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RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean- François. Para uma história cultural.


Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

direcção de
Jean-Pierre Rioux
Jean-François Sirinelli
PARA UMA HISTÓRIA
CULTURAL
direcção de
Jean-Pierre Rioux
Jean-François Sirinelli

PARA UMA HISTÓRIA


CULTURAL

1998
EDITORIAL ESTAMPA
ÍNDICE

INTRODUÇÃO- UM DOMÍNIO E UM OLHAR, Jean Pierre-Rioux ........... 11


Um panorama .................................. ........................... .................... 12
Questões de fim de século........................................................... 15
O tempo das representações ..... .... ........................... .................... 17
O lado do contemporâneo............................................................ 19
Margens seguras·······························:············································ 21

ITINERÁRIOS

UMA DECLINAÇÃO DAS LuzEs, Daniel Roche .................................... . 25


FICHA TÉCNICA A Sorbonne sem as «Annales» ................................................. .. 28
Ernest Labrousse: do económico ao social .............................. . 29
Título original: Pour une histoire culturelle Investigação, livro e sociedade ................................................ ..
Colaboradores: Jean Pierre Rioux, Jean-François Sirinelli, Maurice Agulhon, Stéphane
31
História das mentalidades ou história das culturas? .............. . 33
Audoin-Rouzeau, Antoine de Baecque, Annette Becker, Yves-Marie
O estudo das sociabilidades culturais ....................................... . 36
Bercé, Serge Berstein, Jean-Patrice Boudet, Alain Corbin, Alain Croix,
Esquecer Tocqueville e Cochin? ................................................ . 37
Georges Duby, Marie-Claude Genet-Delacroix, Augustin Girárd, Anita
Guerreau-Jalabert, Jean-Noel Jeanneney, Michel Lagrée, Jean-Michel
A história dos livros e dos seus usos ...................................... .. 38
Leniaud, Gérard Monnier, KrzysztofPomian, Christophe Prochasson, Entre produção e textualidade .................................................. .. 40
Antoine Prost, Daniel Roche, Michel Sot e Philippe Urfalino Quantificar ou não? ..................................................................... . 41
Tradução: Ana Moura Para a história dos consumos culturais .................................... . 44
Capa: José Antunes MARX, A ALUGADORA DE CADEIRAS E A PEQUENA BICICLETA, Alain
Ilustração da capa: A Cidade Inteira, pintura de Max Ernst, 1935, Museu de Belas- Croix ......................................................................................... . 51
-Artes, Zurique Da demografia ............................................................................... . 53
Composição: Byblos- Fotocomposição, Lda. ... à história cultural ..................................................................... . 58
Impressão e acabamento: Rolo & Filhos- Artes Gráficas, Lda. Que história cultural? ................................................................. ..
1." edição: Janeiro de 1998
62
A dialéctica ................................................................................... . 63
ISBN 972-33-1307-3
... e a vida ...................................................................................... . 66
Depósito Legal n. 0 120067/98
Copyright: © Éditions du Seui1 1 1997 HISTÓRIA CULTURAL, HISTÓRIA DOS SEMIÓFOROS, Krzysztof Pomian .. 71
©Editorial Estampa, Lda., Lisboa, 1998 A abordagem semiótica e a abordagem pragmática ............. . 72
para a língua portuguesa, excepto Brasil Os semióforos entre outros objectos visíveis ....................... . 76

7
A diversidade de semióforos ...................................................... . 82 O fantasma do Monteiro-mar ..................................................... . I78
A controvérsia sobre a noção de «cultura» ............................. . 87 O homem comudo da floresta do Mans ................................... . I79
Notas finais ..........................................•......................................... 92 A redescoberta dos momentos inacabados da história .......... . I80
Do LIMOUSIN ÀS CULTURAS SENSÍVEIS, Afain Corbin ......................... . 97 A REVOLUÇÃO FRANCESA: REGENERAR A CULTURA?, Antoine
A impossível «história total» e a tentação da antropologia .. . 97 de Baecque .............................................................................. . I83
Para uma história do paroxismo e do horror ........................... . 99 Uma história reaberta .................................................................. . I84
A confusão das leituras da paisagem ....................................... . I02 Os novos domínios da cultura revolucionária ......................... . I86
O poder de evocação das sonoridades desaparecidas ............ . 104 Uma outra cultura para um novo homem ................................ . I96
O uso dos sentidos e figuras da cidade ................................... . I07 Um projecto cultural em transformação ................................... . I99
MARIANA, OBJECTO DE «CULTURA»?, Maurice Agulhon .................... . I II A RIQUEZA DAS BELAS-ARTES REPUBLICANAS, Marie-Claude
Do pitoresco provincial ao emblemático nacional ................. . II3 Genet-Delacroix ...................................................................... . 203
Do emblema ao símbolo ............................................................ .. II4 Um direito à solicitude pública ................................................. . 204
Da História à Arte ..•........................................................... :......... . 1I7 Poder e unidade da arte .............................................................. . 209
A excepção francesa, de novo ................................................... . II8
I20 0 CASO EM TODOS OS SEUS ASPECTOS, Christophe Prochasson ....... . 22I
E por fim as inquietações francesas ........................................ ..
Produções e produtores culturais .............................................. . 222
SOCIAL E CULTURAL INDISSOCIAVELMENTE, Antoine Prost .................. . I23 Uma antropologia histórica do caso Dreyfus .......................... . 228
A História Cultural e as suas vizinhas .................................... .. I24
VIOLÊNCIA E CONSENTIMENTO: A DE GUERRA» DO PRIMEIRO
Para a história social das representações ................................. . I25
I29 CONFLITO MUNDIAL, Stéphane Audoin-Rouzeau e Annette
Objectos e métodos da história cultural .................................. ..
I34 Becker ....................................................................................... . 237
Três problemas para conclusão .................................................. .
Mundialização e totalização ....................................................... . 239
AUDIOVISUAL: O DEVER DE NOS OCUPARMOS DELE, Jean-Noe/ Messianismo, milenarismo e escatologia .................................. . 250
Jeanneney ................................................................................ . I39
O entusiasmo e as dificuldades ................................................. . I40
A batalha dos arquivos ............................................................... . I43 OBRAS
Desenhar um campo novo .......................................................... . I45
O questionário e o método ........................................................ .. I49 As ELITES CULTURAIS, Jean-François Sirinelli ................................. . 259
France-Culture, por exemplo ...................................................... . I 53 Questões de princípio .................................................................. . 260
Abismo final .................................................................................. . I 54 Elites politicamente divididas .................................................... . 262
Hugo, Sartre, Foucault ................................................................. . 265
Bolseiros ou herdeiros? ............................................................... . 267
PERÍODOS Redes e homens ............................................................................ . 271
Mudança de paradigma? ............................................................. . 276
A SINGULARIDADB MEDIEVAL,Michel Sot, Anita Guerreau-lalabett Jogos de espelhos? ....................................................................... . 278
e Jean-Patrice Boudet ........................................................... . I 59
Legitimidade de uma história cultural da Idade Média ......... . I 59 As INVESTIGAÇÕES SOBRE AS PRÁTICAS CULTURAIS, Augustin Girard. 28I
Reconhecer a singularidade da cultura medieval ................... . I63 A sua natureza e os seus métodos ............................................ . 283
Os três períodos de uma história da França na Idade Média I68 Os seus resultados e os seus limites ......................................... . 285
Os efeitos ....................................................................................... . 289
RUMORES DOS SÉCULOS MODERNOS, Yves-Maríe Bercé ...................... . I73
Os embaraços da 'história política ............................................. . I73 A HISTÓRIA DA POLÍTICA CULTURAL, Philippe Urfalino ..................... . 293
O historiador à escuta dos rumores .......................................... . I74 No plural e no singular ............................................................... . 294
Os exemplos do Verão de I598 ................................................. . I77 A singularidade de uma invenção: o momento Malraux ....... . 300

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não por derrubar a estãtua da República, mas por redesenhã-la um
tanto, embora esse «tanto» tenha mudado tudo na nossa retórica e no
nosso simbolismo 11 . O «fenómeno Bardot» também passou por isso 12,
r SOCIAL E CULTURAL INDISSOCIAVELMENTE

Antoine Prost
impondo ao busto (quando não à estátua) da República uma série de
verdadeiras mutações: mutações da plástica como é evidente, mas
também mutações do papel e dos significados publicamente recebi-
dos. Que estes dois sismos, o político e o folclórico, tenham sido mais
ou menos contemporâneos, é o que dá que pensar aos curiosos da
sensibilidade (ou das sensibilidades) nacional(ais). Como é evidente,
não deixaremos de prosseguir esta via.
Mas encontramo-nos no presente. Saímos, portanto, do domínio da
história para o de uma etnografia em que, por definição, o inquérito
é possível. Isto não nos desviaria no entanto do «cultural» que nos
convidaram a expor. Sob condição, claro, de tomar de novo cons-
ciência do facto de que um quadro de Delacroix provém do cultural A história cultural tem hoje um interesse muito vivo, e esta obra dá
na acepção clássica do termo, e que a marianolatria contemporânea, disso conta à sua maneira. Enquanto a história económica e social,
nas suas últimas metamorfoses, pertence ao cultural dos antropólogos. preocupada com os grandes conjuntos e de compreensão se vê
Estudemos pois os factos, sem nos preocuparmos demasiado com progressivamente abandonada, a história cultural produ_z mil novidades
os seus rótulos e sem especularmos demasiado com as palavras. e anuncia-se como a história de amanhã, a que convem a um tempo
mais desencantado e mais narcísico. É nela que os nossos contempo-
râneos pensam encontrar resposta satisfatória para as suas curiosidades
fundamentais. Esperam dela uma abordagem global e pedem-lhe que
esclareça o próprio sentido do nosso tempo e da evolução que a ele
leva. Está aqui em jogo a nossa identidade colectiva.
Com efeito, a história cultural não é uma verdadeira nov_idade: sem
sequer remontar ao memorável Rabelais de Lucien Febvre, Ilustraram-
-na vários historiadores da geração precedente. Pense-se, por exemplo,
11 na obra de Robert Mandrou ou de Philippe Aries, sem falar de
Aliás, efeitos complexos. Por um lado, é evidente que «República» e
Maurice Crubellier e da sua Histoire culturelle de la France (XIxc-
«republicano» tendem hoje a ter tanto lugar, ou mesmo mais, no vocabulário do
gaulismo do que no da esquerda. Mas por outro, o gaulismo promove um ima- -xx• siecle), publicada há já mais de vinte anos por Armand Colin
ginário e um simbolismo visual mais concorrentes da tradição republicana. (1974). Mais que de uma descoberta, seria necessário falar de uma
\ Aprofundaremos estes problemas no último volume (Marianne ... ) relativo ao redescoberta. Mas se a questão é antiga, ela é hoje colocada com uma
l período de 1914 aos nossos dias, em preparação.
12
O busto para o município com a efígie da célebre actriz, barrete frígio na
acuidade e uma insistência novas. Talvez até a história cultural de
hoje não seja exactamente a de ontem? Sob o mesmo rótulo, tratar-
i cabeça, criado por Aslan, busto que, como tal, obteve um certo êxito de difusão,
I -se-ia de um outro elixir. Em todo o caso, vale a pena levantar a
e por outro lado lançou a ideia- outrora impensável - de conferir a uma pessoa
I viva, posta em evidência por outros méritos, uma espécie de função de represen- questão que convida a uma discriminação atenta entre o que a história

l
tação da França. Mesma observação que na nota anterior. cultural não quer ser e o que ela é.

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I

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J
A história cultural e as suas vizinhas assar por ela. Desprezá-la seria uma condenação ao contra-senso.
a crítica oposta por Jacques Julliard ao livro de Zeev Sternhell, Ni
Sob este ponto de vista, é mais importante distinguir claramente a droite ni gauche, l' idéologie fasciste en France: reduzir a história das
história cultural das suas vizinhas imediatas do que da história econó- ideias à de enunciados extraídos dos seus contextos, desligados das
O:ica, ou à Labrousse. Com esta, de facto, as diferenças circunstâncias que os suscitaram, dos homens que os formularam e de
sao evidentes e Imediatas. Em contrapartida, é mais interessante pro- toda a espessura do seu enraizamento social e humano, sem considerar
curar o que a separa de formas de história que se propõem objectos os públicos concretos a que se dirigiam, é tomar esses enunciados em
próximos dos seus e que, no entanto, procuram objectivos diferentes. primeiro grau, correndo o risco de se apanhar pelas
Em primeiro lugar, a história cultural não deve ser confundida com a pouco inocentes dos seus autores e sau do real para construir com
dos objectos culturais. Não que esta seja contestável: ela apresenta um todas as peças um objecto histórico imaginário2•
enorme interesse e uma legitimidade assente. A história da literatura A história das políticas culturais, que Pascal Ory acaba de ilustrar
da pintura, da escultura, da música, do teatro, em suma, de todas para a Frente Popular3 , destaca as mesmas observações. Ele próprio,
formas de arte, mas igualmente dos cartazes ou das caricaturas, é uma aliás, evita confundi-la com a história cultural do mesmo período; é
disciplina há muito tempo constituída, que possui os seus métodos, as em primeiro lugar a história de uma política pública, das decisões que
suas problemáticas e as suas obras importantes. Mas antes de tomar a definem, das forças que se combinam para a promover ou deter.
com um Francastel, por exemplo, um significado maior no Capítulo seguramente apaixonante de uma época de cuja originalidade
da sociedade, foi muitas vezes uma história sectorial, ocupada com elucidar careceríamos se o descurássemos. Mas um capítulo entre outros.
o seu território próprio, sem grandes relações com a história geral. A Ora a história cultural já não quer hoje ser uma história entre
separação institucional da história de arte e da história geral, em muitas outras, uma das mercadorias com que se guarneceria uma das gavetas
universidades, mostra bem que existem dois caminhos paralelos que podem da célebre cómoda de Lucien Febvre: em cima à direita, a política
ser percorridos durante muito tempo sem convergirem. interna, à esquerda a externa... Ela pretende uma explicação mais
E o mesmo com a história das ideias. Desde há muito que produziu global. Na verdade, aspira substituir a história total de ontem. Bela
obras importantes; estou a pensar, para só citar grandes clássicos, em ambição, que supõe outras ...
La Crise de la consciente européenne de Paul Hazard, ou na Histoire
littéraire du sentiment religieux do padre Bremond 1• A importância do
movimento das ideias para o da civilização não escapou a nenhum Para a história social das representações
historiador, e a maneira como um François Furet ou um Claude
Nicolet retomam hoje o estudo do século XIX parece-me inscrever-se Com efeito, a história cultural não pode pretender destronar a
nesta tradição. Estamos aqui mais perto de uma história cultural no história económica e social de ontem se não se propuser um objectivo
pleno sentido do termo, mas a história das ideias conhece também igualmente ambicioso. É-lhe necessário, pois, pretender ser de utili-
simultaneamente, o que se pode chamar uma regressão.
tentar ultrapassar a história económica e social, mas é preciso primeiro 2
Jacques Julliard, «Sur un fascisme imaginaire: à propos d'un livre de Zeev
Stemhell», Annales ESC, n. 0 4, Julho-Agosto 1984, pp. 849-861. As críticas de
1 Jacques Julliard encontraram uma verificação decisiva no artigo de Renaud
_Padre Henri Bremond, Histoire littéraire du sentiment religieux en France Poumarede, «Le Cercle Proudhon ou l'impossible synthese», in Mil neuf cent.
depU!s la fin des guerres de Religion jusqu' à nos jours, Paris, Bloud et Gay, Revue d' histoire intellectuelle, n. 0 12, 1994, pp. 5!-86.
_II vol.; Paul Hazard, La Crise de la conscience européenne, Paris, 3
Pascal Ory, La Bel/e lllusion. Culture et politique sous le signe du Front
Bmvm et Cte., I935.
populaire, 1935-1938, Paris, Plon, 1994.

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A história cultural e as suas vizinhas assar por ela. Desprezá-la seria uma condenação ao contra-senso.
a crítica oposta por Jacques Julliard ao livro de Zeev Sternhell, Ni
Sob este ponto de vista, é mais importante distinguir claramente a droite ni gauche, l' idéologie fasciste en France: reduzir a história das
história cultural das suas vizinhas imediatas do que da história econó- ideias à de enunciados extraídos dos seus contextos, desligados das
ou à Labrousse. Com esta, de facto, as diferenças circunstâncias que os suscitaram, dos homens que os formularam e de
sao evidentes e Imediatas. Em contrapartida, é mais interessante pro- toda a espessura do seu enraizamento social e humano, sem considerar
curar o que a separa de formas de história que se propõem objectos os públicos concretos a que se dirigiam, é tomar esses enunciados em
próximos dos seus e que, no entanto, procuram objectivos diferentes. primeiro grau, correndo o risco de se deixar apanhar pelas intenções
Em primeiro lugar, a história cultural não deve ser confundida com a pouco inocentes dos seus autores e sair do real para construir com
dos objectos culturais. Não que esta seja contestável: ela apresenta um todas as peças um objecto histórico imaginário2 •
enorme interesse e uma legitimidade assente. A história da literatura A história das políticas culturais, que Pascal Ory acaba de ilustrar
da pintura, da escultura, da música, do teatro, em suma, de todas para a Frente Popular3, destaca as mesmas observações. Ele próprio,
formas de arte, mas igualmente dos cartazes ou das caricaturas, é uma aliás, evita confundi-la com a história cultural do mesmo período; é
disciplina há muito tempo constituída, que possui os seus métodos, as em primeiro lugar a história de uma política pública, das decisões que
suas problemáticas e as suas obras importantes. Mas antes de tomar a definem, das forças que se combinam para a promover ou deter.
com um Francastel, por exemplo, um significado maior no Capítulo seguramente apaixonante de uma época de cuja originalidade
da sociedade, foi muitas vezes uma história sectorial, ocupada com elucidar careceríamos se o descurássemos. Mas um capítulo entre outros.
o seu território próprio, sem grandes relações com a história geral. A Ora a história cultural já não quer hoje ser uma história entre
separação institucional da história de arte e da história geral, em muitas outras, uma das mercadorias com que se guarneceria uma das gavetas
universidades, mostra bem que existem dois caminhos paralelos que podem da célebre cómoda de Lucien Febvre: em cima à direita, a política
ser percorridos durante muito tempo sem convergirem. interna, à esquerda a externa... Ela pretende uma explicação mais
E mesmo com a história das ideias. Desde há muito que produziu global. Na verdade, aspira substituir a história total de ontem. Bela
obras Importantes; estou a pensar, para só citar grandes clássicos, em ambição, que supõe outras ...
La Crise de la consciente européenne de Paul Hazard, ou na Histoire
littéraire du sentiment religieux do padre Bremond 1• A importância do
movimento das ideias para o da civilização não escapou a nenhum Para a história social das representações
historiador, e a maneira como um François Furet ou um Claude
Nicolet retomam hoje o estudo do século XIX parece-me inscrever-se Com efeito, a história cultural não pode pretender destronar a
nesta tradição. Estamos aqui mais perto de uma história cultural no história económica e social de ontem se não se propuser um objectivo
pleno sentido do termo, mas a história das ideias conhece também igualmente ambicioso. É-lhe necessário, pois, pretender ser de utili-
simultaneamente, o que se pode chamar uma regressão.
tentar ultrapassar a história económica e social, mas é preciso primeiro 2
Jacques Julliard, «Sur un fascisme imaginaire: à propos d'un livre de Zeev
Stemhell», Annales ESC, n. 0 4, Julho-Agosto 1984, pp. 849-861. As críticas de
1
Jacques Julliard encontraram uma verificação decisiva no artigo de Renaud
Henri Bremond, Histoire littéraire du sentiment religieux en France Poumarêde, «Le Cercle Proudhon ou l'impossib1e synthêse», in Mil neuf cent.
la fin des g.uerres de Religion à nos Paris, Bloud et Gay, Revue d' histoire intellectuelle, n. o 12, 1994, pp. 51-86.
9 6. 1928, .11 vo!., Paul Hazard, La Cnse de la consClence européenne, Paris, 3
Pascal Ory, La Bel/e /llusion. Culture et politique sous le signe du Front
Botvm et Cte., 1935. Populaire, 1935-1938, Paris, Plon, 1994.

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dade para um largo conjunto, um grupo social, toda uma sociedade.
r tentes ... », etc.), capazes sobretudo de condutas racionais, conformes
aos seus interesses objectivos e, portanto, susceptíveis de uma expli-
Para o conseguir, passará a ser uma história social das representações,
ou, se se preferir, uma história das representações colectivas. Esta cação histórica da mesma maneira que a crónica dos reis, mas partindo
definição, que tende hoje a impor-se, constitui a finalidade provisória de agentes infinitamente mais respeitáveis dado serem colectivos.
de uma evolução lexical interessante, que os termos «civilização» e Nesta perspectiva, os factos de ordem ideológica, mais que cultural,
«mentalidades» delimitam. constituíam como que o terceiro andar do edifício: na base, a economia,
Para compreender esta emergência progressiva, pode-se partir da por cima, a sociedade, mais acima, a ideologia, a cultura, a política,
história sociallabroussiana, que tinha fixado por tarefa fazer a história determinadas em última instância pela realidade das relações de pro-
de grupos sociais ou de classes sociais nas suas relações complexas dução, mas beneficiárias de uma autonomia relativa. Esta história de
de confronto e de solidariedade. Mas não se interrogava sobre a inspiração marxista consagrava amplos debates a esta autonomia rela-
própria definição do seu objecto de estudo: o grupo social. Dava como tiva, mas, totalmente voltada para a luta das classes, retinha sobretudo,
adquirida a existência de realidades fortes, tão depressa designadas na ordem cultural, as ideias políticas e sociais que lhe pareciam «tra-
pelo termo «classe», como pelo de «grupo»: a classe ou o grupo social duzir» ou «reflectir» as contradições sociais e as relações de domínio.
eram percebidos como evidência, como realidades duras ao redor das O apogeu desta tendência foi a noção de «aparelho ideológico de
quais se organizava a história e cuja consistência em longa duração Estado», cara a Althusser. A cultura não estava verdadeiramente inte-
nada tinha de problemático. Compreende-se que Popper tenha falado grada na síntese histórica senão sob a forma de dependência, de uma
de «essencialismo» a propósito destas realidades 4 . Labrousse não tradução, ou inculcada em proveito da classe dirigente.
duvidava de que houvesse operários e camponeses, ou antes, uma Porém, as coisas eram menos simples e o trabalho histórico mos-
pluralidade de grupos operários e de grupos camponeses, definidos trava-o em cada dia. Os grupos sociais não obedeciam sempre às
pelo seu estatuto objectivo de rendeiros ou de proprietários, de assa- racionalidades que deviam logicamente defender. Se tomarmos por
lariados à hora, ao dia ou à tarefa, e burgueses definidos pela renda exemplo os padrões de 1936-1937, confrontados com a lei das qua-
sobre prédios ou terras, a propriedade dos meios de produção e a renta horas, o seu interesse económico teria sido investir para poder
participação nas instituições do Estado. fazer funcionar as suas oficinas em duas equipas de oito horas,
A constituição destas «essências» históricas, capazes de conservar reduzindo assim os custos com uma melhor rentabilidade dos equi-
a sua identidade embora mudando continuamente no decorrer do tem- pamentos. De facto, alguns deles adoptaram esta solução economica-
po, permitia à história labroussiana ultrapassar a contradição entre a mente racional. Mas a maior parte encerrou-se numa espécie de
narrativa e a estrutura, entre a explicação narrativa (o acontecimento) recusa, mais conforme com a ideia que faziam de si próprios e da sua
e a explicação sociológica (as regularidades). A meia distância entre o função de «patrões». Não só não investiram como também não pro-
indivíduo único da história acontecimental e as forças sociais cegas das curaram encontrar um novo tipo de relações industriais com os ope-
regularidades estatísticas macro-sociais, os grupos sociais constituíam rários, que lhes teria permitido gerir a situação da melhor forma para
agentes colectivos, capazes de acções deliberadas, de emoções, de ?s seus interesses imediatos; ou opuseram aos sindicatos uma
sentimentos («a burguesia tem medo ... », «OS operários estão descon- Intransigência que relançava as greves, ou deixaram agir os delegados
\ das oficinas, sem sequer apoiar os técnicos nos seus esforços para
i 4 Karl Popper, Misere de L' historicisme, Paris, Plon, 1956 (I." ed. em inglês, manter a produção. Pode-se decerto afirmar que ao defender assim a
1944), pp. 30-31. Este panfleto visa muito particularmente a história como his- entidade patronal preservavam o seu poder e, portanto, a fonte dos

:
! tória da luta de classes. Na passagem a que aludimos, refere-se à maneira como seus benefícios ulteriores. Mas acontece que esta atitude lhes fazia
[i os historiadores pretendem que uma instituição conserve a sua identidade essen-
lj

L
_lg-un-s _tr_a_ç-os-q-ue-se-te_n_h-am-m-an-t-id_o_. em
6
um conjunto de atitudes e de representações que não se podem ex-
plicar directamente por uma lógica económica.
r ern que esse grupo existia, ele devia-o à experiência comum da guerra
e ao trabalho de comemoração e de rememoração a que se entregava.
Com mais forte razão, quando a análise histórica se interessou por pepois pôs-se a questão para outros grupos e, finalmente, para o mais
grupos sociais menos estreitamente definidos pelo seu lugar no siste- evidente, o mais incontestável aos olhos dos marxistas: os próprios
ma de produção, ou mais complexos na sua estrutura, os fenómenos operários. Estudando na sua tese os operários parisienses durante a
de «mentalidade» ganharam uma consistência e uma autonomia que Grande Guerra8 , Jean-Louis Robert, que recusa o plano labroussiano
justificavam uma análise específica. O livro que sem dúvida exerceu dos três patamares sobrepostos, põe em evidência o processo colectivo
mais forte influência é aqui o de Maurice Agulhon, Pénitents et de identificação pelo qual o grupo se define, definindo os seus adver-
Francs-Maçons de l' ancienne ProvenceS, primeiro intitulado, numa sários: a voz operária, de que Jacques Ranciere bem mostrara provar
edição de Aix de 1966, La Sociabilité méridionale. Os historiadores mais uma vontade de reconhecimento do que exprimir uma condição9 ,
da minha geração receberam um choque com a sua leitura: era não tornou-se o material de uma identidade colectiva, dando corpo aos
só legítimo mas possível e fecundo ter interesse por outros fenómenos valores em que se legitima o grupo operário. Enquanto a história
sociais além dos rendimentos, dos modos de vida ou do trabalho. De Jabroussiana colocava o rendimento e o trabalho na base de tudo, a ética
súbito, uma nova dimensão vinha enriquecer a história religiosa e, é aqui reconhecida com um papel fundador. O grupo só existe na
bem assim, a história política. medida em que existe voz e representação, quer dizer cultura.
Esta história das mentalidades teve um particular-
mente brilhante exactamente onde a história labroussiana triunfara: o
fim do século XVIII e as proximidades da Revolução Francesa. Este Objectos e métodos da história cultural
campo historiográfico havia sido objecto de tais desenvolvimentos
económicos e sociais, que era inútil esperar renová-lo privando-se de A partir de então, o historiador que pretende reconstituir as repre-
algumas mercuriais suplementares. Era necessário mudar de objecto, sentações constitutivas de um grupo social é levado a privilegiar
e foi ao que se dedicaram, com o sucesso que se sabe, Daniel Roche certos objectos de estudos que requerem métodos de análise especí-
e Michel Vovelle, antes mesmo de Roger Chartier6 . ficos. A atenção centra-se nas produções simbólicas do grupo e, em
Mas tomar efectivamente em consideração o que então se chamava primeiro lugar, nos discursos que faz. Ou antes, nos seus discursos
«mentalidades» modificava insensivelmente as perspectivas. Tomava- enquanto produções simbólicas. O que, com efeito, muda é menos o
-se impossível tratá-las como simples superestruturas sem se interrogar objecto de estudo - o historiador sempre trabalhou e trabalhará ainda
sobre os laços que estabeleciam entre os indivíduos. Foi primeiramente durante muito tempo sobre textos, mesmo apelando a outras fontes
posta a questão quanto ao modo de evidência em grupos transversais, - que o ângulo sob o qual ele é considerado.
interclassistas, como os antigos combatentes que estudei7 • Na medida No texto, a história habitual prende-se àquilo a que os linguístas
chamam a função referencial: o que o texto diz, o que quer dizer, a
5
Paris, Fayard, 1968. situação que pretende descrever, o acontecimento que entende contar.
6
Michel Vovelle, Piété baroque et Déchristianisation en Provence au XVJ/f
siecle. Les altitudes devant la mort d' apres les clauses des testaments, Paris, 8
Plon, 1973; Daniel Roche, Le Peuple de Paris. Essai sur la culture populaire au . Só foi publicada a parte dos acontecimentos desta tese de Estado (Univer-
XV/II" siecle, Paris, Aubier-Montaigne, 1981; Roger Chartier, Lectures et Lectures Sidade de Paris-I, 1989); Jean-Louis Robert, Les Ouvriers, la Patrie et la Révo-
dans la France d' Ancien Régime, Paris, Le Seuil, 1987. lution, Paris, 1914-191 9, Besançon, 1995.
9
7
Antoine Prost, Les Anciens Combattants et la Sociétéfrançaise, 1914-1939, Jacques Ranciere, La Nuit des prolétaires, archives du rêve ouvrier, Paris,
Paris, Presses de la Fondation nationale des sciences politiques, 1977, 3 vol. Fayard, 1981.

128
l 129
A história toma o texto como sinal de alguma coisa que se passou e ·ndicalismo francês no fim do século XIX. Opõe evidentemente o
que permite descobrir e reconstituir. Ela interessa-se pelo que está no operário e o grupo patronal. Mas qual era a realidade desta
exterior do texto, independente dele, pela realidade extratextual que Que representação faziam os sindicalistas da sua condição
visa. de operários? Para o saber, toma-se um conjunto de textos da época,
Enunciado por um locutor, individual ou colectivo, é no entanto escolhidos segundo critérios lógicos, e examinam-se sistematicamente
destinado a leitores ou auditores que dão aos termos o mesmo sentido os termos ou as expressões pelas quais os operários que falam nesses
sem o que ele seria incompreensível. Esta fala singular é dita textos se designam a si próprios e designam os seus adversários.
língua comum que define o espaço dos enunciados possíveis, num Verifica-se a fragilidade das designações, que remetem para uma aná-
dado momento e para um dado grupo. Esta verificação está carregada lise teórica ou política: proletariado, proletários, classe operária ou
de consequências. Por um lado, priva de verdadeiro significado a capitalista, capitalismo, capitalistas são relativamente pouco frequen-
distinção por vezes operada entre o estudo das produções culturais e tes. Em compensação, operários, trabalhadores e trabalho são muito
o da sua recepção 10• Por outro, estabelece uma nova abordagem dos mais utilizados.
textos, que se interessará menos pelo que eles dizem do que pela A análise centra-se então nestes termos e nos enunciados nos quais
maneira como o dizem, pelos termos que utilizam, pelos campos eles se encontram. Ela mostra que o termo operário recebe quase sempre
semânticos que traçam. As maneiras de falar não são inocentes, e a uma determinação: fala-se dos operários desta ou daquela fábrica, de
língua que se fala estrutura as representações do grupo a que se certa profissão, de determinada cidade ou ainda dos operários em greve.
pertence ao mesmo tempo que, por um processo circular, dele resulta. Operário designa assim os indivíduos concretos, nas suas particulari-
Podemos em primeiro lugar consagrar-nos à história das palavras, dades. Pelo contrário, trabalhador é muitas vezes utilizado de maneira
ou antes dos conceitos: termos como burgueses ou cidadãos têm por absoluta, sem determinação concreta: fala-se da organização ou da
detrás uma longa história 11 , e analisá-la é analisar também a emergên- emancipação dos trabalhadores, ou dá-se ao termo um alcance univer-
cia ou a resistência dos grupos que estes termos designam. Pierre sal: são então os trabalhadores do mundo inteiro. Verifica-se também
Bourdieu insistiu muito na função performativa dos discursos: dizer, é que, nos seus apelos, os sindicalistas se dirigem aos seus camaradas
fazer; dizer o grupo, nomeando-o, é dá-lo como existente na cena chamando-lhes trabalhadores e não operários, ainda que, por vezes, se
social. É por isso que os debates sobre a designação dos grupos sociais, encontrem designações tais como camaradas ou cidadãos.
os seus limites e as suas condições de pertença ou de exclusão são Nesta altura, levanta-se a questão da significação destes usos dife-
igualmente lutas sociais 12 • A história das representações remete assim renciados de dois termos aparentemente sinónimos: operários e traba-
para os conflitos reais de que estas representações são o objecto. lhadores. A atenção volta-se então para trabalho, que por vezes se
Mas ela permite além disso elucidar as bases destes conflitos e os encontra a designar o conjunto dos trabalhadores. Ao trabalho opõe-
significados que os agentes lhes dão. Tomemos o exemplo do -se evidentemente o capital, mas a oposição não é muito frequente. Em
compensação, no campo das designações do adversário do sindicalismo,
IO Reunimos aqui, por outros caminhos, as conclusões de Roger Chartier, surgem expressões como classe ociosa, parasitas. Os sindicalistas
«H isto ire intellectuelle et histoire des mentalités. Trajecto ires et questions». Revue designam-se como produtores e estigmatizam os patrões como impro-
de synthese, n.os 111-112, 1983, pp. 277-307. dutivos: são rapaces, e a exploração é caracterizada como o roubo do

li
11
Ver-se-á em Reinhardt Koselleck, «Histoire des concepts et histoire sociale», fruto do trabalho dos outros. Descobrem-se também afirmações como:
in Le Futur Passé. Contribution à la sémantique des temps. historiques, Paris, Ed. o trabalh o, que e' tudo , deve ocupar o pnmezro
· · 1ugar na socze · da d e, ou
de EHESS , 1990, pp. 99 - 118 , um bom exemp Io des te tipo de ana, 11se. . 1

1 a· d . A • , • •

12 Pierre Bourdieu, Ce que par ler veut dire. L' économie des échanges a. a preponderancza e a grandeza, a unzca verdadezra, do trabalho
linguistiques, Paris, Fayard, 1982. cnador e única fonte de riqueza. O que se resume em fazer do trabalho

130 131
o valor central, em redor do qual se deve organizar toda a sociedade i d vista, uma bela ocasião falhada. As imagens, para quem realmente
Compreende-se então melhor que o sindicalismo tenha tomado a e olha, fornecem representações particularmente instrutivas. Não está
de uma Confederação Geral do trabalho: os sindicalizados não são à ' o uso soube fazer Philippe Ariês, tanto com as
primeira vista pobres, miseráveis ou oprimidos, embora também 0 epresentações da mfanc1a como com as da morte 16 •
sejam; o sindicalismo tem por tarefa explícita tomá-los conscientes da r - De uma forma mais geral, a história cultural deve interessar-se pelo
sua eminente dignidade de produtores e criadores de riqueza. Poder-se- que Noelle Gérôme chama justamente os arquivos sensíveis: as ima-
-ia resumir este sistema de representações dizendo que o objectivo do gens, no sentido mais geral, e os objectos 17 • As insígnias, os emble-
sindicalismo é transformar os operários em trabalhadores 13 • mas, os estandartes, por exemplo, mas também as fotografias de
Espero ter mostrado, com este exemplo, o interesse de uma abor- amadores ou os bilhetes postais. Para as abordar, porém, os histori-
dagem linguística dos textos para a história cultural. Teria podido tomar adores devem ir colher nos antropólogos ou etnólogos o seu método
outros exemplos, por exemplo nas proclamações eleitorais de 1881, ou em todo o seu rigor: a sua observação é muito mais precisa, muito
ainda nos discursos de circunstância dos antigos combatentes do período mais sistemática que a dos historiadores. Ela esforça-se por não deixar
de entre duas guerras 14, ou ainda nas investigações de Maurice Toumier escapar nenhum pormenor, pois recusa decidir, antes de os ter todos
e da sua equipa, especialmente Benoit Habert e Robert Benoit 15 • Mas coleccionados, se são ou não significativos e porquê. Imagens e
seria dar prova de cegueira limitar-se ao estudo dos textos. Existem objectos ganham sentido no interior das séries.
muitas outras produções simbólicas em que o historiador pode ler É sobretudo necessário colocá-los no quadro das práticas em que são
sistemas de representações de grupos sociais determinados. O fosso que utilizados. As bandeiras sindicais só contam os seus segredos se se
separa a história da arte da história sem mais, constitui, sob esse ponto dispuser de um largo conjunto e se se conseguir determinar em que
circunstâncias eram exibidas. A análise da cultura operária tem muito
13 Este exemplo é tirado de uma comunicação que apresentei com Manfred a aprender com os usos e a qualificação dos espaços da fábrica ou com
Bock no colóquio organizado pelo Centro de Investigações sobre a História dos os rituais, como quando alguém sai aposentado 18 , mas na condição de
Movimentos Sociais e do Sindicalismo da Universidade de Paris-I na Sorbonne, assentar numa observação minuciosa. Também creio ter mostrado, ao
em 12-14 de Outubro de 1995, sobre «L'invention des syndicalismes. Le analisar as cerimónias do 11 de Novembro do período entre as duas
syndicalisme en Europe occidentale à Ia fin du XIXe siecle». A comparação com guerras, como o valor «nacionalista» atribuído por alguns à presença
a Alemanha é muito esclarecedora, na medida em que ali o sindicalismo aparece
muito mais frequentemente preocupado com a organização, com um campo
de'bandeiras nos monumentos aos mortos constituía um contra-senso,
semântico estruturado em tomo da expressão «movimento operário», Arbei· por falta de observar o lugar ocupado pelas bandeiras no espaço sim-
terbewegung. Os termos com conotação ética abundam nos dois discursos, para bólico do monumento e por falta de observar em que encenação e em
realçar a coragem, a dedicação dos sindicalistas. Mas a capacidade de confronto que conjunto de gestos são utilizadas: as bandeiras que desfilam não
parece valorizada em França, e a de organização, de disciplina e de reflexão, na têm a mesma função simbólica e, portanto, a mesma significação que
Alemanha.
14 Ver o livro que escrevi em colaboração com Louis Girard e Rémi Gossez,
16
Vocabulaire des proclamations électorales de 1881, 1885 et 1889, Paris, PUF/ Philippe Aries, L' Enfant et la Vi e família/e sous l' Ancien Régime, Paris,
/Publicações da Sorbonne, 197 4, e o meu artigo «Combattants et politiciens. Le P!on, 1960; Essais sur l' histoire de la mort en Occident du M oyen Age à nos
discours mythologique sur Ia politique entre les deux guerres», Le Mouvement jours, Paris, Le Seuil, 1975.
17
social, n. 0 85, Out.-Dez. 1973, pp. 117-154. Archives sensibles. 1mages et objets du monde industriei et ouvrier, Noeiie
15
Dei" uma bibliografia das investigações de tipo linguístico aplicadas à Gérôme dir., Cachan, Ed. do ENS de Cachan, 1995.
18
história política, as mais interessantes a meu ver, na minha contribuição para a Ver, por exemplo, Noeiie Gérôme, «Les rituels contemporains des
obra dirigida por René Rémond, Pour une histoire politique, Paris, Le Seuil, travailleurs de l'aéronautique», Ethnologie francaise, t. 14, n. 0 2, Abr.-Jun. 1984,
1988, «Les mots», pp. 255-285. pp, 177-196.

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terão se desfilannos nós diante delas; as bandeiras que se inclinam não Definir assim a cultura, como um conjunto de desvios significati-
são das cores das que sobem ao alto de um mastro 19• é considerá-la como o que divide os grupos sociais. A dificuldade
.
Desta diligência atenta às produções simbólicas, Les Lieux de ara 0 historiador é partir da cultura e não dos grupos, pms ele tem
mémoire de Pierre Nora reúnem múltiplos exemplos. Mas não se pernpre tendência para aceitar os grupos como já lá estando, como
poderia limitar a eles a lista: tudo pode ser introduzido no universo sreexistentes ao seu inquérito, uma vez que as fontes, que consulta
das representações de um grupo, sob condição de o saber ler, inclusive elas próprias muitas vezes socialmente divididas. E o limite dos
os factos mais excepcionais. É assim que Alain Corbin analisa a estudos a que fazia alusão mais acima, por exemplo, as
violência assassina de uma aldeia enquanto manifestação de um sis- autodesignações no sindicalismo francês no fim do século XIX. Amda
tema de representações políticas, o qual se tomou arcaico através de que dispunhamos de um corpus de textos proveniente um deter-
uma sociedade que pratica o sufrágio universal de há uma vintena de minado grupo social, não poderemos desde logo conclmr de forma
anos para cá20 • A violência excepcional enquanto expressão simbólica válida que as representações fornecidas pelos textos definem esse
de uma identidade perdida ... grupo diferentemente dos outros: para saber realmente quem se reco-
nhece nos valores do trabalho, seria necessário examiná-los transver-
Três problemas para conclusão salmente, através do conjunto dos meios sociais, e localizar exacta-
mente onde passa a fronteira e onde se situam as clivagens.
O campo da história cultural abre-se assim à medida das pretensões Na falta de tal inquérito, a história cultural perde uma parte do seu
totalizantes desta história no presente. Sem dúvida que convém tam- valor heurístico. Enriquece a descrição dos grupos sociais e não
bém limitar-lhe a ambição a determinadas dimensões, já vastas. permite avaliar quais dos factores económicos, profissionais, sociais,
Observar-se-á, em primeiro lugar, que toda a cultura é cultura de ou factores culturais estão na base da sua identidade.
um grupo. A história cultural é indissociavelmente social, dado que Chegamos aqui ao segundo problema: o da cultura como factor de
está ligada ao que diferencia um grupo de outro. É pois raciocínio identidade. Toda a cultura - dizíamos - é cultura de um grupo. Só
sobre as diferenças, sobre os desvios. É essa mesma a sua definição, existe cultura partilhada, pois a cultura é mediação entre os indivíduos
tendo em consideração Claude Lévi-Strauss: «Chamamos cultura a que compõem o grupo. É o que estabelece entre eles comunicação e
todo o conjunto etnográfico que, do ponto de vista da investigação, comunidade. Mas a cultura é também mediação entre o indivíduo e
apresenta, em relação a outras, desvios significativos. [... ] O termo a sua experiência; é o que permite pensar a experiência, dizê-la a si
cultura é empregado para reagrupar um conjunto de desvios signifi-
mesmo dizendo-a aos outros. Isto vê-se bem quando a experiência
cativos cuja experiência prova que os limites coincidem aproximada-
vivida toma, de certo modo no sentido oposto, as representações que
mente. O facto de essa coincidência nunca ser absoluta, e nunca se
se poderiam imaginar antes de a abordar, por exemplo, pela experi-
produzir a todos os níveis ao mesmo tempo, não deve impedir-nos de
ência da guerra. Quando os soldados da guerra de 1914-1918 não
utilizar a noção de cultura... »21
cessam de denunciar a comoção militar-patriótica dos jornais da
rectaguarda, que os descrevem ávidos de se baterem com os Boches,
19
«Les monuments aux morts. Culte republicain? Culte civique? Culte
patriotique?», in Pierre Nora ed., Les Lieux de mémoire. I. La République, Paris, eles próprios nem sempre conseguem dizer o que vivem sem retomar
Gallimard, 1984, pp. 195-225. involuntariamente essas imagens grandiloquentes e absurdas. Vemo-
20
Alain "Corbin, Le Village des cannibales, Paris, Aubier, 1990. ·los descrever, por exemplo, os Boches carregando em passo de ganso
21
Claude Lévi-Strauss, Anthropologie structurale, citado por Maurice baioneta no cano, através dos buracos dos obuses, ou ainda um
Crubellier, Histoire culturelle de la France, XIX'-xx.e siecle - Paris, Armand capitão arrastando a sua companhia num impulso arrebatado, através
Colin, «U», 1974, pp. 20-21.

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da lama que lhe sobe até ao meio da perna ... 22 Tentem pois ganhar à sua importância. É muito difícil dizer quando se produziu esta
arrebatamento na lama!. .. O discurso, aqui, trai a realidade a que se evolução. A Educação Nacional já não constrói estabelecimentos di-
Tefere: os termos que permitem pensar a guerra vivida ainda não ferenciados desde 1959, mas os liceus de raparigas e rapazes conti-
foram todos forjados. nuaram vários anos as suas vidas distintas. Foi provavelmente nos
Mas se a cultura é aquilo que permite ao indivíduo pensar a sua anos setenta que a fusão se operou. E mesmo os públicos não foram
experiência, aquilo através do que o indivíduo formula a sua vivência, instantaneamente misturados. Haveria neste caso toda uma investiga-
o trabalho, as preocupações quotidianas, bem como os episódios mais ção, difícil de levar por diante. E, no entanto, trata-se de evoluções
importantes da existência, o amor ou a morte, o historiador não que muitos dos nossos contemporâneos viveram. Adivinha-se a difi-
poderia decifrar essa cultura sem conhecer a experiência vivida. A culdade em descrever as evoluções culturais mais antigas.
história cultural deve transitar constantemente da experiência ao dis- Não existe portanto história que não seja das mudanças e das
curso sobre a experiência. De que experiência vivida se fala numa evoluções. A história cultural deve esforçar-se por ultrapassar a fase
cultura? Como e de que experiência se alimenta uma cultura? A da verificação das diferenças, para explicar as evoluções. Deve ser
história cultural propõe por isso um programa de investigação muito história e não apenas antropologia retrospectiva. O que levanta todas
mais árduo que a simples história, uma vez que é um vaivém cons- as dificuldades.
tante entre esta e as representações que os contemporâneos dela
fazem. Como se vê, no termo desta reflexão, eu hesitaria em instituir a
Daí o risco que se corre ao abordar a história pela história cultural. história cultural num domínio inteiramente autónomo. Pois sendo a
De uma certa maneira, por razões ao mesmo tempo práticas e epistemo- história de grupos, de colectividades - quer sejam religiosas, étnicas,
lógicas que nada têm a ver com o marxismo, a história cultural é o sociais, nacionais ou outras, pouco importa -, toda a história é social.
coroar da investigação. Ela surge depois das outras, porque é impos- Bloch e Febvre disseram-no admiravelmente, depois de muitos outros,
sível compreender uma representação sem saber de que é ela repre- entre os quais Seignobos e antes dele Fustel e mais. Mas os grupos
sentação, sob pena de se perder no nominalismo. só se identificam na diferença relativamente a outros grupos através
Último problema, o das evoluções em história cultural. Porque e no interior dos conjuntos de representações; toda a história social
muito retira de disciplinas marcadas pelo estruturalismo, como a um pouco ambiciosa e preocupada em apreender o real na sua tota-
linguística ou a etnologia, a história cultural é exímia em descrever lidade deve ser também história cultural. As separações, por vezes
coerências na sincronia. No entanto, é evidente que as culturas se úteis de um ponto de vista metodológico, são sempre mutilações. Se
transformam, que evoluem. Mas essas evoluções seguem ritmos mal temos de renunciar ao sonho de uma história cumulativa, que nos
conhecidos, tanto bruscos como muitíssimo lentos. São sobretudo e daria um quadro definitivo da evolução da humanidade das origens
muitas vezes dissimuladas, passando despercebidas. Tomemos, por aos nossos dias, pois sabemos que os interesses se deslocam e que as
exemplo, a introdução do misto nos estabelecimentos escolares. Trata- questões postas à história estão sempre a mudar, não devemos renun-
-se de uma evolução importante e que prova uma notável transforma- ciar a essa história total que une num só conjunto os aspectos múl-
ção das representações relativas à diferenciação sexuada dos papéis e tiplos e solidários de uma mesma realidade, porque isso seria renun-
ciar a compreender. Toda a história é, ao mesmo tempo e indissoci-
i
i
22
avelmente, social e cultural.
Ver as referências no meu artigo: «Les représentations de la guerre dans
! la culture française de I'entre-deux-guerres»,
n. 0 41, Jan.-Mar. 1994, p. 25.
siecle. Revue d' histoire,

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