, o BOPE, a ROTAM local e a ROTAM das outras áreas. Segundo a
entrevistada, foram cerca de 300 a 500 policiais só para esse congelamento da Vila
Zumbi e Liberdade. Todas as pessoas na rua, de maneira geral, receberam a
abordagem policial para verificação de documentos, posse de armas e drogas. Feita
essa abordagem inicial, o que se espera é que se afaste a “criminalidade”. Nesse dia
foram feitas várias prisões, foi realizado um número altíssimo de abordagens e, com
tudo isso, foi possível afastar a “criminalidade” daquele local. Afastando essa
“criminalidade”, ela migrou para as áreas próximas, como Jardim Cláudia, em Pinhais,
Campina Grande do Sul, Bairro Alto-Maracanã, em Colombo mesmo. Embora ela
tenha migrado, segundo a entrevistada, na área-risco eliminou-se o problema, então,
dentro da área limítrofe da UPS, foi mantido o policiamento local, o que causou a
redução de homicídios registrados.601
Segundo Pegorini, como esse movimento de migração já é conhecido pela
experiência policial, foi conversado com os comandantes de companhias daquelas
regiões vizinhas e, antes do próprio congelamento, a polícia militar intensificou o
policiamento nessas áreas, ou seja, nesse momento, esses comandantes da companhia
estavam atuando em conjunto.
Verifica-se que a visão da tenente é impregnada da concepção da ideologia
da defesa social e de que o crime e o criminoso são problemas a serem eliminados;
seriam doenças sociais que afetam a tranquilidade das "pessoas de bem" – expressão
repetida diversas vezes durante a entrevista –, além de exacerbar o trabalho da
polícia como um trabalho de combate ao crime e de repressão.
Segundo noticiado pela Gazeta do Povo, aproximadamente 150 policiais
militares, além da polícia civil de Colombo e a polícia rodoviária federal participaram
da operação, que iniciou às 5h30 da manhã. Após uma semana, o efetivo seria
reduzido e oficialmente inaugurada a UPS, com policiais que fariam "os atendimentos

600 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.

601 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.


233

das ocorrências, como também o policiamento comunitário", segundo informações


prestadas pelo comandante da operação.602
Ainda, segundo o comandante da operação, os índices de homicídio da
região, motivo da escolha das Vilas Zumbi e Liberdade, já estão em redução desde
a instalação do 22.o batalhão de polícia, sendo a UPS instalada para complementar
esse trabalho.603
Ao mesmo tempo, a reportagem registrou a desconfiança da população, que
já viu a instalação de um módulo policial na Vila, mas que não conseguia atender às
demandas de ocorrências.604
Quando a entrevistada trabalhava na área do 22. o batalhão, responsável pelo
policiamento da área, havia uma taxa de cinco a sete homicídios por mês em média
na Vila Zumbi/Liberdade. Depois da instalação da UPS, no início ao menos, a taxa
de homicídio caiu para um homicídio no ano inteiro, o que demonstra, na sua
opinião, a eficácia da instalação da UPS na área. Já em relação aos índices de
registro de furto e roubo, estes tiveram um acréscimo, assim como do delito de
perturbação do sossego, que seria decorrente do estabelecimento da relação de
confiança entre a população e a polícia, o que não havia antes da instalação do
policiamento comunitário, que é o foco da UPS.605
No entanto, os índices de homicídios na Cidade de Colombo, cidade onde
estão localizadas a Vila Zumbi e Liberdade, tiveram uma variação para menor apenas
nos três primeiros meses de instalação da UPS, depois voltou ao "normal", embora
na área da UPS tenham havido apenas dois homicídios no primeiro ano de instalação
da unidade, demonstrando que essa atuação pontual desloca a violência para outras
áreas que não receberam a mesma atenção dessa política de segurança.

602 LEITÓLES, F. Colombo recebe a 1.a Unidade Paraná Seguro da RMC. Gazeta do Povo, Curitiba,
07 maio 2013.

603 LEITÓLES, F. Colombo recebe a 1.a Unidade Paraná Seguro da RMC. Gazeta do Povo, Curitiba,
07 maio 2013.

604 LEITÓLES, F. Colombo recebe a 1.a Unidade Paraná Seguro da RMC. Gazeta do Povo, Curitiba,
07 maio 2013.

605 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.


234

Além disso, o aumento do número de registros de furtos e roubos, segundo a


entrevistada, teria sido decorrente da relação de confiança da população no trabalho
policial, mas essa questão deve ser problematizada, já que essa relação de confiança
não é imediata, não ocorre de forma instantânea, sendo que o aumento dos registros
de ocorrências certamente se deu pela facilidade de acesso à polícia, o que não
acontecia antes, pois esses números eram encobertos pela cifra oculta.
Quando a Tenente Pegorini assumiu a UPS da Vila Zumbi, ela tinha um ano e
meio de formada, era aspirante a oficial, ou seja, tinha mais ou menos três anos de
formação. Antes de assumir essa função, ela fez, além dos cursos habituais, o curso
de promotor de polícia comunitária pela SENASP, o curso de multiplicador de polícia
comunitária com ênfase no "Craque, é possível vencer" e também o curso de uso
progressivo da força e meios não-letais, em 2013. Em 2015 foi para Minas Gerais
fazer o curso internacional de polícia comunitária, sistema Koban, curso ofertado
pela JICA.
Segundo a tentente, esse convênio busca trazer a experiência de mais de 200
anos de polícia comunitária do Japão. Eles chamam os peritos, que são policiais
japoneses, para virem ao Brasil passar a sua experiência e ensinar suas técnicas
para melhorar a polícia comunitária brasileira. Ao mesmo tempo, alguns oficiais
brasileiros estão indo para o Japão para fazer esse curso e ter uma visão da polícia
local japonesa. No ano de 2016 vieram alguns peritos japoneses para o Paraná para
fazer essa troca de experiências, além de visitarem as UPSs e verificarem alguns
pontos positivos, como a forma de aproximação do brasileiro, que é diferente da
japonesa, o que acaba facilitando, trazendo bons frutos para o Brasil em relação à
dificuldade que os japoneses têm nesse início.606
Além da comandante, os policiais da UPS da Vila Zumbi na época ou eram
policiais recém-saídos da escola, que tinham essa formação de polícia comunitária,
ou eram policiais que tinham o curso de polícia comunitária.607
No início da UPS havia um efetivo de duas viaturas diuturnamente nas ruas,
além de uma equipe de polícia PPE, ou seja, de policiamento a pé, que ia de casa

606 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.

607 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.


235

em casa, fazendo as pesquisas e conseguindo todas as informações dos familiares.


A doutrina de polícia comunitária traz que, para conseguir instituir essa forma de
organização policial, é preciso saber quais são os problemas da comunidade, além
de buscar ampliar esse contato. Para tanto, é feita uma pesquisa de casa em casa,
ou de comércio em comércio, perguntando para a população o que mais a aflige,
que tipo de delitos acontece na sua rua, se a pessoa já foi assaltada ou roubada nos
últimos tempos. Ou seja, a pesquisa tem como foco a “criminalidade sofrida”, a
“criminalidade observada” e a coleta de sugestões para a UPS.608
É importante frisar que esse contato com a população se dá após a instalação
da UPS e não antes, ou seja, os moradores locais não são ouvidos antes da
instalação da UPS. Essa seria a metodologia do sistema japonês de policiamento e
por isso haveria a facilidade e agilidade na sua implantação.
A pesquisa tem como foco também observações de outras naturezas, como a
iluminação na rua – "uma lâmpada quebrada pra uma pessoa civil lá fora, ela não é
nada, pra gente é um problema gravíssimo, que é um local obscuro, um local ermo
que se torna um ponto propício pra um roubo". Pedidos como esse são levados para
a prefeitura, cujo apoio, especialmente no interior e na região metropolitana, era
maior, assim como das autoridades civis eleitas, que estão junto com a UPS fazendo
o planejamento.609
O foco, nessa época, foi fazer, além das visitas comunitárias, palestras em
colégios e escolas municipais e estaduais da região; reuniões com a comunidade;
também foi colocado em prática o cumprimento de algumas leis municipais que não
estavam sendo cumpridas, como o horário de fechamento de bares, até 23 horas dia
de semana e meia-noite final de semana. Na época em que a entrevistada estava no
comando da UPS, fazia isso ser cumprido, porque o bar aberto traz um leque de crimes
para resolver depois, como perturbação do sossego, violência doméstica, lesão corporal,
homicídio, embriaguez ao volante, e com essa medida atuava-se na prevenção.610

608 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.

609 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.

610 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.


236

A metodologia de trabalho da UPS é muito semelhante à doutrina das janelas


quebradas, pois aposta no controle do que são consideradas pequenas incivilidades para
se obter a almejada paz social. No entanto, tal metodologia não pode ser empregada
como policiamento comunitário se não houver a real integração com a comunidade.
Foram verificados, também, os alvarás de funcionamento, o que se constatou
ser bastante problemático, porque as pessoas não têm alvará, por ser uma área de
invasão. A COHAPAR – Companhia de Habitação do Paraná também estava auxiliando
nesse processo para verificar as famílias que ainda não tinham seus documentos
de residência.611
Com essa visão, a tenente traz a discussão da criminologia ambiental
desenvolvida na Escola Sociológica de Chicago, a qual destaca justamente fatores
ecológicos e ambientais que podem influenciar na ocorrência de situação de conflito
e até mesmo situações de violência.
Umas das medidas tomadas pela comandante da UPS foi espalhar no bairro
caixas de sugestões, deixadas na igreja, nos colégios e em frente à UPS. Todo mês
essas caixas eram recolhidas e abertas e normalmente encontravam-se muitos elogios,
algumas críticas, mas poucas, e até relato de um policial que se excedia na abordagem,
agindo com violência, o que foi prontamente reprimido e corrigido, segundo a
entrevistada. Não houve, portanto, nenhuma denúncia por abuso de autoridade porque
era possível identificar e corrigir a situação antes de ela acontecer.612
Assim, na perspectiva da entrevistada, "a UPS Zumbi eu posso dizer que foi uma
UPS que funcionou, de um bom tempo lá, ela funcionou porque nós percebemos a
melhora da confiança da comunidade".613
Logo no início, a UPS foi bem recebida pela comunidade. Isso ficou perceptível,
segundo ela, porque alguns moradores passaram a levar bolo e pastel para os
policiais, além de passarem para tomar café e conversar na sede da UPS. Alguns
moradores pediam para os policiais "pelo amor de Deus pra não sair dali", o que foi

611 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.

612 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.

613 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.


237

algo positivo, na sua perspectiva, pois isso significa demonstração de confiança da


comunidade no trabalho policial.614

Tínhamos informação de mãe que foi na nossa sede lá, que falou que o filho
dela resolveu sair do mundo do crime porque não estava conseguindo sair
de casa armado, ela falou pra gente isso, "meu filho acabou se desfazendo
da arma e arrumou um emprego", ela falou "eu vim agradecer vocês". Pra
gente, esse é o melhor fruto. Que, com certeza, uma pessoa que saiu do
mundo do crime e acabou indo pro lado bom, por mais que seja por falta de
oportunidade naquele setor ali, reduziu a criminalidade, então, nós tivemos
o objetivo alcançado.615

No começo da UPS, pela manhã, a viatura da polícia também acompanhava


as crianças na ida para a escola e algumas eram convidadas a pegar carona na
viatura; depois das primeiras vezes virou briga entre as crianças porque todas queriam
carona para a escola.616

Então, a gente chegava na escola era um agrado muito grande, eles abraçavam,
pediam pra gente, conversavam com a gente, paravam, fazia rodinha de
criança à nossa volta ali, conversando e eles levam essa informação pra
família. A polícia aqui, a polícia é amiga, a polícia ajuda à população.617

Claro que não existia esse relacionamento com todos, porque, segundo a
tenente, a "criminalidade não quer saber da gente, mas as famílias de bem querem.
A família de bem quer a polícia por perto".618
O fato de fazer as crianças andarem na viatura, por si só, deve ser objeto de
crítica, pois o que elas precisam não é de polícia, mas educação, saúde, boa
alimentação, para que possam se desenvolver com dignidade. Embora a tenente
tenha evidentemente boas intenções e acredite na atividade da polícia, acredite na
metodologia do policiamento comunitário, ela não percebe como a instituição é

614 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.

615 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.

616 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.

617 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.

618 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.


238

utilizada para o controle social dos pobres, naturalizando a sua presença na favela,
como se a favela fosse um problema da polícia. Essa proximidade com a instituição
policial é incentivada apenas nas camadas menos favorecidas, estabelecendo-se os
vínculos para a seleção policizante de que nos alerta Zaffaroni e Nilo Bartista619.
Segundo a entrevistada, havia, por parte de algumas pessoas, uma relação
de hostilidade, normalmente daquelas pessoas que já tinham uma passagem pela
polícia ou pelo sistema penitenciário. Nesses casos, quando a equipe passava nas
casas para fazer o questionário, eles batiam a porta na cara. "Não, aqui polícia não
entra", então, naquela casa, sabia-se que havia pessoas com uma hostilidade um
pouco maior, mesmo pessoas que já estavam quites com a sua situação criminal,
muitas vezes já estavam com o alvará de soltura, mas eles, obviamente, e a família
inteira não gostariam da polícia.620
Um dos fatos salientados pela Tenente Pegorini foi quando chegou na creche
da Vila Liberdade pela primeira vez e uma criança de dois anos de idade, ao lhe ver
fardada, perguntou: "tia, foi você que matou o meu pai?" Segundo ela, o papel da
polícia comunitária é mostrar que a polícia não é isso, que a polícia é diferente, “que
a polícia não está ali pra matar o pai daquela criança”.621
Embora algumas pessoas tratassem os policias com hostilidade, não houve
confronto, pois, segundo a entrevistada, as pessoas consideradas perigosas e
“criminosas” ou saíram da área ou foram presas na operação de inteligência
e congelamento.622
Nesse período de implantação, houve apenas um homicídio de um menino
que tinha saído do Centro de Educação para adolescentes em conflito com a lei. No
dia seguinte da sua liberdade, passou um veículo de fora na Vila e o executou na
rua Aleixo Schluga, saindo da Vila sem ser reconhecido. Esse foi o único homicídio
que ocorreu em um ano na Vila, e era um jovem ligado ao tráfico, já identificado.623

619 ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito penal brasileiro: teoria geral
do direito penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v.1.
620 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.
621 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.
622 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.
623 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.
239

A ligação da Vila com o tráfico era intensa, o que causava diversos conflitos
por ponto, segundo Pegorini. Isso foi identificado nas primeiras pesquisas da
inteligência, mas reduziu bastante com a presença policial. O tráfico no Paraná não
tem ligação com facções. Ouve-se muito falar em PCC, mas não existe nenhuma
informação comprovada, apenas boatos.624
Alguns moradores relatavam que, em tempos anteriores, havia pessoas armadas
na rua, que a rua era fechada para fazer festas, o que incomodava bastante a
vizinhança, situação que não se repetiu com a chegada da UPS.625
Uma das críticas feitas pela Tenente Pegorini foi a de que, infelizmente, um
problema geral com as UPSs é que a polícia acabou sozinha. Ficaram apenas a
polícia e a comunidade. No começo, havia um apoio de polícia comunitária, mas hoje
ficou apenas o policiamento comunitário. Quando essa força se perde, da doutrina
de polícia comunitária que aponta para a união de todos os esforços em prol daquela
comunidade, há uma perda muito grande, o que acabou trazendo uma imagem um
pouco mais defasada da UPS, especialmente nas áreas de Curitiba.626
Na Zumbi, no Guatupê e no interior, isso é um pouco mais ameno, justamente
por um apoio maior dos outros órgãos, segundo a entrevistada. Em Colombo havia o
apoio da imprensa local. O Jornal de Colombo apoiava a UPS e havia apoio dos
comerciantes, dos empresários do Centro Industrial Mauá, que são empresas
financeiramente mais ativas, e da própria comunidade, que apoiou muito no começo.
Também existia o apoio de autoridades civis eleitas, da polícia civil e da COHAPAR,
além da prefeitura, então, era possível fazer um trabalho em conjunto num primeiro
momento, para conseguir melhorias para a própria Vila.
Em 2014 foi assinado o Termo de Cooperação Técnica n. o 13/2014 – SEJU,
pelo Governo do Estado, o Município de Colombo, a Federação das Indústrias do
Paraná, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial do Paraná e o Serviço Social
da Industria, Departamento Regional do Paraná. Esse termo de cooperação tinha
como objetivo principal:

624 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.

625 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.

626 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.


240

[...] compatibilizar, no âmbito de interesse, competência e atribuições dos


partícipes, o planejamento e a execução de ações integradas de desenvolvimento
e cidadania nas Unidades Paraná Seguro (UPS) instaladas no Município de
Colombo, capazes de contribuir para a melhoria da segurança pública e da
qualidade de vida das pessoas e paz social, iniciando-se pela UPS Vila Zumbi.627

Esse termo foi assinado justamente porque, depois do primeiro ano de


instalação da UPS, não se viram mais os mesmos resultados, sendo necessário
retomar essas parcerias para dar continuidade ao projeto. Nas UPSs de Curitiba
também não ocorre mais como no começo, justamente por conta dessa situação.
O que ainda acontecem são os Mutirões da Cidadania, organizados pela UPS
Cidadania e promovidos pela SEJU. Esses mutirões são chamados de UPS Cidadania
quando são realizados na área da UPS, ou de Paraná Cidadão, quando o evento
ocorre em uma área que não tem UPS. Isso seria uma forma de promover a polícia
comunitária, segundo Pegorini, porque estão envolvidos todo um grupo do Estado,
todos os órgãos governamentais e também a mídia, atuando junto com a comunidade
para resolver alguns problemas. No entanto, essa atuação é pontual, pois dura em
torno de 5 dias. Porém, eles conseguem fazer vários cadastros de famílias que
necessitam de algum serviço e depois é dada continuidade a esse atendimento fora
dali. A COHAPAR, por exemplo, é chamada para fazer o cadastro, então, ela prepara a
regularização de contas de água, luz, verificação de quem não tem ainda esgoto, ou
seja, é feito o cadastro e verificação de quem precisa desses serviços mais essenciais.628
Novamente, o que se verifica é a atuação do Estado em prol da regularização
da oferta dos serviços públicos, visando a apropriação em parte das economias
populares, exigindo o pagamento de taxas mínimas para a utilização dos serviços.
Pude participar de uma ação da UPS Cidadania na Vila Liberdade, realizada na
escola estadual professor Altair da Silva, nos dias 04 e 05 de março de 2016, com os
alunos da instituição onde leciono, fazendo a orientação jurídica dos interessados.
Tive a oportunidade de verificar como se dá essa atuação, que reúne órgãos como a
empresa de água e esgoto do Paraná – SANEPAR, a empresa de iluminação, como
a COPEL, além da polícia militar, Instituto de Identificação, professores e alunos que

627 Anexo 12 - Termo de Cooperação Técnica n.o 013/2014.

628 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.


241

realizaram atividades culturais. Também tive a oportunidade de conversar com algumas


pessoas. Essa ação social, segundo a responsável na SEJU pela organização, acontece
uma vez por ano, em cada lugar considerado área de vulnerabilidade social, havendo,
portanto, uma agenda rotativa dos mutirões. Perguntei a ela se era preciso pedir
uma espécie de autorização para as lideranças comunitárias e até para o comércio
de drogas, e ela disse que não, embora saibam que eles circulam no evento, assim
como seus familiares, para verificar a atuação do Estado e da polícia. Ou seja, é
uma ação pontual e descontínua, não havendo a presença dos serviços essenciais à
população de forma permanente.
Em relação aos demais serviços realizados na Vila, é importante frisar que foi
construída uma praça com uma pista de skate após um trágico episódio em que um
vigilante, que ficou irritado com o barulho do skate, acabou matando uma menina,
segundo Pegorini. Embora tenha sido preso em flagrante e a polícia tenha feito o
seu papel, houve essa morte. Então foi construída a praça do skate para que os
jovens tenham um lugar saudável e dedicado para aquilo.629
Quando entrevistado o vereador da região, Sidinei Campos, essa praça foi
objeto de questionamento, já que ali, segundo ele, ficam muitos jovens fumando. Sobre
esse questionamento, a Tenente Pegorini afirmou que: "a partir do momento que colocou
uma praça de skate lá, tem que colocar uma iluminação pública adequada, tem que
ter uma pintura, um local, vamos dizer assim, com uma aparência boa, por causa da
teoria das janelas quebradas".630 Caso contrário, o local fica mais vulnerável à
“criminalidade”. Além disso, deve haver segurança no local, feita pela guarda
municipal, ou pela polícia militar, para não deixar a praça virar um local de consumo
de drogas, pois o objetivo da praça era que fosse algo para recreação.631
A região é objeto de ocupação e a maioria das pessoas veio de fora de Curitiba.
Algumas famílias vieram do Nordeste, alguns moradores são paupérrimos e chegam
a passar frio, tanto que a UPS teve que acionar a ação social, como a APOIO, para
ajudar. Algumas famílias também vinham do interior do estado. A condição financeira,

629 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.

630 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.

631 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.


242

socioeconômica da população, na grande maioria, era baixa, segundo a entrevistada.


Na rua central, a Aleixo Schluga, é uma população de uma classe econômica um pouco
mais elevada; na Vila Liberdade também tem alguns pontos que são mais estruturados,
mas o foco de atuação da UPS era na região bem pobre, que receberam casas pela
COHAPAR ou pela COHAB, pois já eram pessoas em situação de pobreza.632
Uma situação relatada tanto pela Tenente Pegorini quanto pelo vereador
Sidnei Campos é de um senhor que gastava toda a sua aposentadoria em remédios
e não lhe sobrava dinheiro para comida, sendo sustentado pela vizinhança, ou seja,
ele realmente passava fome. Quando essa situação foi verificada, houve uma
mobilização da comunidade para buscar informações e ele fez o cadastro no posto de
saúde para pegar os remédios de graça, principalmente para ele poder se sustentar.
Hoje, todo mês a associação de moradores presta essa assistência a ele, levando-o
ao posto de saúde para retirar os medicamentos. Dessa forma, famílias em situação
paupérrima, de passar fome, são poucas, mas em situação de baixa renda são muitas.
A maioria dos moradores da Vila trabalha, seja na própria Vila, seja em Curitiba.
Alguns trabalham como mestres de obras e pedreiros, por exemplo. Havia uma parceria
entre a UPS e o Alphaville, o Centro Industrial Mauá e o Santa Mônica Clube de
Campo para tentar alocar esses trabalhadores, no entanto, conversando com duas
moradoras do local, elas disseram que poucas pessoas da Vila conseguem emprego
nesses lugares. Elas mesmas já mandaram currículo e nunca foram chamadas.
No início dessa parceria, as empresas apoiavam a UPS emprestando lugares
muitas vezes para fazer uma reunião, como era o caso do Alphaville, que cedia o salão
de festas para isso. Ou, quando faltava alguma coisa, eles se ofereciam para
providenciar, já que a prestação do Estado é mais demorada. O Alphaville ajudava
também com as câmeras de segurança e as imagens, muitas vezes, ajudavam em
algumas situações criminais na Vila. O Clube de Campo Santa Mônica também
ajudava e o próprio Centro Mauá, com a empresa Acorgraf, que tinha câmeras na
rua, cujas imagens eram cedidas para a polícia.633

632 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.

633 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.


243

Essa relação deixa claro que a política UPS tem uma ligação íntima com os
setores privados, com a finalidade de atender aos seus interesses, especialmente
promovendo a segurança na região. Frise-se que o Alphaville, que fica a menos de
um quilômetro da Vila Zumbi e Liberdade, é um condomínio de alto luxo, assim como
as instalações do Clube de Campo Santa Mônica.
Além disso, a visão que a polícia militar tem da região não favorece a
aplicação de metodologias preventivas da violência, mas reforça o preconceito, em
especial com os mais pobres, onde se concentra a ação policial.

4.6.3 O cotidiano dos moradores da Vila Zumbi

Para trazer a perspectiva dos moradores da região, foram entrevistados o


vereador Sidinei Campos, um dos fundadores da associação de moradores, além de
duas moradoras, que terão suas identidades preservadas, ligadas à APOIO – Associação
Paranaense de Orientação, Integração e Ofícios634, uma associação que tem trabalhos
sociais na região voltados principalmente à capacitação de pessoas para buscarem
retorno financeiro.
Também foi possível entrevistar um policial militar que atua na área, porém,
não é possível divulgar dados sobre essa conversa por serem sigilosos, a pedido do
entrevistado, far-se-á menção apenas a fatos que são públicos.
Não foi possível apresentar relatos dos moradores colhidos pelas redes
sociais porque não foi possível conhecê-los, já que o tempo de pesquisa na Vila foi
curto, resultando em cinco visitas, ao todo.

634 APOIO - ASSOCIAÇÃO PARANAENSE DE ORIENTAÇÃO INTEGRAÇÃO E OFÍCIOS. Página do


Facebook. Disponível em: <https://www.facebook.com/pg/apoio.org.br/about/?ref=page_internal>.
Acesso em: 12 dez. 2017.
244

4.6.3.1 Contornos da Vila Zumbi e Liberdade e os conflitos por moradia

A partir da década de 1950, as áreas rurais de Colombo, desmembradas da


Fazenda Rincão, formaram os loteamentos da Vila Palmital e o loteamento do
Jardim Graciosa. O que já era perceptível nessa época é que essas áreas estavam
mais ligadas à Curitiba do que à região central de Colombo, mas, até a década de
1980, estavam estabelecidas poucas moradias no local. Em 1985 foram aprovados
outros loteamentos, como o Centro Industrial Barão de Mauá e a Vila Ana Maria,
áreas que vieram a dar origem à Vila Zumbi dos Palmares e à Vila Liberdade, cujos
imóveis foram colocados à venda pelo proprietário, mas ocupados posteriormente.635
Com o processo de expansão territorial de Curitiba e a formação da Região
Metropolitana, constituída por cidades dormitório que abrigavam os trabalhadores
rejeitados pela cidade, ou seja, durante esse processo de marginalização social,
Colombo foi objeto de várias ocupações irregulares.636
A área de abrangência da UPS Vila Zumbi e Liberdade é composta desde a
Estrada da Graciosa, onde fica localizado o condomínio Alphaville, a Vila Mauá, que
é o centro industrial, até o Clube de Campo Santa Mônica, cruza a BR e pega
também a Vila Liberdade até chegar no Jardim Cruzeiro, incluindo a sede do próprio
22.o batalhão. Depois acrescentou-se, com autorização da SESP, o Jardim Palmital
na divisa com Campina Grande do Sul e o Jardim Santa Mônica, onde está o Santa
Mônica Clube de Campo. Toda essa área era da UPS, que começou com a Vila
Zumbi e Liberdade e depois se expandiu.637

635 RITTER, C. Os processos de periferização, desperiferização e reperiferização e as transformações


socioespaciais no aglomerado metropolitano de Curitiba. 2011. 298 f. Tese (Doutorado) – UFPR,
Curitiba, 2011. p.139-141. Disponível em: <http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/
26402/Tese%2026out.pdf?sequence=1>. Acesso em: 09 dez. 2017.

636 RITTER, C. Os processos de periferização, desperiferização e reperiferização e as transformações


socioespaciais no aglomerado metropolitano de Curitiba. 2011. 298 f. Tese (Doutorado) – UFPR,
Curitiba, 2011. Disponível em: <http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/26402/Tese%
2026out.pdf?sequence=1>. Acesso em: 09 dez. 2017.

637 Entrevista Ten. Fernanda Pegorini.


245

Figura 8 – Mapa da Vila Zumbi

Fonte: Imagem do Googles Maps. Disponível em: <https://www.google.com.br/maps/@-


25.3888703,-49.1624902,14z?dcr=0>. Acesso em: 08 dez. 2017.

Neste outo mapa disponibilizado pela página do Governo do Estado é possível


visualizar o contorno específico da área da UPS Zumbi e Liberdade:

Figura 9 – Mapa da UPS da Vila Zumbi e Liberdade

Fonte: Disponível em: <http://www.paranaemacao.pr.gov.br/


modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=132>. Acesso
em: 08 dez. 2017.

O vereador Sidinei Campos, entrevistado na associação de moradores da Vila


Zumbi, em 29 de novembro de 2016, informou que mora na região há 26 anos. A Vila
246

teve início na década de 1990, com a ocupação por cerca de 300 famílias, muitas
oriundas das regiões próximas, apoiados pelos políticos, na época, Paulinho Pastre
e Maria da Luz. Hoje são mais de duas mil famílias residentes na região. Quando
ocorreu esse processo de escolha dos terrenos e instalação dos barracos, os próprios
moradores mediam as ruas para não parecer favela, segundo ele, pensando já na
urbanização do local.
A Vila Zumbi tem esse nome porque a sua criação foi em maio de 1991 e
porque Zumbi é considerado um povo que luta. Andando pela Vila, percebe-se que as
pessoas, dentro do colorismo brasileiro, poderiam ser consideradas a maioria pardas,
algumas negras, poucas brancas, mas todas de baixa renda.
Nessas oportunidades pude perceber que várias ruas são asfaltadas, embora
ainda existam ruas de chão batido, com uma terra vermelha. É uma região plana,
com comércios bem estruturados, em especial na via principal, a rua Aleixo Schluga.
Embora esteja urbanizada, ainda é possível visualizar barracos sendo utilizados como
moradias, paredes sem reboco e lixo jogado nas ruas.

Figura 10 – Foto tirada em uma das visitas na Vila Zumbi, mostrando as vias
ainda sem asfalto

Fonte: Arquivo próprio.

No processo de realocação das famílias que moravam às margens do Rio


Palmital, consideradas em situação de risco por conta das constantes enchentes, além
247

de ser área de preservação ambiental, foi executado o projeto Direito de Morar, iniciado
em 2004, com investimentos de cerca de R$ 21 milhões. Foram tomadas diversas
medidas como a construção de moradias, as primeiras sendo entregues em 2006, a
construção de uma praça, chamada de Praça da Cidadania, além de obras de contenção
do Rio Palmital, drenagem de águas pluviais, pavimentação das ruas, instalação de
redes de esgoto, construção de creches e de um barracão de reciclagem.638 As famílias
que ocuparam esses sobrados construídos pela COHAPAR pagam apenas o terreno,
com uma prestação de R$ 90 (noventa reais) por mês, conforme informações do
entrevistado Sidinei Campos.
Nessas visitas à Vila também pude ver como se organizam essas moradias, que
são sobradinhos, com cerca de 40m2, com dois quartos, sala e cozinha conjugadas e
banheiro, sendo germinados e coloridos. Muitos desses sobrados hoje estão ocupados
por famílias com cadastro na COHAPAR, porém, ainda há algumas famílias que estão
ocupando essas moradias sem pagar a taxa mensal. Segundo o vereador local, é na
quadra 8 e quadra 8 B o foco do problema, onde muitos não foram realocados e
precisam de documentos.

Figura 11 – Sobradinhos 1

Fonte: Arquivo próprio.

638 EM PROCESSO de urbanização, Vila Zumbi ganha sua primeira praça. Tribuna do Paraná, 05
jun. 2006. Disponível em: <http://www.tribunapr.com.br/noticias/em-processo-de-urbanizacao-vila-
zumbi-ganha-sua-primeira-praca/>. Acesso em: 09 dez. 2017.
248

Figura 12 – Sobradinhos 2

Fonte: Arquivo próprio.

No entanto, ele informa que, hoje, menos de 30% dos moradores da região estão
presentes desde o início da ocupação, pois a maioria, "mais relaxados", acabaram
saindo, também porque foi feita uma análise social e eles não pagaram o terreno.
Percebe-se que o processo de regularização da área expulsou muitos moradores
que haviam ocupado a região. Constatou-se que, logo após o processo de regularização
das moradias, muitas famílias venderam seu sobrado porque não tinham condições
financeiras de arcar com as despesas do financiamento, também não gostaram do
sistema de distribuição dos sobrados por sorteio, e porque os sobrados não davam a
possibilidade de as famílias realizarem a separação do lixo reciclável, pois não havia
terreno nos sobrados, o que impossibilitou a realização desse trabalho, que constituía a
principal fonte de renda dessas famílias.639
Uma das moradoras entrevistadas relatou que veio com a sua família da cidade
de Serro Azul e que mora na Vila Zumbi com a mãe, a irmã e a filha, num sobrado
da COHAPAR, desde o ano de 2000, e que paga a taxa da COHAPAR. A outra

639 RITTER, C. Os processos de periferização, desperiferização e reperiferização e as transformações


socioespaciais no aglomerado metropolitano de Curitiba. 2011. 298 f. Tese (Doutorado) – UFPR,
Curitiba, 2011. Disponível em: <http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/26402/Tese%
2026out.pdf?sequence=1>. Acesso em: 09 dez. 2017.
249

moradora veio do Nordeste e acabou se instalando ali porque parte de sua família já
morava na região.
Essa primeira moradora residiu ali pela primeira vez há alguns anos atrás. Ela
veio com a sua mãe, que, por morar de aluguel e não ter muita escolha, vivia
mudando de casa e ficava um pouco de tempo em cada lugar. Quando a sua mãe
veio morar ali pela primeira vez, a Vila tinha barracos ainda, e ela chegou a comprar
um terreno por 3.000,00 (três mil) na época. Mas a sua família foi expulsa porque o
seu cunhado se envolveu com um “traficante” e eles expulsaram a família da casa a
tiros. Quase mataram seu cunhado nessa oportunidade, que depois acabou sendo
assassinado em outra região. Os “traficantes”, na época, acabaram invadindo a
casa, que era pequena, porém, como o terreno era grande e ficava próximo do Rio
Palmital, eles quiseram a casa.
Segundo essa moradora, existe muita disputa na região por conta de moradia.
Há muita briga por causa de fofoca e as pessoas acabam se envolvendo sem nem
saber o porquê, e que fazem isso, às vezes, só para pegar sua casa. Hoje uma casa
ali, a mais barata, está custando R$ 60.000,00. Agora a maioria das pessoas já
colocou o nome na COHAB, mas, quando não tinha o nome registrado, as pessoas
acabavam sendo expulsas.
Muita gente saiu dali expulsa, relata a moradora. O vizinho dela comprou a
casa do lado por cinco mil, mas ele saiu de lá a base de tiro. Isso já não acontece
mais com tanta frequência, pois agora a maioria já colocou o sobrado no nome e
criou consciência. Ainda há uns e outros que não colocaram o nome e as pessoas
tentam invadir. Às vezes, se você aluga a casa e não está no teu nome, a pessoa
que alugou vai lá e coloca o nome dela na COHAB e o sobradinho passa a ser dela.
Às vezes você tira férias e quando volta a casa está ocupada, e "já era". Esse tipo
de conflito não é levado para a polícia, que não se mete na briga por moradia.
As pessoas nem contam para a polícia, porque têm medo, segundo ela.

4.6.3.2 Comércio varejista de drogas

Além das disputas por moradia, havia muita violência relacionada aos conflitos
internos por ponto de venda de drogas, o que não se verifica na realidade de hoje
250

com a mesma intensidade. Não há lotérica na Vila, por exemplo, justamente por falta
de segurança, segundo o vereador Sidinei. Mas "morre quem tem que morrer", ou
seja, a disputa ocorre entre "os vagabundos" e isso não incomoda a comunidade,
porém, quando tem uma "pessoa de bem" atingida, "os próprios moradores resolvem
a questão". Nessa conversa ele dá a entender que a população expulsa essa
pessoa, ou de alguma forma corrige essa atitude, e até mesmo mata quem é
considerado um problema.
Uma das moradoras disse que quando chegou a Vila Zumbi era muito perigoso,
não podia nem falar que morava na Zumbi porque não conseguia emprego, e as
pessoas acabavam arrumando "esquema", colocando o endereço na casa de outra
pessoa só para não dizer que morava ali.
Nessa época matavam dois, três, "você saia na rua e já via lá alguém esticado
no chão", mas agora não, "está mais sossegado". Houve também uma diminuição
de assalto e roubo; só na passarela próxima ao antigo ponto final de ônibus que é
perigoso, embora nesses dias tem ocorrido mais assalto de carro.
Essa situação começou a mudar de uns cinco anos para cá, mas não é atribuída
à presença da UPS, pois a UPS não está na memória dos moradores. Tempos atrás
não era possível pegar o ônibus às cinco horas da manhã para o trabalho como se
faz hoje, relata uma das moradoras.
Essa tranquilidade de hoje é atribuída à mudança de comportamento dos
"traficantes", que têm um ponto próximo da APOIO, na parte da Zumbi de cima,
conhecidos como "traficantes do Mauá", e outro na parte de baixo da Zumbi, próximo
da UPS, conhecidos como "traficantes da Zumbi". Segundo a moradora, é mais
perigoso embaixo, pois há essa divisão entre a Zumbi de cima e a Zumbi de baixo.
Inclusive há disputa entre eles pela clientela, um não pode vender para o cliente do
outro, "eles não se misturam".
Relatam as moradoras que, se "o ladrão pé de chinelo" roubar uma casa ou
alguma coisa, os traficantes matam porque não querem a polícia perto do ponto deles,
então o ladrão não tem vez. A mesma coisa acontece se "cair" um estuprador, "não sobra
nem pedaço". Teve o caso de um estuprador que foi morto de madrugada pela
polícia. "Disseram que ele reagiu, mas ele não reagiu, já ficou provado", e quem o
entregou foi o traficante. Então traficante não aceita ladrão nem estuprador. "Nesse
ponto é bom ter os traficantes ali porque eles não se importam com você e é só você
251

não se importar com eles, não fazer coisa errada para eles". "Os traficantes de hoje
são honestos porque não se importam com você".
A mesma coisa acontece com dívida de droga. Se ficar devendo, eles vão
atrás e matam, mas acredita-se que eles levam para fora da Vila para executar. O lugar
onde os "traficantes" ficam chama-se "beco".
Não há relato por parte das moradoras entrevistadas de que "os traficantes"
andem armados na rua, mas há alguns anos isso acontecia. Uma das moradoras já
namorou um traficante da Vila Liberdade e sabe que eles andam armados.
Há relatos de que os professores têm medo e não reprimem os alunos na
escola, especialmente quando eles dizem serem filhos de "traficante". Nesse caso, a
professora fala: "Ah, então vou ser sua amiga". Isso acontece muito no colégio Barão
de Mauá, que fica na parte de cima. "Quem tem parente policial nem conta, eles
preferem contar que é filho do traficante do que dizer que é filho de policial", embora
alguns policiais residam na Vila.
O outro colégio, o Zumbi dos Palmares, fica na parte de baixo e tem muitas
brigas por isso, especialmente na saída do colégio. No colégio, à noite, muitos alunos
usam drogas e por isso sempre tem briga, briga de gangue, e nessas disputas, segundo
a moradora, "é a lei da selva: ou você bate ou você apanha". Essa moradora diz que
deveria existir a patrulha escolar nesse momento da saída da escola e que tem
muito medo por sua filha.
As moradoras também confirmaram que o tráfico não tem uma vinculação
com facção, são casos isolados que ocorrem hoje. Quem trabalha no tráfico é muito
novo, "o mais velho, lá na vila Liberdade, tem uns 30 anos", e eles também não
ostentam carro ou outros bens, "trabalham com o tráfico à noite, mas durante o dia
como pedreiro", saem com o carro cheio de material de construção.
Antigamente havia um traficante chamado Adrian. Nessa época era mais
complicado, pois foi esse Adrian que expulsou a família da moradora entrevistada.
O Adrian era muito difícil, ele era um traficante pesado, se ele chegasse e dissesse
que queria aquele carro, que queria aquela casa, ele tomava para ele com violência,
com tiro. Mesmo depois de preso isso ainda acontecia, já que toda a família dele era
envolvida. No dia em que foi morto, houve fogos de chegar a ficar surdo na Vila, e
toda a família dele, todos os irmãos, foram mortos, o último a morrer foi o filho dele.
A única pessoa viva da família dele é a mãe, e todo mundo sabe que ela anda de
bota e tem uma arma na bota. Ela é uma mulher evangélica, mas todo mundo fala
252

que ela usa uma arma. Ela mora perto do ponto final do Zumbi. Ele comandava a
Zumbi e a Liberdade ao mesmo tempo.
Num outro relato, do policial militar que atua na região, havia também o grupo
do Leitão, assassinado na Vila Zumbi em 07 de agosto de 2013, ou seja, alguns
meses após a instalação da UPS, que ocorreu em maio daquele ano. Segundo a
notícia do jornal Tribuna do Paraná:

Vizinhos disseram que a vítima participou do tiroteio que provocou a morte


do porteiro José Martins Pinto, 51 anos, em novembro do ano passado, por
bala perdida. Este é o segundo homicídio na área desde a implantação da
Unidade Paraná Seguro Zumbi – Liberdade, no começo de maio. Entretanto,
nove assassinatos aconteceram nas duas vilas, divididas pela BR-116, desde o
começo do ano, um deles envolvendo vítima menor de idade. Todos os mortos
são homens, a maioria vítimas de disparos de arma de fogo, sendo que
apenas um foi morto a facadas.640

Ou seja, ligando à notícia à fala do vereador e das moradoras, de que a própria


população resolve a questão, parece que a morte do porteiro foi vingada pela população
local, que acabou matando o adolescente. Nesse caso, verifica-se a atuação da chamada
seleção vitimizante.
A seleção vitimizante primária se dá quando algumas pessoas exercem um
poder mais ou menos arbitrário sobre outras. Quando esse poder for percebido
como normal, não haverá vitimização, mas quando ele for percebido como anormal a
situação é redefinida como conflitiva. Assim, as agências de controle social também
se utilizam da seleção vitimizante para obter prestígio, como no caso a UPS. Já a
situação vitimizante secundária se dá com a distribuição da vitimização, conforme a
vulnerabilidade ao delito. As classes subalternas são também as mais vulneráveis,
pois os ricos podem pagar por sua segurança e diminuir seu risco de vitimização, ao
passo que os mais vulneráveis dependem da segurança estatal para sua proteção.641
Frequentemente nas áreas vulneráveis a polícia se ausenta e personagens
locais assumem esse papel, tendo uma atuação complementar ao direito penal

640 ATIRADOR mata rapaz com tiros na boca e foge de ‘bike’. Tribuna do Paraná, 02 ago. 2013.
Disponível em: http://www.tribunapr.com.br/noticias/curitiba-regiao/atirador-mata-rapaz-com-tiros-
na-boca-e-foge-de-bike/>. Acesso em: 09 dez. 2017.

641 ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito penal brasileiro: teoria geral
do direito penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v.1.
253

subterrâneo, contando muitas vezes com o encobrimento e a conivência das agências


policiais, como é o caso dos “traficantes” da Zumbi e da Liberade. O efeito é a
estratificação social da vulnerabilidade vitimizante, ou seja, expõe mais as zonas
pobres, além do efeito político de as classes mais vulneráveis, que são as mais
vitimizadas, apoiarem propostas de controle social mais autoritárias. O fato de serem
as mais vitimizadas, em conjunto com o discurso vingativo das agências do sistema
penal provoca a discriminação de certos grupos humanos identificados como
responsáveis tais como homens, jovens e afrodescendentes.642
Outra questão que chama a atenção é que esse é o segundo homicídio depois
de implantada a UPS, mas na região já ocorreram nove homicídios desde o início do
ano, havendo a constatação desse deslocamento das violências. Essas informações
também colocam em cheque a fala da Tenente Pegorini, de que teria havido apenas
um homicídio em um ano de instalação da UPS.

4.6.3.3 A relação da comunidade com a polícia

Uma das moradoras também relatou que há uns cinco anos teve uma vez que
a polícia recebeu a denúncia de um ladrão e eles invadiram sua casa além de
outros sobradinhos com arma na mão (na época ela ainda era casada), procurando
esse ladrão e que ela pedia calma porque as crianças estavam dormindo e eles
queriam saber porque o marido dela tinha saído correndo de bicicleta. Quando ela
chegou no portão, eles estavam espancando seu marido sem motivo algum. Ela
perguntou por que estavam batendo nele, que não tinha motivos, que ele não era
ladrão, que eles receberam essa denúncia, mas a denúncia não tinha identificado em
qual sobradinho o ladrão tinha entrado. Embora ela não tenha relacionado esse
episódio com a UPS, é importante esse relato para frisar a violência tradicionalmente
empregada na abordagem policial.

642 ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito penal brasileiro: teoria geral
do direito penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v.1.
254

Sobre essa relação com a polícia, as moradoras disseram que têm medo, que
não têm mais o mesmo respeito e que não procuram a polícia porque podem "até se dar
mal". Quando a UPS entrou, não adiantava nem ligar para polícia que não funcionava.
Segundo elas, agora está funcionando, mas não adiantava ligar porque havia apenas
um funcionário e ele falava que não podia atender a ocorrência porque não tinha
viatura e que sozinho ele ia morrer.
Já na visão do vereador, a UPS funcionou durante quatro anos e foi bom.
Segundo ele, durante a instalação da UPS, o Coronel Monteiro, acompanhado por
um batalhão de polícia, cercaram a região e fizeram uma varredura que resultou na
prisão de várias pessoas. Antes disso tinha tiroteio na rua, hoje não tem mais.
Porém, a UPS, hoje, está sem estrutura, pois ficam apenas dois policiais e antes
eram 22 policiais com uma viatura. Realmente, quando visitei a UPS da Zumbi, havia
apenas dois policiais na unidade.
Esse relato é corroborado pela reportagem do jornal Gazeta do Povo, afirmando
que é possível verificar que a política não está funcionando, pelas marcas de tiro na
parede de uma padaria da Vila, que fica a menos de dois quilômetros da UPS.
Segundo uma moradora entrevistada pela reportagem, "Teve tiroteio aí na região
mês passado e a polícia nem apareceu na hora, eles só andam de viatura para
passear". Outro morador ouvido pela reportagem afirma que "no começo as patrulhas
eram intensas, agora é raro ver policial passando por aqui".643
Nos finais de semana havia a lei do silêncio sobre os bailões e, sempre que a
polícia aparecia, o dono do baile pagava para eles e a música continuava, um deles
era o baile do "Foguinho". Agora não tem mais baile, só bares com música ao vivo
ou bandinha, segundo uma das moradoras.
Eu perguntei se tem muita criança cujo pai está preso e as moradoras
disseram que sim, que é o que mais tem. Eu perguntei por que que eles acabam
"caindo" e elas falaram que é por causa de droga, roubo e briga de bar. O vereador
também fez menção a essa questão quando um menino passava em frente à
associação dos moradores: "Tá vendo esse? Logo morre! O pai já está preso e a vó
não dá conta".

643 RIBEIRO, D.; ANTONELLI, D. Unidades Paraná Seguro: população critica programa parado.
Gazeta do Povo, Curitiba, 25 fev. 2016.
255

Segundo a página do facebook Colombo Sitiada644, a violência na região


coloca o bairro como oitavo em número de homicídios:

Confira agora o Ranking dos 10 bairros mais violentos de Colombo durante


o ano de 2016:
1. Guaraituba: 10 assassinatos;
2. Monte Castelo: 7 assassinatos;
3. Guarani: 7 assassinatos;
4. Osasco: 7 assassinatos;
5. Vila Nova: 6 assassinatos;
6. Itajacuru: 5 assassinatos;
7. Rio Verde: 5 assassinatos;
8. Zumbi dos Palmares: 5 assassinatos;
9. Campo Alto: 4 assassinatos;
10. Santa Terezinha: 4 assassinatos;
Colombo finalizou o ano de 2016 com um total de 97 homicídios, ficando
com uma taxa de 38.08 homicídios a cada 100.000 habitantes, superando e
muito a média nacional que é de 28,06. O incrível é que quase 62% dos
homicídios estão concentrados nos 10 bairros mais violentos. Das 97
mortes, 81 foram por arma de fogo, 8 devido a ferimentos por facas e 8
mortes por agressão.

Já em 2017, a Vila Zumbi conta com nove homicídios registrados pela página
Colombo Sitiada, somando um aumento de quase 100% em relação aos dados
de 2016.645
Esses dados mostram que a violência na cidade de Colombo, que atingiu no
ano de 2017 um total de 98 homicídios, e na Vila Zumbi e Liberdade, não está sendo
prevenida pela ação da UPS ou por outras medidas estatais.
Nesse caso, a atuação dos dispositivos de poder biopolíticos deixam os
moradores à mercê da morte, o racismo faz o recorte entre aqueles que são
deixados para morrer, normalmente ocasionadas por conflitos entre gangues, o que
afeta em especial os mais jovens.
Embora se tenha uma realidade menos militarizada do que a carioca, o
abandono do projeto hoje faz crescer os conflitos que implicam em um verdadeiro
genocídio, já que o número de mortes em um ano dobrou.

644 COLOMBO SITIADA. Página do Facebook. Disponível em: <https://www.facebook.com/


colombositiada/>. Acesso em: 27 dez. 2017.

645 COLOMBO SITIADA. Página do Facebook. Disponível em: <https://www.facebook.com/


colombositiada/>. Acesso em: 27 dez. 2017.
256

A impressão deixada pelas entrevistas realizadas é de que a entrada da UPS


não fez diferença para os moradores, já que nessas entrevistas eles não conseguem
identificar se essas ações de melhoria da sensação de segurança foram
ocasionadas pela entrada da polícia. O que pareceu bastante claro é que, mesmo com
a chegada da polícia, o tráfico não parou e que a tranquilidade de morar na região se dá
mais pela forma de controle dos delitos cotidianos que os “traficantes” utilizam, ou
seja, esse controle social subterrâneo sobre roubo, furto e estupro, do que pela
atuação da polícia de fato. Parece haver uma concordância da população de que o
“tráfico” aja dessa forma, garantindo sua tranquilidade.
257

CONCLUSÃO

Pedro Malazarte fez uma aposta: iria convencer uma velha senhora "pão dura" a
lhe dar comida, pois estava morto de fome e sem nenhum dinheiro. Chegando à
fazenda da velha, pegou uma panela e colocou no fogo, com um pouco de água e
pedras, chamando a atenção da velha, que foi verificar o que estava acontecendo.
Quando ela se aproximou e perguntou o que ele estava fazendo, ele
imediatamente respondeu: Sopa de pedras! E ela, muito interessada, ainda perguntou:
e fica boa? Ele imediatamente respondeu: fica uma delícia!
Ela, pensando em sua fazenda e na quantidade de pedras que tinha, pensou
que poderia economizar muito com sua comida e ainda lucrar com isso.
Ansiosa e com fome, aguardando que a sopa ficasse pronta, perguntava ao
Pedro: Essa sopa fica pronta ou não? Quando ele responde: Está quase pronta, mas
se eu tivesse alguns legumes ela ficaria ainda melhor. A velha não pensou duas
vezes, deu os legumes para Pedro Malazarte que os cortou e guardou metade em
sua sacola, colocando a outra metade na sopa.
Ela ansiosa perguntava: esta sopa está pronta? E Pedro respondeu: está quase
pronta, mas se tivesse uns temperos, ficaria ainda melhor. A velha imediatamente
providenciou os temperos. Pedro novamente, guardou metade dos ingredientes na
sua sacola e colocou a outra metade na sopa.
Ela, com fome, pergunta novamente para Pedro se a sopa estava pronta, e
ele respondeu que sim, pediu à velha os pratos e talheres para servir e encheu o
prato dela de pedras, enquanto que no seu prato colocou os legumes e temperos, e
jogava as pedras fora.
Moral da história, a sopa de pedras era na verdade uma velha sopa de legumes
e com isso Pedro Malazarte ganhou a aposta!
As Unidades de Polícia de Pacificação são uma sopa de pedras, promessas
de que algo diferente e bom seria realizado, mas, na verdade, a polícia continuou
executando sua velha política de extermínio nas favelas.
Como Pedro Malazarte convenceu a velha senhora "pão dura", a mídia e o Estado
convenceram parte da população de que, gastando menos, e com mais polícia poderiam
fazer diferente, mas não era verdade, o sistema não seria reformado e, sob o manto
258

de uma polícia de pacificação e de uma polícia comunitária, executaram-se as velhas


práticas policiais, militarizando a vida dos pobres favelados, alvos dessa necropolítica.
O histórico sobre a atuação da polícia e de seus alvos de controle social deixa
claro que essa instituição tem a função de controlar e mediar, de forma violenta, a luta
de classes, mantendo os indesejados sobre o controle do braço repressivo do Estado.
Com a conjugação das temáticas aqui abordadas, é possível verificar que a
política de implantação das polícias de pacificação, em especial no Rio de Janeiro e no
Paraná, de alguma forma absorvem esses contornos e colocam em prática uma gestão
policial militarizada de um determinado espaço ocupado por determinadas pessoas.
Verificando o depoimento das pessoas e a própria forma de organização da
favela é possível perceber que a UPP e a UPS são efetivamente um projeto de
governamentalidade, empregado contra os pobres favelados, uma vez que os mesmos
têm uma forma de se organizar e de sobreviver com estratégias afastadas da figura
de um Estado neoliberal, como Pedro, na história, se apresentou. Por isso, na tentativa
de dominá-los, de lucrar com o investimento privado, de garantir a reeleição, levou-se o
Estado, sob o manto da guerra às drogas, a ocupar esses espaços, naturalizando a
presença policial.
Os traficantes hoje e sempre aparecem como grandes inimigos, o grande
"outro", desprovidos de qualquer direito, quando na verdade compram e vendem drogas
para garantir sua sobrevivência, atuam no mercado do varejo, e assim, são colocados
como alvo dessa biopolítica racista. Esse projeto neoliberal das “polícias de
pacificação”, é fortalecido pela incorporação das intensas economias populares que
floresceram como alternativas e as criminaliza.
A regularização de moradias, a legalização do comércio e do transporte
nessas áreas, além da regularização dos serviços privados como luz e televisão,
permitem tanto ao Estado quanto ao setor privado aumentar os seus rendimentos,
ou seja, são uma forma de cobrar dessas pessoas as taxas de esgoto, de água, de
transporte e outros serviços, apropriando-se das economias populares.
Embora haja diferenças entre as duas realidades analisadas, sendo o Rio de
Janeiro marcado pela ostentação do aparato militar, e o Paraná por sua falta de
planejamento e engajamento, as cínicas políticas de segurança são marcadas por
propostas da mesma natureza.
A UPS é fruto de uma política que já vinha sendo trabalhada no Estado,
conforme se verifica pela cronologia dos programas de segurança pública empregados,
259

incorporando uma filosofia de policiamento comunitário com inspiração no modelo de


policiamento japonês, com o fim de modificar a atuação policial para as Unidades
Paraná Seguro, a qual no entanto, ficou apenas na teoria, não sendo verificado na
prática policial cotidiana.
Assim, após alguns anos de implantação dessa política, verifica-se que o projeto
encontra-se abandonado, não havendo continuidade dessa ação, que tem seus objetivos
questionados, bem como, mesmo no período em que esteve ativa, são questionáveis
os seus índices de eficácia, além da metodologia de trabalho.
Além disso, tais campanhas tiveram amplo apoio midiático, o que tornou possível
a ampliação do controle social sob o manto do policiamento comunitário sobre as
favelas estrategicamente escolhidas para formar o cinturão de segurança para realizar
os jogos mundiais e para atender padrões de custo benefício econômico do setor privado.
Esse projeto se consolida diante da privatização da mercadoria segurança, e se
pauta na ideia da expansão da segurança como um direito, ou invés de buscar a
segurança dos direitos, para promover igualdade, dignidade e encurtar as distâncias
sociais criminalizadas no Brasil.
Ou seja, considerando que a favela se tornou uma prisão a céu aberto, sujeita
às punições do sistema penal subterrâneo, de uma gestão do inimigo pelo estado de
exceção, a legitimação do extermínio e do controle social repressivo nada mais é do
que a própria gestão diferencial e capilarizada das ilegalidades de que falava Foucault,
ao retratar o suposto fracasso da prisão. O suposto "fracasso" da polícia de pacificação
deve ser visto como o real objetivo dessa política, que seria o controle do Estado sobre
esses territórios e o genocídio dos pobres favelados empregando os mecanismos de
poder da governamentalidade neoliberal.
Assim, o projeto das UPPs e UPSs se consolida como uma política de
governabilidade neoliberal, que emprega o racismo para direcionar o controle policial
militarizado sobre os pobres, subcidadãos e marginalizados.
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ZALUAR, A. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da


pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1985.
279

ANEXOS
280

ANEXO 1 - DECRETO N.o 41.650, DE 21 DE JANEIRO DE 2009


281
282

ANEXO 2 - DECRETO N.o 41.653, DE 22 DE JANEIRO DE 2009


283
284

ANEXO 3 - DECRETO N.o 42.787, DE 06 DE JANEIRO DE 2011


285
286
287
288
289
290
291
292
293

ANEXO 4 - DECRETO N.o 44.177, DE 26 DE ABRIL DE 2013


294
295
296
297
298
299

ANEXO 5 - DECRETO N.o 45.186, DE 17 DE MARÇO DE 2015


300
301
302
303
304
305
306
307

ANEXO 6 - INFORMAÇÃO 007/2017 – 1.o CRPM


308
309
310
311
312
313
314
315
316

ANEXO 7 - LEI N.o 16.583, DE 29 DE SETEMBRO DE 2010


317
318
319

ANEXO 8 - LEI N.o 18.377, DE 15 DE DEZEMBRO DE 2014


320
321
322

ANEXO 9 - DECRETO N.o 8.306, DE 24 DE MAIO DE 2013


323
324
325
326

ANEXO 10 - TERMO DE COOPERAÇÃO TÉCNICA N.o 001/2013


327
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329
330
331
332
333
334
335
336

ANEXO 11 - AÇÕES DE DESENVOLVIMENTO LOCAL E CIDADANIA –


UNIDADE/PARANÁ SEGURO (UPS)
337
338
339

ANEXO 12 - TERMO DE COOPERAÇÃO TÉCNICA N.o 013/2014


340
341
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343
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346

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