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A ONDA CONSERVADORA
E AS ELEIÇÕES DE 2018 NO BRASIL
NATAL, RN
2020
ANGELO GIROTTO NETO
A ONDA CONSERVADORA
E AS ELEIÇÕES DE 2018 NO BRASIL
Orientador:
Prof. Dr. José Antônio Spinelli Lindoso
Natal, RN
2020
UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede
Catalogação da Publicação na Fonte
145 f : il.
A ONDA CONSERVADORA
E AS ELEIÇÕES DE 2018 NO BRASIL
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Prof. Dr. José Antônio Spinelli Lindoso
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
(Orientador)
__________________________________________________
Prof. Dr. João Emanuel Evangelista de Oliveira
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
__________________________________________________
Prof. Dr. Homero de Oliveira Costa
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
__________________________________________________
Prof. Dr. Raimundo Nonato Cunha de França
Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT)
_________________________________________________
Prof. Dr. Pablo Moreno Paiva Capistrano
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN)
Dedico este trabalho ao meu mestre,
mestre Spinelli, ser humano extraordinário,
mentor e amigo.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao professor Spinelli, pela orientação valiosa, por confiar em meu trabalho e pelas
conversas inspiradoras que sempre fazem o tempo passar rápido e sobretudo pela imensa
generosidade que é sua principal característica; espero ter feito um trabalho à altura do mestre.
Ao professor Homero Costa, meu orientador quando da qualificação deste trabalho, pessoa
atenciosa, cujos artigos e orientações foram de grande valia na pesquisa.
Aos professores João Emanuel Evangelista, que acompanha minhas pesquisas desde o mestrado;
Raimundo de França, cujos comentários na defesa de minha dissertação foram tão valiosos; Pablo
Capistrano pelas inúmeras e frutíferas recomendações por ocasião da qualificação desta pesquisa de
doutorado, que muito ajudaram a desenvolver as bases da pesquisa subsequente, identificando
falhas e encontrando novos caminhos. Todos fizeram parte desta caminhada.
A Yuri Borges, Leon K. Nunes, Daniel Costa, Ramon Alves e Djamiro Costa, aos quais devo a
oportunidade ter evitado muitos erros a mais – mas, sobretudo, pela indispensável amizade. E aos
amigos que, de tão amigos, perdoarão a omissão de seus nomes.
Aos colegas do PPGCS Jefferson, Nicholas e Otânio, vocacionados servidores públicos e pessoas
excelentes.
A todos os colegas da Comunica, sobretudo Neto e Maurity, que foram compreensivos e solidários
nos momentos de maior necessidade.
Ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte e a UFRN.
“Para mim, é muito melhor compreender o universo
como ele realmente é do que persistir no engano, por
mais satisfatório e tranquilizador que possa parecer.”
O presente estudo visa às eleições presidenciais de primeiro e segundo turnos de 2018, mais
especificamente à vitória do candidato do Partido Social Liberal (PSL), Jair Messias Bolsonaro.
Nosso objetivo mais amplo é investigar os fatores políticos e ideológicos que contribuíram para o
desfecho do pleito. Nosso problema: qual o sentido político e ideológico da eleição de Jair Messias
Bolsonaro, no contexto do fenômeno contemporâneo a que chamamos por onda conservadora? Para
tanto, as investigações acerca de nosso objeto partem da problematização da eleição em questão,
que nos conduziu a três fatores que julgamos preponderantes em nossa hipótese explicativa. Nossa
hipótese é que três movimentos da realidade histórica foram determinantes no resultado da eleição
objeto deste estudo: primeiro, uma crise de legitimidade das democracias liberais que vem se
acentuando em todo o ocidente a partir dos anos 1970, caracterizada pela ascensão ao poder em
diversos países de um novo populismo de direita, cujos desdobramentos no Brasil são
condicionados e dirigidos por nossa peculiar trajetória democrática e, especificamente no caso
brasileiro, os eventos de junho de 2013 foram catalisadores de um novo ideário conservador;
segundo, que a polarização histórica de dois projetos concorrentes no Brasil – um melhor
representado pelo PSDB, o outro pelo PT, com alternância de poder entre ambos – encontrou,
marcadamente a partir de junho de 2013, limites objetivos e subjetivos para seguir reproduzindo o
consenso social; por fim, a crise de legitimidade e a incapacidade de solucionar os problemas
percebidos pela sociedade – de onde decorreu um declínio dos principais partidos tradicionais da
direita brasileira – permitiu a ascensão ao centro das disputas hegemônicas de um novo
conservadorismo que teve no bolsonarismo sua principal força aglutinadora, produzindo um pacto
ultraliberal e conservador que levou Bolsonaro à vitória.
This study aims at the first and second round presidential elections of 2018, more specifically the
victory of the candidate of the Social Liberal Party (PSL), Jair Messias Bolsonaro. Our broader
objective is to investigate the political and ideological factors that contributed to the outcome of the
election. Our problem: what is the political and ideological sense of the election of Jair Messias
Bolsonaro, in the context of the contemporary phenomenon that we call the conservative wave?
Therefore, the investigations about our object start from the problematization of the election in
question, which led us to three factors that we consider to be predominant in our explanatory
hypothesis. Our hypothesis is that three movements of the historical reality were determinant in the
result of the election object of this study: first, a crisis of legitimacy of liberal democracies that has
been accentuated throughout the West since the 1970s, characterized by the rise to power in several
countries a new right-wing populism, whose developments in Brazil are conditioned and driven by
our peculiar democratic trajectory and, specifically in the Brazilian case, the events of June 2013
were catalysts for a new conservative ideal; second, that the historical polarization of two
competing projects in Brazil - one better represented by the PSDB and the other by PT, with
alternation of power between them - found, starting in June 2013, markedly objective and subjective
limits to continue reproducing the social consensus ; finally, the crisis of legitimacy and the
inability to solve the problems perceived by society - which led to a decline in the main traditional
parties of the Brazilian right - allowed the rise to the center of the hegemonic disputes of a new
conservatism that had its main strength in bolsonarismo agglutinating, producing an ultraliberal-
conservative pact that led Bolsonaro to victory.
Key words: Bolsonaro; Lula and PT; Brazilian Policy; Conservadorism; Reationary Neoliberalism.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
CONCLUSÃO 121
BIBLIOGRAFIA 126
FONTES NA INTERNET 131
11
INTRODUÇÃO
O presente estudo visa às eleições presidenciais de primeiro e segundo turnos de 2018, mais
especificamente à vitória do candidato do Partido Social Liberal (PSL), Jair Messias
Bolsonaro. Nosso objetivo mais amplo é investigar os fatores políticos e ideológicos que
contribuíram para a eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República em 2018, o que nos
propomos a realizar interpretando a eleição brasileira de 2018 no contexto da ascensão
mundial da direita populista e trabalhando na construção inicial de uma conceituação daquilo
a que chamamos por bolsonarismo, bem como identificando nos processos históricos do
Brasil os fatores objetivos e subjetivos que condicionaram o pleito de 2018. O problema que
norteia este estudo pode ser assim definido: qual o sentido político e ideológico da eleição de
Jair Messias Bolsonaro, no contexto do fenômeno contemporâneo da onda conservadora?
Para tanto, as investigações acerca de nosso objeto partiram da problematização da eleição em
questão, que nos conduziu a três fatores que julgamos preponderantes em nossa hipótese
explicativa. Nossa hipótese é que esses três movimentos da realidade histórica foram
determinantes no resultado da eleição objeto deste estudo: primeiro, uma crise de legitimidade
das democracias liberais, que vem se acentuando em todo o ocidente a partir dos anos 1970,
caracterizada pela ascensão ao poder em diversos países de um novo populismo de direita,
cujos desdobramentos no Brasil são condicionados e dirigidos por nossa peculiar trajetória
democrática e, especificamente no caso brasileiro, os eventos de junho de 2013 foram
catalisadores da rearticulação do ideário conservador, conforme proposto em nosso estudo
anterior sobre o período (GIROTTO, 2014); segundo, que a polarização histórica de dois
projetos concorrentes no Brasil – um melhor representado pelo PSDB, o outro pelo PT, com
alternância de poder entre ambos – encontrou, marcadamente a partir de junho de 2013,
limites objetivos e subjetivos para seguir reproduzindo o consenso social; por fim, a crise de
legitimidade e da capacidade de solucionar os problemas percebidos pela sociedade – de onde
decorreu um declínio dos principais partidos tradicionais da direita brasileira – permitiu a
ascensão ao centro das disputas hegemônicas de um novo conservadorismo que teve no
bolsonarismo sua principal força aglutinadora, produzindo um pacto ultraliberal no plano
econômico e moralmente conservador que levou Bolsonaro à vitória.
Adotaremos como procedimentos metodológicos para a construção das análises e
avaliação da hipótese uma revisão de bibliografia, complementada pela análise de dados
secundários. Cada qual desses procedimentos surge ao longo dos capítulos à medida que se
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torne necessário para a consecução de seus objetivos específicos e do objetivo geral deste
trabalho. Assim, o plano dos capítulos não segue uma ordenação cronológica, buscando,
antes, alcançar cada qual dos objetivos complementares para culminar na abordagem efetiva
do objetivo central da pesquisa. Dessa abordagem decorre o seguinte plano dos capítulos e
seus respectivos procedimentos metodológicos:
O capítulo 1 (2018: desafio interpretativo e problemas da pesquisa) se dedica à crítica
de algumas hipóteses levantadas no sentido de explicar a eleição de 2018, dando
sequência à problematização do objeto. A opção por não incluir esta discussão na
presente introdução se dá pela decisão de unir numa mesma parte a revisão de obras
selecionadas e as questões decorrentes dessa leitura, o que tornaria nossa introdução
demasiado longa, ao antecipar algumas discussões mais bem alocadas no entremeio do
texto final. Desta forma, a problematização da pesquisa se torna completa apenas no
capítulo 1.
O capítulo 2 (O Brasil e a regressão da cidadania) busca revisar e articular a literatura
sobre dois movimentos históricos que impactam no atual debate acerca da democracia
brasileira: a ascensão no plano global de uma direita populista marcadamente
autoritária e a rearticulação da ideologia conservadora no Brasil, cujo evento mais
destacado foram os protestos da Grande Onda de 2013. Neste capítulo, retomamos e
atualizamos nossas conclusões da pesquisa que culminou na dissertação A voz das
ruas e a rearticulação da ideologia conservadora, de 2014. Procuraremos demonstrar
as consequências políticas, ideológicas e institucionais concernentes a esse novo
momento da vida republicana brasileira.
O capítulo 3 (Nova polarização esquerda-direita) se concentra na análise do período
designado por lulismo, situando-o no contexto das disputas eleitorais da Nova
República. Procuraremos traçar os aspectos centrais da dinâmica econômica e social
do Brasil no período, buscando compreender a conformação de classes e seus
movimentos na estrutura econômica nacional. Como ponto referencial da análise,
situaremos os eventos que entre 2015 e 2016 culminaram no impeachment da
presidenta Dilma e na derrocada do lulismo. É nesse contexto que buscaremos traçar
um paralelo entre o desfecho dos protestos de junho de 2013 e a ascensão no cenário
político-eleitoral de uma nova direita.
No capítulo 4 (Um novo centro gravitacional para a direita brasileira) dá-se
sequência ao capítulo anterior no intuito de demonstrar como pôde o bolsonarismo se
constituir em principal alternativa ao lulismo. O propósito desta seção é apresentar e
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debater as principais ideias que inspiraram os grupos sociais mais ativos da onda
conservadora. Para tanto, faremos também uma breve análise da conformação e do
comportamento desses grupos, apoiados numa revisão de bibliografia acerca da
dinâmica social e política do Brasil contemporâneo, partindo do conceito de lulismo.
Discutiremos no primeiro plano os estudos de André Singer, Marcio Pochmann, Jairo
Nicolau, Marina Lacerda, Jessé de Souza, Fernando Henrique Cardoso, dentre outros.
Nesta seção, buscaremos não apenas identificar a dinâmica social e econômica que
conforma os principais grupos sociais que sustentam o campo conservador em análise
como também analisar os elementos socioeconômicos que conformam as bases de um
projeto político-nacional conservador. Como se configura a aliança liberal
conservadora que saiu vitoriosa das urnas?
Uma das muitas novidades que acompanharam a vitória eleitoral de Bolsonaro foi o fim da
polarização entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB), que pautou os pleitos nacionais desde 1994. Aos dois governos do PSDB
com a presidência de Fernando Henrique Cardoso se sucederam quatro vitórias petistas, todas
confrontando o PSDB no segundo turno. A última delas, a vitória de Dilma V. Rousseff sobre
Aécio Neves em 2014 foi das mais polarizadas e já trouxe em si vastas influências dos
eventos políticos de 2013.
Logo em seu primeiro ano, o segundo governo de Dilma enfrentou intensas
mobilizações políticas de contestação que – conforme argumentaremos no capítulo 3 –
descendem diretamente dos protestos de junho de 2013, que foram o objeto de nossa
dissertação de mestrado A voz das ruas e a rearticulação da ideologia conservadora
(GIROTTO, 2014). Em certa medida, esta pesquisa busca aprofundar questões levantadas e
abertas em nosso trabalho anterior.
Bolsonaro, esse personagem representativo do fenômeno que ora analisamos, é um
político de trajetória ao mesmo tempo ordinária e incomum. Iniciou sua carreira política ainda
em 1989, filiando-se ao Partido Democrata Cristão e sendo eleito vereador pela cidade do Rio
de Janeiro. A partir de 1991, o político ocupou sucessivos mandatos de deputado federal pelo
estado do Rio de Janeiro, cargo que ainda possuía ao ser eleito presidente da República. Em
suas três décadas como político profissional, teve diversas filiações partidárias: PDC, 1989-
1993; PP, 1993; PPR, 1993-1995; PPB, 1995-2003; PTB, 2003-2005; PFL, 2005; PP, 2005-
2016; PSC, 2016-2018. Por fim, filiou-se ao Partido Social Liberal (PSL) em 2018, para
concorrer à presidência da República.
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regra. Através de suas pesquisas foi que pudemos nos familiarizar antecipadamente aos dados
que viriam ao público em trabalhos de autores que já possuem uma rotina e recursos
produtivos consolidados. Outra opção, visando ao comedimento e a uma abordagem mais
direta do tema, foi a de não inserir grande número de declarações dos candidatos e lideranças
políticas. A análise do discurso, desde os primórdios da campanha de 2018, tem rendido
variados trabalhos acadêmicos que trazem extensa reprodução dos conteúdos textuais de
Bolsonaro. Alguns desses trabalhos surgirão ao longo de nossa tese, e sua leitura é
recomendada para aqueles que desejem ou necessitem maior familiaridade com as narrativas
que aqui discutimos, já reelaboradas pelo trabalho analítico.
Toda escolha metodológica implica em exclusões, muitas vezes questionáveis. Temos
certeza de que não somos exceção a isso. A quais temas dar um tratamento mais extenso,
quais deles julgamos poder sintetizar com mais eficiência a fim de não perder o rumo da
exposição? Relendo o trabalho numa derradeira revisão, parece-nos que optamos, ainda que
de forma pouco consciente, por dar mais atenção aos detalhes daqueles elementos sobre os
quais sentimos ter mais distância das opiniões que se têm defendido nos trabalhos que
pesquisamos. Assim, o papel dos evangélicos na construção da base social bolsonarista não
tem aqui o espaço que o tema realmente merece, sobretudo porque as pesquisas sobre o tema,
ao que nos parece, têm sido assertivas. Destaca-se nesse campo o excelente trabalho de
Marina Lacerda, com o qual temos apenas divergências pontuais e secundárias, que sequer
mereceram menção. Já no campo do papel das redes sociais na internet, julgamos necessário
delimitar certas posições que nos pareceram equivocadas, e por isso ao tema demos maior
atenção, ainda que não aquela que ele merece devido a sua importância emergente.
Também optamos pelo uso da teoria que nos embasa, notadamente os corpo teórico da
obra de Antônio Gramsci (2007, 2010, 2011), de forma mais orgânica ao texto, sem
digressões explicativas. Isso porque em nossa dissertação já exploramos a conceituação
teórica em níveis satisfatórios para o que propomos, e julgamos que qualquer aprofundamento
sério do tema exigiria um estudo a parte. Aliás, todos os temas pelos quais perpassamos neste
trabalho merecem e têm recebido atenção específica pela academia. Esperamos que nossas
escolhas expositivas não impeçam que o presente trabalho comunique nossas ideias e que – se
obtivermos êxito – possa lançar alguma luz sobre o tema, tênue que seja.
Por fim, não há como evitar certo tom ensaístico ao se tratar de eventos históricos que
testemunhamos, sobretudo quando nossa imersão neles é intensa como tem sido a de todos
aqueles que se preocupam com as perspectivas da sociedade brasileira. Em casos tais, o
testemunho do pesquisador também se torna documento histórico, e mesmo seus valores que
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políticas e a comunidade científica em torno das formas de se lidar com a pandemia que
acabou por envolver todo o globo, estaríamos diante de uma disputa de narrativas. Quando
são expostas as associações entre a família do presidente e grupos do crime organizado, a
relevância política do tema ou sua irrelevância para os interesses nacionais seriam também
disputas narrativas. O governo incita manifestações de ódio, intolerância e apologia autoritária
através dos discurso de seu presidente? Questão de narrativas. O cinismo desse vale-tudo
institucionalizado não é novidade no debate público, nem dele estão imunes as leituras que
por todo o espectro político se fazem da realidade nacional e de seus possíveis
desdobramentos.
Uma significativa quantidade de análises sobre a vitória de Bolsonaro veem o
desfecho da eleição de 2018 como resultado também de uma guerra de narrativas, muitos
atribuindo a vitória do candidato do PSL ora a uma orquestração para enganar a população,
ora à predominância das fakenews nos grupos de WhatsApp, outras vezes ainda à simples
manipulação ou a alguma espécie de artifício político, não admitindo a possibilidade de este
ser um fenômeno eminentemente democrático, marcadamente popular, apesar de todos os
elementos de manipulação das redes sociais e da agressiva e mentirosa estratégia de
comunicação que caracterizaram a campanha de Jair Bolsonaro. Ocorre que as novas forças
populistas da direita e seu programa autoritário se viabilizam dentro das regras democráticas.
E julgar que a simples manipulação decide os processos políticos, sem uma necessária
correlação entre o discurso e os movimentos materiais e subjetivos da sociedade, representa
uma regressão a estágios primitivos do estudo do comportamento político, numa espécie de
novo behaviorismo político, no qual as massas amorfas seriam conduzidas como o gado rumo
a destino que lhes é indiferente. Assim, grande parte do debate acerca da eleição de 2018 se
concentrou em tentar evidenciar os elementos dispersos que teriam feito desta uma eleição
imprevisível, embora outros analistas também proponham que o resultado estava decidido de
partida. Parte desta limitação analítica se dá também por limitações de recursos, quer sejam
limitação de tempo, de disponibilidade de dados ou quaisquer outras que acabam por
condicionar o trabalho intelectual. Não pretendemos aqui apontar as limitações de leituras
específicas, nem expor levianamente supostos equívocos dos intérpretes convocados para esta
discussão. Inicialmente, propomo-nos à honesta e realista tarefa de elencar alguns dos fatores
mais enunciados como potenciais elementos explicativos do fenômeno que estudamos. O
propósito deste capítulo é expor as bases mínimas do que se tem debatido, a fim de poder
problematizar nosso objeto. Não se trata, portanto, de uma análise global da obra ou das teoria
dos autores elencados, tarefa a que a enorme atenção que o objeto tem merecido por parte das
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ciências sociais nos impediria de realizar a contento. Nem mesmo se trata de uma revisão
completa da literatura sobre a eleição de 2018, quando muito, de autores selecionados no mais
das vezes pelas contingências da pesquisa que ora realizamos.
que ofertam mão de obra a baixos custos e com pouca regulação. Assim, a nova dinâmica de
produção de mercadorias baratas para um competitivo mercado mundial degradou as
condições de existência de grande parte das populações que vivem nas democracias liberais
do centro do sistema capitalista mundializado. Somando-se a isto, o fluxo migratório se
intensifica, alimentado pelo fracasso das políticas de constituição de Estados nacionais de
unidade étnica na Europa do pós-guerras, pelos impactos destrutivos das sucessivas crises
financeiras mundiais e a instabilidade e violência ampliadas em grande parte do globo pelos
movimentos geopolíticos das grandes potências econômicas e militares (HOBSBAWM, 1995,
2018). A estagnação econômica e os conflitos identitários se associam à emergência de novas
formas de comunicação que possibilitam a organização e difusão de ideias antissistema que
agravam a crise de legitimidade das democracias liberais (MOUNK, 2018).
Com efeito, é notável que o impacto das redes sociais da internet esteja no cerne das
explicações correntes sobre os eventos de 2018, e, para além, sobre todo o processo político
em curso no Brasil desde 2013 (AVRITZER, 2019; MOURA e CORBELLINI, 2019). As
direitas populistas em todo o mundo têm se utilizado de forma efetiva das redes sociais para a
difusão de suas ideias e organização de suas bases políticas. Vastas redes de comunicação se
estabelecem em torno de intelectuais e think thanks dedicados a difundir um ideário
antissistema que tem como base a rejeição ao conteúdo iluminista ainda vigoroso nas
sociedades de democracia liberal, aos processos globalizantes, por alguns desses intelectuais
denominados por globalismo, e ao multiculturalismo. Também o bolsonarismo fez amplo e
decisivo uso das redes sociais na internet (NICOLAU, 2020; CIOCCARI, PERSICHETTI,
2018).
Tanto na eleição quanto na sustentação posterior de seu governo diante de constantes
crises políticas, Bolsonaro teve no segmento evangélico uma base social expressiva e ativa
(LACERDA, 2019). Teremos também a oportunidade de discutir algumas das hipóteses sobre
esse fenômeno nos capítulos 3 e 4. Em grande medida, a mobilização desses segmentos se deu
por uma agenda de costumes que implicou na defesa de uma visão tradicional de família, na
defesa da subordinação da política a valores religiosos e numa ideologia de gênero
ironicamente apresentada como o combate às ideologias de gênero. Essa pauta se constituiu
sobretudo pelas redes sociais, com amplo recurso a fakenews, como no caso do suposto kit
gay.
Pesaram também na conformação particular da eleição de 2018 episódios contingentes
que mudaram o rumo da disputa e o tom das campanhas. A exclusão de Lula da disputa
presidencial foi um dos fatos mais relevantes nessa peculiar eleição. O ex-presidente liderava
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açambarcou lideranças dos mais variados matizes ideológicos num escândalo perene de
amplas repercussões midiáticas; segundo, o problema da segurança pública, cuja centralidade
na preocupação do eleitorado se destacava claramente nas sondagens de opinião, percepção
muito justificada pelos índices de mortes violentas no Brasil, que anualmente rivalizam com
as tragédias internacionais em contexto de guerra civil; por fim, destacam a emergência das
redes sociais na internet como mecanismo decisivo de mobilização política, chegando a
afirmar que “essa era a eleição dos eleitores indignados e ‘empoderados’ pelo telefone
celular” (p. 30). Estes três fatores condensam os principais tópicos do debate que se seguiu à
vitória de Jair Bolsonaro em 2018, portanto, analisá-los mais detidamente importa no sentido
de estabelecer as bases da discussão que propomos.
Os autores propõem que a grande novidade do ponto de vista eleitoral no pleito de
2018 foi a substituição da polarização PT x PSDB, característica marcante das eleições desde
1994, por uma nova dicotomia, que definem como a polarização entre dois novos partidos
majoritários, o lulismo e o lavajatismo. Numa análise que segue o estabelecido pelo
fundamental estudo de André Singer (2012), reparam que a base do eleitorado petista sofreu
um acentuado deslocamento nas eleições de 2006, quando segundo Singer o lulismo passa a
ser a força dinâmica do campo das esquerdas 2. Moura e Corbellini defendem que em 2018 o
lulismo passou a rivalizar a preferência dos eleitores com um difuso e amplo partido da Lava
Jato, que emerge no espaço deixado pela decadência dos principais partidos tradicionais da
direita brasileira, decadência que, no que concordamos com os autores, acentuou-se a partir
dos eventos de junho de 2013. Escrevem: “A incapacidade desse sistema partidário tradicional
de compreender o potencial de vitória da candidatura Bolsonaro é reflexo de seu insulamento
nos castelos de Brasília” (p. 50).
Cabe adiantar a opinião dos autores de que o PT, nas eleições de 2018, apostou na
condução de uma eleição plebiscitária, trabalhando com a possibilidade de enfrentar
Bolsonaro no segundo turno, numa configuração que para muitos analistas – inclusive de
quem escreve agora e confessa – levaria à vitória petista. A percepção da real ameaça de uma
vitória bolsonarista teria vindo já tarde demais. Moura e Corbellini sustentam, com base nas
pesquisas realizadas antes das eleições, que a profunda desmoralização das elites políticas e a
crescente sensação de insegurança criaram um contexto político-eleitoral em que a eleição
plebiscitária decretaria a derrota do lulismo, associado aos escândalos intermitentes de
corrupção e vistos por parcela do eleitorado como brandos no combate à violência.
2 O conceito de lulismo, a partir de Singer, será fundamental nas discussões constantes do capítulo 3.
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Um evento da campanha eleitoral de 2018, que foi explorado por Moura e Corbellini
para ilustrar o descompasso entre a percepção dos atores políticos e do público sobre as
questões determinantes da disputa, foi uma entrevista do então candidato Bolsonaro.
Permitam-nos uma extensa citação:
Entremeando suas evasivas, Bolsonaro teria falado de forma direta aos sentimentos do
eleitorado, passando uma imagem de autenticidade que parece mesmo ter sido uma marca
identitária de sua campanha.
3 Tratamos aqui da ideologia numa definição gramsciana (GRAMSCI, 2010), que corresponde ao
conjunto de valores, anseios e interesses e da concepção de mundo que os grupos sociais portam e partir do qual
buscam constituir sua hegemonia através da cooptação ou submissão dos grupos sociais concorrentes. A
ideologia de um grupo social se vincula essencialmente à posição deste na sociedade, nos processos produtivos e
no acesso que têm às esferas de decisão e execução, ao poder. Ressignificando seus conteúdos ideológicos,
incorporando e conciliando interesses diversos, os grupos sociais constroem uma visão de conjunto da sociedade,
um projeto nacional específico, através do qual buscam articular um bloco social hegemônico e dirigir a
sociedade no sentido de seus valores e interesses. Esta é a definição restrita da ideologia que permeia este debate.
Num sentido mais amplo, também nos valeremos do termo no contexto dos estudos do comportamento
eleitoral, que para efeitos deste capítulo podemos resumir à localização do indivíduo no contínuo direita-
esquerda.
De forma simples, ambos os usos do conceito de ideologia podem ser distinguidos pelo sujeito a quem a
atribuímos. Quando falamos em ideologia dos grupos socais, nos referimos à definição estrita gramsciana.
Quando nos referimos à ideologia dos indivíduos, dos eleitores de forma ampla, estamos falando da ideologia
nos termos de Bobbio (1995), onde nos serve bem a dicotomia relacional esquerda-direita.
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escravismo passa a ser percebida como a origem fundamental de toda a vida material e
simbólica brasileira” (SOUZA, 2020. p. 13).
O racismo estrutural brasileiro, sobre o qual se edifica toda a estrutura econômica,
cultural, política e social de nosso país, assumiria contornos variados a depender do contexto
histórico em curso.
A profunda relação entre pobreza e exclusão racial no Brasil é um dos fatos mais bem
demonstrados da literatura científica brasileira, ainda que alvo de imposturas intelectuais
negacionistas, conforme teremos a oportunidade de discutir no capítulo 4. Souza vai além e
aponta o racismo científico (embuste teórico que substituiria a noção de superioridade de
raças pela de superioridade de culturas) como parte de um projeto de poder mundial
planejado nos ínfimos detalhes. A expressão mais bem acabada dessa doutrina talvez esteja na
obra de Samuel Huntington, O choque de civilizações, onde populariza o conceito de guerra
cultural. Apesar das claras incongruências de sua tentativa grotesca de dividir o mundo entre
oito civilizações distintas, e da inépcia ao definir os limites entre as supostas civilizações
antagônicas, a obra de Huntington logo se tornou um dos textos mais citados da ciência
política mundial, influenciando não apenas a academia mas também sendo vista como um dos
fundamentos teóricos da doutrina de política externa de sucessivos governos norte-
americanos, estendendo sua influência até nossos dias. Assim ele resume as principais
consequências de sua doutrina:
Não requer muita criatividade ver os elos entre a doutrina Huntington e política de
exportação da democracia aos modos americanos. Um outro dado interessante da teoria de
Huntington é a América Latina, que surge nem bem como uma civilização própria nem como
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financiamento de atores individuais e coletivos que possam acelerar a divulgação das ideias e
fomentar instabilidade nos regimes-alvo, passando pelo lawfare e outros mecanismos. Numa
entrevista – realizada por Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena para a editora que publicou
seu livro no Brasil –, Korybko explicita e expande sua definição anterior de guerra híbrida:
A estratégia não seria mais a bala de prata mas a contaminação por chumbo.
Na mesma ocasião, Korybko defendeu a tese de que o Brasil era alvo de uma guerra
híbrida. "Ao longo dos últimos dois anos, agentes externos muito sutilmente buscaram
condicionar a população para voltá-la contra o Partido dos Trabalhadores, usando
instrumentos como a Operação Lava Jato, apoiada pela NSA". A grande diferença dessa
análise para a de Souza (2020) consiste em que, para o brasileiro, a ação dos agentes externos
foi nada sutil. A tese da guerra híbrida contra o Brasil ganhou ainda mais destaque pouco
meses após a publicação do livro de Souza, por ocasião da publicação no Twitter de uma
postagem da ex-presidenta Dilma Rousseff, no qual ela se utiliza do termo.
Encontramos possíveis exemplos de guerra híbrida bem sucedida em diversas
repúblicas latino-americanas que tiveram experiências de governos populares interrompidas
por golpes internos apoiados em agendas internacionais, e mesmo com participação de
agências e governos externos, como em Honduras, Equador, Venezuela, Bolívia, Paraguai e
Argentina. Um aspecto que dificulta o estudo das guerras híbridas é sua característica não
oficial, não vemos declaração de guerra nesses formatos, não vemos governos, agências
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Adiante, sintetiza
Souza estrutura sua análise em alguns elementos centrais. Primeiro, aponta que as
condições preliminares da derrota do incipiente projeto de autonomia nacional já estavam
dadas, através da disseminação sob todas as formas institucionais e práticas do “vira-
latismo” disfarçado de identidade nacional. Aqui, como em seu trabalho anterior (SOUZA,
2017), o autor aponta sua crítica para formadores do pensamento político nacional, tais quais
Gilberto Freyre, Raimundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda, bem como a produtores de
ciência e cultura de forma ampla. Segundo, estabelece que o curso político e econômico
brasileiro se desenvolvia no sentido da abertura de caminhos alternativos à histórica relação
de dependência do país aos EUA, incluindo aí a expansão de empresas nacionais como a
Petrobras e a Odebrecht. Terceiro, o racismo científico – a noção de inferioridade cultural,
num resumo bastante restrito – traveste-se na política nacional de uma indignação seletiva
perante a corrupção, que por diversos mecanismos narrativos e teóricos vira a expressão
ideológica máxima do ódio aos pobres, que é a forma em que se transmuta o racismo nunca
31
O livro de Jessé Souza não consegue ir além em sua denúncia, não demonstra com
exatidão como os mecanismos da guerra híbrida foram operados no Brasil. Revelações
posteriores sobre a ação de agente americanos em solo brasileiro e da íntima relação entre ele
e agentes nacional, políticos e do Poder Judiciário, deram novas bases para suas hipóteses.
Ainda assim, sua tese tem grande potencial explicativo, ao pôr sob um mesmo quadro teórico
um conjunto de ações e agentes que têm sido decisivos no decurso político da história recente
do Brasil.
da República. A análise de Santos nos remete a Francisco de Oliveira (2003), de onde deriva
grande parte da análise crítica de matiz de esquerda sobre a política brasileira contemporânea.
A tese preponderante de Oliveira é bem resumida na exposição de Santos, quando explicita a
visão do primeiro acerca da capitulação das lideranças dos movimentos sociais pela estrutura
burocrática administrada pelo petismo:
Segundo essa tese, não haveria qualquer diferença programática fundamental entre os
dois principais contendores da eleição, Fernando Haddad e Jair Bolsonaro. “O que a classe
dominante disputa é a forma política de gestão da crise brasileira. Qual será a cara do arranjo
institucional, jurídico e cultural que substituirá a Nova República, definitivamente
condenada”. Haddad e Bolsonaro seriam “vias distintas para gerir a colossal crise brasileira: o
PT oferecendo a ordem na conversa, enquanto Bolsonaro, propunha a ordem na porrada”
(2018, p. 12). O desfecho pró Bolsonaro teria sido resultado do cálculo das elites de que o
modelo lulista de conciliação teria se esgotado, para “a direita, está claro desde junho: o
tempo do neoliberalismo inclusivo se foi. Transitou-se da conciliação para a guerra de classes.
É esse o pano de fundo da agonia lulista” (2018, p. 15). A frustração das camadas populares
com os governos petistas teria se traduzido em raiva, e esta raiva, engendrando um forte
sentimento antipetista, teria criado o cenário em que a vitória de Bolsonaro era certa.
As três interpretações que revisamos até aqui se prestam, em menor ou maior grau, a
representar três correntes de pensamento distintas acerca da derrota petista e da ascensão de
Bolsonaro. Uma trata da política em termos do que podemos chamar de uma ciência política
mainstream, que parte da compreensão do eleitorado em termos de um conjunto de indivíduos
movidos por interesses particularistas e atomizados na sociedade. Ela não leva em conta as
organizações sociais, as clivagens de classe nem os fatores ideológicos. A segunda,
essencialmente sociológica, trata da construção dos processos ideológicos que marcam a
disputa política brasileira. Busca na construção discursiva das elites os elementos que
explicam tanto a derrota do PT quanto a ascensão populista de direita, promovendo uma visão
de legitimação, ainda que crítica, da política petista. Uma última é igualmente militante e
sociológica. Atribui aos desvios ideológicos e morais do PT a responsabilidade pela derrota
de um proletariado nacional nas disputas políticas. Todas as três partem de fatos
comunitariamente aceitos para estabelecer uma visão própria acerca do contexto e das
perspectivas políticas e sociais do Brasil contemporâneo; o mesmo que pretendemos nesta
tese.
Todas as análises recentes que envolvem o fenômeno do populismo no mundo têm
dado especial atenção ao papel das redes sociais na internet, e cremos que não em vão.
Conforme veremos no capítulo 4, as novas tecnologias da informação estão mudando as
formas como se dão as relações humanas, impactando no conjunto da vida social e mesmo
34
privada. Este é um aspecto da realidade política atual que ainda tem muito por ser
compreendido, mas cuja importância já se estabelece como consenso nas ciências sociais.
Dando sequência à problematização de nosso objeto, propomos analisar mais
detidamente alguns pontos que se destacam nas análises das obras selecionadas. Primeiro, a
noção de uma eleição atípica, marcada por eventos como o atentado a Jair Bolsonaro, o
impedimento da candidatura de Lula e a escolha por um candidato outsider, representado no
papel de Bolsonaro na disputa eleitoral. Segundo, a noção de que a campanha de Bolsonaro
falou mais diretamente ao sentimento do eleitorado, o que implica a secundarização do debate
econômico na perspectiva do eleitor. Terceiro, a hipótese de que a democracia brasileira é
alvo de um processo de desestabilização orquestrado por elites nacionais associadas a agentes
externos. Por fim, a tese que reputa aos limites classistas do lulismo a atual crise política e
social do Brasil.
O primeiro ponto problemático dessa tese está em que ela não explica devidamente as
relações entre a emergência de novas issues e os efeitos prolongados da crise econômica que
se estendeu no Brasil após as crises financeiras internacionais de 2008 e 2011. No contexto da
crise fiscal que decorreu deste cenário, tanto a corrupção quanto a suposta gastança pública
foram propagados como fatores centrais da incapacidade de o Estado prover adequadamente
serviços públicos de qualidade. Embora tal discurso entrasse em contradição com a exigência
de mais e melhores serviços e de um rigoroso ajuste fiscal por parte do governo, ele pode se
sustentar ao apontar a corrupção como grande vilão das supostas gastanças. Não nos parece
que a economia tenha sido menos importante na disputa eleitoral de 2018 que em outras
eleições, mas sim que seu conteúdo perpassou todos os demais temas, sendo decisivo
inclusive na definição das alternativas postas como viáveis para o eleitorado. Não se trata de
35
unitário capaz de articular ideias e valores muitas vezes conflitantes. Foi também a cobertura
midiática que impulsionou os protestos na Grande Onda 4 e que pautou mesmo o debate na
internet. A ação da mídia sob os governos lulistas foi decisiva para o grau de deterioração das
instituições democráticas, para a marginalização do PT no debate público e para a polarização
que cindiu o país de forma ainda irremediável.
Ocorreu, em 2018, que a grande mídia não teve meios de conter o fluxo da maré que
desencadeou ao longo de décadas. Da mesma forma que a agenda dos protestos de 2013 foi
ressignificada em termos de oposição ao PT, a agenda antipetista também foi alvo de disputas
ideológicas, sendo envolvida por um discurso que soube conduzi-la a uma nova maioria
conservadora. Como sabemos, as disputas hegemônicas não se dão ao gosto dos contentores,
são mediadas pela realidade e transformadas pela ação dos agentes sociais. Já em 2013
estavam presentes os elementos que conduziriam o bolsonarismo à formação de um polo
político antipetista em oposição também aos tradicionais partidos da direita brasileira. O
bolsonarismo também obteve êxito em se associar a órgãos de imprensa, notadamente
televisões de segundo escalão, numa campanha cuja rival soberana Globo, a despeito de seus
longos serviços antidemocráticos, recusou-se a apoiar o candidato do PSL. Hoje, Globo e
demais veículos da grande imprensa, identificados como a mídia inimiga do bolsonarismo,
ainda se esforçam na busca de uma alternativa que não passe pelo PT. Contudo, o ambiente
político que ajudaram a construir se mostra mais forte que os criadores, resistindo a
polarização entre o lulismo e o bolsonarismo.
Outro obstáculo que propomos superar é o da primazia explicativa da manipulação
política. Certas análises tendem a dar grande ênfase nos processos de propaganda e na
manipulação emocional dos eleitores, por isso os associamos aqui a certa linha interpretativa
que credita a vitória de Bolsonaro às fakenews e à desqualificação do debate nas redes sociais.
Diversos livros e pesquisas têm atentado para a importância dos novos recursos
comunicacionais nos processos eleitorais pelo mundo, inclusive no caso específico do Brasil.
Contudo, a questão que levantamos é: o discurso nas redes sociais poderia ser efetivo sem ter
por base grupos sociais que portem ou se identifiquem com o valores expressos pelas
fakenews e demais postagens? Um meme seria capaz de decidir um voto sem que o indivíduo
que o recebe e compartilha tenha identidade ideológica com o conteúdo veiculado? Parecem
questões óbvias, mas têm grandes implicações. O que propomos é inverter a ordem de
4 O conceito de Grande Onda será discutido no capítulo 2. Provisoriamente, registramos que se trata dos
protestos que ocorreram entre 17 e 22 de junho de 2013 e que apresentaram maiores volumes de mobilização e
pautas diferenciadas em relação aos protestos que ocorreram até o dia 13 de junho. Ver mais na página 47.
38
relevância dos fatos, pondo no centro a conformação social e ideológica do bolsonarismo, que
teria determinado a eficácia de seus recursos nas redes sociais.
Pensemos de forma ampla na fakenews de Bolsonaro, o kit gay. Junto às conspirações
globalistas que uniriam comunistas como George Soros, Fernando Henrique Cardoso, Bill
Clinton e tantos outros, junto à promiscuidade sexual e cultivo de drogas nas universidades
públicas, junto a tantas outras idiossincrasias da campanha bolsonarista, estas narrativas
pariram uma miríade de notícias falsas que pautaram tanto apoiadores quanto opositores de
Bolsonaro. Procuraremos neste trabalho associar a eficiência desses recursos de propaganda e
o conteúdo geral da candidatura Bolsonaro, com base no papel da ideologia no processo
decisório.
A reafirmação do papel da ideologia nos processos decisórios do voto se deu pelo
reentendimento do seu significado pelo conceito de identificação ideológica. Admitindo a
baixa prevalência do pensamento estruturado no eleitorado, a identificação ideológica propõe
situar a ideologia no que a literatura política psicossociológica identificava como foco
ideológico fraco.
A ideologia, nos termos em que a utilizamos neste trabalho, se refere a uma ampla
noção do conjunto de valores e ideias que formam a visão de mundo de determinado grupo
social. O grau de estruturação da compreensão dos indivíduos sobre a ideologia, para ficarmos
nos termos propostos pelo pensadores do comportamento eleitoral, são variados e dependem
de fatores como nível educacional, engajamento político e trajetória pessoal.
Singer (2002) propõe que até a eleição de 1994, a distinção ideológica entre esquerda
e direita no Brasil possuía uma característica que a diferenciaria da definição em outros países
de democracias liberais. Conforme proposto por Bobbio (1995), o centro atual da distinção
esquerda/direita se daria em torno do debate da igualdade e da liberdade, situando-se a
esquerda no polo cujas políticas privilegiariam a mesma, e a direita no polo que defende o
progresso pela liberalização das leis de mercado. No caso brasileiro, Singer deduz de uma
série de pesquisas que o tema igualdade era relativamente constante na preocupação de
eleitores de ambos os lados do espectro ideológico. Partindo das mesmas pesquisas, o autor
39
sugere que, no contexto das eleições presidenciais brasileiras de 1989 e 1994, a questão
central para o entendimento da percepção ideológica do eleitorado era outra.
Singer constrói seu referencial com base nos períodos de 1945-1964 e nas eleições de
1989 e 1994. Para se ter uma ideia mais clara de como aplica seus conceitos na prática
política, vale notar que o autor situa Collor no espectro da direita, FHC no centro e Lula à
esquerda, nos contextos de 1989 e 1994. Dado o caráter relacional da dinâmica direita-
esquerda, foi possível uma ressignificação das posições a partir da vitória petista em 2002. A
direita se afirmando como a negação da esquerda passou a ser identificada com os partidos de
oposição liderados pelo PSDB e o atual DEM. O atual MDB, passando novamente a compor
as hostes governistas, passara a formar o centro, junto a uma miríade de organizações
menores atualmente chamadas de centrão. Nas eleições subsequentes, a polarização entre PT
e PSDB foi, no campo ideológico, a disputa entre direita e esquerda, ambas disputando o
apoio do centro. Temos elementos bastantes para supor que o equilíbrio entre os polos
políticos em relação ao tema da igualdade sofreu severas transformações no período lulista,
sobremaneira em resposta a políticas públicas que buscaram alcançá-la.
Mais adiante, a partir de 2013, o amplo fenômeno político e cultural que chamamos
por onda conservadora produziu novas transformações no sentido da relação direita-esquerda.
A eleição de 2014 já havia demonstrado uma recessão nas bases do lulismo e uma acentuação
da polarização político-ideológica do eleitorado. Em comparação com a eleição de 2006, onde
o candidato tucano Geraldo Alckmin buscou se desvincular dos governos do PSDB e das
políticas de privatização, aquela trouxe de volta a agenda da privatista e da redução do Estado.
Portanto, apesar das muitas peculiaridades da agenda eleitoral de 2018, é razoável supor que
esta eleição ocorreu dentro de uma trajetória de longo prazo oriunda pelo menos desde 2013,
no contexto da onda conservadora.
Sendo conceitos relacionais, conforme aponta Bobbio (1995), direita e esquerda foram
alvo de um esforço de redefinição por parte do bolsonarismo que buscou empurrar setores até
então identificados com a direita para uma percepção pública de pertencimento à esquerda,
40
como no caso de FHC e mesmo de Delfim Neto, ministro da Economia na Ditadura Militar. E
aqui nos parece ter validade a definição de Singer no contexto das eleições de 1989 e 1994.
Uma marca distintiva crucial entre a direita populista emergente e a direita tradicional que
rivalizara com o PT na Nova República está na defesa da nova direita do fortalecimento do
papel repressivo do Estado, fenômeno que teria fundamentos mais remotos que a contingente
crise da segurança pública. A opção por Bolsonaro não seria apenas resultado de uma
percepção de que as alternativas em disputa não possuíam um discurso duro o bastante contra
a criminalidade, ela remonta a uma visão do papel do Estado em que este é ativo na repressão
aos atores dissidentes. Assim, não se trata apenas de uma polícia forte e operante, muitas
vezes francamente violenta, como se reconhece ser a polícia paulista sob os governos do
PSDB. O papel repressivo do Estado na nova configuração ideológica da direita se estende à
repressão aos movimentos sociais, aos costumes tidos como ofensivos aos valores familiares e
religiosos e mesmo à exclusão da esquerda do debate público, como evidenciado pelas
declarações de Bolsonaro, quando o presidente prometeu varrer pra fora do país a corja dos
vermelhos.
Ao reavivar o ideário do Estado repressor, o bolsonarismo empurrou à esquerda a
direita tradicional, tendo seu caminho facilitado pela crise de representatividade que se abateu
sobre seus principais partidos e lideranças. Desta forma, pôde polarizar com a esquerda o
debate público, a despeito da grande influência do campo liderado pelo PSDB, e atrair a suas
fileiras amplos setores da direita e do centro, unidos em torno da rejeição ao PT.
Como veremos, o bolsonarismo sintetizou todos os principais elementos da
rearticulação da ideologia conservadora em 2013: o sentimento antissistema, a revolta seletiva
contra a corrupção, a rejeição aos partidos tradicionais e o recrudescimento dos valores
morais conservadores. Uma conceituação provisória do bolsonarismo deve incorporar todos
esses elementos, seus principais traços seriam: descrença nas instituições democráticas,
justificadas pela venalidade e corrupção generalizadas; revanchismo diante das políticas
públicas de redução da desigualdade, amparadas na ideologia meritocrática; ideal autoritário
associado ao papel repressivo do Estado, que deve estar a serviço da defesa dos valores
religiosos e familiares, intensificado no discurso nós contra eles tão caro aos populismos.
Estes seriam os elementos constitutivos do núcleo bolsonarista, núcleo que seria a base
principal da adesão eleitoral a Bolsonaro até o momento em que este se associa ao projeto
econômico ultraliberal já na condição de candidato com possibilidades concretas de vitória. A
emergência de Bolsonaro como um candidato capaz de vencer as eleições foi fator decisivo
para que pudesse se apresentar como principal oponente do PT e sacramentar a desidratação
41
5 A fim de evitar uma muito longa e desnecessária citação, transcreveremos quase literalmente nossa
definição anterior, remetendo o aprofundamento da discussão e um relato resumido dos eventos de 2013 ao
trabalho já citado (GIROTTO, 2014).
47
como símbolo da revolta contra a violência policial e o descaso com os cidadãos. Contudo,
são outra coisa. O breve espaço de tempo em que se dá tamanha transformação no conteúdo e
na representatividade dos protestos reforça a confusão geral em que os eventos de 2013 são
debatidos, como se ali tivéssemos uma sequência natural de eventos que corresponderiam a
um mesmo processo.
Tendo estudado o tema com alguma permanência desde que veio à tona, não
encontramos sequer um analista que tivesse previsto a possibilidade de erupção de um
descontentamento tão amplo e intenso naquele ano. Quem mais próximo chegou de identificar
as bases de tal movimento na sociedade, a nosso ver, foi Fernando Henrique Cardoso, no
artigo O papel da oposição, de 2011, onde identificava novos atores sociais que considerava
negligenciados tanto pelos partidos governistas quanto pela oposição, e que seriam presença
destacada nos protestos da Grande Onda:
Pelo que se pode ver nas imagens amplamente divulgadas na mídia impressa
e televisiva e, sobretudo, nas redes sociais, e deduzir de algumas rápidas
pesquisas feitas no calor da hora, o grosso dos manifestantes compunha-se
de representantes da classe média, sobretudo da juventude estudantil. A ser
assim, haveria semelhança com o movimento dos caras-pintadas da época do
impeachment. Mas em todos os exemplos, embora os manifestantes não
constituíssem amostra fiel da população, conseguiram despertar ampla
simpatia, senão apoio. Seus principais opositores, ironicamente, localizaram-
se dentro dos órgãos tradicionais de organização da sociedade, como
partidos sindicatos e organizações estudantis. (CARVALHO, 2020, p. 9-10)
movimentos populares terem sido rejeitadas e ignoradas pela massa de manifestantes que
ocupou as ruas.
Ainda no dia 20 de junho, sindicatos, partidos e entidades políticas das mais diversas
começaram a se reunir e discutir saídas para disputar as ruas, agora sim já compreendendo
que necessitavam se opor aos protestos afluentes. A resposta foi uma mobilização em 11 de
julho, promovida por essas entidades, com conteúdo político claro e recurso a ferramentas que
tiveram pouca relevância na Grande Onda, como os carros de som onde os dirigentes
lembravam a todo instante a pauta da mobilização. Contudo, os protestos das entidades do
movimentos sociais sequer perigaram obter a força e vitalidade da Grande Onda. No contexto
da saída pactuada que teorizamos em 2014 (retomaremos esse tema no capítulo seguinte),
pode-se mesmo compreender os eventos de 11 de julho como o sepultamento da Grande
Onda.
A Grande Onda foi desde o início disputada em seus sentidos por diversas forças
políticas; as mais vigorosas delas sendo as bases de sustentação do governo e a oposição de
direita que fez seu recado chegar às ruas através da ação da grande mídia. A açã dessa mídia,
contudo, não se deu em termos ideais. Foi um intenso processo de diálogo com as ruas,
recepcionando suas vozes, reinterpretando seus conteúdos e reiniciando sucessivamente o
processo, hora após hora, numa cobertura em tempo integral. Em momento algum a Grande
Onda esteve fadada a ter as implicações políticas que teve. Os sentidos das “jornadas de
junho” foram construídos e disputados numa ferrenha luta política. Se podemos falar numa
onda conservadora como legado de junho é porque, contabilizados mortos e feridos, no final
foi o projeto conservador que saiu das ruas mais fortalecido.
Mesmo o significado do que temos dito segue em disputa. A onda conservadora de
que falamos nesta pesquisa é um fenômeno recente e ainda em curso. Ela não nasce, mas
emerge, em 2013, e tem raízes e implicações na trama social, na política, na cultura – enfim,
surge e transforma todos os aspectos da existência coletiva brasileira. Como fenômeno atual,
não apenas sua conceituação e necessária delimitação como também mesmo sua validade
estão em questão no debate acadêmico. Felipe Demier, na introdução do livro A Onda
Conservadora (DEMIER; HOUVELER, 2016), que organizou em parceria com Rejane
Hoeveler, atribui o pioneirismo no uso do termo a Guilherme Boulos, professor e
posteriormente candidato à presidência da República pelo Partido Socialismo e Liberdade
(PSOL), que em artigo publicado na Folha de São Paulo, reproduzido na obra acima
mencionada, definiu o fenômeno propondo que vivenciaríamos a “ascensão de uma onda
53
conservadora. Conservadora não no sentido de manter o que está aí, mas no pior viés do
conservadorismo político, econômico e moral. Uma virada à direita” (BOULOS, 2016, p. 10).
O artigo de Guilherme Boulos, referido anteriormente por Demier como pioneiro no
uso do conceito de onda conservadora, foi publicado na sequência do primeiro turno das
eleições de 2014, e quer Demier esteja certo ou não sobre o dito pioneirismo, é certo que a
noção de uma onda conservadora foi imediatamente questionada não apenas pelo campo da
direita, como também por setores da esquerda.
Para certos campos da crítica de esquerda, da qual elencamos um exemplo extremo, o
que estaria acontecendo, e as eleições de 2014 refletiriam isso, era um acirramento das lutas
de classes, no qual o proletariado começaria a compreender e se revoltar contra o reformismo
fraco do lulismo, numa conformação política que poderia indicar a iminência de profundas
transformações sociais e políticas no Brasil. Esta avaliação não surge deslocada no contexto
político nacional posterior aos protestos de junho de 2013, muito pelo contrário. É uma
avaliação perfeitamente integrada a uma corrente de pensamento que obteve grande
preponderância nos meios intelectuais de esquerda quanto à análise do movimentos de junho.
Essa corrente intelectual se alinha ao campo político das oposições de esquerda ao campo
petista, conforme tivemos a oportunidade de discutir no capítulo anterior.
Outro autor que questiona não apenas a validade como também a utilidade do conceito
é Rodrigo Nunes (2015). Em artigo publicado na Folha de São Paulo, em agosto de 2015,
Nunes discute o sentido do uso do conceito de uma “onda conservadora” como instrumento
explicativo da realidade do Brasil contemporâneo. Ele pergunta “Quanto de verdade há na
ideia de que existiria uma ‘ascensão conservadora’ em curso?” O autor sugere que a
complexidade dos dados sobre o perfil dos manifestantes que ocuparam as ruas em todo o país
em agosto de 2015 exigiria “uma leitura mais nuançada” do fenômeno. Ele segue sua análise:
Nunes faz considerações relevantes, sobretudo ao propor uma questão essencial que se
refere ao papel da ressignificação nos processos de disputa política. Apontando alguns dados
estatísticos referentes aos protestos de agosto de 2015, que evidenciam uma flagrante
contradição nos termos da conformação ideológica dos manifestantes, ele questiona a
54
abstratos; é preciso defini-lo tanto quanto possível. O que não podemos é esquecer do caráter
provisório e prioritariamente heurístico da tal definição. Para avançar nessa discussão,
tentaremos construir um modelo do novo conservadorismo que aqui nos interessa, no caso o
fenômeno político e cultural recente que trouxe ao primeiro plano do debate público
concepções autoritárias do Estado, revanchismo frente às conquistas recentes de minorias
historicamente alijadas política e socialmente, crença no dever de o Estado ser um garantidor
dos costumes tradicionais, muitas vezes de orientação religiosa, e uma clara orientação
ultraliberal nos planos político e econômico.
Parece-nos sobrarem indícios de que algo significativo ocorreu a partir do interstício
das eleições de 2010 e 2014, um movimento de deslocamento de importantes parcelas do
eleitorado para o espectro ideológico mais próximo à extrema-direita. É também o que nos diz
André Kaysel:
Talvez uma das grandes novidades do atual panorama político brasileiro seja
a emergência de uma forte corrente, tanto nos meios político-partidários,
como na opinião pública em geral¸ que se assume claramente como sendo
“de direita”. Esse “orgulho direitista” recém-adquirido parece contrastar com
a história de uma sociedade na qual, talvez pelos 20 anos de regime militar, a
“direita” em geral assumiu uma conotação pejorativa. (2015, p.49)
Esse fenômeno social, da política e da cultura, a que vimos nos referindo e tentamos
definir em contornos tão objetivos quanto possível é o que aqui chamamos por onda
conservadora. À medida que avancemos na compreensão dos processos políticos que
configuraram as relações de força que nos conduziram às eleições de 2018, avançando
também sobre a análise da dinâmica social em que estamos inseridos e dos mecanismos de
ressignificação e cooptação que permitiram a formação de um novo discurso majoritário, à
medida que avançarmos nesse sentido será possível melhor definir um modelo teórico, uma
definição provisória da ideologia que alimenta e é alimentada pela onda conservadora que
acreditamos ter cumprido um papel indispensável na eleição de Jair Messias Bolsonaro à
presidência da República.
Muito embora tenha sido a eleição presidencial mais polarizada politicamente na
história da Nova República, a eleição de 2018 atingiu inéditas taxas de abstenção e de votos
brancos e nulos. Cerca de 30 milhões de eleitores aptos a participar do pleito não
compareceram às urnas no primeiro turno, e mais de 7 milhões dentre os votantes não
sufragaram nenhum dos candidatos postulantes. No segundo turno, houve ainda um acréscimo
de mais de 1,4 milhão de eleitores no contingente de ausentes e de 2,2 milhões de eleitores
que comparecendo não votaram em nenhum dos candidatos que chegaram ao momento final
56
da eleição. Esses dados sugerem que houve, no contexto da polarização da eleição de 2018,
um sentimento maior de ausência de representatividade dos candidatos postulantes, o
suficiente para suplantar a expectativa de maior mobilização dos eleitores engajados em
alguma das 13 candidaturas que concorreram ao Executivo Federal no pleito. Foram mais de
42 milhões de eleitores que ou não compareceram ou não votaram em nenhum dos candidatos
que chegaram ao segundo turno. Em comparação, o candidato eleito obteve cerca de 57,8
milhões de votos6.
Os altos índices de abstenção e votos brancos ou nulos têm sido objeto da análise de
diversos cientistas políticos em todo o mundo. São um fenômeno crescente nas democracias
liberais que emergiram do breve século XX. Esse cenário aponta para uma crise de
representação política que vem se acentuando a partir dos anos 1990 não só no Brasil como
nos demais países das democracias liberais (COSTA, 2007).
Aparentemente na contramão desse processo, pesquisa realizada em junho de 2020
registrou a maior taxa de aprovação da democracia como modo de governo desde o início da
série em 1989, quando o país teve sua primeira eleição direta desde o Golpe Militar em 19647.
Para 75% dos entrevistados, “a democracia é sempre melhor que qualquer outra forma de
governo". A medição anterior, de dezembro de 2019, aferiu um total de respostas positivas à
questão de 62%. Em 2018, o percentual dos que responderam sim foi 57% em junho e 69%
em outubro. Os números parecem sugerir que a importância dada à democracia cresceu em
momentos em que sua validade foi posta em questão no debate público. Em 2018, o salto dos
que defendem a democracia como melhor forma de governo se deu no período final da
campanha presidencial. Em 2020, ele ocorreu na sequência dos atos antidemocráticos de
apoiadores do presidente, que contaram com seu estímulo e apoio. Apesar de serem dados
positivos, esses movimentos não representam necessariamente um recesso das forças
antidemocráticas. A força do debate sobre a democracia que se deu em função do fenômeno
bolsonarista pode ter arregimentado em sua defesa amplos setores da sociedade, o que levou à
maior urgência na definição de uma posição por parte dos indivíduos. No comparativo entre
dezembro de 2019 e junho de 2020, o percentual dos que responderam que "tanto faz se o
governo é uma democracia ou uma ditadura" caiu de 22% para 12 %. Já o decréscimo entre os
que responderam que "em certas circunstâncias é melhor uma ditadura que um regime
democrático" caiu apenas 2%, indo de 12% para 10%. Claro que essa não é uma análise
conclusiva, mas há indícios de que a saúde de nossa democracia não é tão boa quanto os
números sugerem. Uma dessas evidências é o que analisaremos na seção seguinte, o
surgimento de uma parcela da sociedade defensora aberta do autoritarismo e presente nas
ruas. Outra, são os índices de aprovação das instituições democráticas.
Embora em meio ao grande debate em curso no momento em que escrevemos, fins de
2020, seja de se esperar um incremento na aprovação das instituições, a tendência de longo
prazo tem sido o descrédito destas. Pesquisa 8 de dezembro de 2019 apontava o crescimento da
desaprovação ao Congresso Nacional. "A parcela de brasileiros adultos que está insatisfeita
com o trabalho do Congresso subiu de 35%, em agosto, para 45%. No período, a parcela que
avalia como regular o desempenho do Congresso recuou de 45% para 38% e a fração que está
satisfeita oscilou de 16% para 14%. Há ainda 4% que não opinaram." Em dezembro de 2015,
primeiro ano do segundo mandato de Dilma, e sob forte impacto dos protestos de 2013, a
série registrou uma aprovação ao desempenho do Congresso de apenas 8%. Há aqui um claro
contraste com a expectativa do eleitorado em dezembro de 2018, quando 56% dos
entrevistados se declaram otimistas com a próxima legislatura, considerada por muitos
analistas a mais conservadora das últimas décadas9.
Não apenas a avaliação do desempenho do Legislativo é calamitosa. Diversas
pesquisas têm demonstrado que a tendência dos índices de confiança nas instituições
democráticas brasileiras e da participação eleitoral é decrescente (COSTA, 2007;
AVRITZER, 2019). O mesmo se verifica nas demais democracias do mundo (CASTELLS,
2018). Considerando essa tendência – e a crescente atuação do Judiciário nos processos
políticos e mudanças no debate público oriundas das transformações na comunicação de
massa, tema que perpassa todos os capítulos desta tese – Avritzer corrobora a hipótese aqui
levantada de uma regressão democrática no Brasil, inserida em sua tese sobre o pêndulo
democrático:
[…] a oscilação pela qual passa a política brasileira entre certos períodos
históricos nos quais elites e massas partilham um forte entusiasmo
democrático e outros momentos em que a classe média adota uma visão
antidemocrática, alinhada com as elites, e muitos setores populares aderem à
rejeição da política ou à antipolítica. […] Em geral, esses momentos
A democracia, mais especificamente seu atual momento de crise, tem sido objeto de intenso
debate nos meios intelectuais. O rol de alguns dos títulos a serem debatidos neste capítulo já
nos permite ter uma dimensão da prevalência do tema na ciência política contemporânea:
Ruptura: a crise da democracia liberal, de Manuel Castells (2018 [2017]); O povo contra a
democracia, de Yascha Mounk (2019 [2018]); Como as democracias morrem, de Steven
Levitsky e Daniel Ziblatt (2018); e O pêndulo da democracia, de Leonardo Avritzer (2019).
Todos esses, livros publicados nos últimos anos.
Como sabemos, a virada em direção a uma direita extremista não é exclusividade do
cenário político brasileiro. Ao longo das últimas décadas, tem-se assistido à expansão nas
urnas da extrema-direita europeia, mesmo nos casos em que em que não alcançaram o Poder
Executivo. O exemplo deste fenômeno que talvez nos seja mais familiar é o do partido
Rassemblement National (Reunião Nacional), a antiga Frente Nacional, liderada por Marine
Le Pen, que obteve 33.94% dos votos no segundo turno das eleições presidenciais francesas
de 2017, embalada por um discurso nacionalista anti-imigração de viés xenófobo. Não apenas
o Reunião Nacional, de Le Pen, mas também o britânico Partido da Independência (UKIP), o
dinamarquês Partido Popular (DF), a italiana Liga Norte (LN) e o Partido da Liberdade
(FPÖ), na Áustria, todos eles têm auferido expressivo crescimento eleitoral nas recentes
votações em seus respectivos países. Recentemente, a eleição de Bóris Johnson na Inglaterra e
vitória plebiscitária do Brexit confirmaram esses movimentos eleitorais. Representam esse
corpo populista Narendra Modi (primeiro-ministro da Índia), Tayyip Erdoğan (presidente da
Turquia), Andrzej Duda (presidente da Polônia), Viktor Orbán (primeiro-ministro da
Hungria), Vladimir Putin (presidente da Rússia), Donald Trump (presidente dos Estados
Unidos) e Jair Bolsonaro (presidente do Brasil). O populismo de direita ainda expressa sua
força na Europa pela vitória do Brexit e a eleição de Bóris Johnson na Inglaterra e o
crescimento eleitoral da extrema-direita na França, Alemanha e Suíça.
59
Para Harvey, “o fordismo do pós-guerra tem de ser visto menos como um mero
sistema de produção em massa do que como um modo de vida total” (2016, p. 131). O autor
situa o declínio desse modo de vida total no contexto da emergência de novos modos de
acumulação flexível, que solaparam as bases do regime de acumulação do pós-guerras. Sua
leitura de um dos fatores da difícil manutenção do regime referido nos abre as portas para o
debate do segundo ponto que vem se destacando nas atuais análises da crise das democracias
avançadas.
O período de ampliação dos direitos civis nas democracias avançadas coincide com o
declínio do regime keynesiano de acumulação e com a degradação do padrão de vida de uma
certa classe trabalhadora que era seu componente humano central. Com a ampliação dos
direitos à cidadania, notadamente entre os anos 1960 e 1970, emergem novos atores sociais a
reclamar por direitos e serviços historicamente negados, no mesmo momento em que a
capacidade de ação do Estado é fortemente questionada e solapada pela mundialização dos
processos produtivos, pelo fluxo descontrolado de capitais e pela hegemonia neoliberal.
Levitsky e Ziblatt, bem como Mounk e Castells, são precisos em situar o crescimento do
sentimento populista e autoritário nos EUA exatamente naquelas regiões que foram o bastião
da indústria fordista, a exemplo do Cinturão da Ferrugem. A combinação da recente
62
visibilidade de novos atores sociais com a frustração das expectativas de melhoria de vida
teriam gerado condições para a emergência de um discurso populista que as associa numa
relação espúria de causa-efeito.
Arjun Appadurai faz uma análise que vai ao encontro do que propomos:
O fragmento de Huntington é elucidativo não apenas por indicar que altos níveis de
participação podem ser vistos como problema nas democracias liberais, mas também por
esclarecer em algum nível do que se trata a difundida noção de uma crise democrática, que
poderia ser mais adequadamente compreendida como crise de estabilidade dos regimes
políticos que sobrevivem ou emergem do fim da Guerra Fria.
É exatamente no que Levitsky e Ziblatt veem um paradoxo que se encontra nossa
principal objeção ao sentido da análise desses autores. Do diagnóstico das origens da
epidemia de quebra de normas, evidencia-se o pressuposto de que a estabilidade democrática
se dá em função de um ao menos relativo consenso político. Sendo mais preciso, é necessário
que haja concordância acerca dos temas centrais do debate público para que a polarização seja
menor e portanto menor a tentação – ou a necessidade, diríamos – de desrespeitar as regras.
Para Levitsky e Ziblatt a ampliação do alcance democrático que se deu a partir do fim do
século XIX com a expansão do direito ao voto às mais amplas parcelas da sociedade e que,
mesmo nas democracias avançadas, só se impõe de forma satisfatória na segunda metade do
século XX para grande parte do mundo, traz consigo a emergência de novos atores sobre a
representação do Estado – trabalhadores, mulheres, negros. Esses novos atores trazem consigo
novas demandas ao Estado, como proteção social, combate à discriminação, igualdade de
direitos entre homens e mulheres, liberdade religiosa e sexual, dentre tantos outros.
Concordamos com os pressupostos elencados. Onde vemos o grande limite da análise de
Levitsky e Ziblatt é em ver no comportamento político de bases eleitorais, ou de atores
políticos particulares ou partidários, o centro do problema, quando este está claramente na
incapacidade de o Estado em solucionar os conflitos contidos na sociedade, cada vez mais
complexa e heterogênea. Tal incapacidade decorre justamente do consenso que permitiu a
estabilidade dos regimes democráticos, um consenso baseado na exclusão de amplas parcelas
da sociedade. Alinhamo-nos a Hobsbawm, Mounk e Castells ao ver nos impasses gerados
pela dinâmica social, econômica e cultural as origens da crise da democracia liberal.
Particularmente, na incapacidade de os Estados – ou dos atores políticos, como propõem
alguns – de responder a tais problemas satisfatoriamente.
Ainda seguindo o debate no contexto norte-americano, encontramos em Nancy Fraser
a chave interpretativa que melhor se aproxima do quadro que pretendemos compor para situar
o bolsonarismo no contexto da ascensão mundial das direitas populistas.
A filósofa norte-americana cunhou os termos neoliberalismo progressista e
neoliberalismo reacionário para descrever as duas forças que, pelo espectro da direita, têm
disputado a hegemonia política nos EUA. Em seu diagnóstico, com o qual concordamos, diz
64
que a “vertente política da nossa crise geral é uma crise de hegemonia” (FRASER, 2019, p.
35). Compreendendo a hegemonia nos termos gramscianos (GRAMSCI, 2011), como direção
moral e intelectual da sociedade por determinado bloco social, estaríamos diante de uma crise
da legitimidade dos blocos no poder.
O bloco hegemônico dirigente, até recentemente, foi aquele que a autora chama de
neoliberalismo progressista, que surgiria na convergência de políticas sociais neoliberais com
um tipo específico de política de reconhecimento de minorias. Esse bloco teria centro em duas
forças sociais principais:
brasileiro é tratada como imigrante em seu próprio país, pessoas às quais as elites nacionais, a
exemplo do populismo reacionário em todo o mundo, esforçam-se por negar as justas
reivindicações de plena inserção na cidadania.
Murilo de Carvalho (2020) ressalta que a criminalidade e a violência policial no Brasil
são um fator de negação dos direitos civis a grandes parcelas da sociedade. Nega-se aí o
direito civil básico, aquele que se propõe a garantir o direito à vida e a integridade física. Dos
mortos em ação policial no ano de 2019, 80% foram negros; 73% deles, jovens entre 15 e 19
anos10. São também esses jovens a massa de trabalhadores precarizados, alistados em serviços
de entrega e congêneres, excluídos da proteção legal trabalhista, sem seguro desemprego ou
licença médica remunerada.
O discurso iliberal e anti-iluminista de Bolsonaro foi característico em toda a sua
longa carreira política como ator marginal nas esferas do poder, defensor de interesses
corporativos e de valores autoritários sufocados nos anos que sucederam a redemocratização
no Brasil. Em parte, sua originalidade se deve a ter encarnado tais valores no momento em
que estes eram marginalizados no debate público, o que certamente contribuiu para que ele se
firmasse como referência do discurso autoritário e segregador que permeia toda a vida
democrática nacional em nossos dias. Ao passo que era tratado como um lunático, portador de
ideias ultrapassadas e rechaçadas pela história, Bolsonaro pôde lentamente se tornar o centro
de um polo político e social com profundas raízes na vida nacional. A cada nova polêmica,
sua flagrante estupidez atraía a atenção dos que combatem pelos direitos humanos e
liberdades políticas. De certa forma, o combate ao obscurantismo de Bolsonaro foi
aproximando dele indivíduos e grupos que igualmente se ressentiam dos ideais iluministas e
da igualdade formal democrática. Somando-se a esses grupos, toda uma legião de ressentidos
com as políticas identitárias, de estudantes universitários que se sentiam tolhidos pela
prevalência de ideias progressistas no campo acadêmico e de pessoas variadamente frustradas
com a própria relevância no contexto democrático foram se identificando com discursos que
criminalizavam a esquerda, aviltavam minorias e degradavam a imagem de feministas,
homossexuais, índios, negros e outras minorias políticas sempre alvos do desprezo elitista no
Brasil.
Bolsonaro poderia ter encerrado sua obscura carreira política nos guetos e quartéis do
Rio de Janeiro sem jamais ser notado pelo conjunto da sociedade, muito menos considerado
uma opção política viável de poder. Ocorreu que a regressão democrática mundial coincidiu
10 Disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/10/18/oito-a-cada-10-mortos-
pela-policia-no-brasil-sao-negros-aponta-relatorio.htm . Acesso: 20/10/2020.
68
com a profunda crise econômica e social que envolveu o país. Como é costume no Brasil, nos
momentos de crise, setores das elites e camadas médias da sociedade buscam a recomposição
de seus privilégios políticos e econômicos via intensificação da marginalização das camadas
subalternas. Políticas públicas de proteção social e valorização do trabalho, que eram
relativamente pacíficas num contexto de expansão econômica, passam a ser vistas como
responsáveis pela degradação das condições de vida e do status social das camadas
privilegiadas. Cresce o sentimento antipovo expresso no antipetismo. A conciliação de classes
perde margens, aflorando o cíclico movimento de repressão das camadas populares que, por
sua vez, seguem desorganizadas, sem instrumentos de participação política que ultrapassem
os limites da participação eleitoral cada vez mais percebida como ineficaz. Nesse novo
contexto, estreitam-se as possibilidades de composição da esquerda com setores mais amplos
do centro e parcelas conservadoras da sociedade que até então mantiveram uma relação dúbia,
mas negociada, com a esquerda governante. Na direita, deslocamentos eleitorais vão
conformando novas alternativas e aglutinando setores cada vez mais amplos em torno de um
ideário que tem suas raízes no secular processo de marginalização dos excluídos, numa visão
do Estado como agente repressivo e mantenedor da ordem e do status quo. Resumidamente,
no plano mais amplo do declínio da adesão aos valores iluministas que nortearam o projeto de
modernização das sociedades ocidentais, a dinâmica econômica e social do Brasil abriu
caminhos amplos para a emergência de um campo conservador mais desinibido, francamente
autoritário e sedicionista. Posto em condições de cavalgar essa turba, Bolsonaro soube se
oportunizar das possibilidades abertas para formar uma coalizão capaz de vencer as eleições
presidenciais. No confronto com a esquerda, a ascensão bolsonarista se deu sobretudo no
deslocamento dos atores da direita para o centro, num processo relacional, onde se
extremaram os padrões perceptivos da definição relacional esquerda-direita. O complexo
processo que permitiu esse conjunto de movimentos será objeto dos próximos capítulos.
Desconsiderar a relevância das formas de produção do consentimento, mesmo dentro
do ordenamento neoliberal, seria um grande equívoco; os diversos modelos de consenso
possuem expressivo impacto na vida das populações e em suas possibilidades de conquista ou
reconquista de direitos sociais, e esta é nossa principal divergência com as teses de Fábio
Santos, dentre outros, que debatemos no capítulo anterior. A distinção entre democracia
liberal e populismo de direita – ou, como propomos aqui, entre neoliberalismo reacionário e
progressista – não é mera a escolha de quem oprime. Como vimos, a era de ouro das
democracias liberais também foi a era de ouro das conquistas trabalhistas; não obstante as
muitas limitações, há também um saldo positivo que tal regime permitiu conquistar.
69
Castells (2019) sugeriu que diante desse cenário talvez não fosse tão ruim aceitar a
necessidade de se conviver com o caos. É uma visão esperançosa, a seu modo, já que indica
uma saída para a dupla chantagem de que os campos populares ora são vítima: regressão
democrática ou aprofundamento neoliberal, numa democracia que respeite os direitos civis,
ainda que não aponte para um aumento da participação ou mesmo para uma materialização
maior dos ideais democráticos, ainda que neoliberais.
Também parece cada vez mais possível um bolsonarismo contido, pactuado, uma vez
dada a composição do governo com centrão. Tal composição parece reforçar a vitalidade da
tese de Sérgio Abranches (1988) sobre o presidencialismo de coalizão. Esse outro caminho
que parece se abrir é o da adesão do bolsonarismo às regras não escritas do presidencialismo
de coalizão. A composição com a miríade de partidos do centrão, a abertura dos espaços do
Poder Executivo para representantes de interesses de grupos parlamentares, bem como o foco
maior em ações de assistência social parecem indicar a reorganização de um bloco político
conservador, com Bolsonaro à cabeça, mas no qual o bolsonarismo não teria a autonomia que
buscou obter nos primeiros meses de governo.
Contudo, não podemos condenar como derrotistas aqueles que hoje defendem as
instituições, reduzindo o potencial crítico da ação política. A história demonstra que nos
momentos de grandes rupturas são os mais fracos aqueles que sofrem as consequências mais
severas. O horizonte que se insinua à democracia brasileira é o de menos democracia e menos
direitos, como se apenas restasse escolher o quanto perderemos.
Resumindo o que pretendemos dizer neste capítulo, a inserção das camadas excluídas
é sempre alvo de contestação no Brasil; mesmo quando ocorre, gera reações no sentido de
mantê-las marginalizadas; o imigrante da cidadania seria a expressão de um projeto elitista
que procura manter ou restabelecer as condições anteriores, preservando uma apenas relativa
integração da maioria da população à cidadania. Nossas instituições democráticas
sobreviveram à primeira metade do governo Bolsonaro, apesar dos sobressaltos. Contudo, as
bases da crise de legitimidade dessas instituições segue inalterada, ou melhor dizendo, vêm se
agravando. Não é alarmista supor que as disputas em torno da democracia brasileira estejam
longe de um desfecho positivo para aqueles que a defendem.
71
O presente capítulo busca fazer uma revisão de literatura sobre os processos políticos do
período marcado pela maioria eleitoral lulista até o impeachment da presidente Dilma
Rousseff em 2016, com foco nas eleições presidenciais de 2018 e nos eventos de 2013 e
2015/2016, momentos que, segundo a hipótese com que trabalhamos, marcaram o fim da
hegemonia lulista e foram o marco da rearticulação da ideologia conservadora no Brasil.
Através do conceito de lulismo de André Singer, nossos esforços neste e no próximo
capítulo se darão no sentido de compreender como as transformações políticas, econômicas e
sociais do período conduziram o país, de quase três décadas de uma dinâmica eleitoral
marcada pela oposição entre PT e PSDB, para o presente cenário de uma sociedade dividida
entre dois projetos predominantes, o lulismo11 e o bolsonarismo.
O lulismo (SINGER, 2012) corresponde à configuração política e social das bases do
petismo a partir da eleição de Lula em 2002, sendo tipificado como um reformismo fraco. Sua
clivagem eleitoral se conforma em 2006, pelo distanciamento das bases governistas de setores
da classe média e pela adesão ao lulismo por grandes parcelas do subproletariado nacional. A
classe média se afasta do PT e contingentes pobres ocupam o seu lugar. Isso quer dizer que,
embora o processo de mudança tenha começado em 2002, a eleição decisiva do ponto de vista
das classes, na qual o subproletariado adere em bloco a Lula, e a classe média ao PSDB, é a
de 2006 (SINGER, 2012, p. 14). O reformismo faco do lulismo visa à inclusão de amplas
parcelas da sociedade nos processos de consumo e no mercado de trabalho, através de
políticas redistributivas de renda, da inclusão no trabalho formal e da expansão do acesso ao
crédito. Sua particularidade política distintiva está na promoção da inclusão social de camadas
historicamente marginalizadas do processo produtivo e do consumo por meio de políticas
públicas, num arranjo que tem como estratégia a contenção dos conflitos com as elites
econômicas. Em suma, o reformismo lulista se dá num equilíbrio de interesses entre a agenda
de redução das desigualdades, preservando os interesses dos grupos empresariais e
financeiros, tendo no Estado o mediador dos conflitos e avalista do pacto.
Essa leitura do lulismo é próxima da crítica feita por outro importante pensador
brasileiro, Luiz Werneck Vianna. Dizia Vianna:
11 O conceito de lulismo oriundo de Singer já foi por nós exaustivamente resenhado na dissertação sobre
os protestos de 2013 e em dois artigos publicados anteriormente. Aqui, nos limitaremos a elencar seus aspectos
centrais à medida em que sejam necessários para o debate em curso.
72
O presente trabalho não se propõe a realizar uma revisão do período que engloba das Diretas
até o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Nosso objetivo mais modesto é traçar
as linhas gerais das disputas hegemônicas entre os campos polarizados por PT e PSDB a partir
da eleição de Lula em 2002, sobretudo no sentido de contribuir para a compreensão da
articulação e ascensão do bolsonarismo.
Em nosso artigo O lulismo e as classes sociais na política do Brasil contemporâneo
(GIROTTO, 2014b), revisamos parte substancial da bibliografia do período num diálogo em
torno do conceito de lulismo de André Singer. Cabe aqui, com o propósito de situar a
discussão, retomar os pontos centrais desse trabalho.
Em 2002, as esquerdas viviam uma fase de refluxo em todo o mundo, onde o ideário
neoliberal propugnava o enxugamento do Estado, a desregulamentação das relações
econômicas e supremacia das “leis do mercado” sobre os conteúdos nacionais. No Brasil, se
experimentava o auge da implementação de políticas associadas ao período que teve início
nos anos 1970, cujos contornos gerais pudemos discutir no capítulo 2.
Em estudo de 2012, Marcio Pochmann analisou os efeitos da primeira década do Plano
Real na dinâmica econômica e social brasileira, num paralelo com o período militar. O autor
demonstrou que no período militar a fase de expansão da economia nacional, que durou cerca
de uma década, foi marcada também pela concentração de renda. Em comparação, a primeira
década do Plano Real seguiu o sentido geral de concentração de renda, contudo com
crescimento econômico bem mais modesto, o que acentuou sobremaneira a desigualdade de
renda no Brasil. Entre 1995 e 2004, segundo os dados compilados por Pochmann, a
73
estruturas o principal das contendas políticas, e a luta social se confinara no âmbito das
soluções mediadas pelo chefe do Executivo Federal.
Entre fins de 2015 e meados de 2016, a presidenta Dilma foi vítima de um golpe, parlamentar
que pôs um fim prematuro a seu segundo mandato. Diversos autores discutiram através de
abordagens diferentes, a aplicação do conceito de golpe aos eventos de 2016 (JINKINS;
DORIA; CLETO [ORGs], 2016). Para a finalidade restrita desta discussão, compreendemos o
golpe de 2016 como o processo que levou ao impeachment de Dilma no Congresso,
amparados em base legal contraditória e motivado por fins outros que não os constantes do
processo julgado. Registre-se que Avritzer trata dos limites impostos pelo que considera o
espectro amplo da Lei do Impeachment e da Justiça Eleitoral no Brasil e fala também da
volta das Forças Armadas como agente no processo de legitimação política (2019, p. 49-71).
O sistema de freios e contrapesos madisoniano, ao qual Levitsky e Ziblatt (2018)
atribuem boa parte da estabilidade do sistema representativo norte-americano por longo
período, não apenas pode ser encarado como limitador direto da democracia e elemento
crucial do atual enigma da democracia liberal, como pode também ser uma fonte de recursos
antidemocráticos em momentos nos quais o consenso social esteja enfraquecido. Em certa
medida, a crescente judicialização da política brasileira e instrumentos daquilo a que Jessé
Souza chamou por guerra híbrida contra o Brasil se valem das possibilidades abertas pela
estrutura institucional brasileira. Foi o que vimos no crescente ativismo judicial sob os
governos Dilma e no caso do impedimento da posse de Lula como ministro, numa decisão
monocrático do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes.
No referido artigo de 1988 de Sérgio Abranches, vê-se o pressuposto de que em nosso
sistema presidencialista não se governa sem maioria parlamentar. A hipótese concisa com que
trabalhamos para compreender o impeachment de 2016 e sua enorme influência na regressão
democrática brasileira combina a leitura de André Singer (2012; 2018) sobre os eventos com
as teses que estudamos até aqui, oriundas de Souza e Avritzer. Acrescentamos ainda o
decisivo papel da crise econômica que envolveu os governos Dilma, crise que será discutida
através da obra de Laura Carvalho, A valsa brasileira.
A guerra híbrida postulada por Jessé Souza dá margens à explicação de como e por
que se constituiu o ambiente de descrédito institucional sob os governos petistas e da
emergência de novos protagonistas no cenário político, particularmente o Poder Judiciário. A
76
orquestração das ações da Operação Lava Jato com a cobertura das ações do governo por
parte da grande mídia levaram a um cenário em que pela primeira vez desde 1989 as eleições
presidenciais foram oficialmente questionadas, em 2014. O próprio candidato eleito em 2018,
antes das eleições, pôs em dúvida a credibilidade das urnas eletrônicas, criando um clima de
maior insegurança.
Da tese de Avritzer, vemos como o pêndulo da democracia pode nos ajudar a
compreender como o regime democrático á alvo da sazonalidade na adesão de importantes
grupos sociais, a classe média e as elites, que em momentos de esgarçamento do consenso
pendem em direções antidemocráticas.
É no contexto teórico da guerra híbrida contra o Brasil e do pêndulo da democracia
que buscamos interpretar a leitura de Singer sobre a derrocada de Dilma e suas implicação na
degradação da democracia.
Singer vai buscar na coalizão das bases sociais do lulismo e sua desagregação os
elementos explicativos da queda do governo petista. Desde seu influente Os sentidos do
lulismo (2013), o autor propõe que o lulismo se sustenta a partir da aliança entre o
subproletariado, trabalhadores e setores da elite, sobretudo os ligados à produção. É
importante frisar que tal equilíbrio de forças foi possível num contexto econômico específico,
que se alterou profundamente a partir das crise financeiras globais de 2008 e 2011, e também
das oscilações no mercado internacional de commodities. Muito embora as políticas
anticíclicas do governo tenham obtido relativo sucesso na redução dos impactos das crises que
se sucederam, a capacidade financeira do Estado foi seriamente afetada, e a longa duração da
recessão mundial impôs novos desafios aos planejadores da economia.
A hipótese de Singer é de que Dilma, na sequência do quadro instaurado pelas crises,
apostou em uma coalizão entre industriais e trabalhadores, que teria como base o que se
passou a chamar de nova matriz econômica.
Em artigo na revista Piauí, Celso de Barros questiona duramente as bases econômicas
da nova matriz, centrando sua análise na leitura das medidas econômicas dos governos Dilma.
Seguindo sua análise dos fatores econômicos que conduziram à derrota da nova
matriz, Barros expõe os elementos que previamente demonstrariam sua impossibilidade:
O contexto econômico mais amplo certamente foi condicionante decisiva nos eventos
analisados. Contudo, as políticas que estiveram na base da nova matriz lograram êxito nos
momentos mais difíceis da longa crise internacional em 2008 e 2011, dado disso é que em
2013, quando o pacto lulista já dava fortes sinais de declínio, o Brasil rondava as margens do
pleno emprego, chegando a apresentar índices de desemprego inferiores a 5%. O que teria
mudado entre o primeiro e o segundo mandatos de Dilma? Singer vai buscar na política os
fatores decisivos para a derrota do lulismo sob a liderança de Dilma, por isso sua análise é
relevante neste momento do trabalho. A hipótese resumida pelo próprio autor se expressa na
introdução de Cutucando onças com bases curtas:
sugere que a manutenção do pacto lulista exigiria um crescimento anual do PIB na casa do
5%, o que ocorreu em boa parte do tempo até 2011, quando o incremento do PIB foi de 4%,
patamar não mais alcançado desde então (SINGER, 2018, p. 53-57). A perda da adesão de
parcelas do capital produtivo nacional se aliou ao recesso das bases progressistas na ruas a
partir de 2013, e isso teria posto o ensaio desenvolvimentista, ainda nos termos de Singer, em
xeque. Ao perceber tardiamente a ruptura da coalizão que sustentaria seu ensaio, o governo
Dilma adotou medidas liberalizantes no sentido de atrair novamente a simpatia de setores da
elite ao governo. Com isso, não apenas não recompôs o pacto lulista como também
enfraqueceu ainda mais as já combalidas bases sociais do governo, que não possuíam um
discurso articulado e vigoroso desde o abandono do pacto proposto por Dilma quando dos
protestos de 2013. Dito isso, cabe anotar que o prognóstico para o lulismo não é promissor. A
capacidade de os indivíduos intervirem na política real depende de seu nível de organização,
portanto a principal base social do lulismo, o subproletariado, fica sem voz diante do
impedimento de Lula em ser candidato. Acrescente-se a isso o intenso processo de
marginalização de movimentos sociais como o MST. O quadro de regressão democrática
tende a fortalecer os obstáculos para a reorganização de um campo contra-hegemônico.
A regressão democrática seria, portanto, alimentada pela incapacidade da economia de
seguir proporcionando inclusão social e redução das desigualdades sem ferir os interesses
hegemônicos do capital, como ocorreu em toda a fase de vitalidade do lulismo. As novas
condições econômicas levaram as elites a buscar as soluções neoliberais muito bem apontadas
por Singer, como saída ao risco de redução de ganhos. O trabalho, desorganizado e sem
expressão dentro do governo após os recuos deste, não possuía a força necessária para forjar
uma nova coalizão majoritária. A classe média e as elites, derrotadas em 2014, passaram a ver
nas instituições democráticas agentes contrários à defesa de seus interesses. Dilma já toma
posse em seu segundo mandato com a legitimidade questionada, incapaz também de
reproduzir as condições de governo inerentes ao presidencialismo de coalizão. A vitória
petista em 2014 talvez tenha sido mais impactante na decisão dos principais atores políticos
que sua adesão ao frágil consenso democrático nacional. Em vez de assistirmos à ascensão de
ideais participativos que estiveram presentes em 2013, vimos a escalada da busca por
soluções vindas de cima em ambos os polos da disputa política central. As amplas
manifestações de rua, que sucederam o junho de 2013, crescentemente incorporavam e
legitimavam pautas antidemocráticas. A crescente influência do Poder Judiciário na política
acuava as tentativas de reorganização do campo da esquerda e alimentava o discurso
79
de lucro das empresas e reduzissem os custos dos serviços. Este quadro, mais que o abandono
das elites empresariais ao pacto de Dilma, teria resultado no fracasso de seu modelo
econômico.
O lulismo chegou em 2015 com suas bases parlamentares reduzidas, em grave
contexto de crise econômica, com suas bases sociais desmobilizadas e enfrentando severa
crise de legitimidade. Contudo, nada disso determinava o desfecho que teve o lulismo. Diante
das possibilidades abertas pela crise do lulismo, os vários caminhos que se abriam teriam de
ser disputados e reorientados pelos atores políticos. Nas intensas mobilizações de 2015 e
2016, os ecos conservadores de 2013 se amplificaram, novos atores emergiram, e o quadro da
polarização entre dois projetos, representados por PT e PSDB, entrou em declínio.
Com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2002 deu-se a
subsequente implementação de um programa de inclusão social que se alicerçava na
ampliação da presença do Estado na economia e dos serviços públicos ofertados por este,
como também numa política de crescimento econômico em grande parte fomentada pelo
incremento do consumo interno e dos investimentos estatais diretos. O êxito desse programa
inaugurou um período de relativa hegemonia do discurso de esquerda no debate público
brasileiro. Sintoma dessa hegemonia, sensível ainda que bastante restrita, foi o
comportamento da principal organização de direita do Brasil quando da eleição presidencial
de 2010, na qual o Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB) lançou o ex-governador de
São Paulo, Geraldo Alckmin, para enfrentar nas urnas a candidata Dilma Rousseff, que tinha
o apoio do presidente Lula.
Na disputa eleitoral de 2010, gozando do prestígio de índices econômicos e sociais
amplamente positivos, o bloco político liderado pelo Partido dos Trabalhadores adotou a
estratégia de confrontar os resultados de seus dois governos em nível federal com os
resultados daqueles governos dirigidos anteriormente pelo PSDB, entre 1995 e 2002.
A oposição de direita, por sua vez, na voz de seu principal candidato, Geraldo
Alckmin, adotou estratégia diversa. Um primeiro dado simbólico relevante da campanha do
PSDB ao Planalto naquele ano foi o esforço direcionado no sentido de omitir o apoio do ex-
presidente Fernando Henrique Cardoso à chapa oposicionista, numa tentativa de desvincular a
candidatura de Alckmin da memória coletiva dos anos de governo de Fernando Henrique.
Outro dado importante da campanha de 2010 foi a aparição do próprio candidato Alckmin na
81
13 Este texto traz uma importante reflexão sobre os deslocamentos ideológicos do eleitorado entre as
eleições de 2010 e 2014, e será ainda debatido a fundo no capítulo 2, a pretexto da discussão sobre nossa
compreensão de uma crise de representatividade que estaria em relação direta com a onda conservadora.
82
direita, e divergindo do perfil da nova direita postulado pelos autores. A onda conservadora
acabaria se demonstrando um fenômeno mais amplo e intenso.
Dois livros recentes nos ajudam a entender o quadro eleitoral verificado em 2018. o
primeiro deles, O voto do brasileiro de Antônio Carlos Almeida, foi publicado no começo de
2018. Almeida realiza um exaustivo levantamento de dados das eleições de 2006 a 2014 para
demonstrar a existência de um padrão no comportamento eleitoral do brasileiro. Numa análise
comparada dos resultados das três eleições, o autor distingue uma clara tendência eleitoral
sedimentada na polarização entre PT e PSDB. Ele antecipa que
Contudo, para além do espanto, é preciso compreender que mudanças estruturais da sociedade
teriam gerado tal resultado surpreendente, se é que as houve. E, principalmente, se tais
mudanças de fato incorporaram temas genuinamente novos à campanha.
O segundo livro a que nos referimos é O Brasil dobrou à direita, de Jairo Nicolau,
publicado em fins de 2020. Neste, Nicolau analisa um vasto corpo de dados sobre os
resultados eleitorais de 2018 e das pesquisas de intenção de voto para presidente na ocasião.
Faz ainda uma comparação com os dados das duas eleições precedentes.
Se houve uma mudança na estrutura social brasileira capaz de impactar no movimento
eleitoral foi aquela apontada por Pochmann e que aparece nos levantamentos de Nicolau: por
um lado, até 2012 verificou-se uma ampla inserção de camadas do subproletariado ao
mercado formal de trabalho, elevando os níveis de renda na base da pirâmide; por outro, a
elevação do grau de escolaridade média da população. Entre 2002 e 2018, decresceu
acentuadamente os índices de pessoas analfabetas ou com apenas o nível fundamental
completo, ao passo que se verificou movimento inverso nos estratos de ensino médio
incompleto a superior completo. Quando Lula foi eleito pela primeira vez, em 2002, 63% do
eleitorado não havia terminado o ensino fundamental. Dezesseis anos depois, quando
Bolsonaro conquistou a presidência, esse número caíra para 39% (NICOLAU, 2020, p. 41).
Uma possível chave para interpretar algumas das mudanças no comportamento
eleitoral do brasileira pode ser encontrada no diagnóstico de Pochmann, que demonstra que a
elevação nos níveis de escolaridade não se fez acompanhar de geração de novos postos de
trabalho condizentes. 95% dos empregos gerados na primeira década de governos petistas se
situaram no setor de serviços, com remuneração entre 1 e 2 salários mínimos (POCHMANN,
2012). É também possível que essas novas camadas de eleitores com maior escolaridade
tenham visto nas políticas sociais dedicadas ao mais pobres um antagonista às possibilidades
de ascensão social que passaram a vislumbrar. Embora promissora, essa hipótese requer uma
verificação mais adequada.
O que os dados levantados por Nicolau apontam é que entre 2010 e 2014 houve uma
significativa mudança no comportamento eleitoral dos estratos educacionais. Considerados
três níveis (fundamental, médio e superior), nas eleições de 2º turno, em 2010 o PT teve
votação superior ao PSDB em todos os estratos. Já em 2014, o PSDB derrota o PT no estrato
daqueles com nível superior. Em 2018, o PSL derrota o PT em todos os estratos. É relevante o
fato de o PT começar a perder suas bases pelo estrato de nível superior, que se correlaciona
com os níveis de renda.
84
Bolsonaro foi o preferido nos três níveis de escolaridade que adotei para
classificar os eleitores (fundamental, médio e superior). A novidade em
relação a pleitos anteriores foi a derrota do Pt entre eleitores de baixa e
média escolaridade (o que não acontecia desde 2002), com destaque para
este último segmento, no qual a diferença entre a votação de Bolsonaro e a
de Fernando Haddad foi maior. (NICOLAU, 2020, p. 122)
A novidade apontada por Nicolau parece expressar uma ruptura nas bases eleitorais do
lulismo, conforme elaborado por Singer, que a partir de 2006 teria incorporado vastos
contingentes do subproletariado, tendo como contrapartida a perda de bases nas camadas
médias da sociedade. Contudo, cabe registrar que essa reorientação eleitoral se deu sobretudo
em estados do Sul e Sudeste, permanecendo a maioria petista no Nordeste, onde o PT obteve
no 2º turno cerca de 70% dos votos válidos.
O levantamento de Nicolau ainda aponta outras clivagens bem definidas. A votação de
Bolsonaro no 2º turno se deu majoritariamente nos grandes centros urbanos, sobressaindo nos
estratos de maior escolaridade e com expressiva votação entre evangélicos, na casa de 70%.
Obteve em São Paulo votação maior que os líderes tucanos do estado lograram em eleições
anteriores. Também foi grandemente superior no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte. Nicolau
ainda ressalta que a votação de Bolsonaro entre os homens foi superior em cerca de 10% a sua
votação entre as eleitoras. Como bem registra Nicolau, vários fatores se sobrepõem ao
analisar a demografia da eleição de 2018, “o Nordeste tem mais católicos e mais pessoas de
baixa escolaridade e que vivem em pequenas cidades, e que por isso têm pouco acesso às
redes sociais” (NICOLAU, 2020, p. 126). Desse quadro apresentado por Nicolau, emerge um
perfil do eleitor bolsonarista, urbano, masculino e com maior escolaridade, com forte
participação dos setores evangélicos. Esse perfil do eleitorado bolsonarista é compatível com
a conceituação que propomos neste trabalho, apresentado preliminarmente no capítulo 1.
Paralelo ao crescimento do que Codato, Bolognesi e Roeder chamaram de nova
direita, e em sintonia com o perfil eleitoral traçado por Nicolau, ocorreram substantivas
mudanças nos temas presentes no debate público nos quatro anos que antecederam a vitória
de Bolsonaro. Marina Lacerda, analista legislativa da Câmara dos Deputados, realizou
importante estudo sobre a ascensão do pensamento conservador na política brasileira
contemporânea. Assim a autora define seu objeto:
Para Lacerda, uma particularidade da nova direita brasileira seria que esta se baseia
“na ideia de que a família – e não o Estado – é a resposta para toda ordem de disfunções
sociais” (2019, p. 18). Diz ainda que o “que diferencia o neoconservadorismo de outros
movimento e ideologias conservadoras é a centralidade que atribui às questões reprodutivas e
sobre a família tradicional” (2019, p. 199).
A definição de Lacerda é importante para se compreender como ela chega à conclusão
de que a Legislatura de 2015-2018 foi consistentemente mais conservadora que suas
antecedentes. Temas centrados na defesa de uma visão tradicional e patriarcal da família
ganharam espaço e relevância no período. Atores alinhados a tais valores polarizaram o
debate público, antagonizados por movimentos sociais e parlamentares de esquerda. Parte
majoritária das iniciativas legislativas nesse sentido partiu de parlamentares de afiliações
evangélicas. Seu estudo dá sólida sustentação a duas hipóteses com as quais trabalhamos:
primeiro, que o segmento evangélico foi ator decisivo na vitória de Bolsonaro; segundo, que
os deslocamentos eleitorais e ideológicos no seio da direita brasileira já se manifestaram
fortemente nas eleições de 2014, sobretudo para o Parlamento.
Nosso objetivo, como explicitado, não é responder a por que Bolsonaro foi eleito. Tal
tarefa talvez seja inexequível. Mas a leitura de alguns autores como Nicolau, Almeida e
Moura e Coberllini nos dão pistas úteis sobre o que aconteceu e nos auxiliam na busca por
compreender os sentidos da eleição de Bolsonaro, tema desta tese. No capítulo subsequente,
aprofundaremos o debate sobre o perfil político e ideológico do que temos chamado de
bolsonarismo. Agora, contudo, trataremos em seção a parte um tema que esteve no centro
tanto das discussões sobre a vitória de Bolsonaro quanto acerca da ascensão política da
extrema-direita no mundo, o papel novo desempenhado pela redes sociais da internet nas
eleições e na organização de grupos políticos antiestabilishment. Ao mesmo tempo,
discutiremos o papel de novos atores políticos que foram cruciais no desfecho dos processos
políticos de 2015 e 2016 que conduziram ao golpe contra o mandato de Dilma Rousseff.
Os protestos antigoverno ocorridos entre 2015 e 2016 guardam ligação íntima com os
protestos de junho de 2013, mas aqueles diferem destes em questões essenciais. Se em 2013
direita e esquerda estiveram nas ruas – e sobretudo nos espaços púbicos de discussão política
–, disputando os afetos dos manifestantes e os sentidos políticos das manifestações, em 2015 e
2016 era a direita quem tomava a iniciativa e dirigia todos os atos.
86
Em 2014, analisando o desfecho dos protestos do ano anterior, concluímos ter havido
uma espécie de pacto tácito pelo fim das mobilizações. Os atos de junho impactaram
negativamente na avaliação de governos em todos os níveis, atingindo lideranças de todos os
espectros ideológicos da política nacional. Quem estive em governo, quem liderasse alguma
instituição, qualquer político assim compreendido pela população sofreu as consequências da
profunda descredibilidade que aflorou naquelas semanas de intensa mobilização social.
Da parte dos governos petistas, o Governo Federal foi o mais fragilizado. As
iniciativas de direcionar o descontentamento popular para as políticas do governo obtiveram
grande êxito, conforme pudemos verificar no capítulo 2 a respeito das motivações dos
manifestantes. Temas como corrupção, gastos com grandes eventos, ineficiência dos serviços
públicos ascenderam ao protagonismo no debate público. Como sabido, o governo Dilma teve
drástica queda de popularidade.
Mas as lideranças da oposição em situação de governo, como o caso do Governo
Estadual de SP, também foram alvos da rejeição popular. Lideranças políticas de direita foram
vaiadas nas ruas. Poucos meses após liderar o golpe contra Dilma na Câmara dos Deputados,
seu então presidente, Eduardo Cunha, foi cassado e posteriormente preso. A indignação não
poupou ninguém.
A partir dos massivos protestos de 20 de junho de 2013, esquerda e direita se viram
diante uma legítima encruzilhada. Milhões de pessoas nas ruas costuma ser fato que exige
medidas. A revolta crescia e cresciam também os apelos por medidas mais drásticas.
Executivo, Legislativo e Judiciário estavam sendo acossados pelas ruas. Mesmo a grande
mídia recebeu crescente hostilidade.
Ciente da necessidade de apontar algum caminho que pudesse mobilizar e aglutinar
suas bases, o governo – através de sua liderança máxima, a presidente da República – propôs
um pacto nacional que abarcava questões ligadas ao transporte mas também propunha uma
profunda reforma política. Esta reforma era um anseio antigo de setores da esquerda brasileira
e mesmo de certas lideranças da direita. Creditava-se a tal reforma a responsabilidade por
sanar os vícios inerentes ao presidencialismo de coalizão e a um sistema de representação
cada vez mais distanciado dos anseios e valores populares. Chegou-se a cogitar uma mini
constituinte para tratar do assunto. Na tentativa de obter a primazia na definição do próximo
passo das acirradas lutas políticas de 2013, o pacto de Dilma foi o caminho das esquerdas no
governo.
À direita, o caminho óbvio e de curso mais fácil – ao menos do ponto de vista da
construção discursiva – era avançar para a derrubada do governo. Contudo, em tal
87
perspectiva, nem a vitória era certa nem faltavam os riscos inerentes a tal postura, que sejam
se associar a posturas golpistas ou assumir o desgaste pelo possível agravamento do quadro
social e econômico. A aposta mais segura parecia ser aquela que contava com o
“sangramento” do governo petista até a próxima eleição, em 2014. Aécio Neves chegou
próximo de obter a vitória naquele pleito, o que demonstra que a análise da oposição não foi
de todo errada.
Uma vez evidenciada a escolha da oposição por não dar o passo seguinte, foi a vez do
governo também desacelerar a marcha. Como lemos em Singer e Vianna, o pacto lulista era
um pacto de conciliação, que promovia a incorporação do subproletariado no mercado de
trabalho e consumo sem promover conflitos possivelmente ameaçadores às conquistas que
promovia. Outro fator determinante da posição do governo foi o parco poder de mobilização
dos movimentos sociais de esquerda verificado em julho quando centrais sindicais e demais
entidade convocaram seus protestos em defesa do pacto de Dilma. O limitado interesse (ou
mesmo um claro desinteresse) do governo em aprofundar e intensificar o ritmo das reformas
alimentou e foi alimentado pela fraqueza demonstrada pelos movimentos sociais de sua base
política, gerando um processo lento e tácito de desmobilização final. Como analisamos na
época:
[…]
A lucidez de Cardoso nos permite ver por dentro o contexto político da oposição sob o
lulismo. E apesar de seu alerta, não foi o PSDB nem seus aliados que mobilizaram essas
camadas da sociedade, mas sim novas organizações de direita, muitas delas surgidas no
âmbito das redes sociais da internet. Entre 2015 e 2016, grandes manifestações ocorreram em
todo o país. O protesto de 13 de março de 2016 teria sido a maior mobilização política de rua
da história brasileira, envolvendo mais de 3 milhões de pessoas em dezenas de cidades14.
Três dos principais movimentos que lideraram os protestos de rua contra o governo
Dilma em 2015 e 2016 foram organizados dentro do espaço virtual do Facebook e
ascenderam na sequência dos protestos de 2013. São eles o MBL (Movimento Brasil Livre), o
Vem pra rua e o Revoltados online.
O mais antigo dos três é o Revoltados Online, que data de 2004. Sua página no
Facebook, inicialmente uma confusa iniciativa para "caçar pedófilos", chegou a ter quase um
milhão de seguidores na rede social. Tanto a página quanto o perfil de seu fundador, Marcello
Reis, acabaram removidos da plataforma após um caso de ameaça a um advogado. Marcello
Reis acumula longa ficha de ofensas e discursos de ódio na internet, sendo muita vezes
identificado como simpatizante de ideologias neonazistas.
O Vem pra rua foi organizado em 2014 por pessoas alinhadas ao PSDB e ao então
senador Aécio Neves.
O MBL, organizado também em 2014, diz se identificar com o tatcherismo e apregoa
soluções de livre mercado para os problemas nacionais. Dentre seus expoentes, destacam o
atual deputado federal Kim Kataguiri (DEM) e o vereador da cidade de São Paulo Fernando
Holiday (Patriota). Afirmou-se como a principal organização nas mobilizações pelo
impeachment.
Em artigo de 2016, Marina Amaral denunciou a rede de think thanks por trás da
organização e promoção do MBL como principal artífice das mobilizações pelo impeachment.
14 Estadão: Maior manifestação da história do País aumenta pressão por saída de Dilma. Em:
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,manifestacoes-em-todos-os-estados-superam-as-de-marco-do-ano-
passado,10000021047 . Consulta em 30 de outubro de 2020.
90
Para esse autor, o que estava acontecendo seria a ruína do lulismo, no que em certo
sentido tem razão. Ao comentar as análises que propunham existir uma onda conservadora ou
o risco de um golpe “à la paraguaia”, Arcary diz que são análises exageradas. “Uma maior
polarização político-social, isto é, uma erosão do centro político e a abertura de maior espaço
para posições mais radicais à direita e, também, à esquerda, é um dos sinais de que estamos
em uma nova situação” (2016, p. 148). Para ele, abria-se uma nova fase marcada pelo
descontentamento do proletariado com a conciliação lulista, que abria a “possibilidade, pela
primeira vez, de uma reorganização pela esquerda (2016, p. 152).
Olhando em retrospecto, fica fácil enxergar o equívoco do autor em sua leitura do
quadro nacional. Contudo, à época, diversas organizações de esquerda opositoras ao governo
enxergaram na crise do lulismo a possibilidade real da emergência de um polo político
majoritário organizado em torno da “verdadeira esquerda”. Ainda que não pretendemos
avaliar tal leitura fora de seu contexto, alguns aspectos podem ser levantados para apontar
possíveis equívocos dessa visão. Um tema latente no texto de Arcary e em muitas das análises
da época era a suposição de que as oportunidades políticas para posicionamentos “radicais”
surgissem simultaneamente para todos o espectros ideológicos. Apesar do sempre enaltecido
fundamento histórico de tais análises, salta aos olhos o descompasso entre teoria e realidade,
descompasso perfeitamente expresso na negação da existência de uma onda conservadora.
91
Não por acaso, tais leituras possuem pra nós, atualmente, mais um papel de registro dos
movimentos políticos e teóricos no curso das disputas hegemônicas, e das ideias que
orientaram certas parcelas da esquerda, que um papel explicativo que faça avançar a
compreensão do eventos estudados.
Houve no período tem como marco inicial os protestos de 2013 tanto uma reorientação
ideológica quanto uma maior organização de importantes parcelas da sociedade brasileira. Tal
fenômeno se constitui hoje num consenso sólido entre os estudiosos da realidade brasileira.
As mídias sociais permitiram o surgimento de alternativas organizativas a setores da
sociedade que estavam ausentes das ruas nas últimas décadas, conforme bem apontou
Avritzer (2015). Os principais polos da política brasileira até 2013, liderados por PT e PSDB,
possuíam a seu dispôr poderosas organizações capazes de instruir e mobilizar suas bases. Se o
PT dirigia uma vasta rede de organizações sindicais e dos movimentos sociais, o PSDB
desfrutava de institutos e órgãos da mídia sempre a postos para desempenhar seu papel nas
lutas hegemônicas. Conforme aprofundaremos no capítulo seguinte, as redes sociais na
internet permitiram ao bolsonarismo mobilizar suas bases à margem dos recursos tradicionais
de campanhas políticas.
92
Acreditamos haver evidências suficientes de que a eleição de 2018 não foi um fenômeno tão
contingente, ou disruptivo, quanto supõem-se da leitura de Moura e Coberllini, debatidos no
capítulo 1. Sem afastar a importância dos fatores elencados pelos autores, cujo estudo traz
importantes contribuições para o debate, julgamos que permanece válida a noção de ideologia
para explicar a vitória de Bolsonaro e o bolsonarismo.
Tal magnitude de temas contingentes que perpassaram a campanha eleitoral de 2018
dificultam a definição de fatores sociais e políticos mais amplos que possam ter sido decisivos
no pleito, se não por toda a complexidade dos temas, no mínimo por embotar a cognição. Não
a toa, o debate público sobre a vitória de Bolsonaro costuma conter afirmações que atribuem a
algum desses eventos particulares a proeminência explicativa dos resultados. Aqui – sem
refutar a relevância dos fatores contingentes – buscamos compreender como as dinâmicas
política e ideológica foram determinantes no processo da disputa presidencial de 2018; nossa
atenção se concentra nos sentidos políticos e ideológicos da vitoria de Bolsonaro.
Compreendendo a eleição como um momento do longo processo de disputas
hegemônicas visando à construção de uma maioria ideologicamente estruturada, ainda que de
uma estruturação de tipo fraca, vimos como os partidos centrais da direita brasileira foram
perdendo terreno para outras agremiações que tiveram maior êxito em se aproveitar da
duradoura crise de legitimidade que abate o sistema político brasileiro, notadamente a partir
de 2013. Contudo, o quadro de recessão democrática mundial e as particularidades das
disputas hegemônicas da Nova República de forma alguma determinaram a emergência do
bolsonarismo como alternativa política. Operando nos limites estabelecidos pela realidade
política e aproveitando as possibilidades abertas, o bolsonarismo teve de fomentar e recriar
constantemente as bases de seu discurso, incrementando suas táticas à medida que novos
conflitos se estabeleciam. Pretendemos demonstrar neste capítulo que o bolsonarismo não é
um fenômeno fugaz ou fortuito, que não se deu em função de uma sucessão de erros das
correntes políticas alternativas, como supõe um certo senso comum que tem também raízes na
academia. Pelo contrário, o bolsonarismo soube se oportunizar das janelas abertas pelo ciclo
de crise da democracia liberal, dos impasses econômicos não resolvidos e da fragilização da
liderança do PSDB e congêneres no campo da oposição de direita.
A cada episódio contingente das disputas políticas no Brasil durante as últimas
décadas, o bolsonarismo e seus protótipos souberam galgar novos espaços, dialogar com
93
Anteriormente, vimos com Bobbio e Singer como os conceitos de esquerda e direita possuem
potencial explicativo para a predição do voto e das preferências partidárias. As identificações
e predisposições ideológicas são racionais no sentido weberiano, de uma ação racionalmente
orientada para resultados. Os resultados esperados não são, contudo, racionalmente
estabelecidos em termos de uma racionalidade puramente abstrata. Com efeito, o conjunto de
valores, aspirações e experiências, os processos cognitivos e de integração social, bem como a
quantidade e a qualidade da informação disponíveis e realmente assimilada, conformam o
contexto biográfico em que indivíduos compreendem e elaboram seus propósitos. Na teoria de
Downs – e principalmente em seus diversos desenvolvimentos posteriores – a ideologia surge
como instrumento de otimização dos múltiplos recursos requeridos para a tomada de decisões
e consolidação de preferências. No Brasil contemporâneo, como bem demonstrado por Singer
(2018), esquerda, direita e centro formam a terminologia que melhor permite classificar as
preferências ideológicas e instrumentalizar a análise do papel da ideologia nos processos de
disputas hegemônicas.
Compreendendo a hegemonia nos termos gramscianos (GRAMSCI, 2011), temos
como processo central das disputas hegemônicas a direção intelectual e moral da sociedade, a
construção de uma vontade nacional coletiva. Na busca pela formação dessa vontade
nacional, classes, frações de classes ou, como preferimos por possuir maior amplitude
15 Segundo Lindoso (2020, p. 4), durante a ditadura: "A tortura, institucionalizada seguia um rito
protocolar, ordenado, sistemático, sujeita a uma cadeia de comando hierarquizado, autorizada pela cúpula do
regime". Importante registro diante das atuais tendências negacionistas verificadas neste trabalho.
94
analítica, grupos sociais distintos operam a construção de uma visão de mundo compartilhada
a partir da relação de forças com outros grupos sociais. Essa delimitação é fundamental para
se compreender que um grupo social particular não impõe – em condições de democracias
avançadas e institucionalmente complexas – seus valores e projetos de forma vertical e
unilateral. A construção de uma vontade nacional majoritária requer o diálogo permanente
entre diversos grupos sociais, a mediação entre seus valores e anseios, a ressignificação de
seus conteúdos. No caso brasileiro, tal aporte teórico nos auxilia no entendimento dos
processos de disputas hegemônicas que conduziram à ascensão do bolsonarismo e sua vitória
eleitoral em 2018.
Retomando a conceituação de Singer sobre a conformação partidária e ideológica da
Nova República (2018, p. 131-158), analisaremos o bolsonarismo sob a perspectiva da
polarização entre esquerda e direita, na qual o centro (por vocação e necessidade) oscila entre
a adesão a um ou outro campo, sempre tendo como norte sua dinâmica própria de reprodução
política, centrada nas relações clientelistas entre Estado, políticos e eleitorado.
16 Ver a excelente reportagem da Piauí, A guerra do cashmere, de Julia Duailibi. disponível em:
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/guerra-do-cashmere/ .
96
Geraldo Alckmin, escalado pelo PSDB para concorrer à presidência em 2018, não
repetiu o desempenho anterior de seu partido, ficando em quarto lugar no 1º turno, com pouco
menos de 5% dos votos. Em 2010, o ex-governador de SP José Serra foi o candidato tucano,
obtendo no 1º turno 32% dos votos. Nessa eleição, a direita já demonstrava perceber que
necessitava incorporar novos aspectos a suas campanhas, se quisesse se opôr a um governo
que apresentava altos índices de aprovação. A iniciativa escolhida para mobilizar as camadas
mais conservadoras da sociedade, que poderiam se alinhar contra o PT, foi a promoção do
debate acerca do direito ao aborto. A campanha de Serra buscou vincular Dilma à defesa do
aborto, objetivando atingir sobretudo o eleitorado evangélico. Panfletos apócrifos foram
distribuídos em igrejas. Discursos se reproduziram pelo país, muitos deles pela voz de
pastores. Todos acusando Dilma de defender o aborto e ser contra a vida e a fé cristã. Embora
essa ofensiva moralista tenha causado dificuldades à campanha da candidata petista, não foi o
bastante para derrotar um governo que até então respondera bem aos desafios impostos pela
crise financeira mundial de 2008.
Na eleição de 2014, a campanha de Aécio Neves aumentou o tom dos ataques. Desta
feita, contudo, a corrupção petista foi o centro do discurso. A narrativa midiática falava no
maior escândalo de corrupção da história. Ironicamente, o próprio Aécio se envolveu em
escândalo relacionado à construção de um aeroporto com verbas públicas em terreno de um
parente. O mensalão tucano também ligava caciques do PSDB a esquemas de propina e
desvios de verbas públicas. Sentindo o clima favorável para ideias mais reacionárias, o
candidato Levy Fidélix (PRTB) chegou a declarar que a ditadura fizera bem ao Brasil.
Contudo, como vimos no capítulo 3, a realidade econômica do país se deteriorara. Contra
Dilma, o tomate virou símbolo de um suposto descontrole inflacionário. Os eventos de 2013,
embora atingissem todos os campos partidários, tiveram maior impacto sobre o governo
petista de Dilma. Aécio Neves obteve mais de 48% dos votos no 2º turno, perdendo uma
eleição que consideravam ganha.
Envolvido em novas denúncias de corrupção, já nas manifestações pelo impeachment
de Dilma em 2015 e 2016 o PSDB foi ofuscado por novas organizações que tinham fortes
bases nas redes sociais da internet. Associado ao subsequente governo de Temer, o PSDB
seguiu se desgastando, diante de resultados desastrosos na economia e de recorrentes
escândalos de corrupção. Pesquisa Datafolha de junho de 2017 apontava que 83% dos
entrevistados acreditavam que "Temer teve participação direta em esquemas de corrupção" 17.
Foi neste período que Bolsonaro começou a se firmar como alternativa viável à presidência,
crescendo progressivamente nas pesquisas de intenção de voto. Como observado na Tabela
4.1, entre julho de 2016 e abril de 2017, Bolsonaro salta do 4º lugar na preferência dos
eleitores para o 2º, superando Aécio Neves e Marina Silva.
O estudo de Lacerda nos dá bases mais sólidas para a hipótese de que a base social de
Bolsonaro teve sua primeira ampliação significativa a partir da adesão de setores evangélicos,
militaristas, antipetistas mais radicais e defensores da família patriarcal. Esse núcleo duro
garantiria visibilidade e apoiadores ativos a Bolsonaro, propiciando condições para a
expansão de sua base nesses segmentos e posterior aproximação com outros setores da
sociedade – essa expansão foi particularmente efetiva entre evangélicos, conforme visto nos
levantamentos compilados por Jairo Nicolau, que indicam que Bolsonaro chegou a obter 70%
dos votos do eleitorado evangélico no 2º turno.
Retomando a proposição de Singer de que a dicotomia esquerda-direita no Brasil teria
contornos particulares, cabendo destaque às concepções acerca do papel do Estado na
repressão e manutenção da ordem, encontramos uma possibilidade explicativa para o
fenômeno do deslocamento do eleitorado do PSDB para Bolsonaro. O PSDB escolhe como
seu representante em 2018 um político de linha mais moderada, Geraldo Alckmin. Tendo
larga experiência no executivo, Alckmin era facilmente identificado como “um político
tradicional”.
Moura e Coberllini, em seus grupos qualitativos cujos resultados constam de A eleição
disruptiva, verificaram que, entre os eleitores em 2018, havia um forte sentimento de
descrédito não apenas quanto às instituições como também em relação às lideranças políticas.
O quadro que transparece de suas entrevistas apresenta um eleitorado disposto a tolerar a
agressividade de Bolsonaro na esperança de promover “qualquer mudança que seja” (em
parte, outra parcela dos entrevistados via exatamente na agressividade a resposta a seus
apelos). O mesmo cenário demonstra que o tema da segurança pública era uma das
preocupações centrais dos eleitores em 2018. Bolsonaro desde muito que se apresentava como
defensor de medidas repressivas mais duras.
Segundo Singer, a “vitória de Fernando Henrique em 1994 subsumiu provisoriamente
o potencial populista da direita na medida em que ela se compôs com centro em uma aliança
com predomínio centrista” (SINGER, 2002, p. 165). O centro, dentro do arcabouço analítico
99
proposto por Singer, caracteriza-se essencialmente pela dependência clientelista dos recursos
estatais, via distribuição de cargos e verbas no orçamento. A radicalização ideológica não
compõe seu repertório. Bolsonaro não sofria esses constrangimentos, sua aproximação com o
chamado centrão se dá apenas num momento posterior de seu governo, quando busca
recompor suas bases parlamentares. E tal aproximação se dá em momento no qual o centro
adere progressivamente a valores mais conservadores, aproveitando os espólios da onda
conservadora.
A fragmentação partidária e o sistema de eleições em dois turnos no Brasil estimula a
polarização na preferência dos eleitores. Parcelas do eleitorado tendem a aderir a candidatos
com maiores chances de vitória. Em casos em que os riscos percebidos na vitória de um
determinado candidato superam o ganhos esperados pela eleição de seu candidato de
preferência, parte dos eleitores pode considerar que seja mais vantajoso aderir a um terceiro
candidato com maiores possibilidades de derrotar aquele no qual identifica uma ameaça a seus
interesses. Esses elementos, associados à proposição dos três partidos brasileiros de Singer,
levam-nos a crer que as disputas eleitorais em nível federal no Brasil até 2014 se
aproximaram do cenário de eleições bipartidárias, como a americana – sobretudo se
compreendermos o partido em termos gramscianos (GRAMSCI, 2007), não pela identificação
de legendas. Essa hipótese nos conduz a tentar interpretar as disputas pela liderança da direita
brasileira usando do repertório teórico de Anthony Downs. Em sua obra de 1957 – cuja crítica
remetemos a Singer (2002) e Figueiredo (2008) – faz uma observação que interessa aos
propósitos de nosso estudo.
Os novos partidos geralmente têm como propósito vencer eleições, mas são
frequentemente mais importantes como meios de influenciar as políticas de
partidos anteriormente existentes. Como velhos partidos são
ideologicamente imóveis, não conseguem se ajustar rapidamente a mudanças
na distribuição de eleitores, mas os novos partidos podem entrar onde quer
que seja mais vantajoso. (DOWNS, 2013, p. 161-162)
Autores como Fábio Santos (2018) e Valerio Arcary (2016) concordariam que o
arranjo das disputas hegemônicas entre PT e PSDB se dera entre partidos tão parecidos, que
os eleitores acham difícil tomar decisões racionais. Amparados em autores como Marcio
Pochmann, Laura Carvalho e André Singer, argumentamos que houve diferenças essenciais,
ao menos ao longo dos primeiros dez anos da experiência lulista, entre esta e os governos de
FHC. Contudo, não surpreende que para parcelas extensas do eleitorado, em 2018, não tenha
parecido assim. A racionalidade na decisão do voto é sempre a racionalidade de um indivíduo
dado, portador de uma história particular, orientado por determinados valores. O
envolvimento do PT com seguidos escândalos de corrupção, a prisão de muitos de seus
dirigentes, inclusive a de sua maior liderança, Lula, contribuíram para aproximar a imagem
dos dois partidos na mente do eleitorado. Também os resultados da crise econômica de 2008 e
2011, bem como os equívocos da política econômica de Dilma, sobretudo em seu segundo
mandato, criaram uma sensação generalizada de depreciação das condições de vida e declínio
econômico. O discurso bolsonarista soube explorar essa oportunidade ao denunciar a ambos
como mais do mesmo.
Ao empurrar o PSDB para o campo cognitivo da esquerda, o bolsonarismo pôde atrair
os estratos mais próximos ao extremo no contínuo ideológico esquerda-direita. Essa adesão
foi decisiva para que Bolsonaro pudesse se apresentar como principal liderança da direita nas
eleições e candidato com maior possibilidade de derrotar o petismo. Nunca é demais
relembrar o que diz Appadurai: na ausência de desejo ou possibilidade de intervir nas bases
econômicas que fundam o quadro social que corresponde ao enfraquecimento das instituições
democráticas, resta ao populismo reacionário o ataque conservador no plano dos costumes e
valores da sociedade.
O segmento evangélico e dos católicos conservadores, como visto, foi um primeiros
alvos da ação bolsonarista. Contribuíram nessa aproximação sua ênfase constante na fé cristã,
no lema Brasil acima de tudo, Deus acima de todos, o discurso preconceituoso diante de
comportamentos sexuais desviantes dos valores da família patriarcal e outras tantas pautas
que soube explorar com eficiência. Vemos todos esses elementos na transcrição do trecho
final de sua entrevista ao Jornal Nacional. A pesquisa de Marina Lacerda constatou esse
movimento, situando a adesão de Bolsonaro às questões referentes aos direitos reprodutivos
no primeiro governo de Dilma, quando ele alcança maior notoriedade nacional e vê crescer
sua base eleitoral no RJ.
Mounk (2019) aponta, através de pesquisas em países da Europa, nos EUA e no
Canadá, que a xenofobia é maior entre populações onde há baixas taxas de imigração, como
em certas regiões interioranas, e menor nos grandes centros urbanos onde a imigração é mais
presente. Isso poderia ser explicado por dois fatores. Um, as populações das regiões
periféricas costumam se ocupar em atividades de menor especialização, mais sujeitas à
concorrência por trabalhadores emigrantes de regiões em guerra civil ou profunda crise
econômica. Já nos grandes centros urbanos é onde residem majoritariamente os profissionais
com nível superior e alta especialização, que estão mais habilitados a sobreviver à
concorrência num mercado de trabalho globalizado. Outra possibilidade decorrente,
demonstrada pela série de dados estatísticos que o autor levanta, é a de que a tolerância com
imigrantes é maior onde a imigração se estabeleceu há pelo menos duas gerações, o que
geraria uma menor estereotipificação e menos temor por conviver com culturas diferentes.
Essa segunda possibilidade seria um sinal promissor para gerações futuras, afinal, já que
102
A enorme importância das redes sociais nas disputas eleitorais por todo o mundo é um fato
inconteste e consensual na literatura política contemporânea. Uma rápida pesquisa em
repositórios acadêmicos basta para constatar a afluência que o tema tem demonstrado. Nos
debates políticos que têm vez no meio acadêmico e nas próprias redes sociais, vê-se uma
crescente preocupação com a força da manipulação política desses meios. Muitos dos que
discordam de que a a facada elegeu Bolsonaro, contrapõem a isso a tese de que o WhatsApp
elegeu Bolsonaro. Militantes de esquerda atribuem a uma suposta baixa inserção de seu
campo nessas redes a escalada da direita conservadora.
105
Manuel Castells foi um dos pioneiros no debate sobre o papel das redes na internet na
sociedade contemporânea. Sua visão acerca dos impactos da tecnologia é mais otimista que o
sentimento de fracasso e a revolta contra a manipulação que sucederam as vitórias eleitorais
da extrema-direita no mundo, cujas campanhas fizeram amplo recurso a essas redes. Embora
não pretendamos avançar na discussão de maior fôlego sobre as implicações das novas
tecnologias na sociabilidade, cabe registrar algumas ideias do autor sobre o tema, sobretudo
no que relaciona o papel das redes aos movimentos sociais mais amplos.
Adiante, Silveira aponta fatores que teriam revertido o papel dispersor das redes na
internet.
Embora relevante o registro dessas transformações, é duvidoso que elas tenham sido
decisivas nos processos eleitorais em que a internet foi protagonista. Comparados aos custos
publicitários e aos milionários orçamentos de campanha característicos das eleições
contemporâneas, o custo da promoção de conteúdos na internet é ínfimo – mesmo se
considerarmos a contratação de serviços legalmente questionáveis como o uso de robôs para
impulsionar conteúdos. Ainda assim, Em 2020 o Facebook decidiu proibir a promoção paga
de conteúdos eleitorais durante a eleição presidencial americana, sinal de que as críticas
expostas por Silveira tiveram consequência. Ainda, várias iniciativas têm sido levadas a cabo
no sentido de identificar e banir perfis falsos e de que propaguem conteúdos ofensivos ou
simplesmente fraudulentos.
107
Empoli reconhece que as “ações dos engenheiros do caos não explicam tudo, longe
disso” (2020, p 25), afinal, como vimos, a internet é ambivalente. O fato fundamental que se
evidencia em sua obra é como as redes se tornaram ambiente propício à emergência de
posicionamentos extremos, amplificando-os, e o papel que elas assumem na interdição do
diálogo com o contraditório. Esse é um fenômeno de origens mais primitivas do que muitas
vezes se supõe.
A neurociência tem oferecido importantes contribuições para se compreender melhor
como esses processos se reproduzem. Quando falamos em filtros, em “bolhas” sociais,
estamos falando de fenômenos sociais que muitas vezes têm origens na forma como nosso
cérebro se adaptou à evolução da vida em sociedade. E, embora a neurociência cada vez mais
afirme a plasticidade de nossa mente, quando falamos na evolução do cérebro estamos
falando sobretudo no milhão de anos que transcorreram desde que nossos ancestrais remotos
passaram a andar sobre duas pernas em remotas savanas africanas. Da Revolução Francesa
pra cá, evolutivamente não se passou um átimo.
Em seu Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas, Leonard Mlidinow
expõe um perfil de nossa mente que faz repensar muitas certezas que alimentamos. Num
trecho encantadoramente tentador de se citar, o autor nos diz:
Mas como isso ocorre? A neurociência, conforme nos ensina Mlodinow, pode explicar
em grande parte esse comportamento. Através de estudos de mapeamento do cérebro,
cientistas descobriram que “ao acessar dados emocionalmente relevantes, nosso cérebro, de
modo automático, inclui nossos desejos, sonhos e vontades” (MLODINOW, 2013, p. 243).
Quando temos interesses emocionais em algum tema, nosso cérebro analisa os dados
relevantes e constrói suas conclusões por “um processo físico diferente”. É o que se chama
raciocínio motivado.
[…] o raciocínio motivado envolve uma rede de regiões do cérebro que não
está associada ao raciocínio “frio”, que inclui córtex orbitofrontal e córtex
cingulado anterior – partes do sistema límbico –, e córtex cingulado
posterior e pré-cúneo, partes ativadas quando fazemos julgamentos morais
carregados de emoção. (MLODINOW, 2013, p. 244)
seu lugar no mundo, e para muitos o ritmo e magnitude das mudanças podem ser alienantes”
(HOGG, 2019, p. 43). Essa crise da própria identidade e localização no mundo é perceptível
nos fenômenos analisados no capítulo 1 e também facilmente identificáveis no bolsonarismo.
Em parte, ela nos ajuda a compreender a ferocidade com que as diferenças e o contraditório se
explicitam nos conflitos sociais, políticos e culturais em curso no Brasil. Como acrescenta
Hogg, há pessoas que lidam bem com um cenário social em constante mudança, que possuem
os meios materiais e culturais para navegar as mudanças, sem o risco; contudo, há uma grande
maioria que – para ficarmos nos termos sociológicos – estão à margem do processo de
globalização, alheias a seus significados e benefícios, embora sofram no seu cotidiano as
implicações dessas transformações.
A breve revisão desses estudos aponta para um cenário muito mais complexo que o da
manipulação eleitoral que chegou a ser proposto por ocasião da eleição de 2018. No Brasil, a
presença da internet é significativa, como depreende-se dos dados levantados por Nicolau, de
pesquisa de 2017 do IBGE, que compõe o seguinte quadro:
O que argumentamos, e que nos parece demonstrado pela discussão precedente, é que a base
conservadora do bolsonarismo lhe permitiu estar em condições de se constituir num polo
aglutinador do antipetismo. Vimos como essa base se consolida a partir de 2013. Vimos sua
composição heterogênea. A agenda de costumes foi central, sim, sobretudo por ter mobilizado
em torno de um candidato “outsider” uma parcela do eleitorado grande o bastante para situá-
lo como alternativa viável aos olhos do público. Para isso, contribuiu a agenda ideológica da
direita tradicional brasileira que, aproximando-se do que Fraser chama de neoliberalismo
progressista, convergia, ao menos parcialmente, com as políticas de reconhecimento dos
governos petistas. Essa convergência se dava nos mesmos termos que Fraser delimitou, de um
reconhecimento baseado na meritocracia mais que no combate às desigualdades. Contudo, foi
explorada pela retórica bolsonarista, que trabalhou no sentido de realocar a imagem do PSDB,
vinculando-o ao PT no imaginário de seus eleitores.
A adesão das esquerdas ao acirramento da pauta de costumes – que tanto demonstra
uma honesta intenção em avançar na garantia dos direitos de minorias oprimidas e na
concessão de um merecido maior espaço no debate público – pode ter evidenciado certa
ingenuidade política. Não obstante todos os avanços conquistados pela sociedade brasileira
nessas questões, como vimos sua implementação não se deu por meio ampla mobilização ou
adesão popular, antes por meio de medidas institucionais de uma elite política aparentemente
mais liberal quanto aos costumes que o conjunto da população a que se propõe representar.
Podemos ilustrar as suposições levantadas através de alguns exemplos recentes. Em
2005, realizou-se um referendo sobre a proposta contida no Estatuto do Desarmamento de
proibir o comércio de armas e munições no Brasil, contida em seu artigo 35. O Estatuto fora
aprovado e sancionado em 2003. O Estatuto havia sido aprovado com facilidade no
Congresso, contando com o apoio das principais legendas governistas e da oposição. No
referendo, a Rede Globo se posicionou-se oficialmente pelo Sim, ou seja, pela manutenção do
112
21 Ibope, 2013. 91% dos brasileiros apoiam a PEC das domésticas. Em:
https://www.ibopeinteligencia.com/noticias-e-pesquisas/91-dos-brasileiros-apoiam-a-pec-das-domesticas/ .
114
governo Dilma. Esse processo de ressignificação se dá sobre a realidade mas também a partir
dela. Embora fosse o governo Dilma o adversário da oposição conservadora na Grande Onda,
o contexto em que se deram as disputas hegemônicas de 2013 forçou que governos dos mais
variados matizes entrassem na rota dos protestos, afinal grande parte dos serviços públicos era
responsabilidade de governos nos âmbitos estadual e municipal e, como as bases governistas
faziam questões lembrar, a corrupção não era fenômeno exclusivo das gestões petistas. A
forma como se deu a construção de uma maioria política nas ruas teve, portanto, duas
importantes consequências. Uma, foi que tanto fragilizaram tanto a credibilidade dos
governos petistas quanto a de seus opositores. Outra, foi que permitiu que as esquerdas
permanecessem nas ruas até o fim dos protestos, embora sua derrota na Grande Onda fosse
flagrante.
Uma pesquisa, realizada entre o primeiro e segundo turnos das eleições de 2018 22,
aferiu que cerca de dois terços dos eleitores de Bolsonaro eram contra a política de
privatizações, núcleo da proposta econômica de seu ministro da Economia, que deteve na
campanha – pela voz do própria candidato – ampla autorização para expor os projetos
econômicos de um possível governo Bolsonaro. Longe de comprovar a tese de Moura e
Corbellini de que a questão econômica não foi um tema decisivo em 2018, esse dado indica
para outra possibilidade: a do arranjo político entre o conservadorismo moralista, o
antipetismo e a agenda rentista, sendo que esta conseguiu se impôr mesmo contra um
sentimento majoritário do eleitorado bolsonarista quanto a temas econômicos. Se para
parcelas significativas do eleitorado a pauta de costumes expressava, por meios indiretos, seus
sentimentos e aspirações, para o outro terço dessas a privatização e o aprofundamento da
agenda liberal eram o fator central que os conduzia do antipetismo para o bolsonarismo. A
reação empolgada dos mercados financeiros à perspectiva de vitória de Bolsonaro 23 elucida
dois fatos: não apenas sua política econômica estava clara para quem quisesse ver, como
também ela obteve grande adesão do círculos financeiros nacionais.
Sequer a agenda ideológica e de costumes de Jair Bolsonaro era majoritária na
sociedade brasileira em fins de 2018. À época, a maioria dos eleitores defendia o ensino de
22 Poder 360. Bolsonaro se diz liberal, mas só 37% de seus eleitores querem privatização. Disponível
em https://www.poder360.com.br/analise/bolsonaro-se-diz-liberal-mas-so-37-de-seus-eleitores-querem-
privatizacao/ . Consulta em: 04/01/2019.
23 BBC Brasil. Eleições 2018: Por que Bolsonaro anima o mercado financeiro? Em: https://www.bbc.com/
portuguese/brasil-45986279. Consulta em: 27/10/2018.
115
educação sexual nas escolas e o debate de temas políticos24, dois ponto que foram centrais no
discurso de Bolsonaro para o eleitorado mais conservador.
A opinião de que os temas de teor econômico tiveram menor importância na eleição de
2018 parece decorrer de uma percepção errada dos significados do debate realizado no âmbito
das redes sociais da internet. Embora a agenda conservadora tenha sido decisiva na
mobilização do contingente de guerra de Bolsonaro nas mídias sociais – alimentado, orientado
e estimulado pelo recurso de robôs virtuais e fakenews, como se tornou evidente –, tal base
não foi capaz de sozinha construir as condições necessárias para a vitória.
A chave para o entendimento de como a questão econômica foi interpretada nas
eleições de 2018 talvez esteja mais acessível através da abordagem de Sousa (2020) e outros.
A opção das elites por uma regressão autoritária e moralista não era um plano prioritário. Foi
nas camadas médias que o projeto de Bolsonaro conseguiu se viabilizar e se afirmar em
direção ao segundo turno. A opção por Bolsonaro acaba sendo uma aliança oportunista de
conveniência das elites com a classe média no bolsonarismo, incluídos aí o militarismo e
outros segmentos que compuseram sua base heterogênea. Tal unidade se dá diante da
necessidade comum de derrotar o PT.
Em sua análise sobre o capital no século XXI intitulada A loucura da razão
econômica (2018), David Harvey expõe os mecanismos pelos quais o valor agregado pela
produção é distribuído entre os mais diversos atores da economia global. A distribuição final
do mais valor produzido pelo trabalho se espalha ao longo da cadeia produtiva indo do
produtor direto, o capitalista empresário do setor produtivo, ao Estado via tributos, aos
comerciantes via divisão dos lucros e ao sistema financeiro através dos juros. Este último
desempenha nos ciclos produtivos um papel essencial ao normalizar as temporalidades
distintas de cadeias de produção, cujos tempos de reprodução podem variar grandemente. Ao
organizar a distribuição de capitais e permitir que recursos não fiquem paralisados entre o
período de produção e realização de mais valor, o sistema financeiro aumenta a
disponibilidade de capital para investimento, bem como gera todo um mercado paralelo
baseado na expectativa de ganhos futuros.
Vimos brevemente, no capítulo 1, como as transformações recentes do capitalismo
impactam sobre o conjunto da dinâmica social. Um dos grandes feitos da economia marxista é
demonstrar como a base do valor que circula pelos mercados se constitui através do trabalho.
Se todo o valor distribuído nas esferas econômicas provém do trabalho, há duas formas
24 Folha de São Paulo. Maioria no país defende educação sexual e discussão sobre política nas escolas.
Em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/01/maioria-no-pais-defende-educacao-sexual-e-discussao-
sobre-politica-nas-escolas.shtml . Consulta em 08/01/2019.
116
essenciais de obter maior lucratividade: o aumento das horas trabalhadas por cada indivíduo e
o incremento na produtividade da hora trabalhada. Estamos aqui diante dos clássicos
conceitos de mais valia absoluta e relativa.
Ocorre que a participação do capital financeiro sobre o valor produzido vem crescendo
década após década, como aponta Harvey. Com a redução de suas parcelas no montante do
mais valor produzido, produtores e comerciantes precisam recompor as margens de
rendimento. Uma das formas de recomposição a que se tem recorrido é a financeirização do
próprio capital produtivo. Empresas alocam seus recursos nos mercados financeiros em busca
de lucros imediatos e de simples realização, num processo de hibridização entre capital
produtivo e financeiro que em última instância aumenta as pressões sobre o primeiro, de onde
surge o valor distribuído. A pressão do capital financeiro, de forma resumida, leva os setores
industriais e comerciais à busca desesperada por recompor sua própria participação na
distribuição do mais valor. Daí decorrem duas possibilidades que são o pilar das variantes
mais diversas do neoliberalismo: a redução do contingente de valor distribuídos aos
trabalhadores via salários e ao Estado via tributos.
As políticas públicas – sobretudo aquelas voltadas aos serviços essenciais e à proteção
social – são ferramentas redistributivas essenciais para a reprodução social no capitalismo,
cujos impactos constatamos anteriormente ao discutir as políticas de bem-estar social no
regime de reprodução fordista-keynesiano. O novo padrão de acumulação financeirizado
hegemônico desde os anos 1970 – o neoliberalismo – necessita, como vimos, reduzir os
custos da reprodução social contidos nos salários e tributos para manter o sistema produtivo
viável, tendo em vista a busca individual do lucro pelo capitalista do setor produtivo.
Um dos mecanismos adotados é a transferência da responsabilidade pela reprodução
social dos sistemas de proteção do Estado para camadas marginalizadas da sociedade. Esse
fenômeno está explicitado na denúncia de Fraser (2019b) sobre o papel do trabalho doméstico
não remunerado na reprodução social como forma de intensificar a exploração do trabalho das
mulheres. Outro é a desregulação das relações de trabalho e a constante migração da alocação
de mão de obra. Em ambos, é o Estado o agente central, quer como mediador e regulador das
relações trabalhistas, quer como provedor das políticas de proteção social. Desta forma, é o
papel do Estado na economia o centro das disputas em torno do projeto neoliberal. Questões
identitárias, direitos de minorias – no que se limita ao direito meritocrático de competir, ainda
que em bases desiguais – e liberdades civis não são necessariamente basilares para o modelo
econômico neoliberal. Assim compreendemos que a polarização entre o neoliberalismo
progressista e o populismo reacionário possa se dar nos limites da hegemonia neoliberal.
117
Diversas ações de Bolsonaro no período que antecede sua eleição vão no sentido da
intensificação dessa agenda neoliberal no Brasil. Desde seus votos favoráveis à reforma
trabalhista e à “PEC do teto dos gastos” até a reforma previdenciária e a proposição da
Carteira de Trabalho verde e amarela, uma aberração na qual o trabalhador aderiria a um
regime de trabalho à margem das garantias – as ainda vigentes – da CLT. Contudo, a mais
importante sinalização de Bolsonaro para o mercado se deu por sua relação com atual
ministro da Economia Paulo Guedes.
Paulo Guedes é egresso da Universidade de Chicago, berçário de intelectuais e ideias
neoliberais. Atuou no mercado de especulação financeira e foi professor no Chile, durante a
ditadura de Pinochet. Ficou conhecido durante a campanha presidencial de 2018 como “posto
Ipiranga” .
À menção à publicidade dos postos Ipiranga e seu jargão, pergunta lá, é boa metáfora
das relações entre Bolsonaro e Guedes. As constantes declarações de Bolsonaro informavam
seus eleitores de que ele sabia que não era conhecedor de economia. Seu argumento dizia que
para “assuntos técnicos” ele se valeria da indicação de ministros técnicos, não políticos, como
vimos na transcrição de sua entrevista ao Jornal Nacional. Fica patente o que interessa nessas
declarações: que Bolsonaro indicaria para seu ministro um neoliberal convicto e que não se
meteria em seus assuntos. O mercado tanto comprou essas ideias como cobrou por elas,
indício disso são as oscilações negativas da bolsa que viraram rotina sob o governo Bolsonaro
toda vez que o presidente “se mete” nos assuntos do ministro da Economia.
Vem de longa data o desejo dos mercados financeiros em afastar as instâncias de
decisões econômicas da influência política, ou seja, democrática. A autonomia do Banco
Central, por exemplo, tem sido tema recorrente na agenda política brasileira. A presença dos
interesses de mercado de forma orgânica nas relações com os agentes do Estado remonta, em
sua configuração atual, ao à Ditadura Militar. Reafirmando valores do período autoritário, o
programa bolsonarista remete aos “anéis político-burocráticos” postulados por Fernando
Henrique Cardoso. Segundo Spinelli e Silva, trata-se “da solidarização dos interesses privados
das grandes empresas multinacionais e brasileiras com os interesses da burocracia
do aparato estatal e das grandes empresas estatais, convertendo-se numa aliança
poderosa que substitui o pacto democrático e os partidos da democracia
representativa” (SPINELLI; SILVA, 2017, p. 7).
Já na campanha, Bolsonaro declarou que pretendia criar um ministério dedicado à
desestatização. Não por acaso, a bolsa subiu. As medidas tributárias de Bolsonaro também
possuem caráter regressivo. Congelamento da tabela do Imposto de Renda, proposta de taxar
118
livros e itens da cesta básica – todas medidas que atingem os mais pobres. Para convencer
parcelas importantes do eleitorado, afetadas pelo desemprego crescente e redução de renda,
Bolsonaro sugeriu, revisitando o velho e superado receituário neoliberal, que seria preciso
menos direitos para se ter mais empregos.
A linha econômica adotada por Bolsonaro, via a cooptação de ou por Paulo Guedes, é
tragicamente idêntica a que se adotou na Inglaterra de Tatcher e nos EUA de Reagan.
Tragicamente porque conhecemos os resultados de tais políticas. Como registra, sobre o
governo Reagan, Francis Wheen, as medidas liberalizantes iam no sentido da concentração de
renda e redução do amparo ao pobres e trabalhadores.
O resultado dessa inflexão, como registra Wheen, foi o salto do déficit federal de 900
bilhões para 3 trilhões de dólares ao longo dos oito anos do mandato de Reagan. Mas nada
disso foi o bastante para afastar os discípulos de Friedrich von Hayek e Milton Friedman de
suas impostura. A fé no mercado era tamanha que em 1990 o governo Tatcher adotou uma
proposta controversa – talvez por não haver mais o que destruir – de instituir um imposto
sobre o voto. Segundo Wheen, isso contribuiu para sua posterior queda.
A falácia de que um Estado menor favorece o crescimento econômico foi contestada
de forma contundente por Laura Carvalho ao analisar o desempenho da economia brasileira
neste século (CARVALHO, 2018). Outro estudo recente que desmistifica a fé neoliberal é o
de Mariana Mazzucato, O Estado empreendedor. Mazzucato diz que
Outro movimento posterior que mexeu com as bases bolsonaristas foi o rompimento
do governo com a Lava Jato e a demissão do ministro Sérgio Moro, figura central no processo
judicial que culminou no impedimento da candidatura de Lula em 2018, outro fator cujo peso
nas eleições seguirá indeterminado. Reforça nossa discordância de que a eleição de 2018
tenha sido entre o lulismo e o partido da lava jato o fato de terem sido poucos e breves os
impactos do rompimento entre governo e Lava Jato, e mesmo a aproximação do primeiro ao
centrão.
A frente ampla liberal conservadora tateia em busca de preservar sua maioria eleitoral.
A compreensão desse processo caberá a estudos futuros que certamente virão. Por ora, resta-
nos a conclusão de que o bolsonarismo foi, nas eleições de 2018, o representante efetivo da
direita brasileira. Tendo como centro gravitacional o antipetismo, pôde esse novo campo da
direita brasileira ocupar a liderança da onda conservadora que culminou na derrota do lulismo
nas urnas.
121
CONCLUSÃO
Desde os anos 1970 a democracia liberal em todo o mundo vem enfrentando grandes desafios
em manter as bases de sua legitimação. As taxas de abstenção crescentes e os decrescentes
índices de aprovação das instituições democráticas são apenas parte dos elementos que
expressam a crise da democracia liberal.
Em grande parte do mundo, nos últimos anos, vimos a ascensão de um populismo de
direita que converge para aquilo que chamamos, nos passos de Nancy Fraser, de
neoliberalismo reacionário. Trata-se de um arranjo político e ideológico que – preservando as
políticas liberalizantes de interesse do mercado – volta seus esforços para mobilizar parcelas
da sociedade excluídas dos benefícios da globalização econômica e cultural. São sobretudo os
trabalhadores de baixa qualificação, moradores de regiões com economias menos complexas,
aqueles que sofrem as consequências negativas das transformações por que passam as
sociedades globais.
A população dos países das democracias avançadas viu, a partir dos anos 1970, seus
padrões de vida estagnarem e em muitos casos regredirem. Novas gerações já não encontram
no mercado de trabalho perspectivas de ascensão econômica e social. Aliado a isso, os
instrumentos de proteção do Estado às camadas menos abastadas da sociedade são
enfraquecidos ou extintos. O quadro de desamparo se agrava diante da incapacidade de os
Estados nacionais reagirem às consequências do fluxo descontrolado de capitais e da
hegemonia neoliberal que impõem uma severa restrição à capacidade de atuação dos governos
na economia.
Os resultados das décadas de hegemonia neoliberal – aumento da pobreza e das
desigualdades, instabilidade e sentimento de exclusão crescentes entre a população – reforçam
um quadro econômico e social em que chauvinismos dos mais diversos, xenofobia e
intolerância cultural assumem proporções políticas preocupantes. Soluções mágicas, eleição
de inimigos internos e externos e toda uma vasta gama de conteúdos retrógrados alimentam e
são alimentados pelo neoliberalismo reacionário. A internet possibilitou a mobilização e
organização das bases reacionários, à margem do pacto progressista neoliberal das elites,
apresentando-se assim como um campo antissistema.
No Brasil a breve e corrente experiência democrática da Nova República também se
encontra diante de graves desafios. Os impactos da articulação global de forças políticas
reacionárias se manifestaram nas relações perniciosas entre a Lava Jato e agentes estrangeiros.
122
como quadro técnico com autonomia mesmo diante do futuro presidente indicava, já na
campanha, o aprofundamento do projeto de afastamento dos fóruns de decisão das políticas
econômicas dos espaços da democracia, um novo tipo de insulamento, onde a tecnocracia se
vê protegida da pressão social e política pela presença um chefe de Estado forte e autoritário.
O programa econômico da nova frente ampla conservadora é marcado por um
neoliberalismo extremo e anacrônico. Ataques às bases da ação do Estado sobre a economia, a
recorrente e agora ascendente proposta de autonomia do Banco Central, submissão dos
interesses nacionais aos norte-americanos, enfraquecimento das relações multilaterais e do
Mercosul – enfim, um amplo conjunto de medidas e ações que buscam reduzir a graus
inéditos a autonomia política e econômica do país diante dos interesses do capital financeiro e
dos EUA.
Ao mobilizar amplas parcelas do conservadorismo brasileiro, Bolsonaro pôde se por
em condições de visibilidade e viabilidade políticas para se apresentar como principal
opositor do petismo. A adesão do bolsonarismo à fé neoliberal consagrou a aliança de classes
que permitiria sua eleição, sobretudo diante do papel interditor exercido pelo capital
financeiro no Brasil, que se verifica mesmo sobre a esquerda, como demonstrado a respeito da
Carta ao Povo Brasileiro de 2002.
Antes de derrotar o PT, Bolsonaro teve que derrotar os principais partidos da direita
brasileira em suas próprias bases. A principal vítima dessa conquista de posições foi o maior
partido da oposição, o PSDB. Ao ganhar o campo da direita, o bolsonarismo pôde se
constituir em novo polo aglutinador do antipetismo, vencendo o plebiscito do lulismo sem
Lula.
Assim, julgamos que um aspecto central na ascensão de Bolsonaro foi a capacidade de
aglutinar em torno de sua candidatura diversos segmentos sociais, inicialmente pautados por
uma agenda de costumes conservadora e um discurso autoritário pregador da violência estatal
como solução mágica para os graves problemas da sociedade brasileira. O contexto das ações
desestabilizadoras nos marcos da guerra híbrida e sua articulação contribuíram ao formar um
ambiente favorável ao discurso bolsonarista, que já vinha se articulando e mobilizando desde
a redemocratização, ainda que com outros contornos e por outras vozes. O uso das redes
sociais e da prospecção de dados de seus usuários foi mundialmente utilizado pelo
neoliberalismo reacionário para mover os anseios e a indignação da população para
confluência a políticas extremistas de direita. Não a toa a semelhança entre métodos e retórica
do bolsonarismo se comparados aos de outras lideranças da extrema-direita mundial. Embora
desde 2010 o PSDB tenha adotado uma linha política conservadora no que concerne aos
125
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