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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO


CURSO DE MESTRADO EM DIREITO

Ygor Rafael Cassiano de Araújo

A NORMATIZAÇÃO DA SEXUALIDADE E DA IDENTIDADE DE GÊNERO


COMO UM PROBLEMA JURÍDICO: DIÁLOGO ENTRE OS MARCOS
NORMATIVOS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO ÀS PESSOAS LGBTQIAP+ E
A JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

NATAL – RN
2023
YGOR RAFAEL CASSIANO DE ARAÚJO

A NORMATIZAÇÃO DA SEXUALIDADE E DA IDENTIDADE DE GÊNERO


COMO UM PROBLEMA JURÍDICO: DIÁLOGO ENTRE OS MARCOS
NORMATIVOS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO ÀS PESSOAS LGBTQIAP+ E
A JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-graduação em Direito da
Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, como requisito para a obtenção do
título de Mestre em Direito.

Orientadora: Prof. Doutora Yara Maria


Pereira Gurgel.

NATAL – RN
2023
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas – CCSA

Araújo, Ygor Rafael Cassiano de.


A Normatização da sexualidade e da identidade de gênero como
um problema jurídico: diálogo entre os marcos normativos
internacionais de proteção às pessoas LGBTQIAP+ e a
jurisprudência da corte interamericana de Direitos humanos /
Ygor Rafael Cassiano de Araújo. - Natal, 2023.
226f.: il.

Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do


Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas,
Programa de Pós-Graduação em Direito. Natal, RN, 2023.
Orientadora: Profa. Dra. Yara Maria Pereira Gurgel.

1. LGBTQIAP+ - Dissertação. 2. Corte Interamericana - Direitos


Humanos - Dissertação. 3. Direito internacional - Dissertação. 4.
Direitos humanos- Dissertação. 5. Cidadania sexual. I. Gurgel,
Yara Maria Pereira. II. Título.

RN/UF/Biblioteca CCSA CDU 342.7:341

Elaborado por Eliane Leal Duarte - CRB-15/355


YGOR RAFAEL CASSIANO DE ARAÚJO

A NORMATIZAÇÃO DA SEXUALIDADE E DA IDENTIDADE DE GÊNERO


COMO UM PROBLEMA JURÍDICO: DIÁLOGO ENTRE OS MARCOS
NORMATIVOS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO ÀS PESSOAS LGBTQIAP+ E
A JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-graduação em Direito da
Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, como requisito para a obtenção do
título de Mestre em Direito.

Aprovada em: 15 de junho de 2023

BANCA EXAMINADORA

______________________________________
Profa. Dra. Yara Maria Pereira Gurgel
Orientador(a)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

_____________________________________
Prof. Dr. Thiago Oliveira Moreira
Membro interno
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

______________________________________
Prof. Dr. Clarindo Epaminondas de Sá Neto
Membro externo
Universidade Federal de Santa Catarina
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho aos meus pais, Cristovam Araújo e Solange Cassiano, onde encontrei
todo acolhimento, paciência, ajuda para desenvolver meus estudos e ser quem eu sou.

À Felipe Brito, companheiro de vida que me apoiou e me compreendeu desde o primeiro


vislumbre deste sonho que é o mestrado em Direito.

À minha orientadora, por todo incentivo, paciência e compreensão.

A todos os ativistas LGBTQIAP+ que lutam pela dignidade humana em busca de um


mundo mais justo e igualitário.
RESUMO

A presente investigação se debruça sobre a normatização da sexualidade e da identidade


de gênero e o papel dos marcos normativos internacionais de proteção aos Direitos
Humanos e da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos na
construção jurídica dos direitos de cidadania direcionados às pessoas LGBTQIAP+ no
Brasil. Para tanto, o estudo desenvolve a ideia de cultura como alicerce para teorizações
sobre sexo biológico, identidade de gênero, papéis de gênero e orientação sexual, sendo
responsável por criar um sistema político, social e jurídico que valora de forma diferente
as pessoas, com base nessas características. A partir desse contexto, no Brasil, desde sua
colonização, a repressão moral e as tentativas de restrição de gênero e sexualidade são
uma realidade que vitima centenas de pessoas todos os anos. Em contraponto a esses
fatos, durante as últimas décadas, a Sociedade Internacional tem buscado ampliar os
princípios e normas de direito internacional para incluir a proteção das pessoas
LGBTQIAP+. Posto isso, submete-se ao presente estudo o seguinte problema de
pesquisa: como os marcos normativos internacionais de proteção aos Direitos Humanos
e a jurisprudência da Corte IDH podem contribuir para a construção jurídica de uma
cidadania LGBTQIAP+ que dialogue com as leis e decisões judiciais brasileiras e
contribua para a sua compatibilização ao contexto de proteção que vem sendo construído
internacionalmente, de forma a romper com a normatização construída culturalmente, que
restringe as expressões de gênero e sexualidade? Considerando esse contexto, o trabalho
tem como objetivo geral estudar a normatização da sexualidade e identidade de gênero
no Brasil, e as contribuições que o diálogo com as normas internacionais e a
jurisprudência contenciosa da Corte IDH podem trazer para a efetivação da cidadania
desses grupos vulneráveis no país. Para tanto, é mister alcançar estes objetivos
específicos: contextualizar as desigualdades de gênero e sexualidade e apresentar dados
de estatísticos de violência contra as pessoas LGBTQIAP+ no Brasil; situar os marcos
normativos internacionais de proteção aos Direitos Humanos das pessoas LGBTQIAP+;
investigar como a Corte IDH vêm enfrentando os casos de discriminação em razão de
orientação sexual e identidade de gênero; analisar os julgados do Supremo Tribunal
Federal brasileiro e sua interação com o direito internacional. Levanta-se a hipótese de
que as normas internacionais e as decisões judiciais contribuem positivamente para a
construção de um conceito de cidadania LGBTQIAP+, que deve ser compatibilizado com
as normas internas, devendo fundamentar as leis e decisões judiciais e administrativas,
com objetivo de corrigir as disparidades sociais construídas culturalmente. Para tanto
utilizou-se do método hipotético dedutivo, por meio da análise doutrinária e
jurisprudencial. Também foram utilizados o método auxiliar histórico e estatístico. O
trabalho justifica-se pelos altos índices de violência LGBTfóbica no Brasil, motivados
pela discriminação, assim como pelas contribuições que a sociedade internacional vem
trazendo para a discussão. Como resultado, constatou-se que há um processo de
emancipação dos grupos sociais vulneráveis no Brasil, conduzido pelo STF de forma
inovadora, mas que, para satisfazer uma postura de compliance frente ao direito
internacional dos direitos humanos, esse tribunal ainda pode fazer mais.

Palavras-chave: LGBTQIAP+. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Direito


Internacional dos Direitos Humanos. Cidadania Sexual.
ABSTRACT

This investigation focuses on the regulation of sexuality and gender identity and the role
of international normative frameworks for the protection of Human Rights and the
jurisprudence of the Inter-American Court of Human Rights in the legal construction of
citizenship rights directed to LGBTQIAP+ people in Brazil. To this end, the study
develops the idea of culture as a foundation for theorizing about biological sex, gender
identity, gender roles and sexual orientation, being responsible for creating a political,
social, and legal system that values people differently, based on in these characteristics.
From this context, in Brazil, since its colonization, moral repression and attempts to
restrict gender and sexuality are a reality that victimizes hundreds of people every year.
In counterpoint to these facts, during the last few decades, the International Society has
sought to expand the principles and norms of international law to include the protection
of LGBTQIAP+ people. That said, the following research problem is submitted to the
present study: how the international normative frameworks for the protection of Human
Rights and the jurisprudence of the Inter-American Court can contribute to the legal
construction of an LGBTQIAP+ citizenship that dialogues with Brazilian laws and
judicial decisions and contribute to its compatibility with the context of protection that
has been built internationally, in order to break with the culturally constructed norms,
which restrict expressions of gender and sexuality? Considering this context, the general
objective of this work is to study the regulation of sexuality and gender identity in Brazil,
and the contributions that the dialogue with international norms and the contentious
jurisprudence of the Inter-American Court can bring to the realization of the citizenship
of these vulnerable groups in the country. Therefore, it is essential to achieve these
specific objectives: contextualize gender and sexuality inequalities and present statistical
data on violence against LGBTQIAP+ people in Brazil; situate the international
normative frameworks for the protection of the Human Rights of LGBTQIAP+ people;
investigate how the Inter-American Court has been dealing with cases of discrimination
based on sexual orientation and gender identity; to analyze the judgments of the Brazilian
Federal Supreme Court and its interaction with international law. It is hypothesized that
international norms and judicial decisions contribute positively to the construction of a
concept of LGBTQIAP+ citizenship, which must be compatible with internal norms, and
must support laws and judicial and administrative decisions, with the aim of correcting
the culturally constructed social disparities. For this purpose, the hypothetical deductive
method was used, through doctrinal and jurisprudential analysis. The historical and
statistical auxiliary method were also used. The work is justified by the high rates of
LGBTphobic violence in Brazil, motivated by discrimination, as well as by the
contributions that international society has been bringing to the discussion. As a result, it
was found that there is a process of emancipation of vulnerable social groups in Brazil,
conducted by the STF in an innovative way, but that, to satisfy a posture of compliance
with international human rights law, this court can still do more.

Keywords: LGBTQIAP+. Inter-American Court of Human Rights. International Human


Rights Law. Sexual citizenship.
LISTA DE SIGLAS

ABGLT Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,


Transexuais e Intersexos

ACNUR Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados

ADO Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão

ADIn Ação Direta de Inconstitucionalidade

ADPF Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental

ANTRA Associação Nacional de Travestis e Transexuais

CADH Convenção Americana Sobre Direitos Humanos

CATTRACHAS Organização Lésbica Feminina de Honduras

CDH Conselho de Direitos Humanos

CDM Centro de Direitos Humanos de Mulheres

CIDH Comissão Interamericana de Direitos Humanos

Corte IDH Corte Interamericana de Direitos Humanos

CRFB Constituição da República Federativa do Brasil

DADDH Declaração Americana de Direitos e Deveres Do Homem

ECOSOC Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

FMUSP Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

GGB Grupo Gay Da Bahia

LGBTQIAP+ Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgênero, Transexuais, Travestis,


Queer, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais e outras formas de entendimento da
sexualidade e identidade de gênero

LINDB Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro

OEA Organização dos Estados Americanos

SIDA Síndrome da Imunodeficiência Adquirida

SINAN Sistema de Informação de Agravos de Notificação


SIPDH Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos

SOGIESC Sexual Orientation, Gender Identity and Expression, and Sex


Characteristics
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 11
2. A NORMATIZAÇÃO DA SEXUALIDADE E DA IDENTIDADE DE GÊNERO
COMO UM PROBLEMA JURÍDICO .................................................................................... 17
2.1 RELAÇÃO ENTRE NORMAS DE GÊNERO, CULTURA E CIDADANIA........... 21
2.2 VIOLÊNCIA EM RAZÃO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE
GÊNERO NA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL ................................................... 42
2.2.1 Análise histórica da cisnormatividade e da violência contra a população
LGBTQIAP+ na República Federativa do Brasil ............................................................... 43
2.2.2 Dados demográficos da população LGBTQIAP+ na República Federativa do Brasil
dos dias atuais ..................................................................................................................... 53
2.2.3 Panorama estatístico da violência LGBTQIAP+ na República Federativa do Brasil,
dos anos 2000 a 2022 .......................................................................................................... 57
3. AS CONTRIBUIÇÕES DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS
HUMANOS NA CONSTRUÇÃO NORMATIVA DA PROTEÇÃO DOS GRUPOS
SEXUAIS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE ....................................................... 70
3.1 PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS: CONCEPÇÕES
HISTÓRICAS E ESTRUTURAIS .......................................................................................... 72
3.2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO FUNDAMENTO DA TUTELA DOS
DIREITOS DAS PESSOAS LGBTQIAP+ ............................................................................. 77
3.3 PRINCÍPIO DA IGUALDADE E DA NÃO DISCRIMINAÇÃO ............................. 83
3.4 SISTEMA GLOBAL DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS E A
CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS DAS PESSOAS LGBTQIAP+ ........................................ 86
3.4.1 Carta das Nações Unidas ....................................................................................... 87
3.4.2 Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 .......................................... 89
3.4.3 Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos de 1966 (PIDCP) e seu
Protocolo Facultativo .......................................................................................................... 91
3.4.4 Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 e seu
Protocolo Facultativo .......................................................................................................... 95
3.4.5 Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986................................... 100
3.4.6 Conferência internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD) de 1994
103
3.5 TUTELA ESPECÍFICA DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS LGBTQIAP+ ............ 105
3.5.1 Princípios de Yogyakarta de 2006 ....................................................................... 106
3.5.2 Resolução nº 17/19 do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e
Relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, de 2011117
3.5.3 Princípios de Yogyakarta “+ 10”, de 2017 .......................................................... 124
4. PROTEÇÃO DAS PESSOAS LGBTQIAP+ NO SISTEMA INTERAMERICANO DE
PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS ......................................................................... 129
4.1 PRINCIPAIS INSTRUMENTOS NORMATIVOS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS
HUMANOS CONTRA A NÃO DISCRIMINAÇÃO, EM ÂMBITO INTERAMERICANO
129
4.1.1 Carta da OEA e a Declaração Americana de Direitos e Deveres Do Homem
(DADDH) ......................................................................................................................... 130
4.1.2 Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (CADH) ................................. 131
4.1.3 Convenção Interamericana Contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância
134
4.1.4 Opinião Consultiva de nº 24/2017, da Corte Interamericana de Direitos Humanos
136
4.2 TUTELA DAS PESSOAS LGBTQIA+ NA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS............................................................. 138
4.2.1 Caso Atala Riffo e Filhas Vs. Chile..................................................................... 140
4.2.2 Caso Duque Vs. Colômbia .................................................................................. 145
4.2.3 Caso Azul Rojas Marín e Outros Vs. Peru .......................................................... 150
4.2.4 Caso Flor Freire vs. Equador ............................................................................... 155
4.2.5 Caso Vicky Hernández e Outros Vs. Honduras................................................... 159
4.3 COMPATIBILIDADE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS
HUMANOS E DA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE IDH COMO INSTRUMENTOS DE
PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS LGBTQIAP+ NA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL ................................................................................................ 169
5. A CONSTRUÇÃO JURÍDICA DA CIDADANIA LGBTQIAP+ NO BRASIL ....... 180
5.1 CIDADANIA, IDENTIDADE E SEXUALIDADE ................................................ 181
5.2 CIDADANIA SEXUAL E DISCURSO JURÍDICO................................................ 185
5.3 CIDADANIA SEXUAL E AS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
BRASILEIRO ....................................................................................................................... 189
5.3.1 Julgamento conjunto da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental de nº
132 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade de n.º 4.277 ............................................ 189
5.3.2 Ação De Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 291 .......................... 191
5.3.3 Recurso Extraordinário de nº 646.721: equiparação de regime sucessório entre
cônjuges e companheiros em união estável homoafetiva ................................................. 193
5.3.4 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275: alteração do nome e sexo de pessoas
transexuais no registro civil .............................................................................................. 195
5.3.5 Recurso Extraordinário nº 670.422: alteração do nome e sexo no registro civil de
pessoas transexuais mesmo sem intervenção cirúrgica .................................................... 198
5.3.6 Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26: criminalização da
homotransfobia ................................................................................................................. 201
5.3.7 Mandado de Injunção nº 4.733: criminalização da homotransfobia ................... 204
5.3.8 Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 457: divulgação de material
escolar sobre gênero e orientação sexual .......................................................................... 205
5.3.9 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.543: referente a doação de sangue por
homossexuais .................................................................................................................... 207
5.3.10 Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 461: ensino sobre gênero
e orientação sexual nas escolas ......................................................................................... 209
6. CONCLUSÃO ................................................................................................................. 213
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 220
11

1. INTRODUÇÃO

Ao longo da história da civilização humana, os mais diversos agrupamentos de


pessoas aprenderam a conviver em uma estrutura cultural estabelecida a partir da
concepção de que o indivíduo nasce com um sexo verdadeiro, que é imutável,
incontestável e legítimo, que ele deverá se relacionar afetivamente e sexualmente apenas
com pessoas de sexo diferente do seu, e que tais características compõem um ser humano
“saudável”, “normal” e apto para conviver pacificamente com seus semelhantes. Essa é
uma herança que se dissemina a partir de dogmas religiosos, e se transmuta em códigos
de conduta e papeis sociais atribuídos culturalmente ao gênero que o indivíduo pertence,
que serão confrontados com suas atitudes e expressões durante toda sua existência.
A cultura também estabelece que todos os comportamentos e características
divergentes dessa constatação seriam ilegítimos, anormais e delirantes, pois estariam de
encontro ao que se acreditava ser a natureza humana, onde o indivíduo era visto
necessariamente como um ser procriador e responsável pela manutenção da espécie a
partir de um sistema fundado na divisão sexual de comportamentos e de trabalho.
Para tanto, cria-se uma normatividade compulsória, decorrente dessa construção
cultural, que impõe o dever de pertencer a um sexo e de desempenhar papéis que lhes são
designados. Essa normatividade se perpetua institucionalmente nos sistemas de saúde,
educacional, nas relações de trabalho e emprego e no sistema jurisdicional, e resta a
população que diverge dessas normas culturais o lugar da discriminação, abjeção e
marginalização, estando sujeita a violências verbais, físicas, a ocuparem os empregos
menos remunerados, ou mesmo a só trabalhar de forma autônoma, informal, e, muitas
vezes, degradante.
Ademais, em diferentes épocas, a não identificação do indivíduo com o gênero
estabelecido pela sociedade, ou com a sexualidade por ela imposta, resultava em um
enquadramento jurídico como “crimes contra a natureza”, que deveriam ser repreendidos
e punidos para não se disseminar na coletividade. Não havia o que se falar em garantias
mínimas ou equiparação de direitos para aqueles que praticassem quaisquer atitudes ou
manifestações consideradas como “ofensa à moral e aos bons costumes”, que muitas
entidades, em especial as religiosas, classificavam como “o mais torpe, sujo e desonesto
de todos os pecados”.
Hodiernamente, como consequência de uma construção esteada nessas normas
culturais, que vieram a se tornar lacunas jurídicas, são crescentes os dados de violência
12

decorrente do preconceito e da discriminação quanto a orientação sexual, a identidade de


gênero e as expressões de gênero e sexualidade. A América Latina, por sua vez, figura no
topo dos maiores índices estatísticos de mortes violentas de pessoas que compõem o
grupo vulnerável chamado SOGIESC – “Sexual Orientation, Gender Identity and
Expression, and Sex Characteristics”1, as quais também vêm doutrinariamente sendo
descritas pelo acrônimo “LGBTQIAP+”.
A sigla LGBTQIAP+, por sua vez, designa a luta política em razão do respeito
à diversidade de orientações sexuais e identidades de gênero, levando em consideração
sua constante mutação em atenção à complexidade humana de se relacionar e atribuir
significados linguísticos para tais relações. Portanto, o referido acrônimo compreende
pessoas que se identificam como lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, transexuais,
travestis, queer, intersexuais, assexuais, pansexuais. Se faz necessário pontuar que a
presença do símbolo de “+” diz respeito exatamente a outras formas de entendimento da
sexualidade e identidade de gênero, que merecem igual respeito e igual consideração,
onde registra-se, a título exemplificativo, que este estudo também se refere às pessoas
pansexuais, polissexuais, agênero, curiosos, “questionando-se” e aliados.
Para mais, dentre os países da região que possuem as estatísticas mais
preocupantes, se encontra a situação da República Federativa do Brasil, objeto da presente
pesquisa. Desde sua colonização, e por mais de 300 anos, as vivências homossexuais e
transexuais foram consideradas crimes no Brasil. Mesmo após a descriminalização, que
ocorreu no ano de 1830, a repressão moral e as tentativas de restrição de gênero e
sexualidade continuam sendo uma realidade, que se traduz em violência e discriminação
até os dias atuais.
Dados coletados pela Organização Não Governamental “Acontece Arte e
Política LGBTI+” estimam que, entre os anos de 2000 e 2021, foram efetivamente
registrados 5.362 (cinco mil, trezentos e sessenta e duas) mortes de pessoas que compõem
a comunidade LGBTQIAP+ no Brasil. Desses, somente no ano de 2021, 316 pessoas
LGBTQIAP+ perderam sua vida para o preconceito e a violência incutidos na sociedade,
enquanto no ano de 2022 foram registrados 256 casos de mortes violentas dessa
população. Estes números são apenas estimativas, visto a ausência de uma coleta geral e

1
O acrônimo SOGIESC é utilizado doutrinariamente para se referir as minorias que são instituídas em
razão de sua “Sexual Orientation, Gender Identity and Expression, and Sex Characteristics”
13

completa de dados estatísticos de assassinatos motivados pela identidade de gênero e pela


sexualidade, fruto de uma negligência governamental.
Nos últimos anos, mais especificamente entre 2019 e 2021, verifica-se no Brasil
um retrocesso quanto as pautas de direitos humanos no Congresso Nacional brasileiro,
oriundo do aparelhamento das instituições públicas com servidores militares e religiosos,
levantando um viés teocrático sobre os atos governamentais e as políticas públicas
voltadas a diversidade sexual e de gênero. Soma-se a esse contexto a estimativa de que,
atualmente, conforme dados divulgados pelos pesquisadores do instituto de psiquiatria da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) na revista científica
Nature Schientific Reports, 19 milhões de pessoas se auto identificam como pertencentes
a sigla ALGBT (Assexuais, lésbicas, gays, bissexuais e transexuais), representando
12,04% adultos residentes na República Federativa do Brasil, as quais se encontram como
vítimas em potencial da violência e privação de direitos.
Outrossim, o respeito à diversidade, em detrimento das diversas formas de
intolerância, é considerado um dos desafios do Direito Internacional dos Direitos
Humanos da atualidade. Para tanto, nas últimas décadas, têm-se ampliado a busca pela
efetivação da igualdade dos direitos de cidadania às pessoas LGBTQIAP+, por meio de
fóruns e reuniões internacionais, a fim de elencar os bens jurídicos que devem ser
protegidos da discriminação, de forma a discutir novas interpretações para as normas
internacionais de direitos humanos já existentes, a fim de incluir menções expressas à
proteção dessas pessoas, como também a criação de novos instrumentos de proteção
internacional que objetivam reforçar a proteção desses bens contra as discriminações
motivadas por orientação sexual e identidade de gênero, e objetivando reduzir os dados
estatísticos de violência e discriminação.
Destaca-se, nesse contexto, a atuação do Sistema Interamericano de Proteção aos
Direitos Humanos - SIPDH, composto pela Comissão Interamericana e pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos, sendo este último o órgão jurisdicional competente
para zelar e interpretar os dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Nas duas últimas décadas, esses órgãos vêm direcionando sua atenção aos casos de
violação dos direitos humanos das minorias sexuais nos países membros da Organização
dos Estados Americanos, de forma a proferir sentenças e opiniões consultivas
paradigmáticas para os Estados que ratificam seus tratados.
A partir do contexto narrado, responder-se-á durante o trabalho a seguinte
questão: como os marcos normativos internacionais de proteção aos Direitos Humanos e
14

a jurisprudência da Corte IDH podem contribuir para a construção jurídica de uma


cidadania LGBTQIAP+ que dialogue com as leis e decisões judiciais brasileiras e
contribua para a sua compatibilização ao contexto de proteção que vem sendo construído
internacionalmente, de forma a romper com a normatização construída culturalmente, que
restringe as expressões de gênero e sexualidade?
Nesse sentido, o trabalho tem como objetivo geral estudar a normatização da
sexualidade e identidade de gênero, a partir da situação das pessoas LGBTQIAP+ na
República Federativa do Brasil, e as contribuições que o diálogo com as normas de direito
internacional e a jurisprudência atualizada da Corte IDH podem trazer para a melhoria
dos direitos de cidadania desses grupos vulneráveis
Para tanto, é mister alcançar estes objetivos específicos: contextualizar as
desigualdades de gênero e sexualidade e apresentar dados estatísticos de violência contra
as pessoas LGBTQIAP+ na República Federativa do Brasil; situar os marcos normativos
internacionais de proteção aos Direitos Humanos das pessoas LGBTQIAP+; investigar
como a Corte Interamericana de Direitos Humanos vêm enfrentando os casos de
discriminação em razão de orientação sexual e identidade de gênero; analisar os julgados
do Supremo Tribunal Federal brasileiro e sua interação com as normas e a jurisprudência
internacional.
Tais objetivos específicos serão desenvolvidos em quatro capítulos. O capítulo
dois, inicialmente, realiza uma análise histórico-jurídica das relações e das teorias de
gênero que tentam explicar as desigualdades entre homens e mulheres que persistem até
os dias atuais, e o papel do direito no estabelecimento e manutenção dessas desigualdades.
Em seguida, também se apresentam os dados estatísticos que demonstram a dimensão
demográfica de pessoas LGBTQIAP+ residentes atualmente na República Federativa do
Brasil, e os dados estatísticos de mortes violentas dessas pessoas nas últimas décadas,
com objetivo de fundamentar a necessidade de proteção jurídica desses grupos em
situação de vulnerabilidade.
O capítulo três pretende situar os marcos normativos de proteção às minorias
SOGIESC como um dos grandes desafios contemporâneos do direito internacional dos
direitos humanos, construídos em consonância com os princípios da dignidade da pessoa
humana e da igualdade e não discriminação. Nesses termos, o capítulo aborda os
principais tratados do sistema universal de proteção aos direitos humanos, e como eles
nasceram sem a previsão de proteção das minorias sexuais, e vêm ganhando novas
interpretações ampliativas nas últimas décadas, com destaque para os princípios de
15

Yogyakarta que vieram elencar diversos aspectos da cidadania que devem ser respeitados
pelos Estados, a fim de se reparar as disparidades construídas historicamente, que
deixaram às margens da sociedade as pessoas LGBTQIAP+.
Logo em seguida, o capítulo quatro traz as abordagens práticas do Sistema
Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos no enfrentamento das questões de
violência e discriminação das pessoas LGBTQIAP+. Para tanto, destacam-se cinco casos
emblemáticos decididos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos nas últimas duas
décadas, cujo recorte metodológico se dá a partir da condenação de Estados pela violação
dos direitos humanos das pessoas, motivada pelo preconceito em razão de sua sexualidade
e identidade de gênero, e tendo como resultado o pronunciamento pela reparação,
restituição, satisfação de garantias de não repetição das violações verificadas. Para tanto,
foi utilizado como motor de busca o “Caderno de Jurisprudência da Corte Interamericana
de Direitos Humanos”, número 19, publicado no ano de 2021e disponível no sítio oficial
da organização.
Verifica-se também, nesse momento, o questionamento de como a interpretação
dos instrumentos da Corte IDH deve modificar as interpretações internas de todos os
países que ratificam a Convenção Americana de Direitos Humanos. Propõe-se formas de
se compatibilizar as normas e decisões judiciais brasileiras ao contexto de proteção que
vem sendo construído pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, a exemplo do
controle de convencionalidade dos tratados internacionais de direitos humanos e do
respeito à jurisprudência da Corte IDH.
O capítulo cinco nos apresenta ao conceito de cidadania sexual, e suas
implicações jurídicas, assim como busca nas decisões do Supremo Tribunal Federal
brasileiro uma compatibilização com o contexto normativo de proteção às minorias
sexuais que vem sendo construído pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos e pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos, de forma a identificar se tais marcos foram
levados em consideração pelo Tribunal Constitucional
Levanta-se a hipótese de que os instrumentos internacionais de proteção dos
direitos humanos das pessoas LGBTQIAP+ devidamente ratificados pelo Brasil, assim
como as decisões judiciais proferidas em casos contenciosos da Corte IDH, em razão da
ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos pelo Brasil, devem ser
instrumentos de compatibilização das normas domésticas e fundamento das decisões
judiciais proferidas pelos órgãos administrativos e judiciais.
16

No mais, a pesquisa é orientada pelo método hipotético dedutivo, e tem como


métodos auxiliares o método histórico, com objetivo de considerar o contexto histórico
pelas quais as pessoas LGBTQIAP+ estão submetidas no Brasil, que fundamenta as
implicações normativas e jurisprudenciais, assim como o panorama histórico de
desenvolvimento e construção internacional da proteção jurídica dos indivíduos contra
discriminação motivada por sexualidade e identidade de gênero, e o método estatístico, a
partir da apresentação de dados coletados de estudos sistematizados sobre as várias
manifestações do preconceito e da violência contra as pessoas LGBTQIAP+ no Brasil.
Além disso, para fundamentar a pesquisa foram utilizados trabalhos doutrinários
nacionais e internacionais, que consistem em livros, artigos científicos, teses e
dissertações. Também foram analisadas decisões jurisprudenciais da Corte
Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Resta
salientar que durante todo o trabalho se faz indispensável o intercâmbio entre a análise
jurídica e outras áreas do conhecimento, como a história, a sociologia, a filosofia política
e a antropologia.
Assim, partindo o contexto apresentado, a presente dissertação de mestrado
justifica-se pelo fato de os dados estatísticos de violência serem atuais, alarmantes e
estarem distribuídos por toda a extensão do país, assim como pelas crescentes
contribuições que as normas de direito internacional e a jurisprudência contenciosa da
Corte IDH vêm trazendo para a discussão.
Por meio do estudo, constatou-se que o direito, visto como um mecanismo de
emancipação de grupos sociais culturalmente marginalizados, vêm cada vez mais se
preocupando, em âmbito internacional, em estabelecer garantias expressas de proteção
jurídica e de efetivação da cidadania conferida aos grupos vulneráveis que compõem o
acrônimo SOGIESC. Portanto, no que se refere ao Estado brasileiro, este deve considerar,
quando da análise da compatibilidade de suas leis e decisões proferidas em âmbito judicial
e administrativo, os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos
voltados a tutela dos direitos e garantias direcionados às pessoas LGBTQIAP+
devidamente ratificados pelo Brasil, assim como as decisões judiciais proferidas pela
Corte IDH, na apreciação dos casos contenciosos sobre o tema, e em razão da ratificação
da Convenção Americana de Direitos Humanos pelo Estado brasileiro, tendo como
objetivo erradicar os alarmantes dados estatísticos de violência no país e corrigir as
disparidades estabelecidas culturalmente.
17

2. A NORMATIZAÇÃO DA SEXUALIDADE E DA IDENTIDADE DE


GÊNERO COMO UM PROBLEMA JURÍDICO

A repressão moral e as tentativas de restrição de gênero e sexualidade estão


presentes, historicamente, nas sociedades ocidentais em razão da construção de suas bases
sob os conceitos de heteronormatividade e cisnormatividade, que estão fundados na ideia
de função procriativa da sociedade.2 Esses conceitos se disseminaram por intermédio das
tradições presentes na cultura judaico-cristã, conferindo origem a diferenciação de
práticas consideradas “normais” e “anormais”3.
Nesse momento, se faz importante conceituar quatro elementos: o sexo
biológico, a identidade de gênero, os papéis de gênero e a orientação sexual. O sexo
biológico consiste nas informações cromossômicas, nos órgãos genitais, capacidades
reprodutivas e características fisiológicas utilizadas como parâmetro distintivo entre
“machos” e “fêmeas”4. Enquanto isso, o gênero é a denominação conferida à dimensão
social pelo qual a cultura transforma esses indivíduos em “homens” e “mulheres”, de
forma que estes desempenhem socialmente os chamados “papeis de gênero”, que são
comportamentos sociais determinados historicamente e geograficamente por meio da
cultura onde aquela pessoa está inserida.
Esse conceito se faz relevante para a compreensão da identidade de gênero, que
consiste na percepção íntima que determinado indivíduo tem de si frente aos gêneros
criados pela cultura. A identidade traduz como aquela pessoa se identifica, seja do gênero
masculino ou feminino, ou a combinação de ambos, variando sua proporção e
independentemente do sexo biológico.5 A orientação sexual, no que lhe diz respeito,
concerne a atração, que pode ser afetiva e/ou sexual, que um indivíduo direciona a outro,
ou a falta dessa atração, podendo ser classificada, a título exemplificativo, como

2
MARINO, Tiago Fuchs; CARVALHO, Luciani Coimbra de; NASCIMENTO, João Pedro Rodrigues. A
Corte Interamericana de Direitos Humanos e a proteção dos direitos LGBTI: construindo um ius
constitituonale commune baseado na diversidade. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v.
11, n. 2, p. 715-735, 7 nov. 2021. Centro de Ensino Unificado de Brasilia.
http://dx.doi.org/10.5102/rbpp.v11i2.7382.
3
BARBOSA, Bruno Rafael Silva Nogueira. Dos Povos Nativos Ao Surgimento Dos Movimentos
Sociais: Influências Dos Discursos Jurídicos, Religiosos e Médicos Para a Construção Do Conceito
De Homossexualidade No Brasil. Revista de Direito Internacional. 2018. p. 270
4
COORDENAÇÃO DE POLÍTICAS PARA A DIVERSIDADE SEXUAL. Diversidade sexual e cidadania
LGBT. São Paulo, 2014. Disponível em: https://justica.sp.gov.br/wp-
content/uploads/2021/02/CARTILHA-DIVERSIDADE-SEXUAL-1%C2%AA-EDI%C3%87%C3%83O-
2014.pdf. Acesso em: 02 fev. 2023. p. 10
5
Ibid., p. 13
18

heterossexual (pessoa que se atrai por outra de sexo ou gênero oposto), homossexual
(pessoas que se atraem por outras do mesmo sexo ou gênero), bissexuais (pessoas que se
sentem atraídas por outras de ambos os gêneros).6
Partindo dos conceitos elencados, o teórico social Michael Warner cria o termo
“heteronormatividade”, que define um sistema de ideias construído fundamentalmente a
partir da heterossexualidade (manutenção de relações amorosas ou sexuais entre pessoas
de sexos diferentes) como premissa normativa básica de convivência em um determinado
espaço social.7 De outro lado, a terminologia cisnorma, de onde se extrai a palavra
cisnormatividade, consiste em uma palavra-conceito que começou a ser utilizada na
década de 1990 por militantes não bináries (pessoas cujo gênero não se define entre
homem e mulher) em âmbito digital, e que foi incorporada pelas publicações acadêmicas
brasileiras a partir da década de 2010, originada da junção do termo “cisgênero”, que
designa as pessoas que se identificam única e exclusivamente com o sexo e o gênero que
lhes foi atribuído na ocasião de seu nascimento8 com a palavra “norma”, de forma a
elucidar a maneira com que os saberes e poderes legitimam e normalizam a sexualidade
e a identidade de gênero.9
A cisnormatividade parte do pressuposto de que cada indivíduo tem, de forma
objetiva, um sexo verdadeiro que é imutável durante toda sua vida, que este é legítimo e
normal, e que tudo que diverge dessa constatação é ilegítimo, anormal e delirante.10 O
prefixo “cis” advém do latim, e, quando relacionada ao tempo, significa algo anterior ou
interior, quando relacionada ao espaço, significa um lugar próximo ou do mesmo lado.
Quando ele é empregado como preposição, ele rege o elemento que vem logo em seguida,
de forma que, quando a preposição se refere a um termo subsequente gênero, sexo ou
norma, o prefixo “cis” indica um alinhamento com algo previamente estabelecido.
Portanto, cisgênero é aquele que se manteve no sexo designado, e que se mantém

6
COORDENAÇÃO DE POLÍTICAS PARA A DIVERSIDADE SEXUAL. Diversidade sexual e cidadania
LGBT. São Paulo, 2014. Disponível em: https://justica.sp.gov.br/wp-
content/uploads/2021/02/CARTILHA-DIVERSIDADE-SEXUAL-1%C2%AA-EDI%C3%87%C3%83O-
2014.pdf. Acesso em: 02 fev. 2023. p. 10 e 11
7
COSTA, Ângelo Brandelli; NARDI, Henrique Caetano. Homofobia e preconceito contra diversidade
sexual: debate conceitual. Temas psicol., Ribeirão Preto, v.23, n. 3, p. 715-726, set. 2015. Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
389X2015000300015&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 10 out. 2021. http://dx.doi.org/10.9788/TP2015.3-
15. p. 719
8
BONASSI, Brune Camillo. Cisnorma: acordos societários sobre sexo binário e cisgênero. 2017. 121 f.
Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2017. p. 20
9
Ibid., p. 20
10
Ibid., p. 23
19

confortável com os papéis sociais e os códigos de conduta atribuídos ao gênero que


pertencem.11
Ser cisgênero também consiste em uma condição sociopolítica que acarreta uma
diversidade de privilégios em razão da aceitação de códigos de conduta e papeis sociais
atribuídos culturalmente ao gênero que o indivíduo pertence.12 Nesse sentido, a
cisgenereidade nos corpos pode variar conforme a adequação maior ou menor a
normalidade suposta, e tal normalidade poderá variar de acordo com a referência que se
utiliza, em especial de tempo e de espaço. O conceito de normalidade varia conforme a
história e o ponto de vista, sendo sempre aberto e inconstante.13
Portanto, a cis-heteronormatividade tratada no presente estudo diz respeito ao
termo que une o conceito de cisnormatividade e heteronormatividade, e descreve a
“normalidade” compulsória esperada e regulada pela maior parte das instituições públicas
e privadas, onde pode-se exemplificar os espaços de convivência religiosos, de saúde, de
trabalho e até mesmo jurídicos.
Outro termo, bastante disseminado em trabalhos científicos da atualidade, é o
termo “homofobia”, popularizado a partir da evolução do movimento político e das
legislações que lutavam pela ampliação dos direitos civis da comunidade LGBTQIAP+,
que pode ser considerado um termo guarda-chuva para designar as diversas formas de
violência e discriminação de pessoas em razão de sua orientação sexual ou sua identidade
de gênero. Esse termo foi idealizado pelo psicólogo George Weinberg, em sua obra
“Society and the Healthy Homossexual” (Sociedade e o Homossexual Saudável), e se deu
a partir da condensação da palavra homossexualphobia. A obra em questão introduz o
preconceito contra orientação sexual como um problema acadêmico digno de discussões,
apreciações e intervenções.14
No mais, em que pese muitos documentos trazidos no presente estudo
apresentem a palavra homofobia, se faz relevante ponderar que o termo revela certas
limitações de nossa linguagem e dos preconceitos implícitos nela, pois se trata de um

11
BONASSI, Brune Camillo. Cisnorma: acordos societários sobre sexo binário e cisgênero. 2017. 121 f.
Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2017. p. 23
12
Ibid., p. 24
13
Ibid., p. 23
14
COSTA, Ângelo Brandelli; NARDI, Henrique Caetano. Homofobia e preconceito contra diversidade
sexual: debate conceitual. Temas psicol., Ribeirão Preto, v.23, n. 3, p. 715-726, set. 2015. Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
389X2015000300015&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 07 dez. 2022. http://dx.doi.org/10.9788/TP2015.3-
15. p. 717
20

termo masculinizante, originário de uma linguagem que também traz em si uma forma de
exclusão e de expressão de preconceitos, característico das línguas latinas, que trazem
regras tradicionais e supostamente neutras de linguagem nos obrigando a utilizar termos
masculinos como se fossem termos genéricos que se referem a mulheres e homens.
Ademais, nos dias atuais, para caracterizar o preconceito em razão da
sexualidade ou identidade de gênero, é mais adequado utilizar-se das terminologias
LGBTFOBIA ou heterossexismo, este último, criado na década de 1970, durante os
movimentos de reinvindicação por direitos civis, e originado a partir das ideias de racismo
e sexismo.15 A utilização desse termo remete a um caráter sociológico, que associa o
preconceito e a discriminação às esferas institucionais, materiais e ideológicas da
sociedade, se referindo a manifestação e perpetuação da ideia de que tudo que não é
heterossexual e cisgênero teria menos valor e legitimidade, e está muito ligado à ideia de
heteronormatividade.16
Portanto, o presente capítulo tem o objetivo de explorar a construção cultural das
normas heterossexistas, que limitam, proíbem e reprimem as expressões de gênero e
sexualidade de diversas pessoas. Muitas dessas normas são resquícios de uma visão
limitada de normalidade que tem origem em diversas formas de cultura, que se perpetuou
por meio do discurso religioso e científico, que foi difundido a partir do colonialismo
proibindo quaisquer atividades sexuais entre pessoas não heterossexuais, e utilizando-se,
muitas vezes, de termos indefinidos como “crimes contra a natureza”, “moralidade” e
“devassidão”.
Assim, este capítulo subdivide-se em dois momentos: o primeiro momento
consiste no entendimento da construção histórica de uma sociedade fundada em normas
de gênero, a partir de uma construção cultural, enquanto o segundo momento apresenta
as consequências factuais de tal construção, que se perpetua desde a antiguidade até os
dias atuais, sob a forma da estigmatização social e da manutenção das desigualdades
sociais que sujeitam as pessoas que compõem a comunidade LGBTQIAP+. Essas
desigualdades se traduzem em dados estatísticos de crimes de ódio, em abuso da força

15
COSTA, Ângelo Brandelli; NARDI, Henrique Caetano. Homofobia e preconceito contra diversidade
sexual: debate conceitual. Temas psicol., Ribeirão Preto, v.23, n. 3, p. 715-726, set. 2015. Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
389X2015000300015&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 07 dez. 2022. http://dx.doi.org/10.9788/TP2015.3-
15. p. 718
16
Ibid., p. 719
21

policial, tortura, violência familiar e falta de interesse dos governantes em modificar tal
realidade social.

2.1 RELAÇÃO ENTRE NORMAS DE GÊNERO, CULTURA E CIDADANIA

Conforme analisa o antropólogo brasileiro Roque de Barros Laraia, em sua obra


“Cultura: um conceito antropológico”, quatro séculos Antes de Cristo, o pensador e
filósofo chinês Confúcio (552-489 a.C.) enunciava que "A natureza dos homens é a
mesma, são os seus hábitos que os mantêm separados".17
Reforçando-se a mesma temática, o historiador grego Heródoto (484-424 a.C.)
também se debruçou sobre o tema ao comparar o sistema social dos Lícios com o sistema
social grego que estava acostumado, afirmando que os Lícios tinham um costume que os
diferenciava “de todos os outros povos”, que consistia na primazia da linhagem materna.
Os lícios, por sua parte, tomavam o nome da mãe e de todas as antepassadas femininas,
e, em sua sociedade, se uma mulher livre formava família com um escravo, seus filhos se
tornavam cidadãos integrais, mas se um homem livre se unia a uma mulher estrangeira
ou concubina, elas não teriam direito à cidadania.18
Ao considerar o costume dos lícios diferente de “todos os outros povos”,
Heródoto assumia uma postura etnocêntrica sobre o tema, ao julgar sua cultura como
parâmetro, em detrimento das outras, ocasião em que ele mesmo chega a conclusão que
“se oferecêssemos aos homens a escolha de todos os costumes do mundo, aqueles que lhe
parecessem melhor, eles examinariam a totalidade e acabariam preferindo seus próprios
costumes”.19
Ainda sobre a questão dos costumes, Roque de Barros Laraia cita o antropólogo
neozelandês Felix Keesing, quando este explica que as diferenças de comportamento
entre os homens não podem ser explicadas pela somatologia20 nem pela mesologia21,

17
LARAIA, Roque de Barros. CULTURA: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1986. (Coleção ANTROPOLOGIA SOCIAL). Direção: Gilberto Velho. p. 10
18
Ibid., p. 10-11
19
Ibid., p. 11
20
Parte da medicina que se ocupa do corpo humano e especialmente das partes sólidas (os ossos, os
músculos etc.). SOMATOLOGIA. In: DICIO, Dicionário Online de Português. 7Graus, 2023. Disponível
em: <https://www.dicio.com.br/somatologia/>. Acesso em: 02 de fev. 2023.
21
Estudo das relações entre os seres e o meio ou ambiente. MESOLOGIA In: DICIO, Dicionário Online
de Português. 7Graus, 2023. Disponível em: < https://www.dicio.com.br/mesologia/>. Acesso em: 02 de
fev. 2023.
22

entendendo que não se correlacionam significativamente a distribuição de caracteres


genéticos e a distribuição de comportamentos culturais. Portanto, qualquer criança
humana saudável, se transportada de seu local de nascimento para qualquer outro lugar
do globo, poderia se desenvolver e ser educada em qualquer cultura sem nenhum
prejuízo.22
Nessa mesma construção conceitual, o antropólogo brasileiro cita outros
pensadores clássicos que corroborraram com as mesmas ideias: em 1690, John Locke
(1632-1704) procurava demonstrar, por meio de seu ensaio sobre o entendimento
humano, que a mente humana nasce como uma caixa vazia, dotada da capacidade
ilimitada de adquirir conhecimento; Jaques Tugot (1727-1781) afirmava que os seres
humanos são possuidores de um tesouro de signos que podem multiplicar de forma
infinita, de reter ideias e transmitir para seus descendentes; Por sua vez, Jean Jacques
Rousseau (1712-1778), por meio de seu Discurso publicado em 1775 acerca da origem e
o estabelecimento da desigualdade entre os homens, atribuía um grande papel à educação
nesse processo.23
Ademais, na obra “Cultura: um conceito antropologico”, Laraia expõe a primeira
vez em que o conceito de cultura foi definido, que ocorre no ano de 1871, pelo também
antropólogo Edward Tylor (1832-1917), por meio do vocábulo inglês Culture, que
consiste em um complexo que inclui “conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes
ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma
sociedade”24, marcados pelo aprendizado, em detrimento de uma aquisição inata, e
independente de transmissão genética, em termos contemporâneos.25
Em seus estudos, Tylor também demonstra que a cultura pode ser estudada
sistematicamente, por tratar-se de um fenômeno natural que dispõe de fatores causais e
de regularidade, podendo ser observadas as normas que derivam da cultura e a evolução
desses processos culturais e das normas que dele derivam.26
Nesse sentido, conduzindo o diálogo para as relações de gênero e sexualidade,
embora a espécie humana se diferencie por meio do dimorfismo sexual, não é verdadeiro

22
LARAIA, Roque de Barros. CULTURA: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1986. (Coleção ANTROPOLOGIA SOCIAL). Direção: Gilberto Velho. p. 17
23
Ibid., p. 25-27
24
TYLOR, Edward. 1871. apud. LARAIA, Roque de Barros. CULTURA: um conceito antropológico. 14.
ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986. (Coleção ANTROPOLOGIA SOCIAL). Direção: Gilberto
Velho. p. 25
25
LARAIA, Roque de Barros. CULTURA: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1986. (Coleção ANTROPOLOGIA SOCIAL). Direção: Gilberto Velho. p. 25
26
Ibid., p. 30
23

asseverar que o comportamento atribuído a pessoas de sexos biológicos diferentes sejam


oriundos de uma determinante biológica. O estudo de qualquer tipo de sistema de divisão
sexual nada tem a ver com uma questão biológica, mas, essencialmente, com a cultura
empregada sobre determinados indivíduos. Nesse sentido, um menino ou uma menina
não agem de forma diferente em razão de hormônios ou de quaisquer outras
características, mas em decorrência de formas de educação diferenciada.27
Em vista disso, se faz necessário abordar, em um primeiro momento, as teorias
que partem de perspectivas biológicas sobre o que é ser homem ou mulher em sociedade.
Elas fazem parte de um momento onde o conceito de gênero, como é estudado hoje, ainda
não havia sido cunhado de forma científica.
Conforme explica Rafael de Tílio, quando discorre sobre as teorias de gênero, as
perspectivas biológicas, por sua vez, consistem em uma variedade de proposições de
cunho filosófico, religioso e científico difundidas desde o Século XVI no Ocidente pelo
catolicismo, e ampliadas no Século XIX por algumas correntes científicas, a exemplo da
neurobiologia, neuropsicologia, sociologia genética e darwinismo social. Essas correntes
se fundamentam na concepção de que os aspectos biológicos inatos aos indivíduos
definiriam primordialmente suas características psicológicas e subjetivas. Depreende-se
de sua análise que os corpos de homens e mulheres, por serem naturalmente e
anatomicamente diferentes resultam em características psicológicas, sociais e
comportamentais distintas entre si, definindo rígidos papéis de gênero e de vivência da
sexualidade.28
Estas proposições são conceituadas como “essencialismo biológico”, e
conduzem a ideia de que os machos/homens, por dispor de uma maior composição de
massa muscular que as mulheres/fêmeas, seriam os responsáveis pela caça e pelo sustento
da família, e que sua construção psicológica estaria inclinada para a organização do grupo
e ocupação dos espaços públicos. Enquanto isso, as mulheres/fêmeas, responsáveis pela
gestação biológica e detentoras de uma menor composição de massa muscular, estariam
aptas para o cuidado da prole e do parceiro.29 Desses sexos biológicos decorre a

27
LARAIA, Roque de Barros. CULTURA: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1986. (Coleção ANTROPOLOGIA SOCIAL). Direção: Gilberto Velho. p. 19-20
28
TILIO, Rafael de. TEORIAS DE GÊNERO: principais contribuições teóricas oferecidas pelas
perspectivas contemporâneas. Gênero, Niterói, v. 14, n. 2, p. 125-148, maio 2014. p. 128
29
Ibid., p. 128
24

concepção de gênero e de seus papeis, que impõe a existência de um modelo de relação


harmonioso entre ambos, sustentada por uma ideia de dualidade e complementaridade.30
Os principais difusores do essencialismo biológico foram a Igreja Católica (com
a intenção de assegurar a reprodução biológica, a manutenção dos papeis sociais e sexuais
e a família formada pelo casamento) e o discurso médico-científico dos séculos XVIII e
XIX que utilizavam os mesmos argumentos para fundamentar teorias científicas que
reforçavam essa ideia de dualidade. Uma das maiores expressões dessa ciência foi a
relação entre a teoria darwinista aplicada ao espaço social, acreditando que a sexualidade
consistiria em uma extensão da natureza biológica, e que o binarismo foi a configuração
social que funcionou, em termos evolutivos, e que foi capaz de perpetuar a espécie
humana.31
No mais, os teóricos defensores dessa visão concluem que as relações entre os
indivíduos estão definidas a partir de um rígido binarismo, e que as características
psicológicas, sociais e subjetivas realizam-se a partir de características biológicas e
evolutivas, de forma que quaisquer exceção a essa lógica consistiria em uma corrupção
do corpo e da moral, a exemplo das relações entre pessoas do mesmo sexo e das pessoas
que não se identificam com o seu sexo ou não se enquadram no binarismo homem/mulher.
Importante destacar que até os dias atuais muitas teorias ainda se valem da ideia
do binarismo e dessa suposta necessidade complementar entre os sexos para explicar as
reações entre sexo, gênero e sexualidade, como é o caso de algumas vertentes da
psicanálise da antropologia do século XX.32
Dentre estes teóricos da psicanálise e antropologia se encontram Sigmund Freud
e Jacques Lacan, que acreditam que as crianças constroem suas identidades sexuais
“normais” por intermédio de um jogo de identificação com suas figuras paterna e materna,
havendo um elemento simbólico central que rege essas orientações que é o pênis/falo.33
Nesse sentido, o encaminhamento normal do “complexo de édipo” - como é chamada essa
ótica sobre gênero e sexualidade -, consiste na ideia de que em determinado momento
psicossexual os meninos se identificam amorosa e eroticamente com a figura materna,
por possuírem pênis e por naturalmente desejá-la por ser do sexo oposto, e, dessa forma,
rivalizariam com a figura paterna de forma a disputar a mãe e a repudiar as inclinações

30
TILIO, Rafael de. TEORIAS DE GÊNERO: principais contribuições teóricas oferecidas pelas
perspectivas contemporâneas. Gênero, Niterói, v. 14, n. 2, p. 125-148, maio 2014. p. 129
31
Ibid., p. 129
32
Ibid., p. 129 e 130
33
Ibid., p. 130
25

homossexuais, lhes direcionando para possuírem uma postura heterossexual que lhes
confere atração sexual pelas mulheres e repúdio sexual pelos homens.34
Outrossim, no que se refere as meninas, a teoria de Freud e Lacan crê que elas
se identificam amorosamente com o pai, pois este possui pênis e elas não o possuem, e
também com a mãe, esta que também é incompleta pois lhe falta o falo, ao mesmo tempo
que rivalizam com a mãe pois tem interesses no pai, de forma a desejar afetivamente e
sexualmente os homens e desenvolverem um desinteresse sexual pelas mulheres.35 O que
deve ser compreendido sobre esta teoria é que Freud e Lacan acreditam no pênis/falo
como uma norma orientadora que impõe certas vantagens aos homens, por eles possuírem
pênis, sobre as mulheres que tanto teriam inveja do pênis quanto necessitariam se ligar a
alguém que o possua, e qualquer orientação que fuja dessa norma seria considerada como
um desencaminhamento ou uma perversão do desenvolvimento.36
Para mais, os estudos sobre sexo e gênero se intensificam no período Pós-
Segunda Guerra Mundial, a partir dos movimentos feministas, com a intenção de
denunciar e compreender a subordinação social e a invisibilidade política de que as
mulheres vêm sendo vítimas durante todo o percurso histórico, desde a antiguidade, e
partindo-se de um conhecimento acadêmico, com objetivo de fortalecer os movimentos
sociais.37
Logo, são postos em pauta os temas vinculados ao cotidiano, à família, à
sexualidade, ao trabalho doméstico, bem como alguns pressupostos básicos da ciência
que eram hegemônicos na época, como a universalidade, a racionalidade, a neutralidade
a objetividade, com a intenção de contestar quaisquer teorias que partissem da suposição
de que havia uma essência humana, masculina e branca, focada na razão.38
Esses processos de contestação foram amplamente confrontados pelas teorias
que continuavam a se utilizar as justificativas biológicas e teleológicas para explicar as
diferenças entre homens e mulheres. No contexto de tais confrontos, alguns grupos
feministas se propõem a argumentar que alguns fatores sociais são injustos, a exemplo
das formas com que algumas características masculinas e femininas são diferentemente
valoradas; as formas de se distinguir, na sociedade, o que é feminino ou masculino; elas

34
TILIO, Rafael de. TEORIAS DE GÊNERO: principais contribuições teóricas oferecidas pelas
perspectivas contemporâneas. Gênero, Niterói, v. 14, n. 2, p. 125-148, maio 2014. p. 130
35
Ibid., p. 130 e 131
36
Ibid., p. 131
37
MEYER, Dagmar Estermann. TEORIAS E POLÍTICAS DE GÊNERO: fragmentos históricos e desafios
atuais. Revista Brasileira Enfermagem, Brasília, v. 57, n. 1, p. 13-18, jun. 2004. p. 14
38
Ibid., p. 14
26

observam também que aquilo que se pensa e se verbaliza sobre homens e mulheres define
o que é inscrito no corpo de inúmeras pessoas e estipula fatores que definem a vivência
masculina e feminina em uma determinada cultura e em um determinado momento
histórico.
Nesse sentido, o termo gênero vêm surgir no ano de 1968, cunhado por Robert
Stoller em seu livro “sexo e gênero”, e consistia em um regime próprio de constituição
das identidades sexuais, que iria mais adiante das diferenças anatômicas do sexo. Esse
termo passou a ser utilizado pelas teorias feministas, objetivando concretizar o caráter de
construção da identidade das mulheres.39 Assim, o conceito de gênero pode assumir
diversas perspectivasm, sendo objeto de questionamentos, debates e disputas dentro das
várias perspectivas teóricas.40 Nesse iterim, os diversos sentidos do conceito de gênero
são manifestados ao longo da história nas ciências humanas e sociais, por meio de
diversas matrizes teóricas e acarretam em uma expansão de possibilidades acerca da
complexidade das relações sociais e de poder.41 E a partir de cada concepção teórica é
possibilitada a existência de ações diferenciais, que auxiliam tanto na estagnação quanto
na reestruturação das práticas vigentes sobre gênero, que permeiam as relações entre
homens, entre mulheres, entre homens e mulheres ou entre adultos e crianças.42
A Antropóloga Gale Rubin, em seu ensaio “o tráfico de mulheres”, publicado no
ano de 1975, levanta a discussão sobre algumas das ferramentas conceituais onde se pode
descrever parte da vida social que reside a opressão das mulheres, das minorias sexuais e
de alguns aspectos da personalidade humana que estão presentes em todos os indivíduos,
os quais ela conceitua como “sistema de sexo/gênero”, que se compatibiliza com os
conceitos de cisnormatividade e heteronormatividade já abordados.
Para Rubin, o “sistema de sexo/gênero” consiste em “uma série de arranjos por
meio dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da
atividade humana, nos quais essas necessidade sexuais transformadas são satisfeitas”.43
Para tanto, a autora se utiliza de uma leitura crítica de filósofos como Lévi-Strauss e
Sigmund Freud. Para ela, os domínios do sexo, do gênero e da procriação humana vêm

39
FIGUEIREDO, E. Desfazendo o gênero: a teoria queer de Judith Butler. Revista Criação & Crítica, [S.
l.], n. 20, p. 40-55, 2018. DOI: 10.11606/issn.1984-1124.v0i20p40-55. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/article/view/138143. Acesso em: 1 nov. 2022. p. 41
40
TILIO, Rafael de. TEORIAS DE GÊNERO: principais contribuições teóricas oferecidas pelas
perspectivas contemporâneas. Gênero, Niterói, v. 14, n. 2, p. 125-148, maio 2014. p. 127
41
Ibid., p. 127
42
Ibid., p. 127
43
RUBIN, Gale. Políticas do Sexo. São Paulo: Ubu Editora, 2017. Tradução: Jamile Pinheiro Dias. p. 11
27

se sujeitando a transformações durante milênios, em decorrência das incessantes


atividades sociais que moldam os conceitos de sexo, identidade de gênero, desejo e
fantasias sexuais, e concepções de infância.44 Um dos fatores inerentes à estas situações
é o sistema de parentesco, que consiste em formas observáveis e empíricas do sistema de
sexo/gênero.
Em muitas sociedades, o estatuto de parentesco prevalece sobre a biologia, e em
sociedades anteriores à presença do Estado, o parentesco era a linguagem de interação
social que organizava as atividades econômicas, políticas, cerimoniais e sexuais, de uma
forma que o parentesco é capaz de organizar as funções, responsabilidades e privilêgios
de um indivíduo com o outro, bem como a troca de bens e serviços, a forma como se
produzem e distribuem objetos, os rituais e as cerimônias, e as relações de hostilidade ou
de solidariedade entre pessoas ou grupos sociais.45
Nesse sentido, a antropóloga destaca que Lévi-Strauss, em seu ensaio intitulado
“a família”, em especial quando trata sobre “as estruturas elementares do parentesco”
apresenta algumas associações entre parentesco e as regras e sistemas que fundamentam
os arranjos sexuais. Strauss afirma que a essência de um sistema de parentesco pode ser
identificada na troca de mulheres entre os homens. Essa troca se fundamenta no que o
autor acredita ser um método de intercâmbio social presente no período pré-estatal,
ocorrendo como uma maneira de assegurar a coerência entre sociedades da época. Os
presentes, nessa época, figuravam como a melhor maneira de se garantir uma coesão
social entre diferentes grupos. Para tanto, Strauss elabora sua teoria da “reciprocidade
primitiva”, fundamentada na ideia de que os casamentos são uma das formas
fundamentais de troca de presentes, e que a mulher seria o presente mais precioso.46
Coerente com essa ideia também está o “tabu do incesto”, que consiste em um
mecanismo que garante a troca de presentes, necessariamente, entre famílias e grupos
diferentes. Nessa época, não existia explicação genética para a proibição do incesto, mas
a ideia implícita de que o tabu em torno do incesto privilegia a exogamia e a aliança entre
diferentes grupos sociais. O tabu do incesto também tem como ideia uma divisão em torno
do universo de escolhas sexuais dos indivíduos, que separa essas escolhas entre aquelas

44
RUBIN, Gale. Políticas do Sexo. São Paulo: Ubu Editora, 2017. Tradução: Jamile Pinheiro Dias. 18
45
Ibid., p. 21
46
Strauss apud RUBIN, Gale. Políticas do Sexo. São Paulo: Ubu Editora, 2017. Tradução: Jamile Pinheiro
Dias. p. 24
28

que são permitidas e as que são proíbidas, exigindo, nesse caso, que as uniões ocorressem
necessariamente entre pessoas de grupos diferentes.47
A partir do coesão entre o tabu do incesto (que impunha regras as escolhas
sexuais dos indivíduos) e a troca de presentes entre diferentes grupos sociais (onde a
mulher figurava como principal presente), se faz importante refletir o papel que a mulher
passa a ter nesse contexto, pois a troca de mulheres estabelece tanto uma relação de
reciprocidade quanto de parentesco entre grupos sociais. Nessa conjuntura, os parceiros
de trocas se tornam afins, pois seus descendentes serão consanguíneos, formando uma
rede de relacionamentos que constituem uma rede de parentesco. Strauss assevera que
parentesco é organização, e organização traz poder. Ocorre que, na forma com que essa
organização se configura, os homens figuram como parceiros de trocas enquanto as
mulheres figuram como objeto das transações.48
O conceito de troca de mulheres de Strauss se relaciona diretamente com a
cultura e com sua característica de ser inventiva, e tem como consequência situar a
opressão das mulheres nos sistemas sociais e não nas condições biológicas. Esse conceito
pode ser identificado em várias práticas sociais, quando as mulheres são tomadas durante
combates, ou trocadas por favores, enviadas como tributo, compradas ou vendidas.49
Nesses termos, a mulher se torna um veículo das relações, e não uma parceira de troca, o
que implica uma distinção entre quem oferta e o que é ofertado, onde aos homens, que
estão no papel de parceiros de troca, é conferido o poder do laço social e o benefício de
participar da organização social, que é o produto de tais trocas.
Para Rubin, o conceito de troca de mulheres não consiste em uma definição de
cultura, nem em um sistema em si, mas têm sua importância na condensação de alguns
aspectos das relações de sexo e gênero. Ela acrescenta que um sistema de parentesco
impõe fins sociais a uma parcela do mundo natural, traduzindo-se em uma transformação
de objetos com um propósito subjetivo. Ele possui sistemas próprios de relações de
produção, de troca e distribuição que envolvem certas formas de “propriedade” sobre os
indivíduos, e estabelece diferentes tipos de direitos que algumas pessoas podem ter sobre
as outras. Esse sistema tem uma área de atuação mais ampla, acessando a seara da

47
Strauss apud RUBIN, Gale. Políticas do Sexo. São Paulo: Ubu Editora, 2017. Tradução: Jamile Pinheiro
Dias. p. 24 a 26
48
Ibid., p. 24
49
Ibid., p. 26
29

sexualidade, dos status genealógicos, ancestralidade e de acesso a direitos quando


observados em sistemas concretos de relações sociais.50
Outro ponto abordado por Rubin acerca das teorias de Strauss diz respeito a
divisão sexual do trabalho, que pode mudar conforme a sociedade objeto de estudo, mas
que tem como característica comum uma menor unidade econômica composta por um
homem e uma mulher, e que detém como propósito assegurar a união entre homens e
mulheres. Nesse sentido, a divisão do trabalho por sexo, que divide os sexos em duas
categorias mutuamente excludentes, pode ser vista como um tabu que amplia as
diferenças biológicas e, dessa forma, cria o gênero.51 Essa divisão também cria um tabu
contra arranjos sexuais diversos dos heterossexuais, e prescrevem o casamento
heterossexual. Em resumo, Gale Rubin conclui que “a organização social do sexo é
baseada no gênero, na heterossexualidade compulsória e na imposição de restrições à
sexualidade feminina”, e o gênero, por sua vez, consiste em uma divisão de sexos imposta
socialmente, produto das relações sociais de sexualidade. O sistema de parentesco se
fundamenta no casamento, e transformam pessoas do sexo masculino e feminino em
homens e mulheres, que se completariam mutuamente a partir da união conjugal.52
Outra questão ressaltada pela autora é de que a divisão dos sexos tem como
consequência a supressão de um locus da personalidade humana de praticamente todos
os indivíduos, homens ou mulheres, se conectando ao mesmo sistema que oprime
mulheres nas relações de troca, conforme relatado anteriormente. Rubin acredita que
Strauss chega próximo a afirmar que a heterossexualidade é um processo instituído, pois
o gênero é incutido nos indivíduos para assegurar o casamento. O “tabu do incesto”
também pressupõe a existência de um outro tabu sobre a homossexualidade, pois, de
forma menos explícita, a presença de regras sobre determinadas atividades heterossexuais
pressupõe um tabu contra outras formas de relações, como é o caso dos arranjos familiares
entre pessoas do mesmo sexo.53
Nesse sentido, pode-se concluir que o sistema de parentesco descrito por Strauss
gera restrições associadas aos comportamentos descritos como masculinos ou femininos,
determinando também um tipo específico de sexualidade a ser seguida, e exercendo um
maior papel normativo sobre as mulheres, no sentido de conformá-las ao sistema de

50
Strauss apud RUBIN, Gale. Políticas do Sexo. São Paulo: Ubu Editora, 2017. Tradução: Jamile Pinheiro
Dias. p. 28 e 29
51
Ibid., p. 30
52
Ibid., p. 30 e 31
53
Ibid., p. 32
30

parentesco. Nesses casos, as dívidas conjugais são calculadas entre as mulheres, onde
essa mulher se torna obrigada a ser parceira sexual de um homem a quem ela é devida
como uma compensação decorrente de um acordo prévio, e sua recusa interromperia um
fluxo de compromissos. Nesses casos, também há a compulsoriedade pela
heterossexualidade, pois, se hipoteticamente duas mulheres decidissem recusar os
acordos firmados, onde elas eram objetos prometidos a homens, para se unir afetivamente
ou sexualmente, elas gerariam duas interrupções de dívidas em que elas estavam
implicadas.
Sobre a questão da sexualidade, no ano de 1982 Rubin apresentou, na
conferência “Scholar and Feminist, no Barnard College” (Nova York) o seu texto
intitulado “Pensando o Sexo”, no qual a autora explica que, assim como outros aspectos
do comportamento humano, a sexualidade é um produto da atividade humana que varia
conforme o tempo e o lugar onde ela é observada, e suas várias formas de manifestação
são “permeadas por conflitos de interesses e manobras políticas”, havendo períodos onde
as discussões sobre sexualidade são mais politizadas, como é o caso da Inglaterra e dos
Estados Unidos no final do século XIX.54
Para tanto, historicamente, existem uma série de aspectos persistentes do
pensamento sobre o sexo, os quais a autora enuncia, asseverando que eles aparecem em
contextos políticos distintos, e que embora apresentem-se por meio de novas expressões,
eles reproduzem os mesmos axiomas fundamentais. Um desses axiomas é o
“essencialismo sexual”, que consiste no conceito de que o sexo é uma força natural
anterior a vida social, e que confere forma às instituições, sendo considerado imutável
associal e trans-histórico.55 Para tanto, Rubin cita que Michel Foucault, em sua “história
da sexualidade”, foi um crítico dessa visão tradicional de sexualidade, concebida como
um impulso natural da libido, onde o autor argumenta que os desejos não são entidades
biológicas preexistentes, mas existem a partir do decorrer de práticas sociais específicas,
ressaltando que novas sexualidades são constantemente produzidas.56
Isso não quer dizer que há uma total desconsideração entre sexualidade e o
caráter biológico dos seres humanos, mas que a sexualidade humana não pode ser
compreendida apenas por esse viés, tendo em vista que ela se utiliza do corpo, do cérebro,

54
RUBIN, Gale. Políticas do Sexo. São Paulo: Ubu Editora, 2017. Tradução: Jamile Pinheiro Dias. p. 63-
64
55
Ibid., p. 77
56
Ibid., p. 78
31

da genitália e da linguagem para se expressar, e que tais elementos não podem ser
separados dos significados que a sociedade confere a eles por intermédio da cultura,
portanto seus conceitos são fundados em uma construção social e histórica.57
Rubin ressalta a existência de formações ideológicas incutidas no pensamento
sexual, onde a principal delas diz respeito ao que a autora chama de “negatividade
sexual”, que é uma ideia presente nas sociedades ocidentais que consideram o sexo uma
força perigosa, destrutiva e negativa, presente na tradição cristã como algo pecaminoso,
que só pode ser redimido se praticado dentro do casamento, com finalidade procriativa e
sem foco no prazer. A autora explica que essa visão decorre da ideia que a genitália é uma
parte inferior do corpo, que detém um status aquém de outros órgãos como a mente, a
alma e o coração, e se assemelhando aos órgãos excretores.58
Nessa perspectiva, todas as questões que são ligadas ao sexo são considerados
más, exceto se possuirem uma razão que o justifique, tal como o casamento, a reprodução
e o amor, e quaisquer diferenças de valor ou de comportamento são duramente
repreendidas e punidas. Cria-se um sistema hierárquico de valores sexuais, onde os
heterossexuais que se unem matrimonialmente e procriam se encontram localizados no
topo da hierarquia, seguidos pelos casais heterossexuais monogâmicos não casados, e
seguidos por outros heterossexuais. Descendo a hierarquia, estão o sexo solitário, de
forma controversa, e logo abaixo os casais lésbicos e gays que estão juntos há uma longa
data, estes que detém maior respeitabilidade que as pessoas lésbicas e gays solteiras
(livres para contrair mais de um parceiro). As classes mais desprezadas da pirâmide
hierárquica de sexualidade, de acordo com Rubin, são as pessoas transexuais, travestis,
fetichistas, sadomasoquistas, profissionais do sexo e os modelos pornográficos.59
O reflexo dessa pirâmide hierárquica destacada diz respeito às diferentes formas
com que esses grupos sociais são incluídos na sociedade e podem gozar de sua cidadania
plena. Nos termos de Rubin, pessoas localizadas no topo da cadeia hierárquica, “são
recompensados com o reconhecimento de saúde mental, respeitabilidade, legalidade,
mobilidade social e física, apoio institucional e benefícios materiais” enquanto que, na
medida em que a hierarqua vai se deslocando para baixo na escala de comportamentos
sexuais ou ocupações, os indivíduos estão sujeitos à “presunção de doença mental, falta

57
RUBIN, Gale. Políticas do Sexo. São Paulo: Ubu Editora, 2017. Tradução: Jamile Pinheiro Dias. p. 79
58
Ibid., p. 81
59
Ibid., p. 83
32

de idoneidade, tendência a criminalidade, restrição de mobilidade social e física, perda de


apoio institucional, sanções econômicas e processos penais”.60
As teorias modernas de gênero, por sua vez, têm notoriedade a partir das teorias
propostas pela historiadora norte americana Joan Wallach Scott, na década de 1980. Sua
intenção era organizar e propor uma nova conceituação de gênero, estando influenciada
pelas diversas correntes feministas, pelo desconstrucionismo de Derrida e pelos estudos
sobre poder de Michel Foucault.61
Scott, por sua vez, questiona como o gênero funciona nas relações sociais
humanas, e como ele confere sentido à organização e percepção do conhecimento
histórico. Para tanto, a autora entende que as respostas dependem do gênero como uma
categoria de análise. Para ela, quando os historiadores tentam teorizar sobre gênero, eles
utilizam-se de abordagens essencialmente descritivas, de forma a não interpretar, explicar
ou atribuir uma causalidade, ou utilizam-se de abordagens de ordem causal, elaborando
teorias sobre a natureza dos fenômenos, procurando compreender sua existência.62
A autora também afirma que, no seu uso recente mais simples, a palavra
“gênero” vem sendo trazida como um sinônimo de “mulheres”, por livros e artigos que
tem como tema a história das mulheres. Nesses casos, os autores objetivam, ao utilizar o
termo, indicar erudição e a seriedade do trabalho, pois o termo “gênero” denotaria algo
mais neutro e objetivo.63 Nesse contexto, o gênero também se integra, por volta dos anos
1980, na terminologia científica das ciências sociais, de forma a incluir as mulheres sem
as nomear, o que Scott nomeia como um aspecto do “gênero” que procura de uma
legitimidade acadêmica pelos estudos feministas.64
Ademais, a autora se refere a gênero como termo que descreve as relações sociais
entre os sexos, este, por sua vez, parte da rejeição às justificativas biológicas já tratadas
anteriormente neste capítulo, e propõe-se a indicar a construção social dos papeis próprios
a homens e mulheres, de forma a referir-se as origens exclusivamente sociais das
identidades subjetivas desses dois. Segundo tal definição, o gênero é uma categoria social
imposta sobre um corpo sexuado, de forma a enfatizar um sistema de relações que pode

60
RUBIN, Gale. Políticas do Sexo. São Paulo: Ubu Editora, 2017. Tradução: Jamile Pinheiro Dias. p. 83
61
TILIO, Rafael de. TEORIAS DE GÊNERO: principais contribuições teóricas oferecidas pelas
perspectivas contemporâneas. Gênero, Niterói, v. 14, n. 2, p. 125-148, maio 2014. p. 133
62
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, [S. l.], v. 20, n. 2,
2017. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721. Acesso em: 4
jun. 2023. p. 74
63
Ibid., p. 75
64
Ibid., p. 75
33

incluir o sexo, mas que não é diretamente determinado por ele nem contribui diretamente
para a sexualidade.65 Para Scott, as abordagens utilizadas nas análises de gênero, pelos
historiadores e historiadoras feministas podem ser resumidas em três posições teóricas,
onde uma delas busca explicar as origens do patriarcado; outra se localiza na tradição
marxista e busca um compromisso com as críticas feministas; e a terceira, dividida entre
pós-estruturalismo francês e as teorias anglo-americanas das relações de objeto, ilumina-
se pelas várias escolas de psicanálise na busca da explicação de como se produz e de
reproduz a identidade de gênero dos sujeitos.66
Ademais, no que se refere as preocupações teóricas referentes ao gênero como
categoria de análise, a autora as situa no final do século XX, onde o termo gênero participa
das tentativas, por parte das feministas contemporâneas, de reivindicar certo campo de
definição, reforçando o caráter de inadequação das teorias existentes para explicar as
desigualdades entre os sexos.67
Assim, a definição de gênero de Jean Scott, como a própria autora afirma, é
dividida em duas partes e várias subpartes, que estão inter-relacionadas mas que devem
ser analiticamente diferenciadas. Seu núcleo essencial fundamenta-se na conexão entre
as proposições de que “gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseado
nas diferenças percebidas entre os sexos”, e de que "gênero é uma forma primária de dar
significado às relações de poder”.68
Para tanto, a primeira parte da definição, que consiste no gênero como elemento
constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, implica
em quatro elementos que estão interrelacionados. São eles, em primeiro momento, os
símbolos disponíveis culturalmente, que evocam representações simbólicas, a exemplo
das figuras de Eva e Maria como símbolos da mulher na tradição cristã ocidental, devendo
ser importante, para os historiadores, entender quais são as representações invocadas,
como elas o são, e qual o contexto que isso ocorre.69 Em um segundo momento, os
conceitos normativos que tentam limitar e conter as possibilidades metafóricas desses
símbolos, e que estão expressos nas doutrinas religiosas, científicas, políticas ou jurídicas
e aparecem sob a forma binária fia, que afirma de forma objetiva e inequívoca o

65
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, [S. l.], v. 20, n. 2,
2017. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721. Acesso em: 4
jun. 2023. p. 75
66
Ibid., p. 77
67
Ibid., p. 85
68
Ibid., p. 86
69
Ibid., p. 86
34

significado de homem e mulher. Scott destaca que essas afirmações normativas dependem
da rejeição ou repressão de outras possibilidades de significados, de onde os historiadores
devem se preocupar em quais circunstâncias esse fenômeno acontece.70
A partir desses fenômenos nascem posições dominantes, e a história posterior é
escrita como se eles fossem o consenso social, e não o produto do conflito. Para a
historiadora, o terceiro aspecto de gênero consiste no desafio incutido na nova pesquisa
histórica que corresponde a acabar com essa fixidez e descobrir a natureza do debate que
conduz a essa aparência de intertemporalidade na representação de gênero binária. Para
tanto, ela contesta os pesquisadores, em especial os antropólogos, quando estes resumem
o uso do gênero aos sistemas de parentesco, pois acredita que o mercado de trabalho, a
educação e o sistema político são construídos igualmente nesses espaços.71 O quarto
aspecto de gênero consiste na identidade subjetiva. Para ela, os historiadores necessitam
examinar as formas pelas quais as identidades atribuídas aos gêneros são construídas, e
relacioná-las a todas as atividades, organizações e representações históricas.72
A segunda parte da definição de gênero de Scott parte da premissa de que tal
conceito não é a primeira forma de conferir significados às relações de poder, em que
pese o gênero ser uma forma persistente e recorrente de oportunizar a significação do
poder nas tradições judaico-cristãs e islâmicas. Para a autora, as significações de gênero
e poder se constroem de forma recíproca, sendo o gênero uma das referências por onde o
poder político tem sido concebido, legitimado e criticado.73 Para que haja mudança nesse
contexto de reciprocidade, existem diversos caminhos: as revoluções políticas de massa
que incentivam a revisão dos termos, as crises demográficas, os padrões de empregos a
emergência de novos tipos de símbolos culturais são exemplos citados pela historiadora.
Ademais, conclui Scott que as relações entre homens e mulheres devem ser contestadas,
e não tomadas como algo definido, de forma a refletir os discursos políticos que invocam
gênero para defender determinadas posições. A exploração dessas questões inicia uma
nova história, com novas perspectivas sobre as antigas questões, de forma a redefini-las
em novos termos, abrindo possibilidades de reflexão sobre as atuais estrtégias políticas

70
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, [S. l.], v. 20, n. 2,
2017. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721. Acesso em: 4
jun. 2023. p. 86-87
71
Ibid., p. 87
72
Ibid., p. 88
73
Ibid., p. 92
35

feministas e a restruturação de uma nova visão de igualdade política que não leve em
consideração somente o sexo, mas também a classe e a raça.74
Assim, Scott propõe que a história seja o método e o objeto de estudo das teorias
das relações de gênero, pois a partir de uma análise histórica os estudiosos são capazes
de aferir diversas formas de articulação possíveis entre sexo e gênero, e como ocorrem os
processos de construção e de compreensão das diferenças sexuais. Nesse sentido, gênero
seria uma categoria analítica macro, que compõe os símbolos culturais que regem as
relações humanas, e também possui uma categoria analítica microssociológica, que
consiste na internalização e identificação individual do sujeito das diferenças sexuais.75
Ademais, ainda na esteira das teorias de gênero, outro expoente de grande
destaque consiste na teoria queer, que também se insere em um cenário inaugurado pelos
“novos” movimentos sociais surgidos nos Estados Unidos da América na década de 1960:
o movimento pelos direitos civis da população negra no Sul dos Estados Unidos, o
movimento feminista da segunda onda e o movimento homossexual76, onde
problematizam-se, a partir desse período, tópicos como o corpo, o desejo e a sexualidade,
e a forma com que esses temas expressam relações de poder. No caso das pessoas
homossexuais, enfrentava-se o aparato médico-legal que tentava encaixar suas vivências
em patologias, e representá-los como um perigo social e psiquiátrico.77
Ademais, a teoria queer se consolida historicamente na segunda metade da
década de 1980, durante a epidemia da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA).
Nesse período, os Estados Unidos da América eram governados pelo presidente
conservador Ronald Reagan, cujas políticas públicas se recusavam a aproximar o Estado
do enfrentamento da epidemia decorrente da disseminação do vírus HIV, se recusando a
reconhecer que se tratava de uma emergência de saúde pública.78
Essa epidemia, que surge a partir da contaminação por um vírus, poderia ter sido
enfrentada como outras doenças virais que são tansmitidas de variadas formas, inclusive
pelo contato sexual, a exemplo da Hepatite B, porém, a SIDA foi distinguida como uma

74
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, [S. l.], v. 20, n. 2,
2017. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721. Acesso em: 4
jun. 2023. p. 93
75
TILIO, Rafael de. TEORIAS DE GÊNERO: principais contribuições teóricas oferecidas pelas
perspectivas contemporâneas. Gênero, Niterói, v. 14, n. 2, p. 125-148, maio 2014. p. 134
76
De acordo com MISKOLCI, esses movimentos são chamados de novos movimentos sociais em razão de
seu aparecimento após os movimentos operários, e por trazer a tona demandas que vão além da
redistribuição econômica.
77
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2012. 78 p. (Cadernos da Diversidade). p. 22
78
Ibid., p. 23
36

“Doença Sexualmente Transmissível”, e foi diretamente relacionada as práticas das


pessoas que não seguiam a ordem sexual tradicional, sendo interpretada como um
“castigo” para quem não seguisse as práticas cis-heteronormativas, e transformando-se
em um argumento conservador à então Revolução Sexual que se encontrava em
andamento por meio dos “novos” movimentos sociais outrora citados. Nesse contexto, a
epidemia da SIDA exeplifica que, na primeira oportunidade, os valores conservadores e
os grupos sociais interessados em manter as tradições se direcionam contrariamente às
vanguardas sociais.79
Restou à comunidade LGBTQIAP+ dessa época a estigmatização social, e como
natureza dessa estigmatização sucedem as rejeições, humilhações e abjeção que lhes eram
atribuídas, sendo motivo de desprezo, nojo, e medo da contaminação.80 O termo abjeção,
o qual será reiteradamente utilizado no presente estudo, é definido por Richard Miskolci,
em sua obra ”Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças”, como o espaço que a
coletividade confere à aqueles que ela considera uma ameaça ao seu bom funcionamento,
à sua ordem social e política. O indivíduo considerado abjeto perturba a identidade, o
sistema, a ordem, e sua existência ameaça a visão homogênea e estável da comunidade.
Na época, esse era o papel atribuído às pessoas LGBTQIAP+.81
Como resposta a tal abjeção, surgem grupos de resistência dentro dos próprios
movimentos gay e lésbico, que aceleraram as formas de resistência, onde destacam-se o
ACT UP, relacionada á SIDA com objetivo de atacar o poder, e o Queer Nation, de onde
origina-se a palavra queer.82 Em termos globais, nesse momento ampliam-se o número
de movimentos sociais de reivindicação de direitos, e aumentam-se os propósitos por eles
defendidos: alguns lutam pela legitimação e reconhecimento, pleiteando sua inclusão em
termos igualitários, enquanto outros grupos desafiam os conceitos dicotômicos de
homem/mulher, masculino/feminino, homossexual/heterossexual. No campo teórico, os
movimentos sexuais e de gênero também são modificados por tais mutações, assim como
são alimentados por elas. De forma gradativa, surgem proposições e formulações de
teorias pós-identitárias, de onde se compreende a Teoria Queer.83

79
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2012. 78 p. (Cadernos da Diversidade). p. 23
80
Ibid., p. 24
81
Ibid., p. 24
82
Ibid., p. 24
83
LOURO, Guacira Lopes. TEORIA QUEER: uma política pós-identitária para a educação. Estudos
Feministas, Sl, v. 9, n. 2, p. 541-553, 2001. p. 546
37

Nesse contexto, é importante destacar que a palavra queer tinha como sentido
originário a forma depreciativa de designar as pessoas que fugiam da cis-
heteronormatividade, carregando um sentido sinônimo à bizarro, excêntrico,
extraordinário, estranho (talvez, até mesmo, como um sinônimo de ridículo).84
O movimento queer se diferencia até mesmo dos movimentos homossexuais
forjados na década de 1960, pois, estes eram compostos por valores de classe média
branca e letrada, que buscava sua aceitação e incorporação dentro de uma sociedade já
estabelecida normativamente. O movimento homossexual tinha como sua principal
característica a aceitação dos valores hegemônicos da sociedade, de forma a adaptar a
vivencia homoafetiva dos indivíduos aos valores e as demandas sociais. De forma
diferente, o movimento queer se orienta a partir da crítica às exigências sociais, aos
valores, às convenções culturais e suas influências autoritárias e preconceituosas, e
objetiva enfrentar o desafio de criticar os valores hegemônicos na sociedade e mudá-los
de forma que os valores e as demandas sociais sejam aceitáveis aos cidadãos.85
Nestes termos, se faz necessário apontar a insuficiência do movimento
homossexual frente à diversas outras vivências que compõem a própria sigla
LGBTQIAP+. Este movimento, tinha como seu principal argumento a contraposição à
uma heterossexualidade compulsória e busca de sua aceitação social dentro de uma
sociedade já estabelecida normativamente, e sem confrontar as bases estruturantes de tais
normas. Muitas vezes, essa aceitação social ocorria para aqueles gays e lésbicas mais
normalizados, que aderiam e reproduziam alguns padrões da heteronormatividade
(geralmente pessoas brancas, cisnormativas, de classes médias e altas, que vivem em
centros urbanos, sobretudo nas regiões metropolitanas), e que, por muitas vezes, podem
se tornar agentes da própria heteronormatividade.86
Nesse momento, também se faz importante acrescentar uma reflexão sobre o
papel da religião e da heteronormatividade no processo de abjeção das pessoas
LGBTQIAP+, retomando a conceituação tratada anteriormente neste capítulo, quando foi
estabelecida a relação entre o essencialismo biológico e a religião, em especial as religiões
cristãs, tendo em vista que a Igreja Católica, com a intenção de assegurar elementos como

84
FIGUEIREDO, E. Desfazendo o gênero: a teoria queer de Judith Butler. Revista Criação & Crítica, [S.
l.], n. 20, p. 40-55, 2018. DOI: 10.11606/issn.1984-1124.v0i20p40-55. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/article/view/138143. Acesso em: 1 nov. 2022. p. 43
85
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2012. 78 p. (Cadernos da Diversidade). p. 25
86
Ibid., p. 25
38

a reprodução biológica, a ideia de família formada pelo casamento e a divisão de papeis


sociais e sexuais, disseminava ideias de que os corpos de homens e mulheres, por serem
naturalmente e anatomicamente diferentes, se projetariam na sociedade de formas
diferentes, e, em alguns aspectos, opostas.
Forma-se, a partir daí, um estigma em torno das diversas formas de identidade
de gênero, sexualidade ou expressões de gênero e sexualidade que divergissem dessas
predefinições, mas também se forma um distanciamento das pessoas homossexuais do
convívio social promovido pela religião.
Sobre isso, Laionel Vieira da Silva e Bruno Rafael Silva Nogueira Barbosa
expõem as situações em que, quando as pessoas aceitam sua condição LGBTQIAP+, elas
são imediatamente questionadas pela sociedade sobre sua religião e a validade de sua
identidade. Essa lógica está presente na maior parte das religiões cristãs, que impõe o que
os autores chamam de “relação de exclusão necessária entre as identidades sexual e
religiosa, o que pode configurar-se como um dilema existencial e sério conflito
psicológico e social para alguns”.87 Tal idealização acaba por gerar uma dupla
discriminação para estas pessoas, pois além de serem reprovados por não aderirem ao
padrão cis-heteronosmativo, esses indivíduos também são enquadrados em razão da sua
desobediência a religião dominante, e privados de determinados ambientes sociais onde
outrora transitavam, e onde seus familiares ainda participam.
A religião, nesse caso, figura também como outro aparato normativo, e em razão
de o sujeito se entender como LGBTQIAP+, ele consequentemente não é considerado
como cristão, havendo dois desvios de norma, pois existem poucas religiões de ordem
cristã que aceitam as minorias SOGIESC. Resta ao indivíduo submeter-se aos castigos
religiosos, ou buscar uma outra forma de viver sua religiosidade, por meio de um processo
de identificação religiosa seletiva.88
Nesse contexto, o movimento queer, por sua vez, não só defende a
homossexualidade, ele parte de uma premissa que recusa todos os valores morais que
empurram outras vivências, não normalizadas, à abjeção: são aquelas pessoas
consideradas anormais, ou estranhas, exatamente por não enquadrarem seu gênero ou

87
SILVA, Laionel Vieira da; BARBOSA, Bruno Rafael Silva Nogueira. Entre cristianismo, laicidade e
estado: As construções do conceito de homossexualidade no Brasil. Mandrágora, v.21. n. 2, p. 67-88, 2015.
p. 74
88
Ibid., p. 74
39

suas práticas sexuais à cis-heteronormatividade.89 A terminologia queer é mais inclusiva,


pois não está ligado diretamente à homossexualidade, e sim à contestação às normas,
podendo ser ampliado a mais pessoas que se sentem em contradição com as convenções
culturais, com as obrigações comportamentais impostas socialmente, elucidando as
injustiças e as violências que existem a partir da ideia de que determinadas práticas são
“normais”, em detrimento de outras “anormais”.90
A teoria queer é uma vertente do feminismo, e uma de suas maiores expoentes
foi a filósofa norte-americana Judith Butler, por meio de sua obra “Problemas de gênero:
feminismo e subversão da identidade”, publicada no ano de 1990, a qual questiona a
distinção entre os conceitos de sexo e gênero, contestando a razão de o sujeito do
feminismo serem “as mulheres” e problematizando o que a autora chama de
“heterossexualidade compulsória” imposta tanto pelas instâncias reguladoras de poder
quanto pelos discursos hegemônicos.91 Assim sendo, a autora sinalizava o caráter
construído de todas as identidades, abrindo caminho para uma construção variável da
identidade, que incluiria tanto as mulheres quanto as pessoas transexuais e intersexuais.92
Nesse sentido, o gênero é objeto de estudos a partir da teoria queer como um
elemento cultural que designa papéis tanto para homens quanto para mulheres, e esses
papeis podem ser percebidos a partir das atitudes e gestos que cada indivíduo produz, e
que são qualificados pela sociedade como masculino ou feminino, independentemente do
seu sexo biológico. A política de gênero queer se fundamenta em questionar as demandas
a partir dos sujeitos, e não questionar os sujeitos a partir das demandas, e essa mudança
de eixo se baseia em duas concepções que estudam a dinâmica das relações de poder, são
elas a perspectiva do poder opressor e perspectiva do poder disciplinar.93
Na perspectiva do poder opressor, os sujeitos lutam contra o poder objetivando
sua liberdade, é o caso dos movimentos feminista e homossexual das décadas de 1960 e
1970, que via mulheres e homossexuais como sujeitos oprimidos que deveriam lutar para
libertar-se, e que interpretava o poder como repressivo, que operava de cima para baixo

89
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2012. 78 p. (Cadernos da Diversidade). p. 25
90
Ibid., p. 25
91
FIGUEIREDO, E. Desfazendo o gênero: a teoria queer de Judith Butler. Revista Criação & Crítica, [S.
l.], n. 20, p. 40-55, 2018. DOI: 10.11606/issn.1984-1124.v0i20p40-55. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/article/view/138143. Acesso em: 1 nov. 2022. p. 41
92
Ibid., p. 41
93
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2012. 78 p. (Cadernos da Diversidade). p. 27
40

pelas elites contra o povo.94 Por sua vez, a perspectiva do poder disciplinar luta pela
desconstrução das normas e das convenções culturais que nos constituem como sujeitos,
e se desenvolve a partir da década de 1980 com a disseminação do conceito de gênero e
a inclusão das ideias de Michel Foucault de que o poder está em toda parte e opera por
meio da incitação dos sujeitos a agirem de acordo com os interesses hegemônicos.95
Conectado com os questionamentos levantados pela teoria queer sobre poder,
Adilson José Moreira discute sobre o papel do discurso jurídico nas narrativas raciais, a
partir de interpretações de alguns tribunais brasileiros sobre o princípio da igualdade. O
autor discorre que o discurso jurídico é comumente representado como uma expressão de
parâmetros racionais e universais, mas também pode ser ferramenta para disseminação
de ideologias que pretendem afirmar projetos de dominação, sob o argumento da defesa
de um interesse comum, mas que privilegia determinadas narrativas culturais, como é o
caso da cisnormatividade e da heteronormatividade estudadas neste capítulo.96
Sustentando sua argumentação, Moreira analisa articulações entre teses
ideológicas, sociológicas, psicológicas no processo de argumentação jurídica. Para tanto,
parte da ideia que o sujeito do conhecimento é um produto social, e que se faz relevante
entender as relações entre as cognições humanas e os processos interpretativos, pois tais
cognições são produtos da inserção dos indivíduos na cultura.97 Assim, o autor compara
a percepção de mundo com a linguagem, pois esta impulsiona a socialização, enquanto a
percepção de mundo é conduzida por ideologias que transitam pela sociedade por meio
de várias narrativas.98
As narrativas, por sua vez, referem-se a várias formas que alguém comunica um
acontecimento, organizando fatos e sujeitos em uma ordem temporal, associando uma
série de eventos e produzindo uma interação coerente entre eles. Tal coerência pode
assumir diversas perspectivas, a partir das quais os fatos são relatados, tomando
significado, pois agregam para si discursos específicos. Um discurso é o mecanismo que
confere sentido a narrativa, fornecendo a ela padrões de compreensão de mundo. A partir

94
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2012. 78 p. (Cadernos da Diversidade). p. 27
95
Ibid., p. 27 a 29
96
MOREIRA, Adilson José. Direito, poder, ideologia: discurso jurídico como narrativa cultural / Law,
power, ideology: legal discourse as cultural narrative. Revista Direito e Práxis, [S.l.], v. 8, n. 2, p. 830-
868, jun. 2017. ISSN 2179-8966. Disponível em: <https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/21460>. Acesso em: 06 abr. 2023.
doi:https://doi.org/10.12957/dep.2017.21460. p. 839
97
Ibid., p. 840
98
Ibid., p. 840
41

da narrativa, vários discursos criam e reproduzem significados culturais, de forma a


organizar o processo de conhecimento, influenciando a percepção individual da realidade
social.99
Para moreira, os indivíduos conferem coerência às suas experiências a partir da
produção cultural e individual de funções narrativas, e isso influencia muitas decisões
judiciais pois o discurso jurídico articula cognições sociais na forma de narrativas. O autor
exemplifica que um acórdão pode ser lido como uma forma de narrativa, pois ele descreve
eventos que se tornam significativos por meio da articulação de argumentos jurídicos.100
Conclui o autor que, frequentemente, operadores jurídicos narram casos conforme suas
prefeências ideológicas e apresentam suas decisões como se fossem aplicações imparciais
de princípios jurídicos. Para Moreira, a argumentação jurídica funciona como um meio
onde se propagam e se produzem discursos, e tais discursos tem papel importante na
forma com que o direito molda a realidade social.
Fundado em autores como Willian Eskridge e Lori Beman, Adilson José Moreira
disserta sobre a relevância das normas legais no processo de construção de identidades
pessoais e coletivas, ressaltando que esse processo tem como produto a
institucionalização de traços de certos grupos majoritários como requisito para o pleno
acesso a cidadania, assim como as decisões judiciais possuem o papel de referendar os
interesses de tais grupos como se fossem objetivos de toda a sociedade.101
Assim, as diversas narrativas criadas sobre as pessoas que não se enquadrem em
um sistema cisnormativo e heterossexual, ao longo da história, se transformaram em
diversas formas de mitigação de direitos e apagamento dessas pessoas das políticas
públicas e da convivência cidadã plena. A violência decorrente do preconceito em razão
da sexualidade e da identidade de gênero pode se manifestar de diversas formas, desde a
violência física, verbal, psicológica (ameaças, coerções) até mesmo a negação de direitos
básicos a estas pessoas. Como fora abordado anteriormente, ela se encontra enraizada e
naturalizada em diversas instituições que compõem a sociedade, dentre elas o judiciário,

99
MOREIRA, Adilson José. Direito, poder, ideologia: discurso jurídico como narrativa cultural / Law,
power, ideology: legal discourse as cultural narrative. Revista Direito e Práxis, [S.l.], v. 8, n. 2, p. 830-
868, jun. 2017. ISSN 2179-8966. Disponível em: <https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/21460>. Acesso em: 06 abr. 2023.
doi:https://doi.org/10.12957/dep.2017.21460. p. 840
100
Ibid., p. 841
101
BEAMAN e ESKRIDGE, apud MOREIRA, Adilson José. Direito, poder, ideologia: discurso jurídico
como narrativa cultural / Law, power, ideology: legal discourse as cultural narrative. Revista Direito e
Práxis, [S.l.], v. 8, n. 2, p. 830-868, jun. 2017. ISSN 2179-8966. Disponível em: <https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/21460>. Acesso em: 06 abr. 2023.
doi:https://doi.org/10.12957/dep.2017.21460. p. 842
42

o sistema de saúde e educação, o mercado de trabalho e até mesmo o âmbito familiar


(conforme será apresentado sob a forma de dados estatísticos).
Importante ponderar, a título de diferenciação, que o preconceito, por si, se
manifesta por meio da desqualificação das sexualidades, identidades e comportamentos
destoantes da heteronormatividade, de forma a valorar diferentemente as pessoas que
possuem determinados comportamentos.102 Por sua vez, a violência se constitui como um
fenômeno mais complexo, polissêmico e multifatorial, que se reflete na saúde física e na
saúde mental das vítimas.103
Richard Miskolci também apresenta a expressão “Terrorismo cultural” como
conceito que evidencia uma realidade onde muitas pessoas aprendem sobre sexualidade
a partir de injúrias que são dirigidas a elas ou a outrem. Na vivência escolar, se o indivíduo
sofre a injúria ou observa alguém sofrendo, ele aprende a lógica que se impõe a si, aprende
a se comportar de forma “segura” para não ser alvo de violências, exclusão e abjeção. De
acordo com o autor, o medo da violência figura como a forma mais eficiente de se impor
uma heterossexualidade compulsória, que atinge a todos os indivíduos, mesmo aqueles
que só estão a observar a injúria e os atos de violência, pois, para eles, a violência é um
alerta para aceitarem as normas, caso não queiram se tornar as próximas vítimas.104
Nesses termos, mais da metade das leis homofóbicas da atualidade, também
conhecidas pelas terminologias sodomy laws, ou ati-sodomy laws são heranças do período
colonial, que influenciou diversos ordenamentos jurídicos na América Latina, dentre eles
o sistema normativo brasileiro.105 A seguir, serão apresentados dados estatísticos
referentes à violência contra a população LGBTQIAP+ no Brasil.

2.2 VIOLÊNCIA EM RAZÃO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE


GÊNERO NA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

102
COSTA, Ângelo Brandelli; NARDI, Henrique Caetano. Homofobia e preconceito contra diversidade
sexual: debate conceitual. Temas psicol., Ribeirão Preto, v.23, n. 3, p. 715-726, set. 2015. Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
389X2015000300015&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 10 out. 2021. http://dx.doi.org/10.9788/TP2015.3-
15. p. 719
103
ACONTECE ARTE E POLÍTICA LGBTI+; GRUPO GAY DA BAHIA. Relatório: observatório de
Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil - 2020. Florianópolis, 2021. 79 p. ISBN: 978-65-994905-0-7
104
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2012. 78 p. (Cadernos da Diversidade). p. 33
105
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório anual do Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Direitos Humanos e relatórios do Gabinete do Alto Comissário e Secretário-
Geral (Relatório A/HRC/19/41). Décima-sétima Sessão. Agenda item 8. 2011. Genebra. p. 14
43

A violência motivada pelo preconceito e pela discriminação decorrente da


identidade de gênero, sexualidade, das expressões de gênero e de sexualidade no Brasil
iniciou-se antes mesmo do país ser chamado assim. Por volta do período colonial, quando
os portugueses chegaram ao “Novo Mundo”, trouxeram consigo suas leituras sociais do
que se acreditava ser o “direito natural” pregado pelas religiões, em especial pelo
cristianismo encabeçado pela Igreja Católica.106
A cultura cisnormativa e heteronormativa produz consequências alarmantes para
a vivência em sociedade e o usufruto de uma cidadania plena por parte população
LGBTQIAP+ no Brasil, que lhes afetam principalmente os direitos de personalidade e
sua integridade física e psicológica. Este tópico tem como objetivo reunir e explorar dados
estatísticos provenientes de levantamentos realizados por pesquisadores e ativistas sobre
a dimensão da população LGBTQIAP+ na República Federativa do Brasil dos dias atuais,
com objetivo específico de mensurar a quantidade de pessoas que necessitam ter seus
direitos de cidadania respeitados de forma igualitária e sem discriminação, assim como
apresentar as estatísticas de violência cometidas contra essa comunidade no país,
considerando as diversas nuances e classificações que auxiliam a traçar um perfil
adequado sobre as localidades, ocasiões, os sujeitos mais vulneráveis a cometer e a sofrer
discriminação por conta de suas condições sexuais.
Todavia, antes de aprofundar a seara dos dados estatísticos, se faz necessário o
entendimento das origens históricas e sociológicas da cisnormatividade em solo
brasileiro, que remontam à importação da cultura europeia durante o período da
colonização.

2.2.1 Análise histórica da cisnormatividade e da violência contra a população


LGBTQIAP+ na República Federativa do Brasil

A proposta de analisar a história da cisnormatividade e da violência contra a


população LGBTQIAP+ na República Federativa do Brasil dos dias atuais está
diretamente relacionada ao período em que o país ainda era uma colônia subordinada ao

106
BARBOSA, Bruno Rafael Silva Nogueira. MEDEIROS, Robson Antão de. Dos Povos Nativos Ao
Surgimento Dos Movimentos Sociais: Influências Dos Discursos Jurídicos, Religiosos e Médicos Para a
Construção Do Conceito De Homossexualidade No Brasil. Revista de Direito Internacional. 2018. p. 270
44

Reino de Portugal, este que exportou e expandiu a cisnormatividade para todos os


territórios sob seu domínio. Dessa forma, se faz necessário elucidar, em um primeiro
momento, as normas vigentes no Reino de Portugal do Século XV, quando acontece o
descobrimento do território onde hoje está instalado o Brasil.
Nesses termos, conforme dispõe Ignacio M. Poveda Velasco, Assistente do
Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no
início do Século XV, o Reino de Portugal constata a necessidade de compilar suas normas
em razão de seu amadurecimento histórico e da multiplicidade de normas jurídicas
vigentes em seu território, a exemplo dos foros, das cartas de foral, disposições do direito
justinianeu e canônico, capítulos das Cortes, leis régias e outros diplomas normativos que
estavam distribuídos em diferentes documentos e dificultavam a administração da
justiça.107
Surgem, a partir dessa necessidade, as Ordenações portuguesas, que representam
um esforço vanguardista na sistematização de um direito nacional, que caracterizam
Portugal como um dos primeiros Estados modernos.108 Cumpre destacar, inicialmente,
que todas as ordenações do “Reino de Portugal” apontavam a pena de morte por fogo aos
homossexuais. As primeiras compilações do direito português se iniciaram no tempo de
D. João I (1385-1423), e foram concluídas no ano de 1446, durante a menoridade de D.
Afonso V.109 Os juízes da época entendiam as Ordenações como uma compilação de leis
de vários reinados, aplicadas na forma recolhida, figurando como um registro prático e
legítimo das normas vigentes.110
Nesses termos, as Ordenações Afonsinas, de 1446, eram divididas em 5 livros,
onde o Livro I disciplinava a atividade administrativa do Estado, o Livro II dispõe sobre
matérias relativas à igreja, jurisdição, pessoas e bens dos eclesiásticos, entre outras
disciplinas desse mesmo tópico; o Livro III versa sobre a ordem judiciária, o Livro IV
sobre o Direito Civil, e o Livro V sobre os crimes e as penas.111

107
POVEDA VELASCO, Ignacio M. (1994). Ordenações do Reino de Portugal. Revista Da Faculdade
De Direito, Universidade De São Paulo, 89, 11-67. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67236 Acesso em: 02 fev. 2023. p. 14 a 17
108
Ibid., p. 17
109
Ibid., p. 17
110
BARROS, Gama apud POVEDA VELASCO, Ignacio M. (1994). Ordenações do Reino de Portugal.
Revista Da Faculdade De Direito, Universidade De São Paulo, 89, 11-67. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67236 Acesso em: 02 fev. 2023. p. 17
111
POVEDA VELASCO, Ignacio M. (1994). Ordenações do Reino de Portugal. Revista Da Faculdade
De Direito, Universidade De São Paulo, 89, 11-67. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67236 Acesso em: 02 fev. 2023. p. 18 e 19
45

O objeto de estudo deste trabalho se enquadra especificamente no livro quinto


das Ordenações Afonsinas, mais especificamente em seu título XVI, quando dispõe sobre
a expressão do “pecado de sodomia”, aquele que “sobre todos os pecados bem parece ser
o mais torpe, sujo e desonesto”112, com destaque para a colocação que não havia outro
pecado que aborrecesse a Deus, maior do que este, pelo fato de ele ofender ao criador e a
toda a natureza criada, pelo qual quem cometesse deveria ser queimado e “feito por fogo
em pó, por tal que já nunca de seu corpo, e sepultura possa ser ouvida memória”113.
Ademais, em razão de não haverem sido amplamente publicadas e de sua pouca
divulgação, motivada pela onerosa e demorada tarefa de disseminar cópias das normas
dispostas, as Ordenações Afonsinas tiveram uma breve vigência, situação que foi
modificada após a introdução da imprensa em Portugal no ano de 1487, quando D.
Manuel resolve rever as Ordenações Afonsinas a fim de incluir a legislação extravagante
do reinado de D. João II e de seu reinado, ocasião em que a nova compilação foi apelidada
de Ordenações Manuelinas.114
As Ordenações manuelinas, publicadas nas primeiras décadas do século XVI,
mais especificamente em 1521, também continham cinco volumes, de forma idêntica às
Ordenações Afonsinas, onde a repressão à sexualidade dos indivíduos estava disposta no
seu livro quinto título XII.115 A inovação trazida por esta compilação consiste no estilo
pelo qual elas foram redigidas, pois, em oposição às Afonsinas, as Ordenações
Manuelinas não mais compilavam as leis anteriores, identificando o monarca que as
promulgou.116 De forma pioneira, todas as leis foram reescritas sob a forma de decretos,
utilizando-se de um caráter mais hipotético e abstrato, podendo ser consideradas por
alguns autores como anunciador dos códigos modernos.117

112
BOMFIM, Silvano Andrade do. Homossexualidade, Direito e Religião: da pena de morte à união
estável. a criminalização da homofobia e seus reflexos na liberdade religiosa. Revista Brasileira de Direito
Constitucional - Rbdc, São Paulo, p. 71-103, nov. 2011. Semestral. Disponível em:
http://esdc.com.br/seer/index.php/rbdc/article/view/259. Acesso em: 01 fev. 2022. p. 78
113
Ibid., p. 78
114
POVEDA VELASCO, Ignacio M. (1994). Ordenações do Reino de Portugal. Revista Da Faculdade
De Direito, Universidade De São Paulo, 89, 11-67. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67236 Acesso em: 02 fev. 2023. p. 21
115
BOMFIM, Silvano Andrade do. Homossexualidade, Direito e Religião: da pena de morte à união
estável. a criminalização da homofobia e seus reflexos na liberdade religiosa. Revista Brasileira de Direito
Constitucional - Rbdc, São Paulo, p. 71-103, nov. 2011. Semestral. Disponível em:
http://esdc.com.br/seer/index.php/rbdc/article/view/259. Acesso em: 01 fev. 2022. p. 79
116
POVEDA VELASCO, Ignacio M. (1994). Ordenações do Reino de Portugal. Revista Da Faculdade
De Direito, Universidade De São Paulo, 89, 11-67. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67236 Acesso em: 02 fev. 2023. p. 22
117
Ibid., p. 22
46

No que se refere a criminalização da homossexualidade, as Ordenações


Manuelinas estabeleceram que qualquer pessoa que detivesse conhecimento acerca de
conduta homossexual, e a denunciasse, receberia um terço das propriedades do acusado,
e, mesmo se o acusado não tivesse bens, a Coroa portuguesa pagaria cinquenta cruzados
ao denunciante, após a prisão. A alínea 2 de tal norma estabelecia que, caso alguém
soubesse de conduta homossexual e não denunciassem perderia toda sua propriedade e
sua reputação seria degradada para sempre nos reinos de Portugal .118
Mais adiante, surge a necessidade de se realizar uma nova codificação, em razão
da publicação de diversas leis extravagantes posteriores às Ordenações Manuelinas.
Nesses termos, de ordem do Rei Felipe II da Espanha, que também era Rei de Portugal,
a partir de 1589 (século XVII) inicia-se a elaboração de uma nova codificação, que só
entra em vigor em 1603, durante o reinado de Felipe III (Felipe II de Portugal), com
intuito de atualizar as normas dispostas na codificação anterior, ainda mantendo a
subdivisão em cinco exemplares.119
Nas Ordenações Filipinas de 1603 mantinham as regras de perseguição
anteriormente estabelecidas. Por meio do seu livro quinto, título XIII, se estabelecia a
pena de morte pelo fogo em razão da sexualidade dissidente, porém, trazendo destaque
para a ausência de prejuízo colateral aos seus descendentes, mantendo-se também as
regras para os delatores, que receberiam metade das propriedades dos acusados.120
Importante mencionar a Lei de 29 de janeiro de 1643, que confirmou e revalidou as
ordenações Filipinas em todas as colônias de Portugal, incluindo o Brasil.
À vista disso, se fez importante mencionar os dispositivos legais portugueses
pois, durante todo o processo de colonização e aculturação dos nativos que viviam nas
terras onde hoje é o Brasil, foi implantada a ordem jurídico-política do Reino de Portugal.
Importante destacar que o poder estabelecido no Brasil colonial reproduziu um modelo

118
BOMFIM, Silvano Andrade do. Homossexualidade, Direito e Religião: da pena de morte à união
estável. a criminalização da homofobia e seus reflexos na liberdade religiosa. Revista Brasileira de Direito
Constitucional - Rbdc, São Paulo, p. 71-103, nov. 2011. Semestral. Disponível em:
http://esdc.com.br/seer/index.php/rbdc/article/view/259. Acesso em: 01 fev. 2022. p. 79
119
POVEDA VELASCO, Ignacio M. (1994). Ordenações do Reino de Portugal. Revista Da Faculdade De
Direito, Universidade De São Paulo, 89, 11-67. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67236 Acesso em: 02 fev. 2023. p. 24
120
BOMFIM, Silvano Andrade do. Homossexualidade, Direito e Religião: da pena de morte à união
estável. a criminalização da homofobia e seus reflexos na liberdade religiosa. Revista Brasileira de Direito
Constitucional - Rbdc, São Paulo, p. 71-103, nov. 2011. Semestral. Disponível em:
http://esdc.com.br/seer/index.php/rbdc/article/view/259. Acesso em: 01 fev. 2022. p. 80
47

onde a igreja era uma instituição subordinada ao Estado e a religião oficial desse Estado
consistia em um instrumento de dominação social, política e cultural.121
Sobre esse assunto, Gilberto Freyre, em sua obra “Casa Grande e Senzala”
explica que, ao contrário dos espanhóis que detinham separatismo político e os ingleses
e franceses que detinham divergências religiosas em suas nações, a Coroa Portuguesa
possuía uma certa estabilidade política e religiosa em seu território, de forma a não
exportar elementos conflituosos para as terras colonizadas.122 Ademais, durante quase
todo o século XVI, o Brasil esteve aberto a influências estrangeiras, desde que elas
professassem a fé ou a religião católica. Nesses termos, para ser colono no Brasil, e
consequentemente poder adquirir sesmarias, o principal requisito do indivíduo era
professar a cristã (que em Portugal significava a religião católica).123
O reino de Portugal, por sua vez, não considerava uma ameaça as influências de
estrangeiros em suas colônias, pois sua principal preocupação era com os hereges. Para
tanto, o catecismo dos jesuítas e as Ordenações do Reino de Portugal foram os maiores
garantidores da unidade religiosa e do direito na colônia brasileira.124
Assim, fundado nas normas portuguesas e na sua direta vinculação com a
religião, durante o período compreendido entre 1536-1821 o Tribunal do Santo Ofício da
Inquisição perseguiu os “sodomitas” (pessoas que mantinham relações sexuais ou afetivas
com outras pessoas do mesmo sexo), lhes impondo penas de prisão, sequestro de bens, e,
para aqueles que fossem considerados “incorrigíveis”, a pena aplicada era a de morte.125
No mais, tomando como referência a experiência descrita por Heródoto ao
comparar seu sistema com o dos Lícios, os portugueses chegaram as terras brasileiras no
Século XVI trazendo consigo uma postura etnocêntrica frente à realidade identificada no
“novo mundo”. Eles se depararam com uma sociedade bem estruturada, com regras de
convivência à sua maneira, e, em especial, a aceitabilidade social de relacionamentos
entre pessoas do mesmo sexo e de pessoas que performavam um gênero diferente do seu
sexo biológico, o que lhes causou estranhamento.

121
AZEVEDO, Dermi. apud SILVA, Laionel Vieira da; BARBOSA, Bruno Rafael Silva Nogueira. Entre
cristianismo, laicidade e estado: As construções do conceito de homossexualidade no Brasil. Mandrágora,
v.21. n. 2, p. 67-88, 2015. p. 69
122
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 48. ed. São Paulo: Global, 2003. p. 90
123
Ibid., p. 91
124
Ibid., p. 91-92
125
AZEVEDO, Dermi. apud SILVA, Laionel Vieira da; BARBOSA, Bruno Rafael Silva Nogueira. Entre
cristianismo, laicidade e estado: As construções do conceito de homossexualidade no Brasil. Mandrágora,
v.21. n. 2, p. 67-88, 2015. p. 73
48

Luiz Mott, em seus estudos sobre a igreja e a homossexualidade no Brasil,


destaca alguns dos relatos dos portugueses frente a realidade encontrada, que demonstram
um julgamento que tomava sua cultura como parâmetro valorativo. O primeiro exemplo
ocorre no ano de 1549, quando o Padre Manoel da Nóbrega descreve que “os índios do
Brasil cometem pecados que clamam aos céus e andam os filhos dos cristãos pelo sertão
perdidos entre os gentios, e sendo cristão vivem em seus bestiais costumes”.126
Outra experiência foi relatada pelo jesuíta Pero Correia, no ano de 1551, sobre
os índios que habitavam a região de São Vicente (SP), quando este registra o seguinte:

O pecado contra a natureza, que dizem ser lá em África muito comum, o


mesmo é nesta terra do Brasil, de maneira que há cá muitas mulheres que assim
nas armas como em todas as outras coisas, seguem ofício de homens e tem
outras mulheres com que são casadas. A maior injúria que lhes podem fazer é
chamá-las mulheres.127

Mott registra também que as primeiras sanções aplicadas aos “sodomitas” em


solo brasileiro vêm ocorrer no ano de 1547, quando Estevão Redondo, jovem criado de
Lisboa, é degredado (exilado) pelo Tribunal da Santa Inquisição portuguesa no Brasil, em
Pernambuco. Posteriormente, em 1580, Isabel Antônia é a primeira lésbica a ser
degredada pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição para o Brasil, na Bahia.128
O marco histórico de violência contra a população LGBTQIAP+ no Brasil é a
condenação do primeiro homossexual à morte: em 1613, o Índio Tibira Tupinambá do
Maranhão é executado na cidade de São Luiz, por ordem dos freis capuchinhos franceses,
como bucha de canhão, pelo cometimento do “pecado nefando”.129
Ainda mais, vários são os exemplos registrados de que a cisnormatividade é uma
construção cultural trazida ao Brasil pelos europeus, bem como que a homossexualidade
era uma prática comum entre os índios, assim como a divisão de tarefas que a cultura
europeia classificava como “masculina” ou “feminina”, aqui era desempenhada de forma
diversa, sob uma cultura diferente e específica da cultura europeia, mas nunca inferior
como foi tratada.
Estima-se que durante aproximadamente trezentos anos de atuação, a Inquisição
Portuguesa, que atuava nas colônias africanas, asiáticas e no Brasil, registrou cerca de

126
MOTT, Luiz. Igreja e homossexualidade no Brasil: cronologia temática, 1547-2006. In: Congresso
internacional sobre epistemologia, sexualidade e violência, 2, 2006, São Leopoldo. s. p.
127
Ibid., s. p.
128
Ibid.,
129
Ibid.,
49

4.419 denúncias no index de abominações contra homens suspeitos de práticas do


abominável e pervertido pecado da sodomia.130
Posteriormente, após a independência do Brasil, D. Pedro I sancionou a Lei de
20 de outubro de 1823, que mantinha em vigor as normas promulgadas no tempo da
colônia, até que fossem organizados novos códigos, ocasião em que, no ano de 1830 foi
promulgado o Código Criminal do Império, influenciado pelas ideias de Jeremy Bentham,
pelo Código Penal Francês de 1791, o Código Napoleônico de 1810 e o Código
Napolitano de 1819131, que descriminalizou a homossexualidade no país.132
Ocorre que, mesmo com a descriminalização, persistiu a regulação estatal da
sexualidade transgressora, sob outras tipificações, a exemplo dos crimes “por ofensa à
moral e os bons costumes”, que permitiam as autoridades policiais um alto poder de
regulação dos comportamentos públicos não normativos.133 Conforme destacam Bruno
Rafael Silva Nogueira Barbosa e Robson Antão de Medeiros, em que pese a mudança da
forma com que se tipificavam as condutas tidas como crime, persistia a ideia de que as
pessoas que se desviavam das normas sexuais ainda eram uma ameaça para a sociedade
e seus costumes.134
A ideia das políticas repressoras pode ser considerada até os dias atuais, como
será elencado nos próximos tópicos deste capítulo. A questão é que, mesmo com a
abolição da criminalização da homossexualidade, o aparato estatal, por meio de seus
agentes, principalmente os agentes policiais, visavam desencorajar as manifestações
homossexuais e transexuais nas ruas das cidades. Conforme conceituado anteriormente,
o “terrorismo cultural” se apresentava sob a forma de injúrias, extorsões e violências
policiais, que apresentavam a sociedade brasileira a lógica que se impõe as sexualidades
transgressoras, de forma a ensinar os indivíduos a se comportar de forma “segura” para
não serem vítimas de tal contexto.

130
GREEN, James N. A luta pela igualdade: desejos, homossexualidade e a esquerda na América
Latina. Cadernos ael, 2003. p. 21
131
Ibid., p. 22
132
BARBOSA, Bruno Rafael Silva Nogueira. MEDEIROS, Robson Antão de. Dos Povos Nativos Ao
Surgimento Dos Movimentos Sociais: Influências Dos Discursos Jurídicos, Religiosos e Médicos Para a
Construção Do Conceito De Homossexualidade No Brasil. Revista de Direito Internacional. 2018. p. 277
133
GREEN, James N. A luta pela igualdade: desejos, homossexualidade e a esquerda na América
Latina. Cadernos ael, 2003. p. 22
134
BARBOSA, Bruno Rafael Silva Nogueira. MEDEIROS, Robson Antão de. Dos Povos Nativos Ao
Surgimento Dos Movimentos Sociais: Influências Dos Discursos Jurídicos, Religiosos e Médicos Para a
Construção Do Conceito De Homossexualidade No Brasil. Revista de Direito Internacional. 2018. p. 278
50

Nesse sentido, os principais alvos da tida “limpeza social” eram os homens com
traços tidos femininos e as mulheres com traços tidos como masculinos, considerados
como figuras “escandalosas” e estigmatizadas.135
Ademais, nas primeiras décadas do século XX, em alguns países da América
Latina, como no Brasil e na Argentina, os eugenistas, físicos, psiquiatras e juristas se
voltaram para campanhas que objetivavam “medicalizar” as pessoas homossexuais, sob
a justificativa de que não se tratava de questão moral, religiosa ou policial, mas de uma
questão que requeria a atuação de profissionais com objetivo de coibir tais práticas,
consideradas como “doença” social e pessoal.136 Destaque também para a perseguição
das pessoas homossexuais no Rio de Janeiro, nas décadas de 1950 e 1960, quando o
delegado Raimundo Padilha, político brasileiro, disseminava campanhas de incentivo a
prisão de homossexuais, objetivando uma “limpeza” do centro do Rio de Janeiro.137
O período após a Segunda Guerra Mundial incitou a organização de grupos
políticos de defesa dos Direitos LGBTQIAP+, com destaque para a rebelião de Stonewall
(citada anteriormente neste estudo), que incitou, tempos depois, manifestações na
América Latina, a exemplo da primeira organização política gay da Argentina, El Grupo
Nuestro Mundo, formado por um membro do Partido Comunista Argentino e por ativistas
de sindicatos que representavam trabalhadores, com objetivo de incitar a imprensa a
promover a liberação gay. O crescimento exponencial de grupos políticos de
homossexuais em buscas de direitos civis tem sua ampliação apenas durante as décadas
de 1970 e 1980, se ampliando para países como Mexico e porto Rico138
No brasil, por sua vez, em 1968 têm-se o Golpe Militar, quando os militares
fecharam o Congresso Nacional, instituindo a censura sobre a imprensa e operando
através de prisões e torturas aos opositores, se valendo do uso arbitrário do aparato

135
BARBOSA, Bruno Rafael Silva Nogueira. MEDEIROS, Robson Antão de. Dos Povos Nativos Ao
Surgimento Dos Movimentos Sociais: Influências Dos Discursos Jurídicos, Religiosos e Médicos Para
a Construção Do Conceito De Homossexualidade No Brasil. Revista de Direito Internacional. 2018. p.
278
136
GREEN, James N. A luta pela igualdade: desejos, homossexualidade e a esquerda na América
Latina. Cadernos ael, 2003. p. 22
137
BARBOSA, Bruno Rafael Silva Nogueira. MEDEIROS, Robson Antão de. Dos Povos Nativos Ao
Surgimento Dos Movimentos Sociais: Influências Dos Discursos Jurídicos, Religiosos e Médicos Para
a Construção Do Conceito De Homossexualidade No Brasil. Revista de Direito Internacional. 2018. p.
278
138
GREEN, James N. A luta pela igualdade: desejos, homossexualidade e a esquerda na América
Latina. Cadernos ael, 2003. p. 25 a 27
51

judicial e normativo, de forma a desencorajar quaisquer movimentos por parte da


população LGBTQIAP+ em busca de seus direitos de cidadania.139
Destaca-se, nesse contexto, um movimento organizado de libertação das pessoas
homossexuais aparece a partir de 1975 no Brasil, composto por intelectuais exilados em
razão da ditadura militar, que traziam suas inquietações políticas a partir de suas vivências
fora do país.140 Entre 1977 e 1981, durante um período de intensos embates entre a
oposição composta por estudantes, bem como pelos movimentos grevistas em São Paulo,
há uma abertura política gradual que permite o aparecimento de movimentos sociais em
busca de direitos de igualdade, como é o caso do Movimento Negro Unificado,, do
movimento feminista e dos movimentos por direitos das pessoas homossexuais.141
Em 1980 é fundado o Grupo Gay da Bahia, Organização Não Governamental
mais antiga da América Latina, na defesa da cidadania das pessoas LGBTQIAP+, a qual
realiza levantamentos anuais de dados de violência relacionada ao preconceito e a
discriminação. Posteriormente, em 1985 o Conselho Federal de Medicina removeu o
“homossexualismo” da condição de “desvio e transtorno sexual”. Em 1990, o conforme
relata Luíz Mott, por iniciativa do Grupo Gay da Bahia é aprovada, em Salvador, a
primeira Lei Orgânica Municipal proibindo a discriminação fundada na orientação
sexual, servindo de iniciativa para Estados e Municípios em todo o território nacional que
posteriormente adotaram os mesmos parâmetros normativos.
No ano de 2001, o Presidente Fernando Henrique Cardoso cria o Conselho
Nacional de Combate à Discriminação, logo em seguida, no ano de 2003, durante o
mandato do presidente Luíz Inácio Lula da Silva é criado o Ministério dos Direitos
Humanos, que vem a ser o precursor do “Programa Brasil Sem Homofobia – Programa
Brasileiro de Combate à Violência e à Discriminação Contra Gays, Lésbicas,
Transgêneros e Bissexuais, e de promoção da Cidadania Homossexual”, criado no ano de
2004 pelo qual a então Secretaria Dos Direitos Humanos se comprometeu com a
implementação de mais de 50 ações afirmativas, com objetivo de promover a cidadania

139
GREEN, James N. A luta pela igualdade: desejos, homossexualidade e a esquerda na América
Latina. Cadernos ael, 2003. p. 31
140
LOURO, Guacira Lopes. TEORIA QUEER: uma política pós-identitária para a educação. Estudos
Feministas, Sl, v. 9, n. 2, p. 541-553, 2001. p. 543
141
GREEN, James N. A luta pela igualdade: desejos, homossexualidade e a esquerda na América
Latina. Cadernos ael, 2003. p. 31
52

plena de tal população.142 Ainda nesse mandato, foram promovidas a Conferência


Nacional LGBT (2008) e o Plano Nacional LGBT (2009).143
Outrossim, no governo da presidenta Dilma Rousseff, foram criados um módulo
LGBT no Disque 100 - serviço que recebe, analisa e encaminha denúncias de violações
dos direitos humanos -, assim como o 1º Relatório Oficial sobre Violência Homofóbica
no Brasil (2012), foram promovidas três Conferências Nacionais de Políticas Públicas e
Direitos Humanos LGBTI+ (2011 e 2015), assim como foi desenvolvida a ampliação do
Processo Transexualizador no SUS (2013).144
As demandas de direitos das pessoas LGBTQIAP+ começam a retroceder a
partir do governo interino de Michel Temer (2016), quando as pautas inerentes a
cidadania dessa população passam a ser administradas apenas pela Diretoria do
Ministério de Direito Humanos.145 O retrocesso é ampliado exponencialmente durante o
mandato de Jair Bolsonaro (2019-2021), quando é criado o Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos e são mitigadas as iniciativas referentes aos direitos
humanos das minorias sexuais. Outra medida adotada pelo governo consiste na
proposição de veto ao termo gênero e termos correlatos em resoluções da ONU, assim
como criando uma onda fundamentalista em torno do tema da cidadania LGBTQIAP+,
de forma a aparelhar instituições públicas com servidores militares e religiosos, trazendo
um viés teocrático para diversos atos governamentais e políticas públicas estatais.146
No mais, ainda não existe norma positivada no Brasil que trate expressamente
da criminalização das formas de violência em razão de sexualidade e identidade de gênero
no país, o que existe são soluções paliativas, como a decisão proferida pelo Supremo
Tribunal Federal ano de 2019, quando decidiu, por meio do julgamento conjunto da Ação
Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26 e do Mandado de Injunção nº
4.733, que a Constituição vai de encontro a condutas discriminatórias, reconhecendo
também a presença de uma inércia legislativa no sentido de se criar uma tipificação
específica para homofobia e transfobia, e que enquanto a Congresso Nacional não
corrigisse tal omissão, seria aplicável a Lei nº 7.716/1989, que dispõe sobre o crime de
racismo.

142
MOTT, Luís. Homo-afetividade e direitos humanos. Revista Estudos Feministas, v. 14, n. 2, p. 509–
521, maio 2006.
143
ACONTECE ARTE E POLÍTICA LGBTI+ (org.). Mortes e violências de LGBTI+ no Brasil: relatório
2020. Florianópolis: Acontece, 2021. 79 p. ISBN: 978-65-994905-0-7 p. 13
144
Ibid., p. 13
145
Ibid., p. 13
146
Ibid., p. 13
53

2.2.2 Dados demográficos da população LGBTQIAP+ na República Federativa do


Brasil dos dias atuais

Após a análise histórica e jurídica sobre a forma com que a cultura direcionou as
políticas públicas dirigidas às minorias SOGIESC na República Federativa do Brasil,
também se faz necessário estabelecer a quantidade de indivíduos que pertencem às siglas
que compõem a minoria LGBTQIAP+ no território brasileiro. Para tanto, importante
destacar que a situação de invisibilidade dessas pessoas também se reflete na ausência de
uma coleta geral de dados, que possa quantificá-las e direcionar atividades estatais para
equiparar seus direitos de cidadania. Os dados mais recentes que procuram quantificar e
classificar as minorias sexuais no Brasil, datados os últimos anos, foram desenvolvidas
por pesquisadores de universidades brasileiras. Somente no ano de 2019 o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística realizou seu primeiro censo que afetava as minorias
sexuais, embora bastante limitado conforme será verificado a seguir.
Nesse contexto, a primeira fonte de dados tratada neste estudo consiste no artigo
publicado por pesquisadores do instituto de psiquiatria da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (FMUSP) na revista científica Nature Schientific Reports. A
partir da análise dos pesquisadores, estima-se que atualmente as pessoas ALGBT
(Assexuais, lésbicas, gays, bissexuais e transexuais)147 representam 12,04% dos adultos
residentes na República Federativa do Brasil.148
Este estudo, realizado no mês de dezembro de 2018 e publicado em julho do ano
de 2022, levou em consideração apenas as pessoas contidas na referida sigla, e foi o
primeiro a avaliar a proporção dessa comunidade em um país da américa latina,
utilizando-se de uma amostra representativa da população adulta, e de critérios
preestabelecidos que levam em consideração indicadores econômicos e taxas de
violência. Nesses termos, da população total de adultos brasileiros, estimada em 158

147
Sigla descrita no artigo, cuja pesquisa classificou a população apenas nas referidas siglas.
148
SPIZZIRRI, G., EUFRÁSIO, R.Á., ABDO, C.H.N. et al. Proportion of ALGBT adult Brazilians,
sociodemographic characteristics, and self-reported violence. Sci Rep 12, 11176 (2022).
https://doi.org/10.1038/s41598-022-15103-y
54

milhões de pessoas, constatou-se que aproximadamente 19 milhões de pessoas podem ser


compreendidos na sigla ALGBT.149
O estudo em questão tomou como método de aferição dos dados uma amostra
representativa do que seria a população adulta brasileira, de 158 milhões de pessoas, que
se encontra distribuída em cinco regiões, com proporções demográficas diferentes.
Verificou-se que a região norte detém 8% da população total do Brasil, sendo a menos
populosa, enquanto a região nordeste tem 26%, a região centro-oeste possui 7%, a região
sul guarda 15% da população total, e a região com maior concentração populacional é a
região sudeste, com 44% do total de habitantes adultos do país.150
Para tanto, o Data Folha Research separou uma amostra representativa de 6.000
pessoas, utilizando-se de um método de amostragem complexa que as estratifica por
região, estado, cidade, faixa etária, gênero percebido (masculino ou feminino), e nível de
escolaridade. A partir disso, foi calculado o número total de representantes a serem
entrevistados em cada área, levando em consideração a proporção da população brasileira
naquela região; após, foram sorteadas um total de 129 cidades, de um total de 5.561, onde
os participantes foram escolhidos de forma aleatória em espaços públicos, levando-se em
consideração um número previamente acordado de pessoas de ambos os gêneros
percebidos pelos entrevistadores (masculino e feminino), e de todas as faixas de idade.151
Ao final, da amostra de 6.000 (seis mil) pessoas, não foi possível categorizar 142
pessoas, por falta de resposta, sendo a amostra utilizada de 5.858 pessoas adultas, das
quais chegou-se aos seguintes dados:

Portanto, a amostra utilizada nas análises foi de 5.858, sendo 270 classificados
como LGB (4,42%): 55 lésbicas (0,93%), 83 gays (1,37%), 43 homens
bissexuais (0,70%) e 89 mulheres bissexuais (1,42%). %), 325 assexuais
(5,76%): 22 homens (0,37%) e 303 mulheres (5,39%). 111 pessoas foram
categorizadas em grupos de diversidade de gênero (1,87%): 20 homens trans
(0,34%), 20 mulheres trans (0,34%) e 71 pessoas não binárias (1,18%). 706
pessoas (12,04%, IC 95%=10,05–14,57%) foram categorizadas como
ALGBT.”152

149
SPIZZIRRI, G., EUFRÁSIO, R.Á., ABDO, C.H.N. et al. Proportion of ALGBT adult Brazilians,
sociodemographic characteristics, and self-reported violence. Sci Rep 12, 11176 (2022).
https://doi.org/10.1038/s41598-022-15103-y. p. 3
150
Ibid., p. 2
151
Ibid., p. 2
152
All n reported herein are not design-adjusted, whereas all percentages and confidence intervals (CI) are adjusted.
From the sample of 6000, a total of 142 individuals (2.44%) were not categorized in the Group variable for lack of
responses. Therefore, the sample used in analyses was 5858, 270 of whom were categorized as LGB (4.42%): 55 lesbian
(0.93%), 83 gay (1.37%), 43 bisexual men (0.70%), and 89 bisexual women (1.42%), 325 asexual (5.76%): 22 men
(0.37%) and 303 women (5.39%). 111 people were categorized into gender-diversity groups (1.87%): 20 trans men
(0.34%), 20 trans women (0.34%), and 71 non-binary persons (1.18%). 706 people (12.04%, CI 95% = 10.05–14.57%)
were categorized as ALGBT.
55

Importante destacar que o próprio estudo traça considerações sobre a


possibilidade de tais dados estarem subnotificados, em razão de a população
LGBTQIAP+ ser um grupo social de difícil acesso, cuja porcentagem pode se mostrar
inespecífica em métodos comuns de amostragem aleatória.153
Ademais, outra fonte atualizada de dados demográficos sobre as minorias
sexuais no Brasil consiste no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. No
ano de 2019, em conjunto com o Ministério da Saúde, foram apresentados pela primeira
vez na história do Brasil, os resultados da Pesquisa Nacional de Saúde – PNS contendo
informações sobre a distribuição das pessoas maiores de 18 anos, tomando-se como base
algumas características socioeconômicas, dentre elas uma pergunta acerca da orientação
sexual auto identificada, onde as pessoas consultadas tinham como opção de resposta as
seguintes alternativas: heterossexual; homossexual; bissexual; outra orientação sexual;
não sabe; e recusou-se a responder.154
Antes de apresentar os dados, se faz necessário elucidar alguns aspectos dessa
pesquisa, como o fato de ela não se referir a identidade de gênero, nem expressões de
gênero, limitando-se apenas à questão da sexualidade autodeterminada. Outro ponto, diz
respeito à autodeterminação, por onde só foram registradas as respostas objetivas da
pessoa entrevistada, sem levar em consideração a percepção do entrevistador sobre o que
estava sendo respondido.155 No mais, no texto do relatório proferido pelo IBGE junto ao
PNS de 2019, é importante destacar as notas técnicas elaboradas pelo próprio órgão,
quando este enfatiza que as estimativas do tamanho da população dependem da dimensão
de captura das informações, e que a multiplicidade de informações coletadas sobre
pessoas que não se encaixam nos padrões heteronormativos, torna-se custosa e
desgastante para quem é entrevistado. Para tanto, a ótica da autoidentificação foi
escolhida por ser uma forma de captação mais viável para os entrevistadores.156
O relatório também expôs as limitações e potencialidades da coleta de dados
referentes à orientação sexual das pessoas entrevistadas, em especial a ponderação de que

153
SPIZZIRRI, G., EUFRÁSIO, R.Á., ABDO, C.H.N. et al. Proportion of ALGBT adult Brazilians,
sociodemographic characteristics, and self-reported violence. Sci Rep 12, 11176 (2022).
https://doi.org/10.1038/s41598-022-15103-y p. 5
154
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa nacional de saúde: 2019:
orientação sexual autoidentificada da população adulta. Rio de Janeiro: IBGE, Coordenação de Pesquisas
Por Amostra de Domicílios. 2022. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101934.pdf. Acesso em: 30 jan. 2023. p. 6
155
Ibid., p. 6
156
Ibid., p. 6
56

a pergunta conduzida pelos entrevistadores apresenta discordância com outras dimensões


da sexualidade humana, a exemplo da atração sexual e do comportamento sexual, que
abrem possibilidades para outras configurações sexuais além de homossexual,
heterossexual e bissexual. Outra observação técnica é de que muitas pessoas não tinham
conhecimento do conteúdo do que vem a ser “orientação sexual”, ou de palavras como
“heterossexual”, que dificultam o entendimento daqueles com menor grau de
escolaridade. Sobre isso, também foi constatado que o maior número de ocasiões em que
foram registradas respostas com a opção “se recusou a responder” e “não sabe”,
ocorreram entre indivíduos com nível de instrução até o ensino médio incompleto,
podendo identificar uma dificuldade desse contingente frente ao tema verificado.157
Outrossim, uma informação de suma importância consta no relatório referente a
Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, no tópico sobre as limitações, e consiste na questão
do estigma social em torno da orientação sexual, objeto da pesquisa. Ainda no relatório,
ponderam os pesquisadores que essa é uma realidade vivenciada em outros países, e que
ela ocorre pelo medo que as pessoas têm da discriminação e da violência, o que gera um
entrave para a autoidentificação frente ao pesquisador, em especial quando realizada em
cidades pequenas.158
Após as notas técnicas e as limitações, o relatório expõe os dados estatísticos
sobre a porcentagem estimada de pessoas homossexuais e heterossexuais no brasil.
Verificou-se que no ano de 2019 existiam 159,2 milhões de pessoas maiores de 18 anos
na República Federativa do Brasil, das quais 46,8% eram homens e 53,2% mulheres.
Dessas pessoas, 94,8% das pessoas se declararam heterossexuais, 1,2% se autodeclararam
como homossexuais, 0,7% como bissexuais, 0,1% declararam outra orientação sexual
(pansexual, assexual etc.) e 3,4% não sabiam ou não quiseram responder a pesquisa.
Assim, estima-se que em 2019 a população total de homossexuais e bissexuais
(LGB) totalizava 2,9 milhões de pessoas, representando 1,8% das pessoas de 18 anos ou
mais. Estratificando-se os dados por idade, verificou-se o percentual de 4,8% de pessoas
LGB entre 18 e 29 anos, diminuindo a proporção conforme aumento das faixas etárias,
chegando a 0,2% entre as pessoas idosas.159 Quanto ao nível de instrução, o percentual de

157
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa nacional de saúde: 2019:
orientação sexual autoidentificada da população adulta. Rio de Janeiro: IBGE, Coordenação de Pesquisas
Por Amostra de Domicílios. 2022. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101934.pdf. Acesso em: 30 jan. 2023. p.8
158
Ibid., p. 8
159
Ibid., p.10
57

pessoas homossexuais e bissexuais foi de 3,2% entre as pessoas com ensino superior
completo e foi menor nos grupos sem instrução ou com ensino fundamental incompleto,
totalizando 0,5% das pessoas verificadas. Quanto ao rendimento domiciliar per capita, foi
verificado um maior número de pessoas LGB nas duas classes sociais de rendimento mais
elevados, onde 3,1% desses residiam em domicílios cuja renda por pessoa era de 3 a 5
salários mínimos, e 3,5% nos domicílios com renda maior de 5 salários mínimos por
pessoa.160 Destaque para a diferença de percentual de pessoas homossexuais e bissexuais
autoidenficadas nas áreas urbanas e rurais, onde foi verificado o percentual de 2% das
pessoas na área urbana, em contradição com 0,8% na área rural.161
A partir dos dados apresentados, mesmo se levando em consideração a
subnotificação motivada pelo medo da exposição, ainda assim verifica-se que a proporção
de pessoas gays, lésbicas e bissexuais é considerável no Brasil. Devem ainda ser somadas
outras sexualidades e identidades de gênero, que não foram consideradas na pesquisa do
IBGE, e que ampliariam bastante a quantidade total de pessoas que compõem os grupos
sociais em situação de vulnerabilidade. Assim, conclui-se que a aferição de dados
demográficos é de suma importância, como um fator na hora de se pleitear acesso a
políticas públicas, por isso deve ser, cada vez mais, ampliada e detalhada, a fim de se
compreender mais os tipos de vivências sexuais, e garantir o pleno acesso a cidadania, de
forma igualitária.

2.2.3 Panorama estatístico da violência LGBTQIAP+ na República Federativa do


Brasil, dos anos 2000 a 2022

Para que possamos aferir um diagnóstico realista da situação que estão


submetidas as pessoas LGBTQIAP+ na República Federativa do Brasil, é preciso analisar
conjuntamente os dados demográficos anteriormente apresentados sobre essa população,
com os dados estatísticos de violência coletados e sistematizados por estudos científicos
e por Organizações não governamentais independentes. É imperioso destacar que ainda
não existe, no Brasil, uma centralização de dados demográficos oficiais que se utilizam

160
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa nacional de saúde: 2019:
orientação sexual autoidentificada da população adulta. Rio de Janeiro: IBGE, Coordenação de Pesquisas
Por Amostra de Domicílios. 2022. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101934.pdf. Acesso em: 30 jan. 2023. p.11
161
Ibid., p.11
58

de critérios de gênero e sexualidade, e que considerem a questão da violência decorrente


de sua abjeção como um dos critérios de observação.
No mais, a metodologia utilizada para coleta dos dados deste tópico é a análise
bibliográfica e documental, tomando-se como base artigos científicos e relatórios de
organizações específicas. Nesses termos, serão apresentados dados estatísticos de
violência, fundamentados, em um primeiro momento, no estudo formulado por
pesquisadores dos Estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e do Distrito Federal, que
traçou um perfil das violações de direitos contra as pessoas LGBTQIAP+ no Brasil, e foi
publicado no ano de 2018 na revista brasileira de epidemiologia, com recorte temporal
no período de 2015 a 2017. O referido estudo utiliza-se dos dados do Sistema de
Informação de Agravos de Notificação (SINAN), de onde será possível entender mais
especificamente os diversos perfis das notificações verificadas.162
Posteriormente, serão apresentados dados provenientes dos estudos anuais
publicados por organizações não governamentais que são referência em coletar de dados
estatísticos com base em notícias publicadas nos meios de comunicação, com destaque
para o último biênio (2021-2022).163
Ademais, antes de apresentar os dados estatísticos, se faz relevante ponderar que
no Brasil a impunidade sobre os dados estatísticos de violência contra as pessoas
LGBTQIAP+ é uma realidade construída historicamente. Ela ainda ocorre atualmente,
pois inexistem meios concretos e eficazes de se dimensionar, quantificar e tipificar as
formas com que ela ocorre na sociedade. O estigma em torno da sexualidade é tão grande
que muitas pessoas sequer conseguem identificar a violência que sofrem, ou não tem
coragem de relatar seus sofrimentos às autoridades. A ausência de responsabilização dos
envolvidos, além de gerar uma sensação de impunidade, também impede que o poder
público tenha conhecimento do que se passa, e consiga investir em políticas públicas que
encolham os números alarmantes de casos e de formas de violência.
É importante registrar essas ressalvas, pois a seguir serão elencados dados
estatísticos provenientes de relatórios e dossiês elaborados por pesquisadores e

162
PINTO, Isabella Vitral; ANDRADE, Silvânia Suely de Araújo; RODRIGUES, et al. Perfil das
notificações de violências em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais registradas no Sistema
de Informação de Agravos de Notificação, Brasil, 2015 a 2017. Revista Brasileira de Epidemiologia,
[S.L.], v. 23, n. 1, 2020. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1980-549720200006.supl.1.
163
GRUPO GAY DA BAHIA (Bahia). Mortes violentas de LGBT+ Brasil: observatório do Grupo Gay
da Bahia, 2022. Observatório do Grupo Gay da Bahia, 2022. 2023. Disponível em:
https://cedoc.grupodignidade.org.br/2023/01/19/mortes-violentas-de-lgbt-brasil-observatorio-do-grupo-
gay-da-bahia-2022/. Acesso em: 23 jan. 2023.
59

Organizações Não Governamentais. No que se refere a estas últimas, a metodologia


utilizada por elas, frente a escassez de informação, consiste na catalogação de notícias
publicadas na mídia, associadas com fontes alternativas de informações complementares
(quando necessário), que podem ser coletadas por meio das redes sociais de familiares
das vítimas, de pessoas próximas e de organizações que denunciam as mortes violentas.
Nesse sentido, o presente estudo se inicia por um estudo amplo da violência, que
leva em consideração não só os casos de resultaram em óbitos, mas considera a
multiplicidade de formas e manifestações da violência motivada pelo preconceito em
razão da identidade de gênero, sexualidade ou expressões de gênero e sexualidade dos
Brasileiros. Para tanto, expõe-se a pesquisa conjunta formulada por cientistas dos Estados
de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e do Distrito Federal, com recorte temporal no
período de 2015 a 2017, que traçou um perfil de denúncias de violência contra as pessoas
LGBTQIAP+ no Brasil, utilizando-se dos dados do Sistema de Informação de Agravos
de Notificação (SINAN).
No referido recorte temporal, o SINAN registrou um total de 778.527
notificações de violência, levando-se em consideração os tipos de violência
autoprovocadas e interpessoais. Dessas, foram identificadas 24.564 notificações contra a
população LGBTQIAP+ no Brasil, sendo 13.129 (53,4%) em detrimento de pessoas
homossexuais e bissexuais cisgêneros ou cuja identidade de gênero fora ignorada, e 2.822
(11,5%) contra travestis e transexuais com orientação homossexual ou bissexual e 8.613
(35,1%) contra pessoas travestis e transexuais heterossexuais ou cuja orientação sexual
foi ignorada.164
Além disso, do total de pessoas analisadas na referida pesquisa, 69,1% das
vítimas notificantes eram adultas e 24,4% eram adolescentes, predominando a raça/cor
negra em todas as faixas etárias, e quanto ao grau de escolaridade a pesquisa identificou
que a maior proporção de indivíduos com grau de escolaridade até o ensino fundamental
esteve com a população idosa, na proporção de 45,8%, e somente 9,1% dos adultos que
reportaram violência tinham ensino superior completo.165 Ainda mais, no que se refere à
orientação sexual das pessoas consultadas, verificou-se que, na faixa etária de 10 a 59

164
PINTO, Isabella Vitral; ANDRADE, Silvânia Suely de Araújo; RODRIGUES, et al. Perfil das
notificações de violências em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais registradas no Sistema
de Informação de Agravos de Notificação, Brasil, 2015 a 2017. Revista Brasileira de Epidemiologia,
[S.L.], v. 23, n. 1, 2020. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1980-549720200006.supl.1. p.
5
165
Ibid., p. 5
60

anos, os maiores índices de notificações recebidas foram por parte de pessoas lésbicas, se
subdividindo em dados da faixa etária de 10 a 14 anos, no importe de 33,5%, 15 a 19
anos, na porcentagem de 31,9%, 20 a 59 anos, na razão de 33,9%. Já as notificações
recebidas de pessoas idosas foram predominantemente de pessoas gays, no importe de
31% dos casos.166
Destarte, quanto à identidade de gênero, verificou-se que maior parte das
notificações de violência recebidas foi de pessoas transexuais e travestis, no importe de
46%, seguido de pessoas cisgêneras, na proporção de 31,2% e de indivíduos cuja
identidade de gênero fora ignorada pelas notificações, na razão de 22,3%. Sobre a
violência direcionada às pessoas transexuais, notou-se que em todas as faixas etárias
consultadas as mulheres transexuais obtiveram a maior frequência de notificações, com
destaque para a faixa etária de 10 a 14 anos, onde o índice de notificações foi de 37%,
seguido pela faixa etária de pessoas idosas, com 36,3%, pessoas adultas, com 31,8% e
adolescentes de 15 a 19 anos, com 28,2%.167
Destaque para o local de ocorrência das violências notificadas, onde 54,6% das
vítimas adolescentes e 78,9% das pessoas idosas indicam que o principal local seria sua
própria residência. O segundo local mais frequente foi a via pública, presente em 26,7%
das notificações de vítimas adolescentes, na faixa etária dos 15 aos 19 anos. Nas situações
ocorridas com adolescentes na faixa etária de 10 a 14 anos, a escola é o local que dispõe
de 6,1%. Salienta-se que as violências possuíram caráter de repetição em todas as faixas
etárias, totalizando mais de um terço dos casos.168
Outro tópico importante nas situações de violência diz respeito às violências
autoprovocadas, que denotam um contexto de abjeção e de não aceitação da condição
LGBTQIAP+ por parte do próprio indivíduo. Sobre esses casos, verificou-se, no período
de 2015 a 2017, o total de 6.043 ocorrências, das quais 29% foram tentativas de suicídio,
onde 71% foram cometidas por pessoas adultas e 29% por adolescentes de 15 a 19 anos
de idade. As lesões autoprovocadas, no geral, foram mais praticadas por adolescentes de
15 a 19 anos, numa proporção de 29,9%, seguido pelas pessoas adultas, no importe de

166
PINTO, Isabella Vitral; ANDRADE, Silvânia Suely de Araújo; RODRIGUES, et al. Perfil das
notificações de violências em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais registradas no Sistema
de Informação de Agravos de Notificação, Brasil, 2015 a 2017. Revista Brasileira de Epidemiologia,
[S.L.], v. 23, n. 1, 2020. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1980-549720200006.supl.1. p.
5
167
Ibid., p. 5
168
Ibid., p. 5
61

24,8%, posteriormente as pessoas de 10 a 14 anos, na porcentagem de 18,4%, e nas


pessoas idosas, no percentual de 12,1%.169
No que se refere aos tipos de violência, as violências contra adolescentes de 10
a 14 anos estiveram distribuídas em violência física (45,9%) e sexual (40,7%), já contra
as pessoas de 15 a 19 foram registrados dados de 70,8% para violência física e 24,1%
para violência psicológica/moral; quanto a população adulta, foram registrados dados de
79,1% para violência física e 30,6% para violência psicológica/moral; já os dados de
denúncias acerca de violência contra as pessoas idosas apontam que 73,1% sofreram
violência física e 27,7% sofreram com a negligência/abandono.170
Corroborando com os dados verificados, a pesquisa conduzida pelos cientistas
também analisou dados do “Disque 100”, serviço que recebe, analisa e encaminha
denúncias de violações dos direitos humanos. Foi apurado que, no período compreendido
entre os anos de 2011 e 2017, foram reportadas ao sistema 12.477 denúncias envolvendo
22.899 violações de direitos contra pessoas LGBT em território brasileiro. É pertinente
afirmar que estes são os dados efetivamente registrados de violência, e que a quantidade
de casos subnotificados é enorme, pois muitos indivíduos que chegam aos hospitais têm
medo ou vergonha de informar que a motivação da violência sofrida é em razão de sua a
sexualidade ou identidade de gênero.171
Das várias formas de violência verificadas contra as pessoas LGBTQIAP+,
destaca-se a vulnerabilidade física que estas pessoas estão submetidas no Brasil, e os
dados alarmantes de óbitos motivados pelo preconceito e pela abjeção no país. Para tanto,
muitas organizações não governamentais se unem para sistematizar os dados estatísticos
de mortes efetivamente comprovadas e motivadas pelo preconceito e discriminação, a fim
de cobrar das autoridades providências e políticas públicas para diminuir tais números.
No mais, esse termo, “mortes violentas”, é adotado pelas Organizações pois compreende
o conjunto de diferentes tipos de mortes analisados, a exemplo dos assassinatos, dos
suicídios (que podem ser motivados pelo preconceito e pela discriminação), também
considerando como mortes violentas aquelas ocorridas em razão da busca por padrões

169
PINTO, Isabella Vitral; ANDRADE, Silvânia Suely de Araújo; RODRIGUES, et al. Perfil das
notificações de violências em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais registradas no Sistema
de Informação de Agravos de Notificação, Brasil, 2015 a 2017. Revista Brasileira de Epidemiologia,
[S.L.], v. 23, n. 1, 2020. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1980-549720200006.supl.1 p.
5
170
Ibid., p. 2
171
Ibid., p. 5
62

estéticos, uso de substâncias ilícitas e quaisquer outros óbitos associados ao contexto de


abjeção atribuído às pessoas LGBTQIAP+.172
Conforme dossiê conjunto, elaborado pelas Organizações Não Governamentais
Acontece Arte e Política LGBTI+, Associação Nacional de Travestis e Transexuais-
ANTRA e Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e
Intersexos – ABGLT, no período compreendido entre os anos de 2000 e 2021, foram
registradas 5.362 (cinco mil, trezentos e sessenta e duas) mortes violentas de pessoas
LGBTQIAP+ no Brasil. Desde o início da década de 2000, os dados vêm crescendo
vertiginosamente, atingindo seu ápice no ano de 2017, quando foram registrados 445
mortes violentas, conforme se depreende no Dossiê 2021 publicado pelas referidas
Organizações, que consiste no último relatório completo publicado.173
Ainda, os dados foram separados por alguns grupos, de onde destacam-se:
orientação sexual e identidade de gênero, tipos de violência, faixa etária das vítimas, raça
e etnia, causa mortis e local do óbito. No mais, o estudo apurou que no ano de 2021 foram
registrados 316 casos de mortes violentas de pessoas LGBTQIAP+, de onde a população
mais afetada foi a de homens gays, com 145 casos, que representa 45,89% do total de
casos; logo em seguida, as pessoas mais vitimadas foram as mulheres trans e travestis,
totalizando 141 casos, que corresponde a 44,62% do total de casos; também foram
registradas 12 mortes violentas de mulheres lésbicas (3,80%), 8 mortes violentas de
homens trans (2,53%) e 3 pessoas bissexuais (0,95%) e 4 casos onde a orientação sexual
e a identidade de gênero não foram identificados (1,27%).174 Dentre os tipos de violência
verificados, foram registrados 262 homicídios (82,91%), 23 latrocínios (7,28%), 26
suicídios (8,23%) e 5 outras mortes (1,58%), estes últimos que compreendem situações
particulares decorrentes do preconceito e abjeção dessas pessoas.175
Aprofundando a análise do perfil das vítimas, verificou-se que no ano de 2021 a
pessoa mais jovem a ser vítima de morte violenta motivada pelo preconceito e
discriminação em razão de sua condição LGBTQIAP+ possuía 13 anos de idade,
enquanto a pessoa mais velha possuía 67 anos.176 O estudo distribuiu os casos por
decênios, de onde constatou-se 22 mortes violentas na faixa etária de 10 a 19 anos de

172
ACONTECE ARTE E POLÍTICA LGBTI+ (org.). Mortes e violências contra LGBTI+ no Brasil:
dossiê 2021. Florianópolis: Acontece, 2022. 72 p. ISBN: 978-65-994905-1-4 p. 7-8
173
Ibid., p. 16
174
Ibid., 17-18
175
Ibid., p. 18-19
176
Ibid., p. 21-22
63

idade (6,96%), 96 mortes violentas na faixa etária de 20 a 29 anos de idade (30,38%)


sendo essa a faixa etária que sofreu maior índice de violência, 68 casos na faixa etária de
30 a 39 anos de idade (21,52%), 36 óbitos na faixa etária de 40 a 49 anos de idade
(11,29%), 21 ocorrências na faixa etária de 50 a 59 anos de idade (6,65%) e 13 mortes
violentas na faixa etária de 60 a 69 anos de idade (4,11%), importante destacar que de
todos os casos, 60 deles não puderam ser verificadas as idades, representando 18,99% do
total.177
Outrossim, no que se refere a etnia das vítimas, dos 316 casos contabilizados,
foi possível identificar a etnia de 240 vítimas, de onde verificou-se uma distribuição
aproximada de mortes violentas entre pessoas brancas, com 127 casos (40,19%) e pessoas
pretas/pardas, com 112 casos (35,44%) e 1 caso registrado cuja vítima era uma pessoa
indígena (0,32%).178 Também foi possível verificar a ausência de dados de raça e etnia
nos meios de comunicação de onde o estudo coletou os dados, em especial nos segmentos
de pessoas gays, e de travestis e mulheres transsexuais. Os dados também demonstram
que entre os homens gays, a maior parte das ocorrências foi de pessoas brancas,
totalizando 67 casos, enquanto foram registrados 56 casos cujas vítimas eram
pretas/pardas. A situação se inverte quando da análise dos óbitos de pessoas transsexuais,
onde foram registradas 50 ocorrências referentes a pessoas pretas/pardas e 43 ocorrências
referentes a pessoas brancas.179
No que se refere a causa das mortes violentas verificadas, o dossiê conseguiu
reunir dados de 262 ocorrências, enquanto em 54 dos episódios (17,09%) não foi possível
aferir as circunstâncias causadoras dos casos de violência. Ainda, foram verificados 26
tipos diferentes de causas da morte das pessoas LGBTQIAP+, das quais as mais
frequentes foram esfaqueamento, causa do óbito de 91 pessoas (28,80%), seguida de
assassinato por armas de fogo, com 83 casos (26,27%), 20 óbitos por espancamento
(6,33%), 10 mortes por asfixia (3,16%), 8 pessoas vitimadas por furações no corpo
(2,53%), e 7 mortes por queimaduras (2,22%).180
Outrossim, atestou-se também que o local com maior número de situações de
violência contra pessoas LGBTQIAP+, no ano de 2021, foi o espaço privado, com 151
casos (47,78%), seguido pelo espaço público, com 135 casos (42,72%) e 30 casos em que

177
ACONTECE ARTE E POLÍTICA LGBTI+ (org.). Mortes e violências contra LGBTI+ no Brasil:
dossiê 2021. Florianópolis: Acontece, 2022. 72 p. ISBN: 978-65-994905-1-4 p. 21-22
178
Ibid., p. 23
179
Ibid., p. 23
180
Ibid., p. 28-29
64

não foi informado o local de ocorrência (9,49%).181 No mais, o período do dia de maior
frequência dos casos registrados foi o período noturno, observado em 152 casos
(48,10%), de onde o relatório relaciona com as atividades culturais e de lazer da
população LGBTQIAP+. Do total de casos, não foi possível verificar o período do dia em
129 destes (40,89%).182
Outro tópico de suma importância para o aprofundamento dos estudos sobre as
situações de violência em razão de orientação sexual e identidade de gênero, no Brasil,
consiste na distribuição espacial das mortes violentas em todo território nacional. O
Dossiê de 2021 também contempla tal análise, de onde verificou-se que a região nordeste
foi a que registrou o maior número de mortes violentas de pessoas LGBTQIAP+, com
116 registros de óbitos, de forma a representar o índice de 2,01 mortes a cada um milhão
de pessoas. Logo em seguida, o estudo estatístico aponta o Sudeste, com 103 mortes
violentas, e registrando o índice de 1,15 mortes por milhão de pessoas; em seguida,
aparecem 36 óbitos registrados na região centro-oeste, esta que foi considerada a região
mais violenta do Brasil, em razão da quantidade de óbitos por milhão de pessoas, cujo
índice verificado foi de 2,15 mortes violentas por milhão; também foram atestadas 32
mortes violentas na região Norte, totalizando a taxa de 1,69 mortes por milhão. No mais,
a região com menor número de mortes violentas, assim como menor índice de mortes por
milhão, foi região Sul, com 28 óbitos registrados, que retrata a taxa de 0,92 mortes por
milhão. Em apenas um óbito do total de 316 não foi verificada a região de ocorrência.183
Sobre os dados de violência e sua relação com as regiões de ocorrência, o estudo
elaborado pelas Organizações Não Governamentais pondera que as regiões consideradas
menos violentas no ano de 2021, Sul e Sudeste, foram historicamente privilegiadas com
acumulação de capital e investimentos produtivos, que se traduz em maior
desenvolvimento tecnológico, acesso à informação e uma maior escolarização da
população, que pode contribuir para construção de uma sociedade menos preconceituosa
e violenta com a comunidade LGBTQIAP+.184 Outrossim, as regiões Nordeste e Norte,
com maiores índices de violência e assassinatos de pessoas LGBTQIAP+ participam da
mesma lógica, pois são regiões que possuem, historicamente, indicadores

181
ACONTECE ARTE E POLÍTICA LGBTI+ (org.). Mortes e violências contra LGBTI+ no Brasil:
dossiê 2021. Florianópolis: Acontece, 2022. 72 p. ISBN: 978-65-994905-1-4 p. 29
182
Ibid., p. 31
183
Ibid., p. 36-37
184
Ibid., p. 39
65

socioeconômicos inferiores ao restante do país, que reflete em questões como renda e


escolaridade, e reflete no preconceito.185
No que se refere a região Centro-oeste, onde se constataram os maiores índices
de violência por milhão de pessoas, o estudo indica que, por ser uma região
predominantemente agrícola, um dos motivos dessas altas taxas consiste na grande
presença do agronegócio, da expansão das fronteiras agrícolas em direção a Amazônia, e
os conflitos de terras entre os exploradores e a população nativa das regiões.186
Ante o exposto, em atualização preliminar sobre os dados anteriormente citados,
no ano de 2023 o Grupo Gay da Bahia, organização não governamental brasileira de
referência nacional, que atua há 43 anos na proteção dos direitos LGBTQIAP+ e trabalha
reunindo, anualmente, dados estatísticos coletados e sistematizados sobre as mortes
violentas de pessoas LGBTI+187, a partir de notícias publicadas em meios de
comunicação, publicou os dados estatísticos referentes ao ano de 2022.188
Em que pese ainda não haver a publicação completa do relatório final de 2022,
se faz necessário asseverar que os relatórios do GGB tiveram sua primeira publicação no
ano de 1981, e até os dias atuais objetivam denunciar a situação de vulnerabilidade e de
violação dos direitos humanos que essas pessoas estão sujeitas no território brasileiro.
Tais dados corroboram com a intenção de demonstrar o caráter de urgência com que o
Poder Público deve reagir aos dados alarmantes que são coletados anualmente, a fim de
construir estratégias de cidadania para redução da violência e preservação da vida das
pessoas LGBTI+.189
A partir desse contexto, conforme dispõe o Relatório de mortes violentas
LGBTI+ no Brasil, do ano de 2022, foram registradas, entre os anos de 1963 a 2022, o
total de 6.947 (seis mil, novecentos e quarenta e sete) assassinatos de pessoas LGBTI+.190
Em 2022, conforme relatado pelo observatório de mortes violentas do Grupo Gay da
Bahia, estimam-se que foram assassinados violentamente 256 pessoas LGBTQIAP+,

185
ACONTECE ARTE E POLÍTICA LGBTI+ (org.). Mortes e violências contra LGBTI+ no Brasil:
dossiê 2021. Florianópolis: Acontece, 2022. 72 p. ISBN: 978-65-994905-1-4 p. 39
186
Ibid., p. 39
187
Sigla adotada pela instituição
188
ACONTECE ARTE E POLÍTICA LGBTI+ (org.). Mortes e violências de LGBTI+ no Brasil: relatório
2020. Florianópolis: Acontece, 2021. 79 p. ISBN: 978-65-994905-0-7 p.14
189
Ibid., p.14
190
GRUPO GAY DA BAHIA (Bahia). Mortes violentas de LGBT+ Brasil: observatório do Grupo Gay
da Bahia, 2022. Observatório do Grupo Gay da Bahia, 2022. 2023. Disponível em:
https://cedoc.grupodignidade.org.br/2023/01/19/mortes-violentas-de-lgbt-brasil-observatorio-do-grupo-
gay-da-bahia-2022/. Acesso em: 20 mar. 2023 n. p.
66

sendo, dessas estatísticas, 242 homicídios e 14 suicídios.191 Conforme assevera o referido


estudo, atualmente o Brasil figura como o país que mais assassina pessoas em razão da
sua sexualidade e identidade de gênero, registrando uma morte a cada 34 horas.192
A região nordeste figura como a mais insegura para as pessoas LGBTQIAP+,
totalizando 111 homicídios no ano de 2022 (43,36%); logo em seguida, encontra-se a
região sudeste com 63 mortes violentas registradas (24,61%); a região norte, com 36
assassinatos (14,06%); a região centro-oeste com 31 homicídios (12,11%), e, por último,
a região sul com 15 assassinatos (5,86%).193 Tomando como parâmetro os Estados
Federativos do Brasil, somente o Estado Bahia registrou, no ano de 2022, 27 mortes
(10,5%), seguida por São Paulo, que registrou 25 mortes (9,7%), Pernambuco, com 20
assassinatos (7,8%). Destaque para Roraima e Rondônia, Rio Grande do Sul e Santa
Catarina, que registraram, cada um, 2 casos de mortes violentas de pessoas LGBTQIAP+
(0,7%) e Acre e Tocantins que não registraram nenhuma notificação de casos de
assassinatos de pessoas LGBTQIAP+, nos meios de comunicação, no ano de 2022.194
Outro recorte relevante diz respeito a orientação sexual das vítimas, de onde o
estudo concluiu que o maior número de assassinatos foi de pessoas cuja orientação sexual
seria Gay, com 134 casos registrados (52,34%), seguido pelas pessoas Travestis e
Transexuais, totalizando 110 assassinatos (42,96%), 5 pessoas Bissexuais (1,95%), 4
pessoas lésbicas (1,56%), 2 pessoas heterossexuais, que foram confundidas com pessoas
homossexuais (0,39%), e 1 homem trans (0,39%).195
No recorte etário, verifica-se que há um predomínio de assassinatos na faixa
etária dos 18 aos 29 anos de idade (43,7), com destaque para a expectativa de vida das
pessoas transsexuais, que, do total de 110 vítimas, 83% delas foram assassinadas entre os
15 e os 39 anos de idade.196 Outro dado verificado foi o dia da semana em que tais eventos
aconteceram, de onde constatou-se que os dias de maiores ocorrências de violências
contra as pessoas LGBTQIAP+ no Brasil são os finais de semana, que concentram 45%
de todos os casos, onde o domingo abrange uma taxa de 19,1% do total de casos
registrados. Também se conclui que 91% desses casos ocorreram nos espaços urbanos,

191
GRUPO GAY DA BAHIA (Bahia). Mortes violentas de LGBT+ Brasil: observatório do Grupo Gay
da Bahia, 2022. Observatório do Grupo Gay da Bahia, 2022. 2023. Disponível em:
https://cedoc.grupodignidade.org.br/2023/01/19/mortes-violentas-de-lgbt-brasil-observatorio-do-grupo-
gay-da-bahia-2022/. Acesso em: 20 mar. 2023 n. p.
192
Ibid., n. p.
193
Ibid., n. p.
194
Ibid., n. p.
195
Ibid., n. p.
196
Ibid., n. p.
67

com predomínio do uso de armas de fogo (29,6%), de armas brancas (25,7%), asfixia,
espancamento, apedrejamento, esquartejamento e atropelamento proposital.197
No ano de 2022 também foi conduzida uma pesquisa pelo Poder data, divisão de
pesquisas do jornal Poder 360, esta que questionou os brasileiros sobre a existência de
preconceito contra pessoas homossexuais no Brasil, ocasião em que 63% dos brasileiros
responderam que acreditam que existe preconceito, em detrimento de 24% que
responderam que não existe preconceito contra homossexuais, e 13% não souberam
responder.198 No que diz respeito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, a pesquisa
apontou que 44% dos brasileiros se dizem favoráveis às uniões homoafetivas, enquanto
39% são contrários e 17% não souberam responder. A pesquisa tomou como base ligações
telefônicas, entrevistando 3.000 pessoas em 302 municípios de todas as unidades da
federação.199
Ademais, há de se considerar também a sistematização de dados estatísticos
sobre a situação da população LGBTQIAP+ na América Latina e Caribe, que aponta uma
abrangência regional da violência e preconceito contra as pessoas LGBTQIAP+, onde o
Brasil se insere como o maior expoente estatístico. A abordagem regional se faz relevante
para o presente estudo como fundamento estatístico para os contextos fáticos de
preconceito e discriminação que serão estudados no capítulo cinco, quando serão
estudados os casos contenciosos da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que
disciplinam como o órgão vêm se posicionando frente a tais estatísticas, e servem de
paradigma para que o Brasil adote políticas públicas de cidadania para essa população.
Nesses termos, as métricas, em âmbito regional, são possíveis também em razão
da atuação de organizações defensoras dos direitos LGBTQIAP+, de onde se extrai como
grande exponente a rede intitulada Sin Violencia LGBTI, que atua desde o ano de 2016
reunindo organizações em diversos países com o objetivo de compor o primeiro sistema
de informações especializado, com a atribuição de reunir os dados estatísticos de
violência contra essa comunidade.200

197
GRUPO GAY DA BAHIA (Bahia). Mortes violentas de LGBT+ Brasil: observatório do Grupo Gay
da Bahia, 2022. Observatório do Grupo Gay da Bahia, 2022. 2023. Disponível em:
https://cedoc.grupodignidade.org.br/2023/01/19/mortes-violentas-de-lgbt-brasil-observatorio-do-grupo-
gay-da-bahia-2022/. Acesso em: 20 mar. 2023 n. p.
198
PODER DATA (org.). Brasil teve 135 mortes de pessoas LGBTI em 2022, diz pesquisa. 2022.
Disponível em: https://www.poder360.com.br/brasil/brasil-teve-135-mortes-de-pessoas-lgbti-em-2022-
diz-pesquisa/. Acesso em: 05 abr. 2023. n. p.
199
Ibid., n. p.
200
Sin Violencia LGBTI (ed.). DES-CIFRANDO LA VIOLENCIA EN TIEMPOS DE
CUARENTENA: homicidios de lesbianas, gays, bisexuales, trans e intersex en américa latina y el caribe
2019-2020. Colombia Diversa, 2021. Disponível em: https://sinviolencia.lgbt/wp-
68

A rede Sin Violencia LGBTI compartilha dos mesmos objetivos das organizações
não governamentais brasileiras, de romper a invisibilidade estatística e oferecer
informações úteis a fim de direcionar ações efetivas por parte dos Estados da região.201
Os dados coletados pela rede Sin Violencia LGBTI adiantam um contexto que será
apresentado mais a frente, onde alguns países latino-americanos violaram gravemente os
direitos de igualdade da pessoa humana, a partir de normas jurídicas fundadas em uma
cultura cis heteronormativa.
Outrossim, conforme o relatório divulgado pela organização no mês de junho de
2021, que compreende o período entre os anos de 2014 e 2020, pelo menos 1949 pessoas
LGBTI foram assassinadas em dez dos onze países integrantes da Rede, e, dessas, 1403
foram assassinadas por motivos relacionados ao preconceito contra sua sexualidade ou
identidade de gênero.202
O ano de 2019 pode ser considerado um ano extremamente violento para as
pessoas não heterossexuais residentes nos onze países da América Latina e Caribe, tendo
sido registrados 319 (trezentos e dezenove) homicídios, frente ao número de 283
(duzentos e oitenta e três) homicídios catalogados no ano anterior. Ademais, o grupo que
teve o maior número de vítimas foram os homens homossexuais, com 138 (cento e trinta
e oito) registros de assassinato, seguido da estatística de 126 (cento e vinte e seis)
mulheres transsexuais e 32 (trinta e duas) mulheres lésbicas.203Além disso, verificou-se
que a maioria dos homens homossexuais foram encontrados em suas residências, e que
os meios empregados para seu assassinato foram objetos perfurocortantes ou asfixia,
enquanto os corpos das mulheres transsexuais foram encontrados em vias públicas, em
terrenos baldios ou em rios, com ferimentos provocados por arma de fogo,
primordialmente, e por objetos perfurocortantes. No que se refere aos homicídios de
mulheres lésbicas, verificou-se que a maioria dos ataques ocorre quando elas estão com
suas parceiras, e que a invisibilidade social desse grupo dificulta a catalogação dos
assassinatos.204

content/uploads/2021/09/DES-CIFRANDO-LA-VIOLENCIA-EN-TIEMPOS-DE-CUARENTENA.pdf.
Acesso em: 06 dez. 2022. p. 4
201
Sin Violencia LGBTI (ed.). DES-CIFRANDO LA VIOLENCIA EN TIEMPOS DE
CUARENTENA: homicidios de lesbianas, gays, bisexuales, trans e intersex en américa latina y el caribe
2019-2020. Colombia Diversa, 2021. Disponível em: https://sinviolencia.lgbt/wp-
content/uploads/2021/09/DES-CIFRANDO-LA-VIOLENCIA-EN-TIEMPOS-DE-CUARENTENA.pdf.
Acesso em: 06 dez. 2022. p. 4
202
Ibid., p. 4
203
Ibid., p. 10
204
Ibid., p. 11
69

No ano de 2020 o número aumentou para 370 (trezentos e setenta) homicídios,


com destaque para a informação de que, em que pese o aumento do número total, houve
uma redução em oito dos onze países da região.
A partir desses dados analisados, é possível concluir que existe uma estrutura de
cidadania impositiva e violenta, criada a partir da heteronormatividade, que se perpetua
institucionalmente na justiça, no sistema educacional, nas relações de trabalho e emprego,
e, a partir dessa estrutura, as pessoas que se entendem diferente são discriminadas e
marginalizadas, sujeitas a sofrerem violências verbais, físicas, e terem sua expectativa de
vida diminuída.
70

3. AS CONTRIBUIÇÕES DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS


HUMANOS NA CONSTRUÇÃO NORMATIVA DA PROTEÇÃO DOS GRUPOS
SEXUAIS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

A concepção atual de direitos humanos se refere a um conjunto mínimo de


direitos inerentes a todos os seres humanos, que lhe são essenciais para garantir sua
dignidade, liberdade e igualdade. É originária de diversas influências históricas e
ideológicas, construídas a partir de um processo lento de internacionalização e
universalização de alguns conceitos jurídicos estruturais.
A proteção aos direitos da população LGBTQIAP+, por sua vez, não esteve
presente em maior parte da história de proteção internacional dos direitos humanos, muito
menos a noção de cidadania voltada para conferir iguais oportunidades a todos,
independentemente de sua identidade de gênero, sexualidade ou expressões de gênero e
sexualidade. Sobre esse assunto, Flávia Piovesan destaca tal proteção como um dos sete
desafios centrais que permeiam os estudos dos direitos humanos na ordem
internacional.205 Entendê-los se faz importante pois auxilia a compreensão de como os
direitos humanos voltados para os grupos sexuais em situação de vulnerabilidade vêm
sendo construídos na seara do direito internacional.
O primeiro desafio diz respeito à fundamentação dos direitos humanos, a partir
de um debate entre universalistas e relativistas. Para os universalistas, os direitos humanos
se relacionam à dignidade da pessoa humana e aos valores intrínsecos à condição humana,
enquanto para os relativistas a noção de direitos se relaciona ao ambiente político,
econômico, cultural, social e moral vigente em determinado local, não havendo uma
moral universal, pois há uma pluralidade de valores decorrentes de culturas diversas.206
O segundo desafio apontado por Piovesan refere-se à laicidade estatal em
detrimento do fundamentalismo religioso. Nos Estados marcados pelo fundamentalismo
religioso, onde há confusão entre Estado e religião, há a adoção de dogmas incontestáveis,
que impõem uma moral única, inviabilizando uma sociedade pluralista e democrática.
Nos Estados laicos, por sua vez, há o reconhecimento de todas as religiões com igual
respeito e consideração, e respeito aos seus princípios e valores, de forma democrática,
porém sem hegemonização cultural.207

205
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
206
Ibid., p. 73-77
207
Ibid., p. 77-79
71

Por sua vez, o terceiro desafio corresponde ao dilema entre direito ao


desenvolvimento e as assimetrias existentes globalmente. O direito ao desenvolvimento
se fundamenta em três dimensões: participação democrática na formulação de políticas
públicas; proteção das necessidades básicas de justiça social e necessidade de adoção de
políticas nacionais, a exemplo da cooperação internacional, para encorajar o direito ao
desenvolvimento.208 Como quarto desafio, a autora desperta as discussões acerca da
proteção aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais em detrimento dos
dilemas da globalização econômica. Leva em consideração as flexibilizações que sofrem
os direitos sociais, que agravam as desigualdades sociais, a pobreza e a exclusão social
de indivíduos. Esse desafio vêm como lembrete do papel do Estado de implementar os
direitos econômicos, sociais e culturais.
Outra questão, apontada no quinto desafio, corresponde ao respeito à
diversidade, em detrimento das diversas formas de intolerância.209 Há de se proteger os
direitos das mulheres, das populações afrodescendentes e indígenas, bem como dos que
sofrem em razão de discriminação em razão de orientação sexual e identidade de gênero,
que são vítimas de diversos tipos de violência, sejam elas físicas ou psicológicas, ao redor
do mundo. Ao longo da história, as mais graves violações de direitos humanos remetem
a diversidade como elemento para aniquilar direitos, a exemplo da escravidão e do
nazismo.210
O sexto desafio apontado por Piovesan é relativo ao combate ao terrorismo em
detrimento da preservação de direitos e liberdades públicas, que se soma ao desafio de
combater a intolerância. Como sétimo desafio, têm-se a dicotomia entre “direito da força”
e “força do direito”, que exprime a necessidade de fortalecimento das jurisdições
internacionais sobre as jurisdições nacionais nos casos de violação de direitos humanos,
onde os órgãos jurisdicionais simbolizam - e devem buscar uma consolidação cada vez
maior - a ideia de que o sistema internacional de direitos humanos é um sistema de
direitos.211
Nesses termos, o presente capítulo tem como principal objetivo explanar como
vêm se desenvolvendo os direitos humanos ao longo de um percurso histórico-jurídico, e

208
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p.
79-84
209
Ibid., p. 88
210
Ibid., p. 93
211
Ibid., p. 97
72

como deles decorrem a construção normativa de um sistema global de proteção aos


direitos humanos com foco na tutela dos direitos das pessoas LGBTQIAP+.

3.1 PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS:


CONCEPÇÕES HISTÓRICAS E ESTRUTURAIS

Os antecedentes históricos à compreensão dos direitos humanos, como são


conhecidos na atualidade, remetem aos tratados de paz de Westfália de 1648, que puseram
fim à Guerra dos Trinta Anos, apontando para o que seria o direito internacional púbico,
a criação do direito humanitário e da liga das nações.212
O direito humanitário também teve como expoente o Comitê Internacional da
Cruz Vermelha, que consiste em uma organização internacional não estatal, criada no ano
de 1863, cuja finalidade é de proteger e assistir as vítimas das guerras e da violência
armada, incluindo militares fora de combate e populações civis submetidas a situações de
conflitos armados.213
É importante pontuar, conforme lecionam Jahyr Bichara e Dominique Carreau,
que a Sociedade Internacional clássica, formalizada no século XIX, era estruturada de
forma simples, exclusivamente interestatal, composta por Estados soberanos e iguais, e
que seu número era restrito.214 Pouco antes da Primeira Guerra Mundial, existiam cerca
de quarenta Estados, relativamente semelhantes no campo político, econômico e social.
Na seara política, tratavam-se de Estados mais ou menos democráticos, caracterizados
por uma classes dirigentes que eram levadas a manter o “status quo”. A ordem
econômica, por sua vez, se retratava pela crença nas virtudes da liberdade universal de
trocas e na privação de intervenção direta na vida econômica interna e internacional.
Esses Estados apresentavam um semelhante nível de riqueza.215
Na organização social, eles eram em sua maioria semelhantes, fundados em um
sistema de valores comuns, em se tratando de sua posição geográfica ocidental. Os
grandes problemas da sociedade internacional da época eram resolvidos pela Santa

212
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p. 57
213
Ibid., p. 58
214
CARREAU, Dominique; BICHARA, Jahyr-Philippe. Direito Internacional. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2015. p. 13
215
Ibid., p. 13
73

Aliança, que se tornou o “Concerto Europeu” (composto por Alemanha, Inglaterra,


Áustria, França, Rússia). Um exemplo de sua atuação ocorre quando 13 países europeus,
no ano de 1885, procedem com a partilha da África, fundamentada em condições
favoráveis à um direito internacional estável que governava as relações entre os Estados
da época.216
Nesse sentido, o direito convencional se desenvolveu ao longo do século XIX,
onde foram celebrados cerca de 16 mil tratados em escala mundial entre o período de
1815-1924, com destaque para o desenvolvimento dos tratados multilaterais,
caracterizados pela vinculação da vontade de vários Estados por meio de um único
instrumento internacional.217 Em seguida, ao final do século XIX, a unificação das regras
de direito internacional tornou-se um dos maiores objetivos da sociedade internacional,
objetivando solucionar problemáticas que não poderiam ser decifradas unilateralmente
pelos Estados. Como consequência desses esforços, surge a necessidade de
institucionalização das relações internacionais, aparecendo as organizações
internacionais como novos sujeitos de Direito Internacional.218
As organizações internacionais apareceram na segunda metade do século XIX
sob a configuração de uniões administrativas, tendo como primeiros expoentes a União
Telegráfica Internacional, no ano de 1865, e a União Geral dos Correios, no ano de 1874.
Porém, essa não era a principal preocupação da sociedade internacional na época, mas foi
impulsionada pela necessidade de resolução pacífica de conflitos, por meios diplomáticos
como a conciliação, mediação, arbitragem e investigação, que eram introduzidas
mediante cláusulas em convenções.219
A ideia de manutenção da paz a partir do respeito ao direito internacional
persistiu e ascendeu às conferências mundiais sobre a paz, realizadas na cidade de Haia
entre 1899 e 1907, e precursoras das discussões acerca da manutenção da paz entre as
nações.220 Reforçando a ideia de necessidade de relativização da soberania dos Estados,
foi criada a Liga das Nações, também chamada de Sociedade das Nações, após a Primeira
Guerra Mundial, cuja finalidade seria de promover a cooperação, a paz e a segurança das
nações em âmbito internacional, e detinha poderes de sancionar economicamente e

216
CARREAU, Dominique; BICHARA, Jahyr-Philippe. Direito Internacional. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2015. p. 14
217
Ibid., p. 14
218
Ibid., p. 15
219
Ibid., p. 16
220
Ibid., p. 16
74

militarmente Estados que violassem as obrigações contidas na Convenção da Liga das


Nações. Destaca-se que essa entidade foi muito importante para as discussões sobre o
tema dos direitos humanos no plano do direito internacional, em razão das sanções que
previa aos Estados que violassem tais direitos.221
Logo em seguida, em 1919, há a criação da Organização Internacional do
Trabalho – OIT, ao final da Primeira Guerra Mundial, que objetivava discutir os direitos
fundamentais dos trabalhadores, vislumbrando assegurar padrões de dignidade e bem-
estar social, vinculando os Estados a aderir e respeitar tais parâmetros. Sua principal
contribuição foi a mudança da ótica dos direitos individuais, que passaram a ser mais
facilmente visualizáveis sob o exemplo do trabalho decente.222
Ademais, a institucionalização das relações internacionais desenvolveu suas
maiores realizações após o término da Segunda Guerra Mundial, em um nível universal
e regional223, se caracterizando pelas associações voluntárias dos Estados, constituídas
por meio de tratados, cuja finalidade seria de buscar interesses comuns por meio de uma
cooperação permanente entre seus membros, de forma que um dos seus principais
elementos consiste no voluntarismo, conforme está expresso no artigo 2º, §6º da Carta
das Nações Unidas224.
Portanto, é por intermédio dos tratados constitutivos que as Organizações
Internacionais extraem legitimidade e segurança para atuarem em conjunto com os
Estados.225 Toda Organização tem como fundamento um tratado constitutivo, no qual
estão elencados os direitos e as obrigações dos Estados Membros com a organização, bem
como as relações entre os Estados-Membros. Dentre suas funções, as Organizações
Internacionais prestam serviços aos Estados, mediante objetivos como a manutenção da
paz, a busca do desenvolvimento econômico e social, e se consubstanciam por meio de
um tratado, que figura como a Constituição da organização internacional, onde estão
dispostos as finalidades e os objetivos a serem alcançados pelo acordo, bem como os
instrumentos pelos quais os Estados se comprometem a subsidiar para tanto.

221
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p. 59
222
Ibid., p. 59
223
CARREAU, Dominique; BICHARA, Jahyr-Philippe. Direito Internacional. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2015, p. 26
224
SEITENFUS, Ricardo. Manual das Organizações Internacionais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008. 386 p. p. 32
225
Ibid., p. 34
75

No mais, o contexto pós Segunda Guerra Mundial confere origem ao o


movimento do “Direito Internacional dos Direitos Humanos - DIDH”, em decorrência
das atrocidades cometidas pelo regime Nazista durante o Holocausto, (1939-1945), que
vitimou 11 milhões de pessoas, e que despertou na sociedade internacional a necessidade
de construir uma normatividade diferente do que até então era praticado, pois mesmo a
Liga das Nações não detinha poder o suficiente para aplicar suas sanções.226 As
consequências das violações de direitos humanos cometidas pelos nazistas difundiram-se
em várias nações vizinhas, pois fomentaram fluxos migratórios de pessoas, ações
violentas de regimes terroristas, e invasão a outros Estados.227
Destarte, no ano de 1945, a Comunidade Internacional traçou a meta de
‘preservar as gerações vindouras dos flagelos da guerra’, que seria alcançado através de
um sistema de segurança coletiva, iniciando as discussões sobre a definição de parâmetros
globais de ação estatal, vislumbrando a composição de um código compartilhado de
condutas que expressassem os interesses e as preocupações internacionais. Esse sistema
normativo atribui ao indivíduo um papel de sujeito do direito internacional, conferindo-
lhe direitos e obrigações no plano internacional, e implica a noção de que os Estados
negadores dessas garantias devem ser responsabilizados internacionalmente.228
Outrossim, no que concerne ao direito internacional dos direitos humanos, Flávia
Piovesan229 aponta como característica a centralização de seu objeto nos direitos inerentes
à pessoa humana, revelando um conteúdo materialmente constitucional, uma vez que os
direitos humanos, ao longo da experiência constitucional, sempre foram considerados
matéria constitucional. Com efeito, a sistemática internacional de proteção a esses direitos
pode ser compreendida a partir de uma dupla dimensão, na medida em que constitui um
parâmetro mínimo de salvaguarda a ser observado pelos Estados - evitando retrocessos -
, e uma instância de tutela quando as instituições nacionais se mostram falhas ou
omissas.230 Nesse sentido, reconhecer e proteger os direitos humanos se tornam
prioridades da Comunidade Internacional, quando se vislumbra superar os interesses

226
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p. 61
227
Ibid., p. 61
228
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2013. p. 45
229
Ibid., p. 52
230
Ibid., p. 47
76

particulares dos Estados, atendendo a um “estado de natureza” que resulta de uma visão
integral acerca de todas as formas de vida.231
Assim, surge a Organização das Nações Unidas – ONU, no ano de 1945, e
posteriormente a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no ano de 1948,
iniciando a proteção dos direitos individuais básicos e a produção de inúmeros tratados
internacionais sobre temas correlatos.232 Resta salientar que a Carta das Nações Unidas,
a Declaração Universal dos Direitos Humanos e outros instrumentos importantes que
compõem o sistema universal de proteção aos direitos humanos serão analisados
individualmente, ainda neste capítulo.
Ademais, partindo da análise histórica, também se faz necessário entender a
concepção estrutural dos direitos humanos. Conforme leciona André de Carvalho Ramos,
os direitos humanos detêm uma estrutura variada que pode ser entendida a partir de quatro
óticas distintas: direito-pretensão, direito-liberdade, direito-poder e direito-imunidade.233
Importante definir que todas elas partem do pressuposto que o direito consiste
em uma faculdade de exigir uma obrigação de um terceiro, e que este pode ser o Estado
ou um particular. Nesse sentido, os direitos do tipo pretensão são aqueles
consubstanciados na busca de algo, que gera um dever de prestar. A partir do momento
que a pessoa detém um direito desse tipo, automaticamente os outros indivíduos tem o
dever de não o violá-lo.234 Por sua vez, o direito do tipo liberdade traduz-se como a
faculdade de agir, que provoca a “ausência de direito” de que lhe seja exigido algo oposto.
Um claro exemplo trazido pelo autor diz respeito ao direito à liberdade de credo, que tem
como consequente a impossibilidade que seja exigido, por parte do Estado ou de terceiros,
que lhe seja obrigado a ter uma religião.235
Já o direito-poder, corresponde a uma relação de poder que exige de outrem a
sujeição a uma determinada demanda, que sujeita o Estado, por exemplo, a providenciar
determinada obrigação.236 Por último, o direito-imunidade simboliza a autorização
conferida por uma norma a determinada pessoa, que impede que outra interfira de
qualquer modo. É o caso da imunidade de prisão em determinados casos, por exemplo.

231
LIMA SOBRINHO, Luis Carlos dos Santos. Controle de Convencionalidade sob a Abordagem da
Transjuridicidade. 1 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 70
232
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p. 63
233
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. 1040 p. p.
40
234
Ibid., p. 40
235
Ibid., p. 40
236
Ibid., p. 41
77

Atrelado aos tipos direitos mencionados, é importante pontuar que os direitos


humanos representam valores essenciais, simbolizam um caráter de fundamentalidade,
que pode ser entendido a partir de uma concepção formal, onde esses direitos são inscritos
nas constituições e nos tratados, e materiais, onde possuem um conteúdo normativo
indispensável para a proteção da dignidade dos indivíduos.237
André de Carvalho Ramos também apresenta quatro ideias-chaves, ou marcas
distintivas, que os direitos humanos têm em comum.238 São elas: universalidade, que
traduz-se na ideia que esses direitos não diferem os indivíduos, e se aplicam
universalmente a todos; essencialidade, que traduz os valores indispensáveis de tutela
desses direitos; a superioridade às outras normas, sejam elas nacionais ou internacionais,
não admitindo sua subsunção em detrimento de interesses do Estado; e reciprocidade, na
medida em que o respeito aos direitos e deveres não se aplicam somente ao Estado e seus
agentes, mas à coletividade.239

3.2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO FUNDAMENTO DA TUTELA


DOS DIREITOS DAS PESSOAS LGBTQIAP+

O sistema jurídico, de forma geral, é formado por normas, que podem ser
divididas em normas-princípios e normas-regras. As primeiras, dizem respeito a
proposições ideais que detém fundamentos normativos e vislumbram inspirar o operador
do direito, enquanto as últimas fundamentam o ordenamento jurídico por meio de suas
proposições.240
Ao longo da história da civilização humana, a dignidade humana assumiu as
concepções de nobreza ou posição social; virtudes ou deveres especiais; status religioso;
status cósmico da vida humana; e respeito à dignidade individualizada.241 Desde a
Antiguidade Grega, a ideia de desigualdade era intrínseca aos indivíduos e estava

237
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. 1040 p. p.
41
238
Ibid., p. 41
239
Ibid., p. 42
240
GURGEL, Yara Maria Pereira. Direitos humanos, princípio da igualdade e não discriminação: sua
aplicação às relações de trabalho. 2007. 311 f. Tese (Doutorado em Direito) - Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2007. p. 40
241
GURGEL, Yara Maria Pereira. Conteúdo normativo da Dignidade Da Pessoa Humana e suas
implicações jurídicas na realização dos Direitos Fundamentais. 2018. 218 f. Tese (Pós-Doutorado) -
Curso de Ciências Jurídicas, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2018. P. 86-87
78

profundamente enraizada na cultura da sociedade. Na Grécia antiga, tanto a escravidão


quanto a subordinação da mulher ao homem não eram questionadas, em que pese já se
discutirem os ideais de igualdade, que indicavam que os cidadãos detinham os mesmos
privilégios e mesmos direitos de se pronunciar nas assembleias públicas. Porém, no
âmbito de suas residências, cada cidadão comportava-se como um tirano, ao qual estavam
subordinados a sua mulher, seus filhos e seus escravos.242
Outra concepção hierárquica ligada à dignidade encontra-se presente na Roma
antiga, com a ideia de dignitas, que correspondia ao prestígio de certas pessoas ou
instituições em razão do seu status conferindo-lhes a expectativa de receber em respeito
e honrarias da sociedade em geral243. Etimologicamente, o termo dignidade deriva da
dignitas romana, que consistia nesse status reconhecido socialmente que conferia aos
indivíduos integridade moral, e lhes atribuía valor, honra, hierarquia, respeito, privilégio
social. Tais qualidades se sujeitavam as ações dos indivíduos, dependendo de seus
comportamentos perante a sociedade, podendo o detentor perder tais privilégios
decorrentes desse mérito.244
Ademais, alguns séculos mais tarde, a superioridade da pessoa humana diante
dos demais seres vivos também foi afirmado por Santo Agostinho. Para ele, o ser humano
é um animal racional criado por Deus à sua imagem e, ao atribuir inteligência ao homem,
Deus lhe permitiu “elevar-se acima de todos os animais da terra, das águas e do ar,
desprovidos de um espírito deste gênero”.245 Porém, sua teoria não tem nada de
igualitária, pois, para ele, Deus não concede graça a todos, mas apenas alguns que
estariam predestinados a salvação, justificando, assim, a hierarquia entre as pessoas a
partir da vontade divina.246 Na idade média, São Tomás de Aquino, em sua Suma
Teleológica, afirma que a superioridade humana advém da racionalidade e do livre
arbítrio, em que o homem havia sido investido por Deus ao cria-lo à sua imagem e
semelhança.247 Na sua Suma contra os Gentios, Aquino afirma a existência de uma ordem
hierárquica entre os homens, ditada pela Divina Providência.248

242
SARMENTO, Daniel. Dignidade da Pessoa Humana: conteúdo, trajetória e metodologia. Belo
Horizonte: Fórum, 2016. 376 p. ISBN 978-85-450-0130-0. p. 29-30
243
Ibid., p. 29-30
244
GURGEL, Yara Maria Pereira. Conteúdo normativo da Dignidade Da Pessoa Humana e suas
implicações jurídicas na realização dos Direitos Fundamentais. 2018. 218 f. Tese (Pós-Doutorado) -
Curso de Ciências Jurídicas, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2018.
245
SARMENTO, Daniel. Dignidade da Pessoa Humana: conteúdo, trajetória e metodologia. Belo
Horizonte: Fórum, 2016. 376 p. ISBN 978-85-450-0130-0. p. 31
246
Ibid., p. 31
247
Ibid., p. 31
248
Ibid., p. 32
79

Até o advento da modernidade, prevalecia a ideia da afirmação da superioridade


dos seres humanos em relação aos demais animais, concepção inicial do que viria a ser a
dignidade humana. A partir dessa concepção, não podia se conceber um sentido
igualitário que reconhecesse os mesmos direitos e deveres a todos. Prevaleceu, durante
todo esse período, uma concepção estamental das relações sociais que pressupunha uma
desigualdade natural entre as pessoas onde algumas eram destinadas a funções mais
nobres enquanto outras desempenhavam papeis subalternos249.
Posteriormente, o período do Renascimento foi uma fase de transição entre a
concepção pré-moderna e a moderna da dignidade humana. As visões teocêntricas da
sociedade começaram a ser substituídas por concepções antropocêntricas e seculares. O
pensamento renascentista tomou interesse pela tradição humanista grego-romana e
aprofundou algumas ideias que enalteciam a pessoa humana. Um importante conflito
sobre a universalidade da dignidade humana surgiu no século XVI, a respeito dos índios
sul-americanos colonizados pelos espanhóis, onde discutiu-se, no Conselho de Valladolid
(1550-1551), se os indígenas teriam ou não alma e humanidade.250
O discurso acerca da dignidade da pessoa humana só ganha um caráter universal
a partir do iluminismo, pois este discurso pregava os direitos naturais, que seriam
anteriores e superiores ao Estado, fundamentados na razão, e que tinham um grande
potencial igualitário pois eram hipoteticamente universais e eram direitos pertencentes ao
homem. Diferentemente do direito natural pré-moderno, que buscava legitimar as
hierarquias sociais existentes, e era fundado numa ordem objetiva e imutável, o
igualitarismo da dignidade manifestou-se na obra dos grandes filósofos do iluminismo.251
A contribuição de Jean Jaques Rousseau se evidencia na afirmação de que o
contrato social deveria instaurar um regime de plena igualdade entre os cidadãos,
assegurando a participação de todos na elaboração das leis e sua submissão igualitária a
elas. Já Immanuel Kant, em sua teoria, afirma que as pessoas, diferentemente das coisas
e dos animais, não possuem preço, mas possuem dignidade, consistindo fins em si mesma.
Essa dignidade pressupõe autonomia da pessoa humana que ele confere a capacidade de
agir de acordo com a moral, e de agir e de se autodeterminar-se de acordo com a moral252.

249
SARMENTO, Daniel. Dignidade da Pessoa Humana: conteúdo, trajetória e metodologia. Belo
Horizonte: Fórum, 2016. 376 p. ISBN 978-85-450-0130-0. p. 32
250
Ibid., p. 33
251
Ibid., p. 35
252
Ibid., p. 35
80

Outrossim, a primeira invocação jurídica explícita da dignidade da pessoa


humana ocorre no preâmbulo do decreto que aboliu a escravidão na França, editado em
1848, em que se afirmava que “a escravidão é um atentado contra a dignidade humana”.253
Nesses termos, antes da 2ª Guerra Mundial, poucas constituições fizeram
referência à dignidade humana, a exemplo das constituições do México de 1917, da
Alemanha e da Finlândia, ambas de 1919, e a Constituição brasileira de 1934. A grande
ascensão da dignidade humana expressa nos textos constitucionais veio após a 2ª Guerra
Mundial, como forma de reação diante das atrocidades cometidas pelo regime nazista,
que ascendeu também a percepção de que era fundamental a organização dos Estados e
da Comunidade Internacional em torno de bases humanitárias.254
Conforme leciona Daniel Sarmento, observa-se que a maioria dos documentos
editados no período após a Segunda Guerra Mundial proclamavam a dignidade da pessoa
humana, com destaque para os documentos que compõem o sistema universal de proteção
aos direitos humanos, como a Carta da ONU (1945), a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (1948), a Convenção Internacional para a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial (1965), o Pacto dos Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto dos
Direitos Sociais e Econômicos (1966), e também para a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (1969).255
Dentre os textos citados, destaca-se a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, na qual o seu preâmbulo anuncia que “o reconhecimento da dignidade inerente
a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o
fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.256
Nesses termos, a dignidade humana é hoje amplamente reconhecida como um
princípio normativo de máxima estatura, que é invocado por diversos tribunais
constitucionais em diversas causas diferentes. Ela não surge consagrada
constitucionalmente como um dos princípios constitucionais, mas como a base em que se
fundamenta a república. Para Jorge Reis Novais, imputa-se a um ato ou uma omissão de
um órgão público ou de uma entidade privada que venha a contrariar o princípio da

253
SARMENTO, Daniel. Dignidade da Pessoa Humana: conteúdo, trajetória e metodologia. Belo
Horizonte: Fórum, 2016. 376 p. ISBN 978-85-450-0130-0. p. 53
254
Ibid., p. 53
255
Ibid., p. 54-55
256
Ibid., p. 56
81

Dignidade Humana a mais grave das inconstitucionalidades materiais em um Estado de


Direito.257
Nessa senda, em que pese o contexto histórico-jurídico apresentado acerca do
princípio da Dignidade da Pessoa Humana, se faz necessária a abordagem direta na
questão de seu conteúdo normativo, pois tal conteúdo foi recepcionado por 149
constituições nacionais, de um total de 194 que se encontram em vigor na atualidade, e
encontra-se associado aos direitos fundamentais como sua base jurídica e valorativa.258
Ademais, mesmo nações que não possuem menção expressa ao princípio da dignidade
humana, a exemplo da França e dos Estados Unidos, a sua presença se faz relevante, em
especial quando este contesta políticas e ações excessivas ou opressivas por parte dos
Estados nacionais.259
Ainda sobre o seu conteúdo normativo, conforme Yara Maria Pereira Gurgel, a
dignidade humana é a principal expressão normativa de todos os tempos, e para que haja
a plena inserção de um indivíduo na sociedade, se faz necessária a observância de um
princípio que figure como fundamento para que dele decorram os direitos necessários à
materialização da autonomia individual, às liberdades públicas, à igualdade de direitos,
ao respeito à diversidade, ao mínimo social condigno.260
Nesses termos, a dignidade da pessoa humana surge como um princípio de
proteção às pessoas, visando seu bem-estar, sua autonomia, sua liberdade em face dos
Estados, e como uma justificação para limitar certos direitos fundamentais colidentes261.
Para Jorge Reis Novais, a dignidade é, por definição constitucional, fundamento
da República e o princípio supremo do ordenamento jurídico, que deve prevalecer sobre
quaisquer outros bens, valores, interesses ou direitos.262 Na CRFB, tal princípio se assenta
no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal, como um dos fundamentos da República
Federativa do Brasil.263 Assim, esse princípio pode ser considerado um valor moral ou

257
NOVAIS, Jorge Reis (ed.). A dignidade da pessoa humana: dignidade e direitos fundamentais.
Coimbra: Almedina, 2015. ISBN 978-972-40-6157-3. p. 20
258
GURGEL, Yara Maria Pereira. Conteúdo normativo da Dignidade Da Pessoa Humana e suas
implicações jurídicas na realização dos Direitos Fundamentais. 2018. 218 f. Tese (Pós-Doutorado) -
Curso de Ciências Jurídicas, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2018. p. 86
259
SARMENTO, Daniel. Dignidade da Pessoa Humana: conteúdo, trajetória e metodologia. Belo
Horizonte: Fórum, 2016. 376 p. ISBN 978-85-450-0130-0. p. 13-14
260
GURGEL, Yara Maria Pereira. Conteúdo normativo da Dignidade Da Pessoa Humana e suas
implicações jurídicas na realização dos Direitos Fundamentais. 2018. 218 f. Tese (Pós-Doutorado) -
Curso de Ciências Jurídicas, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2018. p. 86
261
NOVAIS, Jorge Reis (ed.). A dignidade da pessoa humana: dignidade e direitos fundamentais.
Coimbra: Almedina, 2015. ISBN 978-972-40-6157-3. p. 13
262
Ibid.,. p. 9
263
Ibid.,. p. 17
82

uma referência identitária das sociedades, havendo, nesses dois sentidos, uma dimensão
jurídico-constitucional, que deve se impor juridicamente a todos os poderes do Estado,
assim como os vincula a recepção constitucional, impondo seu respeito e promoção.264
Quando inserido no âmbito constitucional, o princípio em apreço figura como
condutor de toda a estrutura constitucional do Estado democrático de direito, e tem como
principal desdobramento projetar seu conteúdo, dada relevância à questão da liberdade e
a igualdade de todos, de forma direcionada aos direitos fundamentais, orientando o
operador do direito na aplicação dos direitos fundamentais e na resolução de antinomias
jurídicas, em especial quanto à colisão de direitos fundamentais.265 Assim, a concepção
normativa da dignidade da pessoa humana tem o papel de reconhecer determinados
direitos como absolutos, que não devem ser sujeitados à mitigação ou suplantação em
nenhuma circunstância, como é o caso da proteção contra o trabalho em condição análoga
à escravidão; igualdade perante a lei e não discriminação, proteção contra o genocídio,
integridade física e psíquica.266
Outra implicação do conteúdo normativo da dignidade da pessoa humana diz
respeito a sua atuação como fator de interpretação dos direitos fundamentais, restringindo
seus limites, por meio de um componente valorativo de onde se deliberam quais direitos
fundamentais detém prioridade, quando estão diante de um conflito com outro direito
fundamental.267 A partir disso, Yara Maria Pereira Gurgel afirma que, por ser concebido
como um standart de proteção, o bem jurídico oriundo do conteúdo da dignidade da
pessoa humana é alcançado acima de qualquer contexto cultural, político e social.268
Explica que, doutrinariamente, apesar de não haver consenso quanto ao conteúdo
do princípio da dignidade humana em razão de sua indeterminação semântica, há um
consenso entre a grande maioria dos autores, que defendem a dignidade como a proibição
da instrumentalização do homem e a igualdade dos direitos.
O autor Daniel Sarmento, por sua vez, entende que o conteúdo essencial da
dignidade da pessoa humana diz respeito a valor intrínseco da pessoa, que proíbe a sua
instrumentalização, assim como o direito a igualdade, ao respeito da autonomia, ao

264
NOVAIS, Jorge Reis (ed.). A dignidade da pessoa humana: dignidade e direitos fundamentais.
Coimbra: Almedina, 2015. ISBN 978-972-40-6157-3. p. 18
265
GURGEL, Yara Maria Pereira. Conteúdo normativo da Dignidade Da Pessoa Humana e suas
implicações jurídicas na realização dos Direitos Fundamentais. 2018. 218 f. Tese (Pós-Doutorado) -
Curso de Ciências Jurídicas, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2018. p. 87
266
Ibid., p. 95 e 96
267
Ibid., p. 96
268
Ibid., p. 98
83

mínimo existencial (condições essenciais à vida digna), e ao reconhecimento, que


consiste no respeito à identidade individual e coletiva.269 Já para Catherine Dupré, o
conteúdo essencial da dignidade da pessoa humana está nos direitos de liberdade,
autonomia e igualdade.270 Outrossim, para Luís Roberto Barroso, este conteúdo mínimo
se fundamenta em três elementos essenciais, quais sejam: (i) valor intrínseco da pessoa
humana; (ii) autonomia da vontade; e (iii) valor comunitário271.

3.3 PRINCÍPIO DA IGUALDADE E DA NÃO DISCRIMINAÇÃO

Igualdade e justiça são dois valores que estão atrelados entre si desde muito cedo
na história. Na antiguidade, a noção de igualdade nasce a partir de Sólon (640-560 a. c.),
que acreditava nela como um ideal a ser alcançado. Platão (429-347), por sua vez, a
enxergava como fundamento da democracia, que deveria ser oferecida sob a forma da
igualdade de oportunidades, que visa combater as desigualdades sociais.272 Mais adiante,
Santo Agostinho vincula justiça e igualdade, quando legitima as leis por meio de seu
respeito ao princípio da igualdade, podendo a justiça ser diferenciada entre Justiça
Cumulativa - aquela que trata das relações entre pessoas privadas -, por meio da qual deve
haver igualdade, e a Justiça Distributiva, que é a relação entre as pessoas privadas e o
Estado, de onde se depreende que o ente deve repartir os encargos conforme a capacidade
de resistência de cada indivíduo, reconhecendo a desigualdade de capacidades entre os
membros da sociedade.273
As discussões sobre igualdade se ampliam durante o Século XVIII, tendo como
expoentes os ideais de Jean Jaques Rousseau e a Revolução Francesa. Rousseau (1712-
1778) foi um dos inspiradores da Revolução Francesa, pois acreditava que as
desigualdades civis são construções dos homens, que orientam o estabelecimento da
propriedade e as leis. Assim, o filósofo defendia a soberania popular e a igualdade de

269
SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. 2. ed. Belo
Horizonte: Forum, 2016. p. 93.
270
GURGEL, Yara Maria Pereira. Conteúdo normativo da Dignidade Da Pessoa Humana e suas
implicações jurídicas na realização dos Direitos Fundamentais. 2018. 218 f. Tese (Pós-Doutorado) -
Curso de Ciências Jurídicas, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2018. p. 98
271
Ibid., p. 98
272
GURGEL, Yara Maria Pereira. Direitos Humanos, princípio da igualdade e não discriminação: sua
aplicação às relações de trabalho. 2007. 311 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2007. p. 44
273
Ibid., p. 45
84

direitos. Posteriormente, em 1789, advém a Revolução Francesa, como marco histórico


caracterizado pelos seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, por onde o
movimento pleiteava romper os privilégios oferecidos pelo Estado a alguns indivíduos,
que contribuía com a manutenção das desigualdades sociais. Também defendia a
separação dos poderes do Estado, que é imprescindível para o sistema de freios e
contrapesos (checks and balances).274
A partir dessas discussões surge o movimento constitucionalista liberal, que tem
na Constituição a principal norma do Estado, superior às outras, e que protege o cidadão
contra as arbitrariedades do Estado. Nela, atribuem-se os direitos fundamentais
alicerçados na liberdade e orientados pelo princípio da igualdade de todos perante a lei,
que se traduzem em direitos e deveres. Destacam-se os direitos fundamentais, os quais,
sob uma vertente negativa, figuram como forma de defesa perante o Estado.275
Ademais, Yara Maria Pereira Gurgel traça importantes apontamentos sobre a
noção de igualdade formal, ou igualdade perante a lei, e como ela não se sustenta perante
os grupos sociais menos favorecidos da sociedade. Esse conceito de igualdade, que prevê
que o Estado confira o mesmo tratamento a todos os indivíduos, esbarra nas dificuldades
já presentes na sociedade, e de nada contribui para mitigá-las. Como exemplo, a autora
cita o período de apogeu do liberalismo, quando todos tinham, formalmente, direitos
iguais de propriedade e segurança, mas somente a burguesia realmente os exercia
plenamente.276
Nesses termos, a noção de igualdade formal perde seu espaço quando se percebe
que as liberdades públicas estão intrinsecamente relacionadas a efetividade substancial
do princípio da igualdade, que só pode ser conferida levando em consideração as
diferenças inerentes a cada indivíduo. Portanto, o Estado precisou mudar sua ótica quanto
aos jurisdicionados, em especial no que se refere a sua função de promover os Direitos
Sociais. Yara Gurgel destaca que a igualdade para as pessoas desiguais resulta em
discriminação, de onde se depreende que o Estado democrático de direito deve atuar como
agente promotor de oportunidades de inclusão social, levando-se em conta a justiça social
e a particularidade de cada indivíduo.277

274
GURGEL, Yara Maria Pereira. Direitos Humanos, princípio da igualdade e não discriminação: sua
aplicação às relações de trabalho. 2007. 311 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2007. p. 45
275
Ibid., p. 46
276
Ibid., p. 51
277
Ibid., p. 51
85

A igualdade material, por sua vez, está diretamente relacionada ao regime


democrático e ao Estado social de direito. Ela nasce das reivindicações pela atuação do
Estado como agente de transformação das desigualdades. Nesse sentido, o princípio da
igualdade, a partir do século XX, passa a conduzir a ordem jurídica em âmbito público e
privado, em decorrência do abandono ao individualismo e de sua aproximação com o
solidarismo. A partir das primeiras Constituições democráticas, que tem como expoentes
a Constituição mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919, surge o Estado
Social de Direito, que é caracterizado pela intervenção nas atividades econômicas, na
implantação e na efetividade das prestações positivas, que objetivam minimizar as
diferenças sociais, buscando a justiça social por meio da assistência às classes favorecidas
e do direito à diferença.278
O direito a diferença, por sua vez, consiste no direito a ter suas características e
escolhas pessoais respeitadas. O direito de igualdade visto a partir dessa ótica corresponde
ao direito de ser diferente, de ter sua identidade reconhecida e de ser tratado dignamente,
sem necessidade de se enquadrar em padrões socialmente impostos.279 Nesses termos, a
igualdade material impõe aos legisladores a obrigatoriedade de seu respeito, que devem
ser transpostos em normas que promovam a igualdade de condições e que tratem igual as
pessoas que dispõem de condições semelhantes, e que trate de forma diferenciada as
pessoas que dispõem de alguma especificidade, reconhecendo suas identidades e
necessidades.280
Ressalta-se, nesse contexto, que não cabe ao Estado garantir a igualdade de
resultados, pois estas dependem das ações dos indivíduos, mas lhe cabe oferecer
oportunidades iguais a todos, que todos partam de condições iniciais mínimas para se
desenvolverem. Assim, a igualdade material detém o papel de conduzir o Estado a
promover o bem-estar comum, atenuando as desigualdades sociais. Para tanto, se faz
necessária a criação de condições jurídicas e de ações afirmativas para oferecer
oportunidades iguais a todos, para que a partir daí cada um se desenvolva livremente.281
Estudaremos adiante como o princípio da igualdade dialoga com vários aspectos da
personalidade humana, estando presente nos tratados e convenções internacionais mais

278
GURGEL, Yara Maria Pereira. Direitos Humanos, princípio da igualdade e não discriminação: sua
aplicação às relações de trabalho. 2007. 311 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007. p. 56-59
279
Ibid., p. 59
280
Ibid., p. 59
281
Ibid., p. 59-62
86

importantes da atualidade, assim como sua presença é fundamental nas decisões judiciais
que protegem as minorias SOGIESC, estando presente em todas as decisões da Corte
Interamericana de Direitos Humanos que protegem os direitos desses grupos sociais. No
mais, o estudo desse princípio, associado às normas internacionais, deve servir de
parâmetro para interpretação da Constituição Federal Brasileira, por sua consonância com
as normas internacionais que estudaremos a seguir.

3.4 SISTEMA GLOBAL DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS E A


CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS DAS PESSOAS LGBTQIAP+

A proteção das minorias sexuais em situação de vulnerabilidade contra


discriminações, tratamentos diferenciados em razão do preconceito, e a proteção de sua
vida privada e familiar vêm galgando um espaço cada vez maior nas discussões
acadêmicas. Antes de adentrar nos direitos direcionados a esses grupos, se faz necessário
entender o percurso histórico e construtivo desses direitos, levando-se em consideração
que a sociedade internacional somente se voltou, de fato, para a proteção jurídica das
pessoas LGBTQIA+ a partir da criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, e
da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no ano de 1948. Tal
preocupação fundamenta-se a partir da consolidação internacional do princípio da
dignidade da pessoa humana, em detrimento da não discriminação em razão de etnia, cor,
orientação sexual, identidade de gênero, entre outras características pessoais.282
Neste tópico, será abordado o percurso normativo de tutela dos direitos humanos
em âmbito internacional, enunciando os principais documentos internacionais e a
paulatina consolidação de direitos universais. A intenção deste tópico é enunciar o
processo de evolução da proteção dos direitos humanos, por meio de normas
internacionais e instrumentos de efetividade internacional de tais direitos, como é o caso
da criação de instituições, órgãos, comissões e até mesmo de cargos específicos que detém
as funções de acompanhar e investigar a os casos de violações desses direitos.
Além disso, é importante destacar que será conferida uma ênfase, em cada uma
dessas normativas, na evolução conferida aos direitos de cidadania e aos direitos

282
SIQUEIRA, D. P., MACHADO, R. A. (2018). A proteção dos direitos humanos LGBT e os
princípios consagrados contra a discriminação atentatória. Revista Direitos Humanos E
Democracia, 6(11), 167–201. https://doi.org/10.21527/2317-5389.2018.11.167-201
87

direcionados a proteção contra discriminação em razão de orientação sexual e identidade


de gênero, partindo-se de uma análise das preocupações internacionais inerentes a cada
época, onde será traçado um paralelo de evolução jurídica das normativas de proteção dos
grupos sociais que compõem a sigla LGBTQIAP+.

3.4.1 Carta das Nações Unidas

Também conhecido como Carta da ONU, esse documento foi assinado em São
Francisco, no ano de 1945, após a Segunda Guerra Mundial, e, além de pautar a criação
do principal órgão internacional, a Organização das Nações Unidas – ONU, também
inaugura um sistema específico de normas que objetivam proteger os indivíduos em razão
de sua condição humana. Pauta, em seu texto, a manutenção da paz e a segurança entre
Estados, a cooperação internacional no plano econômico, social e cultural, o
desenvolvimento de relações amistosas entre Estados, assim como vislumbra o alcance
de padrões internacionais de saúde, de proteção ao meio ambiente e de proteção
internacional dos direitos humanos.283
Portanto, o preâmbulo da Carta das Nações Unidas afirma a fé nos direitos
fundamentais do homem, na dignidade e valor do ser humano, na igualdade de direito do
homem e da mulher dentre os direitos consagrados na Carta das Nações Unidas.
Ademais, exposto como um dos propósitos das Nações Unidas, em seu art. 55,
está a cooperação internacional, direcionada para “resolver problemas internacionais de
caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito
aos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça,
língua ou religião”. Destaca-se, nesse interim, o Princípio da Igualdade e não
discriminação, que também se repete no artigo 13.1, quando trata das atribuições da
Assembleia Geral.284
Evidenciam-se também os conteúdos dos artigos 56 e 62. O art. 56 aborda que,
para consecução de tais propósitos, todos os membros da ONU se comprometem a agir
em cooperação com a Organização, em conjunto ou separadamente. O art. 62, por sua
vez, dispõe sobre as funções e atribuições do Conselho Econômico e Social da ONU, que

283
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p. 70
284
ASSEMBLEIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Carta da ONU. São
Francisco. 1945. Artigo 55
88

possui um papel importante na promoção dos direitos humanos e das liberdades


fundamentais, dentre elas a criação de comissões para assuntos econômicos e sociais e a
proteção dos direitos humanos.285
Importante destacar que as problemáticas internas dos Estados e sua relação com
os cidadãos, a partir da criação da ONU, passam a compor um conexo global de proteção,
fundamentado em relações pacíficas entre nações e cooperação internacional.286 Porém,
na prática, muitas nações se fundamentam no art. 2.º, § 7.º da Carta das Nações Unidas,
quanto este enuncia que nenhum dispositivo da Carta prevê que a ONU atue em assuntos
que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado, e que o órgão não
obrigará seus membros a submeterem tais assuntos a uma solução nos termos da Carta,
com ressalva para que esse princípio não prejudicará a aplicação de medidas coercitivas
ao Estado.
A crítica que se faz à Carta das nações Unidas, diz respeito a ausência de
definição clara sobre “direitos humanos e liberdades fundamentais”, o que não
descaracteriza a obrigação de que todos os Estados os entendam como regras jurídicas
universais e não como meras declarações de princípios. A principal contribuição das
nações unidas foi para a universalização dos direitos da pessoa humana, em que pese a
ausência de uma definição clara, bem como o reconhecimento de que a temática é de
interesse internacional e que os Estados ratificantes reconhecem sua obrigação em
respeitar os direitos humanos.287
A República Federativa do Brasil, por sua vez, assinou a Carta das Nações
Unidas em 26 de junho de 1945, e a promulgou em 22 de outubro de 1945, mediante o
Decreto nº 19.841, assim como promulgou o Estatuto da Corte Internacional de Justiça.288
Assim, relacionando a Carta da ONU para a temática de proteção às pessoas
LGBTQIA+, entende-se sua importância na consolidação de um órgão centralizado, apto
a discutir sobre proteção dos direitos das pessoas em situação de vulnerabilidade, e que
estabeleceu parâmetros mínimos de salvaguarda às pessoas. Para o contexto em que tal
documento foi escrito, ele consiste em um grande avanço na proteção dos direitos

285
ASSEMBLEIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Carta da ONU. São
Francisco. 1945. Artigo 62
286
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p. 70 e 71
287
Ibid., 75
288
BRASIL. Decreto nº 19.841, de 1945. Rio de Janeiro, 22 out. 1945. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm. Acesso em: 29 abr. 2023.
89

individuais, mas, por si só, é genérico e insuficiente para a realidade atual de violência
em razão dos direitos inerentes a sexualidade e identidade de gênero.

3.4.2 Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948

A fragilidade em definir direitos humanos e liberdades fundamentais levou a


sociedade internacional a elucidá-los, três anos após a criação da Carta da ONU, com a
proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que atualmente é
considerado o documento mais traduzido do mundo, estando disponível em mais de 500
idiomas diferentes, sendo utilizado como fundamento de muitas das constituições
vigentes.289
Tal declaração foi adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas realizada
em 10 de dezembro de 1948 na cidade de Paris, França, proclamada por meio da resolução
217 A-III da Assembleia Geral e consiste em uma norma comum que deve ser alcançada
por todas as nações.290 Na sessão, dos 56 países representados, não houve nenhum voto
contra a promulgação da DUDH, 48 nações votaram a favor e 8 países se abstiveram.
Ademais, conforme visto anteriormente, os artigos 1.º, § 3.º, 13, 55, 56, 62, 68 e
76 da Carta da ONU abordam, de alguma forma, de direitos humanos e liberdades
fundamentais, porém, necessitavam de maior precisão em sua conceituação. Nesse
contexto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos figura como documento que
preenche tais lacunas, tendo como preocupação principal o estabelecimento de padrões
mínimos de direito que devem ser respeitados para a proteção de todos os seres humanos.
Outro ponto que deve ser levado em conta no presente estudo, destacado por
Mazzuoli, diz respeito à lógica da DUDH, que se distancia do direito internacional
clássico que não atribuía protagonismo aos indivíduos, somente às relações entre Estados
nacionais e suas vontades soberanas, não possibilitando a contestação das ingerências
proferidas pelos Estados. Dessa forma, a DUDH nasce com objetivo de ser um código de
conduta mundial, com fundamento na dignidade da pessoa humana (princípio que ainda

289
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p. 75
290
Nações Unidas no Brasil. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 2020. Disponível em:
https://brasil.un.org/pt-br/91601-declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 15 jul. 2022.
90

será estudado detalhadamente), fundado na proteção baseada na condição de ser pessoa,


independentemente do contexto e da circunstância em que essa pessoa se encontre.291
Têm-se, na DUDH, uma inspiração para instrumentos internacionais de proteção
dos direitos humanos, a exemplo da Convenção Europeia de 1950, Convenção Americana
de 1969 e Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos de 1981. Em sua estrutura,
a DUDH é composta por um preâmbulo, que contém sete considerações iniciais, e trinta
artigos, que reúnem direitos civis e políticos, direitos individuais, direitos sociais,
econômicos e culturais.292 Nesse interim, destaca-se seu artigo 1º, que estabelece os
direitos à liberdade e à igualdade a todos os seres humanos. Em especial ao princípio da
igualdade, ele é detalhado pelo artigo 2º, o qual se estende a todos os seres humanos, sem
distinção de “raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de
origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”.293
Também estão estabelecidos na DUDH os direitos à vida (art. 3º), à proibição de
tortura e de penas de tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes (art. 5º), à segurança
pessoal, a privacidade, liberdade de expressão, a proibição da tortura e discriminação.294
Nesse documento não foram traçadas, de forma direta, considerações acerca das pessoas
LGBTQIAP+, em que pese o preconceito e a discriminação em razão de orientação sexual
e identidade de gênero terem chegado ao seu ápice por meio das atrocidades cometidas
contra essa comunidade durante os regimes nazista e fascista, anteriores diretamente à
ONU e à DUDH, e por muitos países, ainda nessa época, considerarem a
homossexualidade e a transexualidade como crimes puníveis com reclusão, ou até mesmo
execução.
Outrossim, em que pese a ausência de normativas diretas, destacam-se alguns
artigos da DUDH que, se dirigindo à coletividade dos indivíduos, se assentam como
fundamento para garantias vindouras para as pessoas LGBTQIAP+, a exemplo do seu

291
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p. 79
292
Ibid., p. 80
293
ASSEMBLEIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Paris, 1948. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/human-rights/universal-
declaration/translations/portuguese. Acesso em: 28 set. 2022. Artigo 2º
294
Consejo de Derechos Humanos. Informe anual del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para
los Derechos Humanos. 2011. Tradução nossa. Disponível em:
https://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/19session/A.HRC.19.41_sp.pdf. Acesso em: 05
nov. 2021. p. 16
91

artigo 6º295, que trata do direito ao reconhecimento da personalidade jurídica de todos os


indivíduos, em todos os lugares, do artigo 12º, que zela pela não intromissão arbitrária na
vida privada, no domicílio, na honra e na reputação, e, em contraponto a tal violação,
profere que deve ser conferido à toda pessoa o direito à proteção legal. Outro ponto,
exposto no artigo 28296, diz respeito ao direto conferido à toda pessoa de que, no plano
social e internacional prevaleça uma ordem que torne plenamente efetivos os direitos e
liberdades enunciados na DUDH.
No mais, Valério de Oliveira Mazzuoli destaca que a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, desde sua elaboração figura como um parâmetro para promulgação de
diversas constituições pelo mundo, a exemplo da Constituição Federal brasileira de 1988,
a qual copiou alguns de seus dispositivos, de forma que o direito constitucional brasileiro
se encontra integrado ao sistema internacional de proteção aos Direitos Humanos.297 A
crítica que se pode traçar acerca da DUDH, consiste na ausência de instituição de órgãos
com competência para zelar pelo cumprimento dos direitos por ela elencados.298
Destarte, em que pese a Declaração Universal dos Direitos Humanos ter
contemplado os direitos mínimos a serem garantidos pelos Estados na tutela de seus
governados, ela não especificou de forma clara os instrumentos e os meios técnicos de
efetivação desses direitos, ocasionando discussões sobre a verdadeira eficácia de tais
normas. Partindo-se desse pressuposto, e tendo a ONU como principal organismo
engajado em assegurar os direitos expressos na DUDH, em 16 de dezembro de 1966
foram aprovados pela Assembleia Geral da ONU, na cidade de Nova York, o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais.299

3.4.3 Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos de 1966 (PIDCP) e seu
Protocolo Facultativo

295
ASSEMBLEIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Paris, 1948. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/human-rights/universal-
declaration/translations/portuguese. Acesso em: 28 set. 2022. Artigo 6º
296
Ibid., Artigo 28º
297
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 12. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2019. 1797 p. p. 1320
298
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p. 80
299
Ibid., p. 94
92

O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos de 1966 (PIDCP) é um


dos pactos que atribui conteúdo técnico-jurídico e confere operabilidade técnica, como
instrumento de hard law300, à Declaração Universal dos Direitos Humanos.301 Ele entrou
em vigor em 1976, quando alcançou o número de ratificações previsto em seu art. 49, §1º,
e tem por característica abordar de forma mais ampla os direitos enunciados na DUDH,
e também se identifica por sua maior rigidez no que diz respeito a obrigação dos Estados
em respeitar os direitos nele expressos.302
Dentre os direitos enunciados no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e
Políticos, destaca-se o artigo 1º, que versa sobre a autodeterminação de todos os povos,
especificando que em virtude desse direito eles estabelecem livremente sua condição
política, permitindo seu desenvolvimento econômico, social e cultural. Ademais, por
meio de seu artigo 2º, os Estados signatários se comprometem a assegurar todos os
direitos reconhecidos no Pacto a todos os indivíduos do Estado, sem discriminação
alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer
outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer
outra condição.303
Nesse documento também são reconhecidos o direito à liberdade e segurança
pessoais (artigo 9º), onde fica consagrado que todo indivíduo detido ou preso tem direito
a ser informado, no momento da detenção, dos motivos que ensejaram tal ação. Também
dispõe sobre o direito de ser julgado em um prazo razoável, de recorrer da decisão
proferida, e de que toda pessoa presa ilegalmente tem direito a indenização.304 Destaca-
se também a proteção do Pacto a alguns grupos sociais, mais expressamente aos grupos
sociais em situação de vulnerabilidades étnicas, religiosas ou linguísticas, as quais o texto
proíbe que sejam negados sua vida cultural e a liberdade de professar e praticar sua
religião e utilizar sua própria língua.305
O documento também determina a criação do Comitê de Direitos Humanos, com
composição de dezoito membros, compostos por nacionais dos Estados signatários306,

300
Norma obrigatória, impositiva e vinculante aos Estados os signatários.
301
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p. 96
302
Ibid., p. 98
303
ASSEMBLEIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional Sobre
Os Direitos Civis e Políticos. Nova York, 1966. Artigo 2º.
304
Ibid., Artigo 9º.
305
Ibid., Artigo 27.
306
Ibid., Artigo 28.
93

eleitos para um mandato de quatro anos307, onde não poderão integrar mais de um
nacional do mesmo Estado, e deverá ser resguardada uma distribuição geográfica
equitativa dos membros, de forma que haja representação social e cultural diversa.308 A
função dos Estados-signatários perante o comitê, por sua vez, diz respeito a prestar contas,
por meio de relatórios, sobre as disposições que tenham adaptado e direitos que tenham
tornado efetivos, e a evolução protetiva dos direitos enunciados pelo Pacto em seu
território, no prazo de um ano após a entrada em vigor de seu texto normativo, e sempre
que o comitê lhe requisitar.309
Com efeito, um problema que pode ser atribuído ao Pacto Internacional sobre os
Direitos Civis e Políticos consiste na resistência por parte dos Estados em aceitarem tais
mecanismos de supervisão e monitoramento propostos.310 Os relatórios devem enunciar
os fatores e as dificuldades que prejudicam a implementação do Pacto pelos Estados, e
poderão ser encaminhados pelo Secretário-Geral às agências especializadas da ONU,
conforme sua competência.311
No mais, outra função do Comitê de Direitos Humanos consiste na sua atribuição
de natureza conciliatória, onde é facultado ao comitê receber comunicações de um Estado
contra outro, denunciando o não cumprimento de determinada obrigação do tratado. Para
tanto, se a questão suscitada não for dirimida pelos Estados-partes interessados, o comitê
pode, com consentimento prévio, constituir uma comissão ad hoc312 para tentar alcançar
uma solução amistosa, fundamentada no Pacto.313
Atribui-se também ao Comitê de Direitos Humanos um papel de natureza
investigatória, decorrente do Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os
Direitos Civis e Políticos, também adotado em 1966. O Protocolo Facultativo, por sua
vez, na busca pelos melhores resultados para consolidação dos direitos propostos no
Pacto, faculta ao Comitê receber e considerar petições individuais (de particulares contra
os Estados-partes) sobre violações de direitos humanos propostas pelo Pacto. Por meio
do artigo 1º do Protocolo, os estados autorizam a competência do Comitê para receber e

307
ASSEMBLEIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional Sobre
Os Direitos Civis e Políticos. Nova York, 1966. Artigo 32.
308
Ibid., Artigo 31.
309
Ibid., Artigo 40.
310
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p. 99
311
Ibid., p. 99
312
Para uma finalidade específica.
313
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p. 100
94

examinar queixas de indivíduos que estejam sob sua jurisdição e que aleguem ser vítimas
de violação de qualquer dos direitos elencados no Pacto.314 Para tanto, o Protocolo
também estabeleceu, em seu art. 5º, § 2.º, as condições de admissibilidade das queixas
individuais, onde dispõe sobre a não aceitação de questões que já estejam sendo
apreciadas por outra instância internacional de investigação ou solução, assim como
questões que ainda não estejam esgotadas internamente pelo Estado-parte.315
Um segundo protocolo facultativo também foi elaborado, no ano de 1989, pela
Resolução 44/128 da Assembleia Geral da ONU, o qual tinha como objetivo a abolição
da pena de morte. Porém, esse protocolo só entrou em vigor após o depósito do décimo
instrumento de ratificação, no ano de 1991.316
Ademais, o PIDCP foi adotado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992,
promulgado em 24 de abril de 1992, na forma de seu artigo 49, parágrafo 2, e entrou em
vigor em 6 de julho do mesmo ano, por meio do Decreto nº 592/1992. Os seus Protocolos
Facultativos, por sua vez, não foram promulgados pelo Brasil.
Assim, da análise das contribuições que o PIDCP traz para o estudo da proteção
internacional dos direitos humanos das pessoas LGBTQIAP+, frente a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, destaca-se uma interpretação atualizada de
alguns de seus artigos, pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU, como é o caso do
artigo 2º, que versa sobre a igualdade e não discriminação, estabelecendo uma “cláusula
geral de não discriminação” que abrange todos os seres humanos, e engloba as
discriminações de qualquer natureza entre indivíduos, das quais pode-se interpretar a
aplicabilidade às questões acerca de sua orientação sexual, identidade de gênero e seu
direito de constituir família, este último também em conformidade com o artigo 23 do
PIDCP. A interpretação conferida à proteção da família pelo Pacto em tela entende que
são múltiplos os tipos de união familiar, e que devem ser respeitadas todas as formas de
se constituir família.317
Outrossim, em julho de 2016 o Comitê de Direitos Humanos da ONU também
criou a figura do Especialista Independente, instituído da função de acompanhar e
investigar os casos de violações de direitos da população LGBTQIAP+ em todo o mundo,
e de avaliar a implementação de políticas de proteção pelos Estados. O mandato do

314
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p. 100
315
Ibid., p. 102
316
Ibid., p. 103
317
Ibid., p. 372
95

Especialista tem duração de três anos, e o Comitê encoraja a participação ativa de


organismos, de programas e fundos das Nações Unidas, instituições nacionais de direitos
humanos, órgãos nacionais independentes de supervisão, bem como da sociedade civil,
do setor privado, dos doadores e dos organismos de desenvolvimento para auxiliar na
atuação do Especialista Independente no cumprimento de seu mandato.318

3.4.4 Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 e seu
Protocolo Facultativo

Também conhecido pela sigla PIDESC, o Pacto Internacional sobre Direitos


Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, foi adotado em 16 de dezembro de 1966, mas
somente entrou em vigor na ordem internacional em 3 de janeiro de 1976, e, assim como
o PIDCP, compartilha da função de atribuir operabilidade técnica e jurídica à Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, em especial nos artigos 22 ao 27 da DUDH.
Nesses termos, o PIDESC tem como função ampliar o campo de atuação dos
direitos elencados pela Declaração de 1948, reconhecendo determinados direitos aos
cidadãos, que consistem em normas de caráter programático, pelas quais os Estados se
comprometem a adotar políticas destinadas a tutelar os direitos econômicos, sociais e
culturais, mas que não ficam desde já garantidas, ao contrário do Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos.319 Outrossim, conforme leciona Mazzuoli, esse Pacto assenta
uma tendência de proteção aos direitos sociais lato senso320, que também são conhecidos
como direitos de igualdade, e objetiva que eles sejam levados em consideração a partir de
uma aplicação mais concreta, com meios processuais mais eficazes e pleiteando
resultados mais efetivos.321
Em vista disso, a característica determinante do PIDESC consiste no
comprometimento dos Estados na aplicação progressiva das políticas econômicas, sociais
e culturais, na medida de sua capacidade de recursos, visando a satisfação dos direitos por
ele elencados, sendo de mais rápida adoção pelos Estados-partes do que os Direitos Civis

318
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p. 373
319
Ibid., p.103-104
320
Direitos sociais em sentido amplo.
321
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p.107
96

e Políticos, tanto que este entrou em vigor vinte dias antes do PIDCP.322 No mais, entre
os princípios e direitos expressos no Pacto, destaca-se, logo em seu preâmbulo, a
“dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e
inalienáveis”323 e considerando o papel de todos esses indivíduos sobre os outros
membros da comunidade, e a responsabilidade de cada um em “esforçar-se pela promoção
e respeito dos direitos reconhecidos no presente Pacto”.324
Ao todo, os artigos do PIDESC estão distribuídos em cinco partes. A primeira
delas engloba o artigo 1º325, e dispõe sobre os sujeitos objeto do Pacto, em especial
quando aduz que “todos os povos” detém o direito a dispor de si mesmos, determinar
livremente seu estatuto político e assegurar o seu desenvolvimento econômico, social e
cultural de forma livre326, de modo a dispor de suas riquezas e recursos sem prejuízo das
obrigações decorrentes da cooperação internacional.327 Por sua vez, cabe aos Estados
partes o dever de promover a realização do direito dos povos a dispor de si mesmos e
respeitar esse direito em conformidade com a DUDH.328
A segunda parte versa sobre o princípio da não discriminação e da garantia dos
direitos assegurados no PIDESC; composta pelos artigos 2 a 5, essa parte enuncia que os
Estados partes se comprometem em agir, com o máximo de recursos disponíveis, para
assegurar o pleno exercício dos direitos enunciados no PIDESC, por todos os meios
apropriados329, e que os direitos devem ser exercidos sem discriminação alguma baseada
em “motivos de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou qualquer outra
opinião, origem nacional ou social, fortuna, nascimento, qualquer outra situação”.330 O

322
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p.107
323
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional Sobre Os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. Nova York, 1966. Preâmbulo.
324
Ibid., Preâmbulo.
325
Artigo 1.º - 1. Todos os povos têm o direito a dispor deles mesmos. Em virtude deste direito, eles
determinam livremente o seu estatuto político e asseguram livremente o seu desenvolvimento económico,
social e cultural. 2. Para atingir os seus fins, todos os povos podem dispor livremente das suas riquezas e
dos seus recursos naturais, sem prejuízo das obrigações que decorrem da cooperação económica
internacional, fundada sobre o princípio do interesse mútuo e do direito internacional. Em nenhum caso
poderá um povo ser privado dos seus meios de subsistência. 3. Os Estados Partes no presente Pacto,
incluindo aqueles que têm responsabilidade pela administração dos territórios não autónomos e territórios
sob tutela, devem promover a realização do direito dos povos a disporem deles mesmos e respeitar esse
direito, em conformidade com as disposições da Carta das Nações Unidas.
326
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional Sobre Os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. Nova York, 1966. Artigo 1º, §1º
327
Ibid., Artigo 1º, §2º
328
Ibid., Artigo 1º, §3º
329
Ibid., Artigo 2º, §1º
330
Ibid., Artigo 2º, §2º
97

Artigo 3º331 traz um destaque especial para a igualdade de gênero no gozo dos direitos
econômicos, sociais e culturais.332 Por sua vez, o artigo 5º revela, expressamente, que
nenhuma disposição do PIDESC deve restringir ou derrogar algum dos direitos
fundamentais reconhecidos ou em vigor, em qualquer nação, sobre o pretexto de que o
Pacto não o reconhece ou o reconhece em menor grau.333
A terceira parte, que compila os artigos 6 a 15, aborda alguns direitos que se
encontram relacionados à garantia da plena cidadania por parte dos indivíduos, como é o
caso dos artigos 6º e 7º, que reconhecem o direito de todas as pessoas ao trabalho, e a
garantia de que elas tenham a possibilidade de ganhar sua vida de forma livre.334 Quanto
aos Estados, eles tem o papel se salvaguardar esse direito, proporcionando orientação
técnica e profissional e elaborando políticas que garantam o gozo de tais liberdades
econômicas;335 dentro dessa área jurídica também se encontra o direito ao salário
equitativo, à condições de trabalho seguras e higiênicas, ao repouso, lazer, limitação
razoável das horas de trabalho e férias.336
O artigo 8º manifesta o comprometimento dos Estados-parte em assegurar o
direito de todas as pessoas à filiação em sindicato, com vistas a proteger seus interesses
econômicos e sociais, bem como os direitos inerentes aos próprios sindicatos, como o
direito de coalisão com outros sindicatos e a liberdade de exercer suas atividades, sem
limitações antidemocráticas.337 O artigo 9º trata do direito à segurança social, incluindo-
se os seguros sociais338, e se relaciona diretamente com o artigo 10º, que versa sobre a
proteção da família como núcleo elementar fundamental da sociedade;339 o artigo 11º que
trata sobre o comprometimento das nações com o reconhecimento do direito à um nível
de vida suficiente que inclua alimentação, vestuário e alojamento;340 o artigo 12º dispõe
sobre o direito de gozar o melhor estado de saúde física e mental possível, assegurando o
acesso à serviços médicos, controle de doenças epidêmicas e endêmicas, melhora na

331
Artigo 3.º - Os Estados Partes no presente Pacto comprometem-se a assegurar o direito igual que têm o
homem e a mulher ao gozo de todos os direitos econômicos, sociais e culturais enumerados no presente
Pacto.
332
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional Sobre Os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. Nova York, 1966. Artigo 3º
333
Ibid., Artigo 5º, §2º
334
Ibid., Artigo 6º, §1º
335
Ibid., Artigo 6º, §2º
336
Ibid., Artigo 7º
337
Ibid., Artigo 8º
338
Ibid., Artigo 9º
339
Ibid., Artigo 10º
340
Ibid., Artigo 11º
98

higiene do meio ambiente e da indústria e diminuição da mortalidade infantil;341 já o


artigo 15º argui acerca dos direitos à cultura e à participação no progresso científico.342
Posteriormente, os artigos 16 a 25, que compõem a quarta parte do PIDESC,
estabelecem o sistema de monitoramento das ações que os Estados se comprometem a
adotar, na medida de suas possibilidades, quando da ratificação do tratado. Tal
monitoramento é apresentado por meio de relatórios acerca das medidas que eles vêm
adotando, e sobre os progressos realizados com a finalidade de concretização dos diretos
reconhecidos no Pacto.343 Esses relatórios são direcionados ao Secretário Geral da ONU,
que replicará cópias ao Conselho Econômico e Social para que seja avaliada a
conformidade das medidas adotadas com as disposições previstas no tratado.344 Também
serão transmitidas cópias às agências especializadas das Nações Unidas, ou partes dos
relatórios, na medida em que haja relação com o objeto de atuação das agências.345
No que diz respeito à composição dos relatórios, eles são apresentados por
etapas, conforme leciona o artigo 17º do PIDESC, seguindo um programa estabelecido
pelo Conselho Econômico e Social, no prazo de um ano após a entrada em vigor do Pacto,
indicando os fatores e as dificuldades que os impedem a adequação dos membros às
obrigações estabelecidas no tratado.346 O artigo 19, por sua vez, estabelece que o
Conselho Econômico e Social tem o poder de encaminhar os relatórios concernentes aos
direitos humanos ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, com a finalidade de
informar, de realizar estudo ou enviar recomendações de ordem geral.347
Outrossim, conforme o artigo 20 do PIDESC, os Estados-parte e as agências
especializadas interessadas também podem encaminhar ao Conselho Econômico e Social
comentários sobre as recomendações de ordem geral previstas no Art. 19, sobre a
disciplina encaminhada ao Conselho de Direitos Humanos ou sobre qualquer documento
que seja mencionado em tais recomendações.348
O Conselho Econômico e Social, por sua vez, tem como atribuições apresentar,
de tempos em tempos, à Assembleia Geral relatórios dispondo sobre as recomendações

341
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional Sobre Os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. Nova York, 1966. Artigo 12º
342
Ibid., Artigo 15º, §1º
343
Ibid., Artigo 16º § 1º
344
Ibid., Artigo 16º § 2º, “a”
345
Ibid., Artigo 16º § 2º, “b”
346
Ibid., Artigo 17º
347
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p.106
348
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional Sobre Os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. Nova York, 1966. Artigo 20º
99

de caráter geral, e um resumo das informações transmitidas pelos Estados Partes e pelas
agências especializadas acerca dos avanços que vêm sendo realizados na observância de
se respeitar o PIDESC.349 Esse órgão também pode provocar outros órgãos das Nações
Unidas, de seus órgãos subsidiários ou das agências especializadas interessadas que se
dedicam a fornecer assistência técnica às questões suscitadas nos relatórios, a fim de que
os organismos sejam ajudados a se pronunciar sobre as oportunidades de medidas
internacionais capazes de colaborar com a execução efetiva e progressiva do PIDESC.350
A quinta parte do PIDESC versa sobre a assinatura e ratificação do tratado,
disciplinando que sua entrada em vigor se daria três meses após o depósito, junto ao
Secretário Geral das Nações Unidas, do trigésimo quinto instrumento de ratificação ou de
adesão ao PIDESC351, tendo ocorrido somente na data de 3 de janeiro de 1976.
Quando da análise do PIDESC, sua principal característica são as normas
programáticas de realização progressiva, que suscitam debates acerca da acionabilidade
desses direitos judicialmente, onde o entendimento da doutrina majoritária é de que a
ideia de não poder se acionar os direitos sociais é meramente ideológica, e, conforme
aduz Mazzuoli, trata-se de uma preconcepção fundada na equivocada comparabilidade
entre os direitos civis e políticos e os direitos sociais e econômicos, comparação essa que
é injustificável, tendo em vista que as cortes não decidem apenas sobre disputas privadas,
e cabe a elas também a criação de políticas sociais na interpretação da Constituição, de
legislações de direito econômico, trabalhista, entre outras. Portanto, conclui-se pela plena
possibilidade de acionar as cortes jurisdicionais, com fundamento em normas de cunho
social em sentido amplo.352
Quanto à adoção pela República Federativa do Brasil ao Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, ela se deu 24 de janeiro de 1992, foi
promulgado em 24 de abril de 1992, na forma de seu artigo 27, parágrafo 2, e entrou em
vigor em 6 de julho do mesmo ano, por meio do Decreto nº 591/1992. Resta salientar que
o Protocolo Facultativo não foi promulgado pelo Brasil.
No mais, para a abordagem do presente estudo acerca da normatização da
sexualidade e identidade de gênero, a análise do Pacto Internacional sobre Direitos

349
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional Sobre Os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. Nova York, 1966. Artigo 21º
350
Ibid., Artigo 22º
351
Ibid., Artigo 27º, §1º
352
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p.105
100

Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 traz uma enorme evolução na carga valorativa
dos direitos de cidadania, pois aprofunda os ditames da Declaração Universal de Direitos
Humanos, estabelecendo parâmetros mínimos de adoção de políticas públicas e
vinculando os Estados-parte como sujeitos de ação nesse contexto. É certo que não há
nenhuma disposição especificamente direcionada à população LGBTQIAP+, mas pode-
se destacar o art. 2º, §2º, onde o Pacto orienta a forma de atuação dos Estados e aplicação
das políticas públicas propostas, pautadas na não discriminação de nenhum ser humano,
“independentemente de qualquer situação” a qual, a partir de uma interpretação hodierna,
há de se entender a abrangência das Minorias sexuais.
Conclui-se que, da época de promulgação do PIDESC, ele já trazia uma carga
valorativa sobre a igualdade de gênero, como se pode depreender no seu Artigo 3º, e que
nenhuma de suas disposições tem a força de revogar outros direitos fundamentais
reconhecidos, portanto, entende-se que as garantias fundamentais que envolvem proteção
de minorias contra discriminação só detêm o caráter somatório entre si, e nunca
derrogatório. É importante ressaltar, da análise do PIDESC, a importância que as
obrigações pactuadas pelos Estados-parte detêm para corrigir questões que envolvem a
plena cidadania, a qual o tratado direciona a todos os seres humanos, mas que apresentam
um peso maior ainda para as pessoas que compõem a comunidade LGBTQIAP+. É o caso
do acesso ao trabalho e o direito a possibilidade de ganhar sua vida de forma livre, direito
à educação, à saúde e à segurança social, que consistem em direitos de suma importância
para a comunidade LGBTQIAP+.

3.4.5 Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986

Outra discussão relevante para a temática da cidadania LGBTQIAP+ consiste na


conceituação de direito ao desenvolvimento, que se assentou internacionalmente por meio
da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986. O objetivo dessa declaração,
de acordo com as considerações iniciais redigidas pela Assembleia Geral das Nações
Unidas, consiste na realização da cooperação internacional, na resolução dos problemas
internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e na promoção dos
direitos humanos e as liberdades fundamentais, que devem ser direcionadas a todos, sem
101

distinção de raça, sexo, língua ou religião, opinião política, origem nacional ou social,
fortuna, nascimento ou qualquer outra situação.353
Ademais, o órgão reconhece o desenvolvimento como um processo econômico,
social, cultural e político abrangente, que tem como objetivo a melhoria constante do
bem-estar de todos os indivíduos, fundamentada na participação ativa, livre e significativa
no processo de desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios dele derivados.354
No mais, demonstra preocupação com a eliminação das violações em massa e flagrantes
dos direitos humanos dos povos e indivíduos afetados por situações de racismo e
discriminação racial, e a existência de obstáculos ao desenvolvimento consubstanciados
a negação de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais - salientando que
todos os direitos humanos são indivisíveis e independentes e que, quando da promoção
do desenvolvimento, deverão ser prestadas com igual atenção e urgência na realização.355
Outrossim, reconhece que a pessoa humana é o sujeito principal do
desenvolvimento, que as políticas de desenvolvimento devem ser centradas no ser
humano como principal ator e beneficiário do desenvolvimento, e que a criação de
condições favoráveis à tais pretensões é uma responsabilidade do Estado. Em seu último
considerando, assevera que o desenvolvimento é inalienável e que uma das prerrogativas
das nações e dos indivíduos é a igualdade de oportunidades.356
Nesse sentido, o primeiro artigo da Declaração de 1986357 versa acerca da
inalienabilidade do direito ao desenvolvimento, devendo ser estendido à todas as pessoas
e todos os povos para que dele possam participar, contribuir e desfrutar, a fim de que
todos os direitos e liberdades fundamentais possam ser realizados. Nesse sentido, o direito
ao desenvolvimento também pressupõe a autodeterminação dos povos e o exercício do
seu direito inalienável de soberania sobre suas riquezas e recursos naturais.358
No que se refere aos sujeitos, o artigo 2º da Declaração centraliza a pessoa
humana como principal sujeito do desenvolvimento, que deve ser beneficiado e participar
ativamente dele, e como sujeito que dispõe de responsabilidades no desenvolvimento
individual e coletivo; ao Estado cabe a formulação de políticas de desenvolvimento que

353
ASSEMBLEIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Adotada pela Resolução nº
41/128. Declaração Sobre O Direito Ao Desenvolvimento. Nova York, 1986. Considerações Iniciais
354
Ibid., Considerações Iniciais
355
Ibid., Considerações Iniciais
356
Ibid., Considerações Iniciais
357
Ibid., Artigo 1º
358
Ibid., Artigo 1º
102

videm modificar o bem-estar da população, fundamentada na sua participação ativa, livre


e significativa, e na distribuição dos benefícios dele derivados.359
Nesse diapasão, o artigo 3º versa expressamente sobre como será a
responsabilidade dos Estados, que também devem obedecer aos princípios do direito
internacional e a cooperação interestatal para assegurar o desenvolvimento e eliminar os
obstáculos à realização do direito ao desenvolvimento.360 Por meio do artigo 4º, a
Declaração exprime que os Estados devem adotar medidas que incentivem a formulação
de políticas internacionais de desenvolvimento, e a necessidade de ações permanentes
para promover o progresso dos países em tidos como “em desenvolvimento”.361
Como complemento à proatividade dos esforços dessas nações, o artigo 6º, I,
expressa a necessidade de cooperação internacional efetiva, objetivando a promoção, o
fomento e o reforço do respeito e da observância universais de todos os direitos humanos
e liberdades fundamentais, destinado à todas as pessoas, sem qualquer distinção quanto à
raça, ao sexo, à língua ou à religião.362 Também esclarece que os direitos humanos são
indivisíveis e interdependentes, aos quais deve ser prestada igual atenção e igual
realização, e que é dever dos Estados atuar na eliminação dos obstáculos ao
desenvolvimento que decorram de inobservância dos direitos civis e políticos ou dos
direitos económicos, sociais e culturais.363
O artigo 8º relaciona o direito ao desenvolvimento ao princípio da igualdade e
não discriminação, afirmando que os Estados devem pôr em prática a igualdade de
oportunidades para todos, no acesso aos recursos básicos e serviços educacionais, de
saúde, de alimentação, de habitação e de emprego, garantindo a participação ativa das
mulheres no processo de desenvolvimento, e que sejam adotadas medidas sociais a fim
de erradicar todas as injustiças sociais.364 Também é obrigação dos estados encorajar a
participação popular em todas as áreas que sejam importantes para a realização de todos
os direitos humanos.365 Por fim, a Declaração expressa que devem ser adotadas
providências a fim de garantir o “pleno exercício” e o “progressivo reforço” do Direito

359
ASSEMBLEIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Adotada pela Resolução nº
41/128. Declaração Sobre O Direito Ao Desenvolvimento. Nova York, 1986. Artigo 2º
360
Ibid., Artigo 3º
361
Ibid., Artigo 4º
362
Ibid., Artigo 6º, inciso I
363
Ibid., Artigo 6º, II e III
364
Ibid., Artigo 8º, I
365
Ibid., Artigo 8º, II
103

ao Desenvolvimento, por meio de medidas políticas legislativas e de outras naturezas, em


âmbito nacional e internacional.366

3.4.6 Conferência internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD) de 1994

Visando discutir o tema da igualdade e a equidade de gênero frente as inúmeras


disparidades sofridas pelas mulheres, a universalização da saúde reprodutiva, a
elaboração de metas afirmação de compromissos, foi organizada pelo Fundo de
População das Nações Unidas e pela Divisão de população do Departamento de
Informação Econômica e Social e Análises Políticas da ONU a Conferência internacional
sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada na cidade do Cairo, Egito, em
setembro de 1994.367
O principal objetivo desse encontro era discutir o papel das mulheres na
sociedade, direitos reprodutivos, e defender um direito a sexualidade como forma de
prazer, e não só de procriação, que abrange a questão das minorias discriminadas em
razão de sua orientação sexual, com fundamento na Declaração sobre a Eliminação de
todas as formas de Intolerância e Discriminação fundadas na Religião ou nas Convicções,
assinada pelos membros da ONU do ano de 1981. No entanto, a bancada fundamentalista
religiosa reagiu, discordando da ideia de prazer sexual, de sexualidade heterodiscordante
e até mesmo da educação sexual. Como expoente nas discussões, ao final das discussões
na CIPD, o Estado do Vaticano, afirmando sua soberania nacional, fez suas reservas
acerca daquilo que ficou acordado, afirmando que, "com referência aos termos 'casais e
indivíduos', a Santa Sé mantém sua posição, de que esses termos significam casais unidos
pelo matrimônio de homens e mulheres, enquanto indivíduos, que constituem o casal".368
Destarte, como resultado da conferência foi elaborado um plano de Ação,
objetivando que os 179 Estados signatários cumpram com as seguintes recomendações:
respeitar a orientação sexual e identidade de gênero de todos os indivíduos; respeitar a
autodeterminação do controle da própria fertilidade, incluindo opção de casar ou ter filhos
e proteção contra esterilização forçada; prevenir os casamentos precoces ou forçados e

366
ASSEMBLEIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Adotada pela Resolução nº
41/128. Declaração Sobre O Direito Ao Desenvolvimento. Nova York, 1986. Artigo 10º
367
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório da Conferência Internacional sobre
População e Desenvolvimento. 1994. Cairo, 5-13 de set.
368
Ibid.,
104

incluir adolescentes no planejamento e implantação de serviços e programas; realizar o


financiamento integral a nível nacional e global para assegurar o acesso de todos aos
cuidados básicos de saúde, incluindo a sexual e reprodutiva acesso universal à educação;
proteger o reconhecimento político da relação entre saúde sexual e reprodutiva,
desenvolvimento e ambiente.369
Outrossim, destaca-se o caráter de soft law das discussões travadas sobre os
temas abordados pela conferência, que tratam apenas de compromissos não vinculantes,
que não exigem adoção imediata e rápida adequação legislativa. Nesses termos, a maior
crítica que pode se traçar acerca dos compromissos discutidos na conferência do Cairo,
consiste na falha em não reafirmar que os direitos humanos têm preferência sobre
conflitos de tradição cultural e religiosa.
No mais, em 1999 foi realizado pela ONU um levantamento dos cinco primeiros
anos após a conferência do Cairo, o qual demonstrou que os objetivos ainda continuavam
válidos, e que grandes avanços foram alcançados. Esse balanço também identificou que
a morbidade e a mortalidade maternas, assim como as pautas de saúde reprodutiva e
prevenção de infecções sexualmente transmitidas ainda eram pautas urgentes.370 No ano
de 2004 também foi realizado outro levantamento, que indicou esforços da grande maioria
dos países em implementar princípios do direito ao desenvolvimento, em especial os
direitos reprodutivos das mulheres, tendo muitos deles aplicado os princípios em seus
ordenamentos jurídicos internos.371
Importante destacar, nesse contexto, a participação do Brasil na Conferência
internacional sobre População e Desenvolvimento, com atuação preparatória, anterior à
conferência, participação durante a conferência e após a conferência. Conforme destaca
Tania Patriota, durante a fase preparatória o Ministério das Relações Exteriores criou um
comitê nacional com objetivo de organizar um processo democrático de consulta
nacional, fomentando eventos como o “Encontro Nacional Mulher e População: nossos
direitos para o Cairo 94”, que resultaram na “Carta de Brasília”, instrumento que
reforçava princípios básicos de proteção a mulher como sua saúde integral e os direitos

369
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório da Conferência Internacional sobre
População e Desenvolvimento. 1994. Cairo, 5-13 de set.
370
UNFPA BRAZIL (org.). Relatório da Conferência Internacional sobre População e
Desenvolvimento: plataforma do cairo. plataforma do cairo. 2007. Apresentação: Tania Patriota.
Disponível em: https://brazil.unfpa.org/pt-br/publications/relat%C3%B3rio-da-confer%C3%AAncia-
internacional-sobre-popula%C3%A7%C3%A3o-e-desenvolvimento-confer%C3%AAncia-do. Acesso em:
29 abr. 2023. p. 35
371
Ibid., p. 36
105

sexuais e reprodutivos.372 Ademais, no ano de 1995 foi criada no Brasil a “Comissão


Nacional de População e Desenvolvimento (CNPD)”, com objetivo de acompanhar a
implementação das políticas discutidas no Cairo.373

3.5 TUTELA ESPECÍFICA DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS LGBTQIAP+

Conforme mencionado anteriormente, os direitos das pessoas de exercerem


livremente sua identidade de gênero e sua orientação sexual enquadram-se como um dos
grandes desafios modernos dos direitos humanos. Hodiernamente, apesar da dificuldade
de se dimensionar a quantidade de pessoas afetadas pelo preconceito e pela discriminação
em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero, alguns dados provenientes de
organizações não governamentais nos auxiliam a dimensionar a importância dessa
discussão. Conforme apuração realizada pela International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans
and Intersex Association (ILGA), em levantamento divulgado no mês de dezembro de
2020374, naquele ano 70 nações ainda possuíam leis que criminalizavam atos sexuais entre
pessoas adultas do mesmo sexo, com destaque para 11 nações onde a pena seria de morte;
27 nações onde a pena prevista é acima de 10 anos de reclusão, ou até mesmo prisão
perpétua; 30 nações onde a pena é de até 8 anos de prisão, e 2 nações onde há apenas a
previsão de criminalização de fato.375 No mais, alguns meses após a divulgação dos
dados, no mês de fevereiro de 2021, o presidente de Angola sancionou uma revisão do
código penal com vista de remover a criminalização da homossexualidade no país,
totalizando, de forma atualizada, 69 que possuem normas que criminalizam a
homossexualidade.
Destaca-se que a primeira manifestação do sistema universal de proteção aos
direitos humanos, de forma expressa à comunidade LGBTQIAP+, intermediada pela
ONU, ocorre durante a defesa em um julgamento de um caso concreto de

372
UNFPA BRAZIL (org.). Relatório da Conferência Internacional sobre População e
Desenvolvimento: plataforma do cairo. plataforma do cairo. 2007. Apresentação: Tania Patriota.
Disponível em: https://brazil.unfpa.org/pt-br/publications/relat%C3%B3rio-da-confer%C3%AAncia-
internacional-sobre-popula%C3%A7%C3%A3o-e-desenvolvimento-confer%C3%AAncia-do. Acesso em:
29 abr. 2023. p. 36
373
Ibid., p. 36
374
ILGA World: Lucas Ramon Mendos, Kellyn Botha, Rafael Carrano Lelis, Enrique López de la Peña,
Ilia Savelev and Daron Tan, State-Sponsored Homophobia 2020: Global Legislation Overview Update
(Geneva: ILGA, Dezembro de 2020).
375
Ibid.,
106

homossexualidade ocorrido na Austrália, no ano de 1994376, quatro anos após a


Organização Mundial da Saúde – OMS retirar a homossexualidade da Classificação
Internacional de Doenças do ano de (CID), onde persistia desde o ano de 1977 com status
de doença mental.
Para tanto, é importante pontuar que a Agenda Internacional que se preocupa com
os direitos das pessoas LGBTQIAP+ somente se amplia a partir das duas últimas décadas,
com destaque para a atuação do Brasil e da África do Sul, no ano de 2003, quando as duas
nações apresentaram a Resolução “Direitos Humanos, orientação sexual e identidade de
gênero” na ONU e, apesar de aprovada pelo Conselho de Direitos Humanos dessa
entidade em 14 de junho de 2003, fora retirada em 2005 por pressão de países islâmicos,
dos EUA e do Vaticano.
Importante destacar que a construção normativa que traz como resultado normas
específicas de proteção às minorias SOGIESC se iniciam a partir dos instrumentos do
sistema universal de proteção aos direitos humanos já abordados no tópico anterior, e
foram se aprofundando e se interrelacionando a outras demandas de reconhecimento, a
partir de encontros entre autoridades de diversas nações, que promovem a troca de
experiências e vivências diversas - dentro de um contexto de se discutir uma maior
proteção contra discriminação e violência em razão de identidade de gênero e
sexualidade-, e se consubstanciam em documentos específicos que objetivam estabelecer
obrigações concretas a serem respeitadas pelos Estados nacionais, buscando-se conferir
maior dignidade aos seus cidadãos.
Destacam-se, nesse contexto, os Princípios de Yogyakarta, elaborados no ano de
2006, seguido pela Resolução nº 17/19 proveniente do 17º Período de sessões do no
Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU, em junho de 2011, e, mais recentemente,
a atualização dos Princípios de Yogyakarta, no ano de 2010, conhecido como “Princípios
de Yogyakarta +10” que serão abordados neste tópico.

3.5.1 Princípios de Yogyakarta de 2006

Entre os dias 6 e 9 de novembro de 2006, na Universidade de Gadjah Mada, na


cidade de Yogyakarta, Indonésia, foram reunidos 29 especialistas, representantes de 25
nações, com objetivo de discutir a aplicação do Direito Internacional dos Direitos

376
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. 1040 p. p
.169
107

Humanos quanto às questões que permeiam a cidadania, a dignidade e o respeito de todas


as pessoas, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.
O conteúdo dos princípios de Yogyakarta consiste no produto do esforço da
Comissão Internacional de Juristas e do Serviço Internacional de Direitos Humanos,
agindo por designação de uma coalizão de organizações de direitos humanos, com a
finalidade de estruturar um projeto que tinha como objetivo desenvolver um conjunto de
princípios jurídicos internacionais para direcionar a aplicação da legislação internacional,
de forma mais específica, contra as violações de direitos humanos fundamentadas em
orientação sexual e identidade de gênero.377
As reuniões para discussão e estabelecimento dos princípios consolidavam o
entendimento de que é necessário sinalizar para os Estados as maneiras como se devem
ser aplicadas as normas internacionais de direitos humanos para proteção da comunidade
LGBTQIAP+, a partir da ótica de vários especialistas em direitos humanos de distintas
localidades e formações, com relatoria de Michael O´Flaherty, que figurava como
membro do Comitê de Direitos Humanos da ONU, e orientadas pelos princípios da
dignidade da pessoa humana e da não discriminação.378
Suas discussões partem da ideia de que todos os seres humanos estão protegidos
pelos instrumentos de direito internacional, porém, existem determinados grupos sociais
que se encontram em maior posição de vulnerabilidade. Ademais, levam em consideração
que as violações de direitos humanos direcionadas às pessoas LGBTQIAP+ constituem
um padrão global consolidado, que causam sérias preocupações e suscitam que os Estados
se comprometam com princípios e obrigações que possibilitem os indivíduos dispor de
sua cidadania de forma livre e igualitária, independente de sua orientação sexual e
identidade de gênero.379
Outra preocupação que motiva a reunião em Yogyakarta consiste em oferecer
uma resposta direta às mais variadas manifestações do preconceito e da discriminação, e
exemplo das agressões físicas, maus tratos, invasão de privacidade, detenção arbitrária,
negação de oportunidades de emprego e educação, que muitas vezes estão agravadas por

377
PAINEL INTERNACIONAL DE ESPECIALISTAS EM LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS, ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO. Princípios de
Yogyakarta. 2006. Yogyakarta, Indonésia. Introdução aos Princípios de Yogyakarta.
378
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Método, 2019. 595
p. p. 373 a 375
379
PAINEL INTERNACIONAL DE ESPECIALISTAS EM LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS, ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO. Princípios de
Yogyakarta. 2006. Yogyakarta, Indonésia. Introdução aos Princípios de Yogyakarta.
108

outras formas de violência e exclusão em razão de raça, idade, religião, deficiência, status
econômico social, entre outros.380 Leva-se em consideração que muitos Estados e
sociedades corroboram com esses tipos de violência, impondo normas de gênero e de
orientação sexual por meio de costumes e legislações, e que a violência não combatida
também consiste em uma forma de controle sobre os corpos dessas pessoas.381
Logo, foram enunciados vinte e nove princípios, que codificam elementos legais
que se encontravam em desenvolvimento na época, e solidificaram as conquistas que já
vinham sendo respeitadas. Cada um desses princípios consiste em uma obrigação de
respeito, que afirmam normas jurídicas internacionais vinculantes, direcionadas a todos
os Estados nacionais e as organizações internacionais, a quem devem efetivá-los.382 É
relevante destacar que o texto de cada um dos princípios de Yogyakarta é estruturado de
um enunciado, onde se desenvolve a ideia geral do princípio, acompanhado de
recomendações detalhadas, que estão enumeradas por meio de letras, e que explicam de
que forma os Estados se obrigam a cumprir o enunciado do princípio. Portanto, a seguir
serão explicados os conteúdos de cada um dos princípios, e suas principais
recomendações, tendo em vista que muitas dessas recomendações se aplicam a mais de
um princípio.
Ressalta-se também a importância desse documento para a construção de uma
cidadania LGBTQIAP+ a partir do liame objetivo que ele cria entre os princípios
universais de direitos humanos, internacionalmente consolidados e respeitados por
Estados de diferentes partes do globo, que devem ser aplicados à diferentes culturas
advindas de características geográficas diferentes, mas que compartilham do mesmo
desafio que é o combate à violência e a discriminação em razão de identidade de gênero,
orientação sexual, expressão de gênero e sexualidade. Durante toda a leitura dos
princípios de Yogyakarta, será possível depreender a proteção de diversas faces da
cidadania de um indivíduo, que estão diretamente afetadas pelas questões de identidade
de gênero e sexualidade.
Portanto, o conteúdo dos vinte e nove princípios se inicia pela necessidade de
respeito ao gozo universal dos direitos humanos (princípio 1), que significa respeitar a

380
PAINEL INTERNACIONAL DE ESPECIALISTAS EM LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS, ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO. Princípios de
Yogyakarta. 2006. Yogyakarta, Indonésia. Introdução aos Princípios de Yogyakarta.
381
Ibid., Introdução aos Princípios de Yogyakarta.
382
MAURÍCIO, Álvaro Filipe da Silva. A atuação dos sistemas de proteção de direitos humanos na
defesa da comunidade LGBT. 2018. 136 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Universidade de
Lisboa, Lisboa, 2018. p. 51
109

liberdade e igualdade de direitos a todos os seres humanos de todas as orientações sexuais


e identidades de gênero.383 Como diretrizes de observância ao princípio 1, os Estados
devem incorporar, em suas constituições nacionais, os princípios inerentes aos Direitos
Humanos (universalidade, inter-relacionalidade, interdependência e indivisibilidade),
assim como adaptar quaisquer legislações à observância de tais direitos e implementar
programas de conscientização e educação para promover e aprimorar o gozo pleno de
todas as garantias expressas pelos Direitos Humanos e de forma a integrar às políticas de
Estado uma abordagem pluralista.384
O Princípio 2, por sua vez, aborda o direito à igualdade e a não discriminação,
anunciando que a discriminação com base em orientação sexual e identidade de gênero
compreende qualquer tipo de distinção, exclusão, restrição ou preferência fundamentadas
em critérios de orientação sexual ou identidade de gênero, que tenham como objetivo ou
efeito a anulação ou o prejuízo da igualdade perante a lei, a proteção igual da lei, ou o
reconhecimento, gozo ou exercício, de forma igualitária, de todos os direitos humanos e
das liberdades fundamentais.385 Ademais, esse tipo de discriminação pode ser agravado
em razão de outras circunstâncias, como o gênero, raça idade, religião, necessidades
especiais, situação de saúde e status econômicos do indivíduo.386
Para tanto, devem os Estados incorporar os princípios da igualdade e não
discriminação, com menção específica à orientação sexual e identidade de gênero, nas
suas constituições nacionais387; devem também revogar os dispositivos criminais que
proíbam atividade sexual consensual entre pessoas do mesmo sexo e que já atingiram
idade do consentimento, assim como que seja aplicada a mesma idade do consentimento
à atividade sexual entre pessoas do mesmo sexo e de sexos diferentes, sem distinções388;
implementar todos os tipos de ações possíveis com a finalidade de eliminar atitudes ou
comportamentos preconceituosos ou discriminatórios, que denotem alguma hierarquia de
superioridade e inferioridade de qualquer orientação sexual, identidade de gênero ou
expressão de gênero.389

383
PAINEL INTERNACIONAL DE ESPECIALISTAS EM LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS, ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO. Princípios de
Yogyakarta. 2006. Yogyakarta, Indonésia. Princípio nº 1
384
Ibid., Princípio nº 1, recomendações “a”, “b”, “c” e “d”.
385
Ibid., Princípio nº 2, caput
386
Ibid., Princípio nº 2, caput
387
Ibid., Princípio nº 2, recomendação “a”
388
Ibid., Princípio nº 2, recomendação “b”
389
Ibid., Princípio nº 2, recomendação “f”
110

Seguidamente, no caput do 3º princípio está previsto que todos os indivíduos


detêm o direito ao reconhecimento perante a lei, devendo gozar de capacidade jurídica
em todos os aspectos da vida, independentemente de sua orientação sexual e identidade
de gênero, pois tais características compõem parte essencial de sua personalidade e um
dos aspectos fundamentais de sua autodeterminação, dignidade e liberdade.390
As recomendações explicitadas na leitura do princípio 3 se coadunam
conjuntamente com a análise do princípio 6 (que versa sobre direito à personalidade),
concluindo que a expressão da identidade de gênero também se caracteriza pelo modo de
vestir, de falar ou maneirismo, e que nenhuma pessoa deverá ser forçada, contra sua
vontade, a se sujeitar a procedimentos médicos (cirurgia de mudança de sexo,
esterilização ou terapia hormonal) como requisito para o reconhecimento legal de sua
identidade de gênero, bem como nenhuma forma de filiação (como o casamento ou status
parental) pode ser elucidada com objetivo de evitar o reconhecimento legal da identidade
de gênero de uma pessoa. Também incorre em afronta à privacidade dos sujeitos a
negativa estatal de oportunizar aos indivíduos a modificação de seus corpos, como um
meio de expressar sua identidade de gênero.391
Outrossim, o reconhecimento perante a lei também impõe que os Estados
garantam a capacidade jurídica sem discriminação, bem como a oportunidade de exercer
esta capacidade, inclusive direitos iguais para celebrar contratos, administrar, ter a posse,
adquirir (inclusive por meio de herança), gerenciar, desfrutar e dispor de propriedade.
Nesse sentido, os Estados devem garantir aos indivíduos o reconhecimento das mudanças
em documentos de identidade em todas as situações que a identificação seja exigida por
lei ou por políticas públicas.392
Por meio do princípio 4 é possível perceber a preocupação dos especialistas com
a situação de diversas pessoas LGBTQIAP+ espalhadas pelo globo, em especial na
privação do direito fundamental à vida, conforme visto anteriormente no capítulo
dedicado à exposição de dados estatísticos sobre mortes violentas. Nesse sentido,
destacam-se como recomendações propostas pelo princípio 4 a revogação de todos os
crimes que proíbam a atividade sexual consensual entre pessoas do mesmo sexo que já
atingiram idade do consentimento, assim como a extinção da pena de morte para esses

390
PAINEL INTERNACIONAL DE ESPECIALISTAS EM LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS, ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO. Princípios de
Yogyakarta. 2006. Yogyakarta, Indonésia. Princípio nº 3
391
Ibid., Leitura conjunta dos princípios nº 3 e nº 6
392
Ibid., Princípio nº 3
111

casos393, bem como cessar as atividades estatais, ou toleradas pelos Estados, ou que sejam
praticadas pelos seus agentes e que afetem a vida e a segurança pessoal dos cidadãos e
que tenha como motivação sua orientação sexual ou identidade de gênero.394
Da mesma forma, o princípio 5 versa sobre o direito à segurança pessoal, e
aborda a necessária proteção de todas as pessoas contra danos corporais, sejam eles
deflagrados por autoridades estatais ou por outros indivíduos.395 Cabe ao Estado proteger
a todos, tanto de forma preventiva quanto de forma repressiva, contra quaisquer tipos de
violência e assédio que tenham relação com sua identidade de gênero ou orientação
sexual;396 também é de responsabilidade do Estado a investigação e a punição adequada
a quem cometer tais violações, bem como a realização de campanhas de conscientização
direcionadas ao público em geral397 e a adoção de medidas legislativas e administrativas
para garantir que nenhum tipo de violência possa ser justificada, desculpada ou atenuada
sob o argumento da identidade de gênero ou orientação sexual da vítima.398
Na sequência, o princípio de número 7 dispõe sobre o direito de não sofrer
privação arbitrária da liberdade, baseada na identidade de gênero ou orientação sexual,
sejam elas oriundas ou não da autoridade judicial, de forma que todos os indivíduos que
forem presos, dispõem do direito de ser informados da razão de sua prisão. Nesses termos,
cabe aos Estados garantir que nenhuma prisão seja justificada pela orientação sexual ou
identidade de gênero e qualquer pessoa, cabendo também disciplinar essa matéria em
âmbito administrativo, capacitar os agentes de segurança e os funcionários encarregados
de aplicar a lei para evitar esse tipo de violação. O direito de não sofrer privação arbitrária
da liberdade também deve ser implementado pelos Estados por meio de um sistema de
registros de todas as detenções e prisões realizadas, onde devem ser incluídos os dados
detalhados da prisão ou detenção (indicando a data, local e motivo da detenção), assim
como propiciar a supervisão independente de todos os locais de detenção, a fim de se
identificar possíveis arbitrariedades decorrentes de discriminação.399

393
PAINEL INTERNACIONAL DE ESPECIALISTAS EM LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS, ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO. Princípios de
Yogyakarta. 2006. Yogyakarta, Indonésia. Princípios de Yogyakarta. 2006. Yogyakarta, Indonésia.
Princípio nº 4, recomendações “a” e “b”
394
Ibid., Princípio nº 4, recomendação “c”
395
Ibid., Princípio nº 5, caput
396
Ibid., Princípio nº 5, recomendações “a” e “b”
397
Ibid., Princípio nº 5, recomendações “b”, “d” e “e”
398
Ibid., Princípio nº 5, recomendação “c”
399
Ibid., Princípio nº 7
112

Sobre as pessoas em situação de investigação, julgamento e detenção, os


princípios de Yogyakarta incluem o direito ao julgamento justo (princípio 8), que prevê
a eliminação do tratamento preconceituoso em todas as etapas dos processos judiciais e
administrativos, bem como da atuação como parte interessada, testemunha, defensora ou
tomadora de decisões, asseverando que a orientação sexual e a identidade de gênero não
devem ser fatores determinantes para impugnar as alegações ou descredibilizar os relatos
de uma pessoa. Como recomendação, os Estados devem informar, por meio de programas
de treinamento e de conscientização, os membros do judiciário (juízes, promotores,
defensores, advogados servidores dos tribunais etc.) acerca dos padrões internacionais de
Direitos Humanos e princípios de igualdade e não-discriminação.400
O princípio 9 complementa tal entendimento, asseverando sobre o tratamento
humano durante a detenção, que inclui a não exposição dessas pessoas à marginalização
dentro dos estabelecimentos carcerários, que possa incorrer em violência, bem como a
necessidade do Estado fornecer acesso adequado à serviços de saúde, à informação e
terapia de HIV/Aids, à terapia hormonal, à tratamentos de redesignação de sexo/gênero
ou outros tipos de terapias, bem como o acesso à visitas conjugais levando-se em
consideração o princípio da igualdade das relações homoafetivas ou heteroafetivas.401
O 10º princípio discorre sobre a responsabilidade dos Estados frente ao direito
de não sofrer tortura e tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante, e especial
motivado por discriminação de caráter sexual ou identitário, devendo ser oferecido às
vítimas todo o suporte necessário, que inclui recursos jurídicos, medidas corretivas e
reparações e, quando for apropriado, apoio médico e psicológico.402 O Princípio 11 versa
sobre o direito à proteção contra todas as formas de exploração, venda e tráfico de seres
humanos, levando em consideração que as desigualdades e discriminações em razão de
orientação sexual e identidade de gênero podem ser fatores que aumentam o tráfico de
pessoas. Portanto, o combate a tais problemas auxilia na prevenção e no enfrentamento
desse tipo de violação dos Direitos Humanos.403
Os Princípios 12 e 13 explanam sobre medidas que devem ser tomadas para
eliminar todo tipo de discriminação a fim de garantir o emprego digno e produtivo,

400
PAINEL INTERNACIONAL DE ESPECIALISTAS EM LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS, ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO. Princípios de
Yogyakarta. 2006. Yogyakarta, Indonésia. Princípios de Yogyakarta. 2006. Yogyakarta, Indonésia.
Princípio nº 8
401
Ibid., Princípio nº 9
402
Ibid., Princípio nº 10
403
Ibid., Princípio nº 11
113

condições de trabalho justas, o direito à seguridade social e a outras medidas de proteção


social, e assegurar oportunidades de emprego e desenvolvimento igualitárias em todas as
áreas do serviço público, em todos os níveis de serviço governamental, incluindo polícia
e forças militares, de forma a fornecer treinamento e programas de conscientização para
o combate à discriminação.404 Ocupa-se também em assegurar a igualdade de tratamento
das pessoas LGBTQIAP+ no recebimento de benefícios referentes à emprego, licença-
parental, benefícios de desemprego, seguro-saúde ou atendimento e benefícios, incluindo
aqueles referentes à modificações corporais relacionadas à identidade de gênero, ou
quaisquer outros seguros sociais, pensões e benefícios referentes à perda do apoio de
cônjuges ou parceiros, resultante de doença ou morte, bem como ajuda funerária.405
De outro lado, os Princípios 14 a 18 se relacionam com as condições de ambiente
e serviços que os Estados devem assegurar aos cidadãos, respeitando sua orientação
sexual e identidade de gênero, afirmando que toda pessoa tem direito a um padrão de vida
adequado (que inclui água potável, alimentação correta, saneamento e vestimentas)406,
bem como habitação adequada (inclui direito a acomodação e habitação com baixo custo
e segura, bem como abrigos e acomodações emergenciais)407;
Abordam também o direito à educação que respeite a personalidade de cada
estudante, atendendo a todas as suas necessidades e livre de preconceitos - incluindo o
respeito à identidade cultural, língua e valores, num espírito de entendimento, tolerância,
paz e igualdade, de forma a garantir que os métodos educacionais, currículos e recursos
melhorem a compreensão a partir da diversidade sexual-, assegurando que hajam normas
protetivas aos estudantes e funcionários dos estabelecimentos educacionais contra todos
os tipos de violência e exclusão social408; pontua-se também sobre a atuação do Estado
frente ao direito à saúde física e mental, devendo este promover o acesso a todos os bens,
serviços e instalações de saúde, incluindo-se o histórico médico e questões de saúde
sexual e reprodutiva, devendo facilitar o acesso das pessoas às modificações corporais,
tratamento e apoio relacionadas à redesignação de sexo/gênero, sem quaisquer tipos de
discriminações, assim como proteger as pessoas LGBTQIAP+ contra abusos médicos.409

404
PAINEL INTERNACIONAL DE ESPECIALISTAS EM LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS, ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO. Princípios de
Yogyakarta. 2006. Yogyakarta, Indonésia. Princípios de Yogyakarta. 2006. Yogyakarta, Indonésia.
Princípio nº 12
405
Ibid., Princípio nº 13
406
Ibid., Princípio nº 14
407
Ibid., Princípio nº 15
408
Ibid., Princípio nº 16
409
Ibid., Princípios nº 17 e nº 18
114

Ademais, as obrigações estatais inerentes aos direitos de liberdade estão


compreendidas nos princípios 19 a 23, abarcando os direitos à liberdade de opinião e
expressão, liberdade de reunião e associação pacíficas, liberdade de pensamento,
consciência e religião, e à liberdade de ir e vir e de buscar asilo. Ressalta-se que a
liberdade de opinião e expressão alcança a autonomia pessoal por meio da fala,
vestimenta, comportamento, características corporais, escolha de nome ou qualquer outro
meio, e depreende a independência para buscar, receber e transmitir informação e ideias
de todos os tipos, de publicar materiais, propagar informações por meio de rádio e
televisão, ou organizando conferências que visem disseminar informações sobre ideias
relacionadas aos direitos humanos, sem que sejam empregadas noções de ordem pública,
moralidade pública, saúde pública e segurança pública com a finalidade de constranger
ou restringir qualquer expressão de opinião e expressão, de forma discriminatória.410
O princípio 20 aborda a obrigação dos Estados de, sob nenhuma circunstância,
impedir o exercício do direito à liberdade de reunião e associação pacíficas, relacionados
aos temas de orientação sexual e identidade de gênero, e que haja o reconhecimento legal
das associações e grupos que versem sobre as minorias SOGIESC;411 deve ser assegurado
também, conforme leciona o princípio 21, o respeito à liberdade de pensamento,
consciência e religião independentemente da orientação sexual ou identidade de gênero
dos indivíduos, o que inclui a prática e promoção de opiniões, convicções e crenças, desde
que não sejam realizadas de forma incompatível com os direitos humanos.412 O princípio
22 trata da direito à liberdade de ir e vir dentro do próprio Estado, e o princípio 23 do
direito de buscar asilo em outros países para escapar de perseguição, inclusive quando
esta é originária de discriminação quanto à sua condição LGBTQIAP+.413
Os direitos de participação social estão compreendidos nos princípios 24 a 27,
iniciando-se pelo direito a constituir família, asseverando que as famílias existem de
forma diversa, que nenhuma delas pode ser sujeita a discriminação; que os Estados devem
assegurar políticas e leis que reconheçam tal diversidade; que todas as ações e decisões
relacionadas a crianças sejam orientadas pela primazia do interesse da criança e que a
orientação sexual da criança ou de qualquer membro da família não seja considerada

410
PAINEL INTERNACIONAL DE ESPECIALISTAS EM LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS, ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO. Princípios de
Yogyakarta. 2006. Yogyakarta, Indonésia. Princípios de Yogyakarta. 2006. Yogyakarta, Indonésia.
Princípio nº 19
411
Ibid., Princípio nº 20
412
Ibid., Princípio nº 21
413
Ibid., Princípios nº 22 e nº 23
115

incompatível com esse melhor interesse; e que sejam asseguradas as opiniões e


expressões das crianças, de acordo com sua idade e maturidade. Quanto aos Estados que
reconhecem o casamento ou parceria entre pessoas do mesmo sexo, é importante que eles
garantam a igualdade de tratamento e de relação que é conferido às uniões entre pessoas
de sexos diferentes.414
Logo em seguida, anuncia-se o direito de todos os cidadãos de participar das
políticas públicas que afetem seu bem-estar, bem como tenham acesso a todos os níveis
do serviço público sem discriminação, garantindo-lhes acesso aos empregos que
desempenhem funções públicas415; também devem ser garantidos o direito de participar
da vida cultural, respeitando e promovendo o respeito mútuo entre os representantes de
grupos culturais, incluindo aqueles que têm visões diferentes sobre questões de orientação
sexual e identidade de gênero, desde que sejam respeitados os Direitos Humanos416; deve
ser assegurado também o direito de promover a proteção e a aplicação dos Direitos
Humanos, que inclui o desenvolvimento e a discussão de novas normas protetivas, que
protejam as pessoas envolvidas em projetos de defesa desses direitos, trazendo um
destaque especial para aqueles que atuam na proteção das pessoas LGBTQIAP+.417
Para mais, o princípio 28 refere-se a garantia dos recursos jurídicos eficazes,
destinada a todas as pessoas vítimas de violação de Direitos Humanos, que sejam
conferidas, em seu benefício, a revisão das leis e políticas que assegurem medidas
corretivas de restituição, compensação, reabilitação, satisfação, garantia de não repetição
e/ou qualquer outro meio que seja apropriado contra as violações sofridas pelas vítimas,
que tais recursos sejam implementados em tempo hábil, e que haja informação
suficientemente disponível acerca dos procedimentos legais para a vítima pleitear as
correções de atos discriminatórios sofridos, bem como que seja fornecido auxílio
financeiro para pessoas que não possam arcar com os custos das medidas corretivas.418
Por último, o princípio 29 discorre sobre a responsabilização das pessoas que
praticam, direta ou indiretamente, violações de Direitos Humanos, inclusive de direitos
especificados dentre os princípios de Yogyakarta: a estes não deve restar a impunidade

414
PAINEL INTERNACIONAL DE ESPECIALISTAS EM LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS, ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO. Princípios de
Yogyakarta. 2006. Yogyakarta, Indonésia. Princípios de Yogyakarta. 2006. Yogyakarta, Indonésia.
Princípio nº 24
415
Ibid., Princípio nº 25
416
Ibid., Princípio nº 26
417
Ibid., Princípio nº 27
418
Ibid., Princípio nº 28
116

sobre suas atitudes, e se faz necessário que os Estados implantem procedimentos


criminais, civis, administrativos que sejam apropriados, acessíveis e eficazes para
assegurar que pessoas e instituições que violem direitos humanos relacionados à
identidade de gênero e orientação sexual sejam responsabilizados pelas suas atitudes, bem
como que haja um mecanismo de monitoramento para assegurar tal responsabilização, e
que sejam implantadas instituições e procedimentos independentes com a função de
monitorar a formulação de leis e políticas e sua aplicação.419
No que tange a participação do Brasil nas discussões, destaca-se que o país foi
um dos signatários dos princípios de Yogyakarta, tendo sido representado pela
Pesquisadora Associada da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) e
cocoordenadora do Observatório de Sexualidade e Política, Sonia Onufer Corrêa,
conforme dispõe o texto normativo dos princípios de Yogyakarta.
Assim, após a análise individualizada de todos os princípios dialogados em
Yogyakarta, e de suas recomendações sobre como deve ser conferida uma cidadania digna
a população LGBTQIAP+, pode-se concliuir que os princípios de Yogyakarta são marcos
normativos de suma importância e relevância inovadora no contexto de Direitos Humanos
daquela época. Ademais, se compararmos a realidade atual, onde ainda existem sessenta
e nove nações que criminalizam a homossexualidade, esses princípios, editados no ano
de 2006, foram basilares para que muitos Estados, tribunais e organizações internacionais
pautassem suas condutas em conformidade com os preceitos elencados, bem como para
que os movimentos de reivindicação política daqueles Estados onde não haviam
normativas, tivessem como escopo jurídico princípios sólidos e direcionados a uma
população marginalizada em específico.
No mais, os princípios de Yogyakarta não possuem um caráter vinculante para
os Estados, porém detém a particularidade de reafirmar diversos princípios de direito
internacional que efetivamente são vinculantes, fazendo, assim, a relação de tais
princípios com a proteção das minorias sexuais, ocasião em que tais princípios inspiram,
até hoje, a criação de políticas públicas e a fundamentação de decisões judiciais para
solução de litígios. Assim, os princípios de Yogyakarta figuram como normas
orientadoras para diversas organizações internacionais, como o Conselho de Direitos

419
PAINEL INTERNACIONAL DE ESPECIALISTAS EM LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS, ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO. Princípios de
Yogyakarta. 2006. Yogyakarta, Indonésia. Princípios de Yogyakarta. 2006. Yogyakarta, Indonésia.
Princípio nº 29
117

Humanos das Nações Unidas e outras agências das Nações Unidas (normas de soft law)420,
bem como foram incorporados nas políticas interna e externa de diversas nações, e
apreciados nos sistemas regionais de proteção aos direitos humanos.421

3.5.2 Resolução nº 17/19 do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e


Relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, de 2011

Dando continuidade ao panorama histórico-jurídico das discussões acerca dos


direitos da população LGBTQIAP+ em âmbito internacional, nas últimas duas décadas
há uma ampliação das pautas de discussão sobre os direitos de cidadania e preocupação
com a violência e discriminação sofrida por estas comunidades de pessoas, por parte dos
órgãos que compõem o Sistema Universal de Direitos Humanos. Tal preocupação tem
como objetivo integrar o amplo rol de normas de proteção aos direitos humanos, tal como
a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os Pactos de 1966, à realidade
desafiadora de violação aos direitos humanos das Minorias SOGIESC.
Nesses termos, no ano de 2010, o então Secretário Geral da Organização das
Nações Unidas, Ban Ki-moon, durante um discurso realizado em Nova York sobre a
igualdade de direitos LGBT (sigla da época), expressou sua preocupação com essas
minorias, enfatizando a necessidade de combater a violência e a discriminação. A seguir,
destaca-se o trecho histórico do discurso:
Como homens e mulheres conscientes, rejeitamos a discriminação em geral, e
em particular a discriminação baseada na orientação sexual e de identidade de
gênero. Onde há uma tensão entre as atitudes culturais e os direitos humanos
universais, os direitos humanos vencem.422

É a partir desse contexto de abertura, as entidades das Nações Unidas


intensificam as discussões sobre as questões de sexualidade e identidade de gênero,
ocasião em que o Conselho de Direitos Humanos (CDH) promulga a resolução nº

420
Norma que não decorre de autoridade central que possa impor seu cumprimento.
421
MAURÍCIO, Álvaro Filipe da Silva. A atuação dos sistemas de proteção de direitos humanos na
defesa da comunidade LGBT. 2018. 136 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Universidade de
Lisboa, Lisboa, 2018. p. 51
422
UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS. Igualdade e não discriminação: livres & iguais nações unidas
pela igualdade lgbt. LIVRES & IGUAIS NAÇÕES UNIDAS PELA IGUALDADE LGBT. Disponível em:
https://www.ohchr.org/sites/default/files/Documents/Issues/Discrimination/LGBT/FactSheets/UNFEFact
SheetEquality_and_non_discrimination_SOGI_PT.pdf. Acesso em: 15 fev. 2023.
118

17/19423, proveniente do 17º Período de sessões do CDH, datada de 17 de junho de 2011


(A/HRC/17/L.9/Rev.1), a qual foi aprovada em votação geral por 23 votos a favor424
(incluindo o voto do Brasil), 19 votos contrários425 e 3 abstenções426.
Esta resolução expressa a grave preocupação do conselho com os atos de
violência e de discriminação distribuídos ao redor do mundo e cometidos contra pessoas
por motivo de sua orientação sexual e identidade de gênero. Por meio dela, o CDH solicita
ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos que encomende um
estudo com objetivo de identificar e documentar a existência de leis, práticas
discriminatórias e atos de violência cometidos por motivação de sexualidade e identidade
de gênero, e que documentasse de que maneira as normas internacionais de Direitos
Humanos podem ser aplicadas como instrumento para erradicar tais violações.427
Nessa resolução também fica definida, durante o 19º Período de Sessões do
CDH, a organização de uma mesa redonda com objetos de estudos as leis
discriminatórias, as práticas e atos de violência cometidos em razão da Orientação Sexual
e identidade de gênero, com objetivo de elaborar um diálogo construtivo, informado e
transparente, e para que sejam estudadas e acompanhadas as recomendações formuladas
no estudo encomendado pelo Alto Comissário.428 Assim, em 17 de novembro de 2011, o
Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos submete o relatório
A/HRC/19/41 ao Conselho de Direitos Humanos (CDH), em atenção à Resolução n.º
17/19, contemplando os dados oriundos de organizações regionais, autoridades nacionais
e organizações não governamentais e compreendendo as questões críticas de direitos
humanos verificadas, pelas quais os Estados precisam se atentar.429
O relatório destaca que a problemática não está restrita a uma região específica,
mas a todas as regiões do mundo, onde as violências incluem “assassinato, estupro e

423
CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS. 2011. Resolução n.º 17/19 (A/HRC/17/L.9/Rev.1).
Genebra.
424
Votos a favor da Resolução nº 17/19: Argentina, Bélgica, Brasil, Chile, Cuba, Equador, Eslováquia,
Espanha, Estados Unidos de América, França, Guatemala, Hungria, Japão, Mauricio, México, Noruega,
Polonia, Reino Unido de Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, República da Coreia, Suíça, Tailândia, Ucrânia,
Uruguai.
425
Votos contrários à Resolução nº 17/19: Angola, Arábia Saudita, Bahrein, Bangladesh, Camarões,
Djibuti, Federação Russa, Gabão, Gana, Jordânia, Malásia, Maldivas, Mauritânia, Nigéria, Paquistão,
Qatar, República da Moldávia, Senegal, Uganda.
426
Abstenções referentes a Resolução nº 17/19: Burkina Faso, China, Zâmbia.
427
CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS. 2011. Resolução n.º 17/19 (A/HRC/17/L.9/Rev.1).
Genebra.
428
Ibid., Artigo 3º
429
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório anual do Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Direitos Humanos e relatórios do Gabinete do Alto Comissário e Secretário-
Geral (Relatório A/HRC/19/41). Décima-sétima Sessão. Agenda item 8. 2011. Genebra. p. 1
119

agressão física, tortura, detenção arbitraria, negação dos direitos de reunião, expressão e
informação, e discriminação no emprego, saúde e educação”.430 Outra característica
importante sobre esse relatório diz respeito a sua forma de reunir entendimentos e
interpretações dos órgãos das nações unidas sobre os direitos das pessoas LGBTQIAP+,
sob diferentes perspectivas, que convergem para uma interpretação normativa que
privilegia a proteção dos direitos e garantias fundamentais em diversos âmbitos de
cidadania dessas pessoas. O texto em questão é construído a partir das experiências
coletadas por relatores de diversos órgãos das Nações Unidas, a exemplo do Conselho de
Direitos Humanos (CDH), o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados
(ACNUR), o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ECOSOC).
Após a exposição das características gerais do relatório, e procedendo com seu
exame, em seu texto são apresentadas as normas e obrigações internacionais aplicáveis à
situação de vulnerabilidade das minorias sexuais, onde o documento lista e explica os
princípios que fundamentam a ideia principal de que os Estados devem promover e
proteger os direitos humanos e as liberdades fundamentais dos indivíduos LGBTQIAP+.
Assim, são elencados os princípios da universalidade e da igualdade e não discriminação
como princípios basilares em toda a análise do relatório.431
Ambos os princípios se encontram em consonância com o artigo 1º da
Declaração Universal dos Direitos do Homem, quando esta dispõe sobre a liberdade,
igualdade e dignidade de direitos inerente a todas as pessoas. Destaca, nesse sentido, que,
em que pese a Declaração e o Programa de Ação de Viena afirmem que se deve levar em
consideração as particularidades nacionais e regionais, as heranças históricas, culturais e
religiosas, os Estados têm o dever de proteger, independentemente de seus sistemas
políticos econômicos e culturais, os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais de
todas as pessoas.432
Outrossim, a não discriminação é um princípio que se encontra consagrado em
instrumentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional
sobre os Direitos Civis e Políticos e os tratados básicos de direitos humanos. Para tanto,

430
Consejo de Derechos Humanos. Informe anual del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para
los Derechos Humanos. 2011. Tradução nossa. Disponível em:
https://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/19session/A.HRC.19.41_sp.pdf. Acesso em: 05
nov. 2021. p. 4
431
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório anual do Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Direitos Humanos e relatórios do Gabinete do Alto Comissário e Secretário-
Geral (Relatório A/HRC/19/41). Décima-sétima Sessão. Agenda item 8. 2011. Genebra. p. 4
432
Ibid., p. 4
120

o relatório deixa claro que os motivos específicos de discriminação contidos nesses


documentos não são taxativos, e que seus autores deixaram, de forma intencional, a
abertura dos motivos de discriminação ao utilizar da expressão "qualquer outro status
social". Cita também o caso Toonen vs. Australia, no qual o CDH se manifestou, pela
primeira vez, no ano de 1994, traçando as considerações que os Estados são obrigados a
proteger todas as pessoas contra discriminação em razão de orientação sexual.433
Seguidamente, o relatório elucida as obrigações dos Estados sob as normas
internacionais de direitos humanos, destacando a proteção ao direito à vida, liberdade e
segurança pessoais, nos termos do artigo 3º da DUDH e do Art. 6º do PIDCP,
esclarecendo que é dever do Estado diligenciar preventivamente e repressivamente os
casos de violência seletiva que atentem contra direito à vida, devendo também investigar,
diligenciar e oferecer reparação em todos eles.434
O relatório também expõe a obrigação dos Estados em não expulsar ou devolver
uma pessoa refugiada à um local onde sua vida se encontra ameaçada por razão de sua
identidade de gênero ou sexualidade, conforme dispõe o art. nº 33 da Convenção Relativa
ao Estatuto dos Refugiados de 1951435, e com a interpretação do Alto-comissariado das
Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) sobre esse artigo, entendendo que os
indivíduos que sofrem de perseguição pelos motivos de orientação sexual e identidade de
gênero podem ser considerados como “membros de um grupo social específico”, e se
encontram compreendidos pela referida normativa.436
O documento também destaca a necessidade de prevenção contra a tortura e os
tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes que sejam motivados pela orientação
sexual e a identidade de gênero, em conformidade com o artigo 5º da DUDH e o artigo
7º do PIDCP; evidencia a demanda por proteção à privacidade, nos termos do artigo 12º
da DUDH e 17º do PIDCP, ambos que esclarecem que ninguém será sujeito a
interferências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, casa, família e correspondência;

433
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório anual do Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Direitos Humanos e relatórios do Gabinete do Alto Comissário e Secretário-
Geral (Relatório A/HRC/19/41). Décima-sétima Sessão. Agenda item 8. 2011. Genebra. p. 4-5
434
Ibid., p. 5
435
O artigo 33 da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 dispõe sobre a proibição de
expulsão ou de rechaço, e em seu inciso 1º, expressa: ”Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou
rechaçará, de maneira alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua
liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a
que pertence ou das suas opiniões políticas”.
436
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório anual do Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Direitos Humanos e relatórios do Gabinete do Alto Comissário e Secretário-
Geral (Relatório A/HRC/19/41). Décima-sétima Sessão. Agenda item 8. 2011. Genebra. p. 5-6
121

e ressalta a importância da proteção contra a detenção arbitrária, nos termos do artigo 9º


da DUDH e do PIDCP.437
Além disso, o relatório traz um tópico sobre a proteção das pessoas contra a
discriminação fundamentada em orientação sexual e identidade de gênero438, aludindo ao
art. 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao art. 2º do PIDESC, ao art. 2º
da Convenção sobre os Direitos da Criança, o qual, por sua vez, é reforçado pelo artigo
26 do PIDCP, estes que garantem a igualdade perante a Lei, quando estabelecem a
proibição da discriminação por parte dos Estados.439 Para justificar tal posicionamento,
cita algumas disposições proferidas pelo Comitê de Direitos Humanos, conforme disposto
nas observações finais do Comitê de Direitos Humanos sobre o Chile
(CCPR/C/CHL/CO/5), par. 16; observações finais sobre San Marino
(CCPR/C/SMR/CO/2), par. 7; e observações finais sobre Áustria (CCPR/C/AUT/CO/4),
par. 8.440
Nessa senda, o Comitê de Direitos Humanos também vem acolhendo as
legislações que incluem orientação sexual entre os motivos proibidos de discriminação,
conforme observações finais do Comitê de Direitos Humanos sobre El Salvador
(CCPR/C/SLV/CO/6), par. 3 (c); observações finais sobre Grécia (CCPR/CO/83/GRC),
par. 5; observações finais sobre Finlândia (CCPR/CO/82/FIN), par. 3 (a); e observações
finais sobre Eslováquia (CCPR/CO/78/SVK), par. 4.441
No mais, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ECOSOC)
também assegurou o princípio da não discriminação em relação às Minorias sexuais em
seus comentários gerais acerca dos direitos ao trabalho, à água, à segurança social e ao
mais alto padrão de saúde possível, disciplinado nos comentários gerais n.º 18
(E/C.12/GC/18) (direito ao trabalho), par. 12 (b) (i); comentários gerais n.º 15
(E/C.12/2002/11) (direito à água), par. 13; comentários gerais n.º 19 (E/C.12/GC/19)
(direito à segurança social), par. 29; e comentários gerais n.º. 14 (E/C.12/2000/4) (direito
ao mais alto padrão de saúde alcançável), par. 18.442

437
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório anual do Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Direitos Humanos e relatórios do Gabinete do Alto Comissário e Secretário-
Geral (Relatório A/HRC/19/41). Décima-sétima Sessão. Agenda item 8. 2011. Genebra. p. 6
438
Ibid., p. 7
439
Ibid., p. 7
440
Ibid., p. 7
441
Ibid., p. 7
442
Ibid., p. 7
122

Ademais, para sedimentar a necessidade de proteção contra violência em razão


de orientação sexual e identidade de gênero, o relatório expõe que foram relatados
episódios de violência física e psicológica contra pessoas LGBTQIAP+ em todas as
regiões do globo, e que isso consiste em um tipo de violência de gênero, cuja motivação
é punir quem desafia as normas de gênero.443 Sobre os tipos de violência, o relatório faz
um importante destaque sobre as formas não letais de violência, que detém a particular
característica de serem menos documentadas e subnotificadas. Destaca-se, nesse
contexto, a preocupação do Comitê para a Eliminação da Discriminação Contra as
Mulheres com os crimes sexuais cometidos contra mulheres lésbicas, a exemplo de
ataques, estupros, gravidez forçada e atos de violência familiar utilizados como forma de
punição por sua orientação sexual.444
O relatório também aborda a existência de leis discriminatórias espalhadas por
todo o globo, que criminalizam as minorias SOGIESC, com destaque para a pena de
morte que ainda é uma realidade de algumas nações, assim como a detenção arbitrária.445
Descreve também as práticas discriminatórias na família e na comunidade, que podem
impedir que muitos indivíduos desfrutem plenamente de seus Direitos Humanos, pois os
membros da família frequentemente impõem as normas de gênero e sancionam
transgressões a elas, em especial as mulheres que se encontram em situação de risco por
conta da desigualdade de gênero. Mecanismos das Nações Unidas e ONGs relataram
violações como casamento forçado, gravidez forçada, estupro marital como algumas
ocorrências de violações aos direitos das mulheres que não se encaixam nas normas de
gênero impostas socialmente.446
Ao final do relatório, o Alto Comissariado das Nações Unidas apresenta suas
conclusões e recomendações, de onde explana que muitos Estados vêm negligenciando o
enfrentamento a violência e discriminação motivadas pela orientação sexual e pela
identidade de gênero. Nesse sentido, recomenda que os Estados membros investiguem
todas as denúncias de assassinatos e atos de violência praticados em razão do preconceito
e discriminação motivadas pela sexualidade e identidade de gênero, assim como
responsabilizem os autores e estabeleçam registros e informações sobre os casos;

443
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório anual do Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Direitos Humanos e relatórios do Gabinete do Alto Comissário e Secretário-
Geral (Relatório A/HRC/19/41). Décima-sétima Sessão. Agenda item 8. 2011. Genebra. p. 8-9
444
Ibid., p. 10-11
445
Ibid., p. 16
446
Ibid., p. 23
123

recomenda também que os Estados adotem medidas para prevenir a tortura e os


tratamentos cruéis e garantam de que nenhuma pessoa imigrante, que esteja fugindo de
alguma perseguição em razão de sua sexualidade e identidade de gênero, seja devolvida
ao lugar onde sua vida e sua integridade estejam ameaçados.447
Ademais, também devem ser medidas adotadas pelos Estados a revogação de
leis que criminalizem a homossexualidade, devendo e igualar a idade de consentimento
das relações homoafetivas às heteroafetivas; promulgação de uma legislação contrária a
discriminação com base em orientação sexual e identidade de gênero; que o Estado
assegure o direito de expressão, facilite o reconhecimento legal do gênero das pessoas
transexuais e execute programas de treinamento e capacitação para os membros da
segurança pública.448 Outrossim, o Alto Comissário também profere recomendações
destinadas ao Conselho de Direitos Humanos, que consistem em receber as informações
sobre atos de violência e discriminação por identidade de gênero e orientação sexual e
incentivar as denúncias e investigações acerca de tais violações.449
Da análise do relatório do Alto Comissário, verifica-se que ele solidifica a
construção normativa de proteção universal aos direitos humanos, lhe dando uma
interpretação atual e vinculando a todos os países independentemente de suas condições
econômicas, sociais e culturais. Entende-se que não há justificativa para que as nações
ainda existam leis que criminalizem as pessoas em razão de sua orientação sexual ou
identidade de gênero, e as nações não podem se abster de prevenir quaisquer tipos de
atitudes contrárias a dignidade dessas pessoas e ao direito de conviver de forma igualitária
em sociedade.
Portanto, os Estados devem atuar de forma diligente nas investigações,
julgamento e aplicação de penalidades a quem cometê-las, assim como garantir que as
vítimas sejam amparadas e seus danos reparados. Destaca-se também a preocupação com
os indivíduos migrantes, que se evadem de sua localidade em razão da discriminação,
deixando claro que é obrigação dos Estados não devolverem elas para a situação de
vulnerabilidade e abjeção.

447
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório anual do Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Direitos Humanos e relatórios do Gabinete do Alto Comissário e Secretário-
Geral (Relatório A/HRC/19/41). Décima-sétima Sessão. Agenda item 8. 2011. Genebra. p. 26
448
Ibid., p. 26
449
Ibid., p. 27
124

3.5.3 Princípios de Yogyakarta “+ 10”, de 2017

Os princípios de Yogyakarta de 2006 se tornaram um marco na proteção dos


direitos das pessoas LGBTQIAP+, se transformando, desde então, em um parâmetro
normativo da esfera do direito internacional dos direitos humanos que auxiliam na
compreensão e identificação de violações que estão sujeitos os indivíduos, em razão de
sua identidade de gênero ou orientação sexual. Nesse contexto, no mês de setembro de
2017, em comemoração ao décimo aniversário da primeira reunião realizada em
Yogyakarta, as organizações não governamentais International Service for Human Rights
e ARC International, em conjunto com membros da sociedade civil e autoridades no
assunto, estabeleceram um comitê cujo objetivo seria a elaboração do documento
intitulado Princípios de Yogyakarta +10, que tem por objetivo documentar e aprofundar
os princípios outrora desenvolvidos, adicionando novas obrigações e novos princípios.
A confecção desse documento tem como base jurídica o parágrafo 9º do
preâmbulo dos Princípios de Yogyakarta de 2006, o qual prevê uma revisão periódica
destes princípios, com a finalidade de acolher um número cada vez maior de situações
em que sejam necessárias previsões expressas de inclusão e respeito às condições de
cidadania, independentemente de sua identidade de gênero, sexualidade ou expressões de
gênero e sexualidade. Destarte, nas datas de 18 a 20 de setembro de 2017, na cidade de
Genebra, o comitê se reuniu para conduzir um projeto que levasse em consideração
diversas vivências LGBTQIAP+, de variados Estados nacionais e variadas culturas.
O documento elaborado apresenta mais 10 novos princípios, que continuam a se
desenvolver a partir do último enunciado no documento original de 2006, e traz 111 novas
obrigações que devem ser respeitadas pelos Estados, pretendendo abranger a maior
quantidade possível de situações envolvendo os indivíduos que compõem a sigla
LGBTQIAP+. Nesses termos, a contagem dos princípios inicia-se pelo princípio 30, o
qual atualiza os entendimentos sobre o Direito a proteção, por parte do Estado, contra
quaisquer formas de violência discriminação ou qualquer outro dano cometido por
quaisquer agentes, sejam eles estatais ou não.450
Conforme leciona o princípio em tela, destaca-se como obrigação dos Estados
prevenir, investigar, castigar e delegar recursos jurídicos para evitar violência e outros

450
PAINEL INTERNACIONAL DE ESPECIALISTAS EM LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS, ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO. Princípios de
Yogyakarta +10. 2017. Genebra, Suíça.
125

danos que possam vir a ser cometidos por agentes estatais;451 adotar medidas apropriadas
e efetivas para erradicar todas as formas de discriminação e violência direcionada à
população LGBTQIAP+;452 coletar informações estatísticas sobre as dimensões, as
causas e os efeitos da discriminação, assim como das medidas tomadas para prevenir e
erradicar os danos, bem como os dados das reparações de danos;453 na seara da educação,
implementar programas de educação e informação pública para promoção dos direitos
humanos e eliminação de prejuízos decorrentes do preconceito contra as pessoas
LGBTQIAP+;454 capacitar e sensibilizar os servidores públicos, em especial aqueles que
trabalham no judiciário fazendo cumprir as leis;455 garantir que as normas que versam
sobre violações , abusos e assédios sexuais protejam todas as pessoas independente de
sua identidade de gênero, sexualidade ou expressões de gênero e sexualidade, bem como
que haja o devido apoio ás vítimas de tais violações.456
O princípio 31 se refere ao direito ao reconhecimento legal, afirmando que todas
as pessoas devem ter seu reconhecimento legal, sem que seja exigido ou revelado seu
sexo, gênero, orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero. Esse direito
se ramifica no direito de obtenção, por todas as pessoas, de documentos de identidade,
certidão de nascimento, independentemente destes fatores. Também afirma que, quando
registradas as informações relativas ao sexo, o cidadão tem direito de alterá-las.457
Nesses termos, para concretização do princípio 31, o documento prescreve que os
Estados devem garantir que os documentos de identificação oficiais incluam apenas
informações pessoais que sejam pertinentes, razoáveis e necessárias a fim de cumprir um
propósito legítimo, devendo extinguir os registros de sexo e gênero nas identidades,
certidões de nascimento, passaportes e carteiras de habilitação, bem como garantir que a
mudança de nome seja acessível e que, enquanto os registros de sexo e o gênero
continuarem a existir, sejam utilizadas nomenclaturas neutras em termos de gênero.
Ademais, que os procedimentos para reconhecimento da identidade de gênero com a qual
o indivíduo se identifica sejam rápidos, transparentes, acessíveis e possuam vários

451
PAINEL INTERNACIONAL DE ESPECIALISTAS EM LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS, ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO. Princípios de
Yogyakarta +10. 2017. Genebra, Suíça. Princípio 30, item ”a”.
452
Ibid., Princípio 30, item ”b”.
453
Ibid., Princípio 30, item ”c”.
454
Ibid., Princípio 30, item ”e”.
455
Ibid., Princípio 30, item ”e”.
456
Ibid., Princípio 30, item ”h”.
457
Ibid., Princípio 31, caput
126

marcadores de gênero disponíveis, sem a exigência de condições médicas, psicológicas,


idade mínima ou máxima como requisito para tal mudança, e que o registro criminal, a
condição de imigrante ou qualquer outro status não seja um óbice para seu acesso.458
No mais, as condições de saúde físicas e psicológicas do indivíduos também são
previsões dos princípios de Yogyakarta +10, quando, por meio do princípio 32, se enuncia
a atenção que os Estados devem conferir ao direito a integridade corporal e mental,
autonomia e autodeterminação, de forma que os indivíduos não sejam sujeitos à torturas
ou punições cruéis, nem sejam submetidos a procedimentos médicos invasivos que
venham a modificar suas características sexuais sem seu devido consentimento, que deve
ser prévio e informado, salvo em casos onde seja necessário para evitar danos graves,
urgentes e irreparáveis.459 Para tanto, os Estados devem adotar políticas que objetivem
enfrentar o estigma e os estereótipos fundamentados em sexo e gênero, e quaisquer
lógicas sociais, religiosas e culturais que justifique modificação nas características
sexuais de quaisquer indivíduos.460
O princípio 33, por sua vez, versa sobre a necessidade de que os Estados
garantam que nenhum tipo de norma criminalize a orientação sexual e a identidade de
gênero, e, se porventura houver alguma norma que se utilize de termos como “ato contra
natureza”, “sodomia”, “vadiagem” para se referir às pessoas LGBTQIAP+, que esta seja
revogada. Devem também ser revogadas todas as condenações fundadas em normas que
criminalizam arbitrariamente pessoas com base em sua orientação sexual e a identidade
de gênero, e deve ser assegurado que os agentes da lei, funcionários do judiciário e
prestadores de serviços médicos tenham treinamento para não discriminar outros
indivíduos, e, caso aconteça alguma situação de discriminação, que os responsáveis sejam
punidos e que as vítimas tenham acesso a sistemas de apoio jurídico e recursos.461
Seguindo no texto normativo dos princípios de Yogyakarta +10, o princípio de
número 34 alcança o direito a proteção contra a pobreza e a exclusão social, explicando
que a pobreza é incompatível com a igualdade de direitos e a dignidade humana, e pode
ser ampliada pelo desrespeito à orientação sexual, identidade de gênero expressão de
gênero e características sexuais dos indivíduos.462 Para tanto, cabe aos Estados promover

458
PAINEL INTERNACIONAL DE ESPECIALISTAS EM LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS, ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO. Princípios de
Yogyakarta +10. 2017. Genebra, Suíça. Princípio 31, itens “a”, “b” e “c”
459
Ibid., Princípio 32, caput
460
Ibid., Princípio 31, recomendação ”d”
461
Ibid., Princípio 33
462
Ibid., Princípio 34, caput e recomendações “a” à “h”
127

a inclusão social das pessoas marginalizadas, garantir que as instituições coletem dados
da população, visando o combate a pobreza, e garantir soluções para as violações de
direitos humanos.463 Outro direito básico se encontra disposto no princípio 35, e consiste
no direito ao saneamento e às condições igualitárias e adequadas de higiene, compatíveis
com a dignidade da pessoa humana e desvinculada de qualquer tipo de discriminação.
Posteriormente, alinhando-se à globalização e a disseminação dos fenômenos
tecnológicos ao redor do mundo, o princípio 36 dispõe sobre o os direitos humanos em
relação com as tecnologias da informação e comunicação. Constata-se, de sua análise, a
preocupação dos especialistas com as atividades realizadas no âmbito da internet e das
comunicações, prevendo, em um primeiro momento o direito de acesso às tecnologias,
livres de quaisquer formas de discriminação, e se preocupando, posteriormente, na
segurança das comunicações.464
O texto do princípio 36 cita, em especial, o uso de ferramentas como a
criptografia, a anonimização e a utilização de pseudônimos, asseverando que tais
garantias são imprescindíveis para a plena realização dos direitos humanos e que estão
relacionadas “aos direitos à vida, integridade física e mental, saúde, privacidade, devido
processo legal, liberdade de opinião e expressão, e liberdade de reunião e associação
pacíficas”465. Destaca-se a recomendação que aconselha os Estados a garantir que todas
as restrições de direitos de acesso às tecnologias de informação, de comunicação e de
internet estejam legalmente previstas e que sejam proporcionais, visando proteger a
dignidade humana, a igualdade e as liberdades individuais.466
O próximo princípio, de número 37, é um dos mais relevantes de todo o texto
normativo dos princípios de Yogyakarta +10, pois versa sobre o direito à verdade,
relacionado às atividades jurisdicionais e a impunidade. Para os especialistas que
formularam o texto normativo, o direito à verdade reúne a garantia de investigações
efetivas, independentes e imparciais, com a finalidade de estabelecer os fatos. Esse direito
não está sujeito à prescrição, e provém da ótica individual, de o indivíduo obter a verdade
sobre determinados acontecimentos ou as motivações para que ele seja tratado de

463
PAINEL INTERNACIONAL DE ESPECIALISTAS EM LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS, ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO. Princípios de
Yogyakarta +10. 2017. Genebra, Suíça. Princípio 34, recomendações ”b” à “e”
464
Ibid., Princípio 36, caput
465
Ibid., Princípio 36, caput
466
Ibid., Princípio 36, recomendação “c”
128

determinada forma, bem como uma perspectiva coletiva fundada na garantia de acesso,
por parte da sociedade, de conhecer da verdade dos acontecimentos.467
Outrossim, o direito à verdade só pode ser alcançado se os Estados estabelecerem
mecanismos e processos de busca da verdade acerca de violações de direitos humanos
fundadas em identidade de gênero, orientação sexual, expressão de gênero e
características sexuais. Sobre esse tipo de violação, os Estados devem adotar disposições
legais que objetivem preservar provas documentais e garantir que os fatos e as verdades
históricas sejam amplamente difundidos e incluídos nos currículos educacionais, para que
todos saibam as causas, a natureza e as consequências das violações de direitos humanos
contra as pessoas LGBTQIAP+, assim como que as vítimas sejam compensadas,
garantindo a elas o acesso a recursos efetivos, indenização, reparação, tratamentos
reparadores físicos e psicológicos.468 O último princípio, de número 38, estabelece que
todos tem o direito de praticar, proteger, preservar e reviver a diversidade de culturas,
tradições, idiomas, rituais e festivais, e que todos têm o direito de manifestar a diversidade
cultural por todos os meios e tecnologias possíveis, sem nenhuma discriminação.469
No mais, a República Federativa do Brasil foi uma das nações signatárias do
documento oriundo das discussões sobre os princípios de Yogyakarta +10. Destaca-se a
presença da Pesquisadora Associada da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids
(ABIA), e co-presidenta do Observatório de Sexualidade e Política, Sonia Onufer Corrêa,
como representante do país na conferência.

467
PAINEL INTERNACIONAL DE ESPECIALISTAS EM LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS, ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO. Princípios de
Yogyakarta +10. 2017. Genebra, Suíça. Princípio 37, caput
468
Ibid., Princípio 37, recomendação “b”, “e”, “f”, “g”, “h”
469
Ibid., Princípio 38, caput
129

4. PROTEÇÃO DAS PESSOAS LGBTQIAP+ NO SISTEMA


INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

O capítulo anterior teve como objetivo elucidar a evolução dos instrumentos


normativos universais de proteção aos direitos humanos, com ênfase na busca de uma
relação entre tais documentos e a proteção contra a violência em razão de orientação
sexual e identidade de gênero.
Nesses termos, o presente capítulo busca, na interpretação da Corte
Interamericana de Direitos Humanos sobre as normas que compõem o Sistema
Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, um fundamento para a construção da
cidadania sexual como um princípio interpretativo das normas jurídicas no Brasil.
Para tanto, utiliza-se como recorte metodológico os casos apreciados pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos que se pronunciaram pela reparação e violação dos
direitos das pessoas LGBTQIAP+, tomando como lapso temporal as últimas duas
décadas, e como parâmetro de busca o “Caderno de Jurisprudência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos”, número 19, publicado no ano de 2021e disponível
no sítio oficial da organização, que destaca cinco casos emblemáticos decididos pela
Corte IDH.

4.1 PRINCIPAIS INSTRUMENTOS NORMATIVOS DE PROTEÇÃO AOS


DIREITOS HUMANOS CONTRA A NÃO DISCRIMINAÇÃO, EM ÂMBITO
INTERAMERICANO

Neste tópico serão apresentados os alicerces que fundam o Sistema


Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos (SIPDH), que tem sua origem a partir
da Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), que originou tal organização
internacional regional, assim como serão apresentados os principais instrumentos de
proteção dos Direitos Humanos, com foco na não discriminação e na proteção da
comunidade LGBTQIAP+ pelo SIPDH.
130

4.1.1 Carta da OEA e a Declaração Americana de Direitos e Deveres Do Homem


(DADDH)

A Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), também chamada de


Carta de Bogotá, é o tratado institutivo que criou essa organização internacional regional,
e que estabelece os princípios que orientam a entidade. Ela foi assinada em Bogotá, na
Colômbia, em 30 de abril de 1948, mas só entrou em vigou em 13 de dezembro de 1951,
quando foi depositada sua 14ª ratificação.470 Atualmente, participam da OEA 35 países,
e, quando da sua criação, colaboraram 21 Estados fundadores471, dentre eles o Brasil.472
Ademais, os primeiros artigos da Carta da OEA expressam a natureza e o
propósito da organização internacional, com destaque para os objetivos de consolidar a
democracia representativa; prevenir as possíveis causas de dificuldades e assegurar a
solução pacífica de controvérsias entre seus membros; promover o desenvolvimento
econômico, social e cultural e erradicar a pobreza crítica, que é um obstáculo para o
desenvolvimento democrático.473
No artigo 3º, quando versa sobre os princípios que orientam a entidade, destaca-
se a expressa menção à proclamação dos Direitos fundamentais da pessoa humana “sem
fazer distinção de raça, nacionalidade, credo ou sexo”. Destaca-se também os termos do
art. 106, onde a Carta prevê a criação de uma Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, com função de promover o respeito e a defesa dos direitos humanos e servir
como um órgão consultivo para a Organização. No mais estabelece também que a
Comissão Interamericana será criada por meio da Convenção Interamericana sobre
Direitos Humanos, a qual terá função de estabelecer o funcionamento do órgão.
No mais, na data de 30 de abril de 1948 também foi assinada a Declaração
Americana de Direitos e Deveres Do Homem (DADDH). Trata-se do marco inicial para
criação do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, que se divide em dois capítulos,
um que versa sobre os direitos de todos os seres humanos, e outro que dispõe sobre seus
deveres, de forma a replicar o conteúdo dos direitos expressos na Declaração Universal

470
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 12. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2019. 1797 p. p. 969
471
Estados Fundadores: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, República
Dominicana, Equador, El Salvador, Estados Unidos, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua,
Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.
472
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 12. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2019. 1797 p. p. 973
473
Ibid., p. 970
131

dos Direitos Humanos. Dentre os direitos, encontram-se o direito a vida, à liberdade e à


segurança, conforme leciona seu art. I, que completa seu sentido quando analisado
juntamente com o art. XXV que dispõe sobre a proibição de prisão arbitrária, e pelo art.
XVIII que versa sobre o direito à justiça, para fazer respeitar seus direitos, com aplicável
a todos, e o direito de petição que se encontra disposto no art. XXIV.
Assim, a relação que pode ser traçada entre a Declaração Americana de Direitos
e Deveres do Homem (DADDH), e a construção normativa dos direitos das pessoas
LGBTQIAP+ em âmbito interamericano ocorre a partir da leitura de seu art. II, este que
evidencia o respeito ao princípio da igualdade perante a lei, com ênfase de que devem ser
respeitados os direitos e deveres expressos na Declaração, sem distinção de raça, língua,
crença, ou qualquer outra, o direito a liberdade de expressão, de opinião e difusão de
pensamento. Para tanto, também devem ser respeitadas a liberdade de opinião, de
expressão e de difusão do pensamento, conforme dispõe o art. IV, a proteção legal da
honra e da vida particular e familiar, conforme o artigo V, o direito à constituição de
família, e a proteção da família, nos termos do artigo VI.474

4.1.2 Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (CADH)

Para o SIPDH, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH),


também conhecida como “Pacto de São José da Costa Rica”, consiste no principal
instrumento de tutela dos direitos fundamentais. Esse tratado internacional foi celebrado
na data de 22 de novembro do ano de 1969, e, ao contrário da Declaração Americana que
é apenas uma norma declarativa, este é um tratado que impõe normas vinculantes aos
seus Estados-partes.475
A Convenção Americana se divide em dois momentos, onde o primeiro
estabelece os direitos protegidos e os deveres dos Estados que a ratificam, enquanto o
segundo estabelece o funcionamento do sistema interamericano composto pela Comissão

474
ARAÚJO, Ygor; GURGEL, Yara; MOREIRA, Thiago. O princípio da igualdade e não discriminação
no combate a discriminação em razão de orientação sexual e identidade de gênero a partir das decisões da
Corte IDH. In: GURGEL, Yara; MAIA, Catherine; MOREIRA, Thiago. Direito Internacional dos Direitos
Humanos e Pessoas em Situação de Vulnerabilidade. Vol. 3. Natal: Polimatia, 2022, p. 287–324. p. 296
475
MOREIRA, Thiago Oliveira. Aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela
jurisdição brasileira. Natal: Edufrn, 2015. p. 75-76
132

Interamericana de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana de Direitos


Humanos.476
Nesses termos, a Convenção Americana traz diversos apontamentos relevantes,
iniciando pela afirmação de que os Estados partes que a ratificaram devem respeitar os
direitos e liberdades reconhecidos por ela, e devem garanti-los a todas as pessoas sujeitas
à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivos de raça, cor, sexo, idioma,
religião, opinião política ou qualquer outra condição social.477
Resta destacar que, quando da promulgação da CADH, não havia entendimento
de que tal dispositivo abrangeria a proteção da população LGBTQIAP+, e tal contexto
foi sendo modificado a partir do entendimento, em especial de seus órgãos, na aplicação
prática dos instrumentos ali dispostos, e na observação do contexto de violência em que
tais grupos sociais incutidos na sigla estão submetidos, assim como a concepção de que
a CADH é um instrumento em constante mutação, que deve sempre buscar a
conformidade com os anseios sociais. O artigo em questão fora abordado em diversas
decisões emblemáticas, que estudaremos a seguir, bem como na Opinião Consultiva de
nº 24, proferida pela Corte IDH no ano de 2017.
Outrossim, seguindo os apontamentos importantes da CADH, tem-se a definição
de pessoa como “todo ser humano”, expressa em seu artigo 1, parágrafo 2478, e os direitos
à proteção da integridade pessoal na seara física, psíquica e moral dos indivíduos,
proibindo torturas e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, dispostos no artigo 5,
parágrafos 1 e 2 do instrumento convencional.479
Outro dispositivo que deve ser destacado nessa convenção é o artigo 8º, o qual,
por sua vez, versa sobre algumas garantias judiciais inerentes a todos os indivíduos, dentre
elas o direito a ser ouvido por um juiz ou tribunal competente, dentro de um prazo
razoável, resguardando a independência e a imparcialidade do julgador, e fundamentado
em normas legais anteriormente promulgadas.480 Em caso de erro judiciário, garante-se,
por meio do artigo 10, o direito à indenização da pessoa que tenha sido injustamente
condenada por sentença transitada em julgado481; o artigo 11 dispõe sobre a proteção da

476
MOREIRA, Thiago Oliveira. Aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela
jurisdição brasileira. Natal: Edufrn, 2015. p. 76
477
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana Sobre Direitos
Humanos. San Jose. 1969. Artigo 1º
478
Ibid., Art. 1 par. 2
479
Ibid., Art. 5 par. 1 e 2
480
Ibid., Art. 8 par. 1
481
Ibid., Art. 10
133

honra e dignidade, afirmando que ninguém pode ser submetido a “ingerências arbitrárias
ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua
correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação”.482
No que se refere ao direito à igualdade e não discriminação, o artigo 24 leciona
que “todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem
discriminação, a igual proteção da lei”.483
Nesses termos, é importante situar o contexto regional americano, onde muitas
nações saem de regimes ditatoriais, em meados da década de 1980, como é o caso da
Argentina, no Chile, no Uruguai e no Brasil, e tentam consolidar suas democracias, tendo
como um dos principais desafios a persistência de um alto grau de exclusão e de
desigualdade social.484 Os períodos ditatoriais, por sua vez, se caracterizaram pelas
restrições aos direitos fundamentais básicos, em detrimento de meios violentos como a
tortura, desaparecimentos forçados, execuções sumárias, perseguições político-
ideológicas, torturas sistemáticas, e, em especial, as proibições a liberdades de expressão,
de reunião e de associação.485
Diante de tal contexto, o fortalecimento de um sistema de proteção regional já
existente, como é o caso do SIPDH, e de seus instrumentos normativos, como é o caso da
CADH, se faz necessário para o fortalecimento e consolidação das normas democráticas,
na busca de uma real efetivação de tais direitos. É a partir desse ponto que, na temática
do presente estudo, o SIPDH promulga duas Convenções, no ano de 2013, que
complementam o entendimento do Sistema sobre a CADH. São elas a Convenção
Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de
Intolerância e a Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e
Intolerância.
Apesar de muito semelhantes, inclusive em suas considerações iniciais, o
comentário que deve ser traçado é que, inicialmente, a ideia era de haver apenas uma
convenção que abordasse ambas as questões, porém, não foi possível unificar os dois
conteúdos, em detrimento de nações que não aceitaram ratificar os direitos da população
LGBTQIA+, por isso, a matéria ficou dividida em duas convenções, onde o objeto do

482
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana Sobre Direitos
Humanos. San Jose. 1969. Art. 11
483
Ibid., Art. 24
484
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional: um estudo comparativo dos sistemas
regionais europeu, interamericano e africano. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 154
485
Ibid., p. 154
134

presente estudo será a Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e


Intolerância.

4.1.3 Convenção Interamericana Contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância

A Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e


Intolerância, por sua vez, surge antes mesmo de haver um documento internacional de
mesma disciplina no sistema universal de direitos humanos. Ela foi aprovada pela
Assembleia Ordinária da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 5 de julho de
2013, e se destaca por suas considerações iniciais, que demonstram os novos rumos que
o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos se impõe a adotar.
A primeira das considerações abordadas parte do reconhecimento dos dados
alarmantes de crimes de ódio que são motivados por questões de gênero, sexualidade,
religião, deficiência ou outras condições sociais, e se soma a outra consideração que diz
respeito ao reconhecimento que uma sociedade pluralista e democrática que deve
respeitar a identidade cultural, linguística, religiosa, sexual e de gênero de todos os seus
membros, e que deve criar condições que lhe possibilitem expressar, preservar e
desenvolver sua identidade.486 Uma dessas condições seria a educação como meio de
promoção do respeito aos direitos humanos, da igualdade, da não discriminação e da
tolerância.487
Ademais, no que se refere ao princípio da igualdade, as considerações iniciais
da Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância
evidenciam que é obrigação jurídica dos Estados agir, por meio da adoção de medidas
especiais de proteção aos indivíduos ou grupos que figurem como vítimas de
discriminação ou intolerância, com objetivo de promover condições equitativas que
proporcionem igualdade de oportunidades, e combater todas as manifestações
individuais, estruturais e institucionais de discriminação.488
No que se refere diretamente à conceituação das palavras discriminação e
intolerância, têm-se que a primeira consiste em “qualquer distinção, exclusão, restrição

486
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Interamericana contra Toda
Forma de Discriminação e Intolerância. 2013. Considerações Iniciais
487
Ibid., Considerações Iniciais
488
Ibid., Considerações Iniciais
135

ou preferência, em qualquer área da vida pública ou privada, cujo propósito ou efeito seja
anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de
um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais”489 que estejam estabelecidos
em instrumentos internacionais que possam ser aplicados aos Estados Partes. Também
pode se falar em discriminação indireta, que consiste naquela onde se pratica um critério
aparentemente neutro, mas que pode gerar uma desvantagem para algum indivíduo.490
Enquanto isso, a discriminação pode ser conceituada como “um ato ou conjunto
de atos ou manifestações que denotam desrespeito, rejeição ou desprezo à dignidade,
características, convicções ou opiniões de pessoas por serem diferentes ou contrárias”.491
Este é o primeiro instrumento internacional que leciona sobre os conceitos de
discriminação, atrelando ele a fatores e condições existenciais até então ignorados por
outros instrumentos internacionais, como a orientação sexual e a identidade de gênero.492
Outra característica importante de ser destacada diz respeito ao reforço que tal
Convenção confere aos princípios mais importantes do Direito Internacional, em especial
ao princípio da Igualdade e Não Discriminação, onde a Convenção destaca que deve ser
observado pelos Estados o respeito à igualdade perante a lei e à igual proteção contra
qualquer forma de discriminação ou intolerância, seja ela manifestada em esfera da vida
pública ou privada, e que todos tem direito ao reconhecimento, em condições de
igualdade, de todos os direitos e liberdades fundamentais contidos nas legislações internas
e nos instrumentos internacionais que o Estado reconhecer.493
Nesse sentido, os Estados partes que ratificarem a Convenção Interamericana
contra Toda Forma de Discriminação também se comprometem a adotar uma legislação
que proíba expressamente a discriminação e a intolerância, e que tenha abrangência para
as autoridades públicas e perante todos os indivíduos. Outra obrigação legislativa é a de
revogar todas as legislações que constituam ou produzam algum tipo de discriminação e
intolerância.494 Esse artigo se soma ao artigo 9º, que cuida do comprometimento dos
Estados com a garantia de que os sistemas políticos e jurídicos reflitam a diversidade da

489
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Interamericana contra Toda
Forma de Discriminação e Intolerância. 2013. Artigo 1, item 1
490
Ibid., Artigo 1, item 2
491
Ibid., Artigo 1, item 5
492
NASCIMENTO, João Pedro Rodrigues; MARINO, Tiago Fuchs; CARVALHO, Luciani Coimbra. A
Corte Interamericana de direitos humanos e a proteção dos direitos LGBTI: construindo um Ius
Constitutionale Commune baseado na diversidade. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 11,
n. 2. p.714-735, 2021. p. 725
493
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Interamericana contra Toda
Forma de Discriminação e Intolerância. 2013. Artigo 2
494
Ibid., Artigo 7
136

sociedade495, e que haja um tratamento equitativo e não discriminatório às vítimas de


discriminação e intolerância, que lhes permita um acesso igualitário ao sistema de justiça,
bem como que haja reparação justa nos âmbitos civil e criminal.496
Outrossim, a própria Convenção de 2013 esboça sua preocupação com as ações
afirmativas que o Estado deverá tomar, entendendo que cabe a eles a identificação, por
meio de pesquisas, das causas das manifestações de discriminação e intolerância, e o
comprometimento em adotar ações afirmativas necessárias para assegurar o gozo ou
exercício dos direitos fundamentais, vislumbrando a promoção de condições que
permitam a igualdade de oportunidades.497 Assevera também que tais políticas públicas
não serão consideradas discriminatórias, nem visam a manutenção de direitos separados
para determinados grupos distintos, mas visam o objetivo da reparação e equidade, e se
estenderão por um período razoável até alcançar tal objetivo.498
Importante consideração sobre a Convenção Interamericana contra Toda Forma
de Discriminação é que, até o ano de 2022, apenas doze nações a assinaram, incluindo o
Brasil. Porém, somente dois deles, México e Uruguai, efetivamente o ratificaram.499

4.1.4 Opinião Consultiva de nº 24/2017, da Corte Interamericana de Direitos Humanos

Uma das atribuições da Corte IDH é de expedir Opiniões Consultivas, quando


provocada por algum dos Estados Partes de Organização dos Estados Americanos. A
partir disso, no ano de 2016, o Estado da Costa Rica solicitou à Corte IDH que se
manifestasse sobre o reconhecimento da mudança de nome das pessoas, em conformidade
com sua identidade de gênero, com amparo nos artigos 11.2, 18 e 24 da CADH, bem
como ao reconhecimento dos direitos patrimoniais decorrentes de um vínculo entre
pessoas do mesmo sexo, orientados pelos artigos 11.2 e 24 da CADH.
Advém dessa provocação a Opinião consultiva de número 24/2017, emitida no
mês de dezembro de 2017, onde o órgão jurisdicional aborda os temas da sexualidade e

495
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Interamericana contra Toda
Forma de Discriminação e Intolerância. 2013. Artigo 9
496
Ibid., Artigo 10
497
Ibid., Artigo 5
498
Ibid., Artigo 5
499
Conforme dados contidos no sítio da OEA (https://www.oas.org/en/sla/dil/inter_american_treaties_A-
69_discrimination_intolerance_signatories.asp), consultados em 12 de março de 2022.
137

identidade de gênero a partir de sua interpretação da Convenção Americana, de forma a


atualizar os preceitos ali expostos, traçando uma relação direta com os princípios da
igualdade e não discriminação das pessoas LGBTQIA+, identificando que a noção de
igualdade se deriva da condição humana, e que devem ser reprovados quaisquer atos que
privilegiem um grupo de pessoas em detrimento de outro grupo, por considerar este outro
inferior na sua condição humana, destacando que o entendimento jurisprudencial da Corte
IDH é de que o princípio fundamental da igualdade e discriminação encontra-se no
domínio do jus cogens500, ou seja, se configura como uma regra fundamental ligada à
consciência universal e inerente a qualquer sociedade internacional.501 Para tanto, é dever
dos Estados se abster de criar discriminações de fato ou de direito.
Outro ponto diz respeito diretamente a interpretação do artigo 1.1 da CADH502,
entendido pelo tribunal como norma de caráter geral que se estende sob todas as
disposições desse tratado, e consequentemente de todas as decisões do SIPDH,
estabelecendo uma obrigação à todos os Estados de respeitar a totalidade dos direitos e
liberdades reconhecidas no tratado, sem realizar qualquer discriminação503, e seu
descumprimento, por meio de qualquer tipo desproporcional e desmotivado de
discriminação, pode motivar uma responsabilidade internacional.504
Outrossim, a Corte também entende que as leis internas, as interpretações sobre
as leis, e a própria Convenção se sujeitam ao artigo 24 da CADH, que proíbe a
discriminação de direito, ou seja, uma lei que gere proteção desigual e que propague
discriminações.505
Para a corte, os Estados também têm dever de proteção com relação a ações de
terceiros que favoreçam algum tipo de discriminação, estando obrigado a adotar medidas
positivas para reverter ou mudar as situações discriminatórias já existentes.506 Outra
observação indica que os critérios estabelecidos no artigo 1.1 da CADH não consistem
em uma lista taxativa, mas meramente enunciativa,507 e que as obrigações gerais

500
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva nº 24/2017. Item 61
501
BICHARA, Jahyr-philippe. Direito Internacional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 114
502
Artigo 1. Obrigação de respeitar os direitos - 1. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a
respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que
esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião,
opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou
qualquer outra condição social.
503
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva nº 24/2017. Item 63
504
Ibid., Item 63
505
Ibid., Item 65
506
Ibid., Item 65
507
Ibid., Item 67
138

estabelecidas no artigo 1.1, em consonância com os critérios de interpretação previstos


no artigo 29 da CADH508, proíbem qualquer norma, ato ou prática discriminatória
fundada na orientação sexual ou identidade de gênero dos indivíduos.509 Essa postura é
justificada pelo entendimento que os tratados de direitos humanos são instrumentos que
acompanham a evolução dos tempos e as condições de vida atuais.510

4.2 TUTELA DAS PESSOAS LGBTQIA+ NA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE


INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Juntamente com a Comissão Interamericana, que dispõe de competência


recomendativa aos Estados membros da OEA, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, doravante Corte IDH, compõe o Sistema Interamericano de Proteção aos
Direitos Humanos como o órgão jurisdicional que detém competência consultiva e
contenciosa. Dentre suas atribuições, situa-se a incumbência de pronunciar-se sobre a
interpretação de tratados, de emitir opiniões consultivas - quando questionada por algum
dos Estados membros da OEA -, de investigar e de decidir sobre a violação dos direitos
humanos, fundamentada na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, ou sobre
qualquer direito referido em alguma de suas convenções, como, por exemplo, a
Convenção Interamericana Contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância abordada
anteriormente neste capítulo.511
Antes de adentrar as especificidades de cada caso, é importante relembrar que o
principal elemento que atribui autoridade e relevância a Corte IDH é o reconhecimento
formal, por parte dos Estados, da autoridade da corte e de suas atribuições consultivas,
opinativas e contenciosas. Tal reconhecimento pode ser realizado tanto no ato da
ratificação, como em qualquer momento posterior.

508
Artigo 29. Normas de interpretação - Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido
de: a) permitir a qualquer dos Estados Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e
liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista; b) limitar o gozo
e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos
Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados; c) excluir outros
direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de
governo; d) excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem e outros atos internacionais da mesma natureza.
509
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva nº 24/2017. Item 68
510
Ibid., Item 69
511
BICHARA, Jahyr-philippe. Direito Internacional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 493
139

Nesse sentido, a Corte IDH detém uma natureza de sistema complementar às


instâncias internas dos Estados, que pressupõe o prévio esgotamento da jurisdição interna,
e ausência de iniciativas eficientes por parte dos Estados. A Corte age sobre manifestação
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), após verificação de que os
Estados continuam inertes frente as recomendações desse órgão.
Por sua vez, as decisões da Corte IDH são obrigatórias para os Estados
destinatários, cabendo a eles cumprir com as mais diversas possibilidades de reparação
frente à sua inércia em investigar e punir as violações de Direitos Humanos sofridos por
pessoas individuais ou por coletividades de vítimas. As reparações podem aparecer sob a
forma de reparação financeira das vítimas (obrigação de pagar), sob a forma de fazer
cessar determinados atos governamentais (obrigações de fazer e de não fazer), também
sob a forma de obrigações de reparar ou de criar políticas públicas com a intenção de
corrigir os desequilíbrios gerados por seu sistema normativo ou por seus agentes.512
A partir desse contexto geral de importância da Corte IDH, na última década
podemos destacar um importante movimento de proteção aos direitos das minorias, em
especial se tratando do combate ao racismo, à LGBTfobia, de promoção da igualdade
sexual e do combate a quaisquer tipos de violência e discriminação sofridos nos países
membros da OEA. Para tanto, no ano de 2012 foi proferida a primeira sentença específica
destinada a proteção de uma vítima de preconceito e discriminação em razão de sua
orientação sexual. De lá para cá, já se somam cinco casos emblemáticos com a temática
de proteção das pessoas LGBTQIAP+, onde os Estados foram condenados pela Corte
IDH a reparar suas legislações e suas políticas públicas frente a casos de violência onde
sua participação foi direta, por meio de seus agentes, ou indireta, por meio da inércia e
desinteresse em investigar e punir os envolvidos.
Assim, como se depreenderá da análise a seguir, as sentenças desses casos
apresentam resposta a casos particulares onde houve algum tipo de violência, originário
da discriminação, e que refletem uma cultura e um contexto daquele Estado que está
sendo imputado como responsável. As decisões consistem em contribuições singulares
no que diz respeito a inclusão de direitos de cidadania na agenda política dos países
membros da OEA, trazendo uma interpretação contemporânea dos principais
instrumentos de proteção, em especial da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos
e da leitura especializada dos princípios da igualdade e da não discriminação para esses

512
MOREIRA, Thiago Oliveira. Aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela
jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. p. 78
140

casos, que se torna paradigmática na fundamentação de um sistema de proteção regional


mais capaz em detrimento de todas as formas de violência em razão de orientação sexual
e identidade de gênero.

4.2.1 Caso Atala Riffo e Filhas Vs. Chile

O primeiro caso abordado no presente estudo se passou na República do Chile,


onde os fatos se desenrolaram a partir do ano de 2002, e foi sentenciado pela Corte IDH
no ano de 2012, consistindo em um marco na discussão de temas da nova agenda de
direitos humanos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.513
As circunstâncias narradas a seguir têm como principal vítima a senhora Karen
Atala Riffo, mulher lésbica, juíza de direito, residente na cidade de Villarica, e mãe de
três crianças, referidas no processo a partir das iniciais M., V., e R.. Seu caso foi
submetido à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, pela vítima, na data de 24
de novembro de 2004, sob a justificativa que a República do Chile violou seus direitos
fundamentais durante o processo de guarda das crianças, tendo o caso sido submetido à
todas as instâncias recursais e judiciais do seu país de origem, acarretando em uma
decisão por parte da Suprema Corte do Chile, que levou em consideração sua orientação
sexual para decidir a lide, interferindo de forma repressiva no projeto de vida pessoal e
familiar da vítima.514
A situação de fato ocorre a partir do rompimento do relacionamento entre a
senhora Atala Riffo e o seu ex-marido, o senhor Ricardo Allendez, onde a guarda das
crianças ficou mantida com a senhora Atala, com regime de visita semanal ao genitor. No
mês de novembro de 2002, a senhora Atala iniciou uma nova convivência afetiva, dentro
de sua residência, com uma companheira do mesmo sexo. Posteriormente, no mês de
janeiro de 2003, o ex-companheiro interpôs uma demanda de guarda e tutela perante o
Juizado de Menores da cidade de Vilarrica, justificando que a genitora das crianças não
estaria capacitada para cuidar delas, em razão de sua “nova opção de vida sexual, somada

513
SPINIELI, A. L. P.; CONTREIRAS, A. F. Direitos Sexuais no Sistema Interamericano de Direitos
Humanos: o caso Atala Riffo como expressão da cidadania sexual. Cadernos Eletrônicos Direito
Internacional sem Fronteiras, v. 3, n. 2, p. e20210202, 13 jul. 2021. p.3
514
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Atala Riffo e filhas. Chile. 24
de fevereiro de 2012. p. 4
141

a convivência lésbica com outra mulher”, e que essa convivência “estava provocando
consequências danosas ao desenvolvimento dessas menores de idade”.515
Em sede do procedimento de guarda das crianças menores de idade, o senhor
Ricardo Allendez apresenta a justificativa pela qual pleiteia a guarda de suas filhas,
imbuída de preconceito e discriminação ele afirma que, “atribuir normalidade na ordem
jurídica a casais do mesmo sexo implicava desnaturalizar o sentido de casal humano,
homem-mulher e, portanto, alterava o sentido natural da família, pois afetava os valores
fundamentais da família como núcleo central da sociedade”.516 Em resposta às alegações
do genitor, no decorrer da ação de guarda, o Juizado de Menores de Villarica concedeu a
guarda provisória a ele, considerando que as atitudes da genitora colocaram seus
interesses e bem-estar pessoal acima do bem-estar emocional dos filhos, ocasião em que
a sua convivência afetiva com outra mulher estaria alterando a normalidade da rotina
familiar e o adequado processo de socialização das filhas.517
Ante o exposto, no desencadeamento dos atos processuais, após o deferimento
da guarda provisória em favor do genitor, o Juizado de Menores de Villarica analisa o
mérito e profere, na data de 29 de outubro de 2003, uma decisão declinando a guarda do
genitor, sob o fundamento de que a orientação sexual da senhora Atala não representava
impedimento para a realização de uma maternidade responsável, bem como não
apresentava nenhuma patologia psiquiátrica que a impedisse de exercer seu papel de mãe.
Outrossim, entende também que inexistem fatos que pudessem, de alguma forma,
interferir prejudicialmente no bem-estar dos menores, decorrentes da presença da
companheira da mãe na residência. A decisão também considerou a vontade das crianças
de retornar a morar com a genitora.518
A reação do pai das crianças à sentença de mérito se deu por meio de mandado
de segurança provisório impetrado em desfavor da decisão de mérito, este que foi
considerado procedente, lhe conferindo a manutenção da guarda. Em sede de apelação, o
Tribunal de Recursos de Temuco confirmou a sentença proferida pelo Juizado de
Menores de Villarica, reiterando a decisão de primeira instância e tornando sem efeito o
mandado de segurança impetrado pelo genitor.519Ainda inconformado com a decisão de

515
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Atala Riffo e filhas. Chile. 24
de fevereiro de 2012. p. 14
516
Ibid., p. 14
517
Ibid., p. 16
518
Ibid., p. 18
519
Ibid., p. 20
142

mérito proferida pelo Juizado de Menores de Villarica e da decisão da apelação proferida


pelo Tribunal de Recursos de Temuco, na data de 5 de abril de 2004 o pai das crianças
apresentou recurso de queixa contra o Tribunal de Temuco, perante a Corte Suprema do
Chile. Em seus fundamentos, alega que os magistrados recorridos cometeram “falta e
abuso grave e notório” por terem privilegiado os direitos da genitora sobre as crianças,
por terem faltado com seu dever legal.520
Subsequentemente, na data de 31 de Maio de 2004, a Corte Suprema do Chile,
por meio de sua quarta câmara, resolve acolher o recurso de queixa concedendo a guarda
definitiva ao genitor, por três votos a dois.521 Consta na razão de decidir da Corte
Suprema, o entendimento de que as crianças se encontravam em “situação de risco”, e
que seu ambiente excepcional de convivência com a genitora e a companheira se
distinguia do ambiente de seus colegas da escola e vizinhos, podendo afetar seu
desenvolvimento pessoal.522
Nessa ocasião, a vítima submeteu o caso à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, e na data de 23 de julho de 2008 o referido órgão aprovou o Relatório de
Admissibilidade nº 42/08, seguido do Relatório de Mérito nº 139/09, em 18 de dezembro
de 2009, fundamentado no artigo 50 da Convenção Americana.
Passado um ano da expedição do relatório, em 17 de dezembro de 2010 a CIDH
deliberou que os Estados não cumpriram com as recomendações estabelecidas no
Relatório de Mérito, ocasião em que submeteu o caso ao julgamento pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Constam como fundamentos para a submissão do
caso ao órgão jurisdicional as alegações da Comissão Interamericana de que o Estado
chileno detém responsabilidade internacional pelo tratamento discriminatório e pela
interferência arbitrária na vida privada e familiar da senhora Atala Riffo e suas filhas, e
de que o Estado não observou o melhor interesses das crianças, descumprindo suas
recomendações com base em supostos preconceitos e discriminações.523
Ademais, o órgão fundamenta juridicamente as violações de direitos humanos
sofridas pelas vítimas, apontando que houve violação nos seguintes artigos da Convenção
Americana: artigo 11 (Proteção da honra e da dignidade), 17.1 e 17.4 (Proteção da
família), 19 (Direitos da criança), 24 (Igualdade perante a lei), 8 (Garantias judiciais) e

520
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Atala Riffo e filhas. Chile. 24
de fevereiro de 2012. p. 21
521
Ibid., p. 21
522
Ibid., p. 21
523
Ibid., p. 4
143

25.1 e 25.2 (Proteção judicial) da Convenção, em relação ao artigo 1.1 da CADH.


Complementarmente, a Comissão também requereu à Corte que fossem deferidas
medidas de reparação aos danos sofridos pela senhora Atala.524
Posteriormente, em 19 de outubro de 2010, o Estado e os Representantes das
vítimas foram notificados da submissão do caso à Corte, ocasião em que, em 25 de
dezembro de 2010, os representantes apresentaram seu escrito de petições, argumentos e
provas, declarando sua concordância com os artigos e os fatos apresentados na demanda,
e solicitando ao tribunal que declarasse a responsabilidade internacional do Chile pela
violação dos artigos da CADH.525
O Estado chileno somente se pronunciou em 11 de março de 2011, apresentando
seu escrito de contestação à demanda proposta pela Comissão, e tecendo considerações
sobre os escritos de petições, argumentos e provas elaborados pelos representantes. Nesse
sentido, questionou todos os pedidos realizados e negou sua responsabilização
internacional, requerendo a desconsideração de todas as reparações solicitadas.526
No que se refere ao procedimento perante a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, seu Presidente ordenou a recepção de diversos depoimentos, e convocou as
partes para audiência durante o 92º Período Ordinário de Sessões da Corte, realizado nas
datas de 23 e 24 de agosto de 2011, em Bogotá, Colômbia.527 Ainda no ano de 2011, o
genitor das crianças solicitou sua incorporação como terceiro interveniente, sua
colaboração com o escrito do Estado chileno, a anulação de todos os autos do processos
perante a Comissão e a Corte e a participação das menores de idade e da representação
legal por parte do pai no processo perante a Corte.528
As alegações foram respondidas pelo tribunal, que conferiu o direito às crianças
de serem ouvidas perante a Corte, afirmando também que o tribunal não detém
competência para atender solicitações de terceiros que não estejam classificados como
representantes dos Estado ou representantes das vítimas; que a Corte não encontrou
nenhuma irregularidade na forma com que foram realizadas as notificações. Ademais,
não foi aceita a participação do genitor das crianças como terceiro interveniente, e,

524
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Atala Riffo e filhas. Chile. 24
de fevereiro de 2012. p. 87
525
Ibid., p. 4
526
Ibid., p. 4
527
Ibid., p. 5
528
Ibid., p. 6
144

portanto, entendeu o órgão que este não se encontraria legitimado para apresentar provas
e argumentos.529
Isto posto, em 24 de fevereiro de 2012, a Corte IDH profere a sentença do caso
Atala Riffo. Em seus termos, o documento reconhece, por unanimidade, a
responsabilidade do Estado chileno pelas violações de direitos humanos a seguir listados:
violação do direito à igualdade e à não discriminação, que está disciplinado no artigo 24
da Convenção Americana de Direitos Humanos, relacionando este direito ao que está
disposto no artigo 1.1 da Convenção, também se aplicando, concomitante com o artigo
19 (direitos das crianças), às Crianças M. V. e R.530 Também decidiu que o Estado foi
responsável pela violação do direito à vida privada, consagrado no artigo 11.2; pela
violação do direito de ser ouvida, consagrado no artigo 8.1; pela violação da garantia de
imparcialidade, também consagrada no artigo 8.1, no que diz respeito às investigações
disciplinares realizadas em detrimento de Karen Atala Riffo. Além disso, por cinco votos
a favor e um contra a Corte decidiu que o Estado “não violou a garantia judicial de
imparcialidade, consagrada no artigo 8.1 da Convenção Americana, em relação às
decisões da Corte Suprema de Justiça e do Juizado de Menores de Villarrica”.531
Quanto ao cumprimento da sentença, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos emitiu, no ano de 2013, uma resolução de cumprimento indicando a supervisão
das cinco medidas de reparação elencadas na sentença. Esse documento faz parte do
exercício da função jurisdicional de supervisão do cumprimento das decisões, inerente à
Corte IDH.532 Ademais, das cinco medidas de reparação que foram propostas, o Estado
chileno deu cumprimento total a três delas, restando pendentes a prestação de atendimento
médico e psicológico gratuito às vítimas que o solicitarem, assim como a medida de
conferir capacitação de funcionários públicos nos níveis regional e nacional, e em especial
aos funcionários do judiciário de todas as áreas e escalões do poder judiciário.533
Mais tarde, no ano de 2017, foi emitida outra resolução de cumprimento, onde
ficou assentado que o Estado chileno cumpriu, de forma integral, a medida de reparação
relativa ao fornecimento de serviços médicos, psicológicos ou psiquiátricos às quatro

529
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Atala Riffo e filhas. Chile. 24
de fevereiro de 2012. p. 6
530
Ibid., p. 87
531
Ibid., p. 88
532
Conforme artigo 68.1 da Convenção Americana, “Os Estados Partes na Convenção comprometem-se a
cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes”.
533
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório de monitoramento, caso Atalla
Riffo e Filhas vs. Chile (2013)
145

vítimas, por quatro anos ininterruptos. De resto, no tocante à capacitação de servidores


quanto à não discriminação, o Chile destacou alguns cursos oferecidos a funcionários
judiciais, assim como a parceria firmada entre o Alto Comissariado das Nações Unidas
para os direitos humanos e a Academia Judicial, e alega que várias secretarias e
ministérios têm realizado atividades de capacitação de seus funcionários.534
Além disso, se faz importante reconhecer que apesar dos avanços trazidos por
tais programas de ação, eles ainda não consistem no efetivo cumprimento da sentença,
em razão de não se configuram como medidas permanentes que atinjam funcionários
públicos a nível regional e nacional, conforme estabelecido na sentença. Assim, em suas
considerações finais, a Corte estabeleceu que ainda é necessário que o Chile aponte todas
as medidas adotadas para cumprir a reparação que ainda se encontra pendente de
cumprimento.535

4.2.2 Caso Duque Vs. Colômbia

Cronologicamente, o segundo caso analisado é o Caso Duque Vs. Colômbia, que


diz respeito aos fatos sofridos pela vítima Ángel Alberto Duque, homem homossexual
residente na Colômbia, e que tinha como parceiro o senhor “J.O.J.G.”, tendo convivido
em união até a data de 15 de setembro de 2001, quando o senhor J.O.J.G veio a óbito
como consequência da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA). Evidencia-se
que o senhor “J.O.J.G.” era filiado à Compañía Colombiana Administradora de Fondos
de Pensiones y Cesantías (COLFONDOS S.A.).536
Destaca-se que o Senhor Duque também era portador da referida Síndrome,
tendo ingressado no programa de “ETS-VIH/SIDA” em 4 de agosto de 1997, quando
iniciou seu tratamento medicamentoso antirretroviral, o qual não deveria ser suspendido,
podendo ocasionar-lhe risco de morte. Ademais, o senhor Duque era dependente

534
ARAÚJO, Ygor; GURGEL, Yara; MOREIRA, Thiago. O princípio da igualdade e não discriminação
no combate a discriminação em razão de orientação sexual e identidade de gênero a partir das decisões da
Corte IDH. In: GURGEL, Yara; MAIA, Catherine; MOREIRA, Thiago. Direito Internacional dos Direitos
Humanos e Pessoas em Situação de Vulnerabilidade. Vol. 3. Natal: Polimatia, 2022, p. 287–324. p. 310
535
Ibid., p. 310
536
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Ángel Alberto Duque.
Colômbia. 26 de fevereiro de 2016. p. 18
146

economicamente de seu companheiro, e, sem a pensão por morte, estaria impossibilitado


de dar continuidade ao seu tratamento.537
Ante o falecimento do seu companheiro, em 19 de março de 2002, o senhor
Duque solicitou, perante a COLFONDOS S.A., que lhe fossem indicados os requisitos
para obtenção da pensão por sobrevivência em relação ao seu companheiro. Em 3 de abril
de 2002, a COLFONDOS responde que, conforme estabelecido no artigo 74 da Lei 100
de 1993, que dispõe sobre os beneficiários de pensão de sobrevivência, na qualidade
cônjuge ou companheiro sobrevivente, a lei compreende apenas as uniões entre um
homem e uma mulher, não contemplando a união entre pessoas do mesmo sexo.538
Ante a negativa recebida pelo senhor Duque, em 26 de abril de 2002 ele propôs
uma ação cautelar solicitando o deferimento antecipado da pensão enquanto aguardava a
decisão judicial definitiva, argumentando que formava uma família com o senhor J.O.J.G,
que não tinha renda própria e que vivia com o vírus HIV, necessitando de tratamento
medicamentoso ininterrupto. Também argumentou, em sede liminar, que a não concessão
de pensão consiste em uma violação do seu direito à vida, à igualdade, ao direito de
constituir família, ao livre desenvolvimento de sua personalidade, direito a segurança
pessoal, a proibição de tratamento degradante, a liberdade de consciência, diversidade
cultural e dignidade humana.539
Em 5 de junho, a Décimo Civil Municipal de Bogotá denegou sua tutela
provisória, argumentando que o autor do requerimento não se encaixa nas qualidades que
a lei exige para recebimento de pensão, que inexiste norma ou jurisprudência que
reconheça esse direito a casais homoafetivos, e que, apesar de a união entre pessoas do
mesmo sexo ser uma realidade social, ainda se espera que em algum momento os
legisladores se pronunciem sobre a possibilidade de pensão para essas pessoas,
concluindo pela improcedência da ação.540
O senhor Duque ainda peticionou tentando impugnar a decisão, esta que foi
confirmada pelo Juzgado Doce Civil del Circuito de Bogotá afirmando que não se
verificava a violação de nenhum dos direitos fundamentais previstos constitucionalmente,
quando na verdade se tratava da pretensão de direitos eminentemente patrimoniais, de
modo que seriam concedidos apenas a quem cumprisse os requisitos legais. Sobre isso,

537
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Ángel Alberto Duque.
Colômbia. 26 de fevereiro de 2016. p. 8
538
Ibid., p. 21
539
Ibid., p. 24
540
Ibid., p. 24
147

afirma que o ente previdenciário teria acertado em negar a pensão do cidadão, pois a
pensão de sobrevivência tem a função de proteger a família, entendida pela união entre
homem e mulher e com função de conservar a espécie através da procriação. Portanto, até
aquele momento, as uniões entre pessoas do mesmo sexo não constituem família, sendo
apenas relações íntimas.541 Em 26 de agosto de 2002, a demanda foi interposta perante a
Corte Constitucional Colombiana, porém, este órgão trabalha com a seleção de casos para
estudo e revisão, e o caso do senhor Duque não foi selecionado.542
Partindo-se dos fatos narrados, na data de 8 de fevereiro de 2005 a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) recebeu a petição referente ao caso do
senhor Ángel Alberto Duque, apresentada pela Comissão Colombiana de Juristas e por
Germán Humberto Rincón Perfetti, a qual foi admitida em 2 de novembro de 2011 por
meio do Informe de Admissibilidade Nº. 150/11.543 Em 2 de abril de 2014 a Comissão
emitiu o Informe de Fondo nº 5/14 (relatório de mérito), nos termos do artigo 50 da
Convenção Americana544, concluindo que o Estado colombiano era responsável pela
violação do direito a integridade pessoal da vítima, fundamentado no artigo 5.1 da CADH,
que o Estado também violou os direitos as garantias judiciais e a proteção judicial,
estabelecidos nos artigos 8.1 e 25 da CADH545, e o princípio da igualdade e não
discriminação, estabelecido no artigo 24, relacionado com o artigo 1.1 e artigo 2º da
CADH, que versam, respectivamente, sobre o comprometimento dos Estados em
respeitar os direitos reconhecidos pela Convenção e de adotar suas disposições no direito
interno.546
Ademais, o Relatório de Mérito nº 5/14 também estabelece conclusões e elabora
recomendações ao Estado da Colômbia, fundamentado na interpretação da Comissão de
que a denegatória da pensão recebida pela vítima teve como fundamento a orientação
sexual do falecido e do beneficiário. Desta feita, a CIDH entendeu que senhor Duque foi
vítima de discriminação, por razão de sua orientação sexual, fundamentado no conceito

541
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Ángel Alberto Duque.
Colômbia. 26 de fevereiro de 2016. p. 24-25
542
Ibid., p. 25
543
Ibid., p. 4
544
Ibid., p. 4
545
Ibid., p. 4 e 5
546
Ibid., p. 4 e 5
148

restritivo de família adotado pelo Estado colombiano547, e em uma legislação sobre


seguridade social que dispõe de um viés estereotipado e restritivo.548
Ainda nesse sentido, a Comissão sugere, como forma de reparação pelos danos
causados à vítima, que fosse concedida a pensão pleiteada pelo senhor Duque, assim
como o seu amplo acesso aos serviços de saúde. Também recomendou que o Estado
colombiano promovesse a capacitação profissional de todos os empregados do sistema de
seguridade social, com a finalidade de extinguir o tratamento desigual e discriminatório
às pessoas homossexuais, inclusive tramitando todas as solicitações que estivessem
pendentes549, de forma a adotar todas as medidas estatais necessárias para que não fossem
repetidas as violações de direitos fundamentais expressos na CADH550, indicando,
expressamente, os direitos de igualdade, de não discriminação, de integridade pessoal,
assim como as garantias judiciais e à proteção judicial dispostos no referido
instrumento.551
Mesmo após todas as recomendações, o Estado colombiano manteve seu
posicionamento estático, não aderindo às recomendações proferidas pela CADH, fatores
estes que motivaram a submissão do caso, em 21 de outubro de 2014, à Corte IDH, tendo
sido notificados o Estado e os representantes das vítimas em 11 de novembro de 2014.
Importante destacar que a Corte é competente para julgar o caso, pois a Colômbia é um
Estado parte da Convenção Americana desde 31 de julho de 1973, tendo reconhecido a
competência obrigatória da Corte em 21 de junho de 1985.552
A submissão se fundamentou nos mesmos dispositivos indicados pela CIDH,
indicando as possíveis violações de garantias judiciais e da proteção judicial, esteada nas
alegações de violação aos artigos 8.1 e 25 da convenção, em razão da não existência de
um recurso interno efetivo para contestar a pensão de sobrevivência.553

547
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Ángel Alberto Duque.
Colômbia. 26 de fevereiro de 2016. p. 4
548
ARAÚJO, Ygor; GURGEL, Yara; MOREIRA, Thiago. O princípio da igualdade e não discriminação
no combate a discriminação em razão de orientação sexual e identidade de gênero a partir das decisões da
Corte IDH. In: GURGEL, Yara; MAIA, Catherine; MOREIRA, Thiago. Direito Internacional dos Direitos
Humanos e Pessoas em Situação de Vulnerabilidade. Vol. 3. Natal: Polimatia, 2022, p. 287–324. p. 310
549
Ibid., p. 311
550
RIOS, Roger Raupp et al. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a discriminação contra
pessoas LGBTTI: panorama, potencialidade e limites. Revista Direito e Práxis [online]. 2017, v. 8, n. 2
[Acessado 10 outubro 2021], pp. 1545-1576. Disponível em: <https://doi.org/10.12957/dep.2017.28033>.
Epub Apr-Jun 2017. ISSN 2179-8966. https://doi.org/10.12957/dep.2017.28033. p. 1562
551
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Ángel Alberto Duque.
Colômbia. 26 de fevereiro de 2016. p. 9
552
Ibid., p. 7
553
Ibid., p. 40-41
149

Ademais, em 12 de janeiro de 2015 os representantes das vítimas apresentaram


sua petição contendo o resumo de pedidos, argumentos e provas, conforme os artigos 25
e 40 do regulamento da Corte, e em 1 de abril do ano de 2015 o Estado colombiano
apresentou contestação, alegando a não esgotabilidade das instâncias recursais internas,
bem como que a jurisprudência nacional se encontrava a favor do senhor Duque, e que a
sua solicitação seria razoável.554
Tal justificativa só poderia ser possível, no ano de 2015, pois a jurisprudência da
Corte Constitucional Colombiana reconheceu, entre os anos de 2008 e 2010, a expansão
dos benefícios previstos e concedidos para as pessoas heterossexuais, também os
estendendo às pessoas homossexuais. Importante reiterar que o senhor Duque solicitou a
pensão no ano de 2005, e que essa informação sobre a razoabilidade do pleito somente
foi proferida no ano de 2015, perante o procedimento ante a Corte IDH.555
Sobre essa situação, a Corte alegou que, em que pese a sentença proferida em
âmbito interno tenha sido emitida antes da admissibilidade da Corte para o caso, ela
deveria ter sido comunicada à comissão interamericana tempestivamente, o que não foi
realizado, portanto, os argumentos de fato e direito sobre a não competência da Corte
mostraram-se extemporâneos.556
Ante o exposto, na data de 26 de fevereiro de 2016 foi proferida pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos a sentença referente ao caso Duque vs. Colômbia,
elucidando que a orientação sexual e a identidade de gênero são categorias protegidas
pela Convenção Americana de Direitos Humanos, e que nenhuma decisão ou norma de
direito interno pode diminuir ou restringir os direitos de uma pessoa a partir desses
critérios de personalidade.557 Em sua decisão, a Corte fundamenta o mérito da causa no
direito à igualdade perante a lei e à não discriminação, nos termos do artigo 24 da CADH.
Também confirma que foram violados os direitos a integridade pessoal e a vida,
consagrados nos artigos 4.1 (direito à vida) e 5.1 (respeito à integridade física, psíquica e
moral) da CADH concomitantes com o artigo 1, parágrafo 1, referente ao

554
RIOS, Roger Raupp et al. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a discriminação contra
pessoas LGBTTI: panorama, potencialidade e limites. Revista Direito e Práxis [online]. 2017, v. 8, n. 2
[Acessado 10 outubro 2021], pp. 1545-1576. Disponível em: <https://doi.org/10.12957/dep.2017.28033>.
Epub Apr-Jun 2017. ISSN 2179-8966. https://doi.org/10.12957/dep.2017.28033. p. 1561
555
ARAÚJO, Ygor; GURGEL, Yara; MOREIRA, Thiago. O princípio da igualdade e não discriminação
no combate a discriminação em razão de orientação sexual e identidade de gênero a partir das decisões da
Corte IDH. In: GURGEL, Yara; MAIA, Catherine; MOREIRA, Thiago. Direito Internacional dos Direitos
Humanos e Pessoas em Situação de Vulnerabilidade. Vol. 3. Natal: Polimatia, 2022, p. 287–324. p. 311
556
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Ángel Alberto Duque.
Colômbia. 26 de fevereiro de 2016. p. 9
557
Ibid., p. 33
150

comprometimento dos Estados signatários em respeitar os direitos nela previstos.558 A


sentença foi acolhida por 4 juízes, e dois juízes apresentaram divergências.
Assim, como medidas de reparação, foi estabelecido que a vítima deveria ter um
trâmite prioritário em sua pretensão de pensão por morte, assim como teria direito a
receber, a título de dano imaterial, e uma indenização de USD$ 10.000 dólares, devendo
ser comprovado o cumprimento por meio de relatório no prazo de um ano.559
Outrossim, analisando o cumprimento da sentença, no ano de 2018 foi publicada
resolução de cumprimento, por onde o tribunal considerou o cumprimento parcial da
sentença, em razão da implementação da pensão de sobrevivência devida ao Sr. Duque,
que fora cumprida dois meses após solicitado, tendo ocorrido dentro do prazo estipulado
pela Corte, de três meses, restando pendentes de pagamento os juros moratórios.560
Posteriormente, no ano de 2020, a Corte publicou uma nova resolução de
cumprimento, onde declarou que foram quitados todos os juros moratórios referentes ao
período compreendido desde o ano de 2002, quando a vítima apresentou seu requerimento
inicial de pensão de sobrevivência. Portanto, mediante tal adimplemento, a Corte
Interamericana declarou o presente caso concluído, em decorrência da obediência integral
as medidas de reparação estabelecidas na sentença.561

4.2.3 Caso Azul Rojas Marín e Outros Vs. Peru

Este caso refere-se à prisão arbitrária da Sra. Azul Rojas Marín, na data de 25 de
fevereiro de 2008, por agentes estatais do Peru. Conforme apurado pela Comissão
Interamericana, e exposto na denúncia perante a Corte IDH, a vítima foi detida de forma
ilegal, arbitrária e discriminatória pela Delegacia de Casa Grande, na referida data, e
submetida a violências físicas e psicológicas. Nesses termos, a Comissão Interamericana
assevera que “a natureza e a forma como essa violência foi exercida, havia uma crueldade
especial com a identificação ou percepção de Azul Rojas Marín, naquele momento, como

558
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Ángel Alberto Duque.
Colômbia. 26 de fevereiro de 2016. p. 53
559
RIOS, Roger Raupp et al. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a discriminação contra
pessoas LGBTTI: panorama, potencialidade e limites. Revista Direito e Práxis [online]. 2017, v. 8, n. 2
[Acessado 10 outubro 2021], pp. 1545-1576. Disponível em: <https://doi.org/10.12957/dep.2017.28033>.
Epub Apr-Jun 2017. ISSN 2179-8966. https://doi.org/10.12957/dep.2017.28033. p. 1562
560
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório de monitoramento, caso Duque
Vs. Colômbia. 2018.
561
Ibid.,
151

homem gay”.562 Ressalta-se que, atualmente, a Sra. Azul Rojas passou se entender como
mulher transexual.563
No mais, após as violências sofridas pela vítima, ela afirma que tentou denunciar
a violência sofrida perante a Delegacia de Polícia Nacional, em Casa Grande, na data de
27 de fevereiro de 2008, mas o órgão se recusou a receber tal denúncia, ocasião em que
ela recorreu a mídia para denunciar os fatos.564 Em 29 de fevereiro a vítima realizou
exame pericial e uma avaliação psicológica, de onde foi possível determinar que ela
apresentava “lesões traumáticas extragenitais recentes, causadas por outra pessoa”565,
assim como “fissuras anais mais antigas, com sinais de um ato sexual antinatural
recente”.566 A avaliação psicológica, por sua vez, consumou que ela necessitava de apoio
psicoterapêutico, sugerindo também que os supostos agressores fossem submetidos a uma
avaliação psicológica.567
No mais, em 24 de março de 2008 o promotor de justiça instaura procedimento
visando investigar, de forma preliminar, os policiais da Delegacia de Casa Grande pelo
cometimento dos delitos “contra a liberdade sexual por estupro”, em desfavor da senhora
Azul Rojas Marín.568 Em 31 de março do mesmo ano, as autoridades denunciadas pela
senhora Azul se manifestaram apontando contradições nas diferentes denúncias
realizadas pela vítima, assim como se defenderam das acusações alegando que ela se feriu
com objetivo de causar lesões anais para prejudicar o policial que a prendeu e os outros
policiais que a levaram para a cela onde ela permaneceu por algumas horas.569
Em 2 de abril de 208, o promotor ordenou a abertura de um inquérito preliminar
para apuração dos crimes contra liberdade sexual e por estupro qualificado e abuso de
autoridade por parte dos três policiais apontados pela vítima.570 A vítima também tentou
incluir o crime de tortura nas investigações, mas o promotor do caso não acolheu tal
pedido.571 Ademais, em 21 de outubro de 2008, a Segunda Promotoria Penal Coorporativa
Provincial requereu a extinção do processo contra os três policiais, e em 9 de janeiro de
2009 o Juizado de Primeira Instrução de Ascope declarou o pedido do Ministério Público

562
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Azul Rojas Marín e Outros.
Peru. 12 de março de 2020. p. 4
563
Ibid., p. 16
564
Ibid., p. 17
565
Ibid., 17
566
Ibid., 17
567
Ibid., p. 17
568
Ibid., p. 17
569
Ibid., p. 17
570
Ibid., p. 17
571
Ibid., p. 18
152

procedente, extinguindo os autos.572 Para tanto, o juízo argumentou que um dos acusados
era testemunha importante em um processo penal contra um dos irmãos da senhora Azul,
e que ela havia voltado ao seu trabalho habitual em 25 de fevereiro, utilizando-se de força
física para tanto, e que essa atitude seria incompatível com os ferimentos decorrentes do
abuso sexual que a vítima alegava ter sofrido.573
Ademais, em 15 de abril de 2009 a Coordenadora Nacional de Direitos
Humanos, o Centro de Promoção e Defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos e Redress
Trust submeteram uma petição inicial à Comissão Americana, que foi admitida em 6 de
novembro de 2014. Em 24 de fevereiro de 2018 foi aprovado o Relatório de Mérito nº
24/18 que proferiu algumas recomendações ao Peru, dos quais o Estado apresentou várias
informações sobre medidas adotadas para não repetição do caso, assim como informou
da reabertura das investigações, mas não indicou nenhuma reparação a vítima.574
Nesse contexto, a Comissão Interamericana submeteu o Caso da senhora Azul
Rojas Marín contra o Estado do Peru à Corte IDH, na data de 22 de agosto de 2018,
denunciando os atos de violência sofridos pela vítima e alegando que o Estado não foi
diligente com o seu dever de investigar, resultando em impunidade.575 Nesses termos,
considerou que o Estado violou as obrigações de cuidar e proteger a vítima de violência
sexual, ainda mais quando ela possui agravante discriminatório de ser uma pessoa
LGBTQIAP+.576
Em sua defesa perante a Corte, o Estado peruano alega que não houve
esgotamento das instâncias internas para discussão do caso, assim como que não
procedem as alegações de que a motivação das intervenções sofridas pela senhora Rojas
Marín seria decorrente de sua condição como LGBTQIAP+. Alega que o principal motivo
de sua detenção seriam suas atitudes suspeitas, por ela se encontrar sem seus documentos
e com hálito alcoólico.577
No mais, a Corte também apurou o contexto em que a vítima estava inserida, em
especial culturalmente, de onde levantou dados que comprovam a existência de inúmeros

572
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Azul Rojas Marín e Outros.
Peru. 12 de março de 2020. p. 19
573
Ibid., p. 19
574
Ibid., p. 4
575
Ibid., p. 57
576
ARAÚJO, Ygor; GURGEL, Yara; MOREIRA, Thiago. O princípio da igualdade e não discriminação
no combate a discriminação em razão de orientação sexual e identidade de gênero a partir das decisões da
Corte IDH. In: GURGEL, Yara; MAIA, Catherine; MOREIRA, Thiago. Direito Internacional dos Direitos
Humanos e Pessoas em Situação de Vulnerabilidade. Vol. 3. Natal: Polimatia, 2022, p. 287–324. p. 313
577
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Azul Rojas Marín e Outros.
Peru. 12 de março de 2020. p. 32-33
153

relatos de violência em decorrência do preconceito contra identidade de gênero e


sexualidade no Estado do Peru. No mais, cita uma pesquisa conduzida pelo Instituto
Nacional de Estatística e Informática, no ano de 2017, onde 62,7% das pessoas
LGBTQIAP+ indicaram terem sido vítimas de violência ou discriminação, sendo 17,7%
vítimas de violência sexual. Apurou também que apenas 4,4% do número total de vítimas
relataram o fato às autoridades, e, destes, 27,5% indicaram ter sido trataram mal e 24,4%
indicaram ter sido maltratados no local onde relataram.578
Portanto, frente os dados alarmantes e as comprovações acerca dos relatos
proferidos pela Sra. Rojas Marín, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, na data
de 12 de março de 2020, profere a sentença condenando o Estado do Peru pelas violações
de direitos humanos contra a senhora Azul Rojas Marín, rejeitando as alegações do Estado
de que os recursos internos não haviam sido esgotados, e condenando o Peru pela violação
dos direitos reconhecidos nos artigos 7.1 (direito à liberdade e segurança pessoais), 7.2
(privação da liberdade física), 7.3 (detenção e encarceramento arbitrário) e 7.4 (toda
pessoa detida deve ser informada das razões de sua detenção) da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, levando-se em consideração as obrigações de respeitar e garantir
esses direitos sem discriminação, em conformidade com o Art. 1.1 (comprometimento
dos Estados a respeitar os direitos estabelecidos na Convenção) do mesmo tratado.579
Ademais, a Corte também responsabilizou o Peru pela violação dos direitos
estabelecidos nos artigos 5.1 (respeito a integridade física, psíquica e moral), 5.2
(ninguém deve ser submetido à torturas) e 11 (proteção da honra e da dignidade) da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no que se refere às ao obrigações de
respeitar e garantir esses direitos sem discriminação, consagrados nos artigos 1 e 6 da
Convenção Interamericana contra a Tortura, em prejuízo da Sra. Azul Rojas Marín.580
Também reconheceu a responsabilidade do Estado pela violação dos direitos
reconhecidos nos artigos 8.1 (direito de ser ouvido) e 25.1 (Proteção judicial) da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação às obrigações respeitar e
garantir esses direitos sem discriminação e adotar disposições de direito interno,
consagrado nos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a
Tortura, em detrimento da Azul Rojas Marín, bem como violação do direito consagrado

578
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Azul Rojas Marín e Outros.
Peru. 12 de março de 2020. p. 15
579
Ibid., p. 77
580
Ibid., p. 77
154

no artigo 5.1 (respeito a integridade física, psíquica e moral) da Convenção Americana


sobre Direitos Humanos, em prejuízo de Juana Rosa Tanta Marín.581
Importante destacar as considerações traçadas pelo órgão jurisdicional, quanto
ao princípio igualdade e não discriminação, que levam em consideração o contexto social
e cultural que as pessoas LGBTQIAP+ estão historicamente submetida, e a sujeição
dessas pessoas a discriminação estrutural, estigmatização, estando sujeitas a diversas
violações de seus direitos fundamentais.582 Assevera também que a Convenção
Americana de Direitos Humano protege a identidade de gênero, e que a violência
direcionada a essas vítimas tem o objetivo de transmitir uma mensagem de exclusão e de
subordinação.583
No que se refere as resoluções de supervisão de cumprimento, na data de 5 de
abril de 2022 a Corte IDH proferiu a mais recente resolução, que conclui que o Estado do
Peru cumpriu as medidas de publicação e difusão da sentença no Diário Oficial “El
Peruano” e nos jornais “La Republica” e “La Industria”, assim como manteve publicado
o conteúdo integral da sentença no sítio oficial do Ministério da Justiça e Direitos
Humanos.584
Ademais, mantém-se em aberto outras medidas da sentença, ainda não
cumpridas, como a promoção e a continuidade das investigações para julgar e
responsabilizar os autores das violações de Direitos Humanos; realizar um ato público de
reconhecimento da responsabilidade internacional; fornecer tratamento médico e
psicológico gratuito, imediato e efetivo a Azul Rojas Marín; adotar um protocolo de
investigação e administração de justiça durante o processos penal, para casos de pessoas
LGBTQIAP+ vítimas de violências; criar e implementar um plano de capacitação
destinado a funcionários da Polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário sobre
não discriminação em razão de orientação sexual e identidade de gênero; implantar um

581
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Azul Rojas Marín e Outros.
Peru. 12 de março de 2020. p. 77
582
ARAÚJO, Ygor; GURGEL, Yara; MOREIRA, Thiago. O princípio da igualdade e não discriminação
no combate a discriminação em razão de orientação sexual e identidade de gênero a partir das decisões da
Corte IDH. In: GURGEL, Yara; MAIA, Catherine; MOREIRA, Thiago. Direito Internacional dos Direitos
Humanos e Pessoas em Situação de Vulnerabilidade. Vol. 3. Natal: Polimatia, 2022, p. 287–324. p. 315
583
DERECHO GLOBAL. ESTUDIOS SOBRE DERECHO Y JUSTICIA. Guadalajara: Universidad
de Guadalajara, v. 5, n. 15, 2020. Semestral. Sentencias de La Corte Interamericana de Derechos Humanos.
Disponível em: http://www.derechoglobal.cucsh.udg.mx/index.php/DG/issue/view/15. Acesso em: 05 mar.
2022.
584
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Resolução de supervisão de cumprimento.
Caso Azul Rojas Marín vs. Peru. 2022. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/supervisiones/azulrojas_05_04_22.pdf Acesso em: 3 de maio de 2023.
155

sistema de coleta de dados estatísticos sobre violência contra pessoas LGBTQIAP+;


eliminar dos planos de segurança o indicador de “erradicação de homossexuais e
travestis”; pagar as indenizações estabelecidas na sentença; reembolsar as custas e gastos
processuais.585

4.2.4 Caso Flor Freire vs. Equador

Este caso diz respeito aos fatos ocorridos em 19 de novembro do ano de 2000,
na Base Militar do Amazonas, localizada na cidade de Shell, província de Pastaza, no
Equador. Para este caso são apresentadas duas versões, de onde a Corte descreve as duas
em sua sentença, afirmando que não dispõe de provas para rejeitar nenhuma delas.
A primeira versão parte de vários militares, os quais afirmam que avistaram o
senhor Homero Flor Freire e um outro soldado tendo relações sexuais nas dependências
da Base Militar. Enquanto isso, na segunda versão, proveniente do Senhor Flor Freire,
este afirma que na data de 19 de novembro de 2000 ele exercia a função de Policial Militar
quando, por volta das 5 horas e vinte minutos, estava na porta do Coliseu da cidade de
Shell, quando avistou um outro soldado embriagado, em situação problemática com
outras pessoas após retornar de um baile, ocasião em que o soldado colocava em risco
sua integridade física e a integridade e o prestígio de suas atividades militares.
Nesses termos, afirma o senhor Flor Freire que resolveu conduzir o militar até a
Base Amazonas, e deixá-lo na Casa da Guarda sob os cuidados dos oficiais de plantão.
Nesse momento, o militar tentou retornar para o local onde estava havendo a festa, quando
o Sr. Flor Freire optou por levá-lo ao seu quarto, onde havia uma cama adicional para que
o militar dormisse. Afirma que após adentrar em seu quarto, o Major entrou no recinto,
sem autorização, e o informou que ele estava com problemas e deveria entregar sua arma,
pois havia testemunhas que afirmaram ter visto o Sr. Flor Freire em “situação de
homossexualidade”. Alega também que tal acusação seria parte de uma retaliação às
ações que ele tomara para reduzir gastos desnecessários e combater a corrupção na
referida base militar, pois ele era o responsável pela compra de alimentos e mercadorias.

585
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Resolução de supervisão de cumprimento.
Caso Azul Rojas Marín vs. Peru. 2022. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/supervisiones/azulrojas_05_04_22.pdf Acesso em: 3 de maio de 2023.
156

A Petição Inicial perante a Comissão Interamericana foi apresentada em 30 de


agosto de 2002, e admitida mediante o Relatório de Admissibilidade nº 1/10, em 15 de
março de 2010. Posteriormente, em 4 de novembro de 2013, a Comissão emitiu o
Relatório de Mérito nº 81/13, concluindo que o Estado do Equador violou os artigos 24,
8.1 e 25.1 da Convenção Americana, devendo reparar Homero Flor Freire de forma
pecuniária e imaterial, assim como reconhecer que sua dispensa foi realizada de forma
discriminatória. Também foi instado a adotar todas as medidas estatais para garantir a não
discriminação no exército do equador, com base em orientação sexual assumida ou
presumida, que tanto as forças armadas quanto os tribunais da jurisdição militar tenham
conhecimento das normas do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos
e as normas internas do Equador referentes a não discriminação fundada na Orientação
Sexual, e que o Estado devia adotar todas as medidas necessárias para conferir o devido
processo legal aos militares julgados em processos disciplinares, garantindo a
imparcialidade do julgamento.586
Ademais, em que pese o Estado equatoriano ter sido notificado e ter realizado
um ato público de pedido de desculpas à Homero Flor Freire, em 28 de julho de 2014, a
Comissão considerou a falta de cumprimento integral das reparações restantes, motivo
pelo qual procedeu com a submissão do caso à Corte Interamericana de Direitos
Humanos, na data de 11 de dezembro de 2014, solicitando que a Corte declarasse a
responsabilidade internacional do Equador, conforme Relatório de Mérito nº 81/13.587
Em 13 de janeiro de 2015, o Estado e o representante da suposta vítima foram
notificados da referida submissão, e em 11 de fevereiro do mesmo ano o representante
apresentou seu escrito de petições e argumentos, pelo qual concordou com as alegações
da Comissão, acrescentando argumentos acerca das supostas violações dos artigos 9
(princípio da legalidade e da retroatividade) e 11 (proteção da honra e dignidade) da
Convenção Americana, solicitando também acesso ao Fundo de Assistência Jurídica a
Vítimas da Corte Interamericana.588 O Estado, por sua vez, apresentou seus escritos
preliminares em 23 de maio de 2015, alegndo duas exceções preliminares, que
correspondem ao enquadramento fático do caso e a inesgotabilidade dos recursos
internos.589

586
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Flor Freire vs. Equador. 31 de
agosto de 2016. p. 4-5
587
Ibid., p. 5
588
Ibid., p. 5
589
Ibid., p. 5-6
157

Foi proferida uma resolução em 16 de dezembro de 2015, aprazando uma


audiência pública com objetivo de receber as alegações orais do Estado e as considerações
finais da Comissão, além das declarações de cinco testemunhas indicadas pelo
represenrtante da suposta vítima e dois peritos apresentados pelo Estado, apresentadas
sobre declaração juramentada, que foram apresentadas na data de 3 de fevereiro de 2016.
Logo em seguida, em 17 de fevereiro de 2016, foi realizada a audiência pública onde o
senhor Homero Flore Freire, três peritos nomeados pelo Estado e o representante da
Comissão prestaram seus depoimentos a fim de esclarecer algumas informações
solicitadas pelos juízes da Corte.590 Também foi recebida solicitação de amicus curiae da
Fundação Equatoriana Equidad.591
As alegações finais foram apresentadas em 17 de março de 2016 pela Comissão
e pelos representantes do Estado, e a sentença foi proferida em 31 de agosto de 2016. Em
sede de sentença, a Corte Interamericana de Direitos Humanos delibera, inicialmente
sobre dois pontos elencados pela Comissão e pelos representantes da suposta vítima, que
consistem na suposta falta de imparcialidade do juiz, quando da investigação e sumária,
e da suposta violação do dever de prestar fundamentação durante o inquérito e durante o
processo judicial.592
No que se refere a garantia da imparcialidade, dialogando com os fatos, a corte
pondera que ou superior hierárquico do senhor Homero flor Freire, um dia após o
ocorrido, ordenou que ele renunciasse a suas funções. Essas ações foram realizadas antes
da etapa de investigação do procedimento sumário de inquérito, com fundamento na sua
“autoridade de comando”. Ocorre, que essas ações constituíram pré julgamento dos fatos
por parte do comandante, e esse mesmo atuou posteriormente como juiz de direito no
processo disciplinar.593
Portanto, a Corte IDH entende que sua abordagem dos fatos, quando atuou como
juíz disciplinar, não esteve isenta de ideias preconcebidas, para que pudesse se atentar
apenas as provas e documentos apresentados durante o processo, de forma que o julgador
não atendia aos critérios subjetivos e objetivos de imparcialidade para atuar como juíz de
direito, violando a imparcialidade reconhecida no art. 8.1 da Convenção Americana.594

590
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Flor Freire vs. Equador. 31 de
agosto de 2016. p. 6
591
Ibid., p. 6
592
Ibid., p. 47
593
Ibid., p. 49
594
Ibid., p. 50-51
158

No que se refere o dever de fundamentação, ele é uma garantia de que as penas


imputadas ao indivíduo serão devidamente justificadas pelo órgão, com exposição dos
fatos, razões e normas que levaram aquela conclusão, de forma a afastar quaisquer
indícios de arbitrariedade. Sobre este ponto, a Comissão e os representantes da vítima
alegaram que havia falta de fundamentação das decisões sobre o recurso interposto pela
suposta vítima, que ele impediu de ter acesso a devida proteção judicial. Analisando o
caso e as possibilidades de recurso empregadas à suposta vítima, a Corte entendeu que o
Estado não seria responsável pela violação do artigo 25.1, pois a vítima não interpôs um
recurso administrativo contencioso para contestar as descisões disciplinares que
acabaram por demití-lo do exército.595
Ao final, a Corte considera que Homero Flor Freire foi vítima das violações do
direito de igualdade perante a lei, nos termos do artigo 24 da Convenção Americana;
assim como pela violação dos direitos à honra, dignidade e imparcialidade, conforme art.
8.1 da CADH; decide também por não responsabilizar o Estado pela violação dos
princípios da legalidade, pela violação do dever de fundamentação das decisões e do
direito a um recurso.
Como formas de reparação, estabelece que a vítima deverá, no prazo de um ano,
ser reconduzido à situação de saldado que se aposentou voluntariamente o que está em
serviço passivo, lhe concedendo todos os direitos e benefícios sociais. Ademais, no prazo
de um ano também deverá pagar os valores referentes a contribuições previdenciárias
conforme a vítima teria direito caso houvesse se aposentado voluntariamente. O Estado
também deve assegurar que nenhuma medida administrativa ou processo disciplinar viole
os direitos reconhecidos na Convenção Americana e produza efeitos jurídicos; entende,
adicionalmente, que devem ser eliminadas todas as referências ao processo do senhor Flor
Freire de seus registros militares.596
Assim, a Corte IDH estabeleceu prazo de um ano para pagamento das
indenizações por danos patrimoniais de materiais, assim como o reembolso de custos e
gastos processuais, também devendo reembolsar a o Fundo de Assistência às vítimas da
Corte Interamericana de Direitos Humanos e, apresentar no prazo de um ano um relatório
de cumprimento da sentença.597

595
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Flor Freire vs. Equador. 31 de
agosto de 2016. p. 55-59
596
Ibid., p. 72
597
Ibid., p. 72
159

4.2.5 Caso Vicky Hernández e Outros Vs. Honduras

O assassinato da senhora Vicky Hernández é o primeiro caso de


responsabilização de um Estado, pela jurisdição da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, onde a vítima era uma pessoa transsexual. A sentença do presente caso pode
ser considerada uma resposta do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos
Humanos à responsabilidade por participação do Estado nesse contexto de discriminação
e de apagamento de vivências, responsabilização essa que pode ocorrer tanto pela atuação
de forma ativa e direta, ou pela atuação de forma passiva e indireta, tendo em vista que
essas últimas também são capazes de transmitir uma mensagem clara de abjeção a
determinados indivíduos.
Traçadas essas considerações, os fatos que vitimaram a senhora Vicky
Hernández têm como local dos fatos a cidade de San Pedro Sula, no Estado de Honduras,
e ocorreram na madrugada dos dias 28 para 29 de junho de 2009, durante um golpe de
estado ocorrido no dia 28 de junho.
Nesses termos, o golpe de Estado tinha como motivação política a proposição de
implantação de uma “quarta urna” de votações, e iniciou uma série de conflitos
envolvendo o então presidente, Manuel Zelaya, eleito desde o ano de 2005, juntamente
com o congresso nacional e as instituições jurídicas.
A proposição em questão se referiria a proposta de implantação de uma quarta
urna para depósito de votos, além das as tradicionais três urnas que escolheriam os cargos
de presidente, deputado, e autoridade municipal, nas eleições que seriam disputadas em
novembro de 2009. Nessa quarta urna, propunha-se que os cidadãos decidissem acerca
da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, objetivando a propositura de
uma nova Constituição para o país.598
É durante esse processo de golpe de Estado que, na madrugada do dia 28 para o
dia 29 de junho, é declarado um toque de recolher na cidade de San Pedro Sula, em

598
CARDOSO, Sílvia Alvarez. Golpe de Estado no século XXI:: o caso de honduras (2009) e a
recomposição hegemônica neoliberal. 2016. 128 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa de Pós-
Graduação em Estudos Comparados Sobre As Américas, Universidade de Brasília, Brasília, 2016.
Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/20405/1/2016_SilviaAlvarezCardoso.pdf.
Acesso em: 26 ago. 2022. p. 72
160

Honduras, onde residia a senhora Vicky Hernández, mulher transexual nascida na data de
21 de setembro de 1983, na mesma cidade. Vicky residia com sua genitora, Rosa Argelia
Hernández Martínez, com sua prima Tatiana Rápalo Hernández e sua sobrinha, Argelia
Johanna Reyes Ríos, mulheres essas que também irão compor o rol de vítimas do presente
caso submetido ao Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, e que se
destacam pela denominação “e outras” conferida ao título do caso.
Importante destacar, dentre os fatores que caracterizam a vítima, suas
características socioeconômicas: se tratava de uma pessoa advinda de família humilde,
que só pôde cursar até o sexto ano da educação primária, quando deixou seus estudos para
começar a laborar, precisando contribuir, desde cedo, com a subsistência de sua unidade
familiar, em especial para apoiar economicamente sua mãe e ajudar a custear os estudos
de sua sobrinha Argelia Johanna Reyes Ríos.
Outrossim, no ano de 2009, quando ocorre o golpe de Estado, a senhora Vicky
possuía 28 anos de idade, tinha como ocupação ser trabalhadora do sexo, era portadora
do vírus HIV, e atuava como ativista dos direitos humanos, notadamente com relação à
população trans e no combate a HIV. Ela era notadamente reconhecida por sua
participação na associação intitulada Colectivo Unidad Color Rosa, que tem como
principal pauta a defesa dos Direitos Humanos das pessoas trans em Honduras, associação
era particularmente discriminada na região em que atuava.
Destaca-se que, em razão de tais discriminações e por ser uma ativista
reconhecida, a senhora Hernández já havia sido vítima de outros episódios de violência
em razão de sua identidade de gênero. Conforme destaca sua genitora, e conforme consta
registrado na sentença proferida pela Corte IDH, dois meses antes da fatídica data do
homicídio da senhora Hernández, ela havia sido vítima de agressão por um agente de
segurança. Na circunstância, um guarda de segurança lhe agrediu na cabeça com um
facão. Prontamente, a vítima se dirigiu às autoridades policiais para prestar denúncia
formal, recebendo a resposta de que, da parte dos agentes policiais do Estado que a
atenderam, ela poderia morrer que eles não se importavam. Tal resposta, além de uma
negação à sua condição de cidadã, nada mais é que uma outra forma de violência contra
sua vivência transsexual. Após o episódio, Vicky foi conduzida a um hospital por um
amigo, e prestou denúncia às autoridades, que sequer investigaram suas alegações.599

599
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Vicky Hernández y otros.
Honduras. 26 de março de 2021. p. 16
161

Retornando aos fatos ocorridos na madrugada do dia 28 para 29 de junho de


2009, a senhora Hernández se encontrava na rua durante a determinação do toque de
recolher, que vigoraria das 21 horas até as 6 horas da manhã, juntamente com duas
companheiras. Relatos apontam que a vítima estava andando pela zona vermelha, onde
praticavam seu trabalho sexual, quando policiais que realizavam patrulha as avistaram e
tentaram prendê-las. As mulheres conseguiram evadir-se do local, sumiram de vista e não
sabem o que aconteceu com Vicky.
No dia seguinte, em 29 de junho de 2009, os agentes da Dirección Nacional de
Investigación Criminal afirmam que receberam o comunicado sobre a descoberta de um
corpo sem vida na Avenida Colonia Ruiz, tendo como causa aparente de óbito uma
laceração cerebral decorrente de perfuração por arma de fogo. Ademais, registros indicam
que a vítima apresentava um ferimento irregular no olho esquerdo, um ferimento irregular
na região frontal esquerda e equimose em sua região palpebral, também indica que o
intervalo pós morte até a encontrada do corpo era de aproximadamente 8 a 10 horas.
Próximo à vítima descobriram um preservativo aparentemente usado, e, a uns 7 metros
de distância, uma ogiva cinza.600
A vítima foi inicialmente registrada como desconhecido do sexo masculino, e a
investigação do caso foi registrada pelo Ministério Público como processo contra
601
desconhecidos em razão do crime de homicídio em prejuízo de Vicky Hernández.
Importante destacar que as autoridades forenses se recusaram a fazer o exame de autópsia
na vítima, com a justificativa de que ela era portadora do vírus HIV. Somente em 16 de
março de 2011, quase dois anos depois do ocorrido, a Unidad de delitos contra la vida de
la Fiscalía solicitou a realização do exame de autópsia referente a vários homicídios de
pessoas trans, incluindo o da senhora Hernández.602 Logo após, em 30 de março de 2011,
o fiscal da instrução da Unidad de delitos contra la vida de la Fiscalía solicitou a
realização de várias diligências investigativas no caso, como a individualização dos
suspeitos, a apresentação dos laudos da autópsia e a colheita dos depoimentos das
testemunhas e familiares das vítimas, a fim de esclarecer as motivações do crime.603
Ademais, de acordo com o informe da Fiscalía Especial de Delitos, até o mês
de julho do ano de 2013 haviam sido realizados os seguintes expedientes: lei de vistoria

600
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Vicky Hernández y otros.
Honduras. 26 de março de 2021. p. 16
601
Ibid., p. 17
602
Ibid., p. 17
603
Ibid., p. 17
162

preliminar nº 1138-09, certidão de óbito, cópia da identidade da vítima, registro de


inspeção visual, cópia do pedido de necrópsia, declaração da genitora da vítima,
comprovante de registro policial em nome da vítima, solicitação de inspeções visuais do
álbum fotográfico da cena do crime, e solicitação de movimentos migratórios da
vítima.604
A defesa jurídica da vítima solicitou, em 30 de outubro de 2013, cópias dos
expedientes ao fiscal especial de delitos contra a vida. Em 15 de março de 2015 a mesma
advogada apresentou comunicação ao referido fiscal, sinalizando a morosidade estatal
frente as investigações, apontando que o expediente ainda se encontrava no mesmo estado
e que não haviam sido integrados documentos importantes, a exemplo do relatório da
autópsia, e de não haver informações atualizadas sobre o andamento das investigações.605
Nesse contexto de morosidade estatal frente as investigações das motivações que
levaram ao assassinato de Vicky Hernández, e após a verificação da impunidade dos
autores do referido crime e da falta de interesse em decidir por parte do Estado de
Honduras, durante o curso das diligências acima mencionadas, em 23 de dezembro de
2012 foi apresentada a petição de nº 2332-12, representada pela Rede Lésbica
CATTRACHAS (Organização Lésbica Feminina de Honduras), pelo Centro de Direitos
Humanos de Mulheres (CDM) e pela Robert F. Kennedy Human Rights.606
Por meio da petição nº 2332-12, os organismos acusam a República de Honduras
de violar os direitos expressos nos artigos 4, 8, 24 e 25 da Convenção Americana de
Direitos Humanos, que versam sobre os temas do Direito à Vida, Direito à Garantias
Judiciais, direito a Igualdade Perante a Lei e a Proteção Judicial, respectivamente, em
consonância com as obrigações do artigo 1.1, que refere-se ao comprometimento dos
Estados-Partes signatários da Convenção em respeitar os direitos e liberdades nela
reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua
jurisdição, sem discriminação.607

604
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Vicky Hernández y otros.
Honduras. 26 de março de 2021. p. 17
605
Ibid., p. 19
606
ARAÚJO, Ygor; GURGEL, Yara; MOREIRA, Thiago. O princípio da igualdade e não discriminação
no combate a discriminação em razão de orientação sexual e identidade de gênero a partir das decisões da
Corte IDH. In: GURGEL, Yara; MAIA, Catherine; MOREIRA, Thiago. Direito Internacional dos
Direitos Humanos e Pessoas em Situação de Vulnerabilidade. Vol. 3. Natal: Polimatia, 2022, p. 287–
324. p. 316
607
GHISLENI, Pâmela Copetti. CORPO(S) INQUIETO(S): os direitos sexuais sob a égide do sistema
interamericano de direitos humanos. 2018. 253 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí, 2018. Disponível em:
163

A petição foi recebida pela Comissão Interamericana de Direitos humanos, por


meio do informe de admissibilidade nº 64/16, em 6 de dezembro de 2016, e, em 7 de
dezembro de 2018 emite o informe de nº 157/18 estabelecendo uma sequência de
conclusões e apontamentos, e formulando várias recomendações ao Estado, em
conformidade com as competências estabelecidas no artigo 50 da Convenção Americana.
Dentre essas recomendações, encontra-se a necessária reparação das violações
materiais e imateriais de direitos humanos verificadas, de forma a adotar parâmetros de
compensação econômica e de atenção à saúde física e mental visando a reabilitação dos
familiares de Vicky Hernández. O informe também estabelece que as investigações do
presente caso devem continuar de forma razoável, efetiva e diligente, objetivando
esclarecer os fatos e identificar os possíveis responsáveis pelo crime, a fim de impor
sanções.608 No mesmo documento, a Comissão Interamericana acrescenta a orientação de
que o Estado de Honduras adote políticas e mecanismos de não repetição das violações
cometidas no caso da senhora Hernández, a exemplo de medidas legislativas e
administrativas que reconheçam a identidade de gênero autodeclarada das pessoas
transexuais e travestis.609
Nesses termos, em atenção ao informe de nº 157/18, encaminhado pela CIDH ao
Estado de Honduras no mês de dezembro de 2019, na data de 30 de janeiro do ano de
2019 o órgão notificou o referido Estado, informando que o prazo para apresentação de
informações sobre o andamento do caso e cumprimento das recomendações findava em
2 (dois) meses. Posteriormente, sem sucesso na apresentação dos documentos solicitados,
em 30 de abril de 2019 a Comissão Interamericana submeteu o caso à Corte
Interamericana de Direitos Humanos, argumentando que uma das características
presentes no homicídio de Vicky Hernández diz respeito a comunicar uma mensagem de
exclusão e de subordinação à comunidade LGBTQIAP+, e que a violência exercida por
motivos discriminatórios tem como objetivo impedir ou anular o reconhecimento, o gozo
e o exercício dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos indivíduos que são
objeto da discriminação.610

https://bibliodigital.unijui.edu.br:8443/xmlui/bitstream/handle/123456789/6244/Pâmela%20Copetti%20G
hisleni.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 09 mar. 2022. p. 201
608
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Informe No. 157/18. Caso 13.051.
Fondo. Vicky Hernández y Familia. Honduras. 7 de dezembro de 2018. p. 24-25
609
Ibid., p. 24-25
610
MELO, Álvaro Veras Castro; ARAÚJO, Ygor Rafael Cassiano de; CANUTO, Érica (org.). Caso Vicky
Hernández e outros vs. Honduras. In: CANUTO, Érica; LINHARES, Layla de Oliveira Lima. DIREITO
E GÊNERO Natal,. Natal: Polimatia, 2023. Cap. 2. p. 52-78. p. 64
164

Posteriormente, em 29 de maio de 2019 inicia-se o procedimento perante a Corte


Interamericana de Direitos Humanos, a partir da notificação do Estado e de seus
representantes, seguida pela apresentação dos pedidos, argumentos e provas em 25 de
julho de 2019, por parte dos peticionários, e da contestação por parte do Estado de
Honduras em 23 de outubro de 2019, onde ele se opõe às violações e às medidas de
reparação solicitadas, solicitando que as alegações da Comissão fossem declaradas
improcedentes e que ficasse estabelecido que o Estado de Honduras não deteve
responsabilidade pelas violações elencadas na denúncia.611
A primeira audiência pública do caso Vicky Hernández vem ocorrer na data de
1 de setembro de 2020, estando presentes os representantes do Estado e da Comissão
Interamericana. Além disso, o tribunal recebeu dezoito inscrições para participar do
julgamento, na figura de amicus curiae.612
Na sequência, em 12 de novembro de 2020, foram apresentados os pedidos
antecipados ao Estado, que objetivavam a proteção da família da vítima Vicky
Hernández, ocasião em que a Corte IDH determinou que o Estado hondurenho adotasse
todos os esforços necessários para proteção da integridade pessoal dos familiares da
senhora Hernández e das pessoas integrantes da Organização Lésbica Feminina de
Honduras, (Rede Lésbica CATTRACHAS). Em seguida, foram apresentadas as alegações
finais do caso, em 14 de dezembro de 2020, e na data de 29 de janeiro de 2021 o tribunal
solicitou ao Estado que apresentasse provas, que só foram recebidas pelo tribunal em 11
de fevereiro de 2021.613
Logo, em 24 de março de 2021 foi prolatada a sentença do caso Vicky Hernández
e Outros Vs. Honduras, onde o tribunal certifica como fatores determinantes para sua
conclusão o contexto de discriminação e violência policial pelo qual estão sujeitas as
pessoas LGBTQIAP+ e as profissionais do sexo, ocasião que o tribunal compreende que
o Estado de Honduras é responsável pela violação do “dever de garantir o direito ao
reconhecimento da personalidade jurídica, à liberdade, vida pessoal, vida privada,
liberdade de expressão e o nome” dessas pessoas, conforme disposto Declaração
Americana dos Direitos Humanos, em particular aos ditames dos artigos 3 (direito ao
reconhecimento da personalidade jurídica), 7 (direito à liberdade pessoal), 11 (proteção

611
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Vicky Hernández y otros.
Honduras. 26 de março de 2021. p. 5-7
612
Ibid., p. 5-7
613
Ibid., p. 5-7
165

da honra e dignidade), 13 (liberdade de pensamento e de expressão) e 18 (direito ao


nome).614
Além desses pontos, a Corte IDH destaca o trecho da Opinião Consultiva OC-
24/17, que dispõe especificamente sobre os tipos de violência que essa comunidade está
sujeita, destacando que elas podem ser físicas, como assassinatos, espancamentos,
sequestros, agressões sexuais), ou psicológicas, como ameaças, coerção ou privação
arbitrária de liberdade, incluindo internamento psiquiátrico forçado.615
A corte chega ao seu veredito após concluir que existem provas suficientes para
responsabilizar o Estado Hondurenho pela violação do direito à vida, contida no Artigo
4.1 da Convenção Americana, relacionando-se com a aplicação dos artigos 1.1, 8 e 25 do
mesmo instrumento, em detrimento da Sra. Vicky Hernández.616 No texto da condenação
também é citado o direito a integridade pessoal, que se encontra previsto no artigo 5.1
(integridade física, psíquica e moral) da Convenção Americana, e que é aplicado em
prejuízo dos familiares de Vicky Hernández, devido ao sofrimento causado por seu
assassinato e pela impunidade e morosidade em torno das investigações.617
Assim, o órgão jurisdicional finaliza seu entendimento pela responsabilidade
internacional do Estado de Honduras pela violação dos artigos 3, 4, 5, 11, 13 e 24 da
Convenção Americana e 7 da Convenção de Belém do Pará em prejuízo da senhora Vicky
Hernández. Ademais, no que se refere aos familiares da senhora Hernández, a Corte
conclui que Honduras foi responsável pela violação do seu direito a integridade pessoal,
conforme disposto no artigo 5.1 da Convenção Americana, que versa sobre a proteção da
integridade física, psíquica e moral, que se justifica em razão do sofrimento causado por
sua morte e pela impunidade e morosidade em torno das investigações.
A condenação também foi esteada na Convenção Interamericana para Prevenir,
punir e erradicar a violência contra as mulheres618, conhecida como Convenção de Belém
do Pará. Sobre o caso em tela, a Corte destaca a previsão exposta no seu artigo 7º, onde
fica estabelecido que os Estados signatários da Convenção condenam todas as formas de

614
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Vicky Hernández y otros.
Honduras. 26 de março de 2021. p. 55
615
Ibid., p. 54
616
Ibid., p. 54
617
Ibid., p. 54
618
OEA. Convenção Interamericana Para Prevenir, Punir e Erradicar A Violência Contra A Mulher.
Belém do Pará, 1994. Disponível em: http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm.
Acesso em: 22 nov. 2021.
166

violência contra a mulher, e se prontificam a adotar, “por todos os meios apropriados e


sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência”.619
Ocorre que, quando da aplicação dessa Convenção, foram verificados
entendimentos diferentes consubstanciados nos votos dissidentes proferidos pela
magistrada Elizabeth Odio Benito e pelo magistrado Eduardo Vio Grossi. Para esses dois
magistrados, a identidade de gênero da senhora Vicky não poderia ser confundida com o
conceito de gênero e as situações abarcadas pela Convenção de Belém do Pará, ocasião
em que os magistrados acreditam que elas tutelariam minorias diferentes, de forma que a
convenção não se aplicaria à vítima em questão.620
Porém, os dois votos dissidentes não representaram a maioria, e o Tribunal como
um todo interpretou que a Convenção Interamericana para Prevenir, punir e erradicar a
violência contra as mulheres deveria ser aplicada ao caso em tela. Para tanto, a análise do
artigo 7º pela Corte IDH se dá em conjunto com os artigos 1º e 9º da referida Convenção.
O artigo 1º, por sua vez, explica que violência contra a mulher é qualquer ato ou conduta
fundamentada no gênero, que venha a ocasionar morte, sofrimento físico, sexual ou
psicológico à mulher, seja ele praticado na esfera pública ou privada.621
O item ”b“ deste mesmo artigo dispõe expressamente sobre a obrigação dos
Estados de agirem com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra
a mulher, e foi abordado pela Corte em prejuízo dos familiares da senhora Vicky
Hernández, fundamentado na alegação de que o Estado de Honduras não investigou
devidamente, diligentemente e livre de estereótipos de gênero, os eventos que levaram ao
assassinato da senhora Hernández.622
O artigo 9º se complementa a essa análise, pois versa sobre a necessidade de os
Estados levarem em conta a situação da mulher vulnerável a violência “por sua raça,
origem étnica ou condição de migrante, de refugiada ou de deslocada, entre outros

619
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Interamericana Para Prevenir,
Punir e Erradicar A Violência Contra A Mulher: “CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ”. Belém do
Pará, Disponível em: http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm. Acesso em: 23 jan.
2023. Artigo 7º
620
MELO, Álvaro Veras Castro; ARAÚJO, Ygor Rafael Cassiano de; CANUTO, Érica (org.). Caso Vicky
Hernández e outros vs. Honduras. In: CANUTO, Érica; LINHARES, Layla de Oliveira Lima. DIREITO
E GÊNERO Natal,. Natal: Polimatia, 2023. Cap. 2. p. 52-78. p. 66
621
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Interamericana Para Prevenir,
Punir e Erradicar A Violência Contra A Mulher: “CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ”. Belém do
Pará, Disponível em: http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm. Acesso em: 23 jan.
2023. Artigo 1º
622
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Vicky Hernández y otros.
Honduras. 26 de março de 2021. p. 55
167

motivos”. Destaca-se a multiplicidade de mulheres e de situações pelo qual o artigo


vislumbra alcançar, traçando um rol apenas exemplificativo, que pode se expandir a partir
do termo “outros motivos”.
A partir da referida análise normativa, a Corte IDH decidiu por encaminhar
diversas recomendações ao Estado de Honduras. Para tanto, essas recomendações
refletem de forma prática a interpretação normativa das normas atinente ao Sistema
Interamericano de Proteção Direitos Humanos, e podem ser subdivididas em reparações
gerais e reparações específicas. As reparações específicas dizem respeito ao caso em tela
e aos familiares de Vicky Hernández, enquanto as reparações gerais destinam-se a
modificar o contexto das pessoas transsexuais em Honduras. Nesse sentido, como
obrigação específica, a Corte decide que o Estado deve promover todos os esforços
necessários para apuração da responsabilidade pelo assassinato de Vicky Hernández,
assim como realizar o julgamento e a aplicação das sanções cabíveis aos responsáveis.623
No que se refere aos familiares da vítima, a Corte determinou que, para Argélia
Johana Reyes Ríos, sobrinha da senhora Vicky que residia com a vítima na data dos fatos,
o Estado deverá conceder uma bolsa de estudos, a qual deverá ser paga mensalmente, e
deverá compreender as despesas integrais de educação em uma instituição de ensino
secundário público e ensino técnico ou universitário em Honduras. Outra determinação
consiste no pagamento de indenizações, a título de reparações financeiras decorrentes de
danos morais e imateriais, assim como custeio das despesas atinentes ao atendimento
psicológico e/ou psiquiátrico das vítimas.624 Ademais, a corte decidiu também que cabe
ao Estado de Honduras a realização de um ato público de responsabilidade internacional
pelo crime em questão.625
Além de medidas específicas ao caso, outros pontos que merecem destaque, dos
quais se depreende a preocupação da Corte IDH em melhorar as condições de cidadania
das pessoas transsexuais, tomadas a partir da análise do caso Vicky Hernández, e em
consonância com a interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos,
consistem na criação de oportunidades e afastamento dessas pessoas da marginalização e
estigmatização. Para tanto, a Corte determinou a criação de uma bolsa educacional
intitulada “Vicky Hernández”, a ser oferecida para mulheres trans; além disso, decidiu

623
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Vicky Hernández y otros.
Honduras. 26 de março de 2021. p. 55-57
624
Ibid., p. 55-57
625
Ibid., p. 55-57
168

que o Estado deve capacitar os agentes estatais de segurança mediante um plano


permanente de capacitação; outra reparação consiste na adoção de procedimento de
reconhecimento da identidade de gênero, que permita a mudança dos dados nos
documentos de identificação e registros públicos.626
No que se refere as investigações policiais, a Corte determinou que o Estado de
Honduras deve adotar um protocolo de investigação e administração da justiça no
processo penal, direcionado às vítimas de violência em razão do preconceito contra sua
sexualidade ou identidade de gênero, assim como adotar um sistema de coleta de dados
relativos a esses tipos de crimes, que permita a avaliação, com precisão, dos padrões de
ocorrências.627
Após a expedição da sentença, na data de 09 de setembro de 2022, foi publicado
o primeiro relatório de cumprimento da sentença, apontando que o Estado cumpriu com
a disposição indicada no parágrafo 155 da sentença, que consiste em publicar, no prazo
de seis meses contados da notificação, um resumo oficial da sentença no diário oficial,
em jornal de grande circulação nacional, assim como disponibilizar a íntegra da sentença
em seu sítio oficial, pelo período de um ano.628
Outra medida adotada foi o reconhecimento, mediante ato público, da
responsabilidade internacional, nos termos dos parágrafos 157 e 158 da sentença.629 O
estado também cumpriu com a disposição de custear o tratamento psicológico ou
psiquiátrico das vítimas que os solicitarem, conforme parágrafo 193 da sentença.630
No mais, algumas medidas foram dadas como parcialmente cumpridas pelo
Estado de Honduras, a exemplo do pagamento dos valores fixados em sentença, a título
de dano material e imaterial, conforme dispõe os parágrafos 187 e 191 do referido
dispositivo. A corte considera que foram efetuados os pagamentos das indenizações por
danos a Vicky Hernández, Rosa Argelia Hernández Martinez, Tatiana Rápalo Hernández,
restando pendente a indenização por dano imaterial referente a Argelia Johana Reyes
Rios, de onde o Estado alega que, por se tratar de menor de idade, está pendente de se

626
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença. Vicky Hernández y otros.
Honduras. 26 de março de 2021. p. 55-57
627
Ibid., p. 55-57
628
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Supervisión de cumplimiento de
sentencia: caso Vicky Hernández y Otras vs. Honduras. 2022. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/supervisiones/vicky_hernandez_09_09_22.pdf. Acesso em: 23 abr. 2023.
p. 1-2
629
Ibid., p. 3
630
Ibid., p. 3
169

resolver como será pago.631 Sobre esse ponto, assevera a Corte que o Estado de Honduras
deverá depositar os valores em uma instituição financeira, no prazo de um ano, nas
condições mais favoráveis permitidas pela legislação, estando disponível para a
beneficiária quando esta completar sua maioridade, ou antes disso mediante ação
judicial.632
Ademais, na Resolução de cumprimento, a Corte decide por manter em aberto o
procedimento de supervisão, considerando que o Estado de Honduras ainda necessita
implementar as investigações para determinar os responsáveis pelo homicídio da senhora
Vicky Hernández, assim como custear a Argelia Johana Reyes Rios uma bolsa de estudos,
por meio de pagamento mensal, que cubra seus gastos com estudos em uma instituição
de educação pública secundária e de educação técnica ou universitária.633
No que se refere às obrigações de cunho geral para a proteção das pessoas
transsexuais, restam pendentes a produção de um material audiovisual sobre a situação
de discriminação e violência que experienciam as mulheres trans no país; resta criar a
bolsa de estudos denominada “Vicky Hernández”, destinada a mulheres trans; resta criar
e implementar um plano de capacitação destinado as autoridades de segurança do Estado.
Também resta ao Estado adotar um procedimento destinado ao reconhecimento
da identidade de gênero, que possibilite adequação dos documentos de identificação nos
registros públicos; resta também adoção de um protocolo de investigação e administração
da justiça destinada aos processos penais; resta também formular um sistema de coleta de
dados que reúna e classifique de forma precisa os casos de violência contra as pessoas
LGBTQIAP+ em Honduras.634

4.3 COMPATIBILIDADE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS


HUMANOS E DA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE IDH COMO INSTRUMENTOS
DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS LGBTQIAP+ NA
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

631
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Supervisión de cumplimiento de
sentencia: caso Vicky Hernández y Otras vs. Honduras. 2022. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/supervisiones/vicky_hernandez_09_09_22.pdf. Acesso em: 23 abr. 2023.
p. 3-4
632
Ibid., p. 4
633
Ibid., p. 4
634
Ibid., p. 5
170

Partindo do exame da construção normativa internacional que tem por objetivo


eliminar as relações hierárquicas e arbitrárias entre os membros da sociedade, valorada
em razão de sua sexualidade ou identidade de gênero, e frente aos alarmantes dados
estatísticos da República Federativa do Brasil em relação às minorias SOGIESC, surge a
problemática da compatibilidade vertical das normas internas com os tratados
internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado Brasileiro.
Para tanto, em um primeiro momento é preciso considerar que o sistema jurídico
estatal se encontra em constante mutação, devendo haver sempre um controle vertical das
normas jurídicas que adentram o ordenamento pátrio. Ademais, conforme aduz Thiago
Oliveira Moreira, esse juízo de compatibilidade, que sempre teve como norma-parâmetro
a Constituição Federal, se depara com um novo marco de controle vertical das normas
elaboradas internamente pelo Estado, que são os Tratados Internacionais ratificados pelo
governo, com destaque para aqueles que versam sobre a temática dos Direitos
Humanos.635
No mais, antes de tratar diretamente do controle de convencionalidade, se faz
relevante explicar o valor conferido aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos na
ordem jurídica brasileira, e a forma com que estes são compatibilizados com as normas
internas. Nesses termos, conforme explana Valério de Oliveira Mazzuoli, a Constituição
Federal de 1988 é responsável por ampliar a abertura do sistema jurídico interno ao
sistema internacional de proteção aos direitos humanos, quando, nos parágrafos segundo
e terceiro de seu artigo 5º, estabelece as regras especiais referentes a esses
instrumentos.636
Destaca-se o § 2.º do art. 5.º, quando este institui que “Os direitos e garantias
expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios
por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte”637, de onde se depreende que os direitos e garantias estabelecidos na Carta
Magna não excluem outros que sejam oriundos dos instrumentos internacionais
ratificados pelo Estado brasileiro. Portanto, conforme leciona Mazzuoli, quando este
parágrafo prevê a “não exclusão” dos direitos provenientes dos tratados internacionais

635
MOREIRA, Thiago Oliveira. Aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela
jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. p. 245
636
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Forense, 2019. p.
208
637
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília,
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso
em: 01 maio 2023.
171

em que o Brasil seja parte, ele autoriza sua inclusão no ordenamento jurídico interno,
compondo o “bloco de constitucionalidade”, como se estivessem escritos no texto
constitucional.638
Nesse sentido, conclui-se que os direitos e garantias individuais no ordenamento
jurídico brasileiro podem advir dos direitos e garantias expressos no texto da Constituição
Federal; dos direitos e garantias implícitos, que estão subentendidos nas regras e nas
garantias, tal qual aqueles que são decorrentes do regime e dos princípios adotados pela
Constituição; e pelos direitos e garantias expressos nos Tratados Internacionais de
Direitos Humanos que o Brasil faça parte.639 Ressalta-se que muitos doutrinadores
defendem que os tratados internacionais de direitos humanos deveriam ter um status
acima da Constituição (supraconstitucional), fundamentando seu posicionamento a partir
dos princípios internacionais e pela sua caracterização como normas de jus cogens
internacional. Enquanto isso, doutrinariamente, a disciplina da posição hierárquica dos
Tratados Internacionais de Direitos Humanos não é pacífica, inexistindo solução
uniforme pelo Supremo Tribunal Federal.640
Essas controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais deram origem ao § 3.º do art.
5º da Constituição Federal de 1988, que foi incluído ao texto constitucional por meio da
Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, e institui que “Os tratados e
convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa
do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”641. Esse parágrafo tem sua
importância no ordenamento jurídico interno pois enquadra, materialmente, a inclusão
dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil ao regime das
Emendas Constitucionais tratados no art. 60, § 2.º da Constituição Federal de 1988, o qual
explana que as emendas constitucionais serão discutidas e votadas pelo congresso
nacional, em cada uma de suas casas, em dois turnos, e serão aprovadas quando obtiverem
três quintos dos votos dos membros de cada uma das casas, considerando-se cada turno
de votação.642

638
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Forense, 2019. p.
209
639
Ibid., p. 209
640
Ibid., p. 209
641
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília,
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso
em: 01 maio 2023.
642
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Forense, 2019. p.
211
172

Dessa forma, o parágrafo 3º do art. 5º detém sua relevância, pois, antes dele, os
Tratados Internacionais de Direitos Humanos eram aprovados por meio de Decreto
Legislativo, votados por maioria simples do Congresso Nacional, assim como as normas
ordinárias, o que gerava controvérsias doutrinárias quanto a classificação hierárquica
desses tratados.643 Ademais, até o ano de 2022 a República Federativa do Brasil
promulgou apenas três Tratados Internacionais de Direitos Humanos utilizando-se do
regime proposto no § 3.º do art. 5º da Constituição Federal de 1988.644
Ademais, os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, conforme estudados
nos capítulos anteriores, são produto de discussões que visam solucionar desafios comuns
a muitos Estados, com a finalidade de estabelecer regras padronizadas a nível global ou
regional.645 Essas regras estabelecem mecanismos de defesa que protegem os cidadãos
contra a violação dos direitos humanos pelos seus semelhantes e até mesmo pelo próprio
Estado.646 Nesse contexto, independentemente do nível hierárquico dos tratados e de
como eles foram incorporados pelo Estado, aquilo que foi pactuado internacionalmente
deve ser cumprido, com fundamento nos princípios gerais da boa-fé e da pacta sunt
servanda647.648
Assim, entende-se, assim como Thiago Oliveira Moreira, que uma das
características da soberania consiste na sua relatividade, que permite ao Estado, fundado
no movimento neocontratualista e no exercício de sua soberania, delegar parte de sua
soberania ao celebrar Tratados Internacionais.649 Portanto, o legislativo nacional não pode
elaborar normas que sejam contrárias ao que foi pactuado internacionalmente, sob pena

643
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Forense, 2019. p.
211
644
São eles a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo
Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, o Tratado de Marraqueche para Facilitar o
Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com Outras Dificuldades para Ter
Acesso ao Texto Impresso, firmado em Marraqueche, em 27 de junho de 2013 e a Convenção
Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmado pela
República Federativa do Brasil, na Guatemala, em 5 de junho de 2013. In BRASIL. Presidência da
República. Subchefia Para Assuntos Jurídicos. Atos decorrentes do disposto no § 3º do art. 5º da
Constituição. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/quadro_DEC.htm.
Acesso em: 01 maio 2023.
645
MOREIRA, Thiago Oliveira. Aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela
jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. p. 246
646
Ibid., p. 246
647
Reconhecimento formal de um Estado em obrigar-se internacionalmente, nos termos do artigo 26 da
Convenção de Viena de 1969: Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de
boa-fé. BICHARA, Jahyr-philippe. Direito Internacional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 72
648
MOREIRA, Thiago Oliveira. Aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela
jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. p. 246
649
Ibid., p. 246
173

de responsabilização internacional do Estado perante tribunais internacionais cuja


jurisdição o Estado também já tenha aderido.650
Destaca-se que a inconvencionalidade pode ser identificada quando a norma
contrariar tratado internacional de direitos humanos, normas de jus cogens, costumes
internacionais que tratem de direitos humanos e interpretações conferidas por tribunais
de direitos humanos, mesmo havendo entendimento de ausência de hierarquia entre tais
tribunais e os domésticos.651
Portanto, considerando as disposições constitucionais provenientes do art. 5º, §
2º, que impõe a materialidade constitucional ao conteúdo dos Tratados de Direitos
Humanos, e ao acréscimo constitucional proveniente da Emenda Constitucional nº 45,
que incluiu o art. 5º, § 3º, este que impõe a materialidade e formalidade constitucional
aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos celebrados pelo Estado brasileiro, se
faz importante entender que além da sujeição das normas domésticas a um controle de
constitucionalidade, elas devem ser submetidas também a um controle de
convencionalidade.652
O controle de convencionalidade, por sua vez, consiste em um processo que visa
compatibilizar verticalmente, e, em especial, materialmente, as normas domésticas com
as convenções internacionais de direitos humanos ratificadas (em vigor) no Estado.653
Conforme assevera Mazzuoli, uma lei doméstica deve ser compatível com a Constituição
Federal e com os tratados internacionais celebrados. Caso essa norma esteja de acordo
apenas com a Constituição, mas não com um tratado ratificado e em vigor pelo Estado,
ela pode até ser considerada vigente, pois se encontra em conformidade com o texto
constitucional, mas não poderá ser considerada válida, pois não está compatível com um
dos limites verticais materiais que é o controle de convencionalidade.654
Nesses termos, a disciplina do controle de convencionalidade dispõe de três
pressupostos pacificados doutrinariamente: que o controle deve ser exercido de ofício;
que a declaração de inconvencionalidade produz efeitos retroativos; e que há uma

650
MOREIRA, Thiago Oliveira. Aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela
jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. p. 246
651
MOREIRA, Thiago Oliveira. O Exercício do Controle de Convencionalidade pela Corte IDH: uma
década de decisões assimétricas. In. MENEZES, Wagner (Org.). Direito Internacional em Expansão. Anais
do XV CBDI. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017, p. 251 – 271. p. 252-253 p. 254
652
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito
brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 46, n. 181, p. 113-139, 2009. p. 114
653
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 6. ed. São Paulo: Forense, 2019. p.
243
654
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito
brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 46, n. 181, p. 113-139, 2009. p. 115
174

presunção relativa de convencionalidade das normas estatais, cabendo ao órgão de


controle a harmonização das normas estatais com as Normas Internacionais de Direitos
Humanos. 655
No que tange a competência para exercitar o controle de convencionalidade,
maior parte da doutrina entende que ele pode ser exercido pela jurisdição internacional e
pela jurisdição estatal.656 No Brasil, os mesmos legitimados a propor Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADIn), previstos no art. 103 da Constituição Federal657 estão
autorizados a propor tal medida, perante o STF, com objetivo de retirar a validade de uma
norma doméstica que viole um Tratado Internacional de Direitos Humanos em vigor.658
Ademais, Thiago Oliveira Moreira também cita o controle de convencionalidade
difuso, também chamado de controle de convencionalidade doméstico, que possui caráter
primário e é exercido por parte dos Estados, pois lhes cabe a proteção primária dos
direitos humanos, e o controle de convencionalidade exercido pelos órgãos
internacionais, a exemplo do controle de convencionalidade interamericano, que será
mais aprofundado adiante, e que possui como parâmetro os tratados que compõem o
Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, conforme foram estudados
neste capítulo.659
Além dessa classificação, o controle de convencionalidade também pode se
apresentar sob a forma implícita e explícita. A forma implícita se dá quando o juiz
examina a compatibilidade normativa entre o direito interno e o internacional dos direitos
humanos, sem mencionar os tratados que compõem o bloco de convencionalidade, ou
quando, por meio de controle de constitucionalidade o Estado decide que determinada
norma é incompatível com uma normativa internacional. A forma explícita de controle
de convencionalidade ocorre quando o órgão julgador declara expressamente que a norma

655
MOREIRA, Thiago Oliveira. O Exercício do Controle de Convencionalidade pela Corte IDH: uma
década de decisões assimétricas. In. MENEZES, Wagner (Org.). Direito Internacional em Expansão. Anais
do XV CBDI. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017, p. 251 – 271. p. 255
656
Ibid., p. 252
657
Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de
constitucionalidade: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara
dos Deputados; IV a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V o
Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso
Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
658
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito
brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 46, n. 181, p. 113-139, 2009. p. 137
659
MOREIRA, Thiago Oliveira. O Exercício do Controle de Convencionalidade pela Corte IDH: uma
década de decisões assimétricas. In. MENEZES, Wagner (Org.). Direito Internacional em Expansão. Anais
do XV CBDI. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017, p. 252-253
175

constitucional foi violada com a finalidade de afastar ou invalidar uma norma interna que
lhe seja incompatível, e deixa explícito qual norma internacional invalidou a norma
interna.660
Outro aspecto do controle de convencionalidade consiste na dualidade entre
controle de convencionalidade forte e fraco, onde o forte é exercido por órgãos dotados
de poder jurisdicional, em que há possibilidade de declaração de invalidade das normas
inconvencionais, enquanto o controle de convencionalidade fraco é proferido por órgãos
incompetentes, e consiste apenas em uma interpretação conforme da norma estatal com a
norma internacional de proteção aos direitos humanos.661
A doutrina também pontua a existência de um controle de convencionalidade
preventivo, controle repressivo e outro reparador. O controle preventivo se manifesta por
meio da não publicação de normas que possam ser incompatíveis com o direito
internacional dos direitos humanos, enquanto o controle repressivo ocorre quando o órgão
jurisdicional não aplica ou invalida norma inconvencional; o controle reparador ocorre
quando o órgão revoga a norma já editada, pelo motivo de sua inconvencionalidade.662
Ademais, após explicar os conceitos atrelados ao controle de convencionalidade,
se faz importante situá-lo no presente estudo explicando a forma que ocorre o controle
em âmbito interamericano, que toma como parâmetro os tratados que compõem o Sistema
Internacional de Proteção aos Direitos Humanos, a atuação é, em regra, da Corte IDH.
No que diz respeito o controle de convencionalidade interamericano, ele foi
aplicado pela primeira vez na jurisdição contenciosa da Corte IDH, por meio voto do Juiz
Sergio Garcia Ramírez no caso Myrna Mack Chang vs. Guatemala, com intuito de apontar
a responsabilidade do Estado frente os preceitos do Pacto de São José da Costa Rica,
desconsiderando a hierarquia normativa.663
Outrossim, esse controle foi desenvolvido em outras decisões, sedimentando o
entendimento dos membros da Corte de que as jurisdições internas também devem se
submeter às disposições previstas na Convenção Americana, ou seja, que os tribunais
também seriam responsáveis pela compatibilidade vertical do direito estatal com os

660
MOREIRA, Thiago Oliveira. O Exercício do Controle de Convencionalidade pela Corte IDH: uma
década de decisões assimétricas. In. MENEZES, Wagner (Org.). Direito Internacional em Expansão. Anais
do XV CBDI. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017, p. 251 – 271. p. 253
661
Ibid., p. 253
662
Ibid., p. 254
663
MOREIRA, Thiago Oliveira. Aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela
jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. p. 246
176

Tratados Internacionais de Direitos Humanos.664 A evolução do controle de


convencionalidade interamericano perpassa pelo entendimento do órgão de que também
cabe aos órgãos internos a compatibilização entre o direito interno e a Convenção
Americana, e, a partir da sentença do caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile, em
setembro de 2006, a corte preceitua que o controle de convencionalidade dos Estados
também deve ter como parâmetro a interpretação que a Corte confere ao Pacto de São
José da Costa Rica, e não somente ao seu texto escrito, tendo em vista que a Corte IDH é
o órgão responsável pela última interpretação da citada Convenção. 665
De mais a mais, outra discussão doutrinária importante de suscitar, quando se
pretende estudar sobre os impactos que a construção normativa de proteção aos Direitos
Humanos vem tomando atualmente, diz respeito ao estudo das sentenças proferidas pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos e sua aplicabilidade no Brasil. Para tanto, nos
ocuparemos, em um primeiro momento, das sentenças condenatórias proferidas contra o
Estado brasileiro, e, posteriormente, serão abordados os efeitos das decisões, opiniões
consultivas e interpretações da Convenção Americana de Direitos Humanos para os
terceiros Estados que fazem parte deste tratado, mas não fazem parte da sentença.
Nesses termos, para Caio José Arruda Amarante de Oliveira e Thiago Oliveira
Moreira, as decisões da Corte IDH proferidas contra o Estado brasileiro são obrigatórias,
definitivas e inapeláveis, e não há o que se falar na aplicabilidade do art. 15 da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que dispõe sobre os procedimentos
que permeiam a execução de sentenças estrangeiras.666
Nesses termos, se faz importante diferenciar as sentenças estrangeiras das
sentenças internacionais. As sentenças estrangeiras são aquelas que tem sua validade
originada de uma soberania estrangeira, e que no Brasil assumem a forma de decisão
judicial. Para que esse tipo de sentença seja válido no território nacional, elas devem
preencher os requisitos estabelecidos pelo art. 15 da LINDB, tais como haver sido
proferida por juiz competente, existir a citação das partes ou revelia, ocorrer o trânsito em
julgado, preencher os critérios formais para execução, no local em que foi proferida e

664
MOREIRA, Thiago Oliveira. Aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela
jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. p. 246
665
Ibid., p. 249-250
666
OLIVEIRA, Caio José Arruda Amarante de; MOREIRA, Thiago Oliveira. A EXECUÇÃO DAS
SENTENÇAS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL:
(in)aplicabilidade do art. 15 lei de introdução às normas do direito brasileiro. Inter – Revista de Direito
Internacional e Direitos Humanos da UFRJ, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 8-24, jun. 2022. p. 10
177

estar traduzida por intérprete autorizado e ser homologada perante o Superior Tribunal de
Justiça (STJ).667
Por outro lado, conforme leciona Valério de Oliveira Mazzuoli, as sentenças
proferidas por tribunais internacionais, não se consideram sentenças estrangeiras, mas
sim sentenças internacionais.668 Mazzuoli diferencia os dois tipos, explicando que as
sentenças estrangeiras são aquela proferidas por um tribunal afeto à soberania de
determinado Estado, enquanto as sentenças internacionais são aquelas proferidas por
tribunais que tem jurisdição sobre os próprios Estados.669 Portanto, as sentenças
internacionais não estariam sujeitas a aplicação das regras do art. 105, I, alínea i da
Constituição Federal de 1988, nem do art. 961 do CPC, que dispõem sobre a eficácia da
decisão estrangeira no Brasil somente após a homologação da sentença estrangeira ou
concessão do exequatur às cartas rogatórias.670
Nesse contexto, assevera Mazzuoli que “todo tribunal que conhece questões
jurídicas não susceptíveis de decisão pelas jurisdições nacionais é considerado um
tribunal internacional”671. Assim, as sentenças internacionais são aquelas que advém de
atos judiciais emanados por órgãos judiciais internacionais de onde o Estado aceitou sua
jurisdição obrigatória, a exemplo da Corte IDH, ou daqueles órgãos que o Estado
concordou em submeter a decisão de uma controvérsia, a exemplo da Corte Internacional
de Justiça.672
Ante o exposto, entende-se que as decisões provenientes da Corte
Interamericana de Direitos Humanos proferidas contra o Brasil devem ser cumpridas
imediatamente, sem a prescrição de que elas devem ser homologadas internamente.673
Tal proposição se justifica, conforme lecionam Caio José Arruda Amarante de Oliveira e
Thiago Oliveira Moreira, a partir do conteúdo do art. 68, item 1, da Convenção Americana

667
OLIVEIRA, Caio José Arruda Amarante de; MOREIRA, Thiago Oliveira. A EXECUÇÃO DAS
SENTENÇAS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL:
(in)aplicabilidade do art. 15 lei de introdução às normas do direito brasileiro. Inter – Revista de Direito
Internacional e Direitos Humanos da UFRJ, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 8-24, jun. 2022. p. 11
668
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 12. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2019. 1797 p. p. 1358
669
Ibid., p. 1358
670
Ibid., p. 1358
671
BROWNLIE, Ian. 1997. apud MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional
Público. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. 1797 p. p. 1358
672
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 12. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2019. 1797 p. p. 1359
673
OLIVEIRA, Caio José Arruda Amarante de; MOREIRA, Thiago Oliveira. A EXECUÇÃO DAS
SENTENÇAS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL:
(in)aplicabilidade do art. 15 lei de introdução às normas do direito brasileiro. Inter – Revista de Direito
Internacional e Direitos Humanos da Ufrj, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 8-24, jun. 2022. p. 13
178

de Direitos Humanos, quando este dispõe que os Estados parte dessa convenção
comprometem-se a cumprir a decisão da Corte IDH.
Ademais, tendo em vista que o Brasil contraiu livremente, plenamente e no
exercício de sua soberania, a obrigação de cumprir com a Convenção Americana, e
conforme dispõe o art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, também
ratificada pelo Brasil, que a invocação de dispositivos de direito interno não justifica a
sua não aplicação pelo Estado parte do tratado internacional, entende-se que as sentenças
da Corte IDH proferidas contra o Brasil devem ser cumpridas em sua integralidade.674
Um exemplo desse entendimento se encontra na sentença do caso Gomes Lund
(“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil, quando a Corte IDH explana que a Convenção
Americana equivale a uma Constituição supranacional em matéria de direitos humanos,
sujeitando todos os países que a ela aderiram, em todas as esferas internas de poder.675
Nesse sentido, importante destacar que no Brasil ainda se encontram ausentes as
enabling legislations, que são as normas que regulam o procedimento de cumprimento
forçado, e que países como Peru e Argentina já adotaram esse tipo de normas. Porém, sua
ausência não significa que essas sentenças não podem ser cumpridas, principalmente
quando se recorda que o princípio da dignidade da pessoa humana é um valor central da
ordem jurídica brasileira.676
A partir do assunto do cumprimento das decisões proferidas pela Corte IDH
condenando o Estado brasileiro, surge um outro questionamento: quanto as decisões que
interpretam a Convenção Americana de Direitos Humanos, e possuem efeito
condenatório para outros Estados, elas devem ser seguidas pela República Federativa do
Brasil? Para tanto, Valério Mazzuoli afirma que, quando uma sentença é proferida para
um Estado determinado, não há efeito condenatório para os outros Estados. Porém, no
que diz respeito a interpretação da Corte IDH que fundamentou tal sentença, os Estados
devem se abster de aplicar ou interpretar seu direito interno em desconformidade com o
entendimento da Corte.677

674
OLIVEIRA, Caio José Arruda Amarante de; MOREIRA, Thiago Oliveira. A EXECUÇÃO DAS
SENTENÇAS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL:
(in)aplicabilidade do art. 15 lei de introdução às normas do direito brasileiro. Inter – Revista de Direito
Internacional e Direitos Humanos da UFRJ, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 8-24, jun. 2022. p. 13
675
Ibid., p. 13
676
Ibid., p. 15-16
677
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 12. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2019. 1797 p. p. 1365
179

No mais, Mazzuoli também afirma que, na hipótese de o Estado agir em desacordo


com um entendimento do órgão jurisdicional interamericano, há a possibilidade de ele ser
condenado em um caso semelhante que venha ocorrer no futuro.678 Portanto, entende-se
que a sentença da Corte IDH vincula os terceiros Estados com caráter erga omnes,
devendo ser considerada res interpretata.679 Assim, entende Mazzuoli que os Estados
devem observar não só a Convenção Americana, como a jurisprudência que se forma a
partir dela, e aplicar o entendimento da Corte IDH em seu ordenamento jurídico
doméstico, “em homenagem ao exercício do controle de convencionalidade lato sensu”,
conforme ressalta Mazzuoli”.680
Portanto, é importante que os Estados adotem uma postura de compliance, com
as recomendações e interpretações do órgão jurisdicional interamericano, por todas as
esferas de seus órgãos administrativos e judiciais, a fim de que não seja condenado pelos
mesmos crimes e evitando prejuízos econômicos, advindos das penas de reparação e
indenização, assim como para uma integral e efetiva proteção dos Direitos Humanos.681
Também é importante mencionar que, mediante a Opinião Consultiva de nº
21/2014, versando sobre crianças migrantes, a Corte Interamericana estabeleceu que suas
opiniões consultivas também são parâmetros para controle de convencionalidade.682

678
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 12. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2019. 1797 p. p. 1365
679
Ibid., p. 1365
680
Ibid., p. 1366
681
OLIVEIRA, Caio José Arruda Amarante de; MOREIRA, Thiago Oliveira. A EXECUÇÃO DAS
SENTENÇAS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL:
(in)aplicabilidade do art. 15 lei de introdução às normas do direito brasileiro. Inter – Revista de Direito
Internacional e Direitos Humanos da UFRJ, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 8-24, jun. 2022. p. 18-19
682
Moreira, Thiago Oliveira. “ASPECTOS GERAIS DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE
INTERAMERICANO.” Participação na UFF (2022): n. pag.
180

5. A CONSTRUÇÃO JURÍDICA DA CIDADANIA LGBTQIAP+ NO BRASIL

O termo cidadania, como se conhece na atualidade, origina-se da terminologia


grega civitas, que se referia aos moradores das cidade-estado gregas, os quais faziam parte
de sua organização política e social por meio de sua participação na tomada de decisões.
Em Roma, essa terminologia indicava a situação política do indivíduo, e os direitos que
lhe eram inerentes de exercício. A ideia de cidadania se consolidou por meio das
revoluções burguesas do Século XVIII, a exemplo da Revolução Francesa e da
Independência dos Estados Unidos da América, quando os Estados de Direito surgem
para substituir as monarquias absolutistas, e onde a Constituição figura como instrumento
central do estado, que confere a todos os cidadãos direitos iguais perante a Lei.683
Ainda mais, T. H. Marshall, em sua obra intitulada Cidadania, Classe social e
Status, publicada no Brasil em 1967, separa o conceito de cidadania em três elementos:
civil, política e social. Para o autor, estariam inseridos no elemento civil os direitos
essenciais às liberdades individuais (de ir e vir, de pensamento, de fé, de imprensa), bem
como os direitos à propriedade, à celebração de contratos e de acesso à justiça, sendo um
elemento que estaria diretamente relacionado aos tribunais de justiça e ao acesso a justiça
como forma de afirmação dos outros direitos.684
O elemento político, por sua vez, se refere ao direito de participar do exercício
do poder político, como membro de um organismo investido da autoridade política ou
como eleitor, e estaria representado pela instituição do parlamento e pelo governo local.685
Já o elemento social está ligado ao mínimo bem-estar econômico e segurança, bem como
ao direito de participação direta na herança social e de levar uma vida civilizada, em
conformidade com os padrões sociais que prevalecem na época. As instituições que se
relacionam a esse direito são o sistema educacional e os serviços sociais.686
No mais, de acordo com as conceituações contemporâneas elaboradas por Jaime
Pinsky, ser cidadão é ter direitos civis, consubstanciados nas garantias de respeito a sua à
vida, à liberdade, à propriedade à igualdade, de participar na construção do futuro da
sociedade, por meio do direito a votar, a ser votado, a exercer seus direitos políticos e a

683
CANABARRO, Ronaldo. História E Direitos Sexuais no Brasil: o movimento LGBT e a discussão sobre
a cidadania. In: II Congresso Internacional de História Regional, 2013, Passo Fundo/RS. Anais
Eletrônicos. 2013. ISSN 2318-6208 p. 6
684
MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar Editores S/A, 1967. p.
63
685
Ibid., p. 63
686
Ibid., p. 63 e 64
181

participar na riqueza coletiva por meio do acesso a educação, aos serviços de saúde, ao
salário justo e a uma velhice digna.687 O autor assevera também que o conceito de
cidadania não é imutável, pois está em constante metamorfose sob a influência do tempo
e do espaço, o que acarreta direitos e deveres distintos, quando comparamos a experiência
de países diferentes. O conceito e a prática da cidadania vêm se alterando ao longo dos
últimos séculos, em decorrência de fatores como uma abertura mais ampliada do estatuto
do cidadão para sua população e do grau de participação política de diferentes grupos, a
exemplo do voto feminino e dos analfabetos, aos direitos sociais e à proteção social
fornecida pelo Estado aos necessitados.688
Pinsky também afirma que, mesmo não havendo um padrão único de evolução
da cidadania, não se pode dizer que inexiste um processo de evolução no sentido de
ampliação dos direitos ao longo da história, e esses direitos se instauram a partir de
processos de luta, como aqueles que culminaram na independência dos Estados Unidos
da América e na Revolução Francesa, a título exemplificativo.
Neste capítulo, serão estudadas as intersecções entre cidadania, sexualidade e
identidade, que fundamentam o conceito de cidadania sexual. Posteriormente, será
apresentado o conceito de cidadania sexual e suas relações com os discursos jurídicos e
as formas de manutenção de poder.

5.1 CIDADANIA, IDENTIDADE E SEXUALIDADE

Em sua obra “Cidadania Sexual: estratégias para ações inclusivas”, Adilson José
Moreira explica as relações entre os conceitos de cidadania e identidade, destacando, em
um primeiro momento, o paradigma filosófico chamado de “lógica da identidade”.689 Tal
lógica é originada por meio de uma concepção matemática da realidade, desenvolvida por
filósofos gregos, objetivando delimitar as relações de igualdade que se encontravam
presentes na realidade, de forma que, para os indivíduos serem adequadamente
conhecidos, eles precisariam estar referidos a aquilo que os une. O autor explica ser o
processo de redução da multiplicidade e heterogeneidade ao uno e ao idêntico,

687
PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (org.). História da Cidadania. 6. ed. São Paulo: Editora
Contexto, 2015. 573 p. p. 9
688
Ibid., p. 9
689
MOREIRA, Adilson José. Cidadania Sexual: estratégia para ações inclusivas. Belo Horizonte: Arraes
Editores, 2017. 306 p. p. 53
182

desenvolvido pela razão, que põe em contraposição os conceitos de igualdade e diferença.


Essa lógica tem como papel configurar as formas com que a razão é operada, e contribui
para determinação dos modos como a identidade será estabelecida como programa
cultural, este que permitirá a autocompreensão dos indivíduos por meio de seu
pertencimento social, assim como desempenha um papel nas práticas jurídicas, pois, o
princípio da universalização de direitos só é possível quando os indivíduos se reconhecem
como iguais, e tal igualdade se fundamenta a partir de uma identidade comum a todos.
Assim, esse conceito metafísico e matemático de identidade seria a base para uma
categoria política universal, que pode ser reunido na palavra cidadania.690
Para tanto, a modernidade insere uma nova problemática nessa lógica da
identidade, que consiste na representação do homem como sujeito de direito. O ideal
universalista da cidadania está disposto sobre o princípio de que todos tem o mesmo valor,
e merecem a mesma proteção das normas jurídicas, mas também opõe as características
gerais e particulares dos indivíduos, de forma que as normas jurídicas universais devem
ser aplicadas para todos, de uma mesma forma, desconsiderando-se suas particularidades.
Essa concepção de cidadania fundada na universalidade incentiva que os indivíduos se
identifiquem com a comunidade, assim como abandonem ou reprimam os interesses que
sejam destoantes. Nesse entendimento de cidadania que opõe idênticos e diferentes,
muitos grupos sociais são excluídos do espaço público pela sua não adequação.691
Também assevera Adilson Moreira que o sujeito político que se pressupõe no
regime democrático liberal se encontra marcado pela divisão entre público e privado. O
indivíduo na esfera pública, por sua vez, é entendido como um sujeito unitário, onde sua
subjetividade está individualizada, enquanto suas diferenças, que caracterizam os
indivíduos particulares, estão relegadas à esfera privada. O grande problema se encontra
nessa dissociação, pois ao conduzir as diferenças para o espaço privado, o liberalismo não
reconhece as relações de poder ali existentes.692 Para James Connolly, é na esfera privada
que se originam as identidades individuais, e elas requerem as diferenças para se
confirmarem no processo de construção da alteridade, e quando uma forma de identidade

690
MOREIRA, Adilson José. Cidadania Sexual: estratégia para ações inclusivas. Belo Horizonte: Arraes
Editores, 2017. 306 p. p. 53
691
Ibid., p. 54-55
692
Ibid., p. p. 55
183

é pressuposta como verdade, e alçada acima de outras identidades, ela é substituída pela
opressão.693
A identidade moderna, por sua vez, concentra-se na noção de sujeito como o
possuidor de uma consciência subjetivada, que é princípio do conhecimento. Tal
concepção fundamenta a ideia de que este indivíduo é um ser centrado, unificado e dotado
de razão, e que isso pressupõe sua coerência consigo mesmo ao longo de sua existência,
fazendo com que sua identidade fosse o centro da subjetividade. Portanto, a identidade
do indivíduo não seria considerada apenas pela reclusão do sujeito unitário na esfera
privada, mas também nas suas relações com outros indivíduos, que lhe permite mediar os
valores e formar sua própria identidade a partir da interação com a sociedade.694
A modernidade nos apresenta ao conflito entre identidade pública e identidade
privada, que acabam por se contrapor em razão de forças de emancipação e de regulação,
onde, sob a ótica do liberalismo, é conferida prioridade a identidades coletivas e abstratas,
em função das identidades individuais e concretas. Destarte, a cidadania assume a forma
universal e abstrata, mas a realidade social é marcada por uma pluralidade essencial.695
Para tanto, Adilson José Moreira explica que as diferenças individuais não
devem ser significantes quando se trata de acesso a oportunidades, mas devem ser levadas
em consideração quando se busca eliminar padrões de estratificação social.696 Assim, a
identidade é entendida como senso de individualidade que é construído dentro de um
processo relacional que envolve o contato com os outros, portanto, a consciência desse
sentimento depende da necessária interação com as outras pessoas. Ela também pode ser
resumida como a experiência de um sujeito de se sentir, existir e de ser reconhecido pelos
outros dentro de sua singularidade, frente as múltiplas determinações sociais, e pode ser
descrita como um processo que envolve uma dimensão tanto afetiva quanto cognitiva da
representação de si mesmo dentro de um círculo social.697 Portanto, o autor conclui
afirmando que “a identidade é um princípio unificador da pluralidade de nossas
experiências cognitivas e sensíveis”698.

693
CONNOLY, James. apud MOREIRA, Adilson José. Cidadania Sexual: estratégia para ações
inclusivas. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017. 306 p. p. 55
694
MOREIRA, Adilson José. Cidadania Sexual: estratégia para ações inclusivas. Belo Horizonte: Arraes
Editores, 2017. 306 p. p. 56
695
Ibid., p. 56
696
Ibid., p. 57
697
Ibid., p. 57
698
Ibid., p. 57
184

Ademais, seguindo nessa linha de raciocínio, conforme leciona T. H. Marshall,


os direitos e responsabilidades inerentes aos indivíduos, que resultam de seu
pertencimento social e na vida em comunidade, são o ponto de partida para se discutir
outros aspectos da cidadania.699
A partir disso, podemos discutir o liame entre cidadania e respeito à diversidade
de manifestações existentes no campo da sexualidade e da identidade de gênero. Para
tanto, importante destacar que a terminologia “sexualidade” vai além das relações sexuais
compreendidas em si. Ela diz respeito ao desejo, o afeto, a autocompreensão e a imagem
que os indivíduos têm dos outros, e tende a se fundir com a própria intimidade do
indivíduo, que é parte mais reservada de sua autocompreensão, pois está diretamente
ligada à afetividade e ao amor que são questões particulares de cada um,
independentemente do interesse sexual.700
Por se encontrar nesse locus, a sexualidade se vê como algo particular, pessoal,
onde se manifestam os sentimentos mais profundos do cidadão. Por isso, não se
surpreende que a sociedade a tenha selecionado como um meio de normalização dos
indivíduos, pois qualquer espécie de norma social que venha a provocá-la, no local
sensível onde ela se insere, detém um maior impacto. A sexualidade está diretamente
ligada à projeção de vivência do indivíduo em sociedade e do estabelecimento de seus
objetivos de vida nas esferas individual e coletiva.701
No que se refere à relação entre a cidadania e a sexualidade, entende-se que a
sexualidade detém grande relevância nos objetivos de vida dos indivíduos, por estar
associada as suas relações íntimas que só podem ser postas em prática por meio de acesso
a determinados direitos.702 Outra questão que compõe a cidadania consiste na capacidade
do sujeito de se autogovernar, ter controle de sua autonomia individual, e o exercício da
sexualidade compõe um dos pilares de tal autonomia.
A partir dessas condições, a regulação da sexualidade perpassa diretamente pelas
relações jurídicas, pois o direito corrobora com o reconhecimento da legitimidade de
determinadas práticas sociais. Ainda mais, as relações intimas e as uniões delas
decorrentes só podem ser operacionalizadas socialmente por meio de acesso a direitos.

699
DONOVAN, C.; HEAPHY, B.; WEEKS, J. Citizenship and same sex relationships. Journal of Social
Policy, v. 28, n. 4, p. 689-709, 1999. p. 693
700
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2012. 78 p. (Cadernos da Diversidade). p. 39 e 40
701
Ibid., p. 39 e 40
702
MOREIRA, Adilson José. Cidadania sexual: postulado interpretativo da igualdade. Direito, Estado e
Sociedade, v. 1, n. 48, p. 10-46, jan./jun. 2016. p. 21
185

Nesse sentido, a sexualidade se encontra diretamente relacionada à cidadania, tendo em


vista que as normas sociais podem afirmar ou rejeitar traços pessoais, em consonância
com os interesses dos grupos sociais majoritários. As instituições, por sua vez,
reproduzem esses interesses para outros âmbitos da vida em sociedade, como as
oportunidades políticas, sociais, educacionais e profissionais.703

5.2 CIDADANIA SEXUAL E DISCURSO JURÍDICO

Partindo-se dos conceitos apresentados anteriormente, recentemente, a partir dos


anos 1990, surge um tipo de política sexual que busca articular as pautas por igualdade e
justiça social, em termos da linguagem da cidadania, e que conduz a uma nova literatura
que vem agregando os discursos sobre cidadania e sobre sexualidade.704 Atualmente, essa
literatura se expandiu em uma ampla área de estudos, que tem como objeto debater sobre
os impactos da política sexual dos dias atuais na reconfiguração da cidadania.705
Segundo Donovan, Heaphy e Weeks (1999), os movimentos políticos e sociais
da época atraíam seus membros a partir da ideia de busca pela efetivação, por parte dos
governos e das organizações, de um acesso igualitário das pessoas não heterossexuais às
mesmas provisões legislativas e políticas que são conferidas às pessoas heterossexuais.
Nesses termos, os autores indicam que, além do acesso igualitário às provisões
legislativas e políticas, seja conferido um destaque à ausência de ordenação hierárquica
entre essa pluralidade de relacionamentos.706
O domínio conceitual dessa área de estudos, denominada de cidadania sexual,
tem como fundamento a alocação dos sujeitos que têm suas identidades construídas em
torno da sexualidade e do gênero, e que se sentem excluídas do que se compreende
hegemonicamente como cidadania.707
Alguns autores, como Plummer, utilizam-se também da nomenclatura Cidadania
Íntima para descrever o mesmo conjunto de ideias, acreditando que a terminologia

703
MOREIRA, Adilson José. Cidadania sexual: postulado interpretativo da igualdade. Direito, Estado e
Sociedade, v. 1, n. 48, p. 10-46, jan./jun. 2016. p. 21
704
RICHARDSON, D. Rethinking sexual citizenship. Sociology, v. 51, n. 2, p. 208-224, 2017. p. 208
705
Ibid., p. 209
706
DONOVAN, C.; HEAPHY, B.; WEEKS, J. Citizenship and same sex relationships. Journal of Social
Policy, v. 28, n. 4, p. 689-709, 1999. p. 692
707
PLUMMER, apud DONOVAN, C.; HEAPHY, B.; WEEKS, J. Citizenship and same sex
relationships. Journal of Social Policy, v. 28, n. 4, p. 689-709, 1999. p. 693
186

cidadania sexual pode significar que o conceito de cidadania até então não foi
sexualizado, quando, na verdade, o entendimento sobre cidadania como se apresenta na
maior parte das sociedades, carrega consigo uma premissa sexual cis-heteronormativa, e
fundamenta toda uma sociedade composta por instituições que se vinculam a essa
premissa sexual. Plummer conceitua a cidadania íntima como “o controle (ou não) sobre
o próprio corpo, sentimentos, relacionamentos, acesso (ou não) a representações,
relações, espaços públicos etc., escolhas socialmente fundamentadas (ou não) sobre
identidades e experiências de gênero”.708
O estudo da cidadania sexual parte do pressuposto que existe uma construção
dominante de cidadania, no âmbito público, que circula em torno de um modelo
hegemônico de vida heterossexual, e que deixa as pessoas não heterossexuais incapazes
de vivenciar plenamente sua participação na sociedade. Nesse sentido, a expressão
“Cidadania Sexual” também denota um fundamento interpretativo de situações jurídicas
que entendem o direito como mecanismo de preservação de desigualdades.709
Sobre esse mesmo assunto, Moreira ilustra que o conceito de cidadania sexual
parte primordialmente da ideia de contestar uma ordem social que se esforça em preservar
a heterossexualidade como seu fundamento central, e que, por consequência, sugere uma
primazia do direito natural na interpretação de normas jurídicas, utilizando-se da
heterossexualidade como fundamento moral de superioridade.710
Para as pessoas que defendem esse tipo de sociedade, conferir proteção jurídica
às relações não heterossexuais seria um obstáculo à realização de um interesse estatal de
reprodução, em detrimento ao prazer individual das relações entre pessoas do mesmo
sexo, por isso defendem um caráter preservacionista do direito, em razão das pessoas
heterossexuais corresponderem a uma maioria na sociedade. Percebe-se, aqui, uma
organização da sociedade que preconiza os direitos estatais aos individuais, onde a função
do sistema jurídico seria de preservar a sociedade em detrimento de demandas que podem
vir a ameaçar suas bases.711
Partindo-se dos tópicos anteriores, é importante pontuar acerca das formas de
utilização do discurso jurídico, como forma de legitimar determinados discursos, que

708
PLUMMER, apud DONOVAN, C.; HEAPHY, B.; WEEKS, J. Citizenship and same sex
relationships. Journal of Social Policy, v. 28, n. 4, p. 689-709, 1999. p. 694
709
MOREIRA, Adilson José. Cidadania sexual: postulado interpretativo da igualdade. Direito, Estado e
Sociedade, v. 1, n. 48, p. 10-46, jan./jun. 2016. p. 15
710
Ibid., p. 14
711
Ibid., p. 14
187

podem ser utilizados como projeto de dominação. Para tanto, Adilson José Moreira, em
seu texto Direito, poder, ideologia: discurso jurídico como narrativa cultural, assevera
sobre a importância de determinadas “narrativas” para a composição de uma interpretação
jurídica de normas constitucionais.712
Da interpretação da obra de Moreira para o contexto das pessoas não cis-
heterossexuais, depreende-se que, hodiernamente, os tribunais assumem um papel de
determinar o sentido das normas constitucionais, e que tais interpretações são construídas
por meio de embates entre teses divergentes acerca de um objeto.713
Nesse sentido, o formalismo jurídico pressupõe que, quando se depara com um
embate entre posições contrárias e favoráveis, o julgador se utiliza de normas legais e
princípios interpretativos como fundamento para pautar sua atividade, aplicando-as
objetivamente ao fato. Nesses casos, o papel do julgador estaria na escolha da norma mais
adequada para resolução do conflito. Ocorre, que tal atividade interpretativa é mais
complexa do que se pode imaginar, pois o intérprete pode atuar como um agente
ideológico, na medida em que as normas jurídicas possuem um peso distinto no processo
de decisão, devendo ser levado em conta a realidade social em que os sujeitos se
apresentam. Afirma Moreira que alguns estudiosos ligados à teoria crítica do direito,
investigando o uso de argumentos sociológicos no processo de interpretação judicial, se
puseram a classificar as decisões judiciais como narrativas culturais.714
Nesse sentido, o conceito de narrativa compreende a tendência humana de
atribuir sentidos aos inúmeros fatos que constituem uma experiência social e coletiva. Tal
atribuição de sentidos é conferida por meio da associação dos acontecimentos à certos
valores, fazendo com que tais fatos adquiram significações a partir da maneira como eles
são apresentados. A utilização das narrativas culturais adquire importância em razão da
dimensão política do discurso jurídico, pois, um processo judicial pode ser o meio pelo
qual determinados grupos sociais tentam universalizar seus projetos ideológicos.715
Adilson José Moreira argumenta, fundamentado na Teoria Crítica do Direito,
que os intérpretes “constroem textos jurídicos como objetos de conhecimento em função

712
MOREIRA, Adilson José. Direito, poder, ideologia: discurso jurídico como narrativa cultural / law,
power, ideology. Revista Direito e Práxis, São Paulo, v. 8, n. 2, p. 830-868, 14 jun. 2017. Universidade
de Estado do Rio de Janeiro. http://dx.doi.org/10.12957/dep.2017.21460. p. 832
713
Ibid., p. 832
714
Ibid., p. 832-833
715
Ibid., p. 833
188

de categorias mentais internalizadas no processo de socialização”.716 É preocupante


quando o procedimento judicial visa discutir parâmetros que regularão relações sociais e
orientarão políticas públicas, como é o caso do casamento homoafetivo ou da retificação
do registro civil das pessoas transexuais.
É nesse contexto de ausência de proteção jurídica normativa, em razão do
desinteresse parlamentar em normatizar sobre as relações entre pessoas não
heterossexuais, que os tribunais brasileiros vêm utilizando a cidadania sexual como um
princípio nas decisões que fundamentam direitos para pessoas não-heterossexuais,
figurando como uma forma de controle de constitucionalidade de atos estatais, porém sem
se ater a definir precisamente esse termo.717
Ao explorar o conceito de cidadania sexual, de forma jurídica, se faz necessária a
atenção a alguns pressupostos: o primeiro deles é a consciência de que sua aplicação se
empenha em eliminar as relações hierárquicas e arbitrárias entre os membros, partindo-
se do princípio da igualdade; o segundo pressuposto é a intrínseca relação entre cidadania
sexual e os pressupostos do Estado democrático de direito, de uma forma que a primazia
da igualdade proposta no Estado democrático molde o funcionamento das instituições
estatais, incentivando-as a criar mecanismos de eliminação da marginalização e promotor
da emancipação de determinados grupos sociais.718

O terceiro pressuposto que propõe Adilson José Moreira parte da ideia de que o
constitucionalismo compreende o Estado como um agente transformador da sociedade,
devendo abandonar o conservadorismo na seara jurídica e política, em prol do pluralismo
social, que consiste em um princípio ético que direciona as normas jurídicas. No quarto
pressuposto, entende-se a cidadania sexual como um princípio jurídico de interpretação
do princípio da igualdade, esta, por sua vez, é uma dimensão específica da dignidade
humana. O quinto pressuposto classifica a cidadania sexual como uma referência para a
ação política, compromissada com o princípio democrático.719

716
MOREIRA, Adilson José. Direito, poder, ideologia: discurso jurídico como narrativa cultural / law,
power, ideology. Revista Direito e Práxis, São Paulo, v. 8, n. 2, p. 830-868, 14 jun. 2017. Universidade
de Estado do Rio de Janeiro. http://dx.doi.org/10.12957/dep.2017.21460. p. 838
717
MOREIRA, Adilson José. Cidadania sexual: postulado interpretativo da igualdade. Direito, Estado e
Sociedade, v. 1, n. 48, p. 10-46, jan./jun. 2016. p. 15
718
Ibid., p. 15 e 16
719
Ibid., p. 16
189

5.3 CIDADANIA SEXUAL E AS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL


FEDERAL BRASILEIRO

Nas últimas duas décadas, o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro vem se
deparando com diversos casos envolvendo a tutela dos direitos das minorias sexuais.
Desde o ano de 2008, até o ano de 2021, foram apreciadas pelo plenário dez situações
envolvendo tais minorias, conforme se depreende dos cadernos de jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal referente aos direitos das pessoas LGBTQIAP+, publicado em
parceria com o Conselho Nacional de Justiça, no ano de 2022.720
No mais, este capítulo tem como objetivo explorar o inteiro teor de cada uma
dessas decisões e identificar, ao longo dos votos dos ministros, a presença dos elementos
de cidadania e a influência do direito internacional dos direitos humanos e da
jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Para tanto,
metodologicamente serão utilizados como parâmetro de busca, nas decisões judiciais, as
palavras “Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos”, “Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” “Corte Interamericana”, e “Yogyakarta”.

5.3.1 Julgamento conjunto da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental de nº


132 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade de n.º 4.277

A primeira situação analisada neste estudo foi proferida em 5 de maio de 2011


pelo Supremo Tribunal Federal, e diz respeito ao julgamento conjunto da Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 132, em conjunto com Ação Direta de
Inconstitucionalidade de nº 4.277, referentes a união estável homoafetiva, de relatoria do
Ministro Ayres Britto. A ação foi proposta pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro,
tendo como objeto a interpretação dos incisos II e V do art. 19 do Estatuto do Servidores
Civis do Estado do Rio de Janeiro, assim como as decisões proferidas em outras unidades

720
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Direito das pessoas LGBTQIAP+. Brasília, 2022. 138
p. (Cadernos de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal : concretizando direitos humanos). Composto
de decisões do Plenário do STF julgadas no período compreendido entre 3/12/2008 e o ano de 2021. ISBN:
978-65-87125-56-5. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/12/cadernos-stf-
lgbtqia-3.pdf. Acesso em: 13 jul. 2023.
190

federativas do Brasil que neguem às uniões homoafetivas estáveis os mesmos direitos


conferidos às pessoas heterossexuais.721
A parte autora alega que as pessoas homossexuais são sujeitas de violação,
ininterruptamente, dos preceitos fundamentais da igualdade, da segurança jurídica, da
liberdade, e da Dignidade Da Pessoa Humana, presentes na Constituição Federal.
Ademais, o autor da ação pondera que a homossexualidade é fato da vida e que o papel
do estado e do direito é de assegurar o desenvolvimento da personalidade de todas as
pessoas. Assim, postula a analogia no direito para equiparar as uniões estáveis
homoafetivas às uniões entre pessoas de sexos diferentes.722
Outrossim, no que diz respeito sua relação com o Direito Internacional dos
Direitos Humanos, o voto do relator não faz alusão nenhum instrumento internacional de
proteção, em que pese ele mencione o § 2º do art. 5º da Constituição Federal, quando este
põe em evidência que os direitos expressos na Constituição não excluem outros direitos
e decorrentes dos tratados internacionais que o Brasil faça parte.723 Ademais, no voto do
ministro Marco Aurélio, por sua vez, há a referência à Corte Interamericana de Direitos
Humanos e ao seu reconhecimento da proteção jurídica conferida aos projetos de vida,
em especial nas sentenças Loayza Tamayo vs. Peru e Cantoral Benevides vs. Peru, as
quais esclarecem que o projeto de vida faz parte do conteúdo da dignidade da pessoa
humana.724 Outrossim, o termo “corte interamericana” aparece uma única vez no inteiro
teor do acórdão, assim como a palavra “Yogyakarta”. Os Pactos Internacionais de 1966
não são citados no inteiro teor deste acórdão.
Assim, votaram os ministros por conferir, com eficácia para todos e efeito
vinculante, a exclusão de qualquer asserção que impeça o reconhecimento da união entre
pessoas do mesmo sexo como família, atribuindo-lhes as mesmas regras da união estável
heterossexual.725

721
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 132.
Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Relator: Carlos Ayres Brito, 05.05.2011 p. 10
722
Ibid., p. 11
723
Ibid., p. 5
724
Ibid., p. 212
725
Ibid., p. 2
191

5.3.2 Ação De Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 291

Posteriormente, em 28 de dezembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal


apreciou a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 291, de relatoria do
Ministro Roberto Barroso. Essa ação foi proposta pela Procuradora Geral da República,
e tem como objeto discutir o teor do art. 235 do Código Penal militar, cujo título dispunha
sobre o crime de “Pederastia ou outro ato de libidinagem”, estando incluído no capítulo
“capítulo VII - dos crimes sexuais”. Esse artigo trazia em sua redação a disposição de que
seria crime, com aplicação de pena do tipo detenção, e previsão de cumprimento variando
de seis meses a um ano, “praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato
libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”.726
No mais, a petição inicial indica que o referido artigo violaria os artigos 1º,
incisos III e V; art. 3º, incisos I e IV e art. 5º, caput e incisos I, III, X e XLI da Constituição
Federal de 1988.727 Destaca que tal preceito advém de um contexto histórico de leis
antissodomia, que remontam ao período colonial, e cita um precedente da Corte Europeia
de Direitos Humanos e um precedente do Comitê de Direitos Humanos da ONU (caso
Toonen vs. Austrália), que concluem que as leis antissodomia violam os direitos
fundamentais. O documento também cita a vedação a discriminação fundada no sexo das
pessoas, discutida na ADPF 132, e defende que punição dos atos sexuais violaria a
dignidade humana, atentando contra a busca pela felicidade, destacando que os militares
não estão exercendo sua função a todo tempo.728
Portanto, o requerente concorda que a prática sexual durante as atividades
militares seriam condutas inapropriadas, mas assevera que o Direito Penal deve intervir
de forma mínima na sociedade, de modo que não deve ser tornada crime pois já existem
outros meios suficientes para tutelar esse bem jurídico. Assim, requer que o dispositivo,
em sua integralidade, seja declarado não recepcionado pela Constituição Federal de 1988,
assim como requer, sucessivamente, a não recepção das expressões “pederastia” e
“homossexual ou não”.729

726
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Acórdão nº 291. Relator: Ministro Roberto
Barroso. Brasília, DF, 28 de outubro de 2015. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
291 - Distrito Federal. Brasília, 11 maio 2016. p. 3
727
Ibid., p. 3
728
Ibid., p. 4
729
Ibid., p. 5
192

Nas considerações do Ministro Relator, em especial quando ele se refere a


discriminação fundada em orientação sexual em âmbito militar, chega-se à conclusão que
a inclusão dos termos “pederastia” e “homossexual ou não” revelam, de forma
inequívoca, o objetivo da norma de afastar as pessoas homossexuais das Forças
Armadas.730 Os argumentos que levam a essa conclusão advém da classificação direta,
por parte do dispositivo criminal, de uma categoria de pessoas vista como desviante.
Soma-se a esse fator o preconceito já existente no âmbito militar, que tem a visão da
homossexualidade como comportamento desviante desonroso, que pode desqualificar o
militar.731
Partindo desse contexto, o voto do relator aborda a invalidade da diferenciação
fundada em orientação sexual, por esta consistir em uma liberdade existencial, estando
relacionada a um grupo tradicionalmente descriminado, de forma que sua utilização como
fator de diferenciação deve ser vedada, em respeito aos princípios constitucionais da
Dignidade da Pessoa Humana e da Igualdade, expressos nos artigos 1º, III, 3º, IV e 5º
caput. Conclui que, embora destinado aos atos libidinosos praticados por pessoas
homossexuais ou heterossexuais, o dispositivo em questão produz maior impacto sobre
estes últimos, traduzindo-se em uma hipótese típica de descriminação indireta, de onde o
tribunal relaciona a teoria do impacto desproporcional de origem na jurisprudência norte-
americana, a qual leciona que normas pretensamente neutras podem gerar efeitos práticos
mais prejudiciais a um determinado grupo social, assim, sendo incompatíveis com o
princípio da igualdade.
Ademais, no que se refere ao diálogo entre o presente julgamento e o Sistema
Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, nenhuma das expressões verificadas
foi encontrada no inteiro teor deste acórdão.
Assim, em discussão no plenário do Tribunal, votaram pelo acolhimento integral
do pedido os Ministros Rosa Weber e Celso de Mello, enquanto votam pelo acolhimento
apenas do pedido sucessivo os ministros Luís Roberto Barroso (relator), Luiz Edson
Fachin, Teori Zavascki, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Marco Aurélio.732

730
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Acórdão nº 291. Relator: Ministro Roberto
Barroso. Brasília, DF, 28 de outubro de 2015. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
291 - Distrito Federal. Brasília, 11 maio 2016. p. 27
731
Ibid., p. 59
732
Ibid., p. 43-46
193

5.3.3 Recurso Extraordinário de nº 646.721: equiparação de regime sucessório entre


cônjuges e companheiros em união estável homoafetiva

No ano de 2017, o Supremo Tribunal Federal apreciou o Recurso Extraordinário


de nº 646.721, que trata da equiparação de regime sucessório entre cônjuges e
companheiros em união estável homoafetiva. Este Recurso Extraordinário foi proposto
pelo recorrente São Martin Souza da Silva, em face do acórdão proferido pela Oitava
Câmara do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, e teve como relator no
STF o Ministro Roberto Barroso.
Nesses termos, o presente caso envolve a constitucionalidade do art. 1.790 do
Código Civil de 2002, que outorga aos companheiros (conviventes em união estável)
direitos sucessórios diferentes daqueles que estão dispostos para os cônjuges, estes que
estão disciplinados no art. 1.829 do Código Civil.733 No caso paradigmático julgado nesta
ocasião, cujo tribunal reconheceu a repercussão geral em razão de sua importância social,
econômica, política e jurídica, o recorrente vivia há 40 anos em união estável
homoafetiva, e seu companheiro faleceu sem deixar testamento, ocasião em que sua
genitora ainda se encontrava viva e, em apreciação pelo Tribunal de origem, foi decidido
que o companheiro teria direito apenas um terço dos bens adquiridos onerosamente
durante a união estável, enquanto a mãe teria direito a todos os bens particulares do
falecido e também dois terços dos bens adquiridos durante a união estável. Porém, na
hipótese de os dois homens serem casados, o que na época do falecimento ainda não era
possível no Brasil734, o companheiro teria direito a 50% da herança.735
Assim, em sua apreciação, a Corte Constitucional brasileira entendeu que o
conceito de família no Brasil veio sofrendo diversas modificações advindas das relações
sociais. Explica, que o conceito jurídico de família, historicamente, era associado ao
casamento em que todas as constituições anteriores a 1988 associavam a Constituição da
família ao casamento. Porém, a partir da segunda metade do século XX, há uma evolução
nessa concepção de onde se entente que boa parte da população integra núcleos familiares
que, embora não sejam constituídos pelo casamento, são caracterizados pelo vínculo

733
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 646.721. Brasília, DF, 10 de maio de
2017. Recurso Extraordinário N.º 646.721. Brasília, 11 set. 2017. p. 25
734
O casamento homoafetivo no Brasil só veio ser possível após regulamentação do Conselho Nacional de
Justiça, no ano de 2013.
735
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 646.721. Brasília, DF, 10 de maio de
2017. Recurso Extraordinário N.º 646.721. Brasília, 11 set. 2017. p. 25
194

afetivo e pelo projeto de vida compartilhado. Cita o relator como exemplos as uniões
estáveis e das famílias monoparentais, pluriparentais e anaparentais. Portanto, a
Constituição Federal de 1988 rompeu com o tratamento jurídico tradicional da família,
aproximando o conceito social do conceito jurídico, de forma a reconhecer a família
constituída pelo casamento, em seu art. 226, § 1º, a união estável entre homem e mulher,
conforme art. 226, § 3º, e a família monoparental, consoante art. 226, § 4º.736
Associa também a dignidade da pessoa humana como fator determinante para
essa ressignificação de valores, assim como o papel do Estado frente a proteção das
relações familiares, de onde conclui que lhe cabe garantir a possibilidade de
autorrealização dos indivíduos, garantindo-lhes um ambiente para se desenvolver e
perseguir seus objetivos de vida.737
Assim, por maioria de votos dos ministros, apreciando o tema 498 da
repercussão geral, o Tribunal deu provimento ao recurso extraordinário ora formulado,
entendendo pela inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil de 2002, declarando
o direito do recorrente de receber a herança de seu companheiro, nos termos do art. 1829
do Código Civil de 2002. Votaram de forma divergente os ministros Marco Aurélio e
Ricardo Lewandowski. Outrossim, no que se refere ao diálogo desse caso com o Direito
Internacional dos Direitos Humanos, só se pode identificar uma menção à Corte
Interamericana de Direitos Humanos, no voto do Ministro Marco Aurélio, quando este
trata do posicionamento da Corte IDH nos projetos de vida, manifestados nos julgamentos
dos casos v. Loayza Tamayo versus Peru, Cantoral Benavides versus Peru.738
Outrossim, no que se refere ao diálogo entre o julgamento e o Sistema
Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, a expressão “Corte Interamericana” é
citada por 1 vez no inteiro teor do acórdão, enquanto “Convenção Americana”,
“Yogyakarta” e os Pactos Internacionais de 1966 não foram citados nenhuma vez.
Da análise do Recurso Extraordinário de nº 646.721, verifica-se que os ministros
do Supremo Tribunal Federal poderiam também ter citado o caso Duque vs. Colômbia
como argumento para enriquecer as discussões jurídicas e compatibilizar o ordenamento
jurídico interno ao Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. O caso
paradigmático julgado pela Corte IDH, cuja sentença já havia sido proferida em 26 de

736
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 646.721. Brasília, DF, 10 de maio de
2017. Recurso Extraordinário N.º 646.721. Brasília, 11 set. 2017. p. 31
737
Ibid., p. 25
738
Ibid., p. 15
195

fevereiro de 2016, apesar de tratar de bem jurídico diferente (tratava de pensão por morte,
enquanto no Recurso Extraordinário se fala de herança), compartilha de um mesmo
núcleo fático com o RE nº 646.721, que consiste no reconhecimento da união estável
entre dois homens como entidade familiar equiparada ao casamento. Mesmo que não
houvesse menção direta ao caso Duque, seria importante que o STF abordasse os artigos
da Convenção Americana que o fundamentam, que são o princípio da igualdade e não
discriminação, contido no art. 24 da CADH, assim como o respeito à integridade física,
psicológica e moral (art. 5.1 da CADH).

5.3.4 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275: alteração do nome e sexo de


pessoas transexuais no registro civil

A Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 4.275 teve sua sentença proferida


na data de 1 de março de 2018, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, e dispõe sobre a
alteração do nome e sexo de pessoas transexuais nos seus registros civis. Tal ação é de
iniciativa do Procurador Geral da República, que objetiva contestar o teor do art. 58 da
Lei 6.015 de 1973, este que dispõe que “o prenome será definitivo, admitindo-se, todavia,
a sua substituição por apelidos públicos notórios”.739
Em sede de inicial argumenta o Procurador Geral da República que deve ser
conferida ao art. 58 a interpretação conforme a Constituição Federal de 1988, em especial
no que se refere os artigos 1º, inciso III, 3º, inciso IV, e 5º, caput e inciso X. Da análise
desses artigos, entende-se a possibilidade de mudança de sexo e prenome, por pessoas
transexuais, em seus registros civis. Argumenta que a imposição de manutenção do
prenome em desconformidade com a própria identidade da pessoa atenta contra a
dignidade da pessoa humana e pode comprometer sua convivência com terceiros em
espaços públicos e privados.740 O requerente também utiliza-se do direito comparado para
explicar a ótica do Tribunal Europeu de Direitos do Homem, quando este entende que a
recusa em autorizar retificação da certidão de nascimento ofende a garantia a vida
privada, prevista na Convenção Europeia de Direitos Humanos.741

739
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275.
Brasília, DF, 01 de março de 2018. Ação Direta de Inconstitucionalidade N.º 4.275. Brasília, 07 mar.
2019. p. 5
740
Ibid., p. 5
741
Ibid., p. 5
196

No mais, o Procurador Geral da República também afirma que é incongruente


permitir que se altere o prenome sem que haja a correspondente modificação do sexo no
registro civil. Acrescenta que o direito fundamental a identidade de gênero justifica
alteração do prenome, independente da realização de cirurgia, e que já houveram casos
na jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão que assim decidiram,
condicionando tal mudança aos requisitos de possuir uma idade superior a 18 anos, ter
convicção de sua identidade de gênero há mais de três anos e haver aferição dos requisitos
por um grupo de especialistas, ocasião em que, em seus requerimentos, o requerente
também indica que devem ser observados estes três requisitos para alteração dos
assentamentos civis.742
Outrossim, se faz importante destacar, na análise do inteiro teor desse
julgamento, que o Tribunal Constitucional brasileiro entende que a solução desse caso
deve passar, invariavelmente, pela dignidade da pessoa humana e que esse caso
transcende a análise da normatização infraconstitucional dos registros públicos, devendo
ser melhor compreendido a partir dos direitos fundamentais, de sua eficácia horizontal, e
dos direitos da personalidade.743 Também é imperioso destacar que, durante todo o texto
do inteiro teor do julgamento, os princípios de Yogyakarta (soft law) são citados por sete
vezes, em especial no que se refere a sua conceituação de pessoas transexuais e da
aplicação das normas internacionais de direitos humanos relacionadas às questões de
gênero e sexualidade.
No mais, o voto do ministro Edson Fachin cita diretamente alguns dispositivos
do direito internacional. O voto analisa a Opinião Consultiva nº 24/17 proferida pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos, em especial quando esta estabelece que a orientação
sexual, a identidade de gênero e as expressões de gênero e sexualidade são categorias
protegidas pela Convenção Americana de Direitos Humanos, e, portanto, estão proibidas
quaisquer normas discriminatórias fundadas nessas características. Acrescenta que
nenhuma norma ou decisão estatal deve diminuir ou restringir os direitos das pessoas em
razão de tais elementos. Para tanto, o Ministro também cita o conceito de pessoa
transexual trazido pelos princípios de Yogyakarta, e o conceito de identidade de gênero
assentado pela Corte IDH, quando esta dispõe que a identidade de gênero se encontra

742
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275.
Brasília, DF, 01 de março de 2018. Ação Direta de Inconstitucionalidade N.º 4.275. Brasília, 07 mar.
2019. p. 6
743
Ibid., p. 31-32
197

ligada ao conceito de liberdade e da autodeterminação dos seres humanos em escolher


livremente as circunstâncias que dão sentido à sua existência.744
Assim, Fachin conclui que o reconhecimento da identidade de gênero pelo
Estado, como elemento constitutivo da identidade humana, é importante para garantir o
gozo pleno dos direitos humanos das pessoas transexuais, que compreende a proteção
contra a violência, a tortura, os maus tratos, e que lhes permite um acesso ao direito à
saúde, à educação, ao emprego e à vivência e à liberdade de associação e expressão.745
Os ministros Gilmar Mendes e Rosa Weber também citaram a Corte IDH em
seus votos, com destaque para a fundamentação da Ministra Rosa Weber que se inicia
pelo seguinte trecho:

Nessa perspectiva de análise do problema jurídico no direito comparado e


internacional publico, imprescindível identificar e demonstrar a interpretação
jurídica firmada pela Corte Interamericana de Direitos humanos, uma vez que o
Brasil se submete à jurisdição desta Corte Regional, devendo sempre observar
(e exercer) o controle jurisdicional de convencionalidade.746

Seguidamente, a ministra cita o julgamento do caso Atala Riffo e Crianças vs.


Chile, ressaltando que, embora o problema daquele caso tenha sido referente a orientação
sexual, na justificativa da decisão foi adotada argumentação de que os estados devem
abster-se de realizar ações que venham a criar, de alguma forma, situações de
discriminação de fato de direito. Ressalta também que a Corte interpretou o artigo 1.1 da
Convenção Americana, que versa sobre a obrigação de respeitar os direitos, em especial
quando dispõe que os Estados se comprometem em proteger os direitos sem
discriminação por “qualquer outra condição social”, para abranger as categorias de
orientação sexual e identidade de gênero, conforme o princípio da interpretação da norma
mais favorável à pessoa humana.747
Portanto, a Ministra afirma que o direito a identidade pessoal é o direito dos
direitos da pessoa humana, e, que é a partir do reconhecimento da identidade que o sujeito
pode desenvolver sua personalidade. Nesse sentido, o direito a autodeterminação sexual
é um direito que decorre da dignidade humana, e conforma todo o ordenamento

744
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275.
Brasília, DF, 01 de março de 2018. Ação Direta de Inconstitucionalidade N.º 4.275. Brasília, 07 mar.
2019. p. 32-33
745
Ibid., p. 34-35
746
Ibid., p. 73
747
Ibid., p. 73
198

constitucional.748 Cita também o Princípio 3º de Yogyakarta que versa sobre o


reconhecimento doa personalidade jurídica e das obrigações que os Estados devem
garantir para cumprimento de tal reconhecimento, de onde a ministra dialoga com o
reconhecimento das uniões homoafetivas pelo STF no julgamento conjunto da ADI 4.277
e ADPF 132, e dos artigos 1º, III e 5º, X da Constituição Federal de 1988.749

No que se refere ao diálogo entre o julgamento e o Sistema Interamericano de


Proteção aos Direitos Humanos, a expressão “Corte Interamericana” é citada por 15 vezes
no inteiro teor do acórdão, enquanto “Convenção Americana” não foi citada nenhuma
vez, os princípios de Yogyakarta são citados por 7 vezes e os Pactos Internacionais de
1966 não foram citados diretamente no inteiro teor deste acórdão.
Assim, como resultado das discussões travadas no plenário do STF, acordam os
ministros, por maioria dos votos, em conferir interpretação conforme a Constituição e ao
Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58 da Lei 6.015/73, para que reconheça o direito
a substituição de prenome e sexo, diretamente no registro civil das pessoas transexuais
que desejarem realizar tais modificações, sem que haja necessidade de realizar cirurgia
de transgenitalização e tratamentos hormonais ou patologizantes.750

5.3.5 Recurso Extraordinário nº 670.422: alteração do nome e sexo no registro civil de


pessoas transexuais mesmo sem intervenção cirúrgica

Adiante, no ano de 2018, foi julgado o Recurso Extraordinário nº 670.422, que


tem como objeto verificar a inconstitucionalidade dos artigos 55, parágrafo único, 56 a
58 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73). O julgado tem como recorrente S. T. C.
e como recorrido o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
Nesse julgamento, o recorrente pleiteava a alteração de seu prenome de Sara para
Sandro T. C., assim como da mudança do gênero em seus assentamentos de nascimento,
de feminino para masculino, juntando documentos que demonstram a inexistência de

748
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275.
Brasília, DF, 01 de março de 2018. Ação Direta de Inconstitucionalidade N.º 4.275. Brasília, 07 mar.
2019. p. 76
749
Ibid., p. 79-81
750
Ibid., p. 2-3
199

intenção ilícita e comprovando sua aparência masculina desde a infância, assim como
relato de pessoas próximas e de sua companheira sobre os desconfortos vividos.751
Ademais, em sede de primeira instância, o recorrente teve sua ação parcialmente
procedente, condicionando a alteração do prenome à realização da cirurgia de
redesignação sexual. Em segunda instância, o órgão revisor entendeu que havia
necessidade de se manter no assentamento de nascimento a referência a decisão judicial
que modificaria o nome, constando expressamente no documento a condição de
transexual. Partindo desse contexto, o autor se insurge à Corte Constitucional.752
Em sua análise, o STF considera que esse caso deveria ter sido incluído em pauta
conjunta com a ADI nº 4.275, ocasião em que apresenta argumentos bastante
semelhantes.753 Importante identificar que o Tribunal aborda a identidade de gênero como
pressuposto para o desenvolvimento da personalidade humana, devendo ser afastado
quaisquer óbices jurídicos que limitem a liberdade de da identidade de gênero e
orientação sexual. Ressalta que o elemento fundamental a ser respeitado, nesse contexto,
é o desenvolvimento pleno da personalidade, observando-se os conteúdos mínimos da
autonomia, liberdade, conformação interior, assim como os componentes social e
comunitário.754
Outrossim, no que se refere a alteração de prenome no ordenamento jurídico
brasileiro, ela estava fundada nos artigos 55, parágrafo único, 56 a 58 da Lei de Registros
Públicos (Lei 6.015/73). Ademais, O relator Ministro Dias Toffoli explica que, em casos
excepcionais, é possível superar a barreira da imutabilidade do prenome, conforme expõe
o art. 58, que versa sobre a possibilidade de modificação do prenome por decisão judicial.
Assim, conclui que pela possibilidade da exceção motivada, e pela sua aplicação às
pessoas transexuais, sob a justificativa de que a alteração dos prenomes se dá em razão
da adequação aos apelidos públicos notórios, os quais, diante da situação fática do dia a
dia desse grupo, se não forem concedidas, geram prejuízos de exposição dessas pessoas
ao ridículo, violando a dignidade da pessoa humana.

751
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Recurso Extraordinário nº 670.422. Brasília, DF,
15 de agosto de 2018. Recurso Extraordinário Nº 670.422. Brasília, 10 mar. 2020. p. 3-4
752
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275.
Brasília, DF, 01 de março de 2018. Ação Direta de Inconstitucionalidade N.º 4.275. Brasília, 07 mar.
2019. p. 10-11
753
Ibid., p. 3-4
754
Ibid., p. 22
200

O relator também assevera que o fator diferenciador desse caso, frente aos
anteriores é a questão da modificação do sexo registral sem necessidade de cirurgia de
redesignação sexual. Nesse ponto, se faz imperioso destacar o seguinte trecho:

Sobre o tema, tenho a convicção da necessidade de se reconhecer a identidade


de gênero, como já́ salientado anteriormente, para avançarmos para uma
proteção jurídica completa, ultrapassando a classificação binária, tradicional e
estática, das pessoas em sexo masculino ou feminino. Isso significa que o
sistema há de se aperfeiçoar, indo além daquele tradicional de identificação por
sexos para abarcar também os casos daqueles cuja autopercepção difere do que
se registrou no momento do nascimento e das respectivas conformações
biológicas.755
Outro ponto abarcado pelo julgamento do Recurso Extraordinário n.º 670.422
consiste na vedação do termo transexual dos assentos de registro civil, de onde o Ministro
Dias Toffoli entende que não é o sexo da pessoa que a conecta a sociedade, mas sim sua
identidade psicológica, por isso, a anotação da terminologia transexual nos
assentamentos, além de afrontar a dignidade da pessoa humana, teria como efeitos sua
discriminação, exclusão e estigmatização. Para tanto, sugere que seja anotado apenas a
expressão “averbação por decisão judicial” no registro da pessoa, e assim estariam
assegurados o direito da pessoa de ter reconhecida sua identidade de gênero, assim como
a segurança jurídica e respeitado o princípio da confiança, que incide no regime
registral.756
Em seu voto, Toffoli cita o art. 24 da Convenção Americana de Direitos
Humanos, que versa sobre a igualdade de direitos, assim como o art. 18 que dispõe sobre
o direito ao nome, e relembra que o Brasil é signatário da referida Convenção. Cita
também que o primeiro país da América Latina a sancionar uma lei sobre direito à
igualdade de gênero foi o Uruguai, em 2009, seguido pela Argentina, no ano de 2012,
com destaque que a Argentina buscou a desjudicialização do procedimento. Nessa
decisão também há menção aos princípios de Yogyakarta, por oito vezes, com destaque
para as definições de identidade de gênero e orientação sexual trazidas no documento.
Destarte, no voto da Ministra Rosa Weber, ela cita a Corte IDH no julgamento
do caso Atalla Riffo e Crianças vs. Chile, e o entendimento da Corte de que a identidade
de gênero e orientação sexual são categorias protegidas pela Convenção Americana. O
Ministro Gilmar mendes, por sua vez, citou a opinião Consultiva nº 24 da Corte IDH, em

755
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Recurso Extraordinário nº 670.422. Brasília, DF,
15 de agosto de 2018. Recurso Extraordinário Nº 670.422. Brasília, 10 mar. 2020. p. 32
756
Ibid., p. 38-39
201

especial no trecho que versa sobre as mudanças de nome e correção nos assentamentos
civis.
Nesses termos, no que se refere ao diálogo entre o julgamento e o Sistema
Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, a expressão “Corte Interamericana” é
citada por 4 vezes no inteiro teor do acórdão, enquanto os princípios de Yogyakarta são
citados por 8 vezes, já “Convenção Americana” e os Pactos Internacionais de 1966 não
foram citados no inteiro teor deste acórdão.
Portanto, da análise do presente caso, apreciando o tema de repercussão geral de
nº 761, o tribunal fixou as seguintes teses:

i) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e


de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada
além da manifestação da vontade do individuo, o qual poderá́ exercer tal
faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa; ii)
essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, sendo
vedada a inclusão do termo ‘transgênero’; iii) nas certidões do registro não
constará nenhuma observação sobre a origem do ato, sendo vedada a expedição
de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por
determinação judicial; iv) efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá́
ao magistrado determinar, de ofício ou a requerimento do interessado, a
expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos
órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo
sobre a origem dos atos.757

Assim, entendem também que todo o processo de alteração de prenome e


de sexo nos assentamentos civis, sejam em âmbito administrativo ou judicial, devem ser
cobertos pelo sigilo durante todo o processo.758

5.3.6 Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26: criminalização da


homotransfobia

Em 13 de junho de 2019, foram julgadas pelo plenário do Supremo Tribunal


Federal duas ações com o mesmo tema: a Ação Direta de Inconstitucionalidade por
Omissão nº 26 e o Mandado de Injunção nº 4.733. Em seus esclarecimentos iniciais, o
presidente do STF registra que serão julgadas as duas ações, a iniciar pelo relatório
proferido pelo relator Ministro Celso de Mello, na ADO nº 26, seguido pelo relatório do

757
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Recurso Extraordinário nº 670.422. Brasília, DF,
15 de agosto de 2018. Recurso Extraordinário Nº 670.422. Brasília, 10 mar. 2020. p. 2-3
758
Ibid., p. 2
202

relator Ministro Edson Fachin, no MI nº 4.733. Ambas as ações tratam sobre o tema da
criminalização da homotransfobia.759
A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, por sua vez, foi proposta
pelo Partido Popular Socialista – PPS em face do Congresso Nacional, sob a alegação de
inércia legislativa, onde o proponente sustenta que o Congresso Nacional estaria
impossibilitando a tramitação e a apreciação de projetos de lei com iniciativa de
criminalizar todas as formas de homofobia e transfobia, assim afastando a proteção
jurídico-social das pessoas LGBTQIAP+.760 O proponente sustenta suas alegações nos
art. 5º, XLII da Constituição Federal de 1988, que dispõe sobre a ordem constitucional de
legislar sobre o racismo, também no art. 5º, XLI da Constituição Federal de 1988 que
versa sobre a punição proveniente de lei para todas as discriminações atentatórias a
direitos e liberdades fundamentais.761
A presidência do Senado Federal e a Câmara Alta se manifestaram pela
improcedência, tendo esta última elencado diversos projetos de lei relativos à
criminalização da homofobia e transfobia em tramitação no Congresso Nacional,
defendendo que não há inércia do legislativo nesses temas. A Câmara dos Deputados
também se manifestou no pleito, indicando a aprovação de um projeto de lei que seguiu
para o Senado Federal.762
Ademais, no voto do Ministro Relator destaca-se sua conceituação de sexo e
gênero, de onde cita autores que defendem a definição de gênero como uma construção
social, assim como utiliza-se das definições de orientação sexual e identidade de gênero
expressas nos Princípios de Yogyakarta. Sobre estes, tece as considerações que é preciso
reconhecer a existência desses princípios, “Notadamente daqueles que reconhecem a
inter-relacionalidade e indivisibilidade de todos os aspectos da identidade humana”.763
Destaca-se que durante todo o inteiro teor do julgamento da ADO nº 26, os princípios de
Yogyakarta sã citados 12 vezes.
Outrossim, o Ministro Relator ressalta também a importância do julgamento para
a ampliação e consolidação dos direitos fundamentais das pessoas, para efetivação de que
todos são livres e iguais em direitos, conforme explana a introdução aos princípios de

759
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Acórdão nº 26. Relator: Relator Ministro Celso de
Mello. Brasília, DF, 13 de junho de 2019. Ação Direta de Inconstitucionalidade Por Omissão n.º 26.
Brasília, 06 out. 2020. p. 13
760
Ibid., p. 15
761
Ibid., p. 17
762
Ibid., p. 17-23
763
Ibid., p. 45-46
203

Yogyakarta, de onde traça o liame entre a essencialidade da orientação sexual e identidade


de gênero para a dignidade de cada indivíduo, não devendo ser motivo de discriminação
ou abuso. Cita expressamente o Princípio de nº 3, que trata do direito de ser reconhecido
em qualquer lugar, como pessoa perante a lei.764
Também é citado o precedente histórico do Tribunal no caso Ellwanger (HC
82.424/RS), onde o STF entendeu que a noção de racismo não se resume a um conceito
estritamente antropológico ou biológico, projetando-se em uma dimensão cultural e
sociológica, de forma abranger situações injustas oriundas de discriminação ou de
preconceito motivados pela orientação sexual e identidade de gênero.
No que se refere ao diálogo entre o julgamento e o Sistema Interamericano de
Proteção aos Direitos Humanos, a expressão “Corte Interamericana” é citada por 11 vezes
no inteiro teor do acórdão, enquanto “Convenção Americana” é citada por 16 vezes. As
citações se referem ao artigo 9 da CADH, que dispõe sobre a proibição de condenação
por ações ou omissões que no momento do fato não forem crimes.765 Cita-se também o
art. 13 § 5º, que afasta do âmbito de proteção da liberdade de manifestação de pensamento
as apologias ao ódio e discriminação, hostilidade, crime e violência.766A Ministra
Carmem Lúcia, por sua vez, cita em seu voto o caso Atala Riffo e Filhas vs. Chile,
destacando o dever de garantir os direitos sem discriminação, expresso no art. 1.1 da
CADH, assim como o direito a igual proteção da lei, nos termos do art. 24 da CADH.767
Ademais, o “Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos” foi citado por
uma vez, e o “Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” não foi
citado no inteiro teor deste acórdão.
Os Ministros Celso de Mello e Edson Fachin citam também a Opinião
Consultiva de nº 24/2017 da Corte IDH, sinalizando a essencialidade do direito à
identidade de gênero e à orientação sexual da pessoa humana e a necessidade da proteção
estatal da “convivência harmônica, e ao desenvolvimento livre, digno e pleno das diversas
expressões de gênero e da sexualidade”.768
Ao final do julgamento, o Tribunal conheceu parcialmente a ADO nº 26,
julgando procedente, com eficácia geral e efeito vinculante, proferindo as seguintes

764
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Acórdão nº 26. Relator: Relator Ministro Celso de
Mello. Brasília, DF, 13 de junho de 2019. Ação Direta de Inconstitucionalidade Por Omissão n.º 26.
Brasília, 06 out. 2020. p. 137
765
Ibid., p. 62
766
Ibid., p. 141
767
Ibid., p. 493
768
Ibid., p. 55
204

decisões: reconhecer o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional em


legislar e cumprir o mandado de incriminação expresso nos incisos XLI e XLII do Art. 5º
da Constituição Federal de 1988, para proteger penalmente os integrantes do grupo
LGBTI+; declarar a existência da omissão normativa inconstitucional do Poder
Legislativo da União; conferir ciência ao Congresso Nacional, nos termos do art. 103 §
2º da Constituição e do art. 12-H, caput, da Lei nº 9.868/99; conferir interpretação
conforme a Constituição, fundado nos mandados de incriminação expressos nos incisos
XLI e XLII do Art. 5º, para enquadrar a homofobia e a transfobia, em quaisquer tipos de
manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89, até que haja uma lei
autônoma, por parte do Congresso Nacional, de modo a considerar que essas práticas
enquadram-se como espécies do gênero racismo, na dimensão do racismo social
consagrada no caso Elwanger (HC 82.424/RS); declarar que a interpretação conforme se
aplicará após a conclusão do julgamento.

5.3.7 Mandado de Injunção nº 4.733: criminalização da homotransfobia

O mandado de injunção nº 4.733, por sua vez, foi impetrado pela Associação
Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros – ABGLT, em face do Congresso Nacional,
com objetivo de criminalizar todas as formas de homofobia e transfobia, em especial as
ofensas, os homicídios, as agressões, ameaças e discriminações motivadas por orientação
sexual ou identidade de gênero.769 A impetrante demonstra a necessidade de
criminalização em razão dos dados de violência e discriminação, e o distanciamento do
exercício dos direitos fundamentais à livre orientação sexual e livre identidade de
gênero.770
Ademais, como foi julgado na mesma data que a ADO nº 26, e possuem o mesmo
objeto, suas fundamentações são bastante semelhantes. Destaca-se a atuação das
Organizações Não Governamentais envolvidas, que trazem ao caso um panorama
estatístico de violência contra as pessoas LGBTQIAP+, conduzindo ao Tribunal os dados

769
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Acórdão nº 4.733. Relator: Relator Ministro Edson
Fachin. Brasília, DF, 13 de junho de 2019. Mandado de Injunção nº 4.733. Brasília, 29 set. 2020. p. 5
770
Ibid., p. 5
205

estatísticos coletados pelo Grupo Gay da Bahia sobre assassinatos nos anos de 2016 a
2018.771
Quanto ao diálogo entre o MI 4.733 e o SIPDH, a expressão “Corte
Interamericana” é citada por 7 vezes no inteiro teor do acórdão, enquanto “Convenção
Americana” é citada por 6 vezes, o “Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos” é
citado por 4 vezes e o “Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”
não foi citado nenhuma vez.
No mais, a ministra Carmem Lúcia expôs os fundamentos do caso Atalla Riffo,
nos mesmos termos da ado nº 26, destacando os artigos 1.1 e 24 da CADH, e a Ministra
Rosa Weber destaca o art. 7 da CADH, que versa sobre a não privação de liberdade, salvo
pelas condições estabelecidas pelas constituições dos Estados. No mais, o Ministro
Relator, Edson Fachin, discute o relatório da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos sobre a violência contra pessoas LGBTQIAP+, destacando os dados estatísticos
presentes no relatório, assim como aborda a Opinião Consultiva nº 24 da Corte IDH
elucidando as conceituações de identidade de gênero e orientação sexual trazidas no
documento, e comentando sobre a interpretação da Corte sobre o princípio da igualdade
e não discriminação.772
Portanto, ao final da análise, o Tribunal julgou procedente o mandado de
injunção, de modo a reconhecer a morosidade do Congresso Nacional e expandir o
entendimento sobre a tipificação da Lei 7.716/1989, referente a criminalização em razão
dos preconceitos de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, para incluir
discriminação por orientação sexual e identidade de gênero.773

5.3.8 Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 457: divulgação de material


escolar sobre gênero e orientação sexual

A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 457 foi julgada em 27


de abril de 2020, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, tendo como objeto a
análise da constitucionalidade da Lei nº 1.516 do município de Novo Gama, Estado de

771
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Acórdão nº 4.733. Relator: Relator Ministro Edson
Fachin. Brasília, DF, 13 de junho de 2019. Mandado de Injunção nº 4.733. Brasília, 29 set. 2020. p. 62
772
Ibid., p. 42
773
Ibid., p. 2
206

Goiás, a qual proibiu a divulgação de material sobre “ideologia de gênero” nas escolas,
estabelecendo que os materiais didáticos deveriam ser analisados antes de sua distribuição
as escolas, e que não poderiam fazer parte do material didático das escolas no Município
de Novo Gama materiais que influenciem sobre a “ideologia de gênero”.774
O Procurador Geral da República, requerente dessa ação, fundamenta seu pedido
nos artigos 5º, caput, da CRFB, referente ao direito à igualdade; art. 5º, IX, da CRFB, que
dispõe sobre a vedação à censura em atividades culturais; art. 5º, LIV, da CRFB, referente
ao devido processo legal substantivo; art. 19, I, da CRFB, que versa sobre a laicidade do
Estado; art. 22, XXIV, da CRFB, que estabelece a competência privativa da União para
legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional; o art. 206, III, da CRFB, que fala
sobre o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; e o art. 206, II, da CRFB, que
discorre sobre o direito à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o
pensamento, a arte e o saber. Ao final, requer o deferimento de medida cautelar, com
objetivo de suspender a eficácia da norma impugnada, assim como a declaração de sua
incompatibilidade com as disposições da Constituição Federal.775
A decisão do Tribunal foi fundada nas alegações da competência privativa da
União para legislar sobre educação em âmbito nacional, a qual, no exercício dessa
competência, a União editou a Lei nº 9.394/1996, que dispõe sobre as diretrizes e bases
da educação nacional, em consonância com os arts. 205, 206, II e III e 214 da Constituição
Federal, salientando a promoção do pleno desenvolvimento do educando, que deve ser
preparado para o exercício da cidadania e para qualificação laboral, devendo observar-se
“os princípios da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, do
pluralismo de ideias e concepções pedagógicas e da promoção humanística, científica e
tecnológica do país”.776
Destaca que a lei municipal impugnada impõe o silêncio, a censura e o
obscurantismo como estratégias discursivas, que tem por consequência enfraquecer o
liame entre heteronormatividade e homofobia, o que ofende um dos objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, que é a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de raça, sexo, cor, idade e outras formas de discriminação, expresso no art.

774
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Acórdão nº 457. Relator: Relator Ministro
Alexandre de Moraes. Brasília, DF, 27 de abril de 2020. Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental Nº 457. Brasília, 03 jun. 2020. p. 3-4
775
Ibid., p. 5
776
Ibid., p. 16-17
207

3º, IV, da CRFB, assim como o princípio da igualdade incutido no art. 5º, caput da
CRFB.777
No que se refere ao diálogo entre o julgamento e o Sistema Interamericano de
Proteção aos Direitos Humanos, a expressão “Corte Interamericana” é citada por 2 vezes
no inteiro teor do acórdão, enquanto “Convenção Americana” é citada por 1 vez, os
princípios de Yogyakarta são citados por 3 vezes. Os Pactos Internacionais de 1966 não
são citados no inteiro teor deste acórdão.
Outrossim, o Ministro Relator Alexandre de Moraes cita a Opinião Consultiva nº
24/2017 da Corte IDH, realçando a importância do reconhecimento da identidade de
gênero para garantir o gozo pleno dos Direitos Humanos das pessoas trans, que inclui a
proteção contra a violência.778 O Ministro Gilmar Mendes, por sua vez, estende o discurso
a Declaração Universal dos Direitos Humanos, citando seus artigos I e II, que versam
sobre a liberdade e igualdade dos seres humanos, e a não discriminação por quaisquer
condições.779 Gilmar Mendes também cita a Convenção Americana Sobre Direitos
Humanos, em seu art. 1.1, quando este dispõe sobre a obrigação dos Estados de respeitar
os direitos.780 Com base nos fundamentos relatados, o STF conclui pela
inconstitucionalidade da Lei 1.516/2015 do Município de Novo Gama/GO, fundado no
voto do relator que trouxe os fundamentos constitucionais anteriormente elencados.

5.3.9 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.543: referente a doação de sangue por


homossexuais

Mais adiante, no ano de 2020, foi apreciada pelo plenário do Supremo Tribunal
Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.543, de relatoria do Ministro
Alexandre de Moraes, que trata da doação de sangue por homossexuais. Este caso tem
como objeto o artigo 64, IV, da Portaria nº 158/2016 do Ministério da Saúde, e o art. 25,
XXX, “d”, da Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 34/2014 da Agência Nacional
de Vigilância Sanitária – ANVISA, que tratam da inaptidão temporária, pelo período de

777
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Acórdão nº 457. Relator: Relator Ministro
Alexandre de Moraes. Brasília, DF, 27 de abril de 2020. Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental Nº 457. Brasília, 03 jun. 2020. p. 13-14
778
Ibid., p. 26
779
Ibid., p. 44
780
Ibid., p. 44
208

doze meses, das pessoas do sexo masculino que se relacionaram sexualmente com outras
pessoas do mesmo sexo, de realizar a doação de sangue.781
Esta ação foi proposta pelo Partido Socialista Brasileiro – PSB, que explica o
surgimento da proibição de doação de sangue no final da década de 1980, em razão do
desconhecimento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, e pela preocupação com
a chamada janela imunológica, que é o período imediatamente posterior à infecção pelo
vírus, quando os exames laboratoriais ainda não conseguem detectá-lo. Para tanto, os
requerentes argumentam que a medicina tem evoluído desde então, e que atualmente se
consegue identificar a presença do vírus em menor tempo.782
O requerente também alega que a proibição temporária sugerida pela Portaria do
Ministério da Saúde transforma-se em proibição permanente de doação de sangue para as
pessoas homossexuais que possuem mínima atividade sexual. Além disso, a alegação de
que homossexuais são mais promíscuos também não prospera, pois já existe legislação
que prevê a exclusão da doação de sangue por pessoas que têm múltiplos parceiros, sejam
elas heterossexuais ou homossexuais, e, portanto, haver uma norma específica para as
pessoas homossexuais é absolutamente discriminatório.783
Nesses termos, o Ministro Relator, em sue voto, afirma que a discriminação está
presente quando se estabelecem grupos de risco para a doação de sangue, e não condutas
de risco, de modo que a associação de grupos gera uma interpretação consequencialista
desmedida que, nesse caso, tem como premissa que as pessoas homossexuais e bissexuais
são, por causa de sua orientação sexual, possíveis vetores de transmissão de infecções
como a SIDA.784 Ressalta o relator que a restrição de doação de sangue por homossexuais
viola “subjetivamente e a cada uma dessas pessoas; viola também o fundamento próprio
de nossa comunidade – a Dignidade da Pessoa Humana”, esta que se encontra prevista no
art. 1º, III da CRFB. Além disso, as pessoas afetadas por esta proibição também são
impedidas de exercer sua liberdade e autonomia, nos termos do art. 5º, caput, da CRFB.785
Em outro trecho de seu voto, o Relator salienta que somente haverá livre
igualdade, nos termos do art. 3º, I, para “os homens que fazem sexo com outros homens
e as parceiras sexuais destes” se as políticas públicas de doação de sangue deixarem de

781
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Acórdão nº 5.543. Relator: Relator Ministro Edson
Fachin. Brasília, DF, 11 de maio de 2020. Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 5.543. Brasília, 26
ago. 2020. p. 2
782
Ibid., p. 9
783
Ibid., p. 9
784
Ibid., p. 22
785
Ibid., p. 33
209

restringir a doação fundadas em critérios de orientação sexual e identidade de gênero dos


candidatos, devendo estabelecer limitações condicionantes que sejam gerais e que se
relacionem a condutas, práticas e comportamentos.786
Ademais, no que se refere a conexão entre a ADI nº 5.543 e o Sistema
Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, a expressão “Corte Interamericana”
não foi citada nenhuma vez no inteiro teor do acórdão, enquanto “Convenção Americana”
é citada por 8 vezes. Os princípios de Yogyakarta, por sua vez, são citados por 6 vezes, e
o pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos é citado por 9 vezes. No que se
refere a Convenção Americana, ela é utilizada para corroborar com os ditames do art. 1º,
III e 5º, caput, da CRFB, quando dispõe sobre os princípios da dignidade da pessoa
humana e a igualdade.787 Uma citação à Convenção Americana também aparece quando
o Ministro versa sobre o diálogo entre a não discriminação e a obrigação dos Estados de
respeitar os direitos, expressa no art. 1.1 da CADH.788
Neste documento também é citada a Convenção Interamericana contra Toda
Forma de Discriminação e Intolerância, de onde o Ministro Relator aponta a assinatura
pelo Brasil, e frisa que o instrumento expande a abrangência da discriminação,
constituindo-se o “primeiro instrumento jurídico juridicamente vinculante que condena
discriminação em razão de orientação sexual, identidade e expressão de gênero”.789
Assim, ante os argumentos expostos, ao final do julgamento, por maioria dos
votos foram julgados inconstitucionais o art. 64, IV, da Portaria 158/2016 do Ministério
da Saúde, e do art. 25, XXX, "d", da Resolução da Diretoria Colegiada - RDC 34/2014
da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA.790

5.3.10 Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 461: ensino sobre gênero e


orientação sexual nas escolas

O julgamento mais recente a ser analisado pelo presente estudo consiste na Ação
de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 461, apreciada no ano de 2020 pelo

786
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Acórdão nº 5.543. Relator: Relator Ministro Edson
Fachin. Brasília, DF, 11 de maio de 2020. Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 5.543. Brasília, 26
ago. 2020. p. 37
787
Ibid., p. 51
788
Ibid., p. 52
789
Ibid., p. 53
790
Ibid., p. 4
210

plenário do Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Ministro Roberto Barroso, e que


tem como tema o ensino sobre gênero e orientação sexual nas escolas.
Esta ação foi proposta pelo Procurador Geral da República, ante o artigo 3º, X,
da Lei nº 3.468, de 23 de junho de 2015, do Município de Paranaguá/PR, a qual trata da
aprovação do Plano Municipal de Educação de Paranaguá, e veda a “adoção de políticas
de ensino que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação
sexual”.791
O requerente argumenta que este dispositivo atenta contra os preceitos
constitucionais expressos no art. 3º, I, que trata do princípio da construção de uma
sociedade livre, justa e solidária; o art. 5º, caput, sobre o direito à igualdade; o art.
5º, IX, que veda a censura em atividades culturais; o art. 5º, LIV, que protege o
devido processo legal substantivo; a laicidade do Estado, expressa no art. 19, I; a
competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação
nacional, conforme expõe o art. 22, XXIV; o pluralismo de ideias e de concepções
pedagógicas, em atenção ao art. 206, I; e o direito à liberdade de aprender, ensinar,
pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, incutido no art. 206, II.792
No voto do Relator, Ministro Roberto Barroso, ele explica que vedar a adoção
de política sobre gênero e orientação sexual também é impedir que as escolas falem sobre
a temática e orientem os alunos sobre as diferenças, ainda que a diversidade de
identidades de gênero e orientação sexual sejam um fato da vida, um dado presente na
sociedade que elas terão que lidar.793 Também explica que a norma impugnada caminha
na contramão desses valores, pois ao impedir que os alunos tratem da sexualidade em sala
de aula, sobre os temas da orientação sexual e identidade de gênero, isso não suprime tais
fatores da experiência humana, apenas contribui para a desinformação das crianças e dos
jovens e a perpetuação de estigmas e de sofrimento.794
Ainda em suas considerações, o Relator aborda a violência e discriminação nas
escolas como um dos principais espaços de discriminação e estigmatização de crianças e
jovens transexuais e homossexuais, e que é nesse espaço que alguns jovens são
identificados, pela primeira vez, como afeminados ou masculinizados, pondo suas

791
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Acórdão nº 461. Relator: Relator Ministro Roberto
Barroso. Brasília, DF, 24 de agosto de 2020. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº
461. Brasília, 22 set. 2020. p. 5
792
Ibid., p. 5
793
Ibid., p. 13
794
Ibid., p. 15
211

características em contraste com o padrão cultural imposto, que os rotula como “normais”
ou “anormais”. Nesse contexto, conclui o Ministro que a inércia da escola é um fator que
contribui para a violência desses grupos de pessoas.795
Outrossim, o Relator também expõe a competência privativa da união em
legislar sobre diretrizes e bases da educação, em conformidade com o art. 22, XXIV da
CRFB e o art. 24, X, cabendo aos municípios apenas complementar as legislações federais
e estaduais, nos termos do art. 30, II da CRFB.796 Também aplica os arts. 2º e 3º, II, III
e IV da Lei de Diretrizes e Bases de Educação, que trata sobre a o respeito à liberdade,
o apreço a tolerância e a vinculação entre educação e práticas sociais como princípios que
devem orientar as ações educacionais.797
Nessa senda, explica que a educação assegurada pela Constituição Federal de
1988 é aquela voltada a promoção do pleno desenvolvimento da pessoa, sua capacitação
para cidadania, e o desenvolvimento humanístico do país, conforme leciona os arts. 205
e 214 da CRFB. Ainda mais, explana, em atenção ao art. 206, II, III e V, que se trata de
educação emancipadora - fundada, expressamente pela CRFB, no pluralismo de ideias,
liberdade de aprender e de ensinar - que objetiva habilitar a pessoa para os diversos
propósitos da vida, como ser humano, cidadão e profissional.798
Conclui que não se deve afastar dos alunos o acesso a temas que eles terão
contato na vida em sociedade, e quanto maior o seu contato com visões de mundo
diferentes, maior será o seu universo de ideias e mais confortável sua presença será em
ambientes diferentes do seu. O Ministro relator também considera que os alunos são seres
em formação, e que a educação é essencial para a sua autocompreensão, assim como
contribui para sua liberdade, sua autonomia, e para protegê-los contra discriminações e
contra ameaças de cunho sexual.799 Para tanto, cita o art. 227 da CRFB que dispõe sobre
o princípio da proteção integral da criança, do adolescente e dos jovens, que é atribuído
à família, à sociedade e ao Estado assegurar todos os direitos necessários ao seu adequado
desenvolvimento, onde se encontra a educação, liberdade, proteção contra negligência,
discriminação, crueldade e opressão.800

795
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Acórdão nº 461. Relator: Relator Ministro Roberto
Barroso. Brasília, DF, 24 de agosto de 2020. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº
461. Brasília, 22 set. 2020. p. 22-24
796
Ibid., p. 14
797
Ibid., p. 15
798
Ibid., p. 17
799
Ibid., p. 21
800
Ibid., p. 21
212

No que se refere ao diálogo entre o julgamento e o Sistema Interamericano de


Proteção aos Direitos Humanos, a expressão “Corte Interamericana” é citada por 1vez no
inteiro teor do acórdão, enquanto “Convenção Americana” também é citada por 1 vez. Os
princípios de Yogyakarta, por sua vez, não são citados, e o pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos também não foi citado. O Relator, ao tratar das normas
internacionais relacionadas ao caso, cita o Pacto Internacional sobre os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adicional de São Salvador à Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, este último que reconhecem que “a educação deve
visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, à capacitação para a vida em
sociedade e à tolerância e, portanto, fortalecer o pluralismo ideológico e as liberdades
fundamentais”.801
Ao final do julgamento, foi declarada a inconstitucionalidade material e formal
do art. 3º, X, da Lei 3.468/2015, referente ao trecho em que veda o ensino sobre gênero e
orientação sexual, sob a justificativa de que a norma compromete o acesso dos estudantes
a conteúdos relevantes e pertinentes à sua vida íntima e social, em desrespeito à doutrina
da proteção integral.802

801
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Acórdão nº 461. Relator: Relator Ministro Roberto
Barroso. Brasília, DF, 24 de agosto de 2020. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº
461. Brasília, 22 set. 2020. p. 17
802
Ibid., p.3
213

6. CONCLUSÃO

A presente pesquisa se desenvolveu a partir da ideia de cultura como alicerce para


teorizações sobre sexo biológico, identidade de gênero, os papéis de gênero e a orientação
sexual, assim como relacioná-la a construção de normas fundadas em gênero, e
demonstrar que tais normas repercutem até a atualidade sob a forma de dados estatísticos
de mortes violentas. Nesse sentido, foram apresentados os conceitos de
heteronormatividade e cisnormatividade, que são termos doutrinários utilizados para
designar a forma que os saberes e os poderes se valem das normas culturais sobre
sexualidade e gênero, transformando-as em um sistema normativo de ideias que valora
diferentemente os indivíduos, com parâmetro nas normas culturais. A partir desse sistema
normativo, desenvolvem-se na sociedade pressupostos de normalidade, e tudo aquilo que
diverge da norma desenvolvida é considerado ilegítimo, anormal e delirante.
Por meio de exemplos, foi demonstrado que as diferenças entre homens e
mulheres não advém de nenhuma perspectiva biológica, vertente amplamente divulgada
por correntes científicas e religiosas até os dias atuais. Ademais, o termo gênero inaugura
as discussões sobre o caráter construído das identidades, levando-se em consideração a
complexidade das relações sociais e de poder. Põe-se em cheque o essencialismo sexual,
que permeia até os dias de hoje os discursos políticos, que trata o sexo como pecaminoso
e que só pode ser aceito sob a justificativa reprodutiva, dentro de uma entidade familiar e
sem foco no prazer, conferindo origem a sistemas hierárquicos de valores sexuais.
A partir desse contexto, têm-se a experiência da República Federativa do Brasil e
seus dados alarmantes de violência contra as pessoas LGBTQIAP+, registradas no país
desde sua colonização. Importante destacar que as terras brasileiras, antes de serem
invadidas pelos portugueses, não compartilhavam de todas essas noções culturais e
sistemas hierárquicos desenvolvidas pelos europeus. Aqui, a sociedade convivia com a
diversidade, com a divisão sexual do trabalho diferente das tradições da Europa, o que
causou estranhamento e aculturação. Por sua vez, Portugal vinha de um histórico de
repressão radical às atividades não heterossexuais e as expressões de gênero e sexualidade
diferentes do que sua cultura classificava como “masculina” ou “feminina”.
Tais repressões avançaram nos séculos, desde a colonização, e só foram
descriminalizadas no ano de 1830. Uma breve reflexão denota que o Brasil, até o ano de
2023, vivenciou mais de trezentos anos onde as minorias SOGIESC eram expressamente
criminalizadas. Depois da descriminalização, e até os dias atuais, essas pessoas ainda
214

sofrem com a abjeção, pois estão sujeitas a diversas formas de apagamento social que
empurram suas vivências para as margens da sociedade, para os empregos informais, para
a prostituição, para um distanciamento com a família e a religião. Até os dias atuais,
inexiste uma norma federal, ou uma disposição na Constituição Federal brasileira que
defina expressamente que essas pessoas são cidadãs e estão protegidas.
As normas proibitivas de outrora, se transformaram hoje em uma grande
insegurança jurídica. E essa insegurança se expressa na impunidade com que os crimes
são investigados, com que muitos crimes motivados pelo preconceito não são registrados
pelos órgãos estatais, cabendo a Organizações Não Governamentais o papel de reunir os
dados para mostrar que essas pessoas existem, e ninguém tutela seus direitos.
A partir dessa problemática, a presente dissertação teve como objetivo geral
investigar a situação das pessoas LGBTQIAP+ na República Federativa do Brasil, e as
contribuições que o diálogo com as normas de direito internacional e a jurisprudência
atualizada da Corte IDH podem trazer para a melhoria dos direitos de cidadania desses
grupos vulneráveis. Outrossim, foram apresentados como objetivos específicos a
contextualização das desigualdades de gênero e sexualidade e a apresentação dos dados
estatísticos de violência contra as pessoas LGBTQIAP+ na República Federativa do
Brasil; a identificação dos os marcos normativos internacionais de proteção aos Direitos
Humanos das pessoas LGBTQIAP+; a investigação de como a Corte Interamericana de
Direitos Humanos vêm enfrentando os casos de discriminação em razão de orientação
sexual e identidade de gênero; e a análise dos julgados do Supremo Tribunal Federal
brasileiro e sua interação com as normas e a jurisprudência internacional.
Para mais, foi levantada a hipótese de que que os instrumentos internacionais de
proteção dos direitos humanos das pessoas LGBTQIAP+ devidamente ratificados pelo
Brasil, assim como as decisões judiciais proferidas em casos contenciosos da Corte IDH
devem ser instrumentos de compatibilização das normas domésticas e fundamento das
decisões judiciais proferidas pelos órgãos administrativos e judiciais.
Nesses termos, para se comprovar essa hipótese, e em consonância com os
objetivos específicos, em um primeiro momento foi possível identificar, a partir dos dados
estatísticos elencados, que a violência decorrente do preconceito e da abjeção no Brasil
está diretamente relacionada ao índice de desenvolvimento humano das regiões do país,
sendo essa uma outra face da abjeção, que consiste na falta de informação, cultura e
espaços de acolhimento para as pessoas LGBTQIAP+ que as insira de forma igualitária
na sociedade. Conforme também se depreende dos dados estatísticos, a violência em
215

razão das normas de gênero e sexualidade se soma a outros tipos de violência que
marginalizam a população, como a violência contra a mulher e o racismo.
Assim, se fez relevante discutir o papel do direito nas narrativas culturais que
contribuem para abjeção das pessoas LGBTQIAP+, pois ele é, muitas vezes, utilizado
para corroborar com as ideias de normalidade, civilidade e legitimidade das relações
heterossexuais e de uma vivência unicamente cisnormativa. Essa vivência se traduz em
formas multifatoriais de violência, que se perpetuam desde o ambiente doméstico até o
ambiente público.
Frente a esse contexto, os resultados da pesquisa encontram nos marcos
normativos internacionais de proteção aos Direitos Humanos uma crescente evolução
histórica de direitos e de interpretações ampliativas direcionadas à proteção da orientação
sexual e identidade de gênero. Destacam-se, nesse contexto, a Resolução nº 17/19
proveniente do 17º Período de sessões do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU
e a análise dos 38 Princípios de Yogyakarta. A primeira, demonstra a preocupação das
Nações Unidas com os atos de violência sofridos pela população LGBTQIAP+ em todas
as regiões do mundo, destacando que os Estados devem promover e proteger os direitos
humanos e as liberdades fundamentais desses indivíduos, fundado no princípio da
igualdade e não discriminação que se encontra consagrado na Declaração Universal dos
Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
O relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas elucida as obrigações dos
Estados sob as normas internacionais de direitos humanos, destacando a proteção ao
direito à vida, liberdade e segurança pessoais, nos termos do artigo 3º da DUDH e do Art.
6º do PIDCP; a necessidade de prevenção contra a tortura e os tratamentos cruéis,
desumanos ou degradantes, conforme leciona o artigo 5º da DUDH e o artigo 7º do
PIDCP; a demanda por proteção à privacidade, nos termos do artigo 12º da DUDH e 17º
do PIDCP; a proteção contra interferências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada,
casa, família e correspondência; e a proteção contra a detenção arbitrária, nos termos do
artigo 9º da DUDH e do PIDCP. Destaca-se também a abordagem do Alto Comissariado
sobre a proteção das pessoas contra a discriminação fundamentada em orientação sexual
e identidade de gênero, aludindo ao art. 2º da DUDH e ao art. 2º do PIDESC.
Importante reiterar, nesse contexto, que o Brasil é um país membro da ONU, e
que o PIDCP e o PIDESC foram adotados pela República Federativa do Brasil, tendo
entrado em vigor, respectivamente, por meio do Decreto nº 592/1992 e do Decreto nº
591/1992.
216

No que se refere aos princípios de Yogyakarta, têm-se a produção de diversas


normas de proteção contra discriminação em razão de orientação sexual e identidade de
gênero, como resposta às mais variadas manifestações do preconceito e da discriminação,
e partindo da ideia de que a violência não combatida também consiste em uma forma de
controle sobre os corpos dessas pessoas. Para tanto, expõe, nos seus trinta e oito
princípios, uma diversidade de bens jurídicos que devem ser observados e protegidos
pelos Estados, figurando como o mais completo dos instrumentos internacionais, em que
pese seu status de soft law.
Desses princípios, destacam-se alguns pelo seu caráter de especificidade e
inovação jurídica, a exemplo das proposições que todas as pessoas têm direito a um
padrão de vida adequado (que inclui água potável, alimentação correta, saneamento e
vestimentas; direito à educação que respeite a personalidade de cada estudante; direito à
saúde física e mental, em especial o acesso a todos os bens, serviços e instalações de
saúde, incluindo-se o histórico médico e questões de saúde sexual e reprodutiva; liberdade
de opinião e expressão, liberdade de reunião e associação pacíficas, liberdade de
pensamento, consciência e religião, e à liberdade de ir e vir e de buscar asilo; direito a
constituir família; de participar das políticas públicas que afetem seu bem-estar; dos
recursos jurídicos eficazes; evitar violência por parte dos agentes estatais; proteção contra
a pobreza e a exclusão social; os direitos humanos em relação com as tecnologias da
informação e comunicação e o direito à verdade, relacionado às atividades jurisdicionais
e a impunidade. Importante ênfase para a participação do Brasil nas duas conferências
realizadas em Yogyakarta.
Outrossim, quando dos resultados da pesquisa, tomando-se como fundamento a
análise das normas do SIPDH, é possível identificar que este assume a função de reunir
os Estados membros da OEA com objetivo de reforçar uma estrutura internacional e
promover a proteção dos direitos individuais, função que tal sistema encarando
prontamente, a partir da expedição de tratados como a Convenção Interamericana contra
Toda Forma de Discriminação e Intolerância, publicada antes mesmo de um tratado com
igual disciplina no sistema universal de direitos humanos. Para mais, quando da análise
de seu órgão jurisdicional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, identifica-se a
expedição de importantes documentos, como a Opinião Consultiva de nº 24, que traz uma
interpretação ampliativa para a Convenção Americana de Direitos Humanos. Em suas
sentenças destacadas no presente estudo, os juízes da Corte não deixam de citar o artigo
217

1.1, sobre a obrigação dos Estados de respeitar os direitos, sem discriminação das pessoas
motivada por qualquer condição social.
Nos casos em tela, identifica-se o emprego dos seguintes artigos da Convenção
Americana, com interpretação voltada para proteção das pessoas LGBTQIAP+: direito à
vida (art. 4.1 da CADH); direito à integridade física, psíquica e moral (art. 5.1 da CADH);
direito à liberdade e segurança pessoais (art. 7.1 da CADH); proteção contra privação da
liberdade física (art. 7.2 da CADH); proteção contra detenção e encarceramento arbitrário
(art. 7.3 da CADH); toda pessoa detida deve ser informada das razões de sua detenção
(art. 7.4 da CADH); direito de ser ouvido (art. 8.1 da CADH); proteção da honra e da
dignidade, e seus derivados que tratam do direito à vida privada (art. 11.2 da CADH);
direitos inerentes às garantias judiciais (art. 25.1 e 25.2 da CADH); direitos que envolvem
as famílias das vítimas (art. 17 da CADH) e direitos das crianças (art. 19 da CADH); e
direito à igualdade perante a lei (art. 24 da CADH). Destaca-se, como fundamento
importante da atuação da Corte IDH, que esta reconhece a relevância da proteção das
minorias SOGIESC, e da problemática vivenciada por estas pessoas, como um problema
legítimo, preocupante e difundido em diversas nações.
Depreende-se também, a partir da análise da doutrina especializada, no que se
refere a análise do conteúdo normativo dos tratados, convenções e jurisprudência
internacional, que há o necessário controle vertical das normas jurídicas dos Estados
signatários, em respeito aos princípios gerais da boa-fé e do pacta sunt servanda. Para
tanto, um novo marco de controle vertical das normas elaboradas internamente pelo
Estado consiste no seu controle de convencionalidade.
A inconvencionalidade, por sua vez, pode ser observada quando a norma
contrariar tratado internacional de direitos humanos, normas de jus cogens, costumes
internacionais que tratem de direitos humanos e interpretações conferidas por tribunais
de direitos humanos, mesmo havendo entendimento de ausência de hierarquia entre tais
tribunais e os domésticos. No caso brasileiro, conforme dispõe o art. 5º, § 2º da
Constituição Federal de 1988, que impõe a materialidade constitucional ao conteúdo dos
Tratados de Direitos Humanos, bem como o acréscimo constitucional proveniente da
Emenda Constitucional nº 45, que incluiu o art. 5º, § 3º, este que impõe a materialidade e
formalidade constitucional aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos celebrados
pelo Estado brasileiro, entende-se que devem ser observados, em âmbito doméstico, os
instrumentos ratificados pelo Estado brasileiro.
218

Soma-se a esse entendimento que o Estado brasileiro também deve se abster de


legislar e decidir, em sede de procedimentos administrativos e judiciais, em
desconformidade com as decisões judiciais e interpretações proferidas pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Importante destacar que, conforme Opinião
Consultiva de nº 21/2014, o órgão jurisdicional interamericano estabeleceu que suas
opiniões consultivas também são parâmetros para controle de convencionalidade. Além
disso, entendeu-se que as sentenças da Corte IDH necessariamente vinculam os Estados
membros da OEA, com caráter erga omnes, devendo ser considerada res interpretata.
Portanto, o Estado brasileiro não pode agir de forma contrária ao que decidiu a
Corte IDH nos cinco casos contenciosos estudados na presente pesquisa, devendo adotar
uma postura de compliance, com as recomendações e interpretações do órgão
jurisdicional interamericano.
Sobre esse assunto, buscou-se verificar a presença de tal compliance nas
decisões do Supremo Tribunal Federal brasileiro sobre o tema, proferidas desde o ano de
2008, quando da decisão emblemática que conferiu o reconhecimento da união entre
pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, até o ano de 2021quando do julgamento
do ensino sobre gênero e orientação sexual nas escolas. Dessa análise de todos os casos,
inferiu-se que o Tribunal somente citou o caso Atalla Riffo e filhas vs. Chile, não se
utilizando da vasta jurisprudência contenciosa da Corte IDH para fundamentar suas
decisões.
Percebe-se também que o Supremo Tribunal Federal, constantemente, utilizou-
se dos princípios de direito internacional quando não consegue conceituar determinados
institutos. É o caso da utilização dos princípios de Yogyakarta, na ADI nº 4.275 e na ADO
nº 26, quando apenas aproveita-se de suas conceituações de orientação sexual e identidade
de gênero, quando poderia dispor de vários outros conceitos ligados à proteção jurídica
dessas pessoas, para fundamentar sua decisão, intercambiando com o direito
internacional.
Portanto, respondendo à pergunta de pesquisa, entendeu-se que os marcos
normativos internacionais de proteção aos Direitos Humanos e a jurisprudência da Corte
IDH trazem muitas contribuições positivas à proteção dos direitos humanos das pessoas
LGBTQIAP+, elencando normas protetivas que devem ser observadas pelo ordenamento
jurídico brasileiro quando da análise de leis e de processos judiciais e administrativos.
Porém, quando da análise da fundamentação do Supremo Tribunal Federal, nos casos que
219

envolvem as pessoas LGBTQIAP+, este tribunal poderia fazer melhor uso do vasto
arcabouço normativo internacional de proteção aos direitos humanos dessas pessoas.
Ante o exposto, no que se refere à construção de um arcabouço jurídico
direcionado as garantias de cidadania inclusiva voltada para as pessoas em situação de
vulnerabilidade decorrente de sua identidade de gênero, orientação sexual, expressões de
gênero e sexualidade, hodiernamente, percebeu-se que o Supremo Tribunal Federal vem
mudando seu entendimento quanto ao caráter preservacionista do direito, em especial
quando se enxergam as relações a partir de um viés democrático, fundado no princípio da
igualdade. As decisões da Corte Constitucional brasileira, em que pese não se utilizem
das normas internacionais, conseguem cumprir com o propósito de aproximar essas
pessoas da cidadania igualitária.
Assim, a presente pesquisa constatou que há um processo de emancipação dos
grupos sociais vulneráveis, em razão de sua orientação sexual e identidade de gênero, no
Brasil, que esse processo vem sendo conduzido pelo Supremo Tribunal Federal de forma
inovadora no ordenamento jurídico interno, mas que, para satisfazer uma postura de
compliance frente ao direito internacional dos direitos humanos, esse tribunal tem
capacidade de fazer mais. Nesse contexto, o Estado brasileiro deve considerar, quando da
análise da compatibilidade de suas leis e decisões proferidas em âmbito judicial e
administrativo, e com a finalidade de erradicar os alarmantes dados estatísticos de
violência no país e corrigir as disparidades estabelecidas culturalmente, os instrumentos
internacionais de proteção dos direitos humanos voltados a proteção das pessoas
LGBTQIAP+ devidamente ratificados pelo Brasil, assim como as decisões judiciais
proferidas em casos contenciosos da Corte IDH, em razão da ratificação da Convenção
Americana de Direitos Humanos pelo Brasil.
220

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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