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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ANGELO GIROTTO NETO

A ONDA CONSERVADORA
E AS ELEIÇÕES DE 2018 NO BRASIL

NATAL, RN
2020
ANGELO GIROTTO NETO

A ONDA CONSERVADORA
E AS ELEIÇÕES DE 2018 NO BRASIL

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos
requisitos para obtenção do título de Doutor em
Ciências Sociais, com concentração na área Estado,
Governo e Políticas Públicas.

Orientador:
Prof. Dr. José Antônio Spinelli Lindoso

Natal, RN
2020
UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede
Catalogação da Publicação na Fonte

Girotto Neto, Angelo.


A voz das ruas e a rearticulação da ideologia conservadora / Angelo Girotto Neto. – Natal,
RN, 2014.

145 f : il.

Orientador: José Antonio Spinelli Lindoso.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de


Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais.

1. Protestos – Brasil – 2013 – Dissertação. 2. Hegemonia – Dissertação. 3. Política – Brasil.


I. Lindoso, José Antonio Spinelli. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III.
Título.

RN/UF/BCZM CDU 323.269.3


ANGELO GIROTTO NETO

A ONDA CONSERVADORA
E AS ELEIÇÕES DE 2018 NO BRASIL

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos
requisitos para obtenção do título de Doutor em
Ciências Sociais, com concentração na área Estado,
Governo e Políticas Públicas.

Aprovado em: ____/____/____ .

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________
Prof. Dr. José Antônio Spinelli Lindoso
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
(Orientador)

__________________________________________________
Prof. Dr. João Emanuel Evangelista de Oliveira
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

__________________________________________________
Prof. Dr. Homero de Oliveira Costa
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

__________________________________________________
Prof. Dr. Raimundo Nonato Cunha de França
Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT)

_________________________________________________
Prof. Dr. Pablo Moreno Paiva Capistrano
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN)
Dedico este trabalho ao meu mestre,
mestre Spinelli, ser humano extraordinário,
mentor e amigo.
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao professor Spinelli, pela orientação valiosa, por confiar em meu trabalho e pelas
conversas inspiradoras que sempre fazem o tempo passar rápido e sobretudo pela imensa
generosidade que é sua principal característica; espero ter feito um trabalho à altura do mestre.

Ao professor Homero Costa, meu orientador quando da qualificação deste trabalho, pessoa
atenciosa, cujos artigos e orientações foram de grande valia na pesquisa.
Aos professores João Emanuel Evangelista, que acompanha minhas pesquisas desde o mestrado;
Raimundo de França, cujos comentários na defesa de minha dissertação foram tão valiosos; Pablo
Capistrano pelas inúmeras e frutíferas recomendações por ocasião da qualificação desta pesquisa de
doutorado, que muito ajudaram a desenvolver as bases da pesquisa subsequente, identificando
falhas e encontrando novos caminhos. Todos fizeram parte desta caminhada.
A Yuri Borges, Leon K. Nunes, Daniel Costa, Ramon Alves e Djamiro Costa, aos quais devo a
oportunidade ter evitado muitos erros a mais – mas, sobretudo, pela indispensável amizade. E aos
amigos que, de tão amigos, perdoarão a omissão de seus nomes.
Aos colegas do PPGCS Jefferson, Nicholas e Otânio, vocacionados servidores públicos e pessoas
excelentes.
A todos os colegas da Comunica, sobretudo Neto e Maurity, que foram compreensivos e solidários
nos momentos de maior necessidade.
Ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte e a UFRN.
“Para mim, é muito melhor compreender o universo
como ele realmente é do que persistir no engano, por
mais satisfatório e tranquilizador que possa parecer.”

“Mentiras, fraudes, pensamentos descuidados,


imposturas e desejos mascarados como fatos não se
restringem à magia de salão, nem a conselhos
ambíguos sobre assuntos do coração. Infelizmente, eles
estão infiltrados nas questões econômicas, religiosas,
sociais e políticas dos sistemas de valores dominantes
em todas as nações.”
(Carl Sagan)
RESUMO

O presente estudo visa às eleições presidenciais de primeiro e segundo turnos de 2018, mais
especificamente à vitória do candidato do Partido Social Liberal (PSL), Jair Messias Bolsonaro.
Nosso objetivo mais amplo é investigar os fatores políticos e ideológicos que contribuíram para o
desfecho do pleito. Nosso problema: qual o sentido político e ideológico da eleição de Jair Messias
Bolsonaro, no contexto do fenômeno contemporâneo a que chamamos por onda conservadora? Para
tanto, as investigações acerca de nosso objeto partem da problematização da eleição em questão,
que nos conduziu a três fatores que julgamos preponderantes em nossa hipótese explicativa. Nossa
hipótese é que três movimentos da realidade histórica foram determinantes no resultado da eleição
objeto deste estudo: primeiro, uma crise de legitimidade das democracias liberais que vem se
acentuando em todo o ocidente a partir dos anos 1970, caracterizada pela ascensão ao poder em
diversos países de um novo populismo de direita, cujos desdobramentos no Brasil são
condicionados e dirigidos por nossa peculiar trajetória democrática e, especificamente no caso
brasileiro, os eventos de junho de 2013 foram catalisadores de um novo ideário conservador;
segundo, que a polarização histórica de dois projetos concorrentes no Brasil – um melhor
representado pelo PSDB, o outro pelo PT, com alternância de poder entre ambos – encontrou,
marcadamente a partir de junho de 2013, limites objetivos e subjetivos para seguir reproduzindo o
consenso social; por fim, a crise de legitimidade e a incapacidade de solucionar os problemas
percebidos pela sociedade – de onde decorreu um declínio dos principais partidos tradicionais da
direita brasileira – permitiu a ascensão ao centro das disputas hegemônicas de um novo
conservadorismo que teve no bolsonarismo sua principal força aglutinadora, produzindo um pacto
ultraliberal e conservador que levou Bolsonaro à vitória.

Palavras-chave: Bolsonarismo; Lulismo; Política Brasileira; Onda Conservadora; Neoliberalismo


Reacionário.
ABSTRACT

This study aims at the first and second round presidential elections of 2018, more specifically the
victory of the candidate of the Social Liberal Party (PSL), Jair Messias Bolsonaro. Our broader
objective is to investigate the political and ideological factors that contributed to the outcome of the
election. Our problem: what is the political and ideological sense of the election of Jair Messias
Bolsonaro, in the context of the contemporary phenomenon that we call the conservative wave?
Therefore, the investigations about our object start from the problematization of the election in
question, which led us to three factors that we consider to be predominant in our explanatory
hypothesis. Our hypothesis is that three movements of the historical reality were determinant in the
result of the election object of this study: first, a crisis of legitimacy of liberal democracies that has
been accentuated throughout the West since the 1970s, characterized by the rise to power in several
countries a new right-wing populism, whose developments in Brazil are conditioned and driven by
our peculiar democratic trajectory and, specifically in the Brazilian case, the events of June 2013
were catalysts for a new conservative ideal; second, that the historical polarization of two
competing projects in Brazil - one better represented by the PSDB and the other by PT, with
alternation of power between them - found, starting in June 2013, markedly objective and subjective
limits to continue reproducing the social consensus ; finally, the crisis of legitimacy and the
inability to solve the problems perceived by society - which led to a decline in the main traditional
parties of the Brazilian right - allowed the rise to the center of the hegemonic disputes of a new
conservatism that had its main strength in bolsonarismo agglutinating, producing an ultraliberal-
conservative pact that led Bolsonaro to victory.

Key words: Bolsonaro; Lula and PT; Brazilian Policy; Conservadorism; Reationary Neoliberalism.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

1 2018: DESAFIOS INTERPRETATIVOS 18


1.1 Possíveis sentidos da eleição de Bolsonaro 20
1.1.1 Lulismo contra Partido da Lava Jato 23
1.1.2 Guerra híbrida ao Brasil 26
1.1.3 Revolta contra o neoliberalismo petista? 31
1.2 Problemas para a compreensão da eleição de 2018 33
1.2.1 Ruptura com o alinhamento eleitoral da Nova República? 34
1.2.2 Lulismo: contra-hegemonia ou hegemonia neoliberal? 42

2 O BRASIL E A REGRESSÃO DEMOCRÁTICA 45


2.1 2013 e os impulsos autoritários 46
2.2 Democracia: vocação condicionada 58
2.3 Bolsonaro e a democracia 65

3 NOVA POLARIZAÇÃO ESQUERDA-DIREITA 71


3.1 2002: a vez da esquerda e a Carta ao Povo Brasileiro 72
3.2 Declínio do lulismo 75
3.3 2015: declínio da direita tradicional, ascensão da extrema direita 80
3.4 MBL, think thanks e a força das redes sociais na internet 85

4 O NEOLIBERALISMO REACIONÁRIO BRASILEIRO 92


4.1 Para além das contingências: o voto ideológico em 2018 93
4.1.1 2018: nova conformação da polarização esquerda-direita 94
4.2 Nem só de robôs se faz uma rede social 104
4.3 Frente ampla conservadora 111
4.3.1 O pacto liberal conservador 113

CONCLUSÃO 121
BIBLIOGRAFIA 126
FONTES NA INTERNET 131
11

INTRODUÇÃO

O presente estudo visa às eleições presidenciais de primeiro e segundo turnos de 2018, mais
especificamente à vitória do candidato do Partido Social Liberal (PSL), Jair Messias
Bolsonaro. Nosso objetivo mais amplo é investigar os fatores políticos e ideológicos que
contribuíram para a eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República em 2018, o que nos
propomos a realizar interpretando a eleição brasileira de 2018 no contexto da ascensão
mundial da direita populista e trabalhando na construção inicial de uma conceituação daquilo
a que chamamos por bolsonarismo, bem como identificando nos processos históricos do
Brasil os fatores objetivos e subjetivos que condicionaram o pleito de 2018. O problema que
norteia este estudo pode ser assim definido: qual o sentido político e ideológico da eleição de
Jair Messias Bolsonaro, no contexto do fenômeno contemporâneo da onda conservadora?
Para tanto, as investigações acerca de nosso objeto partiram da problematização da eleição em
questão, que nos conduziu a três fatores que julgamos preponderantes em nossa hipótese
explicativa. Nossa hipótese é que esses três movimentos da realidade histórica foram
determinantes no resultado da eleição objeto deste estudo: primeiro, uma crise de legitimidade
das democracias liberais, que vem se acentuando em todo o ocidente a partir dos anos 1970,
caracterizada pela ascensão ao poder em diversos países de um novo populismo de direita,
cujos desdobramentos no Brasil são condicionados e dirigidos por nossa peculiar trajetória
democrática e, especificamente no caso brasileiro, os eventos de junho de 2013 foram
catalisadores da rearticulação do ideário conservador, conforme proposto em nosso estudo
anterior sobre o período (GIROTTO, 2014); segundo, que a polarização histórica de dois
projetos concorrentes no Brasil – um melhor representado pelo PSDB, o outro pelo PT, com
alternância de poder entre ambos – encontrou, marcadamente a partir de junho de 2013,
limites objetivos e subjetivos para seguir reproduzindo o consenso social; por fim, a crise de
legitimidade e da capacidade de solucionar os problemas percebidos pela sociedade – de onde
decorreu um declínio dos principais partidos tradicionais da direita brasileira – permitiu a
ascensão ao centro das disputas hegemônicas de um novo conservadorismo que teve no
bolsonarismo sua principal força aglutinadora, produzindo um pacto ultraliberal no plano
econômico e moralmente conservador que levou Bolsonaro à vitória.
Adotaremos como procedimentos metodológicos para a construção das análises e
avaliação da hipótese uma revisão de bibliografia, complementada pela análise de dados
secundários. Cada qual desses procedimentos surge ao longo dos capítulos à medida que se
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torne necessário para a consecução de seus objetivos específicos e do objetivo geral deste
trabalho. Assim, o plano dos capítulos não segue uma ordenação cronológica, buscando,
antes, alcançar cada qual dos objetivos complementares para culminar na abordagem efetiva
do objetivo central da pesquisa. Dessa abordagem decorre o seguinte plano dos capítulos e
seus respectivos procedimentos metodológicos:
 O capítulo 1 (2018: desafio interpretativo e problemas da pesquisa) se dedica à crítica
de algumas hipóteses levantadas no sentido de explicar a eleição de 2018, dando
sequência à problematização do objeto. A opção por não incluir esta discussão na
presente introdução se dá pela decisão de unir numa mesma parte a revisão de obras
selecionadas e as questões decorrentes dessa leitura, o que tornaria nossa introdução
demasiado longa, ao antecipar algumas discussões mais bem alocadas no entremeio do
texto final. Desta forma, a problematização da pesquisa se torna completa apenas no
capítulo 1.
 O capítulo 2 (O Brasil e a regressão da cidadania) busca revisar e articular a literatura
sobre dois movimentos históricos que impactam no atual debate acerca da democracia
brasileira: a ascensão no plano global de uma direita populista marcadamente
autoritária e a rearticulação da ideologia conservadora no Brasil, cujo evento mais
destacado foram os protestos da Grande Onda de 2013. Neste capítulo, retomamos e
atualizamos nossas conclusões da pesquisa que culminou na dissertação A voz das
ruas e a rearticulação da ideologia conservadora, de 2014. Procuraremos demonstrar
as consequências políticas, ideológicas e institucionais concernentes a esse novo
momento da vida republicana brasileira.
 O capítulo 3 (Nova polarização esquerda-direita) se concentra na análise do período
designado por lulismo, situando-o no contexto das disputas eleitorais da Nova
República. Procuraremos traçar os aspectos centrais da dinâmica econômica e social
do Brasil no período, buscando compreender a conformação de classes e seus
movimentos na estrutura econômica nacional. Como ponto referencial da análise,
situaremos os eventos que entre 2015 e 2016 culminaram no impeachment da
presidenta Dilma e na derrocada do lulismo. É nesse contexto que buscaremos traçar
um paralelo entre o desfecho dos protestos de junho de 2013 e a ascensão no cenário
político-eleitoral de uma nova direita.
 No capítulo 4 (Um novo centro gravitacional para a direita brasileira) dá-se
sequência ao capítulo anterior no intuito de demonstrar como pôde o bolsonarismo se
constituir em principal alternativa ao lulismo. O propósito desta seção é apresentar e
13

debater as principais ideias que inspiraram os grupos sociais mais ativos da onda
conservadora. Para tanto, faremos também uma breve análise da conformação e do
comportamento desses grupos, apoiados numa revisão de bibliografia acerca da
dinâmica social e política do Brasil contemporâneo, partindo do conceito de lulismo.
Discutiremos no primeiro plano os estudos de André Singer, Marcio Pochmann, Jairo
Nicolau, Marina Lacerda, Jessé de Souza, Fernando Henrique Cardoso, dentre outros.
Nesta seção, buscaremos não apenas identificar a dinâmica social e econômica que
conforma os principais grupos sociais que sustentam o campo conservador em análise
como também analisar os elementos socioeconômicos que conformam as bases de um
projeto político-nacional conservador. Como se configura a aliança liberal
conservadora que saiu vitoriosa das urnas?

Uma das muitas novidades que acompanharam a vitória eleitoral de Bolsonaro foi o fim da
polarização entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB), que pautou os pleitos nacionais desde 1994. Aos dois governos do PSDB
com a presidência de Fernando Henrique Cardoso se sucederam quatro vitórias petistas, todas
confrontando o PSDB no segundo turno. A última delas, a vitória de Dilma V. Rousseff sobre
Aécio Neves em 2014 foi das mais polarizadas e já trouxe em si vastas influências dos
eventos políticos de 2013.
Logo em seu primeiro ano, o segundo governo de Dilma enfrentou intensas
mobilizações políticas de contestação que – conforme argumentaremos no capítulo 3 –
descendem diretamente dos protestos de junho de 2013, que foram o objeto de nossa
dissertação de mestrado A voz das ruas e a rearticulação da ideologia conservadora
(GIROTTO, 2014). Em certa medida, esta pesquisa busca aprofundar questões levantadas e
abertas em nosso trabalho anterior.
Bolsonaro, esse personagem representativo do fenômeno que ora analisamos, é um
político de trajetória ao mesmo tempo ordinária e incomum. Iniciou sua carreira política ainda
em 1989, filiando-se ao Partido Democrata Cristão e sendo eleito vereador pela cidade do Rio
de Janeiro. A partir de 1991, o político ocupou sucessivos mandatos de deputado federal pelo
estado do Rio de Janeiro, cargo que ainda possuía ao ser eleito presidente da República. Em
suas três décadas como político profissional, teve diversas filiações partidárias: PDC, 1989-
1993; PP, 1993; PPR, 1993-1995; PPB, 1995-2003; PTB, 2003-2005; PFL, 2005; PP, 2005-
2016; PSC, 2016-2018. Por fim, filiou-se ao Partido Social Liberal (PSL) em 2018, para
concorrer à presidência da República.
14

Até aí, tudo dentro do corriqueiro na vida de um político profissional.


Militar reformado, Bolsonaro construiu sua base eleitoral sobre os interesses
particulares da corporação e paulatinamente se tornou uma das vozes do pensamento
moralista e militarista, o que por muitos anos lhe garantiu presença segura no chamado baixo
clero do Congresso Nacional, porquanto durasse a relativa dormência dos ideais autoritários
que vimos sair às ruas a partir de 2013.
Acentuado o fenômeno a que chamamos de onda conservadora, ocorreu a Bolsonaro
aquilo que Machiavel chamava de fortuna, e talvez tenhamos que admitir que não lhe faltou
virtù para cavalgar sobre a onda conservadora e construir em torno de sua candidatura um
discurso tão contraditório quanto eficiente em construir uma nova maioria social capaz de
desalojar o PT do governo e abrir caminho para uma agenda econômica ultraliberal.
Jair Bolsonaro iniciou sua carreira política profissional em 1988, ao ser eleito vereador
no Rio de Janeiro pelo Partido Democrata Cristão (PDC), umas das oito agremiações políticas
a que se filiou até sua adesão ao PSL para concorrer à Presidência da República trinta anos
depois. Em 1988 também ocorreu o episódio envolvendo o então capitão, no qual foi acusado
de participar de motim militar cujos planos incluíam a explosão de bombas em quartéis,
acusação que acabou sendo arquivada posteriormente, com a subsequente ida do capitão para
a reserva.
Foi eleito deputado federal em 1990, acumulando sucessivos mandatos na Câmara dos
Deputados até disputar as eleições presidenciais em 2018. Em 27 anos de mandato
parlamentar ininterruptos no âmbito federal, Bolsonaro apresentou 170 projetos de lei, dos
quais apenas dois foram aprovados. Membro do que se convencionou, na literatura política
contemporânea brasileira, chamar de "baixo clero", a única distinção de Bolsonaro como
político profissional foi sua lealdade aos interesses corporativos dos militares e os discursos
de ódio dirigidos a um amplo espectro de segmentos sociais e políticos. Entre os alvos
habituais de suas detratações constam minorias políticas como os homossexuais, ativistas dos
direitos humanos e políticos de esquerda, que foram alvo de ataques grosseiros e difamatórios
que mereceram extensa abordagem tanto pela imprensa quanto por estudos acadêmicos cada
vez mais numerosos, dos quais nos foge a possibilidade de realizar um inventário crítico
completo, mas de que nos valeremos de uma pequena amostra nas análises subsequentes.
Um resumo do perfil político do capitão reformado nos dá a imagem de um político
majoritariamente visto como um fanfarrão, uma espécie de louco da aldeia que assombrava a
memória recente da opressão nacional sob o Regime Militar com suas loas a figuras públicas
execradas, como seu ídolo declarado, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, notório
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torturador e idealizador de um negacionismo brasileiro fartamente desmistificado pela


literatura histórica. Como pôde um politico com tal trajetória ser eleito presidente da
República é uma questão que intrigará cientistas políticos por muito tempo ainda. Jairo
Nicolau, no prefácio ao livro de 2019 de Moura e Corbellini, chega afirmar que a de 2018 “foi
a disputa mais surpreendente da história das eleições no Brasil” (p. 15). Um primeiro passo
para a devida compreensão desse fenômeno é ultrapassar os limites da figura caricata que ora
esboçamos e compreender e investigar as peculiaridades do ator político Bolsonaro e do
fenômeno político e social que ele representa; este será o objetivo particular do capítulo 4.
Correlacionado a esses desdobramentos, vemos o fenômeno recente e relativamente
inédito da emergência de uma liderança de projeção nacional no espectro da direita
claramente orientada por uma ideologia e uma estética autoritárias. Encarnada na figura do
deputado federal Jair Messias Bolsonaro, a onda conservadora alia o ranço elitista a um
descontentamento popular que enviesa para o saudosismo da Ditadura Militar e descamba
para tantas outras soluções mágicas para problemas sociais pungentes do Brasil. A recessão
econômica, a violência urbana e rural, a escalada do desemprego, todos estes fatores dão
impulso a uma acentuada polarização política e à busca por soluções extremas para problemas
graves e complexos demais para serem devidamente debatidos numa campanha eleitoral que,
para completar o quadro peculiar das eleições de 2018, foi a mais breve e esvaziada da Nova
República.
Este é um estudo amplo que perpassa, sem se propor a aprofundar, as teorias da
democracia, do comportamento eleitoral, sociologia econômica e instituições políticas, dentre
tantas outras. O caráter interdisciplinar se alinha à proposta de nosso Programa que articula
sociologia e ciência política num mesmo âmbito. Preliminarmente, há ainda outras
explicações a serem antecipadas. Sendo uma leitura de conjunto dos processos políticos e
ideológicos que marcaram a ascensão do bolsonarismo, o presente trabalho não traz
exaustivas reproduções de dados estatísticos, ademais já muito bem compilados e tratados por
Jairo Nicolau (2020) em livro lançado dois meses antes da apresentação desta tese. Cabe
registrar que o conhecimento do trabalho em curso de Nicolau nos levou a retardar a redação
final desta tese, no intuito de não produzirmos uma réplica inferior ao que se esperava e de
fato encontramos no livro em questão. Outro fator que nos leva a preferir o estudo a partir da
síntese de outros autores é o acesso restrito ao corpo de dados dos institutos de pesquisas e os
limites humanos para o tratamento de dados que enfrentamos num trabalho que não conta
com assessoria técnica. Institutos como o Datafolha prestam importante serviço ao
disponibilizar a íntegra de suas pesquisas ao grande público; mas o Datafolha é uma exceção à
16

regra. Através de suas pesquisas foi que pudemos nos familiarizar antecipadamente aos dados
que viriam ao público em trabalhos de autores que já possuem uma rotina e recursos
produtivos consolidados. Outra opção, visando ao comedimento e a uma abordagem mais
direta do tema, foi a de não inserir grande número de declarações dos candidatos e lideranças
políticas. A análise do discurso, desde os primórdios da campanha de 2018, tem rendido
variados trabalhos acadêmicos que trazem extensa reprodução dos conteúdos textuais de
Bolsonaro. Alguns desses trabalhos surgirão ao longo de nossa tese, e sua leitura é
recomendada para aqueles que desejem ou necessitem maior familiaridade com as narrativas
que aqui discutimos, já reelaboradas pelo trabalho analítico.
Toda escolha metodológica implica em exclusões, muitas vezes questionáveis. Temos
certeza de que não somos exceção a isso. A quais temas dar um tratamento mais extenso,
quais deles julgamos poder sintetizar com mais eficiência a fim de não perder o rumo da
exposição? Relendo o trabalho numa derradeira revisão, parece-nos que optamos, ainda que
de forma pouco consciente, por dar mais atenção aos detalhes daqueles elementos sobre os
quais sentimos ter mais distância das opiniões que se têm defendido nos trabalhos que
pesquisamos. Assim, o papel dos evangélicos na construção da base social bolsonarista não
tem aqui o espaço que o tema realmente merece, sobretudo porque as pesquisas sobre o tema,
ao que nos parece, têm sido assertivas. Destaca-se nesse campo o excelente trabalho de
Marina Lacerda, com o qual temos apenas divergências pontuais e secundárias, que sequer
mereceram menção. Já no campo do papel das redes sociais na internet, julgamos necessário
delimitar certas posições que nos pareceram equivocadas, e por isso ao tema demos maior
atenção, ainda que não aquela que ele merece devido a sua importância emergente.
Também optamos pelo uso da teoria que nos embasa, notadamente os corpo teórico da
obra de Antônio Gramsci (2007, 2010, 2011), de forma mais orgânica ao texto, sem
digressões explicativas. Isso porque em nossa dissertação já exploramos a conceituação
teórica em níveis satisfatórios para o que propomos, e julgamos que qualquer aprofundamento
sério do tema exigiria um estudo a parte. Aliás, todos os temas pelos quais perpassamos neste
trabalho merecem e têm recebido atenção específica pela academia. Esperamos que nossas
escolhas expositivas não impeçam que o presente trabalho comunique nossas ideias e que – se
obtivermos êxito – possa lançar alguma luz sobre o tema, tênue que seja.
Por fim, não há como evitar certo tom ensaístico ao se tratar de eventos históricos que
testemunhamos, sobretudo quando nossa imersão neles é intensa como tem sido a de todos
aqueles que se preocupam com as perspectivas da sociedade brasileira. Em casos tais, o
testemunho do pesquisador também se torna documento histórico, e mesmo seus valores que
17

infiltram e permeiam a exposição da pesquisa são registros ao menos dos sentimentos da


época.
A importância deste estudo, ao que cremos, está no que tal recrudescimento ideológico
conservador representa para o decurso histórico da democracia brasileira. Podemos estar
diante de um impasse civilizatório que condicionará o desenvolvimento social e cidadão do
Brasil por longo prazo. O acirramento da polarização política vivenciado no Brasil
contemporâneo não se faz necessariamente acompanhar de uma elevação no nível da
consciência política coletiva, nem no aperfeiçoamento das instituições democráticas. Pelo
contrário, o que percebemos é o enfraquecimento das instituições, a crise da
representatividade e a escalada da intolerância.
Compreender os movimentos em curso, embora tarefa prenhe de dificuldades dada sua
própria indefinição, é relevante para o debate público com o qual pretendemos contribuir. E,
no recorte que propomos, nossa análise deve necessariamente começar pelos movimentos de
junho de 2013. Por ora, para efeitos de problematização, bastará introduzirmos algumas das
principais hipóteses levantadas por alguns dos muitos pesquisadores que têm dado atenção ao
fenômeno e tentar explicitar a questão que estrutura o presente trabalho. É o que propomos
realizar no capítulo que segue.
18

1 2018: DESAFIOS INTERPRETATIVOS

Há nos estudos da História um conceito designado pelo nome de cronocentrismo, que de


forma ampla pode ser entendido como a crença de que o tempo presente constitui uma espécie
de centro nodal do desenvolvimento da experiência humana. Lembro-me de minha trajetória
de militante dos movimentos estudantis nos anos 1990 e 2000 que a cada mudança
conjuntural relevante, eleição presidencial, guerra deflagrada por alguma grande potência ou
grandes eventos históricos como os de 11 de setembro de 2001, que a cada momento de
impasse político ou econômico surgiam as análises de conjuntura que falavam vivemos numa
encruzilhada histórica. Muitos outros devem ter memórias desta marca narrativa na vida
política de nossa geração.
O historiador inglês Eric Hobsbawm, em sua história do breve século XX
(HOBSBAWN, 1995), discorre sobre tal noção e considera que há, pelo menos, elementos
que justifiquem uma validade do sentimento cronocêntrico nos tempos que vivemos. O
advento da modernidade ocidental estende-se por uma trajetória que vai da ascensão do
método científico a partir de Galileu e Copérnico diretamente até a invenção do transistor, das
modernas técnicas agrupadas na neurociência, que abrem grandes possibilidades de
conhecimento da mente humana, até o surgimento da internet e das redes sociais online, que
transformam profundamente a dinâmica da sociabilidade em todo o planeta. Essa trajetória é
intrincada com a do iluminismo e seu antagonista mais recente e vigoroso, a cultura pós-
modernista. Não obstante toda a polêmica acadêmica ainda não solucionada satisfatoriamente,
nem pretendemos extrapolar os limites propostos para este estudo, cremos que nossa era ainda
é a era da construção da modernidade, um pressuposto teórico que admitimos e explicitamos a
fim de conferir clareza às opções teóricas e metodológicas que sustentam este trabalho.
Lutando por seus valores, ou contra eles, vêm se reinventando sob novas condições a
trajetória dos ideais iluministas e ascensão do método científico. Seguindo o raciocínio de
Hobsbawm, afirmamos que, provavelmente, o período que se inaugura com a desintegração
da União Soviética, e é marcado pela inédita presença da tecnologia no cotidiano humano, nos
põe a todos numa legítima encruzilhada histórica.
Uma tendência que se acentuou a partir da posse de Bolsonaro – sobretudo nas
análises políticas veiculadas pela imprensa – é a de se contentar em analisar a guerra de
narrativas, desconsiderando a investigação e a busca pela compreensão do conteúdo político
dos fatos. Assim, quando o governo questiona o consenso estabelecido dentre as autoridades
19

políticas e a comunidade científica em torno das formas de se lidar com a pandemia que
acabou por envolver todo o globo, estaríamos diante de uma disputa de narrativas. Quando
são expostas as associações entre a família do presidente e grupos do crime organizado, a
relevância política do tema ou sua irrelevância para os interesses nacionais seriam também
disputas narrativas. O governo incita manifestações de ódio, intolerância e apologia autoritária
através dos discurso de seu presidente? Questão de narrativas. O cinismo desse vale-tudo
institucionalizado não é novidade no debate público, nem dele estão imunes as leituras que
por todo o espectro político se fazem da realidade nacional e de seus possíveis
desdobramentos.
Uma significativa quantidade de análises sobre a vitória de Bolsonaro veem o
desfecho da eleição de 2018 como resultado também de uma guerra de narrativas, muitos
atribuindo a vitória do candidato do PSL ora a uma orquestração para enganar a população,
ora à predominância das fakenews nos grupos de WhatsApp, outras vezes ainda à simples
manipulação ou a alguma espécie de artifício político, não admitindo a possibilidade de este
ser um fenômeno eminentemente democrático, marcadamente popular, apesar de todos os
elementos de manipulação das redes sociais e da agressiva e mentirosa estratégia de
comunicação que caracterizaram a campanha de Jair Bolsonaro. Ocorre que as novas forças
populistas da direita e seu programa autoritário se viabilizam dentro das regras democráticas.
E julgar que a simples manipulação decide os processos políticos, sem uma necessária
correlação entre o discurso e os movimentos materiais e subjetivos da sociedade, representa
uma regressão a estágios primitivos do estudo do comportamento político, numa espécie de
novo behaviorismo político, no qual as massas amorfas seriam conduzidas como o gado rumo
a destino que lhes é indiferente. Assim, grande parte do debate acerca da eleição de 2018 se
concentrou em tentar evidenciar os elementos dispersos que teriam feito desta uma eleição
imprevisível, embora outros analistas também proponham que o resultado estava decidido de
partida. Parte desta limitação analítica se dá também por limitações de recursos, quer sejam
limitação de tempo, de disponibilidade de dados ou quaisquer outras que acabam por
condicionar o trabalho intelectual. Não pretendemos aqui apontar as limitações de leituras
específicas, nem expor levianamente supostos equívocos dos intérpretes convocados para esta
discussão. Inicialmente, propomo-nos à honesta e realista tarefa de elencar alguns dos fatores
mais enunciados como potenciais elementos explicativos do fenômeno que estudamos. O
propósito deste capítulo é expor as bases mínimas do que se tem debatido, a fim de poder
problematizar nosso objeto. Não se trata, portanto, de uma análise global da obra ou das teoria
dos autores elencados, tarefa a que a enorme atenção que o objeto tem merecido por parte das
20

ciências sociais nos impediria de realizar a contento. Nem mesmo se trata de uma revisão
completa da literatura sobre a eleição de 2018, quando muito, de autores selecionados no mais
das vezes pelas contingências da pesquisa que ora realizamos.

1.1 Possíveis sentidos da eleição de Bolsonaro


Mesmo diante da proximidade dos eventos e da incipiência do debate, alguns autores puderam
apresentar uma visão de conjunto dos processos que redundaram na eleição de Bolsonaro. São
leituras que buscam, dentro de suas possibilidades, inserir os eventos recentes num arcabouço
teórico que expanda nossa compreensão dos fatos. De uma forma ou de outra, todos os
elementos que são levantados por cada qual estão presentes no conjunto dessas análises, que
divergem, contudo, em suas hierarquias e relações. Parece se constituir um consenso de que a
eleição de 2018 deu-se em termos aparentes de uma ruptura com a trajetória político-eleitoral
da Nova República, a tal ponto de ser considerada por analistas como uma eleição disruptiva,
nos termos que dão título ao estudo de Maurício Moura e Juliano Coberllini (2019), chegando
mesmo a se difundir a noção de que 2018 teria sido o marco final da Nova República no
Brasil (AVRITZER, 2019).
A eleição presidencial de 2018 inegavelmente transformou o panorama político
brasileiro, inaugurando um esforço interpretativo que perdurará por longo tempo. Quer seja na
Ciência Política, na Sociologia, na Economia ou na Antropologia, pesquisadores têm
convocado recursos heurísticos os mais variados para se aproximar de uma melhor
compreensão das origens e significados do fenômeno. As hipóteses que surgem nesse
momento inicial das pesquisas abrem inúmeros caminhos que podem contribuir para a
compreensão do tema.
Um dos grandes desafios que o estudo dessa eleição traz aos pesquisadores é a ampla
variedade de temas que compuseram sua agenda. Neste capítulo, analisaremos algumas das
interpretações correntes que têm auferido maior atenção no debate, quer no plano dos estudos
acadêmicos quer no debate mais amplo por via da imprensa e das redes sociais na internet e –
por que não? – nos cafés e botecos do país.
A percepção pública da corrupção abrangente nas esferas governamentais, para
muitos, esteve no centro do debate, quer pelo entendimento de uma possível intensificação de
sua presença nos governos petistas, quer pela constante e sistemática cobertura midiática que
teve a questão nos últimos anos, sobretudo sob os auspícios da Operação Lava Jato e sua já
evidente articulação intencional com os meios de comunicação no sentido de formar uma
agenda dominante, inclusas aí relações pouco republicanas com agentes internacionais – pra
21

se dizer o mínimo – que vieram à tona recentemente (MOURA e COBERLLINI, 2019;


SOUZA, 2020).
A incapacidade dos governos de resistir aos impactos das crises econômicas globais de
2008 e 2011 e a consequente erosão de conquistas sociais e econômicas de grandes parcelas
da população, seu impacto na coesão das bases políticas e sociais do governo, bem como a
redução da capacidade estatal de intervenção através de políticas anticíclicas teriam sido outro
fator preponderante (CARVALHO, 2018; SINGER, 2018).
Diversos estudos apontam ainda para a centralidade na agenda da eleição de 2018 do
tema da violência, cuja importância aparece num grande número de sondagens de opinião nos
últimos anos, levando alguns pesquisadores a afirmar que este tema teria suplantado a
relevância da pauta econômica em 2018 (MOURA e COBERLLINI, 2019). Associada à
percepção crescente da violência como fator central dos problemas nacionais – mas também
com relativa autonomia em relação a esse fenômeno – viu-se a emergência de uma cultura de
violência, como matizes militaristas e autoritários, que a partir de 2013 passou a ser visível
inclusive nas manifestações de rua, fato inédito desde a redemocratização (GIROTTO, 2014;
AVRITZER, 2019).
A eleição de 2018 também esteve imersa num quadro de degradação institucional
acentuado a partir de 2013. A abrupta queda na aprovação dos mais diversos governos, que
ocorre na sequência dos protestos de junho de 2013, engendrou uma crise de legitimidade da
qual as instituições políticas ainda não dão sinais de que podem sair (GIROTTO, 2014). A
contestação do resultado da eleição presidencial de 2014, por parte do candidato derrotado no
segundo turno, Aécio Neves, agravou a instabilidade do regime, já fortemente marcada pela
ampla contestação da capacidade de Dilma Rousseff em constituir as bases políticas
necessárias para seu segundo mandato (SINGER, 2018). O impeachment de Dilma em 2016
sacramentou o fim do frágil consenso democrático em torno das regras que regem o processo
de disputa política no Brasil (AVRITZER, 2019; SPINELLI, 2019).
Num plano mais amplo, a democracia liberal vem enfrentando em todo o mundo,
desde a década de 1970, impasses que meio século depois ainda estão longe de uma solução.
Nos países centrais da economia capitalista, a capacidade do regime em oferecer perspectivas
de melhoras materiais às novas gerações foi sendo substituída por um quadro de estagnação e
desesperança. A inédita escala global dos processos produtivos que se consolida a partir dos
anos 1970 empurra amplas camadas da força de trabalho desses países para condições
precárias de emprego, marcadas pela instabilidade, perda de direitos e garantias e pela
constante ameaça da migração das estruturas produtivas para países da periferia do sistema,
22

que ofertam mão de obra a baixos custos e com pouca regulação. Assim, a nova dinâmica de
produção de mercadorias baratas para um competitivo mercado mundial degradou as
condições de existência de grande parte das populações que vivem nas democracias liberais
do centro do sistema capitalista mundializado. Somando-se a isto, o fluxo migratório se
intensifica, alimentado pelo fracasso das políticas de constituição de Estados nacionais de
unidade étnica na Europa do pós-guerras, pelos impactos destrutivos das sucessivas crises
financeiras mundiais e a instabilidade e violência ampliadas em grande parte do globo pelos
movimentos geopolíticos das grandes potências econômicas e militares (HOBSBAWM, 1995,
2018). A estagnação econômica e os conflitos identitários se associam à emergência de novas
formas de comunicação que possibilitam a organização e difusão de ideias antissistema que
agravam a crise de legitimidade das democracias liberais (MOUNK, 2018).
Com efeito, é notável que o impacto das redes sociais da internet esteja no cerne das
explicações correntes sobre os eventos de 2018, e, para além, sobre todo o processo político
em curso no Brasil desde 2013 (AVRITZER, 2019; MOURA e CORBELLINI, 2019). As
direitas populistas em todo o mundo têm se utilizado de forma efetiva das redes sociais para a
difusão de suas ideias e organização de suas bases políticas. Vastas redes de comunicação se
estabelecem em torno de intelectuais e think thanks dedicados a difundir um ideário
antissistema que tem como base a rejeição ao conteúdo iluminista ainda vigoroso nas
sociedades de democracia liberal, aos processos globalizantes, por alguns desses intelectuais
denominados por globalismo, e ao multiculturalismo. Também o bolsonarismo fez amplo e
decisivo uso das redes sociais na internet (NICOLAU, 2020; CIOCCARI, PERSICHETTI,
2018).
Tanto na eleição quanto na sustentação posterior de seu governo diante de constantes
crises políticas, Bolsonaro teve no segmento evangélico uma base social expressiva e ativa
(LACERDA, 2019). Teremos também a oportunidade de discutir algumas das hipóteses sobre
esse fenômeno nos capítulos 3 e 4. Em grande medida, a mobilização desses segmentos se deu
por uma agenda de costumes que implicou na defesa de uma visão tradicional de família, na
defesa da subordinação da política a valores religiosos e numa ideologia de gênero
ironicamente apresentada como o combate às ideologias de gênero. Essa pauta se constituiu
sobretudo pelas redes sociais, com amplo recurso a fakenews, como no caso do suposto kit
gay.
Pesaram também na conformação particular da eleição de 2018 episódios contingentes
que mudaram o rumo da disputa e o tom das campanhas. A exclusão de Lula da disputa
presidencial foi um dos fatos mais relevantes nessa peculiar eleição. O ex-presidente liderava
23

todas as sondagens eleitorais quando foi condenado e preso em decorrência do caso do


Triplex do Guarujá1. A expectativa declarada pelo próprio Lula, em ao menos duas ocasiões,
de poder disputar a eleição e vencê-la da cadeia, conduziu o PT a uma estratégia de
manutenção de sua candidatura até o limite das possibilidades, resguardando um plano B que
seria a candidatura de seu vice de chapa, Fernando Haddad, como um preposto do ex-
presidente. Embora as pesquisas apontem que houve um alto grau de transferência de votos de
Lula para Haddad, este último nunca chegou a tocar os patamares de intenção de voto de seu
fiador político. Haddad havia sido derrotado na disputa pela reeleição à prefeitura de São
Paulo em 2016 por João Dória, político dos quadros do PSDB. As leituras por nós conhecidas
sobre o comportamento do eleitorado lulista em 2018 demonstram que este não aderiu
integralmente à candidatura de Haddad.
Outro evento episódico que teve centralidade na campanha foi o atentado sofrido por
Jair Bolsonaro (CIOCCARI, PERSICHETTI, 2018). Vítima de uma agressão grave por arma
branca, o candidato obteve grande repercussão midiática na sequência do ataque, legitimando
ainda sua ausência dos debates televisivos que, sem a presença do principal postulante, viram
reduzida sua relevância. Muitos articulistas da imprensa e dos cafés chegaram a propor que a
facada elegeu Bolsonaro.
Essa miríade de questões e eventos que envolvem o debate sobre a eleição de 2018
contribuem para tornar o objeto um desafio cognitivo ainda mais pujante que aquele já
bastante acentuado em qualquer tentativa de interpretar fenômenos eleitorais complexos. A
seguir, faremos uma breve leitura de obras que, cada qual a seu modo e com suas
pressuposições, tentaram superar tal desafio, dando uma visão de conjunto do fenômeno. Não
são as únicas nem serão as últimas tentativas de explicar os eventos e processos de que
tratamos. Mas servem ao nosso propósito de estabelecer uma relação de diálogo com as ideias
que vem sendo debatidas na comunidade acadêmica.

1.1.1 Lulismo contra Partido da Lava Jato


No livro A eleição disruptiva, Moura e Corbellini (2019) – através de séries de surveys e
pesquisas qualitativas realizadas pelo instituto Ideia Big Data, nos anos anteriores à eleição –
chamam a atenção para três fatores que segundo eles teriam sido determinantes para o
desfecho eleitoral de 2018: primeiro, a “desmoralização das elites políticas”, que teria relação
direta com os impactos na percepção pública dos desdobramentos da Operação Lava Jato, que

1 Trata-se da ação penal Nº 5046512-94.2016.4.04.7000/PR, julgado em primeira instância pelo juiz


federal Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, a sentença foi confirmada e a pena expandida pela 8ª
Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), em 24 de janeiro de 2018.
24

açambarcou lideranças dos mais variados matizes ideológicos num escândalo perene de
amplas repercussões midiáticas; segundo, o problema da segurança pública, cuja centralidade
na preocupação do eleitorado se destacava claramente nas sondagens de opinião, percepção
muito justificada pelos índices de mortes violentas no Brasil, que anualmente rivalizam com
as tragédias internacionais em contexto de guerra civil; por fim, destacam a emergência das
redes sociais na internet como mecanismo decisivo de mobilização política, chegando a
afirmar que “essa era a eleição dos eleitores indignados e ‘empoderados’ pelo telefone
celular” (p. 30). Estes três fatores condensam os principais tópicos do debate que se seguiu à
vitória de Jair Bolsonaro em 2018, portanto, analisá-los mais detidamente importa no sentido
de estabelecer as bases da discussão que propomos.
Os autores propõem que a grande novidade do ponto de vista eleitoral no pleito de
2018 foi a substituição da polarização PT x PSDB, característica marcante das eleições desde
1994, por uma nova dicotomia, que definem como a polarização entre dois novos partidos
majoritários, o lulismo e o lavajatismo. Numa análise que segue o estabelecido pelo
fundamental estudo de André Singer (2012), reparam que a base do eleitorado petista sofreu
um acentuado deslocamento nas eleições de 2006, quando segundo Singer o lulismo passa a
ser a força dinâmica do campo das esquerdas 2. Moura e Corbellini defendem que em 2018 o
lulismo passou a rivalizar a preferência dos eleitores com um difuso e amplo partido da Lava
Jato, que emerge no espaço deixado pela decadência dos principais partidos tradicionais da
direita brasileira, decadência que, no que concordamos com os autores, acentuou-se a partir
dos eventos de junho de 2013. Escrevem: “A incapacidade desse sistema partidário tradicional
de compreender o potencial de vitória da candidatura Bolsonaro é reflexo de seu insulamento
nos castelos de Brasília” (p. 50).
Cabe adiantar a opinião dos autores de que o PT, nas eleições de 2018, apostou na
condução de uma eleição plebiscitária, trabalhando com a possibilidade de enfrentar
Bolsonaro no segundo turno, numa configuração que para muitos analistas – inclusive de
quem escreve agora e confessa – levaria à vitória petista. A percepção da real ameaça de uma
vitória bolsonarista teria vindo já tarde demais. Moura e Corbellini sustentam, com base nas
pesquisas realizadas antes das eleições, que a profunda desmoralização das elites políticas e a
crescente sensação de insegurança criaram um contexto político-eleitoral em que a eleição
plebiscitária decretaria a derrota do lulismo, associado aos escândalos intermitentes de
corrupção e vistos por parcela do eleitorado como brandos no combate à violência.

2 O conceito de lulismo, a partir de Singer, será fundamental nas discussões constantes do capítulo 3.
25

O discurso do candidato Bolsonaro o teria se aproximado de forma mais efetiva dos


anseios e sobretudo dos medos de amplas parcelas do eleitorado.

A questão é que houve, nos últimos anos, uma mudança no estatuto de


relevância dos diferentes issues ou temas que realmente importam para os
eleitores. Muitos analistas e lideranças políticas atribuíam peso a issues que
não tinham, em 2018, o mesmo apelo se comparado ao de eleições passadas.
(MOURA; COBERLLINI, 2019, p. 62).

Um evento da campanha eleitoral de 2018, que foi explorado por Moura e Corbellini
para ilustrar o descompasso entre a percepção dos atores políticos e do público sobre as
questões determinantes da disputa, foi uma entrevista do então candidato Bolsonaro.
Permitam-nos uma extensa citação:

Na entrevista à GloboNews, a aposta em achar um “calcanhar de aquiles”


focou-se na economia. Quando foram exploradas contradições de visão entre
Guedes e Bolsonaro sobre graus de intervencionismo econômico, o
candidato respondeu: “É como um casamento, vai ter que chegar num
acordo.” Perguntado sobre quais impostos iria reduzir, disse: “Poxa (…) se
você me perguntar sobre procedimentos médicos, eu não vou saber
responder porque não sou médico.” Quando a bancada tentou emparedá-lo
alegando que seria muito confortável prometer diminuir impostos e não dizer
quais, Bolsonaro saiu pela tangente: “Eu estou entendendo a pegadinha… Eu
não vou entrar nesse jogo.” Sobre a política de reposição do salário mínimo,
outra evasiva: “Tem um critério que está em vigor, e pode ter outra
proposta.” E assim se sucederiam suas respostas sobre vários temas, como
relação comercial com a China, reforma da previdência, subsídio para o
preço do Diesel etc. (MOURA; COBERLLINI, 2019, p. 62-63)

Entremeando suas evasivas, Bolsonaro teria falado de forma direta aos sentimentos do
eleitorado, passando uma imagem de autenticidade que parece mesmo ter sido uma marca
identitária de sua campanha.

A campanha de Jair Bolsonaro não se preocupou em apresentar um projeto


de país, mas em se expressar de maneira a refletir o que as pessoas sentiam.
Em épocas de crise, o ódio também fala ao coração. O ódio contra a política
tradicional, contra a corrupção, contra a violência, contra as ameaças aos
valores da família cristã, contra o “socialismo” em todas as suas variantes
(incluídos Fernando Henrique Cardoso e o PSDB), contra o PT. (MOURA;
COBERLLINI, 2019, p. 66)

Deduz-se da análise precedente que o êxito de Bolsonaro em 2018 decorreria de ter


um discurso mais diretamente ligado aos novos anseios que pautariam a decisão do voto em
2018. Para compreender as implicações dessa hipótese, vale destacar suas principais teses,
que assim classificamos: o voto no outsider, que expressaria o crescente sentimento de um
corrupção generalizada e a “desmoralização das elites políticas”; a centralidade da questão da
26

violência e sua consequência lógica: o deslocamento da centralidade do debate econômico


para o segundo plano; e o papel da redes sociais na internet.

1.1.2 Guerra híbrida ao Brasil


Outra linha interpretativa do fenômeno de que nos acercamos é representada pelo sociólogo
Jessé Souza, que tem se dedicado ao estudo das conformações de classes sociais no Brasil,
construindo um arcabouço interpretativo que põe no centro da questão nacional a herança
escravista e sua influência decisiva na constituição da sociedade brasileira contemporânea.
Em A guerra contra o Brasil: como os EUA se uniram a uma organização criminosa
para destruir o sonho brasileiro (2020), Jessé Souza expõe como aquilo a que chama de
racismo científico se desenvolveu de forma a compôr o núcleo de uma ideologia 3 que se
constitui principalmente pela rejeição à emergência na vida social, econômica e política das
camadas historicamente marginalizadas, tendo seus antecedentes históricos no escravismo
colonial, cujas heranças nunca foram superadas efetivamente em nossa sociedade.
Para Souza, a dinâmica histórica das relações do Brasil com os Estados Unidos é a
chave explicativa para o processo de submissão nacional aos interesses imperialistas que
resultou no golpe parlamentar contra o mandato da presidenta Dilma e na vitória de Bolsonaro
em 2018, submissão essa que conta com a colaboração passiva e ativa da elite intelectual
brasileira, que reproduz um sistema de ideias e valores que visam a confirmar a noção de
inferioridade do brasileiro perante o povo dominador, na qual a distinção entre honesto e
corrupto seria o conceito distintivo central da comparação entre nosso povo e as elites
estrangeiras que sobre nós exercem seu domínio (SOUZA, 2017). Souza denuncia como
conceitos do tipo patrimonialismo, cordialidade e “jeitinho brasileiro” se prestam a
internalizar uma autoimagem coletiva de um povo espiritualmente propenso à corrupção e à
fraqueza das relações pessoais egoístas. Sousa ainda afirma que “a institucionalização do

3 Tratamos aqui da ideologia numa definição gramsciana (GRAMSCI, 2010), que corresponde ao
conjunto de valores, anseios e interesses e da concepção de mundo que os grupos sociais portam e partir do qual
buscam constituir sua hegemonia através da cooptação ou submissão dos grupos sociais concorrentes. A
ideologia de um grupo social se vincula essencialmente à posição deste na sociedade, nos processos produtivos e
no acesso que têm às esferas de decisão e execução, ao poder. Ressignificando seus conteúdos ideológicos,
incorporando e conciliando interesses diversos, os grupos sociais constroem uma visão de conjunto da sociedade,
um projeto nacional específico, através do qual buscam articular um bloco social hegemônico e dirigir a
sociedade no sentido de seus valores e interesses. Esta é a definição restrita da ideologia que permeia este debate.
Num sentido mais amplo, também nos valeremos do termo no contexto dos estudos do comportamento
eleitoral, que para efeitos deste capítulo podemos resumir à localização do indivíduo no contínuo direita-
esquerda.
De forma simples, ambos os usos do conceito de ideologia podem ser distinguidos pelo sujeito a quem a
atribuímos. Quando falamos em ideologia dos grupos socais, nos referimos à definição estrita gramsciana.
Quando nos referimos à ideologia dos indivíduos, dos eleitores de forma ampla, estamos falando da ideologia
nos termos de Bobbio (1995), onde nos serve bem a dicotomia relacional esquerda-direita.
27

escravismo passa a ser percebida como a origem fundamental de toda a vida material e
simbólica brasileira” (SOUZA, 2020. p. 13).
O racismo estrutural brasileiro, sobre o qual se edifica toda a estrutura econômica,
cultural, política e social de nosso país, assumiria contornos variados a depender do contexto
histórico em curso.

Como não se pode falar de racismo, seu perfeito substituto é o falso


moralismo canalha do combate seletivo à suposta corrupção, voltado apenas
contra quem ousa incluir negros e pobres na sociedade brasileira. É,
portanto, o ódio à classe dos excluídos e marginalizados, quase todos negros
e mestiços, a pedra de toque que explica a vida política arcaica e odiosa do
Brasil. (SOUZA, 2020, p. 14)

A profunda relação entre pobreza e exclusão racial no Brasil é um dos fatos mais bem
demonstrados da literatura científica brasileira, ainda que alvo de imposturas intelectuais
negacionistas, conforme teremos a oportunidade de discutir no capítulo 4. Souza vai além e
aponta o racismo científico (embuste teórico que substituiria a noção de superioridade de
raças pela de superioridade de culturas) como parte de um projeto de poder mundial
planejado nos ínfimos detalhes. A expressão mais bem acabada dessa doutrina talvez esteja na
obra de Samuel Huntington, O choque de civilizações, onde populariza o conceito de guerra
cultural. Apesar das claras incongruências de sua tentativa grotesca de dividir o mundo entre
oito civilizações distintas, e da inépcia ao definir os limites entre as supostas civilizações
antagônicas, a obra de Huntington logo se tornou um dos textos mais citados da ciência
política mundial, influenciando não apenas a academia mas também sendo vista como um dos
fundamentos teóricos da doutrina de política externa de sucessivos governos norte-
americanos, estendendo sua influência até nossos dias. Assim ele resume as principais
consequências de sua doutrina:

Minha hipótese é que a fonte fundamental de conflitos neste novo mundo


não será primordialmente ideológica nem primordialmente econômica. As
grandes divisões da humanidade e a fonte predominante de conflito serão
culturais. Os Estados nacionais continuaram a ser o atores mais poderosos
nos assuntos mundiais, mas os principais conflitos da política global
ocorrerão entre nações de grupos de civilizações diferentes. O choque das
civilizações dominará a política global. As linhas de fissura entre as
civilizações serão as linhas de batalha do futuro. (HUNTINGTON, apud
WHEEN, 2007, p. 90)

Não requer muita criatividade ver os elos entre a doutrina Huntington e política de
exportação da democracia aos modos americanos. Um outro dado interessante da teoria de
Huntington é a América Latina, que surge nem bem como uma civilização própria nem como
28

parte da “civilização ocidental”, que compreenderia a Europa desenvolvida e a América


protestante; a América Latina fica no limbo, uma espécie de rebarba civilizacional. Souza
argumenta que a guerra cultural dos Estados Unidos se tornou elemento central em sua
política imperialista de dominação, e demonstra através da leitura de alguns casos de
intervenção política norte-americana, notadamente na deposição do governo da Guatemala
nos anos 1950, os elementos principais do novo paradigma das intervenções americanas nas
áreas de influência onde suas empresas têm interesses.
Walter Lippmann e Edward Bernays, dois dos fundadores da publicidade e
propaganda política modernas, são os principais formuladores e divulgadores da nova
abordagem política nos EUA. De seus trabalhos, emergiu a noção de construção do
consentimento, que viria a ser o fator chave na nova estratégia imperialista, sobretudo após o
fim da Guerra Fria, quase meio século depois – o que prova a vitalidade da doutrina e sua
enorme influência. Bernays, aluno de Lippmann, pôs no centro de sua estratégia a necessidade
de uma elite intelectual que elaborasse e difundisse conceitos e valores adequados aos
interesses da intervenção política, seguindo o professor no reconhecimento da necessidade de
se produzir um consentimento ativo da opinião pública, que legitimasse e embasasse as ações
dos agentes políticos. Uma de suas propostas consistia na criação de agências de informação
voltadas a objetivos pontuais, cujo teste de partida foi justamente um órgão imbuído da
missão de criar um ambiente favorável na opinião pública internacional à deposição do
governo guatemalteco no início dos anos 1950, bem como de influenciar no mesmo sentido a
sociedade da Guatemala, criando o consentimento prévio de amplas parcelas para o golpe que
se seguiria.
Souza encontra na produção do consentimento a ferramenta ideal para a execução da
nova doutrina de intervenção norte-americana, a guerra híbrida. O conceito foi elaborado por
Andrew Korybko (2015), que a partir dele definiu o novo conjunto de táticas de guerra dos
EUA, visando à imposição de seus interesses em território estrangeiro. Korybko desenvolve
sua hipótese valendo-se do estudo dos casos da intervenção e derrubada, ou tentativa de
derrubada, dos governos da Ucrânia e da Síria, no que se convencionou chamar de revoluções
coloridas. As revoluções coloridas seriam uma estratégia de desestabilização de governos
nacionais não alinhados aos interesses norte-americanos, que se valeria de diversos
mecanismos para a produção de uma crise política e institucional, conduzindo à substituição
dos governos. Nesse modelo de intervenção, que segundo o autor é a estratégia predominante
da ação externa americana para o século XXI, articulam-se desde campanhas publicitárias –
muitas vezes movidas à base do que se tem chamado de fakenews – à formação e
29

financiamento de atores individuais e coletivos que possam acelerar a divulgação das ideias e
fomentar instabilidade nos regimes-alvo, passando pelo lawfare e outros mecanismos. Numa
entrevista – realizada por Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena para a editora que publicou
seu livro no Brasil –, Korybko explicita e expande sua definição anterior de guerra híbrida:

As Guerras Hibridas são conflitos identitários provocados por agentes


externos, que exploram diferenças históricas, étnicas, religiosas,
socioeconômicas e geográficas em países de importância geopolítica por
meio da transição gradual das revoluções coloridas para a guerra não
convencional, a fim de desestabilizar, controlar ou influenciar projetos de
infraestrutura multipolares por meio de enfraquecimento do regime, troca do
regime ou reorganização do regime.

Em suma, isso significa que países como os EUA se aproveitam de


problemas identitários em um Estado-alvo a fim de mobilizar uma, algumas
ou todas as questões identitárias mais comuns para provocar grandes
movimentos de protesto, que podem então ser cooptados ou dirigidos por
eles para atingir seus objetivos políticos. Eventual fracasso desses
movimentos pode fazer com que alguns de seus participantes recorram ao
terrorismo, à insurgência, à guerrilha e a outras formas de conflito não
convencional contra o Estado. Na maioria das vezes, pelo menos no
Hemisfério Oriental, esses fenômenos fabricados têm o efeito de dificultar a
viabilização de projetos da China de implantação da nova Rota da Seda,
coagindo o Estado-alvo a compromissos políticos ou mudanças de governo
ou mesmo a uma secessão - que pode eventualmente levar a uma
balcanização. (KORYBKO, 2018)

A estratégia não seria mais a bala de prata mas a contaminação por chumbo.
Na mesma ocasião, Korybko defendeu a tese de que o Brasil era alvo de uma guerra
híbrida. "Ao longo dos últimos dois anos, agentes externos muito sutilmente buscaram
condicionar a população para voltá-la contra o Partido dos Trabalhadores, usando
instrumentos como a Operação Lava Jato, apoiada pela NSA". A grande diferença dessa
análise para a de Souza (2020) consiste em que, para o brasileiro, a ação dos agentes externos
foi nada sutil. A tese da guerra híbrida contra o Brasil ganhou ainda mais destaque pouco
meses após a publicação do livro de Souza, por ocasião da publicação no Twitter de uma
postagem da ex-presidenta Dilma Rousseff, no qual ela se utiliza do termo.
Encontramos possíveis exemplos de guerra híbrida bem sucedida em diversas
repúblicas latino-americanas que tiveram experiências de governos populares interrompidas
por golpes internos apoiados em agendas internacionais, e mesmo com participação de
agências e governos externos, como em Honduras, Equador, Venezuela, Bolívia, Paraguai e
Argentina. Um aspecto que dificulta o estudo das guerras híbridas é sua característica não
oficial, não vemos declaração de guerra nesses formatos, não vemos governos, agências
30

governamentais ou grupos amparados por máquinas privadas e estatais declarando suas


intenções, na maior parte dos casos, sequer há evidências irrefutáveis da presença dos agentes
externos.
Souza vai fundo na denúncia de que a Operação Lava Jato se incumbiu do papel de
agente interno de desestabilização do regime, na esteira da “revolução colorida brasileira”
de 2013. Aponta ainda alguns antecedentes que constituíram as bases materiais da guerra
híbrida a que o país tem estado sujeito.

Em 2006, o Brasil descobre o pré-sal, uma das maiores reservas de petróleo


do planeta, e já começa a explorá-lo efetivamente a partir de 2008. O marco
regulatório do pré-sal prevê um forte controle da Petrobras sobre todas as
fases da produção. Em 2012, a presidenta Dilma lança sua ofensiva,
respaldada no poderio dos bancos públicos brasileiros, para baixar os juros
abusivos, onze vezes maiores que os juros praticados na França, ameaçando
a “mamata” dos representantes do capitalismo financeiro americano no
Brasil. Foi também nessa época que começou a ser gestado o banco do
BRICS como principal estratégia para romper o controle absoluto da
economia mundial pelo capital financeiro americano. (SOUZA, 2020, p. 83-
84)

Adiante, sintetiza

É nesse contexto que, na esteira da Primavera Árabe, ocorrem as chamadas


Jornadas de Junho, em 2013, no Brasil. Esse é o início da revolução colorida,
que dá ensejo ao golpe de 2016 e à Operação Lava Jato, levando à derrocada
do PT, à prisão ilegal de Lula e à consequente eleição do “lambe-botas” de
Trump, Jair Bolsonaro, ao poder. (SOUZA, 2020, p. 84)

Souza estrutura sua análise em alguns elementos centrais. Primeiro, aponta que as
condições preliminares da derrota do incipiente projeto de autonomia nacional já estavam
dadas, através da disseminação sob todas as formas institucionais e práticas do “vira-
latismo” disfarçado de identidade nacional. Aqui, como em seu trabalho anterior (SOUZA,
2017), o autor aponta sua crítica para formadores do pensamento político nacional, tais quais
Gilberto Freyre, Raimundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda, bem como a produtores de
ciência e cultura de forma ampla. Segundo, estabelece que o curso político e econômico
brasileiro se desenvolvia no sentido da abertura de caminhos alternativos à histórica relação
de dependência do país aos EUA, incluindo aí a expansão de empresas nacionais como a
Petrobras e a Odebrecht. Terceiro, o racismo científico – a noção de inferioridade cultural,
num resumo bastante restrito – traveste-se na política nacional de uma indignação seletiva
perante a corrupção, que por diversos mecanismos narrativos e teóricos vira a expressão
ideológica máxima do ódio aos pobres, que é a forma em que se transmuta o racismo nunca
31

superado da sociedade brasileira. Por fim, o discurso seletivo anticorrupção encontra na


Operação Lava Jato o agente ideal para desestabilização do regime, sendo o fator essencial da
mobilização da “classe média moralista e ressentida por anos de ascensão popular” (SOUZA,
2020, p. 95).
Essa visão é claramente distinta da de Fábio Santos. Santos escreve sobre a corrupção:

a Operação Lava Jato, que expôs a promiscuidade entre empresas e


políticos, também seria reduzida [no discurso dos defensores do
governo] a uma perseguição política, apesar da prisão de empresários
em cuja inocência poucos acreditam. Nesses dias, ainda se escutavam
ecos da retórica do “governo em disputa”, o que implicava que o
campo popular tinha sido derrotado em todas as batalhas ao longo
daquele período. Entre alguns dirigentes, o discurso foi enriquecido
com a ideia de se armava um cerco contra a esquerda. A hipótese que
poucos aventaram é que, a estas alturas, o PT fazia parte do cerco, e
não da esquerda. (SANTOS, 2018 p. 2)

O livro de Jessé Souza não consegue ir além em sua denúncia, não demonstra com
exatidão como os mecanismos da guerra híbrida foram operados no Brasil. Revelações
posteriores sobre a ação de agente americanos em solo brasileiro e da íntima relação entre ele
e agentes nacional, políticos e do Poder Judiciário, deram novas bases para suas hipóteses.
Ainda assim, sua tese tem grande potencial explicativo, ao pôr sob um mesmo quadro teórico
um conjunto de ações e agentes que têm sido decisivos no decurso político da história recente
do Brasil.

1.1.3 Revolta contra o neoliberalismo petista?


Não é mera coincidência que as principais linhas interpretativas das eleições de 2018 sigam os
fundamentos lançados na discussão sobre os significados dos protestos de 2013 no Brasil.
Afinal, ambos os momentos marcam a trajetória das disputas políticas do Brasil no novo
século. Oriunda de um campo crítico da esquerda, formou-se nos anos precedentes toda uma
linha interpretativa da realidade nacional que foi resenhada em nossa dissertação (GIROTTO,
2014) e que será retomada brevemente aqui. As consequências teóricas de tais pressupostos
são exemplarmente sistematizadas num artigo de Fábio dos Santos (2018), publicado na
sequência imediata da eleição de Bolsonaro.
Santos remete aos protestos de 2013 como o momento da confirmação do declínio do
lulismo. As manifestações teriam rompido as amarras do lulismo. O autor faz um diagnóstico
dos fatores essenciais que teriam levado à crise política, econômica e social que permitiu a
ascensão do bolsonarismo, analisando a conduta do PT, uma vez assentado no poder central
32

da República. A análise de Santos nos remete a Francisco de Oliveira (2003), de onde deriva
grande parte da análise crítica de matiz de esquerda sobre a política brasileira contemporânea.
A tese preponderante de Oliveira é bem resumida na exposição de Santos, quando explicita a
visão do primeiro acerca da capitulação das lideranças dos movimentos sociais pela estrutura
burocrática administrada pelo petismo:

A adesão da Central Única dos Trabalhadores (CUT) a este projeto revelou a


pedra filosofal do lulismo: as principais organizações sociais que outrora
resistiram ao avanço do neoliberalismo, apoiavam agora um governo
comprometido com o aprofundamento destas políticas. A relação de
confiança construída ao longo dos anos entre o partido e as organizações
sociais, foi instrumentalizada para neutralizá-las. (SANTOS, 2018, p. 1)

Para Santos, os protestos de 2013, que expressariam o esgotamento do modelo de


conciliação lulista, teriam gravitado “em torno a três questões fundamentais: democratização
das cidades, políticas públicas universais e uma reação ao cretinismo parlamentar – a ilusão
de que o parlamento representa a nação” (2018, p. 7). Correndo o risco inerente a toda
generalização, propomos que a linha essencial desta corrente de pensamento consiste em
identificar, na ascensão do PT e seus consequentes governos, o fator essencial da crise das
esquerdas brasileiras. Primeiro porque, não sendo de ruptura, o programa petista teria
arrefecido a luta de classes no âmbito da política via cooptação de organizações, dirigentes e
intelectuais dos movimentos sociais. Segundo, porque ao se apresentar como representante
das ideias de esquerda, o PT teria confundido a classe trabalhadora, esvaziando o conteúdo
revolucionário da política de esquerda. Por fim, dado o consenso passivo operado pelas ações
precedentes, pôde o PT conduzir o país a um processo de desmobilização social,
intensificação da agenda neoliberal e desorganização dos movimentos populares, fortalecendo
o consenso hegemônico neoliberal.
Dos pressupostos há pouco apresentados, decorre a hipótese de Santos – para quem, na
“superfície, a eleição presidencial brasileira pareceu complexa” – de que o bolsonarismo não
é o contrário do lulismo, mas seu lado B, a outra face da mesma moeda. Ele propõe descartar
a hipótese de que “todos que nele votaram são fascistas ou foram manipulados contra o PT”, e
sugere:

O segredo pode ter sido a forma e não o conteúdo: o capitão maneja a


linguagem da brutalidade, que um povo brutalizado conhece e entende. De
um modo perverso, fala com o povo, como Lula. No processo, se diferenciou
dos candidatos almofadinhas e dos candidatos de sempre. (2018, p. 14)
33

Segundo essa tese, não haveria qualquer diferença programática fundamental entre os
dois principais contendores da eleição, Fernando Haddad e Jair Bolsonaro. “O que a classe
dominante disputa é a forma política de gestão da crise brasileira. Qual será a cara do arranjo
institucional, jurídico e cultural que substituirá a Nova República, definitivamente
condenada”. Haddad e Bolsonaro seriam “vias distintas para gerir a colossal crise brasileira: o
PT oferecendo a ordem na conversa, enquanto Bolsonaro, propunha a ordem na porrada”
(2018, p. 12). O desfecho pró Bolsonaro teria sido resultado do cálculo das elites de que o
modelo lulista de conciliação teria se esgotado, para “a direita, está claro desde junho: o
tempo do neoliberalismo inclusivo se foi. Transitou-se da conciliação para a guerra de classes.
É esse o pano de fundo da agonia lulista” (2018, p. 15). A frustração das camadas populares
com os governos petistas teria se traduzido em raiva, e esta raiva, engendrando um forte
sentimento antipetista, teria criado o cenário em que a vitória de Bolsonaro era certa.

1.2 Problemas para a compreensão da eleição de 2018

As três interpretações que revisamos até aqui se prestam, em menor ou maior grau, a
representar três correntes de pensamento distintas acerca da derrota petista e da ascensão de
Bolsonaro. Uma trata da política em termos do que podemos chamar de uma ciência política
mainstream, que parte da compreensão do eleitorado em termos de um conjunto de indivíduos
movidos por interesses particularistas e atomizados na sociedade. Ela não leva em conta as
organizações sociais, as clivagens de classe nem os fatores ideológicos. A segunda,
essencialmente sociológica, trata da construção dos processos ideológicos que marcam a
disputa política brasileira. Busca na construção discursiva das elites os elementos que
explicam tanto a derrota do PT quanto a ascensão populista de direita, promovendo uma visão
de legitimação, ainda que crítica, da política petista. Uma última é igualmente militante e
sociológica. Atribui aos desvios ideológicos e morais do PT a responsabilidade pela derrota
de um proletariado nacional nas disputas políticas. Todas as três partem de fatos
comunitariamente aceitos para estabelecer uma visão própria acerca do contexto e das
perspectivas políticas e sociais do Brasil contemporâneo; o mesmo que pretendemos nesta
tese.
Todas as análises recentes que envolvem o fenômeno do populismo no mundo têm
dado especial atenção ao papel das redes sociais na internet, e cremos que não em vão.
Conforme veremos no capítulo 4, as novas tecnologias da informação estão mudando as
formas como se dão as relações humanas, impactando no conjunto da vida social e mesmo
34

privada. Este é um aspecto da realidade política atual que ainda tem muito por ser
compreendido, mas cuja importância já se estabelece como consenso nas ciências sociais.
Dando sequência à problematização de nosso objeto, propomos analisar mais
detidamente alguns pontos que se destacam nas análises das obras selecionadas. Primeiro, a
noção de uma eleição atípica, marcada por eventos como o atentado a Jair Bolsonaro, o
impedimento da candidatura de Lula e a escolha por um candidato outsider, representado no
papel de Bolsonaro na disputa eleitoral. Segundo, a noção de que a campanha de Bolsonaro
falou mais diretamente ao sentimento do eleitorado, o que implica a secundarização do debate
econômico na perspectiva do eleitor. Terceiro, a hipótese de que a democracia brasileira é
alvo de um processo de desestabilização orquestrado por elites nacionais associadas a agentes
externos. Por fim, a tese que reputa aos limites classistas do lulismo a atual crise política e
social do Brasil.

1.2.1 Ruptura com o alinhamento eleitoral da Nova República?


As hipóteses de Moura e Coberllini se sustentam nas pesquisas que conduziram
anteriormente à eleição, as quais reforçam a noção dos autores de que houve uma mudança
nos temas percebidos como centrais pelos eleitores. Também apontam que o fator outsider, a
imagem construída de Bolsonaro como um ator de fora do sistema político, teria sido um
segundo fator decisivo na opção do voto por Bolsonaro.

O diagnóstico do pleito mostrava eleitores querendo um candidato que não


representasse a política tradicional, que tivesse um discurso mais agressivo
em relação ao tema da segurança e que pudesse sustentar sem
constrangimentos um discurso anticorrupção. (MOURA e COBERLLINI,
2019, p. 37)

O primeiro ponto problemático dessa tese está em que ela não explica devidamente as
relações entre a emergência de novas issues e os efeitos prolongados da crise econômica que
se estendeu no Brasil após as crises financeiras internacionais de 2008 e 2011. No contexto da
crise fiscal que decorreu deste cenário, tanto a corrupção quanto a suposta gastança pública
foram propagados como fatores centrais da incapacidade de o Estado prover adequadamente
serviços públicos de qualidade. Embora tal discurso entrasse em contradição com a exigência
de mais e melhores serviços e de um rigoroso ajuste fiscal por parte do governo, ele pode se
sustentar ao apontar a corrupção como grande vilão das supostas gastanças. Não nos parece
que a economia tenha sido menos importante na disputa eleitoral de 2018 que em outras
eleições, mas sim que seu conteúdo perpassou todos os demais temas, sendo decisivo
inclusive na definição das alternativas postas como viáveis para o eleitorado. Não se trata de
35

negligenciar o que revelaram as sondagens de opinião, mas de tentar compreendê-las num


contexto mais amplo que inclui o conjunto das disputas políticas que moveram a sociedade
brasileira no período. Trataremos dos fundamentos desta percepção numa seção específica, no
capítulo 4.
Outro aspecto a se pensar é que, se a proximidade entre o discurso de Bolsonaro e a
percepção do eleitorado acerca dos problemas nacionais fosse o diferencial decisivo da
eleição de 2018, reflexo do insulamento nos castelos de Brasília, seria de se esperar que em
algum grau seus efeitos se manifestassem de forma transversal em ambas as candidaturas que
chegaram ao segundo turno. Ocorre que – como discutiremos no capítulo 4, com base nos
dados levantados por Nicolau (2020) e nos resultados divulgados pelo TSE – a eleição de
2018 conservou significativa semelhança com suas predecessoras no que refere ao perfil
ideológico do eleitorado, demonstrando a lealdade deste a padrões competitivos estabelecidos
na Nova República. O principal deslocamento eleitoral ocorrido em 2018, como também
atestam os dados de Nicolau, foi no interior do eleitorado de direita. Esse deslocamento já foi
percebido nas eleições de 2014 e, ainda antes, teve seus fundamentos bem analisados por
Fernando Henrique Cardoso, em artigo de 2011 intitulado O papel da oposição. Procuraremos
demonstrar nos capítulos posteriores como a dinâmica das disputas hegemônicas e as
transformações econômicas e sociais recentes por que passou o país foram decisivas na
conformação tanto dos projetos que se apresentaram à sociedade em 2018 quanto nos
movimentos eleitorais verificados.
Também a ideia de que o perfil outsider, o personagem de forasteiro político de
Bolsonaro, tenha sido um dos fatores determinantes da eleição traz consigo seus problemas.
Embora a construção dessa imagem claramente tenha trazido a Bolsonaro uma vantagem
competitiva, seus impactos parecem limitados. O voto contra o sistema político é uma
constante nos processos eleitorais. Fenômenos como Tiririca, dentre outros, repetem-se
ocasionalmente. A eleição de Collor também trouxe consigo o elemento do forasteiro. Não é
uma gramática nova na política. O que faria com que este fator tivesse maior relevância na
eleição de 2018 que nas anteriores seria, nos termos de certa teoria do comportamento
eleitoral, uma maior prevalência do fenômeno a que chamam por alienação política, ao qual
retornaremos em breve.
Como vemos na análise de Singer acerca das eleições de 1989 e 1994 no Brasil,
Esquerda e direita no eleitorado brasileiro, a polarização entre direita e esquerda na política
brasileira foi marcante em todo o período democrático do país, sendo mais ou menos intensa a
depender do contextos em que as disputas eleitorais se deram. Neste trabalho, seguimos
36

Singer e Bobbio ao defender que a ideologia é um importante preditor do voto e um


mecanismo central pelo qual se estabelecem preferências e agendas políticas.
A ação em todo o mundo de atores da direita populista e da extrema direita chamou a
atenção para seus mecanismos de propaganda. Termos como fakenews e nomes como
Cambridge Analytica se tornaram frequentes nos mais variados ambientes de discussão
política. A vitória de Trump nos EUA foi creditada à manipulação das redes sociais,
largamente municiada pela mineração de dados de usuários pela Cambridge Analytica. O
Senado americano interrogou os executivos do Facebook. A imprensa brasileira entrou em
campanha cerrada contra a disseminação das fakenews e em defesa do jornalismo profissional
e isento. Mesmo o TSE passou a veicular campanhas contra a propagação das fakenews. Por
ocasião da atual crise sanitária mundial, o discurso mistificador do presidente da República
foi respondido com um amplo concerto em torno do discurso de respeito às conclusões da
ciência. Passamos a ver diariamente jornalões e portais da internet defendendo o caminho da
ciência, às vezes na mesma página ou capa eletrônica em que anunciavam o horóscopo,
terapias com cristais e o valor das ervas curativas e da medicina alternativa. Astrólogos e
jornalistas fizeram coro.
A reação da grande imprensa ao males da difusão de “notícias sem critério” pelas
redes sociais tem também base na ascensão destas sobre um domínio que há pouco era
exclusivo dos detentores de grandes recursos de produção e difusão de informações: a
definição dos temas e termos do debate público, a agenda-setting. Aqueles que tiverem um
conhecimento mais amplo da história eleitoral brasileira talvez se questionem das
semelhanças entre o espetáculo de fakenews da campanha bolsonarista e a edição criminosa
do debate eleitoral de 1989 entre Lula e Collor, quando a internet não era o que é hoje.
Embora não seja impossível, certamente não é sensato descartar a importância da
internet na eleição de 2018. Nunca antes a influência da cobertura jornalística e dos debates
televisivos havia sido tão efêmera – para o que contribuiu a ausência do principal candidato
dos debates televisivos. Com isso, contudo, ainda é necessário refutar duas explicações por
demais simples. Uma é a de que a grande imprensa profissional não contribuiu para o
resultado das eleições. Outra é a de que o bolsonarismo estabeleceu seu domínio nas redes
apenas por meio de manipulação e fakenews.
Como veremos em nossa discussão acerca dos protestos de 2013, a grande imprensa
foi ator decisivo no desfecho político das manifestações. Fez isso não na forma simplória de
um sequestro de “demandas legítimas da população”, como muito propuseram, mas por um
processo complexo e habilidoso de ressignificação das pautas e formação de um discurso
37

unitário capaz de articular ideias e valores muitas vezes conflitantes. Foi também a cobertura
midiática que impulsionou os protestos na Grande Onda 4 e que pautou mesmo o debate na
internet. A ação da mídia sob os governos lulistas foi decisiva para o grau de deterioração das
instituições democráticas, para a marginalização do PT no debate público e para a polarização
que cindiu o país de forma ainda irremediável.
Ocorreu, em 2018, que a grande mídia não teve meios de conter o fluxo da maré que
desencadeou ao longo de décadas. Da mesma forma que a agenda dos protestos de 2013 foi
ressignificada em termos de oposição ao PT, a agenda antipetista também foi alvo de disputas
ideológicas, sendo envolvida por um discurso que soube conduzi-la a uma nova maioria
conservadora. Como sabemos, as disputas hegemônicas não se dão ao gosto dos contentores,
são mediadas pela realidade e transformadas pela ação dos agentes sociais. Já em 2013
estavam presentes os elementos que conduziriam o bolsonarismo à formação de um polo
político antipetista em oposição também aos tradicionais partidos da direita brasileira. O
bolsonarismo também obteve êxito em se associar a órgãos de imprensa, notadamente
televisões de segundo escalão, numa campanha cuja rival soberana Globo, a despeito de seus
longos serviços antidemocráticos, recusou-se a apoiar o candidato do PSL. Hoje, Globo e
demais veículos da grande imprensa, identificados como a mídia inimiga do bolsonarismo,
ainda se esforçam na busca de uma alternativa que não passe pelo PT. Contudo, o ambiente
político que ajudaram a construir se mostra mais forte que os criadores, resistindo a
polarização entre o lulismo e o bolsonarismo.
Outro obstáculo que propomos superar é o da primazia explicativa da manipulação
política. Certas análises tendem a dar grande ênfase nos processos de propaganda e na
manipulação emocional dos eleitores, por isso os associamos aqui a certa linha interpretativa
que credita a vitória de Bolsonaro às fakenews e à desqualificação do debate nas redes sociais.
Diversos livros e pesquisas têm atentado para a importância dos novos recursos
comunicacionais nos processos eleitorais pelo mundo, inclusive no caso específico do Brasil.
Contudo, a questão que levantamos é: o discurso nas redes sociais poderia ser efetivo sem ter
por base grupos sociais que portem ou se identifiquem com o valores expressos pelas
fakenews e demais postagens? Um meme seria capaz de decidir um voto sem que o indivíduo
que o recebe e compartilha tenha identidade ideológica com o conteúdo veiculado? Parecem
questões óbvias, mas têm grandes implicações. O que propomos é inverter a ordem de

4 O conceito de Grande Onda será discutido no capítulo 2. Provisoriamente, registramos que se trata dos
protestos que ocorreram entre 17 e 22 de junho de 2013 e que apresentaram maiores volumes de mobilização e
pautas diferenciadas em relação aos protestos que ocorreram até o dia 13 de junho. Ver mais na página 47.
38

relevância dos fatos, pondo no centro a conformação social e ideológica do bolsonarismo, que
teria determinado a eficácia de seus recursos nas redes sociais.
Pensemos de forma ampla na fakenews de Bolsonaro, o kit gay. Junto às conspirações
globalistas que uniriam comunistas como George Soros, Fernando Henrique Cardoso, Bill
Clinton e tantos outros, junto à promiscuidade sexual e cultivo de drogas nas universidades
públicas, junto a tantas outras idiossincrasias da campanha bolsonarista, estas narrativas
pariram uma miríade de notícias falsas que pautaram tanto apoiadores quanto opositores de
Bolsonaro. Procuraremos neste trabalho associar a eficiência desses recursos de propaganda e
o conteúdo geral da candidatura Bolsonaro, com base no papel da ideologia no processo
decisório.
A reafirmação do papel da ideologia nos processos decisórios do voto se deu pelo
reentendimento do seu significado pelo conceito de identificação ideológica. Admitindo a
baixa prevalência do pensamento estruturado no eleitorado, a identificação ideológica propõe
situar a ideologia no que a literatura política psicossociológica identificava como foco
ideológico fraco.

Aproveitando a distinção introduzida por Stokes (1996) entre “foco


ideológico forte” e /’foco ideológico fraco”, Sartori diz que, entre o contínuo
que vai do voto por questão (foco ideológico forte) ao voto por identificação
(desestruturado), é necessário incluir o “voto por imagem” do partido, que
equivaleria a um voto ideológico no sentido fraco, isto é, difuso. (SINGER,
2002, p. 32)

A ideologia, nos termos em que a utilizamos neste trabalho, se refere a uma ampla
noção do conjunto de valores e ideias que formam a visão de mundo de determinado grupo
social. O grau de estruturação da compreensão dos indivíduos sobre a ideologia, para ficarmos
nos termos propostos pelo pensadores do comportamento eleitoral, são variados e dependem
de fatores como nível educacional, engajamento político e trajetória pessoal.
Singer (2002) propõe que até a eleição de 1994, a distinção ideológica entre esquerda
e direita no Brasil possuía uma característica que a diferenciaria da definição em outros países
de democracias liberais. Conforme proposto por Bobbio (1995), o centro atual da distinção
esquerda/direita se daria em torno do debate da igualdade e da liberdade, situando-se a
esquerda no polo cujas políticas privilegiariam a mesma, e a direita no polo que defende o
progresso pela liberalização das leis de mercado. No caso brasileiro, Singer deduz de uma
série de pesquisas que o tema igualdade era relativamente constante na preocupação de
eleitores de ambos os lados do espectro ideológico. Partindo das mesmas pesquisas, o autor
39

sugere que, no contexto das eleições presidenciais brasileiras de 1989 e 1994, a questão
central para o entendimento da percepção ideológica do eleitorado era outra.

Em suma, a clivagem esquerda-direita se dá não tanto em torno da realização


de mudanças em favor da igualdade porém ao redor de saber se essas
mudanças se darão por meio da autoridade reforçada do Estado ou contra
ela. A direita quer igualdade por intermédio de forte intervenção estatal e
autoridade reforçada. A esquerda é moderada no que diz respeito à
intervenção estatal, mas claramente contra o reforço de sua autoridade
repressiva. O centro tende a ser contra a intervenção estatal na economia,
mas moderadamente a favor de sua autoridade repressiva. (SINGER, 2002,
p. 157)

Singer constrói seu referencial com base nos períodos de 1945-1964 e nas eleições de
1989 e 1994. Para se ter uma ideia mais clara de como aplica seus conceitos na prática
política, vale notar que o autor situa Collor no espectro da direita, FHC no centro e Lula à
esquerda, nos contextos de 1989 e 1994. Dado o caráter relacional da dinâmica direita-
esquerda, foi possível uma ressignificação das posições a partir da vitória petista em 2002. A
direita se afirmando como a negação da esquerda passou a ser identificada com os partidos de
oposição liderados pelo PSDB e o atual DEM. O atual MDB, passando novamente a compor
as hostes governistas, passara a formar o centro, junto a uma miríade de organizações
menores atualmente chamadas de centrão. Nas eleições subsequentes, a polarização entre PT
e PSDB foi, no campo ideológico, a disputa entre direita e esquerda, ambas disputando o
apoio do centro. Temos elementos bastantes para supor que o equilíbrio entre os polos
políticos em relação ao tema da igualdade sofreu severas transformações no período lulista,
sobremaneira em resposta a políticas públicas que buscaram alcançá-la.
Mais adiante, a partir de 2013, o amplo fenômeno político e cultural que chamamos
por onda conservadora produziu novas transformações no sentido da relação direita-esquerda.
A eleição de 2014 já havia demonstrado uma recessão nas bases do lulismo e uma acentuação
da polarização político-ideológica do eleitorado. Em comparação com a eleição de 2006, onde
o candidato tucano Geraldo Alckmin buscou se desvincular dos governos do PSDB e das
políticas de privatização, aquela trouxe de volta a agenda da privatista e da redução do Estado.
Portanto, apesar das muitas peculiaridades da agenda eleitoral de 2018, é razoável supor que
esta eleição ocorreu dentro de uma trajetória de longo prazo oriunda pelo menos desde 2013,
no contexto da onda conservadora.
Sendo conceitos relacionais, conforme aponta Bobbio (1995), direita e esquerda foram
alvo de um esforço de redefinição por parte do bolsonarismo que buscou empurrar setores até
então identificados com a direita para uma percepção pública de pertencimento à esquerda,
40

como no caso de FHC e mesmo de Delfim Neto, ministro da Economia na Ditadura Militar. E
aqui nos parece ter validade a definição de Singer no contexto das eleições de 1989 e 1994.
Uma marca distintiva crucial entre a direita populista emergente e a direita tradicional que
rivalizara com o PT na Nova República está na defesa da nova direita do fortalecimento do
papel repressivo do Estado, fenômeno que teria fundamentos mais remotos que a contingente
crise da segurança pública. A opção por Bolsonaro não seria apenas resultado de uma
percepção de que as alternativas em disputa não possuíam um discurso duro o bastante contra
a criminalidade, ela remonta a uma visão do papel do Estado em que este é ativo na repressão
aos atores dissidentes. Assim, não se trata apenas de uma polícia forte e operante, muitas
vezes francamente violenta, como se reconhece ser a polícia paulista sob os governos do
PSDB. O papel repressivo do Estado na nova configuração ideológica da direita se estende à
repressão aos movimentos sociais, aos costumes tidos como ofensivos aos valores familiares e
religiosos e mesmo à exclusão da esquerda do debate público, como evidenciado pelas
declarações de Bolsonaro, quando o presidente prometeu varrer pra fora do país a corja dos
vermelhos.
Ao reavivar o ideário do Estado repressor, o bolsonarismo empurrou à esquerda a
direita tradicional, tendo seu caminho facilitado pela crise de representatividade que se abateu
sobre seus principais partidos e lideranças. Desta forma, pôde polarizar com a esquerda o
debate público, a despeito da grande influência do campo liderado pelo PSDB, e atrair a suas
fileiras amplos setores da direita e do centro, unidos em torno da rejeição ao PT.
Como veremos, o bolsonarismo sintetizou todos os principais elementos da
rearticulação da ideologia conservadora em 2013: o sentimento antissistema, a revolta seletiva
contra a corrupção, a rejeição aos partidos tradicionais e o recrudescimento dos valores
morais conservadores. Uma conceituação provisória do bolsonarismo deve incorporar todos
esses elementos, seus principais traços seriam: descrença nas instituições democráticas,
justificadas pela venalidade e corrupção generalizadas; revanchismo diante das políticas
públicas de redução da desigualdade, amparadas na ideologia meritocrática; ideal autoritário
associado ao papel repressivo do Estado, que deve estar a serviço da defesa dos valores
religiosos e familiares, intensificado no discurso nós contra eles tão caro aos populismos.
Estes seriam os elementos constitutivos do núcleo bolsonarista, núcleo que seria a base
principal da adesão eleitoral a Bolsonaro até o momento em que este se associa ao projeto
econômico ultraliberal já na condição de candidato com possibilidades concretas de vitória. A
emergência de Bolsonaro como um candidato capaz de vencer as eleições foi fator decisivo
para que pudesse se apresentar como principal oponente do PT e sacramentar a desidratação
41

das demais candidaturas da direita. Se analisarmos os dados das eleições presidenciais na


Nova República, como faremos no capítulo 4, veremos que a tese da polarização ideológica
do voto se sustenta no cenário de 2018.
Vimos ainda em Moura e Corbellini que o personagem interpretado por Jair Bolsonaro
em 2018, o de um candidato de fora do sistema, teria sido determinante no resultado eleitoral.
Por essa lógica, os eleitores buscariam uma alternativa que desse respostas à crescente
desconfiança nas elites políticas, sobremaneira fortalecida pelos impactos da Operação Lava
Jato. Sem a necessidade de demonstrar a legitimidade de Bolsonaro ao se apresentar como um
candidato de fora do sistema político, o que pretendemos aqui é avaliar em que medida seu
êxito discursivo neste sentido foi decisivo na escolha do eleitor. O êxito na construção desta
imagem será tratado aqui como um pressuposto para o debate.
André Singer propõe, em O lulismo em crise (2018), que as disputas eleitorais no
Brasil seguem uma tendência histórica de consolidação em torno de três alternativas
ideológicas distintas, que para além da identificação com uma sigla partidária, se expressaria
na permanência de três projetos políticos distintos que se sustentam em bases sociais
particulares. Seguindo sua tipologia anterior de situar os partidos no espectro esquerda-direita,
Singer trabalha com os conceitos analíticos de esquerda, direita e centro. Com base na
identificação dos candidatos em relação à escala esquerda-direita, Singer demonstra que as
eleições na Nova República seguem consolidando uma clivagem interrompida pelo Golpe
Militar em 1964, tendo esses três campos como protagonistas. No contexto da polarização
entre PT e PSDB, que marcou as eleições anteriores a de 2018, Singer assim resume o
cenário: “Do ponto de vista ideológico, soluções de mercado (liberais) e por via do Estado
(reformistas) deram relativa consistência ao embate que opôs essas agremiações, apesar das
marcas populistas presentes nas duas experiências” (2018, p. 156).
A partir de 1994, o PSDB teria se firmado como expressão do polo ideológico de
direita no Brasil, defendendo soluções liberalizantes para os problemas nacionais, em disputa
com seu oposto relacional, o PT, que pelo espectro da esquerda expressaria um projeto
reformista com maior presença do Estado na economia e no enfrentamento das questões
sociais. O terceiro partido brasileiro seria o centro, que a partir de 1994 se consolida em torno
do PMDB, partido arquetípico dessa posição marcada pelas relações de clientela e pela
dubiedade ideológica, mantendo sempre abertas as possibilidades programáticas de adesão à
direita ou à esquerda exatamente pela ausência de um programa claro. O ex-presidente da
Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (PP), certa vez expressou como poucos essa
posição ao declarar que “minha sina é ser governo”.
42

Contudo, o que observamos é que novamente há entre a eleição de 2018 e suas


predecessoras uma constância entre a votação dos candidatos e sua posição na escala
ideológica esquerda-direita. Propomos, e buscaremos demonstrar no capítulo 4, que o
deslocamento eleitoral em 2018 se deu nos termos da ascensão de um novo polo aglutinador,
o bolsonarismo, que pode se apresentar como alternativa à direita contra o lulismo. Nesse
processo, o bolsonarismo pôde formar ampla coalizão entre diversos setores da direita e do
centro, conforme já sugerimos.
Diante da observação da permanência da clivagem ideológica e dos ciclos de
processos antidemocráticos recorrentes no Brasil, que serão debatidos no capítulo seguinte,
propomos que a eleição de 2018 mantém a dinâmica eleitoral competitiva da Nova República,
ao reproduzir a polarização esquerda-direita, com o centro atuando como força cooptável em
disputa por ambas. Assim, não apenas não se justificaria a tese de uma eleição disruptiva
como também ficaria evidente que as particularidades da eleição de 2018, seus eventos e
processos peculiares, embora importantes para a explicação dos resultados, não seriam causa
suficiente nem fatores determinantes na vitória de Bolsonaro.

1.2.2 Lulismo: contra-hegemonia ou hegemonia neoliberal?


Jessé Souza e Fábio Santos fundamentam suas análises sobre o declínio lulista essencialmente
no mérito dos governos petistas em incluir ou excluir os setores marginalizados da sociedade
brasileira na política e na economia. O dilema que se estabelece no confronto entre a visão
desses dois autores parece estar centrado numa pergunta de difícil resposta: os governos
petistas representaram, numa perspectiva de esquerda, avanço ou retrocesso? A dificuldade
maior em responder a tal questão está no fato de que não há uma métrica universal que possa
ser adotada para comparar os resultados mais diversos do governo à referida perspectiva de
esquerda, trata-se, essencialmente, de uma escolha baseada em pressupostos. Conforme
discutiremos no capítulo 3, há diversos indicadores econômicos e sociais que podem
fundamentar uma leitura progressista do lulismo, leitura esta a qual nos alinhamos,
acompanhados em diversas conformações por autores como André Singer, o próprio Jessé
Souza, Lilia Schwarcz, Marcio Pochmann, Leonardo Avritzer e outros. Mas também é
admissível, dentro de uma perspectiva política determinada, com base nos mesmos elementos,
propor que o lulismo representou uma regressão política da esquerda e o fortalecimento do
projeto neoliberal, com perdas de direitos e desorganização dos trabalhadores, como
defendem a seus modos Fábio dos Santos (2018), Francisco de Oliveira (2010), Ruy Braga
(2012) e outros. Para estes, coerentemente, os eventos de junho de 2013 foram a irrupção nas
43

ruas do crescente descontentamento popular com as limitações da conciliação lulista, para


outros, aos quais nos alinhamos, acabou sendo o marco da emergência de um polo político
marcado pelo conservadorismo.
A polêmica em torno da valorização qualitativa dos governos petistas determinou a
divisão entre os campos de análise acerca dos protestos de 2013 e, como não podia deixar de
ocorrer, determina também as abordagens distintas acerca dos significados da eleição de
Bolsonaro. Um cerco a um projeto de emancipação, ainda que limitado, ou a mudança de
forma acerca dos caminhos da dominação burguesa sobre a sociedade brasileira? Um
retrocesso no processo civilizatório brasileiro, encerrando uma recente e incipiente trajetória
de ascensão das camadas populares, ou uma nova fase do processo de desintegração da
esquerda que teria sido intensificado sob o lulismo? Cremos ser impossível apontar uma
resposta sem ter que admitir pressupostos, o que numa definição ideal de ciência seria
plenamente indesejável. Não cremos, contudo, que seja possível uma ciência política ampla
completamente livre de pressupostos. Quando se debate a necessidade de se fortalecer as
instituições democráticas, partimos de um pressuposto de forma alguma irrefutável de que a
democracia merece ser defendida. Portanto, o que nos resta é – uma vez admitidos e
esclarecidos os pressupostos – buscar justificá-los de forma objetiva, buscando na realidade,
sujeita a interpretações diversas, os indícios que confirmariam ou contrariariam nossas
escolhas; e, sobretudo, buscar evitar o viés de confirmação, zelando pela coerência entre a
teoria e o dados concretos analisados. Não cremos com isso, de forma alguma, nos
aproximarmos de certa tendência epistemológica que nega a primazia dos fatos sobre a teoria,
apenas nos resignamos a saber que nossa aproximação dos fatos se dá através da teoria e de
seu confronto constante com os dados disponíveis.
Portanto, a confrontação entre as teses de Souza e Santos, e com elas, tem como
requisito um debate mais amplo sobre os impactos dos governos petistas nos processos
políticos e na dinâmica social brasileiros; é o que pretendemos realizar no capítulo 3. Mas
antes de ingressarmos nesse debate, julgamos adequado proceder a uma análise do contexto
de regressão democrática verificado no país, que num plano mais amplo coincide com a crise
mundial das democracias liberais que vem se acentuando desde os anos 1970. Faremos essa
discussão no capítulo 2. O capítulo 4 dedicaremos a demonstrar como se deu a ascensão de
um novo polo político no campo da direita brasileira, notadamente verificado no
esvaziamento da candidatura de Geraldo Alckmin em 2018 e na vitória do candidato do então
obscuro PSL, ocasião na qual avançaremos sobre as conclusões anteriores para demonstrar
como Bolsonaro, cujo protagonismo não seria de forma alguma uma tendência natural, pôde
44

se constituir na alternativa específica do campo da direita em 2018, forjando uma ampla


coalizão de interesses e grupos sociais contraditórios entre si mas unidos no combate ao
lulismo.
45

2 O BRASIL E REGRESSÃO DEMOCRÁTICA

7 de setembro de 2018. O desfile comemorativo do Dia da Independência chegava a seu ponto


final na avenida Prudente de Morais, em Natal. Na ocasião, diversos grupos então engajados
na campanha de Bolsonaro à presidência viram no evento momento oportuno de se
manifestar. Como vínhamos estudando as origens de tais grupos e suas manifestações desde
nossa pequisa para a dissertação A vos das e a rearticulação da ideologia conservadora,
decidimos acompanhar os protestos anunciados in loco. Pudemos observar enquanto o
repórter de uma rede televisa local, TV Cabugi, entrevistava uma senhora. A mulher
carregava um caixão estandarte que entre outras coisas exigia Intervenção militar já! A
distância e o barulho da multidão nos impediram de ouvir o que ela dizia. Coincidentemente,
ao almoçarmos numa padaria próxima, vimos a matéria no jornal local da Rede Globo, RN
TV, primeira edição, e logo pudemos ouvir a mesma senhora se pronunciando contra o
descaso dos poderes públicos e a corrupção. Os dizeres do caixão estandarte não apareciam
suficientemente claros no enquadramento da câmera. Terminada a matéria, o apresentador do
jornal comentou a declaração da mulher, que expressaria o sentimento de todos nós naquele
dia. Longe de supor que os jornalistas que cobriram ou comentaram o eventos tivessem
simpatias por qualquer intervenção militar ao se fazerem consoantes com a entrevistada, o que
nos parece expressar o evento aqui narrado é a ampla desconsideração por parte de jornalistas
e analistas políticos da real emergência nas ruas de grupos sociais contrários à democracia,
isso mesmo cinco anos após os protestos de junho de 2013. Talvez pensassem que mais uma
vez não faria muita diferença o que exatamente aquela mulher pensava – ou porque as pessoas
veriam apenas o que sairia na TV ou porque seriam ideias tolas e ingênuas. A ingenuidade,
contudo, estava do outro lado da discussão. O fato é que essas pessoas e as suas ideias há
pouco estranhas tinham agora a convicção e o sentimento de força necessários para se
expressarem, pedindo por intervenção militar, pelo fechamento do Congresso e outras tantas
pautas autoritárias que saíram com cada vez mais impacto às ruas. Ignorado pelo repórter e
pelo apresentador – talvez estimulados pela crença de que os meios da grande imprensa ainda
deteriam o monopólio da construção do debate público – o sentimento antidemocrático
crescente se alimentava da própria tentativa de manipulá-lo, mirando em direção ao status
quo liberal, conforme ocorrera em 2013.
46

2.1 2013 e os impulsos autoritários

Quando os protestos de 2013 pegaram a sociedade política de surpresa, o Brasil vinha de


décadas de um consenso em torno das instituições democráticas que represava qualquer
expressão mais significativa desse sentimento nas amplas esferas do debate público. Jair
Bolsonaro era membro do baixo clero, visto como político caricato e irrelevante. As ideias
autoritárias circulavam envergonhadamente em casernas e salas mofadas de saudosos da
Ditadura Militar. Mas a partir dali esse panorama mudou, muito.
Em nosso estudo anterior sobre 2013, dividimos os momentos dos protestos de junho
em três fases; seriam elas: os movimentos estudantis de 2013, a Grande Onda e os
movimentos esparsos. Tal classificação foi delimitada com bases em questões específicas:
“quais as pautas predominantes nos protestos durante a etapa em questão?; que forma de
organização, direção ou mobilização foi predominante?; e qual suas dimensões?” (GIROTTO,
2014). A seguir, retomaremos a tipologia utilizada naquele estudo5.
O tipo de protestos que incluem-se na fase denominada "movimentos estudantis de
2013" engloba aqueles que vão até o dia 13 de junho. Estes atos foram caracterizados por um
nível menor de mobilização. No auge desse período, o próprio dia 13 de junho, foram
mobilizadas 5 mil pessoas em São Paulo. Nos demais protestos, a média de manifestantes
rondava a casa das centenas. A pauta estava centrada na exigência da redução das tarifas do
transporte público. E apesar da forma de organização horizontal, os protestos eram
convocados por movimentos sociais e estudantis com organização em escolas e universidades,
a exemplo da capital paulista onde o Movimento Passe-Livre (MPL) foi protagonista. Além
da liderança do MPL, os protestos tiveram, já nesta etapa, destacada presença das oposições
de esquerda e de atores sociais de orientação anarquista ou autonomista. Dentre os tantos
militantes de organizações políticas de esquerda, também constavam aqueles alinhados ao
Partido dos Trabalhadores (PT) e a outros partidos da base governista. Contudo, sendo a
prefeitura de São Paulo, dirigida por um petista, um dos alvos centrais das manifestações, era
sensato esperar que as iniciativas mais contundentes e efetivas partissem das forças
oposicionistas de esquerda. Embora a motivação central dos movimentos estudantis de 2013
fosse a redução das tarifas, ou cancelamento dos aumentos das tarifas do transporte público, é
inegável que a bandeira da Tarifa Zero, levantada pelo MPL, obteve significativas adesão e
visibilidade.

5 A fim de evitar uma muito longa e desnecessária citação, transcreveremos quase literalmente nossa
definição anterior, remetendo o aprofundamento da discussão e um relato resumido dos eventos de 2013 ao
trabalho já citado (GIROTTO, 2014).
47

O período identificado como Grande Onda corresponde às semanas imediatamente


posteriores ao 13 de junho. Nele ocorreram protestos com dezenas de milhares de pessoas, a
exemplo de São Paulo que apresentou o seguinte quadro de mobilização nas duas primeiras
semanas: 65 mil manifestantes no protesto de 17 de junho; 50 mil em 18 de junho; 100 mil em
20 de junho; e 35 mil em 22 de junho. As pautas se diversificaram, abarcando desde
reivindicações concernentes à ampliação do acesso e da qualidade dos serviços públicos, até o
descontentamento com os gastos na Copa do Mundo de 2014 e a denúncia da corrupção
pública. Sua mobilização não se dava mais prioritariamente pelas redes de movimentos
sociais e estudantis, mas sim através da imprensa, sobretudo a televisão, e de redes sociais da
internet, de forma difusa.
Os movimentos esparsos tiveram vez após o protesto das centrais sindicais e
entidades dos movimentos sociais em 11 de julho. Retomaram os níveis de mobilização
anteriores a 13 de junho. Passaram a ser convocados e parcialmente dirigidos por movimentos
sociais organizados, movimentos autonomistas e partidos de esquerda. Preservaram a
fragmentação das pautas, contudo, com uma diferença essencial em relação à Grande Onda:
os movimentos não mais faziam parte de um processo de mobilização capaz de criar laços de
solidariedade mútuos e identificação de amplos setores, laços percebidos na Grande Onda.
Pelo contrário. Exemplo disso, os movimentos como Não vai ter Copa ou Vai ter Luta na
Copa eram declaradamente opositores ao Governo Federal, já os movimentos que ainda
persistiram por algum tempo na defesa de um plebiscito pela reforma política se identificavam
com as forças governistas. A partir de então, não mais se disputavam os rumos de um
movimentos, mas movimentos distintos disputavam entre si a simbologia da Grande Onda.
Numa releitura atual, percebemos que de tal tipologia aquela que realmente faz
avançar na compreensão dos eventos em foco é a noção da Grande Onda. Primeiro, porque os
movimentos estudantis de 2013 fazem parte – apesar de suas peculiaridades – da longa
tradição do movimento estudantil brasileiro, que sempre teve nos transportes públicos uma
agenda central. Segundo, porque os movimentos esparsos – embora disputassem, e alguns
disputem até hoje, a herança da Grande Onda – demonstraram em seu decurso que os vínculos
com a Grande Onda são quando muito simbólicos, simbologia esta que acreditamos ter se
enfraquecido a ponto de poder ser vista atualmente como uma impostura. Contudo, para
efeitos expositivos, nos servirá bem a delimitação temporal sugerida pela tipologia exposta.
Um dos fatos mais representativos da Grande Onda foi a exclusão das ruas das
bandeiras partidárias e de movimentos sociais, que eram presença destacada até então nos
movimentos estudantis de 2013. Em diversas capitais brasileiras, militantes de esquerda foram
48

obrigados por manifestantes a guardar suas bandeiras de partidos políticos, entidades


sindicais, estudantis ou do Movimento Sem Terra (MST), e nessa exclusão tiveram a
solidariedade e mesmo o apoio ativo de setores autonomistas – ao menos até o momento em
que estes também passaram a ser hostilizados. Militantes de esquerda mais notórios, ou
aqueles caracterizados com cores e insígnias de suas organizações, chegaram a ser agredidos.
Entre as palavras de ordem entoadas, destacavam-se também gritos contra a Rede Globo. A
hostilização aos profissionais da imprensa, hoje marca dos mais ativos militantes do
bolsonarismo, partia com frequência tanto dos manifestantes antipartidários quanto de
militantes de esquerda, nos raros momentos em que estes podiam se sentir parte da comunhão
das massas. Não tiveram então qualquer destaque pautas como a intervenção militar ou outras
agendas autoritárias. O sentimento antidemocrático se articulava ali a partir da tentativa bem
sucedida de excluir a esquerda organizada das ruas; eis o embrião da intolerância e da agenda
antidemocrática hoje no centro dos debates nacionais. Nos protestos, dominava a tônica do
contra tudo o que está aí, mas como a alternativa não estava posta e as principais forças
políticas do país não desejavam nem podiam ser essa alternativa, ela teria de ser engendrada
em outros espaços. 2013 foi o marco da ascensão ao debate público daquilo a que se tem
chamado por onda conservadora.
Manifestações estudantis contra aumentos nas tarifas de transporte público não eram
novidade em 2013, quando eclodiu a Grande Onda; elas ocorreram anualmente, ao longo das
décadas anteriores, em diversas cidades brasileiras, e se associavam a outras questões como a
defesa do passe-estudantil e da qualidade nos serviços de transporte público. O fato mais
recente, a novidade destes movimentos, era então a emergência de novas formas de
organização como protagonistas. Movimentos autonomistas e coletivos horizontalistas já
substituíam nas ruas entidades tradicionais como a UNE (União Nacional dos Estudantes) e a
UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas) há alguns anos. Em Natal-RN, eram
esses novos atores que estavam à frente de protestos como o Fora Micarla, em 2011, que
também teve seu estopim a partir de um reajuste na tarifa do transporte público, e a Revolta
do Busão já em 2012, se estendendo até os eventos de junho de 2013 e mantendo, atualmente,
algum nível de mobilização.
As manifestações que vimos nas ruas até 13 de junho de 2013, o mais importante ato
dos movimentos estudantis naquele ano, foram as últimas daquela primeira fase do ciclo de
protestos de 2013. Já no dia 16 de junho tivemos nas ruas de diversas cidades brasileiras, e
mesmo em pontuais atos fora do país, um outro movimento. Este novo movimento sucede os
movimentos estudantis de 2013, apoia-se parcialmente em suas bandeiras e as mantém vivas
49

como símbolo da revolta contra a violência policial e o descaso com os cidadãos. Contudo,
são outra coisa. O breve espaço de tempo em que se dá tamanha transformação no conteúdo e
na representatividade dos protestos reforça a confusão geral em que os eventos de 2013 são
debatidos, como se ali tivéssemos uma sequência natural de eventos que corresponderiam a
um mesmo processo.
Tendo estudado o tema com alguma permanência desde que veio à tona, não
encontramos sequer um analista que tivesse previsto a possibilidade de erupção de um
descontentamento tão amplo e intenso naquele ano. Quem mais próximo chegou de identificar
as bases de tal movimento na sociedade, a nosso ver, foi Fernando Henrique Cardoso, no
artigo O papel da oposição, de 2011, onde identificava novos atores sociais que considerava
negligenciados tanto pelos partidos governistas quanto pela oposição, e que seriam presença
destacada nos protestos da Grande Onda:

toda uma gama de classes médias, de novas classes possuidoras (empresários


de novo tipo e mais jovens), de profissionais das atividades contemporâneas
ligadas à ti (tecnologia da informação) e ao entretenimento, aos novos
serviços espalhados pelo Brasil afora, às quais se soma o que vem sendo
chamado sem muita precisão de "classe c" ou de nova classe média.
(CARDOSO, 2011)

Pesquisa Ibope realizada em sete capitais durante os protestos do dia 20 de junho, os


maiores da Grande Onda, revelam alguns fatos sobre as particularidades destes. Se para
37,6% dos entrevistados o transporte público era a motivação central de protestar (27,8%
especificamente se preocupando com o aumento das passagens), para 29,9% o principal
motivo de saírem às ruas era o ambiente político, sendo a corrupção a motivação principal de
24,2% dos entrevistados. Saúde apareceu como motivação de 12,1%; educação com 5,3%; já
os gastos com a Copa do Mundo e das Confederações, 4,5%. Reação à ação violenta da
polícia e justiça e segurança pública, cada uma, foram apontadas por 1,3% dos entrevistados,
o que pode indicar que já no dia 20 a Grande Onda teria afirmado sua pauta diferenciada em
relação ao legado dos movimentos estudantis de 2013, especialmente a reação à violência
policial em SP e Porto Alegre.
Quando somadas as três principais razões apontadas pelos manifestantes temos um
quadro ainda mais esclarecedor. O tema mais citado no geral foi o ambiente político, com
65% das menções (corrupção, particularmente, com 49%). O transporte público aparece com
53,7%. Em terceiro lugar na motivação dos manifestantes, os gastos com a Copa, com 30,9%.
Mesmo contabilizadas as três principais causas que levaram as pessoas a protestar, a reação à
violência policial só foi citada por 4,1% dos entrevistados.
50

A terceira maior motivação principal (aquela declarada pelo entrevistado como a


primeira causa de sua adesão aos protestos) foi a rejeição à PEC 37, manifestada por 5,5%. A
PEC 37 foi vendida à época como uma tentativa de setores aliados ao governo de reduzir o
combate à corrupção, e sua rejeição era uma agenda particular de setores do Ministério
Público. Superando temas como os gastos com a Copa de 2014, saúde e educação na
importância percebida pelos manifestantes, esta pauta talvez já prenunciasse a adesão de
amplas camadas aos processos político-jurídicos futuros da Lava Jato. Já ao se computar as
três principais motivações dos manifestantes, a PEC 37 cai para sexto lugar, constando da
preocupação central de 11,9% do entrevistados. Este dado sugere que os grupos mobilizados
em torno da pauta, embora fossem um contingente relativamente menor, possuíam forte
centralidade no tema, abrindo a possibilidade de termos neste segmento específico um grupo
de manifestantes mais organizados e coesos, sobretudo com maior inserção nos espaços da
grande mídia.
Vemos, portanto, que embora o tema dos transportes públicos, herdado dos
movimentos estudantis de 2013, permanecesse na mente das pessoas, sua importância em 20
de junho já era secundária, quando os protestos se moveram, principalmente, em torno do
ambiente político e da revolta com a corrupção.
Quanto ao perfil dos entrevistados, houve igualdade de gênero: dentre os critérios da
pesquisa, 50% do sexo masculino e 50% do sexo feminino. A maior parcela dos manifestantes
pertenciam aos estratos mais jovens: 14 a 24 anos: 43%; 25 a 29 anos: 20%; 30 a 39 anos:
18%; 40 anos ou mais: 19%. Os longos itinerários e a desgastante duração dos protestos
podem ter sido um desestímulo à participação de pessoas de maior idade, ainda assim fica
patente a prevalência dos jovens nos protestos de junho de 2013.
É nos quesitos educacionais, contudo, que temos os dados que mais destoam do
quadro social brasileiro. 52% dos entrevistados estavam estudando. 49% possuíam colegial
completo ou superior iniciado. E significativos 43% dos manifestantes possuíam curso
superior completo.
Já em relação à renda familiar, 15% se situavam na faixa até 2 salários mínimos; 30%
entre 2 e 5 salários mínimos; 25% entre 5 e 10 salários; e 23% possuíam renda familiar
superior a 10 salários mínimos. Segundo dados de 2008 compilados por Marcio Pochmann
(2014, p. 69-70), poderíamos localizar 85% dos manifestantes de 20 de junho no estrato
superior de renda do país, que abrangia à época 36% da população nacional.
Embora os dados sejam reveladores, recomendamos cautela em sua leitura. Há um
conjunto de fatores que podem redundar numa menor participação das camadas de baixa
51

renda em protestos dessa natureza, desde os custos de locomoção à menor organização em


aparelhos da sociedade civil. Por si só, a composição social e econômica dos protestos não
atestam seu caráter conservador. Tal fenômeno, que parece constante no processo de
mobilização politica da sociedade brasileira pode ser melhor compreendido à luz da leitura de
José Murilo de Carvalho sobre a lenta e contraditória, e inacabada, trajetória da afirmação da
cidadania no Brasil. No prefácio de 2020 de sua importante obra Cidadania no Brasil,
Carvalho avança seu entendimento dos eventos de 2013 no sentido do que temos proposto.

Pelo que se pode ver nas imagens amplamente divulgadas na mídia impressa
e televisiva e, sobretudo, nas redes sociais, e deduzir de algumas rápidas
pesquisas feitas no calor da hora, o grosso dos manifestantes compunha-se
de representantes da classe média, sobretudo da juventude estudantil. A ser
assim, haveria semelhança com o movimento dos caras-pintadas da época do
impeachment. Mas em todos os exemplos, embora os manifestantes não
constituíssem amostra fiel da população, conseguiram despertar ampla
simpatia, senão apoio. Seus principais opositores, ironicamente, localizaram-
se dentro dos órgãos tradicionais de organização da sociedade, como
partidos sindicatos e organizações estudantis. (CARVALHO, 2020, p. 9-10)

Se concordamos com Carvalho ao compreender que a composição social dos protestos


não é causa suficiente para determinar seu caráter conservador, divergimos no entendimento
da posição das organizações da sociedade civil durante os atos, sobretudo conforme
explicitado pela última sentença da citação anterior. É bem verdade que, após o desfecho dos
protestos de 20 de junho, as organizações dos movimentos sociais tenham se voltado contra o
conteúdo político da Grande Onda, mas essa reorientação só ocorreu após ficarem evidentes
os sentidos da voz das ruas. Até o dia 20 de junho de 2013, as entidades de trabalhadores,
estudantes e movimentos sociais não apenas aderiram e mobilizaram para os protestos, como
tentaram disputar e reorientar seu conteúdo político. Estudantes fizeram plenárias de
mobilização. Sindicatos realizaram suas reuniões. A militância partidária compareceu às ruas
com suas bandeiras. Mais preciso que situar esses setores como opositores dos movimentos
seria apontá-los como minoria derrotada. Desde a eleição de Lula em 2002, esses setores se
fizeram crescentemente menos presentes nas ruas, o que supomos ser explicado em parte pela
adesão de seus dirigentes ao governo, bem como pela compreensão de que seria necessário
defender um governo que, ao menos parcialmente, atendia a suas demandas. A sociedade civil
organizada encontrou diversos espaços de participação institucional nos governos petistas,
através de conferências, conselhos e outros instrumentos participativos. A estratégia de
mobilização de massas parece ter sido secundária no período. Assim, a ironia realmente
presente nas ruas em junho de 2013 foi outra, a ironia de as organizações tradicionais dos
52

movimentos populares terem sido rejeitadas e ignoradas pela massa de manifestantes que
ocupou as ruas.
Ainda no dia 20 de junho, sindicatos, partidos e entidades políticas das mais diversas
começaram a se reunir e discutir saídas para disputar as ruas, agora sim já compreendendo
que necessitavam se opor aos protestos afluentes. A resposta foi uma mobilização em 11 de
julho, promovida por essas entidades, com conteúdo político claro e recurso a ferramentas que
tiveram pouca relevância na Grande Onda, como os carros de som onde os dirigentes
lembravam a todo instante a pauta da mobilização. Contudo, os protestos das entidades do
movimentos sociais sequer perigaram obter a força e vitalidade da Grande Onda. No contexto
da saída pactuada que teorizamos em 2014 (retomaremos esse tema no capítulo seguinte),
pode-se mesmo compreender os eventos de 11 de julho como o sepultamento da Grande
Onda.
A Grande Onda foi desde o início disputada em seus sentidos por diversas forças
políticas; as mais vigorosas delas sendo as bases de sustentação do governo e a oposição de
direita que fez seu recado chegar às ruas através da ação da grande mídia. A açã dessa mídia,
contudo, não se deu em termos ideais. Foi um intenso processo de diálogo com as ruas,
recepcionando suas vozes, reinterpretando seus conteúdos e reiniciando sucessivamente o
processo, hora após hora, numa cobertura em tempo integral. Em momento algum a Grande
Onda esteve fadada a ter as implicações políticas que teve. Os sentidos das “jornadas de
junho” foram construídos e disputados numa ferrenha luta política. Se podemos falar numa
onda conservadora como legado de junho é porque, contabilizados mortos e feridos, no final
foi o projeto conservador que saiu das ruas mais fortalecido.
Mesmo o significado do que temos dito segue em disputa. A onda conservadora de
que falamos nesta pesquisa é um fenômeno recente e ainda em curso. Ela não nasce, mas
emerge, em 2013, e tem raízes e implicações na trama social, na política, na cultura – enfim,
surge e transforma todos os aspectos da existência coletiva brasileira. Como fenômeno atual,
não apenas sua conceituação e necessária delimitação como também mesmo sua validade
estão em questão no debate acadêmico. Felipe Demier, na introdução do livro A Onda
Conservadora (DEMIER; HOUVELER, 2016), que organizou em parceria com Rejane
Hoeveler, atribui o pioneirismo no uso do termo a Guilherme Boulos, professor e
posteriormente candidato à presidência da República pelo Partido Socialismo e Liberdade
(PSOL), que em artigo publicado na Folha de São Paulo, reproduzido na obra acima
mencionada, definiu o fenômeno propondo que vivenciaríamos a “ascensão de uma onda
53

conservadora. Conservadora não no sentido de manter o que está aí, mas no pior viés do
conservadorismo político, econômico e moral. Uma virada à direita” (BOULOS, 2016, p. 10).
O artigo de Guilherme Boulos, referido anteriormente por Demier como pioneiro no
uso do conceito de onda conservadora, foi publicado na sequência do primeiro turno das
eleições de 2014, e quer Demier esteja certo ou não sobre o dito pioneirismo, é certo que a
noção de uma onda conservadora foi imediatamente questionada não apenas pelo campo da
direita, como também por setores da esquerda.
Para certos campos da crítica de esquerda, da qual elencamos um exemplo extremo, o
que estaria acontecendo, e as eleições de 2014 refletiriam isso, era um acirramento das lutas
de classes, no qual o proletariado começaria a compreender e se revoltar contra o reformismo
fraco do lulismo, numa conformação política que poderia indicar a iminência de profundas
transformações sociais e políticas no Brasil. Esta avaliação não surge deslocada no contexto
político nacional posterior aos protestos de junho de 2013, muito pelo contrário. É uma
avaliação perfeitamente integrada a uma corrente de pensamento que obteve grande
preponderância nos meios intelectuais de esquerda quanto à análise do movimentos de junho.
Essa corrente intelectual se alinha ao campo político das oposições de esquerda ao campo
petista, conforme tivemos a oportunidade de discutir no capítulo anterior.
Outro autor que questiona não apenas a validade como também a utilidade do conceito
é Rodrigo Nunes (2015). Em artigo publicado na Folha de São Paulo, em agosto de 2015,
Nunes discute o sentido do uso do conceito de uma “onda conservadora” como instrumento
explicativo da realidade do Brasil contemporâneo. Ele pergunta “Quanto de verdade há na
ideia de que existiria uma ‘ascensão conservadora’ em curso?” O autor sugere que a
complexidade dos dados sobre o perfil dos manifestantes que ocuparam as ruas em todo o país
em agosto de 2015 exigiria “uma leitura mais nuançada” do fenômeno. Ele segue sua análise:

Desde as eleições de novembro passado, e ainda mais com os protestos deste


ano, formou-se uma espécie de consenso de que estaríamos vivendo uma
ascensão conservadora. Este consenso, somado a uma ideia de que as quatro
vitórias eleitorais consecutivas do PT teriam ocorrido apesar da tendência
conservadora da maioria da população brasileira, pintam um quadro
dramático: de um país essencialmente de direita que estaria "saindo do
armário". (NUNES, 2015)

Nunes faz considerações relevantes, sobretudo ao propor uma questão essencial que se
refere ao papel da ressignificação nos processos de disputa política. Apontando alguns dados
estatísticos referentes aos protestos de agosto de 2015, que evidenciam uma flagrante
contradição nos termos da conformação ideológica dos manifestantes, ele questiona a
54

validade de identificar os protestos de rua que tomaram as principais cidades do Brasil em


2015 com uma onda conservadora. Assim ele resume seu ponto:

A narrativa da ascensão conservadora gosta de citar Antonio Gramsci para


dizer que o "senso comum" do brasileiro médio seria de direita. Mas, para
Gramsci, justamente o que caracteriza o senso comum não é ser um conjunto
completo de crenças ou um programa consistente, mas sua incoerência: ele
reúne ideias contraditórias (o desejo por serviços públicos de qualidade e a
diminuição da carga tributária, o moralismo e a garantia das liberdades
individuais) e mesmo mágicas (a corrupção é a causa única dos maus
serviços). Logo, manifestar ideias progressistas não implica necessariamente
apoiar políticas progressistas. Mas isso quer dizer, por outro lado, que a luta
contra o senso comum não passa por condená-lo ou ridicularizá-lo, mas por
identificar pontos de acordo –serviços públicos gratuitos, universais e de
qualidade, por exemplo– e construir argumentos coerentes a partir deles.
(NUNES, 2015)

Concordamos com Nunes ao recusar a noção da naturalidade do fenômeno


conservador contemporâneo no Brasil. Sobretudo, reforçamos a importância da compreensão
de que os sentidos ideológicos das manifestações não foram, de forma alguma, um amálgama
de impressões e orientações espontâneas das pessoas que saíram às ruas, mas sim um processo
de construção política que se deu mediante intensas disputas hegemônicas. Vamos além e
afirmamos que esse processo de disputa, em sua fase atual mais acentuada, teve início já nos
protestos de 2013, conforme propomos em nosso estudo sobre o período, A voz das ruas e a
rearticulação da ideologia conservadora, cujas ideias centrais debatemos ao longo deste
capítulo. Portanto, cabe assinalar que discordamos de Nunes quanto à negação da validade do
conceito de onda conservadora como ferramenta explicativa dos processos políticos e
ideológicos em curso no país.
As objeções que Nunes faz ao uso do conceito são lembranças importantes do risco
inerente a toda naturalização de conceitos científicos nas ciências sociais. Como Max Weber
já postulava, o progresso das ciências sociais consiste no acúmulo de explicações provisórias.
Ao construir uma definição conceitual, estamos muito mais criando uma ferramenta que
permita tornar certa interpretação inteligível e fazer avançar o conhecimento que dar forma a
uma expressão definitiva do fenômeno analisado. Desta forma, compreendemos que o valor
heurístico do conceito de onda conservadora está justamente na capacidade de expressar um
fenômeno social e político em curso com a flexibilidade e amplitude necessárias ao momento,
permitindo fazer avançar o debate acadêmico acerca deste fenômeno, sem contudo
inviabilizar seu progresso recusando-se ao incremento de novos elementos definidores. Esta
compreensão não nos dá, contudo, a liberdade de tratar do conceito em termos puramente
55

abstratos; é preciso defini-lo tanto quanto possível. O que não podemos é esquecer do caráter
provisório e prioritariamente heurístico da tal definição. Para avançar nessa discussão,
tentaremos construir um modelo do novo conservadorismo que aqui nos interessa, no caso o
fenômeno político e cultural recente que trouxe ao primeiro plano do debate público
concepções autoritárias do Estado, revanchismo frente às conquistas recentes de minorias
historicamente alijadas política e socialmente, crença no dever de o Estado ser um garantidor
dos costumes tradicionais, muitas vezes de orientação religiosa, e uma clara orientação
ultraliberal nos planos político e econômico.
Parece-nos sobrarem indícios de que algo significativo ocorreu a partir do interstício
das eleições de 2010 e 2014, um movimento de deslocamento de importantes parcelas do
eleitorado para o espectro ideológico mais próximo à extrema-direita. É também o que nos diz
André Kaysel:

Talvez uma das grandes novidades do atual panorama político brasileiro seja
a emergência de uma forte corrente, tanto nos meios político-partidários,
como na opinião pública em geral¸ que se assume claramente como sendo
“de direita”. Esse “orgulho direitista” recém-adquirido parece contrastar com
a história de uma sociedade na qual, talvez pelos 20 anos de regime militar, a
“direita” em geral assumiu uma conotação pejorativa. (2015, p.49)

Esse fenômeno social, da política e da cultura, a que vimos nos referindo e tentamos
definir em contornos tão objetivos quanto possível é o que aqui chamamos por onda
conservadora. À medida que avancemos na compreensão dos processos políticos que
configuraram as relações de força que nos conduziram às eleições de 2018, avançando
também sobre a análise da dinâmica social em que estamos inseridos e dos mecanismos de
ressignificação e cooptação que permitiram a formação de um novo discurso majoritário, à
medida que avançarmos nesse sentido será possível melhor definir um modelo teórico, uma
definição provisória da ideologia que alimenta e é alimentada pela onda conservadora que
acreditamos ter cumprido um papel indispensável na eleição de Jair Messias Bolsonaro à
presidência da República.
Muito embora tenha sido a eleição presidencial mais polarizada politicamente na
história da Nova República, a eleição de 2018 atingiu inéditas taxas de abstenção e de votos
brancos e nulos. Cerca de 30 milhões de eleitores aptos a participar do pleito não
compareceram às urnas no primeiro turno, e mais de 7 milhões dentre os votantes não
sufragaram nenhum dos candidatos postulantes. No segundo turno, houve ainda um acréscimo
de mais de 1,4 milhão de eleitores no contingente de ausentes e de 2,2 milhões de eleitores
que comparecendo não votaram em nenhum dos candidatos que chegaram ao momento final
56

da eleição. Esses dados sugerem que houve, no contexto da polarização da eleição de 2018,
um sentimento maior de ausência de representatividade dos candidatos postulantes, o
suficiente para suplantar a expectativa de maior mobilização dos eleitores engajados em
alguma das 13 candidaturas que concorreram ao Executivo Federal no pleito. Foram mais de
42 milhões de eleitores que ou não compareceram ou não votaram em nenhum dos candidatos
que chegaram ao segundo turno. Em comparação, o candidato eleito obteve cerca de 57,8
milhões de votos6.
Os altos índices de abstenção e votos brancos ou nulos têm sido objeto da análise de
diversos cientistas políticos em todo o mundo. São um fenômeno crescente nas democracias
liberais que emergiram do breve século XX. Esse cenário aponta para uma crise de
representação política que vem se acentuando a partir dos anos 1990 não só no Brasil como
nos demais países das democracias liberais (COSTA, 2007).
Aparentemente na contramão desse processo, pesquisa realizada em junho de 2020
registrou a maior taxa de aprovação da democracia como modo de governo desde o início da
série em 1989, quando o país teve sua primeira eleição direta desde o Golpe Militar em 19647.
Para 75% dos entrevistados, “a democracia é sempre melhor que qualquer outra forma de
governo". A medição anterior, de dezembro de 2019, aferiu um total de respostas positivas à
questão de 62%. Em 2018, o percentual dos que responderam sim foi 57% em junho e 69%
em outubro. Os números parecem sugerir que a importância dada à democracia cresceu em
momentos em que sua validade foi posta em questão no debate público. Em 2018, o salto dos
que defendem a democracia como melhor forma de governo se deu no período final da
campanha presidencial. Em 2020, ele ocorreu na sequência dos atos antidemocráticos de
apoiadores do presidente, que contaram com seu estímulo e apoio. Apesar de serem dados
positivos, esses movimentos não representam necessariamente um recesso das forças
antidemocráticas. A força do debate sobre a democracia que se deu em função do fenômeno
bolsonarista pode ter arregimentado em sua defesa amplos setores da sociedade, o que levou à
maior urgência na definição de uma posição por parte dos indivíduos. No comparativo entre
dezembro de 2019 e junho de 2020, o percentual dos que responderam que "tanto faz se o
governo é uma democracia ou uma ditadura" caiu de 22% para 12 %. Já o decréscimo entre os
que responderam que "em certas circunstâncias é melhor uma ditadura que um regime

6 TSE. Em: http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2018/Outubro/eleicoes-2018-justica-eleitoral-


conclui-totalizacao-dos-votos-do-segundo-turno. Consulta em 28/06/2020.
7 Folha de São Paulo. Apoio a democracia chega a 75% e bate recorde em meio a ameaças de Bolsonaro.
Em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/06/apoio-a-democracia-chega-a-75-e-bate-recorde-em-meio-a-
ameacas-de-bolsonaro.shtml. Acesso em: 29/06/2020.
57

democrático" caiu apenas 2%, indo de 12% para 10%. Claro que essa não é uma análise
conclusiva, mas há indícios de que a saúde de nossa democracia não é tão boa quanto os
números sugerem. Uma dessas evidências é o que analisaremos na seção seguinte, o
surgimento de uma parcela da sociedade defensora aberta do autoritarismo e presente nas
ruas. Outra, são os índices de aprovação das instituições democráticas.
Embora em meio ao grande debate em curso no momento em que escrevemos, fins de
2020, seja de se esperar um incremento na aprovação das instituições, a tendência de longo
prazo tem sido o descrédito destas. Pesquisa 8 de dezembro de 2019 apontava o crescimento da
desaprovação ao Congresso Nacional. "A parcela de brasileiros adultos que está insatisfeita
com o trabalho do Congresso subiu de 35%, em agosto, para 45%. No período, a parcela que
avalia como regular o desempenho do Congresso recuou de 45% para 38% e a fração que está
satisfeita oscilou de 16% para 14%. Há ainda 4% que não opinaram." Em dezembro de 2015,
primeiro ano do segundo mandato de Dilma, e sob forte impacto dos protestos de 2013, a
série registrou uma aprovação ao desempenho do Congresso de apenas 8%. Há aqui um claro
contraste com a expectativa do eleitorado em dezembro de 2018, quando 56% dos
entrevistados se declaram otimistas com a próxima legislatura, considerada por muitos
analistas a mais conservadora das últimas décadas9.
Não apenas a avaliação do desempenho do Legislativo é calamitosa. Diversas
pesquisas têm demonstrado que a tendência dos índices de confiança nas instituições
democráticas brasileiras e da participação eleitoral é decrescente (COSTA, 2007;
AVRITZER, 2019). O mesmo se verifica nas demais democracias do mundo (CASTELLS,
2018). Considerando essa tendência – e a crescente atuação do Judiciário nos processos
políticos e mudanças no debate público oriundas das transformações na comunicação de
massa, tema que perpassa todos os capítulos desta tese – Avritzer corrobora a hipótese aqui
levantada de uma regressão democrática no Brasil, inserida em sua tese sobre o pêndulo
democrático:

[…] a oscilação pela qual passa a política brasileira entre certos períodos
históricos nos quais elites e massas partilham um forte entusiasmo
democrático e outros momentos em que a classe média adota uma visão
antidemocrática, alinhada com as elites, e muitos setores populares aderem à
rejeição da política ou à antipolítica. […] Em geral, esses momentos

8 Datafolha. Cresce reprovação ao Congresso. Em: http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/


2019/12/1988565-cresce-reprovacao-a-congresso.shtml. Consulta em 29/06/2020.
9 Folha de São Paulo. Na onda bolsonarista, otimismo com prpoximo Congresso é o mais alto dos últimos
anos. Em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/na-onda-bolsonarista-otimismo-com-proximo-
congresso-e-o-mais-alto-dos-ultimos-anos.shtml. Consulta em: 05/01/2019.
58

envolvem divisões políticas, crise econômica e profundo desacordo em


relação ao projeto de país. (AVRITZER, 2019, p.16)

Concordando com Avritzer, identificamos nos protestos de junho de 2013 o marco da


guinada antidemocrática na política brasileira. Na seção que segue, retomaremos algumas das
análises sobre o que se tem chamado de crise das democracias.

2.2 Democracia: vocação condicionada

A democracia, mais especificamente seu atual momento de crise, tem sido objeto de intenso
debate nos meios intelectuais. O rol de alguns dos títulos a serem debatidos neste capítulo já
nos permite ter uma dimensão da prevalência do tema na ciência política contemporânea:
Ruptura: a crise da democracia liberal, de Manuel Castells (2018 [2017]); O povo contra a
democracia, de Yascha Mounk (2019 [2018]); Como as democracias morrem, de Steven
Levitsky e Daniel Ziblatt (2018); e O pêndulo da democracia, de Leonardo Avritzer (2019).
Todos esses, livros publicados nos últimos anos.
Como sabemos, a virada em direção a uma direita extremista não é exclusividade do
cenário político brasileiro. Ao longo das últimas décadas, tem-se assistido à expansão nas
urnas da extrema-direita europeia, mesmo nos casos em que em que não alcançaram o Poder
Executivo. O exemplo deste fenômeno que talvez nos seja mais familiar é o do partido
Rassemblement National (Reunião Nacional), a antiga Frente Nacional, liderada por Marine
Le Pen, que obteve 33.94% dos votos no segundo turno das eleições presidenciais francesas
de 2017, embalada por um discurso nacionalista anti-imigração de viés xenófobo. Não apenas
o Reunião Nacional, de Le Pen, mas também o britânico Partido da Independência (UKIP), o
dinamarquês Partido Popular (DF), a italiana Liga Norte (LN) e o Partido da Liberdade
(FPÖ), na Áustria, todos eles têm auferido expressivo crescimento eleitoral nas recentes
votações em seus respectivos países. Recentemente, a eleição de Bóris Johnson na Inglaterra e
vitória plebiscitária do Brexit confirmaram esses movimentos eleitorais. Representam esse
corpo populista Narendra Modi (primeiro-ministro da Índia), Tayyip Erdoğan (presidente da
Turquia), Andrzej Duda (presidente da Polônia), Viktor Orbán (primeiro-ministro da
Hungria), Vladimir Putin (presidente da Rússia), Donald Trump (presidente dos Estados
Unidos) e Jair Bolsonaro (presidente do Brasil). O populismo de direita ainda expressa sua
força na Europa pela vitória do Brexit e a eleição de Bóris Johnson na Inglaterra e o
crescimento eleitoral da extrema-direita na França, Alemanha e Suíça.
59

Na América Latina, as esquerdas vêm enfrentando sucessivos reveses e golpes nos


últimos anos. Registre-se, por exemplo, a deposição e exílio de Manuel Zelaya, em Honduras,
em 2009; o golpe dado pelo parlamento no então presidente do Paraguai Fernando Lugo, em
2012; a vitória de Mauricio Macri na Argentina, em 2015; sem falar no Chile, de Sebastián
Piñera e na Colômbia, de Juan Manuel Santos. Recentemente tivemos golpes no Equador e na
Bolívia, embora na Bolívia o MAS (Movimento ao Socialismo) tenha vencido as eleições
posteriores.
No Brasil, após as intensas manifestações das Diretas Já!, houve um longo período
marcado por uma espécie de consenso em torno dos valores democráticos, se não de um
compromisso sólido com valores substantivos da democracia, ao menos via-se uma
necessidade política de se apresentar publicamente como defensor da democracia. Mesmo
partidos que tiveram suas origens no Regime Militar e políticos que ingressaram na vida
pública como governantes biônicos indicados pela Ditadura se viam na obrigação de defender
os valores democráticos e renegar a herança dos governos militares. Poderíamos até
argumentar que, por muito tempo, apoiar o Regime Militar foi um tabu no Brasil. Conforme
propomos, a partir de 2013 esse cenário se altera, ressurgindo no cenário político ideais
autoritários adormecidos que tiveram na eleição de Jair Bolsonaro sua expressão cabal.
Revisamos a recente literatura que aborda a crise das democracias liberais – mais
especificamente as obras de Mounk, Levitsky e Ziblatt e Castells. Neste limitado corpo de
autores, observamos a convergência das análises para três pontos centrais cujos potenciais
explicativos são explorados de modos diferentes por cada qual.
Um primeiro fator que aparece no conjunto das análises revisadas é o do contexto
político e social emergente nos países do centro do capitalismo ocidental a partir dos anos
1970 (na falta de termo mais adequado, designaremos esse conjunto de países, com
características diferenciadas que mereceriam um aprofundamento maior na análise, sob o
termo geral de democracias avançadas), contexto aprofundado e levado ao paroxismo com o
fim da URSS. Existe um consenso mínimo entre os estudiosos dos regimes democráticos
sobre o período do pós-guerras, que converge com aquilo a que Éric Hobsbawm chamou de
décadas de ouro do breve século XX. Para Hobsbawm, as décadas de ouro são aqueles anos
que vão do fim da Segunda Grande Guerra até meados dos anos 1970. Neste período, a
estabilidade das democracias avançadas coincidiu com a expansão da capacidade produtivas
dos países centrais do capitalismo e com constantes incrementos na qualidade de vida e bem-
estar material de suas populações. Foi o período de hegemonia dos padrões keynesianos de
acumulação, sustentados pela combinação da expansão das formas fordistas de produção,
60

crescentemente financeirizadas, e do Estado do bem-estar social. Refletindo sobre o fim desse


período, Hobsbawm nos diz:

Nos países onde a tradição de governos representativos estava estabelecida


havia muito tempo, ela era aceita não só porque os sistemas alternativos
pareciam ser piores, mas também porque, ao contrário do que ocorrera na
terrível era das guerras e das catástrofes econômicas mundiais, muito poucas
pessoas sentiam a necessidade de um sistema alternativo – particularmente
em uma era de prosperidade geral, que melhorou as condições de vida até
dos pobres, e de sistemas robustos de bem-estar social. (2007, p. 101)

As transformações que implicaram na crise do modo de acumulação keynesiano foram


objeto de diversas pesquisas. Aqui, nos valeremos das teses de David Harvey que apontam
para um esgotamento do referido padrão, em parte por seu sucesso em se difundir para áreas
maiores do globo e pelo crescente papel do mercado financeiro na otimização dos fluxos de
capital e controle do tempo nos processos produtivos. De forma sintética, o regime de
acumulação marcado pelo fordismo-keynesianismo, conforme proposto por Harvey, combina
a integração de amplas camadas do operariado industrial ao consumo de bens materiais com
as técnicas e a disciplina da planta produtiva fordista.

O problema, tal como o via um economista com Keynes, era chegar a um


conjunto de estratégias administrativas científicas e poderes estatais que
estabilizassem o capitalismo, ao mesmo tempo que se evitavam as evidentes
repressões e irracionalidades, toda a beligerância e todo o nacionalismo
estreito que as soluções nacional-socialistas implicavam. É neste contexto
confuso que temos que compreender as tentativas altamente diversificadas
em diferentes nações-Estado de chegar a arranjos políticos, institucionais e
sociais que pudessem acomodar a crônica incapacidade do capitalismo de de
regulamentar as condições essenciais de sua própria reprodução. (HARVEY,
2016, p. 124)

Para Harvey, “o fordismo do pós-guerra tem de ser visto menos como um mero
sistema de produção em massa do que como um modo de vida total” (2016, p. 131). O autor
situa o declínio desse modo de vida total no contexto da emergência de novos modos de
acumulação flexível, que solaparam as bases do regime de acumulação do pós-guerras. Sua
leitura de um dos fatores da difícil manutenção do regime referido nos abre as portas para o
debate do segundo ponto que vem se destacando nas atuais análises da crise das democracias
avançadas.

Embora fosse útil sob certos aspectos, do ponto de vista do controle do


trabalho, a divisão entre uma força de trabalho predominantemente branca,
masculina e fortemente sindicalizada e o “resto” também tinha seus
problemas. Ela significava uma rigidez nos mercados de trabalho que
61

dificultava a realocação do trabalho de uma linha de produção para outra.


(HARVEY, 2016, p. 132)

Devemos nos concentrar aqui sobre alguns aspectos da transição de um regime


keynesiano de reprodução para um regime de acumulação flexível, a fim de avançar para o
tema que nos move. Um dos caminhos para superar a rigidez da alocação da força de trabalho
foi aberto pela própria expansão do modo fordista no mundo. A tendência de migração das
plantas de produção para países periféricos do sistema capitalista foi especialmente acentuada
nos anos 1970 e 1980. A mão de obra nas democracias avançadas passou a concorrer com
trabalhadores de países com remunerações muito inferiores, relações trabalhistas desreguladas
e altos índices de desemprego. Com a eleição de Reagan no EUA e Tatcher na Inglaterra, a
recuperação dos empregos perdidos pela dinâmica internacionalizada de produção foi a base
para a formação de um novo consenso político que visava a tornar a mão de obra desses
países competitiva, o que se deu aproximando as condições internas de trabalho daquelas a
que era submetida a força de trabalho nos países periféricos. Achatamento salarial,
desregulamentação trabalhista, assunção de níveis elevados de desemprego como normais
foram os elementos centrais dessa “modernização”. Esses fatores sustentam o duplo
movimento analisado por Mounk.

Nas democracias do mundo todo, dois acontecimentos aparentemente


distintos estão ocorrendo. Por um lado, as preferências do povo são cada vez
mais iliberais: os eleitores estão cada vez mais impacientes com as
instituições independentes e cada vez menos dispostos a tolerar os direitos de
minorias étnicas e religiosas. Por outro, as elites vêm assumindo o controle
do sistema político e tornando-o cada vez mais insensível: os poderosos
estão cada vez menos dispostos a ceder às opiniões do povo. Como
resultado, liberalismo e democracia, os dois elementos centrais de nosso
sistema político, começam a entrar em confronto. (MOUNK, 2018, p. 29)

O período de ampliação dos direitos civis nas democracias avançadas coincide com o
declínio do regime keynesiano de acumulação e com a degradação do padrão de vida de uma
certa classe trabalhadora que era seu componente humano central. Com a ampliação dos
direitos à cidadania, notadamente entre os anos 1960 e 1970, emergem novos atores sociais a
reclamar por direitos e serviços historicamente negados, no mesmo momento em que a
capacidade de ação do Estado é fortemente questionada e solapada pela mundialização dos
processos produtivos, pelo fluxo descontrolado de capitais e pela hegemonia neoliberal.
Levitsky e Ziblatt, bem como Mounk e Castells, são precisos em situar o crescimento do
sentimento populista e autoritário nos EUA exatamente naquelas regiões que foram o bastião
da indústria fordista, a exemplo do Cinturão da Ferrugem. A combinação da recente
62

visibilidade de novos atores sociais com a frustração das expectativas de melhoria de vida
teriam gerado condições para a emergência de um discurso populista que as associa numa
relação espúria de causa-efeito.
Arjun Appadurai faz uma análise que vai ao encontro do que propomos:

Na ausência de uma economia nacional que os Estados modernos possam


alegar que protegem e fortalecem, não é surpresa ter havido uma propensão a
que Estados de fato, bem como diversos movimentos populistas em
ascensão, tentem reencenar a soberania nacional por meio do chauvinismo
cultural dominante, do etnonacionalismo e da opressão às dissidências
intelectuais e culturais internas. Em outras palavras, a perda generalizada da
soberania econômica gera uma mudança rumo à ênfase na soberania cultural.
(APPADURAI, 2019, p. 21)

Esse diversionismo que Appadurai denuncia é um dos elementos centrais do discurso


populista em todo o mundo, nos formatos mais variados. A inconsistência, longe de ser
empecilho à construção dessas narrativas, está em sua base, “líderes e seguidores estabelecem
conexões, mas elas se baseiam nas coincidências parciais e acidentais entre as ambições,
ideias e estratégias dos líderes e os temores, feridas e ódios de seus seguidores”
(APPADURAI, 2019, p. 20).
Numa crítica que falta a Levitsky e Ziblatt e parcialmente a Mounk, Appadurai e
Castells associam diretamente a crise das democracias representativas às consequência do
modelo hegemônico do neoliberalismo. Para Levitsky e Ziblatt, a crise estaria no desrespeito
das elites políticas às regras não escritas da democracia, o comedimento institucional e o
reconhecimento à existência do outro. Numa linha alternativa, cremos que atual crise das
democracias avançadas se constitui numa crise dos fundamentos da legitimação do projeto
hegemônico neoliberal. Já nos anos 1960, como vemos na citação seguinte, teóricos das elites
apontavam para o “problema” da maior participação social na garantia da estabilidade dos
regimes.

A estabilidade de uma sociedade política depende da relação entre o nível de


participação eu nível de institucionalização política. O nível de
institucionalização política em uma sociedade com um baixo nível de
participação política pode ser bem mais baixo do que ele é em uma
sociedade com um nível mais alto de participação, e, mesmo assim, a
sociedade com níveis mais baixos de ambos pode ser mais estável do que a
sociedade que possui o nível mais alto de institucionalização e um nível de
participação ainda mais alto. A estabilidade política, como argumentamos,
depende da razão entre institucionalização e participação. (HUNTINGTON
apud LIMA JÚNIOR, 1997, p. 21)
63

O fragmento de Huntington é elucidativo não apenas por indicar que altos níveis de
participação podem ser vistos como problema nas democracias liberais, mas também por
esclarecer em algum nível do que se trata a difundida noção de uma crise democrática, que
poderia ser mais adequadamente compreendida como crise de estabilidade dos regimes
políticos que sobrevivem ou emergem do fim da Guerra Fria.
É exatamente no que Levitsky e Ziblatt veem um paradoxo que se encontra nossa
principal objeção ao sentido da análise desses autores. Do diagnóstico das origens da
epidemia de quebra de normas, evidencia-se o pressuposto de que a estabilidade democrática
se dá em função de um ao menos relativo consenso político. Sendo mais preciso, é necessário
que haja concordância acerca dos temas centrais do debate público para que a polarização seja
menor e portanto menor a tentação – ou a necessidade, diríamos – de desrespeitar as regras.
Para Levitsky e Ziblatt a ampliação do alcance democrático que se deu a partir do fim do
século XIX com a expansão do direito ao voto às mais amplas parcelas da sociedade e que,
mesmo nas democracias avançadas, só se impõe de forma satisfatória na segunda metade do
século XX para grande parte do mundo, traz consigo a emergência de novos atores sobre a
representação do Estado – trabalhadores, mulheres, negros. Esses novos atores trazem consigo
novas demandas ao Estado, como proteção social, combate à discriminação, igualdade de
direitos entre homens e mulheres, liberdade religiosa e sexual, dentre tantos outros.
Concordamos com os pressupostos elencados. Onde vemos o grande limite da análise de
Levitsky e Ziblatt é em ver no comportamento político de bases eleitorais, ou de atores
políticos particulares ou partidários, o centro do problema, quando este está claramente na
incapacidade de o Estado em solucionar os conflitos contidos na sociedade, cada vez mais
complexa e heterogênea. Tal incapacidade decorre justamente do consenso que permitiu a
estabilidade dos regimes democráticos, um consenso baseado na exclusão de amplas parcelas
da sociedade. Alinhamo-nos a Hobsbawm, Mounk e Castells ao ver nos impasses gerados
pela dinâmica social, econômica e cultural as origens da crise da democracia liberal.
Particularmente, na incapacidade de os Estados – ou dos atores políticos, como propõem
alguns – de responder a tais problemas satisfatoriamente.
Ainda seguindo o debate no contexto norte-americano, encontramos em Nancy Fraser
a chave interpretativa que melhor se aproxima do quadro que pretendemos compor para situar
o bolsonarismo no contexto da ascensão mundial das direitas populistas.
A filósofa norte-americana cunhou os termos neoliberalismo progressista e
neoliberalismo reacionário para descrever as duas forças que, pelo espectro da direita, têm
disputado a hegemonia política nos EUA. Em seu diagnóstico, com o qual concordamos, diz
64

que a “vertente política da nossa crise geral é uma crise de hegemonia” (FRASER, 2019, p.
35). Compreendendo a hegemonia nos termos gramscianos (GRAMSCI, 2011), como direção
moral e intelectual da sociedade por determinado bloco social, estaríamos diante de uma crise
da legitimidade dos blocos no poder.
O bloco hegemônico dirigente, até recentemente, foi aquele que a autora chama de
neoliberalismo progressista, que surgiria na convergência de políticas sociais neoliberais com
um tipo específico de política de reconhecimento de minorias. Esse bloco teria centro em duas
forças sociais principais:

… por um lado, as principais correntes liberais dos movimentos sociais


(feminismo, antirracismo, multiculturalismo, ambientalista e ativistas pelos
direitos LGBTQ+); por outro lado, os setores mais dinâmicos, de ponta,
“simbólicos” e financeiros da economia dos EUA (Wall Street, Vale do
Silício e Hollywood). […] o bloco progressista-neoliberal combinou um
programa econômico expropriativo e plutocrático com uma política de
reconhecimento liberal-meritocrática. (FRASER, 2019, p. 37-38)

A propaganda talvez tenha sido a expressão mais contundente dessa agenda de


valores, em sua tendência recente de associar diversidade, prosperidade individual e consumo.
A aliança entre políticas de redução de direitos sociais e de reconhecimento das diferenças
pôde, como bem assinala a autora, constituir-se a partir do valor central da meritocracia, onde
a inclusão se dá pela ascensão social e econômica dos “melhores” de cada segmento social,
mantendo intocadas as bases da segregação social que têm origens históricas no racismo e que
se estrutura num regime econômico excludente.
Para entendermos adequadamente o neoliberalismo reacionário, precisamos ter em
mente a ideia de Appadurai, para quem os limites de ação econômica dos Estados-nação
impõem aos populismos diversos a opção por se diferenciar através de pautas identitárias. Na
crise do pacto progressista-neoliberal, fundado numa economia que concentra renda e
empobrece vastas camadas da população, é contra o lado progressista do bloco hegemônico, o
do reconhecimento, que as forças reacionários voltam seus exércitos. Com um discurso que
associa a rejeição às elites políticas e econômicas a valores nacionalistas alicerçados na
exclusão da diferença e na eleição de inimigos nacionais e internacionais, mobilizando
parcelas da sociedade que tiveram suas condições de vida degradadas e setores que portam
ideais conservadores e mesmo racistas.
Contudo, como Fraser salienta, embora efetivo em mobilizar os ressentimentos
emergentes, o neoliberalismo reacionário não pode nem almeja atacar as bases capitalismo
financeiro que promove a degradação social na origem da atual crise hegemônica. Disso
65

podemos deduzir uma tendência de instabilidade de tais movimentos e de seu ressurgimento


cíclico de novos populismos reacionários, cada vez mais radicalizados e perigosos.
O caso particular do Brasil, conforme veremos nos capítulos que seguem, exibe maior
complexidade, não apenas por termos um sistema partidário mais aberto que o americano,
como também por termos uma demografia eleitoral peculiar. Aqui não tivemos polos
avançados como o Vale do Silício ou Hollywood em relação com movimentos identitários. É
válido supor que o arranjo progressista-neoliberal tenha em nosso país sido importado.
Organizações nacionais, como a Rede Globo, efetivamente cumpriram papel relevante na
assunção de temas relacionados ao reconhecimento, ao mesmo tempo em que pugnavam por
políticas liberalizantes de interesse do capital financeiro internacional. Também nossa
democracia teve trajetória distinta da norte-americana, o que implica que aqui certos
movimentos de reconhecimento e antirreconhecimento tenham sido mais recentes e estejam
em estágios diversos. Contudo, conforme pretendemos avançar na discussão, os conceitos de
Fraser terão para nosso caso papel esclarecedor, uma vez que situemos neoliberalismo
reacionário e neoliberalismo progressista em termos adequados à nossa realidade.

2.3 Bolsonaro e a democracia

O bolsonarismo é o núcleo gravitacional dos sentimentos antidemocráticos recrudescentes.


Sua estética e sua narrativa de intolerância com as divergências sinalizam para uma revanche
contra os sonhos participacionistas. Mesmo o discurso de Bolsonaro de alegada ignorância
sobre temas centrais da administração do Estado cumpriu seu papel nessa orquestração de
segmentos do antilulismo, pois lhe angariou a simpatia de agentes do mercado alinhados a
uma abrangente visão sobre a ação dos governos centrada na defesa de uma maior eficiência
das políticas públicas quando geridas pelas regras do mercado. Assim, a imagem que
Bolsonaro passou foi a de um líder político forte e outsider o bastante para conter pressões
oriundas da política sobre a gestão do Estado. Tal conduta vai ao encontro direto daquela
visão, que preconiza a estabilidade e previsibilidade das ações governamentais, propondo
medidas como autonomia de bancos centrais e a propagação de agências com poder regulador
independentes da influência política, mesmo a dos governos estabelecidos. Deste modo,
entendemos que grande parte da adesão que Bolsonaro conquistou nos meios financeiros se
deva a esse compromisso antidemocrático já presente na reorientação das políticas de Estado
desde 1970: a redução dos espaços de decisão que são sujeitos à influência das regras
66

democráticas, ou seja, a redução dos espaços da democracia. Mesmo a instabilidade


decorrente de uma liderança de má conduta pública não foi bastante para barrar essa adesão.
Avritzer já sugeriu que a adesão das camadas médias da sociedade brasileira ao
valores democráticos é sazonal, condicionada pela manutenção de seu status social. Embora
não esteja clara a tendência de o atual governo promover uma ruptura institucional que escape
aos padrões da Constituição de 1988, há outros parâmetros pelos quais podemos analisar suas
inclinações antidemocráticas.
Singer defendia que os termos da compreensão relacional do significado dos conceitos
de direita e esquerda no Brasil possuíam uma peculiaridade. Eles seriam sobretudo definidos
pela concepção do papel do Estado na repressão social. Em contexto de crise, onde a
manutenção do status privilegiado se dá pela supressão ainda maior de direitos e dignidade
social das camadas desfavorecidas, o papel repressivo do Estado passa a ter maior relevância,
no sentido de frear as manifestações de descontentamento e reduzir o alcance da violência
social que se intensifica, mantendo-a o mais possível limitada às periferias e bairros
populares, às cidades e comunidades com pouca ou pouquíssima presença do Estado.
Se os imigrantes cumprem o papel de inimigo do populismo reacionário na Europa
Ocidental, no Brasil temos nossos próprios “imigrantes”, o que chamamos aqui de imigrantes
da cidadania. Nos explicaremos.
Os africanos traficados para o Brasil na condição de escravizados. Os índios tidos
como estrangeiros em seus próprios territórios. Toda a multidão de seus descendentes por
séculos alijados dos direitos civis, políticos e sociais – da cidadania, como nos diz José Murilo
de Carvalho. O imigrante da cidadania foi, ao longo de nossa história, o espantalho de que as
elites se valeram para afugentar as camadas médias da adesão a qualquer projeto que vise
maior participação popular nos destinos políticos e na riqueza do país. É sempre contra a
inclusão dos imigrantes da cidadania na vida política e social do Brasil que nossas elites se
unem nos momentos de regressão democrática. Os imigrantes da cidadania são uma vasta
maioria da população brasileira, vivendo em condições degradantes, estereotipada e
marginalizada pelo debate público, alvo de preconceitos e da violência privada e estatal. São
os que não podem pertencer efetivamente ao corpo da cidadania, que não possuem canais para
a expressão de seus anseios, de sua visão de mundo. Não estão nas rodas de debate político da
imprensa. Não estão nas instituições democráticas do Estado. Seus incipientes esforços
organizativos são reprimidos por milícias privadas e pelo Estado. Sua ação política é pintada
como instrumento da desordem e do caos. São o numeroso subproletariado nacional,
impossibilitado de se organizar e produzir voz própria. Enfim, por séculos, a maioria do povo
67

brasileiro é tratada como imigrante em seu próprio país, pessoas às quais as elites nacionais, a
exemplo do populismo reacionário em todo o mundo, esforçam-se por negar as justas
reivindicações de plena inserção na cidadania.
Murilo de Carvalho (2020) ressalta que a criminalidade e a violência policial no Brasil
são um fator de negação dos direitos civis a grandes parcelas da sociedade. Nega-se aí o
direito civil básico, aquele que se propõe a garantir o direito à vida e a integridade física. Dos
mortos em ação policial no ano de 2019, 80% foram negros; 73% deles, jovens entre 15 e 19
anos10. São também esses jovens a massa de trabalhadores precarizados, alistados em serviços
de entrega e congêneres, excluídos da proteção legal trabalhista, sem seguro desemprego ou
licença médica remunerada.
O discurso iliberal e anti-iluminista de Bolsonaro foi característico em toda a sua
longa carreira política como ator marginal nas esferas do poder, defensor de interesses
corporativos e de valores autoritários sufocados nos anos que sucederam a redemocratização
no Brasil. Em parte, sua originalidade se deve a ter encarnado tais valores no momento em
que estes eram marginalizados no debate público, o que certamente contribuiu para que ele se
firmasse como referência do discurso autoritário e segregador que permeia toda a vida
democrática nacional em nossos dias. Ao passo que era tratado como um lunático, portador de
ideias ultrapassadas e rechaçadas pela história, Bolsonaro pôde lentamente se tornar o centro
de um polo político e social com profundas raízes na vida nacional. A cada nova polêmica,
sua flagrante estupidez atraía a atenção dos que combatem pelos direitos humanos e
liberdades políticas. De certa forma, o combate ao obscurantismo de Bolsonaro foi
aproximando dele indivíduos e grupos que igualmente se ressentiam dos ideais iluministas e
da igualdade formal democrática. Somando-se a esses grupos, toda uma legião de ressentidos
com as políticas identitárias, de estudantes universitários que se sentiam tolhidos pela
prevalência de ideias progressistas no campo acadêmico e de pessoas variadamente frustradas
com a própria relevância no contexto democrático foram se identificando com discursos que
criminalizavam a esquerda, aviltavam minorias e degradavam a imagem de feministas,
homossexuais, índios, negros e outras minorias políticas sempre alvos do desprezo elitista no
Brasil.
Bolsonaro poderia ter encerrado sua obscura carreira política nos guetos e quartéis do
Rio de Janeiro sem jamais ser notado pelo conjunto da sociedade, muito menos considerado
uma opção política viável de poder. Ocorreu que a regressão democrática mundial coincidiu

10 Disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/10/18/oito-a-cada-10-mortos-
pela-policia-no-brasil-sao-negros-aponta-relatorio.htm . Acesso: 20/10/2020.
68

com a profunda crise econômica e social que envolveu o país. Como é costume no Brasil, nos
momentos de crise, setores das elites e camadas médias da sociedade buscam a recomposição
de seus privilégios políticos e econômicos via intensificação da marginalização das camadas
subalternas. Políticas públicas de proteção social e valorização do trabalho, que eram
relativamente pacíficas num contexto de expansão econômica, passam a ser vistas como
responsáveis pela degradação das condições de vida e do status social das camadas
privilegiadas. Cresce o sentimento antipovo expresso no antipetismo. A conciliação de classes
perde margens, aflorando o cíclico movimento de repressão das camadas populares que, por
sua vez, seguem desorganizadas, sem instrumentos de participação política que ultrapassem
os limites da participação eleitoral cada vez mais percebida como ineficaz. Nesse novo
contexto, estreitam-se as possibilidades de composição da esquerda com setores mais amplos
do centro e parcelas conservadoras da sociedade que até então mantiveram uma relação dúbia,
mas negociada, com a esquerda governante. Na direita, deslocamentos eleitorais vão
conformando novas alternativas e aglutinando setores cada vez mais amplos em torno de um
ideário que tem suas raízes no secular processo de marginalização dos excluídos, numa visão
do Estado como agente repressivo e mantenedor da ordem e do status quo. Resumidamente,
no plano mais amplo do declínio da adesão aos valores iluministas que nortearam o projeto de
modernização das sociedades ocidentais, a dinâmica econômica e social do Brasil abriu
caminhos amplos para a emergência de um campo conservador mais desinibido, francamente
autoritário e sedicionista. Posto em condições de cavalgar essa turba, Bolsonaro soube se
oportunizar das possibilidades abertas para formar uma coalizão capaz de vencer as eleições
presidenciais. No confronto com a esquerda, a ascensão bolsonarista se deu sobretudo no
deslocamento dos atores da direita para o centro, num processo relacional, onde se
extremaram os padrões perceptivos da definição relacional esquerda-direita. O complexo
processo que permitiu esse conjunto de movimentos será objeto dos próximos capítulos.
Desconsiderar a relevância das formas de produção do consentimento, mesmo dentro
do ordenamento neoliberal, seria um grande equívoco; os diversos modelos de consenso
possuem expressivo impacto na vida das populações e em suas possibilidades de conquista ou
reconquista de direitos sociais, e esta é nossa principal divergência com as teses de Fábio
Santos, dentre outros, que debatemos no capítulo anterior. A distinção entre democracia
liberal e populismo de direita – ou, como propomos aqui, entre neoliberalismo reacionário e
progressista – não é mera a escolha de quem oprime. Como vimos, a era de ouro das
democracias liberais também foi a era de ouro das conquistas trabalhistas; não obstante as
muitas limitações, há também um saldo positivo que tal regime permitiu conquistar.
69

O discurso de que a democracia brasileira é uma fraude completa e de que as


conquistas das últimas décadas representam na verdade – uma vez retirado o “véu da
superficialidade” – um retrocesso à luta pela emancipação social nos remete ao brilhante livro
de Albert Hirschman, A retórica da intransigência. Hirschman classifica sob o tipo
argumento da perversidade todo um conjunto de argumentos reacionários que ao longo de
séculos têm sido escalados para embasar os ataques a processos de transformação social. A
“tese da perversidade assevera que ‘a tentativa de empurrar a sociedade em uma determinada
direção fará com que ela, efetivamente, se mova, mas na direção contrária’” (HIRSCHMAN,
2019, p. 53). Não a toa, o autor constatou que, por outros mecanismo, a esquerda também
costuma recorrer à tese da perversidade. Assim os esforços por se defender determinadas
políticas públicas ou conquistas e ideais participativos dentro das democracias liberais podem
ser vistos, sob a ótica da intransigência, como verdadeiros retrocessos, uma vez que
“arrefecem” o espírito de luta, desmobilizam o proletariado da luta por seus “verdadeiros”
objetivos.
Dito isso, as perspectivas da democracia brasileira, dentro uma análise de esquerda
que privilegie a participação e a inclusão sociais, não nos parecem das melhores. Mesmo o
rompimento posterior entre bolsonarismo e lavajatismo, bem como as contradições entre as
elites, que afloraram da incapacidade do governo Bolsonaro em fazer avançar a agenda
neoliberal e construir um novo consenso, não apontam para uma retomada das políticas
inclusivas. A necessidade de um tal cesarismo parece se formar a partir da compreensão dos
mais amplos setores da política brasileira de uma necessidade de preservar as instituições
democráticas, uma vez que a escalada populista de Bolsonaro avança sobre organizações
como a Rede Globo e ameaça fazer ruir as bases da legitimidade do sistema político
brasileiro, abrindo caminho para uma instabilidade perniciosa que não parece boa para os
negócios no atual estágio da história brasileira. É claro que soluções de força, por mais
anacrônicas que pareçam, sempre podem ter vez se a construção de um consenso se mostrar
impossível. Teríamos assim uma frente conservadora e neoliberal, amplamente alicerçada em
relações fisiológicas e no insuflamento das bases mais radicalizadas. Um tal arranjo, contudo,
parece também conter grandes nós de tensão e instabilidade.
Lidar com as possibilidades que vão se abrindo nos parece o principal desafio teórico
daqueles que pensam a política brasileira de hoje pelo campo da esquerda: subestimar a
ameaça autoritária representada pelo governo Bolsonaro ou aderir a uma ampla coalizão
democrática que pode implicar na inviabilização de sua agenda econômica e social pelas
próximas décadas.
70

Castells (2019) sugeriu que diante desse cenário talvez não fosse tão ruim aceitar a
necessidade de se conviver com o caos. É uma visão esperançosa, a seu modo, já que indica
uma saída para a dupla chantagem de que os campos populares ora são vítima: regressão
democrática ou aprofundamento neoliberal, numa democracia que respeite os direitos civis,
ainda que não aponte para um aumento da participação ou mesmo para uma materialização
maior dos ideais democráticos, ainda que neoliberais.
Também parece cada vez mais possível um bolsonarismo contido, pactuado, uma vez
dada a composição do governo com centrão. Tal composição parece reforçar a vitalidade da
tese de Sérgio Abranches (1988) sobre o presidencialismo de coalizão. Esse outro caminho
que parece se abrir é o da adesão do bolsonarismo às regras não escritas do presidencialismo
de coalizão. A composição com a miríade de partidos do centrão, a abertura dos espaços do
Poder Executivo para representantes de interesses de grupos parlamentares, bem como o foco
maior em ações de assistência social parecem indicar a reorganização de um bloco político
conservador, com Bolsonaro à cabeça, mas no qual o bolsonarismo não teria a autonomia que
buscou obter nos primeiros meses de governo.
Contudo, não podemos condenar como derrotistas aqueles que hoje defendem as
instituições, reduzindo o potencial crítico da ação política. A história demonstra que nos
momentos de grandes rupturas são os mais fracos aqueles que sofrem as consequências mais
severas. O horizonte que se insinua à democracia brasileira é o de menos democracia e menos
direitos, como se apenas restasse escolher o quanto perderemos.
Resumindo o que pretendemos dizer neste capítulo, a inserção das camadas excluídas
é sempre alvo de contestação no Brasil; mesmo quando ocorre, gera reações no sentido de
mantê-las marginalizadas; o imigrante da cidadania seria a expressão de um projeto elitista
que procura manter ou restabelecer as condições anteriores, preservando uma apenas relativa
integração da maioria da população à cidadania. Nossas instituições democráticas
sobreviveram à primeira metade do governo Bolsonaro, apesar dos sobressaltos. Contudo, as
bases da crise de legitimidade dessas instituições segue inalterada, ou melhor dizendo, vêm se
agravando. Não é alarmista supor que as disputas em torno da democracia brasileira estejam
longe de um desfecho positivo para aqueles que a defendem.
71

3 NOVA POLARIZAÇÃO ESQUERDA-DIREITA

O presente capítulo busca fazer uma revisão de literatura sobre os processos políticos do
período marcado pela maioria eleitoral lulista até o impeachment da presidente Dilma
Rousseff em 2016, com foco nas eleições presidenciais de 2018 e nos eventos de 2013 e
2015/2016, momentos que, segundo a hipótese com que trabalhamos, marcaram o fim da
hegemonia lulista e foram o marco da rearticulação da ideologia conservadora no Brasil.
Através do conceito de lulismo de André Singer, nossos esforços neste e no próximo
capítulo se darão no sentido de compreender como as transformações políticas, econômicas e
sociais do período conduziram o país, de quase três décadas de uma dinâmica eleitoral
marcada pela oposição entre PT e PSDB, para o presente cenário de uma sociedade dividida
entre dois projetos predominantes, o lulismo11 e o bolsonarismo.
O lulismo (SINGER, 2012) corresponde à configuração política e social das bases do
petismo a partir da eleição de Lula em 2002, sendo tipificado como um reformismo fraco. Sua
clivagem eleitoral se conforma em 2006, pelo distanciamento das bases governistas de setores
da classe média e pela adesão ao lulismo por grandes parcelas do subproletariado nacional. A
classe média se afasta do PT e contingentes pobres ocupam o seu lugar. Isso quer dizer que,
embora o processo de mudança tenha começado em 2002, a eleição decisiva do ponto de vista
das classes, na qual o subproletariado adere em bloco a Lula, e a classe média ao PSDB, é a
de 2006 (SINGER, 2012, p. 14). O reformismo faco do lulismo visa à inclusão de amplas
parcelas da sociedade nos processos de consumo e no mercado de trabalho, através de
políticas redistributivas de renda, da inclusão no trabalho formal e da expansão do acesso ao
crédito. Sua particularidade política distintiva está na promoção da inclusão social de camadas
historicamente marginalizadas do processo produtivo e do consumo por meio de políticas
públicas, num arranjo que tem como estratégia a contenção dos conflitos com as elites
econômicas. Em suma, o reformismo lulista se dá num equilíbrio de interesses entre a agenda
de redução das desigualdades, preservando os interesses dos grupos empresariais e
financeiros, tendo no Estado o mediador dos conflitos e avalista do pacto.
Essa leitura do lulismo é próxima da crítica feita por outro importante pensador
brasileiro, Luiz Werneck Vianna. Dizia Vianna:

11 O conceito de lulismo oriundo de Singer já foi por nós exaustivamente resenhado na dissertação sobre
os protestos de 2013 e em dois artigos publicados anteriormente. Aqui, nos limitaremos a elencar seus aspectos
centrais à medida em que sejam necessários para o debate em curso.
72

A composição pluriclassista do governo se traduz, em uma forma de Estado


de compromisso, abrigando forças sociais contraditórias entre si – em boa
parte estranhas ou independentes dos partidos políticos – cujas pretensões
são arbitradas no seu interior, e decididas, em última instância, pelo chefe
do poder executivo. (VIANNA, 2011, p. 26)

Já o bolsonarismo e sua tipificação são o tema do capítulo 4 deste trabalho.


Resumidamente, propomos que o bolsonarismo articula de forma contraditória os valores
conservadores emergentes na política brasileira e os interesses do setor financeiro. Sua
ascensão se dá no contexto do declínio do processo de disputas hegemônicas decisivo da
Nova República, aquele marcado pela disputa de dois projetos, um representado pelo PT o
outro pelo PSDB. É ao declínio desse processo que o presente capítulo se dedica.

3.1 2002: a vez da esquerda e a Carta ao Povo Brasileiro

O presente trabalho não se propõe a realizar uma revisão do período que engloba das Diretas
até o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Nosso objetivo mais modesto é traçar
as linhas gerais das disputas hegemônicas entre os campos polarizados por PT e PSDB a partir
da eleição de Lula em 2002, sobretudo no sentido de contribuir para a compreensão da
articulação e ascensão do bolsonarismo.
Em nosso artigo O lulismo e as classes sociais na política do Brasil contemporâneo
(GIROTTO, 2014b), revisamos parte substancial da bibliografia do período num diálogo em
torno do conceito de lulismo de André Singer. Cabe aqui, com o propósito de situar a
discussão, retomar os pontos centrais desse trabalho.
Em 2002, as esquerdas viviam uma fase de refluxo em todo o mundo, onde o ideário
neoliberal propugnava o enxugamento do Estado, a desregulamentação das relações
econômicas e supremacia das “leis do mercado” sobre os conteúdos nacionais. No Brasil, se
experimentava o auge da implementação de políticas associadas ao período que teve início
nos anos 1970, cujos contornos gerais pudemos discutir no capítulo 2.
Em estudo de 2012, Marcio Pochmann analisou os efeitos da primeira década do Plano
Real na dinâmica econômica e social brasileira, num paralelo com o período militar. O autor
demonstrou que no período militar a fase de expansão da economia nacional, que durou cerca
de uma década, foi marcada também pela concentração de renda. Em comparação, a primeira
década do Plano Real seguiu o sentido geral de concentração de renda, contudo com
crescimento econômico bem mais modesto, o que acentuou sobremaneira a desigualdade de
renda no Brasil. Entre 1995 e 2004, segundo os dados compilados por Pochmann, a
73

participação do trabalho na renda nacional decresceu na casa de 9%, o que, associado ao


baixo crescimento econômico, se expressou na elevação da participação relativa da
propriedade sobre o conjunto da renda em 12,3% no mesmo período.
Contudo, apesar do impacto negativo na distribuição de renda, o Plano Real obteve
êxito no controle inflacionário, que pesava sobretudo na depreciação da qualidade de vida das
camadas mais vulneráveis da sociedade. A relativa estabilidade econômica proporcionada
pelo Plano Real fizeram deste, na análise de Singer (2008), um fator decisivo da eleição de
1994, ao lado das conformações ideológicas. Nas palavras de Singer, “além do grau de
satisfação com o real, a preferência partidária e a identificação ideológica foram importantes
preditoras do voto em 1994” (2002, p.126). Acreditamos que o mesmo pode ser dito da
eleição de 1998.
Em 2002, o modelo econômico dos governos FHC apresentava seu esgotamento
através dos níveis dramáticos de concentração de renda e desemprego. Agravando o quadro, o
chamado tripé macroeconômico12 se mostrou ineficiente em controlar o impacto sobre a
economia nacional oriundo das sucessivas crises financeiras que tiveram vez no mundo na
segunda metade dos anos 1990. Ainda, pesavam sobre o governo recorrentes escândalos de
corrupção. Nesse contexto, descrito de forma bastante limitada, se dá a vitória do PT em
2002.
Embora significasse uma vitória inédita das esquerdas e marcasse uma mudança de
trajetória no plano político da América Latina, a eleição de Lula se deu nos termos de um
pacto nacional que estabelecia a manutenção dos interesses centrais das elites financeiras, a
exemplo da defesa do tripé macroeconômico; pacto expresso pela Carta ao Povo Brasileiro,
lançada em 2002 nos primórdios da campanha eleitoral, onde se firmava o compromisso com
a manutenção do núcleo da política econômica vigente.
O primeiro mandato de Lula foi marcado pelo escândalo do mensalão e pelas
reformas, notadamente a da previdência, que condicionaram os limites reformistas do governo
bem como suas políticas de aliança.
É de Sérgio Abranches (1988), conforme vimos no capítulo anterior, a autoria do
conceito de presidencialismo de coalizão, que resulta de duas realidades institucionais
distintas. De um lado, o regime presidencialista brasileiro tende à centralização no poder
Executivo dos atos governativos, apesar das perspectivas descentralizadoras da Constituição
de 1988. Tal regime, associado à existência de um parlamento bicameral composto por uma
12 O tripé macroeconômico se constitui de três paradigmas: controle inflacionário, através de política de
juros elevada; controle fiscal, centrado da redução de gastos públicos; política de câmbio flutuante. O rigor em
sua aplicação nunca foi constante, como vemos em Carvalho (2018).
74

miríade de partidos, o baixo grau de fidelidade partidária e clareza programática, configura


um quadro no qual o governo, para poder ver aprovadas suas medidas, precisa construir um
arco amplo de alianças parlamentares visando a uma maioria no Congresso. O
presidencialismo de coalizão é o arranjo institucional da política brasileira e define seus
contornos e possibilidades.
Estudos acerca das instituições políticas brasileiras apontam para um quadro de
fragmentação e desestruturação política dos partidos. Nesse quadro, os partidos e o
Parlamento teriam pouca ou nenhuma capacidade governativa, estando esta concentrada no
poder Executivo. Estabelece-se, então, uma dinâmica de relações clientelistas entre
parlamentares e Estado, estando os políticos restritos ao jogo eleitoral de troca de apoio por
recursos públicos, que num ciclo vicioso se convertem em apoio político para sua manutenção
no processo político, através da cooptação de apoios eleitorais. Essa relação se sustenta pela
concessão de espaços administrativos para a base de apoio parlamentar no âmbito das
estruturas do poder Executivo, reduzindo dessa forma a capacidade operativa dos governos,
dependentes do apoio parlamentar (ABRUCIO, PEDROTI & PÓ, 2017).
Outro fato concernente ao presidencialismo de coalizão é o esvaziamento do papel do
Parlamento. Este, cujos atores centrais passam a depender substancialmente dos recursos do
Executivo para promover suas políticas clientelistas, possui no arranjo institucional vigente
pouco ou nenhum papel governativo, limitando-se ao mercado de recursos e espaços com o
Executivo. Vianna também atenta para os resultados desse regime nos governos petistas.

Contorna-se, pois, o parlamento real e o sistema de partidos na composição


dos interesses em litígio, que somente irão examinar da sua conveniência,
em fase legislativa, quando couber. Com essa operação, a formação da
vontade na esfera pública não tem como conhecer, salvo por meios indiretos,
a opinião que se forma na sociedade civil, e as decisões tendem a se
conformar por razões tecnocráticas. (VIANNA, 2011, p. 26)

Não se trata de reduzir a importância de fóruns como o Conselho Nacional de


Desenvolvimento Econômico e Social (CNDES) ou tantas outras que visavam a abrir espaços
institucionais de participação política para a sociedade civil. A crítica de Vianna vai no
sentido de reconhecer que tais espaços foram confinados pela estratégia mais ampla de
conciliação mediada pelo poder Executivo, e que se conduziram, afinal, no sentido de
corroborar com o esvaziamento das disputas mais amplas fora dos espaços de governo.
Embora não seja o objetivo específico de nosso estudo, à luz das ideias de Vianna poderíamos
interpretar alguns dos fatores que condicionaram a baixa reação popular e dos movimentos
sociais quando da queda do projeto lulista em 2016. O Estado havia absorvido em suas
75

estruturas o principal das contendas políticas, e a luta social se confinara no âmbito das
soluções mediadas pelo chefe do Executivo Federal.

3.2 Declínio do lulismo

Entre fins de 2015 e meados de 2016, a presidenta Dilma foi vítima de um golpe, parlamentar
que pôs um fim prematuro a seu segundo mandato. Diversos autores discutiram através de
abordagens diferentes, a aplicação do conceito de golpe aos eventos de 2016 (JINKINS;
DORIA; CLETO [ORGs], 2016). Para a finalidade restrita desta discussão, compreendemos o
golpe de 2016 como o processo que levou ao impeachment de Dilma no Congresso,
amparados em base legal contraditória e motivado por fins outros que não os constantes do
processo julgado. Registre-se que Avritzer trata dos limites impostos pelo que considera o
espectro amplo da Lei do Impeachment e da Justiça Eleitoral no Brasil e fala também da
volta das Forças Armadas como agente no processo de legitimação política (2019, p. 49-71).
O sistema de freios e contrapesos madisoniano, ao qual Levitsky e Ziblatt (2018)
atribuem boa parte da estabilidade do sistema representativo norte-americano por longo
período, não apenas pode ser encarado como limitador direto da democracia e elemento
crucial do atual enigma da democracia liberal, como pode também ser uma fonte de recursos
antidemocráticos em momentos nos quais o consenso social esteja enfraquecido. Em certa
medida, a crescente judicialização da política brasileira e instrumentos daquilo a que Jessé
Souza chamou por guerra híbrida contra o Brasil se valem das possibilidades abertas pela
estrutura institucional brasileira. Foi o que vimos no crescente ativismo judicial sob os
governos Dilma e no caso do impedimento da posse de Lula como ministro, numa decisão
monocrático do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes.
No referido artigo de 1988 de Sérgio Abranches, vê-se o pressuposto de que em nosso
sistema presidencialista não se governa sem maioria parlamentar. A hipótese concisa com que
trabalhamos para compreender o impeachment de 2016 e sua enorme influência na regressão
democrática brasileira combina a leitura de André Singer (2012; 2018) sobre os eventos com
as teses que estudamos até aqui, oriundas de Souza e Avritzer. Acrescentamos ainda o
decisivo papel da crise econômica que envolveu os governos Dilma, crise que será discutida
através da obra de Laura Carvalho, A valsa brasileira.
A guerra híbrida postulada por Jessé Souza dá margens à explicação de como e por
que se constituiu o ambiente de descrédito institucional sob os governos petistas e da
emergência de novos protagonistas no cenário político, particularmente o Poder Judiciário. A
76

orquestração das ações da Operação Lava Jato com a cobertura das ações do governo por
parte da grande mídia levaram a um cenário em que pela primeira vez desde 1989 as eleições
presidenciais foram oficialmente questionadas, em 2014. O próprio candidato eleito em 2018,
antes das eleições, pôs em dúvida a credibilidade das urnas eletrônicas, criando um clima de
maior insegurança.
Da tese de Avritzer, vemos como o pêndulo da democracia pode nos ajudar a
compreender como o regime democrático á alvo da sazonalidade na adesão de importantes
grupos sociais, a classe média e as elites, que em momentos de esgarçamento do consenso
pendem em direções antidemocráticas.
É no contexto teórico da guerra híbrida contra o Brasil e do pêndulo da democracia
que buscamos interpretar a leitura de Singer sobre a derrocada de Dilma e suas implicação na
degradação da democracia.
Singer vai buscar na coalizão das bases sociais do lulismo e sua desagregação os
elementos explicativos da queda do governo petista. Desde seu influente Os sentidos do
lulismo (2013), o autor propõe que o lulismo se sustenta a partir da aliança entre o
subproletariado, trabalhadores e setores da elite, sobretudo os ligados à produção. É
importante frisar que tal equilíbrio de forças foi possível num contexto econômico específico,
que se alterou profundamente a partir das crise financeiras globais de 2008 e 2011, e também
das oscilações no mercado internacional de commodities. Muito embora as políticas
anticíclicas do governo tenham obtido relativo sucesso na redução dos impactos das crises que
se sucederam, a capacidade financeira do Estado foi seriamente afetada, e a longa duração da
recessão mundial impôs novos desafios aos planejadores da economia.
A hipótese de Singer é de que Dilma, na sequência do quadro instaurado pelas crises,
apostou em uma coalizão entre industriais e trabalhadores, que teria como base o que se
passou a chamar de nova matriz econômica.
Em artigo na revista Piauí, Celso de Barros questiona duramente as bases econômicas
da nova matriz, centrando sua análise na leitura das medidas econômicas dos governos Dilma.

A própria ideia de chamar o conjunto de medidas econômicas de Dilma de


nova matriz econômica deu ares de programa bem pensado ao que, em boa
parte, não passava de uma série de improvisos. Se você baixa os juros
porque o euro vai quebrar, é fácil aumentar de novo quando o euro
sobreviver. Mas se você tiver dito que baixou os juros porque estava
combatendo o neoliberalismo? Vai admitir que, seis meses depois, descobriu
que o neoliberalismo era uma coisa legal? (BARROS, 2019, p. 34)
77

Seguindo sua análise dos fatores econômicos que conduziram à derrota da nova
matriz, Barros expõe os elementos que previamente demonstrariam sua impossibilidade:

O Economic Bulletin (nº 1, 2016), do Banco Central Europeu, fez uma


decomposição das causas da crise brasileira na qual fatores tanto domésticos
quanto externos são importantes. A explicação apresentada tem três pontos:
(a) a quedo do preço das commodities “revelou a fraqueza estrutural
subjacente à economia brasileira”; (b) os desiquilíbrios cresceram com as
políticas fiscais expansionistas e forte influxo de capital (aqui entra Dilma);
e (c) o fim da política de estímulos do Federal Reserve, o banco central
americano, criou preocupações no mercado internacional sobre a viabilidade
de países com déficits externos e fiscais (como era o nosso caso). (2019, p.
34)

O contexto econômico mais amplo certamente foi condicionante decisiva nos eventos
analisados. Contudo, as políticas que estiveram na base da nova matriz lograram êxito nos
momentos mais difíceis da longa crise internacional em 2008 e 2011, dado disso é que em
2013, quando o pacto lulista já dava fortes sinais de declínio, o Brasil rondava as margens do
pleno emprego, chegando a apresentar índices de desemprego inferiores a 5%. O que teria
mudado entre o primeiro e o segundo mandatos de Dilma? Singer vai buscar na política os
fatores decisivos para a derrota do lulismo sob a liderança de Dilma, por isso sua análise é
relevante neste momento do trabalho. A hipótese resumida pelo próprio autor se expressa na
introdução de Cutucando onças com bases curtas:

Por que fracassou a tentativa encetada por Dilma de garantir crescimento


sustentável com reindustrialização, aumento do emprego e da renda?
Hipótese: a presidente apostou em uma coalizão entre industriais e
trabalhadores para sustentar uma virada desenvolvimentista. No meio do
caminho, a coalização se desfez, pois os industriais mudaram de posição,
deixando afundar a arquitetura que deveria levar o país para fora da
arrebentação gerada em 2011 pela recidiva da crise mundial. No lugar da
coligação entre capital e trabalho surgiu uma renovada frente única burguesa
em torno da plataforma neoliberal, em particular o corte de gastos e as
reformas trabalhista e previdenciária. (SINGER, 2018, p. 39)

Amparados nessa análise de Singer, poderíamos responder a Barros que o recuo da


nova matriz não se deu por uma crise de convicções posterior, mas por ter o governo Dilma
percebido tarde demais que as bases nas quais se supunha sustentarem suas políticas já não
existiam. Já em dezembro de 2015, a sede da FIESP na capital paulista amanheceu colorida
em apoio aos protestos pela cassação de Dilma.
O real tamanho da adesão do setor industrial à coalizão produtivista proposta por
Singer ainda não nos parece evidente. O que nos parece evidente, isto sim, é que as bases
materiais do consenso lulista dependiam de altos níveis de crescimento econômico – Singer
78

sugere que a manutenção do pacto lulista exigiria um crescimento anual do PIB na casa do
5%, o que ocorreu em boa parte do tempo até 2011, quando o incremento do PIB foi de 4%,
patamar não mais alcançado desde então (SINGER, 2018, p. 53-57). A perda da adesão de
parcelas do capital produtivo nacional se aliou ao recesso das bases progressistas na ruas a
partir de 2013, e isso teria posto o ensaio desenvolvimentista, ainda nos termos de Singer, em
xeque. Ao perceber tardiamente a ruptura da coalizão que sustentaria seu ensaio, o governo
Dilma adotou medidas liberalizantes no sentido de atrair novamente a simpatia de setores da
elite ao governo. Com isso, não apenas não recompôs o pacto lulista como também
enfraqueceu ainda mais as já combalidas bases sociais do governo, que não possuíam um
discurso articulado e vigoroso desde o abandono do pacto proposto por Dilma quando dos
protestos de 2013. Dito isso, cabe anotar que o prognóstico para o lulismo não é promissor. A
capacidade de os indivíduos intervirem na política real depende de seu nível de organização,
portanto a principal base social do lulismo, o subproletariado, fica sem voz diante do
impedimento de Lula em ser candidato. Acrescente-se a isso o intenso processo de
marginalização de movimentos sociais como o MST. O quadro de regressão democrática
tende a fortalecer os obstáculos para a reorganização de um campo contra-hegemônico.
A regressão democrática seria, portanto, alimentada pela incapacidade da economia de
seguir proporcionando inclusão social e redução das desigualdades sem ferir os interesses
hegemônicos do capital, como ocorreu em toda a fase de vitalidade do lulismo. As novas
condições econômicas levaram as elites a buscar as soluções neoliberais muito bem apontadas
por Singer, como saída ao risco de redução de ganhos. O trabalho, desorganizado e sem
expressão dentro do governo após os recuos deste, não possuía a força necessária para forjar
uma nova coalizão majoritária. A classe média e as elites, derrotadas em 2014, passaram a ver
nas instituições democráticas agentes contrários à defesa de seus interesses. Dilma já toma
posse em seu segundo mandato com a legitimidade questionada, incapaz também de
reproduzir as condições de governo inerentes ao presidencialismo de coalizão. A vitória
petista em 2014 talvez tenha sido mais impactante na decisão dos principais atores políticos
que sua adesão ao frágil consenso democrático nacional. Em vez de assistirmos à ascensão de
ideais participativos que estiveram presentes em 2013, vimos a escalada da busca por
soluções vindas de cima em ambos os polos da disputa política central. As amplas
manifestações de rua, que sucederam o junho de 2013, crescentemente incorporavam e
legitimavam pautas antidemocráticas. A crescente influência do Poder Judiciário na política
acuava as tentativas de reorganização do campo da esquerda e alimentava o discurso
79

oposicionista. A tentativa de exclusão e marginalização das esquerdas no debate público


avançava.
Destoando da visão de Singer acerca da nova matriz econômica, Laura Carvalho
demonstra em seu brilhante estudo os equívocos que conduziram a seu fracasso. Grande
parcela do incremento econômico observado no auge do lulismo decorreu diretamente da
expansão dos gastos públicos, por meio de políticas de redistribuição de renda e sobretudo via
investimentos estatais maciços em infraestrutura. Essa tônica nos investimentos diretos do
Estado foi, na nova matriz, substituída por políticas de desoneração, aplicadas a setores cada
vez mais diversos e por critérios cada vez mais frouxos, e pela redução nos gastos públicos.
Analisando esta tendência, a autora diz:

Pior. Das desonerações e subsídios do primeiro mandato ao ajuste fiscal do


segundo, o governo Dilma cumpriu à risca a lista de exigências das elites
empresariais e financeiras, que só fazia aumentar. Nem o desemprego
galopante e a queda rápida dos salários dos trabalhadores menos qualificados
ajudaram a resgatar o país de seus captores. Os patos, ao contrário,
continuaram multiplicando-se na avenida Paulista. (CARVALHO, 2018, p.
150)

Carvalho acrescenta ainda que os efeitos políticos da Operação Lava-Jato tiveram


grande papel ao acentuar a crise econômica e as consequências negativas das políticas fiscal e
monetária, bem os já conhecidos impactos da inversão na alta dos preços de insumos
exportados pelo país.
Outro fator relevante que autora pontua é papel da elevação do salário mínimo. O
salário mínimo repercute sobremaneira nas parcelas de trabalhadores de menor qualificação,
alojadas principalmente no setor de serviços. Uma consequência direta da valorização dos
rendimentos básicos é a elevação do preço dos serviços, que atinge principalmente as classes
médias. Desta forma, temos de um lado a associação entre desonerações e redução dos gastos
do Estado e o quadro econômico recessivo mundial. Neste contexto, as desoneração servem
mais para recompor as margens de lucro ameaçadas que para estimular novos investimentos;
grande parte dos recursos redistribuídos às empresas via desoneração acaba migrando para
investimentos especulativos, em busca de lucros mais seguros. Do outro lado, a percepção das
camadas médias de uma elevação em seus custos de vida, associadas à estagnação de
rendimentos; para entender as consequências disto, cabe lembrar Pochmann, que demonstrou
que as parcelas do meio da pirâmide de renda foram aquelas que tiveram menor ascensão sob
o lulismo. A solução para os anseios de recomposição de renda das elites e classes médias
passava, portanto, por políticas de desvalorização do trabalho, que aumentassem as margens
80

de lucro das empresas e reduzissem os custos dos serviços. Este quadro, mais que o abandono
das elites empresariais ao pacto de Dilma, teria resultado no fracasso de seu modelo
econômico.
O lulismo chegou em 2015 com suas bases parlamentares reduzidas, em grave
contexto de crise econômica, com suas bases sociais desmobilizadas e enfrentando severa
crise de legitimidade. Contudo, nada disso determinava o desfecho que teve o lulismo. Diante
das possibilidades abertas pela crise do lulismo, os vários caminhos que se abriam teriam de
ser disputados e reorientados pelos atores políticos. Nas intensas mobilizações de 2015 e
2016, os ecos conservadores de 2013 se amplificaram, novos atores emergiram, e o quadro da
polarização entre dois projetos, representados por PT e PSDB, entrou em declínio.

3.3 2015: declínio da direita tradicional, ascensão da extrema direita

Com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2002 deu-se a
subsequente implementação de um programa de inclusão social que se alicerçava na
ampliação da presença do Estado na economia e dos serviços públicos ofertados por este,
como também numa política de crescimento econômico em grande parte fomentada pelo
incremento do consumo interno e dos investimentos estatais diretos. O êxito desse programa
inaugurou um período de relativa hegemonia do discurso de esquerda no debate público
brasileiro. Sintoma dessa hegemonia, sensível ainda que bastante restrita, foi o
comportamento da principal organização de direita do Brasil quando da eleição presidencial
de 2010, na qual o Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB) lançou o ex-governador de
São Paulo, Geraldo Alckmin, para enfrentar nas urnas a candidata Dilma Rousseff, que tinha
o apoio do presidente Lula.
Na disputa eleitoral de 2010, gozando do prestígio de índices econômicos e sociais
amplamente positivos, o bloco político liderado pelo Partido dos Trabalhadores adotou a
estratégia de confrontar os resultados de seus dois governos em nível federal com os
resultados daqueles governos dirigidos anteriormente pelo PSDB, entre 1995 e 2002.
A oposição de direita, por sua vez, na voz de seu principal candidato, Geraldo
Alckmin, adotou estratégia diversa. Um primeiro dado simbólico relevante da campanha do
PSDB ao Planalto naquele ano foi o esforço direcionado no sentido de omitir o apoio do ex-
presidente Fernando Henrique Cardoso à chapa oposicionista, numa tentativa de desvincular a
candidatura de Alckmin da memória coletiva dos anos de governo de Fernando Henrique.
Outro dado importante da campanha de 2010 foi a aparição do próprio candidato Alckmin na
81

campanha defendendo a manutenção dos programas sociais do governo Lula e apoiando a


manutenção do monopólio estatal da Petrobras. Grosso modo, pelo discurso de campanha
seria possível deduzir que as eleições de 2010 foram polarizadas por dois candidatos que em
graus variados incorporavam discursos da esquerda.
Entre as eleições de 2010 e as de 2014, profundas mudanças emergiram da sociedade
impactando o processo eleitoral que terminaria na vitória apertada de Dilma na disputa pela
reeleição.
Em artigo de 201513, Adriano Codato, Bruno Bolognesi e Karolina Mattos Roeder se
propõem a analisar o fenômeno da nova direita no Brasil. No estudo, os autores apontam para
a inversão na tendência de participação dos partidos conservadores na composição da Câmara
dos Deputados. Segundo o levantamento feito por eles, em 2010 os partidos conservadores
chegando ao vale de um processo de descenso de sua presença parlamentar elegendo 36,3%
dos deputados federais brasileiros. Este contingente, em 2014, subiu para 43,5%.
Contudo, o crescimento da bancada parlamentar dos partidos conservadores não se deu
através dos partidos tradicionais da direita, a exemplo do Democratas (DEM), Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB), Partido Republicano (PR) ou Partido Progressista (PP), dos
quais apenas o PTB registrou um leve crescimento, indo de 22 para 25 deputados eleitos de
uma legislatura a outra. O crescimento da bancada conservadora se deu prioritariamente,
como demonstram os autores, via partidos daquilo a que chamam de nova direita. Eles
definem assim a nova direita, inicialmente:

Em alguns pontos, como no caso do conservantismo em relação aos


costumes e das limitações impostas à liberdade pessoal, essa nova corrente
política se alinha à velha direita, herdeira direta da Arena e depois PDS,
partidos de sustentação política do regime ditatorial-militar. Mas, em outros
pontos fundamentais, não. A nova direita brasileira está orientada para
conviver com governos de esquerda, fazendo parte de suas coalizões de
apoio, e admitir, pragmaticamente, a existência de programas sociais.
(CODATO; BOLOGNESI; ROEDER, 2015, p. 115-116)

Os autores apontam o Partido Social Democrata (PSD) e o Partido Social Cristão


como exemplos da nova direita que ganharia impulso entre 2010 e 2014.
Como cremos, ao analisar os dados das eleições de 2018, acreditamos que este cenário
apresentado pelos autores foi um arranjo provisório, um ensaio de articulação e expressão
institucional de um novo campo político conservador no Brasil, mais alinhado à extrema

13 Este texto traz uma importante reflexão sobre os deslocamentos ideológicos do eleitorado entre as
eleições de 2010 e 2014, e será ainda debatido a fundo no capítulo 2, a pretexto da discussão sobre nossa
compreensão de uma crise de representatividade que estaria em relação direta com a onda conservadora.
82

direita, e divergindo do perfil da nova direita postulado pelos autores. A onda conservadora
acabaria se demonstrando um fenômeno mais amplo e intenso.
Dois livros recentes nos ajudam a entender o quadro eleitoral verificado em 2018. o
primeiro deles, O voto do brasileiro de Antônio Carlos Almeida, foi publicado no começo de
2018. Almeida realiza um exaustivo levantamento de dados das eleições de 2006 a 2014 para
demonstrar a existência de um padrão no comportamento eleitoral do brasileiro. Numa análise
comparada dos resultados das três eleições, o autor distingue uma clara tendência eleitoral
sedimentada na polarização entre PT e PSDB. Ele antecipa que

Diante de tais evidências da força eleitoral do PSDB em SP e do PT no


Nordeste, é possível que surja a pergunta sobre a possibilidade de que, em
meio a uma crise sem precedentes no Brasil, que mistura queda do poder de
compra da população e escândalos de corrupção, uma das duas agremiações,
ou ambas, fiquem de fora do segundo turno da eleição de 2018. Sim, isto é
possível, mas não é provável, e será abordado no final do livro. (ALMEIDA,
2018, p. 33)

Pois aconteceu o improvável. Mas a despeito da frustração de expectativas, Almeida


tinha muitos elementos que corroboravam sua visão do cenário eleitoral. Relacionando
divisões sociais e demográficos, surge na obra de Almeida uma evidente clivagem eleitoral
entre regiões mais e menos “ricas”, opondo dois polos dinâmicos: Norte e Nordeste com
preferência pela centro-esquerda; Sul, Sudeste e grande parte do Centro Oeste tendendo à
centro direita. Já em 2014, o candidato do PSDB, Aécio Neves, venceu a postulante reeleita
em cidades como Belo Horizonte e São Paulo por grande margem. A desvantagem petista
nessas regiões foi compensada por larga margem de maioria em cidades como Fortaleza,
Recife e Salvador. O quadro proposto por Almeida também se verifica quando segmentada a
votação por municípios tendo como critério índices como o IDH e níveis de renda da
população. Teríamos um claro afastamento da preferência eleitoral entre mais e menos
favorecidos na sociedade brasileira. Dada a consistência do comportamento eleitoral nas
últimas décadas, a perspectiva anunciada por Almeida se fazia decorrência lógica, sobretudo
pela análise que o autor faz da comparação entre os cenários eleitorais em outros países e o
contexto nacional: “Não creio que o Brasil tenha passado por uma mudança da estrutura
social que resulte em temas genuinamente novos nas campanhas que hão de ocorrer”
(ALMEIDA, 2018, p. 122).
Visto em retrospecto, o cenário desenhado por Almeida parece ingênuo. Esta
impressão é sobremaneira reforçada pelo espanto ocasionado pela vitória de Bolsonaro, numa
eleição que o senso comum e a crítica acadêmica acabaram por taxar de surpreendente.
83

Contudo, para além do espanto, é preciso compreender que mudanças estruturais da sociedade
teriam gerado tal resultado surpreendente, se é que as houve. E, principalmente, se tais
mudanças de fato incorporaram temas genuinamente novos à campanha.
O segundo livro a que nos referimos é O Brasil dobrou à direita, de Jairo Nicolau,
publicado em fins de 2020. Neste, Nicolau analisa um vasto corpo de dados sobre os
resultados eleitorais de 2018 e das pesquisas de intenção de voto para presidente na ocasião.
Faz ainda uma comparação com os dados das duas eleições precedentes.
Se houve uma mudança na estrutura social brasileira capaz de impactar no movimento
eleitoral foi aquela apontada por Pochmann e que aparece nos levantamentos de Nicolau: por
um lado, até 2012 verificou-se uma ampla inserção de camadas do subproletariado ao
mercado formal de trabalho, elevando os níveis de renda na base da pirâmide; por outro, a
elevação do grau de escolaridade média da população. Entre 2002 e 2018, decresceu
acentuadamente os índices de pessoas analfabetas ou com apenas o nível fundamental
completo, ao passo que se verificou movimento inverso nos estratos de ensino médio
incompleto a superior completo. Quando Lula foi eleito pela primeira vez, em 2002, 63% do
eleitorado não havia terminado o ensino fundamental. Dezesseis anos depois, quando
Bolsonaro conquistou a presidência, esse número caíra para 39% (NICOLAU, 2020, p. 41).
Uma possível chave para interpretar algumas das mudanças no comportamento
eleitoral do brasileira pode ser encontrada no diagnóstico de Pochmann, que demonstra que a
elevação nos níveis de escolaridade não se fez acompanhar de geração de novos postos de
trabalho condizentes. 95% dos empregos gerados na primeira década de governos petistas se
situaram no setor de serviços, com remuneração entre 1 e 2 salários mínimos (POCHMANN,
2012). É também possível que essas novas camadas de eleitores com maior escolaridade
tenham visto nas políticas sociais dedicadas ao mais pobres um antagonista às possibilidades
de ascensão social que passaram a vislumbrar. Embora promissora, essa hipótese requer uma
verificação mais adequada.
O que os dados levantados por Nicolau apontam é que entre 2010 e 2014 houve uma
significativa mudança no comportamento eleitoral dos estratos educacionais. Considerados
três níveis (fundamental, médio e superior), nas eleições de 2º turno, em 2010 o PT teve
votação superior ao PSDB em todos os estratos. Já em 2014, o PSDB derrota o PT no estrato
daqueles com nível superior. Em 2018, o PSL derrota o PT em todos os estratos. É relevante o
fato de o PT começar a perder suas bases pelo estrato de nível superior, que se correlaciona
com os níveis de renda.
84

Bolsonaro foi o preferido nos três níveis de escolaridade que adotei para
classificar os eleitores (fundamental, médio e superior). A novidade em
relação a pleitos anteriores foi a derrota do Pt entre eleitores de baixa e
média escolaridade (o que não acontecia desde 2002), com destaque para
este último segmento, no qual a diferença entre a votação de Bolsonaro e a
de Fernando Haddad foi maior. (NICOLAU, 2020, p. 122)

A novidade apontada por Nicolau parece expressar uma ruptura nas bases eleitorais do
lulismo, conforme elaborado por Singer, que a partir de 2006 teria incorporado vastos
contingentes do subproletariado, tendo como contrapartida a perda de bases nas camadas
médias da sociedade. Contudo, cabe registrar que essa reorientação eleitoral se deu sobretudo
em estados do Sul e Sudeste, permanecendo a maioria petista no Nordeste, onde o PT obteve
no 2º turno cerca de 70% dos votos válidos.
O levantamento de Nicolau ainda aponta outras clivagens bem definidas. A votação de
Bolsonaro no 2º turno se deu majoritariamente nos grandes centros urbanos, sobressaindo nos
estratos de maior escolaridade e com expressiva votação entre evangélicos, na casa de 70%.
Obteve em São Paulo votação maior que os líderes tucanos do estado lograram em eleições
anteriores. Também foi grandemente superior no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte. Nicolau
ainda ressalta que a votação de Bolsonaro entre os homens foi superior em cerca de 10% a sua
votação entre as eleitoras. Como bem registra Nicolau, vários fatores se sobrepõem ao
analisar a demografia da eleição de 2018, “o Nordeste tem mais católicos e mais pessoas de
baixa escolaridade e que vivem em pequenas cidades, e que por isso têm pouco acesso às
redes sociais” (NICOLAU, 2020, p. 126). Desse quadro apresentado por Nicolau, emerge um
perfil do eleitor bolsonarista, urbano, masculino e com maior escolaridade, com forte
participação dos setores evangélicos. Esse perfil do eleitorado bolsonarista é compatível com
a conceituação que propomos neste trabalho, apresentado preliminarmente no capítulo 1.
Paralelo ao crescimento do que Codato, Bolognesi e Roeder chamaram de nova
direita, e em sintonia com o perfil eleitoral traçado por Nicolau, ocorreram substantivas
mudanças nos temas presentes no debate público nos quatro anos que antecederam a vitória
de Bolsonaro. Marina Lacerda, analista legislativa da Câmara dos Deputados, realizou
importante estudo sobre a ascensão do pensamento conservador na política brasileira
contemporânea. Assim a autora define seu objeto:

O que se entende aqui por novo conservadorismo brasileiro é uma parcela


dessa direita; é o ideário que hegemonizou a direita e levou Bolsonaro à
presidência. A nova direita é aquela em torno da família tradicional, do
anticomunismo e do militarismo; e de valores de mercado, nesse aspecto
com várias nuances. (LACERDA, 2019, p. 17-18)
85

Para Lacerda, uma particularidade da nova direita brasileira seria que esta se baseia
“na ideia de que a família – e não o Estado – é a resposta para toda ordem de disfunções
sociais” (2019, p. 18). Diz ainda que o “que diferencia o neoconservadorismo de outros
movimento e ideologias conservadoras é a centralidade que atribui às questões reprodutivas e
sobre a família tradicional” (2019, p. 199).
A definição de Lacerda é importante para se compreender como ela chega à conclusão
de que a Legislatura de 2015-2018 foi consistentemente mais conservadora que suas
antecedentes. Temas centrados na defesa de uma visão tradicional e patriarcal da família
ganharam espaço e relevância no período. Atores alinhados a tais valores polarizaram o
debate público, antagonizados por movimentos sociais e parlamentares de esquerda. Parte
majoritária das iniciativas legislativas nesse sentido partiu de parlamentares de afiliações
evangélicas. Seu estudo dá sólida sustentação a duas hipóteses com as quais trabalhamos:
primeiro, que o segmento evangélico foi ator decisivo na vitória de Bolsonaro; segundo, que
os deslocamentos eleitorais e ideológicos no seio da direita brasileira já se manifestaram
fortemente nas eleições de 2014, sobretudo para o Parlamento.
Nosso objetivo, como explicitado, não é responder a por que Bolsonaro foi eleito. Tal
tarefa talvez seja inexequível. Mas a leitura de alguns autores como Nicolau, Almeida e
Moura e Coberllini nos dão pistas úteis sobre o que aconteceu e nos auxiliam na busca por
compreender os sentidos da eleição de Bolsonaro, tema desta tese. No capítulo subsequente,
aprofundaremos o debate sobre o perfil político e ideológico do que temos chamado de
bolsonarismo. Agora, contudo, trataremos em seção a parte um tema que esteve no centro
tanto das discussões sobre a vitória de Bolsonaro quanto acerca da ascensão política da
extrema-direita no mundo, o papel novo desempenhado pela redes sociais da internet nas
eleições e na organização de grupos políticos antiestabilishment. Ao mesmo tempo,
discutiremos o papel de novos atores políticos que foram cruciais no desfecho dos processos
políticos de 2015 e 2016 que conduziram ao golpe contra o mandato de Dilma Rousseff.

3.4 MBL, Think Thanks e a força das redes sociais na internet

Os protestos antigoverno ocorridos entre 2015 e 2016 guardam ligação íntima com os
protestos de junho de 2013, mas aqueles diferem destes em questões essenciais. Se em 2013
direita e esquerda estiveram nas ruas – e sobretudo nos espaços púbicos de discussão política
–, disputando os afetos dos manifestantes e os sentidos políticos das manifestações, em 2015 e
2016 era a direita quem tomava a iniciativa e dirigia todos os atos.
86

Em 2014, analisando o desfecho dos protestos do ano anterior, concluímos ter havido
uma espécie de pacto tácito pelo fim das mobilizações. Os atos de junho impactaram
negativamente na avaliação de governos em todos os níveis, atingindo lideranças de todos os
espectros ideológicos da política nacional. Quem estive em governo, quem liderasse alguma
instituição, qualquer político assim compreendido pela população sofreu as consequências da
profunda descredibilidade que aflorou naquelas semanas de intensa mobilização social.
Da parte dos governos petistas, o Governo Federal foi o mais fragilizado. As
iniciativas de direcionar o descontentamento popular para as políticas do governo obtiveram
grande êxito, conforme pudemos verificar no capítulo 2 a respeito das motivações dos
manifestantes. Temas como corrupção, gastos com grandes eventos, ineficiência dos serviços
públicos ascenderam ao protagonismo no debate público. Como sabido, o governo Dilma teve
drástica queda de popularidade.
Mas as lideranças da oposição em situação de governo, como o caso do Governo
Estadual de SP, também foram alvos da rejeição popular. Lideranças políticas de direita foram
vaiadas nas ruas. Poucos meses após liderar o golpe contra Dilma na Câmara dos Deputados,
seu então presidente, Eduardo Cunha, foi cassado e posteriormente preso. A indignação não
poupou ninguém.
A partir dos massivos protestos de 20 de junho de 2013, esquerda e direita se viram
diante uma legítima encruzilhada. Milhões de pessoas nas ruas costuma ser fato que exige
medidas. A revolta crescia e cresciam também os apelos por medidas mais drásticas.
Executivo, Legislativo e Judiciário estavam sendo acossados pelas ruas. Mesmo a grande
mídia recebeu crescente hostilidade.
Ciente da necessidade de apontar algum caminho que pudesse mobilizar e aglutinar
suas bases, o governo – através de sua liderança máxima, a presidente da República – propôs
um pacto nacional que abarcava questões ligadas ao transporte mas também propunha uma
profunda reforma política. Esta reforma era um anseio antigo de setores da esquerda brasileira
e mesmo de certas lideranças da direita. Creditava-se a tal reforma a responsabilidade por
sanar os vícios inerentes ao presidencialismo de coalizão e a um sistema de representação
cada vez mais distanciado dos anseios e valores populares. Chegou-se a cogitar uma mini
constituinte para tratar do assunto. Na tentativa de obter a primazia na definição do próximo
passo das acirradas lutas políticas de 2013, o pacto de Dilma foi o caminho das esquerdas no
governo.
À direita, o caminho óbvio e de curso mais fácil – ao menos do ponto de vista da
construção discursiva – era avançar para a derrubada do governo. Contudo, em tal
87

perspectiva, nem a vitória era certa nem faltavam os riscos inerentes a tal postura, que sejam
se associar a posturas golpistas ou assumir o desgaste pelo possível agravamento do quadro
social e econômico. A aposta mais segura parecia ser aquela que contava com o
“sangramento” do governo petista até a próxima eleição, em 2014. Aécio Neves chegou
próximo de obter a vitória naquele pleito, o que demonstra que a análise da oposição não foi
de todo errada.
Uma vez evidenciada a escolha da oposição por não dar o passo seguinte, foi a vez do
governo também desacelerar a marcha. Como lemos em Singer e Vianna, o pacto lulista era
um pacto de conciliação, que promovia a incorporação do subproletariado no mercado de
trabalho e consumo sem promover conflitos possivelmente ameaçadores às conquistas que
promovia. Outro fator determinante da posição do governo foi o parco poder de mobilização
dos movimentos sociais de esquerda verificado em julho quando centrais sindicais e demais
entidade convocaram seus protestos em defesa do pacto de Dilma. O limitado interesse (ou
mesmo um claro desinteresse) do governo em aprofundar e intensificar o ritmo das reformas
alimentou e foi alimentado pela fraqueza demonstrada pelos movimentos sociais de sua base
política, gerando um processo lento e tácito de desmobilização final. Como analisamos na
época:

A possível retomada das grandes manifestações que tiveram vez em junho de


2013 dependeria exclusivamente de um reforço nas linhas oposicionistas, o
que se daria necessariamente em conjunto com nova exclusão das
organizações que atualmente ocupam as ruas. O que não ocorreu durante a
Copa do Mundo. (GIROTTO, 2014, p. 137)

O conjunto de organizações que atualmente ocupavam as ruas, no contexto daquele


trabalho, eram as oposições de esquerda, que buscaram herdar o legado dos protestos de
junho, obtendo, contudo, crescente isolamento social. Novas jornadas necessariamente seriam
iniciativa da oposição de direita. Dizemos necessariamente não por fatalismo, mas amparados
no contexto em que declinam os protestos de junho. O governo abandona sua agenda
reformista no momento em que o incêndio parece estar contido, e o quadro pintado por sua
desmobilização indicava que não haveria bases para reverter o cenário. É isso que no centro
da análise de André Singer em seu Cutucando a onça com bases curtas. As oposições fora do
governo não possuíam bases nem um programa com apelo popular que fossem suficientes
para a mobilização de massa. Seria necessário um evento forte o bastante para alterar a
percepção da direita acerca dos custos de uma mobilização pela derrubada do governo. Esse
evento foi a reeleição de Dilma em 2014.
88

Fracassando a estratégia do sangramento, já testada por ocasião da crise do mensalão,


a direita se viu diante da possibilidade de enfrentar mais quatro incertos anos de governo
petista. Não só a vitória de Dilma foi mais apertada em 2014 como também a presidenta
reeleita assumiu seu segundo governo com a popularidade em baixa, a legitimidade
questionada e, como vimos, diante de um Congresso mais conservador. Da contestação do
PSDB ao resultado da eleição até sua adesão ao plano do impeachment, o partido foi
paulatinamente assumindo a agenda que abortara em 2013. Contudo, se no plano institucional
o PSDB ainda protagonizava os embates, nas ruas novos atores surgiam.
Parte da explicação do porquê de o PSDB não ter protagonizado os movimentos de
2015 e 2016 para além da esfera político-institucional se encontra no clarividente artigo de
2011 escrito pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Sua análise é mais um daqueles
casos de síntese exata e direta que nos permite cometer outra longa citação.

Enquanto vozes dos setores mais vigorosos da preferência se estiolaram,


entretanto, nos muros do Congresso e este perdeu força política e capacidade
de ressonância. Os partidos se transformaram em clubes congressuais,
abandonando as ruas; muitos parlamentares trocaram o exercício do poder
no Congresso por um prato de lentilhas: a cada nova negociação para
garantir uma “governabilidade”, mais vantagens dos congressistas e menos
força político-transformadora no Congresso.

[…]

As oposições se baseiam em partidos não propriamente mobilizadores de


massas. A definição de qual é o outro público a ser alcançado pelas
oposições e como fazer para chegar até ele e ampliar a audiência
fundamental.

Enquanto o PSDB e seus aliados persistirem em disputar com o PT


influência sobre os “movimentos sociais” ou o “povão”, isto é, sobre as
massas carentes e pouco informadas, falarão sozinhos. Isto porque o governo
“aparelhou”, cooptou com benesses e recursos como principais sindicais e
movimentos organizados da sociedade civil e inclui mecanismos de
concessão de benesses às massas carentes mais eficazes do que a palavra dos
oposicionistas, além da influência que exerce na mídia com as verbas
publicitárias. (CARDOSO, 2011. Transcrição literal, com prováveis falhas
de edição no portal eletrônico.)

O sociólogo ex-presidente já em 2011 apontava para as limitações organizativas e


políticas das oposições de direita no Brasil. Também indicava qual seria o público em que a
oposição poderia desempenhar um papel mais ativo, conforme citação constante do capítulo
1.
89

A lucidez de Cardoso nos permite ver por dentro o contexto político da oposição sob o
lulismo. E apesar de seu alerta, não foi o PSDB nem seus aliados que mobilizaram essas
camadas da sociedade, mas sim novas organizações de direita, muitas delas surgidas no
âmbito das redes sociais da internet. Entre 2015 e 2016, grandes manifestações ocorreram em
todo o país. O protesto de 13 de março de 2016 teria sido a maior mobilização política de rua
da história brasileira, envolvendo mais de 3 milhões de pessoas em dezenas de cidades14.
Três dos principais movimentos que lideraram os protestos de rua contra o governo
Dilma em 2015 e 2016 foram organizados dentro do espaço virtual do Facebook e
ascenderam na sequência dos protestos de 2013. São eles o MBL (Movimento Brasil Livre), o
Vem pra rua e o Revoltados online.
O mais antigo dos três é o Revoltados Online, que data de 2004. Sua página no
Facebook, inicialmente uma confusa iniciativa para "caçar pedófilos", chegou a ter quase um
milhão de seguidores na rede social. Tanto a página quanto o perfil de seu fundador, Marcello
Reis, acabaram removidos da plataforma após um caso de ameaça a um advogado. Marcello
Reis acumula longa ficha de ofensas e discursos de ódio na internet, sendo muita vezes
identificado como simpatizante de ideologias neonazistas.
O Vem pra rua foi organizado em 2014 por pessoas alinhadas ao PSDB e ao então
senador Aécio Neves.
O MBL, organizado também em 2014, diz se identificar com o tatcherismo e apregoa
soluções de livre mercado para os problemas nacionais. Dentre seus expoentes, destacam o
atual deputado federal Kim Kataguiri (DEM) e o vereador da cidade de São Paulo Fernando
Holiday (Patriota). Afirmou-se como a principal organização nas mobilizações pelo
impeachment.
Em artigo de 2016, Marina Amaral denunciou a rede de think thanks por trás da
organização e promoção do MBL como principal artífice das mobilizações pelo impeachment.

Em março de 2015, a agência Pública passou a investigar a origem do MBL,


que alcançaria seu nas manifestações daquele pedindo o impeachment da
presidente Dilma Rousseff. Três meses depois, a reportagem “A nova roupa
da direita” comprovaria os laços entre os irmãos Koch e o movimento de
Kataguiri. Por meio de entrevistas e documentos, a reportagem revelava que
o MBL havia sido gerado por uma rede de fundações de direita sediada nos
EUA, a Atlas Network […] (AMARAL, 2016)

14 Estadão: Maior manifestação da história do País aumenta pressão por saída de Dilma. Em:
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,manifestacoes-em-todos-os-estados-superam-as-de-marco-do-ano-
passado,10000021047 . Consulta em 30 de outubro de 2020.
90

As revelações sobre o MBL, somadas às da vaza jato, demonstraram que houve


orquestração internacional no impeachment de Dilma em 2016, reforçando alguns dos
argumentos de Jessé Souza debatidos anteriormente.
Embora houvesse uma relação de proximidade e semelhança, mesmo de
pertencimento em alguns casos, entre os líderes desses novos movimentos e as lideranças
tradicionais da direita, fato inconteste é que essas novas organizações cresceram no vácuo
político deixado pela oposição, como apontou Cardoso. Foi também nesse fértil e ermo
terreno que o bolsonarismo se enraizou e prosperou.
Houve quem, mesmo no espectro político da esquerda, defende-se que os movimentos
de 2015 e 2016, muito embora contrários ao governo, não representariam uma marcha política
conservadora, necessariamente. Valerio Arcary definiu a situação nos seguintes termos:

A situação política evoluiu para pior ou para melhor? O argumento deste


artigo é que, a partir de junho de 2013, aconteceu uma inflexão na situação
política do Brasil. Saímos de uma situação defensiva, portanto, pior que a
atual para uma situação transitória. Uma nova geração entrou em cena.
(2016, p. 147)

Para esse autor, o que estava acontecendo seria a ruína do lulismo, no que em certo
sentido tem razão. Ao comentar as análises que propunham existir uma onda conservadora ou
o risco de um golpe “à la paraguaia”, Arcary diz que são análises exageradas. “Uma maior
polarização político-social, isto é, uma erosão do centro político e a abertura de maior espaço
para posições mais radicais à direita e, também, à esquerda, é um dos sinais de que estamos
em uma nova situação” (2016, p. 148). Para ele, abria-se uma nova fase marcada pelo
descontentamento do proletariado com a conciliação lulista, que abria a “possibilidade, pela
primeira vez, de uma reorganização pela esquerda (2016, p. 152).
Olhando em retrospecto, fica fácil enxergar o equívoco do autor em sua leitura do
quadro nacional. Contudo, à época, diversas organizações de esquerda opositoras ao governo
enxergaram na crise do lulismo a possibilidade real da emergência de um polo político
majoritário organizado em torno da “verdadeira esquerda”. Ainda que não pretendemos
avaliar tal leitura fora de seu contexto, alguns aspectos podem ser levantados para apontar
possíveis equívocos dessa visão. Um tema latente no texto de Arcary e em muitas das análises
da época era a suposição de que as oportunidades políticas para posicionamentos “radicais”
surgissem simultaneamente para todos o espectros ideológicos. Apesar do sempre enaltecido
fundamento histórico de tais análises, salta aos olhos o descompasso entre teoria e realidade,
descompasso perfeitamente expresso na negação da existência de uma onda conservadora.
91

Não por acaso, tais leituras possuem pra nós, atualmente, mais um papel de registro dos
movimentos políticos e teóricos no curso das disputas hegemônicas, e das ideias que
orientaram certas parcelas da esquerda, que um papel explicativo que faça avançar a
compreensão do eventos estudados.
Houve no período tem como marco inicial os protestos de 2013 tanto uma reorientação
ideológica quanto uma maior organização de importantes parcelas da sociedade brasileira. Tal
fenômeno se constitui hoje num consenso sólido entre os estudiosos da realidade brasileira.
As mídias sociais permitiram o surgimento de alternativas organizativas a setores da
sociedade que estavam ausentes das ruas nas últimas décadas, conforme bem apontou
Avritzer (2015). Os principais polos da política brasileira até 2013, liderados por PT e PSDB,
possuíam a seu dispôr poderosas organizações capazes de instruir e mobilizar suas bases. Se o
PT dirigia uma vasta rede de organizações sindicais e dos movimentos sociais, o PSDB
desfrutava de institutos e órgãos da mídia sempre a postos para desempenhar seu papel nas
lutas hegemônicas. Conforme aprofundaremos no capítulo seguinte, as redes sociais na
internet permitiram ao bolsonarismo mobilizar suas bases à margem dos recursos tradicionais
de campanhas políticas.
92

4 O NEOLIBERALISMO REACIONÁRIO BRASILEIRO

Acreditamos haver evidências suficientes de que a eleição de 2018 não foi um fenômeno tão
contingente, ou disruptivo, quanto supõem-se da leitura de Moura e Coberllini, debatidos no
capítulo 1. Sem afastar a importância dos fatores elencados pelos autores, cujo estudo traz
importantes contribuições para o debate, julgamos que permanece válida a noção de ideologia
para explicar a vitória de Bolsonaro e o bolsonarismo.
Tal magnitude de temas contingentes que perpassaram a campanha eleitoral de 2018
dificultam a definição de fatores sociais e políticos mais amplos que possam ter sido decisivos
no pleito, se não por toda a complexidade dos temas, no mínimo por embotar a cognição. Não
a toa, o debate público sobre a vitória de Bolsonaro costuma conter afirmações que atribuem a
algum desses eventos particulares a proeminência explicativa dos resultados. Aqui – sem
refutar a relevância dos fatores contingentes – buscamos compreender como as dinâmicas
política e ideológica foram determinantes no processo da disputa presidencial de 2018; nossa
atenção se concentra nos sentidos políticos e ideológicos da vitoria de Bolsonaro.
Compreendendo a eleição como um momento do longo processo de disputas
hegemônicas visando à construção de uma maioria ideologicamente estruturada, ainda que de
uma estruturação de tipo fraca, vimos como os partidos centrais da direita brasileira foram
perdendo terreno para outras agremiações que tiveram maior êxito em se aproveitar da
duradoura crise de legitimidade que abate o sistema político brasileiro, notadamente a partir
de 2013. Contudo, o quadro de recessão democrática mundial e as particularidades das
disputas hegemônicas da Nova República de forma alguma determinaram a emergência do
bolsonarismo como alternativa política. Operando nos limites estabelecidos pela realidade
política e aproveitando as possibilidades abertas, o bolsonarismo teve de fomentar e recriar
constantemente as bases de seu discurso, incrementando suas táticas à medida que novos
conflitos se estabeleciam. Pretendemos demonstrar neste capítulo que o bolsonarismo não é
um fenômeno fugaz ou fortuito, que não se deu em função de uma sucessão de erros das
correntes políticas alternativas, como supõe um certo senso comum que tem também raízes na
academia. Pelo contrário, o bolsonarismo soube se oportunizar das janelas abertas pelo ciclo
de crise da democracia liberal, dos impasses econômicos não resolvidos e da fragilização da
liderança do PSDB e congêneres no campo da oposição de direita.
A cada episódio contingente das disputas políticas no Brasil durante as últimas
décadas, o bolsonarismo e seus protótipos souberam galgar novos espaços, dialogar com
93

novos atores e se ressignificar de forma a contemplar interesses conflitantes e até mesmo


contraditórios. Assim obteve máximo aproveitamento das polêmicas em torno de direitos
humanos ou comportamento sexual, por exemplo. Assim, soube ressignificar o atentado a
Bolsonaro. Da mesma forma soube se identificar como antiestabilishment, anticorrupção,
antissistema. Tendo 27 anos de improdutiva vida parlamentar, Bolsonaro ainda pôde se
apresentar como novidade, sobretudo porque, para seus eleitores, ele assim o parecia.
Pregador do armamentismo, da tortura e da intolerância, pôde se fazer ver como vítima desses
males15. Defensor da opressão aos costumes das minorias, alcançou a imagem de um oponente
da opressão das ideologias de gênero.
Em síntese, o bolsonarismo soube ocupar os espaços abertos pela rearticulação da ideologia
conservadora em 2013 e o movimento que passou a ser designado como onda conservadora.

4.1 Para além das contingências: o voto ideológico em 2018

Anteriormente, vimos com Bobbio e Singer como os conceitos de esquerda e direita possuem
potencial explicativo para a predição do voto e das preferências partidárias. As identificações
e predisposições ideológicas são racionais no sentido weberiano, de uma ação racionalmente
orientada para resultados. Os resultados esperados não são, contudo, racionalmente
estabelecidos em termos de uma racionalidade puramente abstrata. Com efeito, o conjunto de
valores, aspirações e experiências, os processos cognitivos e de integração social, bem como a
quantidade e a qualidade da informação disponíveis e realmente assimilada, conformam o
contexto biográfico em que indivíduos compreendem e elaboram seus propósitos. Na teoria de
Downs – e principalmente em seus diversos desenvolvimentos posteriores – a ideologia surge
como instrumento de otimização dos múltiplos recursos requeridos para a tomada de decisões
e consolidação de preferências. No Brasil contemporâneo, como bem demonstrado por Singer
(2018), esquerda, direita e centro formam a terminologia que melhor permite classificar as
preferências ideológicas e instrumentalizar a análise do papel da ideologia nos processos de
disputas hegemônicas.
Compreendendo a hegemonia nos termos gramscianos (GRAMSCI, 2011), temos
como processo central das disputas hegemônicas a direção intelectual e moral da sociedade, a
construção de uma vontade nacional coletiva. Na busca pela formação dessa vontade
nacional, classes, frações de classes ou, como preferimos por possuir maior amplitude

15 Segundo Lindoso (2020, p. 4), durante a ditadura: "A tortura, institucionalizada seguia um rito
protocolar, ordenado, sistemático, sujeita a uma cadeia de comando hierarquizado, autorizada pela cúpula do
regime". Importante registro diante das atuais tendências negacionistas verificadas neste trabalho.
94

analítica, grupos sociais distintos operam a construção de uma visão de mundo compartilhada
a partir da relação de forças com outros grupos sociais. Essa delimitação é fundamental para
se compreender que um grupo social particular não impõe – em condições de democracias
avançadas e institucionalmente complexas – seus valores e projetos de forma vertical e
unilateral. A construção de uma vontade nacional majoritária requer o diálogo permanente
entre diversos grupos sociais, a mediação entre seus valores e anseios, a ressignificação de
seus conteúdos. No caso brasileiro, tal aporte teórico nos auxilia no entendimento dos
processos de disputas hegemônicas que conduziram à ascensão do bolsonarismo e sua vitória
eleitoral em 2018.
Retomando a conceituação de Singer sobre a conformação partidária e ideológica da
Nova República (2018, p. 131-158), analisaremos o bolsonarismo sob a perspectiva da
polarização entre esquerda e direita, na qual o centro (por vocação e necessidade) oscila entre
a adesão a um ou outro campo, sempre tendo como norte sua dinâmica própria de reprodução
política, centrada nas relações clientelistas entre Estado, políticos e eleitorado.

4.1.1 2018: nova conformação da polarização esquerda-direita


Entre 1994 e 2014, a disputa política assumiu contornos claros de uma disputa entre esquerda
e direita, um campo sendo liderado pelo PT, o outro pelo PSDB. Singer (2002) conclui que
em 1989 e 1994, o eleitorado votou contra a esquerda. Nas seis eleições presidenciais do
período, foram esses dois partidos, PT e PSDB, os protagonistas das urnas. Na eleição de
2018, ainda mais claramente, houve nova confrontação entre esquerda e direita pela
preferência do eleitorado, desta vez, contudo, o protagonista da direita foi Bolsonaro,
carregando consigo o até então inexpressivo PSL. O partido, que elegera um único deputado
federal em 2014, conquistou 52 cadeiras na Câmara dos Deputados na eleição de 2018.
O processo de dispersão do eleitorado de direita – como vimos no capítulo anterior –
já se mostrara significativo em 2014. Flávia Babireski (2016) realizou um estudo sobre os
programas e ideias de pequenos partidos de direita na Legislatura 2015-2018. A autora
constata que há ampla variedade de posições entre esses partidos em temas referentes à
economia e aos serviços públicos e, no quesito segurança pública, destaca uma particularidade
do futuro partido de Bolsonaro: “A crítica mais forte aqui é a do Partido Social Liberal. O
PSL afirma que esse é o ponto mais fraco da administração pública, mas ultrapassa o
diagnóstico, isto é, não propõe uma direção para essa política pública” (BABIRESKI, 2016, p.
10). A conclusão mais interessante do artigo – ao menos no que nos interessa aqui discutir – é
de que esses pequenos partidos de direita possuem fraca unidade programática, se
95

assemelhando nesse caso à “versatilidade” dos partidos do centro. Essa versatilidade é um


elemento importante para entendermos como aquilo que a autora chama de nova direita
brasileira pôde lidar com a necessidade de articular campos políticos e ideológicos distintos
para vencer as eleições de 2018.
Contudo, cabe acrescentar que a diversidade de posições das agremiações políticas
dificulta a composição de um quadro nítido das siglas que compõem a nova direita. Outro
fator que se impõe é a baixa fidelidade e clareza programática dos próprios parlamentares.
Inclusive, apesar da identificação de uma postura mais contundente sobre a segurança pública
por parte do PSL, vale registrar que Bolsonaro se filiou ao partido apenas em 2018, para
concorrer à eleição presidencial, e é extremamente duvidoso que o programa partidário tenha
sido levado em conta na decisão.
Surge desse cenário uma dificuldade incontornável em definir os limites entre nova
direita e direita tradicional, como temos feito até então. Mesmo a distinção entre partidos
ascendentes de direita e partidos estabelecidos como o PSDB falha nesse intento. Como
situar, por exemplo, uma liderança como João Dória, eleito governador de SP pelo PSDB?
Dória conseguiu sua indicação para disputa eleitoral em 2016, quando foi eleito prefeito da
capital paulista, combatendo tradicionais lideranças do partido, como Alberto Goldman 16. Sua
ascensão sobre o PSDB demonstra que as novas práticas e valores da direita também se
enraizaram em partidos tradicionais do Brasil. Muito embora seja necessário fazer distinções.
Tem-se visto, na crise sanitária que acomete o Brasil, uma clara divergência entre as
atitudes de Bolsonaro e outras lideranças do novo populismo de direta. Exemplo claro disso é
o debate sobre a obrigatoriedade ou não da vacina contra a COVID19. Muito mais desinibido
das restrições recomendadas por seu cargo, Bolsonaro tem adotado um discurso dúbio e
oscilante, muitas vezes pondo em questão a vacinação ou “ideologizando” as vacinas
disponíveis. Já o governador de SP parece aderir mais convincentemente às responsabilidades
oriundas do cargo que ocupa. Essa mera distinção eventual serve a um propósito: demonstrar
como a base social e partidária atuam no constrangimento da ação dos políticos. Pelas
próprias características do bolsonarismo, seu chefe tende a manter o flerte constante com os
extremos da direita. Já no PSDB, os quadros eleitorais, por mais divergentes que sejam,
precisam manter aberto o diálogo com posições mais próximas ao centro. Buscaremos,
portanto, entender os contornos políticos da direita que venceu a eleição em 2018 pela
identificação de suas bases sociais e pelos conteúdos ideológicos mobilizados.

16 Ver a excelente reportagem da Piauí, A guerra do cashmere, de Julia Duailibi. disponível em:
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/guerra-do-cashmere/ .
96

Geraldo Alckmin, escalado pelo PSDB para concorrer à presidência em 2018, não
repetiu o desempenho anterior de seu partido, ficando em quarto lugar no 1º turno, com pouco
menos de 5% dos votos. Em 2010, o ex-governador de SP José Serra foi o candidato tucano,
obtendo no 1º turno 32% dos votos. Nessa eleição, a direita já demonstrava perceber que
necessitava incorporar novos aspectos a suas campanhas, se quisesse se opôr a um governo
que apresentava altos índices de aprovação. A iniciativa escolhida para mobilizar as camadas
mais conservadoras da sociedade, que poderiam se alinhar contra o PT, foi a promoção do
debate acerca do direito ao aborto. A campanha de Serra buscou vincular Dilma à defesa do
aborto, objetivando atingir sobretudo o eleitorado evangélico. Panfletos apócrifos foram
distribuídos em igrejas. Discursos se reproduziram pelo país, muitos deles pela voz de
pastores. Todos acusando Dilma de defender o aborto e ser contra a vida e a fé cristã. Embora
essa ofensiva moralista tenha causado dificuldades à campanha da candidata petista, não foi o
bastante para derrotar um governo que até então respondera bem aos desafios impostos pela
crise financeira mundial de 2008.
Na eleição de 2014, a campanha de Aécio Neves aumentou o tom dos ataques. Desta
feita, contudo, a corrupção petista foi o centro do discurso. A narrativa midiática falava no
maior escândalo de corrupção da história. Ironicamente, o próprio Aécio se envolveu em
escândalo relacionado à construção de um aeroporto com verbas públicas em terreno de um
parente. O mensalão tucano também ligava caciques do PSDB a esquemas de propina e
desvios de verbas públicas. Sentindo o clima favorável para ideias mais reacionárias, o
candidato Levy Fidélix (PRTB) chegou a declarar que a ditadura fizera bem ao Brasil.
Contudo, como vimos no capítulo 3, a realidade econômica do país se deteriorara. Contra
Dilma, o tomate virou símbolo de um suposto descontrole inflacionário. Os eventos de 2013,
embora atingissem todos os campos partidários, tiveram maior impacto sobre o governo
petista de Dilma. Aécio Neves obteve mais de 48% dos votos no 2º turno, perdendo uma
eleição que consideravam ganha.
Envolvido em novas denúncias de corrupção, já nas manifestações pelo impeachment
de Dilma em 2015 e 2016 o PSDB foi ofuscado por novas organizações que tinham fortes
bases nas redes sociais da internet. Associado ao subsequente governo de Temer, o PSDB
seguiu se desgastando, diante de resultados desastrosos na economia e de recorrentes
escândalos de corrupção. Pesquisa Datafolha de junho de 2017 apontava que 83% dos
entrevistados acreditavam que "Temer teve participação direta em esquemas de corrupção" 17.

17 Datafolha. Em: http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2017/06/1896234-para-83-temer-teve-


participacao-direta-em-esquemas-de-corrupcao.shtml.
97

Foi neste período que Bolsonaro começou a se firmar como alternativa viável à presidência,
crescendo progressivamente nas pesquisas de intenção de voto. Como observado na Tabela
4.1, entre julho de 2016 e abril de 2017, Bolsonaro salta do 4º lugar na preferência dos
eleitores para o 2º, superando Aécio Neves e Marina Silva.

O já referido estudo de Marina Lacerda merece aqui maior atenção, se quisermos


entender como Bolsonaro construiu a base eleitoral que lhe permitiu se apresentar como
principal alternativa antipetista ao Planalto. Analisando a taquigrafia dos discursos de
Bolsonaro entre 2000 e 2018, Lacerda (2019, p. 184) apresenta um gráfico que aponta para a
existência de dois polos temáticos nas intervenções do então deputado: no primeiro, há o
“predomínio do tema militar e das forças armadas nos pronunciamentos de Bolsonaro. Trata-
se de demandas corporativas da categoria: pensão para filhos e família, reforma da
previdência e reivindicação salarial – nesse caso também para policiais” ; o segundo polo é do
antipetismo, “críticas à corrupção petista e à tortura a que teria sido submetido o prefeito de
Santo André Celso Daniel, assassinado em 2002. Há ainda censuras à oposição petista à
redução da maioridade penal; aos direitos humanos que protegeriam ‘marginais’; e ao ‘kit
gay’” (2019, p. 185-186).
A autora repara no fato de a votação de Bolsonaro para a Câmara dos Deputados ter
crescido em 436% de 2010 para 2014, justamente o período correspondente ao primeiro
mandato de Dilma. Já antes de sua candidatura à presidência, a “aliança entre evangélicos,
98

católicos conservadores e profissionais da segurança vinha sendo costurada no Congresso – e


materializada na Câmara dos Deputados” (LACERDA, 2019, p. 192).

Desde então, são os seguintes eixos do discurso parlamentar: militarismo,


antipetismo/corrupção, rigor penal e “kit gay”. O diferencial de sua atuação
nesses anos é justamente a mobilização dos temas relacionados à moral
sexual, que não compunham seu repertório anteriormente. (LACERDA,
2019, p. 187)

O estudo de Lacerda nos dá bases mais sólidas para a hipótese de que a base social de
Bolsonaro teve sua primeira ampliação significativa a partir da adesão de setores evangélicos,
militaristas, antipetistas mais radicais e defensores da família patriarcal. Esse núcleo duro
garantiria visibilidade e apoiadores ativos a Bolsonaro, propiciando condições para a
expansão de sua base nesses segmentos e posterior aproximação com outros setores da
sociedade – essa expansão foi particularmente efetiva entre evangélicos, conforme visto nos
levantamentos compilados por Jairo Nicolau, que indicam que Bolsonaro chegou a obter 70%
dos votos do eleitorado evangélico no 2º turno.
Retomando a proposição de Singer de que a dicotomia esquerda-direita no Brasil teria
contornos particulares, cabendo destaque às concepções acerca do papel do Estado na
repressão e manutenção da ordem, encontramos uma possibilidade explicativa para o
fenômeno do deslocamento do eleitorado do PSDB para Bolsonaro. O PSDB escolhe como
seu representante em 2018 um político de linha mais moderada, Geraldo Alckmin. Tendo
larga experiência no executivo, Alckmin era facilmente identificado como “um político
tradicional”.
Moura e Coberllini, em seus grupos qualitativos cujos resultados constam de A eleição
disruptiva, verificaram que, entre os eleitores em 2018, havia um forte sentimento de
descrédito não apenas quanto às instituições como também em relação às lideranças políticas.
O quadro que transparece de suas entrevistas apresenta um eleitorado disposto a tolerar a
agressividade de Bolsonaro na esperança de promover “qualquer mudança que seja” (em
parte, outra parcela dos entrevistados via exatamente na agressividade a resposta a seus
apelos). O mesmo cenário demonstra que o tema da segurança pública era uma das
preocupações centrais dos eleitores em 2018. Bolsonaro desde muito que se apresentava como
defensor de medidas repressivas mais duras.
Segundo Singer, a “vitória de Fernando Henrique em 1994 subsumiu provisoriamente
o potencial populista da direita na medida em que ela se compôs com centro em uma aliança
com predomínio centrista” (SINGER, 2002, p. 165). O centro, dentro do arcabouço analítico
99

proposto por Singer, caracteriza-se essencialmente pela dependência clientelista dos recursos
estatais, via distribuição de cargos e verbas no orçamento. A radicalização ideológica não
compõe seu repertório. Bolsonaro não sofria esses constrangimentos, sua aproximação com o
chamado centrão se dá apenas num momento posterior de seu governo, quando busca
recompor suas bases parlamentares. E tal aproximação se dá em momento no qual o centro
adere progressivamente a valores mais conservadores, aproveitando os espólios da onda
conservadora.
A fragmentação partidária e o sistema de eleições em dois turnos no Brasil estimula a
polarização na preferência dos eleitores. Parcelas do eleitorado tendem a aderir a candidatos
com maiores chances de vitória. Em casos em que os riscos percebidos na vitória de um
determinado candidato superam o ganhos esperados pela eleição de seu candidato de
preferência, parte dos eleitores pode considerar que seja mais vantajoso aderir a um terceiro
candidato com maiores possibilidades de derrotar aquele no qual identifica uma ameaça a seus
interesses. Esses elementos, associados à proposição dos três partidos brasileiros de Singer,
levam-nos a crer que as disputas eleitorais em nível federal no Brasil até 2014 se
aproximaram do cenário de eleições bipartidárias, como a americana – sobretudo se
compreendermos o partido em termos gramscianos (GRAMSCI, 2007), não pela identificação
de legendas. Essa hipótese nos conduz a tentar interpretar as disputas pela liderança da direita
brasileira usando do repertório teórico de Anthony Downs. Em sua obra de 1957 – cuja crítica
remetemos a Singer (2002) e Figueiredo (2008) – faz uma observação que interessa aos
propósitos de nosso estudo.

Os novos partidos geralmente têm como propósito vencer eleições, mas são
frequentemente mais importantes como meios de influenciar as políticas de
partidos anteriormente existentes. Como velhos partidos são
ideologicamente imóveis, não conseguem se ajustar rapidamente a mudanças
na distribuição de eleitores, mas os novos partidos podem entrar onde quer
que seja mais vantajoso. (DOWNS, 2013, p. 161-162)

Parte importante da estratégia discursiva de Bolsonaro foi associar PT e PSDB, que


aparecem em seus discurso como representantes da mesma velha política. Para ilustrar esse
discurso, transcreveremos o minuto final da entrevista do então candidato ao Jornal Nacional,
em 28 de agosto de 2018. O texto foi extraído de Moura e Coberllini (2019, p. 65).

Nos últimos vinte anos, dois partidos mergulharam o Brasil na mais


profunda crise ética, moral e econômica. Vamos juntos mudar esse ciclo,
mas, para tanto, precisamos eleger um presidente da República honesto, que
tenha Deus no coração, patriota, que respeite a família, que trate com
consideração as crianças em sala de aula, que jogue pesado no tocante à
100

insegurança em nosso Brasil, una o nosso povo: brancos e negros;


nordestinos e sulistas; ricos e pobres; homens e mulheres, para buscarmos o
bem comum. Nós no Brasil temos tudo para sermos uma grande nação, só
falta essa união entre nós, e que o presidente indique seus ministros sem
indicação política.

Todos os pontos decisivos do discurso de Bolsonaro estão aí, e retomaremos à


transcrição novamente. Neste momento, o ponto a destacar são os “dois partidos [que]
mergulharam o Brasil na mais profunda crise ética, moral e econômica”, clara referência a PT
e PSDB. Em muitos momentos da campanha, apoiadores de Bolsonaro chegaram a chamar de
comunistas notórios quadro da direita brasileira e mundial. Embora nos pareça caricato, esse
gesto faz sentido no contexto das disputadas pela liderança da direita brasileira. Trata-se de
uma disputa naquilo que Downs chamou de competição espacial, absorvendo a teoria
econômica correlata de competição no mercado. Ainda nos apoiando em Downs, o autor diz
que

[…] em sistemas bipartidários há uma área maior de políticas que se


sobrepõem perto do meio da escala 18, de modo que os partidos se parecem
muito entre si.

Essa tendência à semelhança é reforçada por ambiguidade deliberada


em relação a cada questão específica. As políticas partidárias podem se
tornar tão vagas, e os partidos tão parecidos, que os eleitores acham difícil
tomar decisões racionais. Contudo, fomentar a ambiguidade é o caminho
racional para cada partido num sistema bipartidário. (DOWNS, 2013, p. 162)

Autores como Fábio Santos (2018) e Valerio Arcary (2016) concordariam que o
arranjo das disputas hegemônicas entre PT e PSDB se dera entre partidos tão parecidos, que
os eleitores acham difícil tomar decisões racionais. Amparados em autores como Marcio
Pochmann, Laura Carvalho e André Singer, argumentamos que houve diferenças essenciais,
ao menos ao longo dos primeiros dez anos da experiência lulista, entre esta e os governos de
FHC. Contudo, não surpreende que para parcelas extensas do eleitorado, em 2018, não tenha
parecido assim. A racionalidade na decisão do voto é sempre a racionalidade de um indivíduo
dado, portador de uma história particular, orientado por determinados valores. O
envolvimento do PT com seguidos escândalos de corrupção, a prisão de muitos de seus
dirigentes, inclusive a de sua maior liderança, Lula, contribuíram para aproximar a imagem
dos dois partidos na mente do eleitorado. Também os resultados da crise econômica de 2008 e
2011, bem como os equívocos da política econômica de Dilma, sobretudo em seu segundo

18 Downs se refere à escala esquerda-direita.


101

mandato, criaram uma sensação generalizada de depreciação das condições de vida e declínio
econômico. O discurso bolsonarista soube explorar essa oportunidade ao denunciar a ambos
como mais do mesmo.
Ao empurrar o PSDB para o campo cognitivo da esquerda, o bolsonarismo pôde atrair
os estratos mais próximos ao extremo no contínuo ideológico esquerda-direita. Essa adesão
foi decisiva para que Bolsonaro pudesse se apresentar como principal liderança da direita nas
eleições e candidato com maior possibilidade de derrotar o petismo. Nunca é demais
relembrar o que diz Appadurai: na ausência de desejo ou possibilidade de intervir nas bases
econômicas que fundam o quadro social que corresponde ao enfraquecimento das instituições
democráticas, resta ao populismo reacionário o ataque conservador no plano dos costumes e
valores da sociedade.
O segmento evangélico e dos católicos conservadores, como visto, foi um primeiros
alvos da ação bolsonarista. Contribuíram nessa aproximação sua ênfase constante na fé cristã,
no lema Brasil acima de tudo, Deus acima de todos, o discurso preconceituoso diante de
comportamentos sexuais desviantes dos valores da família patriarcal e outras tantas pautas
que soube explorar com eficiência. Vemos todos esses elementos na transcrição do trecho
final de sua entrevista ao Jornal Nacional. A pesquisa de Marina Lacerda constatou esse
movimento, situando a adesão de Bolsonaro às questões referentes aos direitos reprodutivos
no primeiro governo de Dilma, quando ele alcança maior notoriedade nacional e vê crescer
sua base eleitoral no RJ.
Mounk (2019) aponta, através de pesquisas em países da Europa, nos EUA e no
Canadá, que a xenofobia é maior entre populações onde há baixas taxas de imigração, como
em certas regiões interioranas, e menor nos grandes centros urbanos onde a imigração é mais
presente. Isso poderia ser explicado por dois fatores. Um, as populações das regiões
periféricas costumam se ocupar em atividades de menor especialização, mais sujeitas à
concorrência por trabalhadores emigrantes de regiões em guerra civil ou profunda crise
econômica. Já nos grandes centros urbanos é onde residem majoritariamente os profissionais
com nível superior e alta especialização, que estão mais habilitados a sobreviver à
concorrência num mercado de trabalho globalizado. Outra possibilidade decorrente,
demonstrada pela série de dados estatísticos que o autor levanta, é a de que a tolerância com
imigrantes é maior onde a imigração se estabeleceu há pelo menos duas gerações, o que
geraria uma menor estereotipificação e menos temor por conviver com culturas diferentes.
Essa segunda possibilidade seria um sinal promissor para gerações futuras, afinal, já que
102

aprenderiam a convivência com a diferença. No caso dos nossos imigrantes, os imigrantes da


cidadania, talvez não nos restem tais esperanças.
As inclusão no consumo das camadas populares – que por curto período de tempo
puderam usufruir de bens e serviços anteriormente exclusivos das camadas mais abastadas –
gerou um dos fenômenos mais vergonhosos da história recente de nosso país. Afloraram ao
longo das duas primeiras décadas do século, nas redes sociais e em outros espaços públicos,
antigas queixas sobre a presença de pobres e negros ambientes que nossa classe média
considerava, e por certo ainda considera, exclusivos. Marilena Chauí (2013) faz um relato
contundente desse fenômeno em seu artigo sobre a ideologia da classe média brasileira.
Longe de buscar solucionar o problema da segurança pública, de forma a integrar com maior
efetividade o conjunto da população brasileira à cidadania plena, o projeto de nossas elites
parece ser a intensificação do massacre que vitima sobretudo jovens negros no Brasil.
Enquanto a violência policial se intensifica, o discurso de Bolsonaro vai no sentido de criar
proteção legal a agentes do Estado que matem em serviço. Enquanto a população de grande
parte do país segue abandonada pelo Estado, o bolsonarismo flerta com milícias e se alimenta
de seus impulsos expansionistas; e as classes abastadas se cercam de muros altos, segurança
privada e sistemas de vigilância em seus condomínios de luxo.
Livro recentemente lançado por Bruno Paes Manso (2020) expõe as ligações e a
identificação entre o bolsonarismo e seu clã líder, a família presidencial, e os grupos
paramilitares que paulatinamente vão ocupando os vazios deixados pelo Estado. Vivemos em
tempos em que é natural o governador do RJ dar pulinhos em celebração à morte de um
criminoso, ainda que a ação policial, nesse caso, ao que nos parece fosse justificada; onde o
séquito presidencial comemora nas redes sociais o assassinato da liderança de esquerda
Marielle Franco. Poderíamos incorrer aqui numa longa digressão, registrando os eventos e
símbolos da barbárie civilizacional que nos acomete. Avancemos, contudo, ao nosso ponto.
A ideologia meritocrática de nossa classe média tem peculiaridades que a tornam
ainda mais nociva aos esforços de promoção da igualdade – e esperamos ter argumentado
devidamente sobre ser a desigualdade social um dos grandes empecilhos não apenas para o
desenvolvimento econômico do país, como também para a estabilidade democrática. Trata-se
em nosso caso de uma meritocracia que não admite concorrência, uma meritocracia baseada
na convicção de portarem, nossos cidadãos de bem, qualidades inatas que os tornam
merecedores não apenas dos privilégios que usufruem, como dos ainda maiores com que
anseiam. Essa concepção genuinamente nossa, embora provavelmente não exclusiva, da
meritocracia está na raiz dos ressentimentos sociais nutridos por nossa classe média, como
103

lemos no ensaio de Maria Rita Kehl (2018), O bovarismo brasileiro. O ressentimento de


nossas camadas médias se direciona, ao longo deste começo de século, à incipiente ascensão
social das camadas populares. É contra as cotas em universidades e concursos públicos; é
contra os que recebem Bolsa Família mas compram um celular novo; é contra pobres
aumentando as filas nos aeroportos; enfim, é contra a ascensão daqueles que, por seus méritos
legítimos, oportunizaram-se de políticas públicas inclusivas para ascender socialmente ou
mesmo contra aqueles, provável maioria, que ascenderam apesar da ausência de tais políticas.
À violência física que ceifa vidas, soma-se a violência social da exclusão e da falta de
reconhecimento. Tamanha violência não é de espantar que gere mais violência. E a resposta
do bolsonarismo a isso, como já vimos, é reforçar o papel repressivo do Estado, armar o
cidadão de bem e intensificar a segregação nacional. Como diz o adágio: pouca farinha, meu
pirão primeiro. A resposta à apatia econômica de um país cujas elites o encaram como um
terreno conquistado a ser saqueado, só pode ser o aumento das desigualdades e da repressão.
Eis o cenário fértil em o militarismo, o preconceito e a violência escancarada podem se tornar
um discurso atrativo para parcela numerosa da classe média e das elites.
Toda uma subcultura militar se desenvolve no Brasil, sob os auspícios do poder do
Estado. Em dossiê da revista Le Monde Diplomatique Brasil, dedicado a um esforço por
compreender “o que pensam os militares”, ao analisar o sistema educacional nas Forças
Armadas, Ana Penido registra que para além dos conteúdos formais

[…] também existe um componente informal, mas igualmente efetivo,


caracterizado, entre outras coisas, pela exposição permanente a situações
com forte carga simbólica, da relação com colegas da mesma patente,
submissão às ordens de superiores, entre outros. A aprendizagem do “ser
militar” é concomitante à diferenciação e separação do mundo civil. Nesse
processo, o cadete adquire ferramentas técnicas para a administração da
violência e os valores para viver toda uma vida militar. (PENIDO, 2019, p.
8)

No mesmo dossiê da Le Monde, Alexandre Fuccille escreve sobre a relação entre


Bolsonaro e os militares:

Nessa complexa equação e simbiótica relação, na qual Bolsonaro usou o


Exército e tem sido usado por ele, os militares estão de volta, agora pela
força do voto. A possibilidade de reescrever a história – em que se veem
maculados pelo que chamam de “revanchismo”, que insistiria que houve
golpe, ditadura, tortura e desaparecidos políticos, em vez de lhes
agradecerem por ter impedido o Brasil de transformar-se numa “grande
Cuba” –, garantir vultuosos recursos aos programas estratégicos das Forças e
preservar seus privilégios (como prerrogativas não condizentes com uma
democracia madura – por exemplo, grande autonomia na atuação de seus
104

serviços de inteligência –, além de suas precoces e generosas pensões) anima


esses atores e está no centro dessa decisão de participar de um governo de
extrema direita militarizado, num fenômeno que lembra, mas é distinto do
que foi a tutela militar vivida no governo José Sarney (o primeiro civil após
21 anos de ditadura militar). (FUCCILLE, 2019, p 5)

Em academias militares, mesmo sob os governos petistas, há programas que ensinam


que em 1964 o Brasil viveu uma revolução democrática, em resistência à ameaça comunista.
Frequentemente vêm a tona denúncias sobre costumes e rituais de iniciação violentos que têm
vez nos ambientes de treinamento militar. Toda uma instituição do Estado se dedica a
promover uma cultura de violência e subordinação. Das casernas surgiram parcelas
importantes do bolsonarismo, membros dentre os mais ativos de seus apoiadores.
Registrem-se ainda os esforços de Bolsonaro em acenar para grileiros, desmatadores e
exploradores de trabalho em condições de escravidão. Temos nesse quadro todo um complexo
plantel de atores sociais desejosos de romper com os limites impostos pela expansão da
cidadania.
O conjunto de temas e segmentos sociais explorados nesta seção constituem a base
sobre a qual se ergueu o edifício bolsonarista. Mas, sozinhos, não seriam capazes de levar
esse novo polo político à vitória em 2018. Outro fator essencial para a confirmação de
Bolsonaro à frente do eleitorado de direita foi sua aproximação do ideário econômico
ultraliberal, via cooptação de Paulo Guedes, alçado ao papel de guru econômico do
bolsonarismo. Discutiremos as implicações desse movimento numa seção posterior. Agora,
enfim, trataremos de outro fator que foi decisivo na eleição de 2018, a ação nas redes sociais
da internet.

4.2 Nem só de robôs se faz uma rede social

A enorme importância das redes sociais nas disputas eleitorais por todo o mundo é um fato
inconteste e consensual na literatura política contemporânea. Uma rápida pesquisa em
repositórios acadêmicos basta para constatar a afluência que o tema tem demonstrado. Nos
debates políticos que têm vez no meio acadêmico e nas próprias redes sociais, vê-se uma
crescente preocupação com a força da manipulação política desses meios. Muitos dos que
discordam de que a a facada elegeu Bolsonaro, contrapõem a isso a tese de que o WhatsApp
elegeu Bolsonaro. Militantes de esquerda atribuem a uma suposta baixa inserção de seu
campo nessas redes a escalada da direita conservadora.
105

Manuel Castells foi um dos pioneiros no debate sobre o papel das redes na internet na
sociedade contemporânea. Sua visão acerca dos impactos da tecnologia é mais otimista que o
sentimento de fracasso e a revolta contra a manipulação que sucederam as vitórias eleitorais
da extrema-direita no mundo, cujas campanhas fizeram amplo recurso a essas redes. Embora
não pretendamos avançar na discussão de maior fôlego sobre as implicações das novas
tecnologias na sociabilidade, cabe registrar algumas ideias do autor sobre o tema, sobretudo
no que relaciona o papel das redes aos movimentos sociais mais amplos.

No plano individual, os movimentos sociais são emocionais. A insurgência


não começa com um programa ou uma estratégia política. Isso pode vir
depois, quando surge a liderança, de dentro ou de fora do movimento, para
fomentar agendas políticas, ideológicas e pessoais que podem ou não
relacionar-se às origens e motivações dos participantes do movimento.
(CASTELLS, 2013, p. 18)

Esse trecho de Castells é importante para a compreensão da relação entre o


bolsonarismo e as redes sociais pois, compreendendo que o bolsonarismo é também um
fenômeno de massa, situa as origens de amplos movimentos de insurgência num momento
anterior ao estabelecimento de programas ou lideranças. As redes de ódio na internet
precedem Bolsonaro. Desde os tempos do Orkut, proliferam na internet subculturas
portadoras de valores intolerantes, defensoras do punitivismo e da violência. Bolsonaro não
importou para o Brasil os incels, os terraplanistas nem toda a horda de ressentidos e enjeitados
que povoou o submundo da internet. Ele, contudo, teve importante papel ao conferir a essas
subculturas uma identidade personalizada, reforçada pela autoestima crescente desses
segmentos na ascensão da onda conservadora. Dizia Castells: “a tecnologia não determina os
movimentos sociais [...] Porém, as redes da internet e de telefonia celular não são apenas
ferramentas, mas formas organizacionais, expressões culturais e plataformas específicas para
a autonomia política” (CASTELLS, 2013, p. 82). A autonomia que esses ambientes conferem
aos movimentos de contestação progressistas também se estende aos revoltosos do populismo
reacionário.
Yascha Mounk assim define a situação:

O que muitos observadores tomaram por um paradoxo – que as mídias


sociais pudessem ter efeitos tão positivos em alguns contextos e efeitos tão
negativos em outros – é resultado da mesma dinâmica subjacente: ao
empoderar os outsiders, a tecnologia digital desestabiliza as elites
governantes no mundo inteiro e acelera o ritmo da mudança. (2019, p. 182)
106

A constatação de Mounk reforça o que pretendemos dizer, pois, para nós, o


bolsonarismo se desenvolveu ao longo da campanha visando às eleições de 2018 como um
movimento antiestabilishment. Nessas eleições, foi o bolsonarismo quem melhor se
oportunizou do sentimento contra tudo o que está aí legado de 2013. Ao mesmo tempo em
que foi atraindo tal sentimento, seus discursos aproximaram a legião de grupos homofóbicos,
racistas, negacionista de tudo quanto é fato histórico, sem esquecer dos numerosos olavistas –
grupos se sentiam marginalizados e oprimidos, cerceados do direito à livre expressão de suas
ideias. Grupos que encontraram na internet um refúgio seguro, como diria Castells.
Sérgio Amadeu da Silveira destaca o papel dispersor da internet.

Sem dúvida, a internet inverteu o sistema comunicacional. Caíram as


barreiras e os custos para se tornar um falante, um comunicador. Ao mesmo
tempo, aumentaram as dificuldades para ser ouvido, lido ou visto. Assim, as
redes passaram a ser ocupadas gradativamente por grupos culturais,
religiosos e políticos de diversas matrizes, tamanhos e estilos. A rede
beneficiou em um primeiro momento a diversidade de perspectivas,
inclusive aquelas contrárias à democracia e à liberdade. A ambivalência é
uma característica da maioria das tecnologias e pode ser facilmente
verificada na internet. (SILVEIRA, 2016, p. 215)

Adiante, Silveira aponta fatores que teriam revertido o papel dispersor das redes na
internet.

O grande poder horizontal da internet e das tecnologias P2P (peer-to-peer)


foi alterado pelo peso de plataformas que controlam a visualização das
publicações e que cobram para que as pessoas possam ser atingidas pelas
mensagens nas redes sociais. O Facebook restabeleceu a comunicação
broadcating no interior das redes distribuídas, ou melhor, retomou as formas
de controle vertical baseadas no dinheiro. (SILVEIRA, 2016, p. 226)

Embora relevante o registro dessas transformações, é duvidoso que elas tenham sido
decisivas nos processos eleitorais em que a internet foi protagonista. Comparados aos custos
publicitários e aos milionários orçamentos de campanha característicos das eleições
contemporâneas, o custo da promoção de conteúdos na internet é ínfimo – mesmo se
considerarmos a contratação de serviços legalmente questionáveis como o uso de robôs para
impulsionar conteúdos. Ainda assim, Em 2020 o Facebook decidiu proibir a promoção paga
de conteúdos eleitorais durante a eleição presidencial americana, sinal de que as críticas
expostas por Silveira tiveram consequência. Ainda, várias iniciativas têm sido levadas a cabo
no sentido de identificar e banir perfis falsos e de que propaguem conteúdos ofensivos ou
simplesmente fraudulentos.
107

Mais decisivo que o papel do dinheiro na promoção de conteúdos online, é o


fenômeno que Giuliano Da Empoli descreve em seu Os engenheiros do caos. As estratégias
de aumento do engajamento do público nas redes social incluem algorítimos que aumentam as
possibilidades de cada usuário visualizar com maior frequência conteúdos com os quais
concordem. Essas políticas têm demonstrado um importante papel na segmentação e
isolamentos de grupos na internet, o que reforça posições extremas e a interdição do diálogo.
Após relatar que a população de a população de gatos pretos na Inglaterra tem sido
reduzida drasticamente porque os animais dessa tonalidade não “saem bem nas selfies”,
Empoli traça um paralelo entre a tragédia que vitima os felinos e a situação da democracia
diante da onipresença das mídias sociais.

Na era do narcisismo em massa, a democracia representativa está em risco


de se ver mais ou menos na mesma situação que os gatos pretos. De fato, seu
princípio fundamental, a intermediação, contrasta de modo radical com o
espírito do tempo e com as novas tecnologias que tornam possível a
desintermediação em todos os domínios. (EMPOLI, 2020, p. 167).

Empoli reconhece que as “ações dos engenheiros do caos não explicam tudo, longe
disso” (2020, p 25), afinal, como vimos, a internet é ambivalente. O fato fundamental que se
evidencia em sua obra é como as redes se tornaram ambiente propício à emergência de
posicionamentos extremos, amplificando-os, e o papel que elas assumem na interdição do
diálogo com o contraditório. Esse é um fenômeno de origens mais primitivas do que muitas
vezes se supõe.
A neurociência tem oferecido importantes contribuições para se compreender melhor
como esses processos se reproduzem. Quando falamos em filtros, em “bolhas” sociais,
estamos falando de fenômenos sociais que muitas vezes têm origens na forma como nosso
cérebro se adaptou à evolução da vida em sociedade. E, embora a neurociência cada vez mais
afirme a plasticidade de nossa mente, quando falamos na evolução do cérebro estamos
falando sobretudo no milhão de anos que transcorreram desde que nossos ancestrais remotos
passaram a andar sobre duas pernas em remotas savanas africanas. Da Revolução Francesa
pra cá, evolutivamente não se passou um átimo.
Em seu Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas, Leonard Mlidinow
expõe um perfil de nossa mente que faz repensar muitas certezas que alimentamos. Num
trecho encantadoramente tentador de se citar, o autor nos diz:

As pessoas encontram razões para continuar apoiando os candidatos


políticos de sua preferência mesmo quando eles são acusados de graves e
108

comprovados deslizes; mas acreditam em comentários de terceira mão sobre


qualquer ilegalidade como prova de que o candidato do outro partido deveria
ser banido da política de uma vez para sempre. (MLODINOW, 2013, p. 246)

Mas como isso ocorre? A neurociência, conforme nos ensina Mlodinow, pode explicar
em grande parte esse comportamento. Através de estudos de mapeamento do cérebro,
cientistas descobriram que “ao acessar dados emocionalmente relevantes, nosso cérebro, de
modo automático, inclui nossos desejos, sonhos e vontades” (MLODINOW, 2013, p. 243).
Quando temos interesses emocionais em algum tema, nosso cérebro analisa os dados
relevantes e constrói suas conclusões por “um processo físico diferente”. É o que se chama
raciocínio motivado.

[…] o raciocínio motivado envolve uma rede de regiões do cérebro que não
está associada ao raciocínio “frio”, que inclui córtex orbitofrontal e córtex
cingulado anterior – partes do sistema límbico –, e córtex cingulado
posterior e pré-cúneo, partes ativadas quando fazemos julgamentos morais
carregados de emoção. (MLODINOW, 2013, p. 244)

Esses processos geram filtros que dificultam a assimilação de informações contrárias a


nossos valores expectativas e intensificam a atenção e o valor dados ao que confirma nossas
convicções. É também a base da explicação do viés de confirmação e do que os psicólogos
chamam de ilusão de objetividade. “Como o raciocínio motivado é inconsciente, as pessoas
podem ser sinceras ao afirmar que não são afetadas por vieses ou interesses próprios, mesmo
quando tomam decisões que na verdade atendem a seus próprios interesses” (MLODINOW,
2013, p. 243).
Por que nos desse prazer, não reproduziremos o conjunto do livro de Mlodinow.
Interessa-nos aqui registrar que as tendências que as redes sociais exacerbam não são
artificialmente produzidas por elas, mas que constituem elementos básicos da forma como
todos nós analisamos e interpretamos nossa realidade, sobretudo a social, como destaque
Mlodinow. Anil Seth, também neurocientista, afirma que nas “sociedades divididas em que
vivemos, o que é real – e o que não é – parece ser cada vez mais motivo de disputa. Os lados
em confronto podem experienciar e acreditar em realidades diferentes” (SETH, 2019, p. 27).
A construção de preferências e os mecanismos mentais que buscam confirmar nossa
compreensão de mundo se desenvolver no cérebro humano em situações de complexidade
social incrivelmente menor. O processo de aceleração do tempo social e a reflexividade como
padrão do ser social, característicos da modernidade conforme vemos em Giddens (1991), têm
dramáticos resultados sobre a forma como nos compreendemos no mundo. Michael Hogg,
psicólogo social, nota que as “pessoas precisam possuir um senso firme de sua identidade e de
109

seu lugar no mundo, e para muitos o ritmo e magnitude das mudanças podem ser alienantes”
(HOGG, 2019, p. 43). Essa crise da própria identidade e localização no mundo é perceptível
nos fenômenos analisados no capítulo 1 e também facilmente identificáveis no bolsonarismo.
Em parte, ela nos ajuda a compreender a ferocidade com que as diferenças e o contraditório se
explicitam nos conflitos sociais, políticos e culturais em curso no Brasil. Como acrescenta
Hogg, há pessoas que lidam bem com um cenário social em constante mudança, que possuem
os meios materiais e culturais para navegar as mudanças, sem o risco; contudo, há uma grande
maioria que – para ficarmos nos termos sociológicos – estão à margem do processo de
globalização, alheias a seus significados e benefícios, embora sofram no seu cotidiano as
implicações dessas transformações.

Em geral, as pessoas buscam reduzir a sensação de autoincerteza. Se elas se


tornam cada vez mais inseguras sobre quem são e como se encaixam neste
mundo em mutação, isso pode se tornar – e de fato já se tornou – um
problema real para a sociedade. Em geral, as pessoas estão apoiando líderes
autoritários, em busca de ideologias e visões de mundo que celebrem o mito
de um passado glorioso. Com medo de outras pessoas que têm características
diferentes, elas buscam por homogeneidade e se animam com a liberdade de
acessar informações que confirmam quem são, ou quem gostariam de ser. O
resultado é a ascensão global do populismo. (HOGG, 2019, p. 44)

Já vimos que na ascensão global do populismo há outros elementos-chave que


reforçam sua tendência. Dito isso, a análise de Hogg traz elementos universais para a
compreensão dos fenômenos estudados. Através dela, podemos melhor compreender a força
atrativa que o discurso bolsonarista exerce sobre vastos contingentes de nossa população, não
apenas das camadas médias, apesar de seu conteúdo neoliberal. A defesa da tradicional
família patriarcal, dos costumes e da moral cristãos, surgem nesse contexto como signos de
unidade para pessoas segregadas socialmente, na modernização sem o moderno do Brasil,
como dizia Werneck Vianna.
A rejeição aos que estão fora do grupo, a autoidentificação pela negação do outro, a
hierarquização e homogeneidade dos grupos que se formar nos polos extremos –
características dos mecanismo de redução da autoincerteza, segundo Hogg – vão nos dando os
contornos mais subjetivos dos elos entre os diversos grupos sociais que identificamos nas
bases do bolsonarismo. O antipetismo, o anti-gay, o anti-direitos-humanos, esses e outros
sentimentos vão conformando em torno do bolsonarismo o sentimento do nós.
Desta forma é que compreendemos que o recursos a fakenews vai além da simples
manipulação emocional da população, no sentido de delimitar que tal manipulação ocorre
com base em realidade prévia à ação política; esta se oportuniza das emoções já latentes na
110

sociedade para direcioná-las no sentido do projeto político bolsonarista. fakenews como a do


kit gay serviram como tradução de determinado conteúdo ideológico, capazes de mobilizar
parcelas mais amplas do eleitorado, e também serviram como forma de realizar o debate
conservador de costumes à margem das sanções sociais impostas contra o discurso
homofóbico e preconceituoso, sanções que partem não apenas da esquerda mas também de
setores progressistas, do ponto de vista dos costumes, da elite e dos meios de comunicação e
dos formadores de opinião. Mesmo quanto aos maus modos de Bolsonaro e sua agressividade
verbal, podemos supor, como o fizeram Moura e Corbellini (2019), que parte do eleitorado
nacional nutre os mesmo valores.
Nossa tese é exemplarmente explicita por Claire Wardle quando afirma que “os
criadores das redes sociais acreditaram fervorosamente que a conexão impulsionaria a
tolerância e neutralizaria o ódio. Falharam em entender que a tecnologia não muda quem
somos no fundo – ela só podia conectar as características que já temos” (WARDLE, 2019, p.
46). Seu diagnóstico avança para afirmar que:

Nos últimos três anos, a discussão sobre a poluição de nosso ecossistema


informacional tem se concentrado quase inteiramente em medidas tomadas
(ou não) pelas empresas de tecnologia. Mas essa fixação é simplista. Uma
teia complexa de mudanças sociais está tornando as pessoas mais suscetíveis
a informações erradas e conspirações. A confiança nas instituições está
diminuindo devido a agitações políticas e econômicas, e mais notavelmente
através da crescente desigualdade de renda. (WARDLE, 2019, p. 48)

A breve revisão desses estudos aponta para um cenário muito mais complexo que o da
manipulação eleitoral que chegou a ser proposto por ocasião da eleição de 2018. No Brasil, a
presença da internet é significativa, como depreende-se dos dados levantados por Nicolau, de
pesquisa de 2017 do IBGE, que compõe o seguinte quadro:

a internet era utilizada em 75% dos domicílios brasileiros, na área urbana


chegando a 80% das casas e na área rural, a 41%; o percentual de pessoas
com mais de dez anos que usavam a internet (em casa ou em outros locais)
era de 70% (75% em área urbana e 39% em área rural); não há grande
diferença de uso quando comparamos homens e mulheres, mas a idade e a
escolaridade eram fatores importantes; entre os jovens de vinte a 24 anos,
88% acessavam a internet, enquanto no segmento de mais de sessenta anos
apenas 3% o faziam; entre as pessoas com ensino fundamental, 50%
acessavam a internet, já na faixa com ensino superior o percentual chegava a
98%. (NICOLAU, 2020, p. 88-89)

Esses são números expressivos, que indicam a disseminação do uso da internet e


permitem reforçar nossa hipótese, e outros autores que vimos debatendo, de que as redes
sociais na internet foram um ambiente propício para a aproximação, organização e
111

mobilização de um complexo corpo de grupos sociais portadores de valores conservadores,


que se constituíram na base social elementar do bolsonarismo no seu hábil processo de
formação de uma coalizão com condições de vencer as eleições, cooptando – ou sendo
cooptado – por setores do mercado financeiro internacional que exercem no país decisivo
poder de veto. A essa aliança que se sagrou vitoriosa em 2018 se dedica a última seção deste
capítulo.

4.3 Frente ampla conservadora

O que argumentamos, e que nos parece demonstrado pela discussão precedente, é que a base
conservadora do bolsonarismo lhe permitiu estar em condições de se constituir num polo
aglutinador do antipetismo. Vimos como essa base se consolida a partir de 2013. Vimos sua
composição heterogênea. A agenda de costumes foi central, sim, sobretudo por ter mobilizado
em torno de um candidato “outsider” uma parcela do eleitorado grande o bastante para situá-
lo como alternativa viável aos olhos do público. Para isso, contribuiu a agenda ideológica da
direita tradicional brasileira que, aproximando-se do que Fraser chama de neoliberalismo
progressista, convergia, ao menos parcialmente, com as políticas de reconhecimento dos
governos petistas. Essa convergência se dava nos mesmos termos que Fraser delimitou, de um
reconhecimento baseado na meritocracia mais que no combate às desigualdades. Contudo, foi
explorada pela retórica bolsonarista, que trabalhou no sentido de realocar a imagem do PSDB,
vinculando-o ao PT no imaginário de seus eleitores.
A adesão das esquerdas ao acirramento da pauta de costumes – que tanto demonstra
uma honesta intenção em avançar na garantia dos direitos de minorias oprimidas e na
concessão de um merecido maior espaço no debate público – pode ter evidenciado certa
ingenuidade política. Não obstante todos os avanços conquistados pela sociedade brasileira
nessas questões, como vimos sua implementação não se deu por meio ampla mobilização ou
adesão popular, antes por meio de medidas institucionais de uma elite política aparentemente
mais liberal quanto aos costumes que o conjunto da população a que se propõe representar.
Podemos ilustrar as suposições levantadas através de alguns exemplos recentes. Em
2005, realizou-se um referendo sobre a proposta contida no Estatuto do Desarmamento de
proibir o comércio de armas e munições no Brasil, contida em seu artigo 35. O Estatuto fora
aprovado e sancionado em 2003. O Estatuto havia sido aprovado com facilidade no
Congresso, contando com o apoio das principais legendas governistas e da oposição. No
referendo, a Rede Globo se posicionou-se oficialmente pelo Sim, ou seja, pela manutenção do
112

dispositivo que proibia a comercialização de armas de fogo e munições no Brasil. Jornalistas,


artistas e intelectuais em peso aderiram à campanha pelo Sim.
A campanha pelo Não, coordenada pela Frente Parlamentar Pelo Direito da Legítima
Defesa, foi presidida deputado Alberto Fraga (PFL-DF) e contou, de forma geral, com uma
pequena parcela de deputados federais pouco expressivos, como o então deputado pelo extinto
PP, Jair Bolsonaro. Conforme consta do registro de contas da campanha, seus maiores
patrocinadores foram fabricantes de armas, a exemplo da Taurus e da Companhia Brasileira
de Cartuchos, que juntas desembolsaram 5 milhões de reais.
Se a aprovação do Estatuto fora fácil no Congresso, os resultados do Referendo
mostraram que na sociedade o quadro era bem diversos. O Não obteve 63% dos votos em 23
de outubro de 200519.
O quadro que surge do Referendo, contudo, não é unívoco. Sobre diversos outros
temas que estiveram em evidência em 2018 o discurso bolsonarista não era majoritário da
sociedade. Sondagem do Ibope em 2013 constatou que a maioria dos brasileiros era favorável
às políticas de cotas em universidades públicas. Segundo o Ibope

O grupo de maior renda também demonstra ter mais resistência às cotas em


função da raça do estudante. Na média geral, as cotas raciais recebem a
aprovação de 64% dos brasileiros, mas nesse grupo a favorabilidade é de
56%. A diferença dos que são contra é ainda mais expressiva, na média
geral, 32% e entre o grupo, 42%.

A resistência às cotas raciais também é maior que a média geral entre as


pessoas com curso superior (49%) e entre os moradores da região Norte e
Centro-Oeste (41%).20

Vemos que, embora aprovado pela maioria da população, em diferentes estratos


sociais a política de cotas é mais fortemente questionada. Esse cenário se presta a ilustrar o
que pretendemos dizer quando afirmamos que o bolsonarismo soube aproximar e envolver
sob um mesmo discurso setores e opiniões muitas vezes divergentes. Se para a maioria as
cotas eram positivas, para as parcelas contrárias elas eram nocivas, vistas como obstáculos a
seus interesses. É razoável supor que os sentimentos fossem mais fortes dentre aqueles que se
julgavam prejudicados pelas cotas que pela maioria que as aprovava mas que não haviam sido
diretamente favorecidas por elas. Há um outro caso ilustrativo desse mecanismo.

19 Fonte dos dados: TSE.


20 Ibope, 2013. 62% dos brasileiros são favoráveis às cotas em universidades públicas. Em:
https://www.ibopeinteligencia.com/noticias-e-pesquisas/62-dos-brasileiros-sao-favoraveis-as-cotas-em-
universidades-publicas/.
113

Novamente o Ibope realizou sondagem em 2013 sobre o apoio à “PEC das


domésticas”. O instituto aferiu um total de 91% de respostas positivas. Dentre os
entrevistados, reveladoramente, 8% declaram possuir empregados domésticos21.
Os temas que compõem a pauta bolsonarista não são plebiscitários, na lógica interna
de suas bases sociais. Distintos descontentamentos vão se somando meio que
improvisadamente, sob um sentimento difuso de contra tudo o que está aí, ou contra o PT. O
mesmo ocorre com o conteúdo econômico do bolsonarismo que, embora não tenha adesão
majoritária na sociedade a vários de seus aspectos, cumpriu o papel de atrair importantes
setores para sua frente ampla conservadora.

4.3.1 O pacto liberal conservador


Diferente de Moura e Corbellini, defendemos que a questão econômica mais um vez foi
central no desfecho das eleições, contudo, a grande relevância do tema se mostrou decisiva
em arenas políticas distintas daquela que era o alvo prioritário da campanhas de massas de
Bolsonaro e de sua atuação nas redes sociais; o projeto de nação estava implícito e evidente a
todos a quem se destinava. Desta forma, é compreensível que o tema não surgisse nas
pesquisas em grupo que os autores realizaram. A aparente incoerência do discurso emocional
e conservador voltado a suas bases nas redes sociais, e das afirmações econômicas pontuais,
constituiu a estrutura central do arranjo político que permitiu a Bolsonaro a vitória nas
eleições de 2018.
Sobrevalorizar os dados é sempre um risco das análises que se apoiam em
quantificações e falham em fazê-las coincidir com um arcabouço teórico mais robusto, reduz-
se dessa forma o potencial explicativo das hipóteses formuladas. Porque tão importante,
talvez até mais, que as opiniões expressas nas sondagens de opinião é como esses sentimentos
que são sondados se articulam nas disputas hegemônicas. Vimos, por exemplo, como pautas
difusas e contraditórias puderam ser ressignificas por grandes veículos da imprensa durante a
Grande Onda. Havia um difuso sentimento de frustração das expectativas econômicas, um
descontentamento com a qualidade dos serviços públicos e uma revolta diante do quadro
generalizado de corrupção que inundava o debate público – todos esses elementos constam
das mais variadas análises do junho de 2013. Mas não é óbvio que aqueles protestos, que
tiveram seu estopim em manifestações de esquerda centradas no tema do transporte público,
fossem desaguar necessariamente numa onda que abalou definitivamente a credibilidade do

21 Ibope, 2013. 91% dos brasileiros apoiam a PEC das domésticas. Em:
https://www.ibopeinteligencia.com/noticias-e-pesquisas/91-dos-brasileiros-apoiam-a-pec-das-domesticas/ .
114

governo Dilma. Esse processo de ressignificação se dá sobre a realidade mas também a partir
dela. Embora fosse o governo Dilma o adversário da oposição conservadora na Grande Onda,
o contexto em que se deram as disputas hegemônicas de 2013 forçou que governos dos mais
variados matizes entrassem na rota dos protestos, afinal grande parte dos serviços públicos era
responsabilidade de governos nos âmbitos estadual e municipal e, como as bases governistas
faziam questões lembrar, a corrupção não era fenômeno exclusivo das gestões petistas. A
forma como se deu a construção de uma maioria política nas ruas teve, portanto, duas
importantes consequências. Uma, foi que tanto fragilizaram tanto a credibilidade dos
governos petistas quanto a de seus opositores. Outra, foi que permitiu que as esquerdas
permanecessem nas ruas até o fim dos protestos, embora sua derrota na Grande Onda fosse
flagrante.
Uma pesquisa, realizada entre o primeiro e segundo turnos das eleições de 2018 22,
aferiu que cerca de dois terços dos eleitores de Bolsonaro eram contra a política de
privatizações, núcleo da proposta econômica de seu ministro da Economia, que deteve na
campanha – pela voz do própria candidato – ampla autorização para expor os projetos
econômicos de um possível governo Bolsonaro. Longe de comprovar a tese de Moura e
Corbellini de que a questão econômica não foi um tema decisivo em 2018, esse dado indica
para outra possibilidade: a do arranjo político entre o conservadorismo moralista, o
antipetismo e a agenda rentista, sendo que esta conseguiu se impôr mesmo contra um
sentimento majoritário do eleitorado bolsonarista quanto a temas econômicos. Se para
parcelas significativas do eleitorado a pauta de costumes expressava, por meios indiretos, seus
sentimentos e aspirações, para o outro terço dessas a privatização e o aprofundamento da
agenda liberal eram o fator central que os conduzia do antipetismo para o bolsonarismo. A
reação empolgada dos mercados financeiros à perspectiva de vitória de Bolsonaro 23 elucida
dois fatos: não apenas sua política econômica estava clara para quem quisesse ver, como
também ela obteve grande adesão do círculos financeiros nacionais.
Sequer a agenda ideológica e de costumes de Jair Bolsonaro era majoritária na
sociedade brasileira em fins de 2018. À época, a maioria dos eleitores defendia o ensino de

22 Poder 360. Bolsonaro se diz liberal, mas só 37% de seus eleitores querem privatização. Disponível
em https://www.poder360.com.br/analise/bolsonaro-se-diz-liberal-mas-so-37-de-seus-eleitores-querem-
privatizacao/ . Consulta em: 04/01/2019.
23 BBC Brasil. Eleições 2018: Por que Bolsonaro anima o mercado financeiro? Em: https://www.bbc.com/
portuguese/brasil-45986279. Consulta em: 27/10/2018.
115

educação sexual nas escolas e o debate de temas políticos24, dois ponto que foram centrais no
discurso de Bolsonaro para o eleitorado mais conservador.
A opinião de que os temas de teor econômico tiveram menor importância na eleição de
2018 parece decorrer de uma percepção errada dos significados do debate realizado no âmbito
das redes sociais da internet. Embora a agenda conservadora tenha sido decisiva na
mobilização do contingente de guerra de Bolsonaro nas mídias sociais – alimentado, orientado
e estimulado pelo recurso de robôs virtuais e fakenews, como se tornou evidente –, tal base
não foi capaz de sozinha construir as condições necessárias para a vitória.
A chave para o entendimento de como a questão econômica foi interpretada nas
eleições de 2018 talvez esteja mais acessível através da abordagem de Sousa (2020) e outros.
A opção das elites por uma regressão autoritária e moralista não era um plano prioritário. Foi
nas camadas médias que o projeto de Bolsonaro conseguiu se viabilizar e se afirmar em
direção ao segundo turno. A opção por Bolsonaro acaba sendo uma aliança oportunista de
conveniência das elites com a classe média no bolsonarismo, incluídos aí o militarismo e
outros segmentos que compuseram sua base heterogênea. Tal unidade se dá diante da
necessidade comum de derrotar o PT.
Em sua análise sobre o capital no século XXI intitulada A loucura da razão
econômica (2018), David Harvey expõe os mecanismos pelos quais o valor agregado pela
produção é distribuído entre os mais diversos atores da economia global. A distribuição final
do mais valor produzido pelo trabalho se espalha ao longo da cadeia produtiva indo do
produtor direto, o capitalista empresário do setor produtivo, ao Estado via tributos, aos
comerciantes via divisão dos lucros e ao sistema financeiro através dos juros. Este último
desempenha nos ciclos produtivos um papel essencial ao normalizar as temporalidades
distintas de cadeias de produção, cujos tempos de reprodução podem variar grandemente. Ao
organizar a distribuição de capitais e permitir que recursos não fiquem paralisados entre o
período de produção e realização de mais valor, o sistema financeiro aumenta a
disponibilidade de capital para investimento, bem como gera todo um mercado paralelo
baseado na expectativa de ganhos futuros.
Vimos brevemente, no capítulo 1, como as transformações recentes do capitalismo
impactam sobre o conjunto da dinâmica social. Um dos grandes feitos da economia marxista é
demonstrar como a base do valor que circula pelos mercados se constitui através do trabalho.
Se todo o valor distribuído nas esferas econômicas provém do trabalho, há duas formas
24 Folha de São Paulo. Maioria no país defende educação sexual e discussão sobre política nas escolas.
Em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/01/maioria-no-pais-defende-educacao-sexual-e-discussao-
sobre-politica-nas-escolas.shtml . Consulta em 08/01/2019.
116

essenciais de obter maior lucratividade: o aumento das horas trabalhadas por cada indivíduo e
o incremento na produtividade da hora trabalhada. Estamos aqui diante dos clássicos
conceitos de mais valia absoluta e relativa.
Ocorre que a participação do capital financeiro sobre o valor produzido vem crescendo
década após década, como aponta Harvey. Com a redução de suas parcelas no montante do
mais valor produzido, produtores e comerciantes precisam recompor as margens de
rendimento. Uma das formas de recomposição a que se tem recorrido é a financeirização do
próprio capital produtivo. Empresas alocam seus recursos nos mercados financeiros em busca
de lucros imediatos e de simples realização, num processo de hibridização entre capital
produtivo e financeiro que em última instância aumenta as pressões sobre o primeiro, de onde
surge o valor distribuído. A pressão do capital financeiro, de forma resumida, leva os setores
industriais e comerciais à busca desesperada por recompor sua própria participação na
distribuição do mais valor. Daí decorrem duas possibilidades que são o pilar das variantes
mais diversas do neoliberalismo: a redução do contingente de valor distribuídos aos
trabalhadores via salários e ao Estado via tributos.
As políticas públicas – sobretudo aquelas voltadas aos serviços essenciais e à proteção
social – são ferramentas redistributivas essenciais para a reprodução social no capitalismo,
cujos impactos constatamos anteriormente ao discutir as políticas de bem-estar social no
regime de reprodução fordista-keynesiano. O novo padrão de acumulação financeirizado
hegemônico desde os anos 1970 – o neoliberalismo – necessita, como vimos, reduzir os
custos da reprodução social contidos nos salários e tributos para manter o sistema produtivo
viável, tendo em vista a busca individual do lucro pelo capitalista do setor produtivo.
Um dos mecanismos adotados é a transferência da responsabilidade pela reprodução
social dos sistemas de proteção do Estado para camadas marginalizadas da sociedade. Esse
fenômeno está explicitado na denúncia de Fraser (2019b) sobre o papel do trabalho doméstico
não remunerado na reprodução social como forma de intensificar a exploração do trabalho das
mulheres. Outro é a desregulação das relações de trabalho e a constante migração da alocação
de mão de obra. Em ambos, é o Estado o agente central, quer como mediador e regulador das
relações trabalhistas, quer como provedor das políticas de proteção social. Desta forma, é o
papel do Estado na economia o centro das disputas em torno do projeto neoliberal. Questões
identitárias, direitos de minorias – no que se limita ao direito meritocrático de competir, ainda
que em bases desiguais – e liberdades civis não são necessariamente basilares para o modelo
econômico neoliberal. Assim compreendemos que a polarização entre o neoliberalismo
progressista e o populismo reacionário possa se dar nos limites da hegemonia neoliberal.
117

Diversas ações de Bolsonaro no período que antecede sua eleição vão no sentido da
intensificação dessa agenda neoliberal no Brasil. Desde seus votos favoráveis à reforma
trabalhista e à “PEC do teto dos gastos” até a reforma previdenciária e a proposição da
Carteira de Trabalho verde e amarela, uma aberração na qual o trabalhador aderiria a um
regime de trabalho à margem das garantias – as ainda vigentes – da CLT. Contudo, a mais
importante sinalização de Bolsonaro para o mercado se deu por sua relação com atual
ministro da Economia Paulo Guedes.
Paulo Guedes é egresso da Universidade de Chicago, berçário de intelectuais e ideias
neoliberais. Atuou no mercado de especulação financeira e foi professor no Chile, durante a
ditadura de Pinochet. Ficou conhecido durante a campanha presidencial de 2018 como “posto
Ipiranga” .
À menção à publicidade dos postos Ipiranga e seu jargão, pergunta lá, é boa metáfora
das relações entre Bolsonaro e Guedes. As constantes declarações de Bolsonaro informavam
seus eleitores de que ele sabia que não era conhecedor de economia. Seu argumento dizia que
para “assuntos técnicos” ele se valeria da indicação de ministros técnicos, não políticos, como
vimos na transcrição de sua entrevista ao Jornal Nacional. Fica patente o que interessa nessas
declarações: que Bolsonaro indicaria para seu ministro um neoliberal convicto e que não se
meteria em seus assuntos. O mercado tanto comprou essas ideias como cobrou por elas,
indício disso são as oscilações negativas da bolsa que viraram rotina sob o governo Bolsonaro
toda vez que o presidente “se mete” nos assuntos do ministro da Economia.
Vem de longa data o desejo dos mercados financeiros em afastar as instâncias de
decisões econômicas da influência política, ou seja, democrática. A autonomia do Banco
Central, por exemplo, tem sido tema recorrente na agenda política brasileira. A presença dos
interesses de mercado de forma orgânica nas relações com os agentes do Estado remonta, em
sua configuração atual, ao à Ditadura Militar. Reafirmando valores do período autoritário, o
programa bolsonarista remete aos “anéis político-burocráticos” postulados por Fernando
Henrique Cardoso. Segundo Spinelli e Silva, trata-se “da solidarização dos interesses privados
das grandes empresas multinacionais e brasileiras com os interesses da burocracia
do aparato estatal e das grandes empresas estatais, convertendo-se numa aliança
poderosa que substitui o pacto democrático e os partidos da democracia
representativa” (SPINELLI; SILVA, 2017, p. 7).
Já na campanha, Bolsonaro declarou que pretendia criar um ministério dedicado à
desestatização. Não por acaso, a bolsa subiu. As medidas tributárias de Bolsonaro também
possuem caráter regressivo. Congelamento da tabela do Imposto de Renda, proposta de taxar
118

livros e itens da cesta básica – todas medidas que atingem os mais pobres. Para convencer
parcelas importantes do eleitorado, afetadas pelo desemprego crescente e redução de renda,
Bolsonaro sugeriu, revisitando o velho e superado receituário neoliberal, que seria preciso
menos direitos para se ter mais empregos.
A linha econômica adotada por Bolsonaro, via a cooptação de ou por Paulo Guedes, é
tragicamente idêntica a que se adotou na Inglaterra de Tatcher e nos EUA de Reagan.
Tragicamente porque conhecemos os resultados de tais políticas. Como registra, sobre o
governo Reagan, Francis Wheen, as medidas liberalizantes iam no sentido da concentração de
renda e redução do amparo ao pobres e trabalhadores.

O primeiro orçamento de Reagan incluía uma redução modesta da taxa


tributária básica, mas seu indiscreto colega David Stockman revelou que isso
era um simples “cavalo de Troia” para a redução muito mais drástica da taxa
mais alta, de 70% para 50% – e, depois, para 28%. As reduções da tributação
dos ricos eram fundamentais para a superstição da economia pelo lado da
oferta. (WHEEN, 2013, p. 35)

O resultado dessa inflexão, como registra Wheen, foi o salto do déficit federal de 900
bilhões para 3 trilhões de dólares ao longo dos oito anos do mandato de Reagan. Mas nada
disso foi o bastante para afastar os discípulos de Friedrich von Hayek e Milton Friedman de
suas impostura. A fé no mercado era tamanha que em 1990 o governo Tatcher adotou uma
proposta controversa – talvez por não haver mais o que destruir – de instituir um imposto
sobre o voto. Segundo Wheen, isso contribuiu para sua posterior queda.
A falácia de que um Estado menor favorece o crescimento econômico foi contestada
de forma contundente por Laura Carvalho ao analisar o desempenho da economia brasileira
neste século (CARVALHO, 2018). Outro estudo recente que desmistifica a fé neoliberal é o
de Mariana Mazzucato, O Estado empreendedor. Mazzucato diz que

A suposição de que o setor público pode no máximo incentivar inovações


puxadas pelo setor privado (através de subsídios, reduções fiscais,
precificação do carbono, padrões técnicos etc.), principalmente mas não
apenas diante da crise recente, não leva em consideração os muitos exemplos
em que a principal força empreendedora veio do Estado e não do setor
privado. A não consideração desse papel tem causado grande sobre os tipos
de parcerias público-privadas que são criadas (potencialmente parasitárias
em vez de simbióticas) e tem desperdiçado dinheiro público ou incentivos
ineficazes (incluindo diferentes tipos de isenções fiscais) que poderiam ter
sido usados de forma mais eficiente. (MAZZUCATO, 2014, p. 256)
119

As tensões decorrentes do manejo das bases sociais conflitantes do bolsonarismo


exigem um difícil equilíbrio entre os impulsos privatistas da frente ampla conservadora e as
exigências cada vez mais urgentes de ação estatal no sentido de prover condições mínimas de
vida digna. Tanto as despesas decorrentes da tardia reação do governo aos efeitos da
pandemia quanto os pífios resultados da economia no período anterior abalaram a confiança
do mercado no governo, que se mostra sem rumo e iniciativa para superar o quadro de
recessão econômica vigente, embora o ministro Guedes repetidamente fale na mágica
recuperação em V. Como vemos no diagnóstico de Laura Carvalho (2020), a pandemia global
de Covid-19 veio a agravar ainda mais essas tensões:

Assim, a pandemia levou o bolsonarismo a entrar em curto-circuito. Ou o


governo muda o rumo da política econômica, atendendo a pressões da ala
militar por uma expansão dos investimentos públicos, por exemplo, ou
expandindo benefícios sociais de forma permanente em meio à profunda
crise, ou Bolsonaro terá perdido apoio no topo da pirâmide sem substituí-lo
por uma aprovação maior na base. (CARVALHO, 2020, p. 126-127)

É difícil definir os contornos exatos que tendem a assumir as políticas econômicas do


governo Bolsonaro. Isso não apenas pelo difícil equilíbrio das tensões a que nos referimos
como também pelo curso errático e vacilante do governo. Embora esteja claro que não há
qualquer intenção de romper o ciclo das políticas de Estado neoliberais, a intensificação
agressiva dessa agenda, ao gosto dos mercados financeiros, vai esbarrando numa série de
contingências que implicam diretamente na sobrevivência do bolsonarismo.
A agenda ultraliberal de Paulo Guedes foi fator decisivo na adesão à candidatura de
Bolsonaro por importantes grupos ascendentes na política nacional, muitos dos quais viriam a
romper com o governo posteriormente. São lideranças políticas formadas por fundações e
think thanks liberais que vêm ocupando importantes espaços institucionais no Brasil, a
exemplo do RenovaBR. Em seu primeiro ano, 2018, os cursos para novas lideranças políticas
do RenovaBR formaram 133 líderes RenovaBR, dos quais 17 foram eleitos nas eleições do
mesmo ano. Dentre os partidos das lideranças formadas constam NOVO, Rede, PSB, PDT,
DEM, PSL e Cidadania. Tábata do Amaral, deputada federal pelo PDT de Ciro Gomes, foi
uma das lideranças que a organização formou. Discutem desde temas como a origem da
democracia na Grécia até planejamento urbano na atualidade. Têm em seus conselhos nomes
como Paulo Hartung e Luciano Huck. Destacam-se entre seus membros profissionais liberais,
empresários, estudantes universitários e militantes do terceiro setor. Em 2020, chegaram a
formar 1.500 alunos, a maioria dos quais concorreria nas eleições municipais (MAZZA, 2020,
p. 18-27). Como esses novos segmentos se comportarão futuramente é uma incógnita.
120

Outro movimento posterior que mexeu com as bases bolsonaristas foi o rompimento
do governo com a Lava Jato e a demissão do ministro Sérgio Moro, figura central no processo
judicial que culminou no impedimento da candidatura de Lula em 2018, outro fator cujo peso
nas eleições seguirá indeterminado. Reforça nossa discordância de que a eleição de 2018
tenha sido entre o lulismo e o partido da lava jato o fato de terem sido poucos e breves os
impactos do rompimento entre governo e Lava Jato, e mesmo a aproximação do primeiro ao
centrão.
A frente ampla liberal conservadora tateia em busca de preservar sua maioria eleitoral.
A compreensão desse processo caberá a estudos futuros que certamente virão. Por ora, resta-
nos a conclusão de que o bolsonarismo foi, nas eleições de 2018, o representante efetivo da
direita brasileira. Tendo como centro gravitacional o antipetismo, pôde esse novo campo da
direita brasileira ocupar a liderança da onda conservadora que culminou na derrota do lulismo
nas urnas.
121

CONCLUSÃO

Desde os anos 1970 a democracia liberal em todo o mundo vem enfrentando grandes desafios
em manter as bases de sua legitimação. As taxas de abstenção crescentes e os decrescentes
índices de aprovação das instituições democráticas são apenas parte dos elementos que
expressam a crise da democracia liberal.
Em grande parte do mundo, nos últimos anos, vimos a ascensão de um populismo de
direita que converge para aquilo que chamamos, nos passos de Nancy Fraser, de
neoliberalismo reacionário. Trata-se de um arranjo político e ideológico que – preservando as
políticas liberalizantes de interesse do mercado – volta seus esforços para mobilizar parcelas
da sociedade excluídas dos benefícios da globalização econômica e cultural. São sobretudo os
trabalhadores de baixa qualificação, moradores de regiões com economias menos complexas,
aqueles que sofrem as consequências negativas das transformações por que passam as
sociedades globais.
A população dos países das democracias avançadas viu, a partir dos anos 1970, seus
padrões de vida estagnarem e em muitos casos regredirem. Novas gerações já não encontram
no mercado de trabalho perspectivas de ascensão econômica e social. Aliado a isso, os
instrumentos de proteção do Estado às camadas menos abastadas da sociedade são
enfraquecidos ou extintos. O quadro de desamparo se agrava diante da incapacidade de os
Estados nacionais reagirem às consequências do fluxo descontrolado de capitais e da
hegemonia neoliberal que impõem uma severa restrição à capacidade de atuação dos governos
na economia.
Os resultados das décadas de hegemonia neoliberal – aumento da pobreza e das
desigualdades, instabilidade e sentimento de exclusão crescentes entre a população – reforçam
um quadro econômico e social em que chauvinismos dos mais diversos, xenofobia e
intolerância cultural assumem proporções políticas preocupantes. Soluções mágicas, eleição
de inimigos internos e externos e toda uma vasta gama de conteúdos retrógrados alimentam e
são alimentados pelo neoliberalismo reacionário. A internet possibilitou a mobilização e
organização das bases reacionários, à margem do pacto progressista neoliberal das elites,
apresentando-se assim como um campo antissistema.
No Brasil a breve e corrente experiência democrática da Nova República também se
encontra diante de graves desafios. Os impactos da articulação global de forças políticas
reacionárias se manifestaram nas relações perniciosas entre a Lava Jato e agentes estrangeiros.
122

A Guerra Híbrida teve como foco a desmoralização e estigmatização do Partido dos


Trabalhadores, contando com amplo suporte da grande mídia nacional e com ramificações no
Poder Judiciário e em diversas arenas políticas.
Remontando ao escravismo colonial, a enorme desigualdade que marca nossa história
se aprofunda num momento de crise econômica e política em que não parece haver
alternativas progressistas viáveis.
Desde os eventos de junho de 2013, uma onda conservadora tem exercido decisivo
papel nas disputas hegemônicas nacionais. É nesse período que se formam o germes do
discurso autoritário que ocupa progressivamente o debate público nacional. Nos lemas nossa
camisa não é vermelha, é verde e amarela, nos gritos sem partido, sem partido que se ouviam
nas ruas, na exclusão e agressão de manifestantes identificados como de esquerda nos
protestos, vimos o protótipo do motivo bolsonarista do nós contra eles.
Os movimentos de junho de 2013 foram o marco do declínio da hegemonia lulista.
Foram também o marco do declínio de nossa direita tradicional. Novos atores – muitos deles
se organizando e mobilizando pelas redes sociais da internet – emergiram com ideias e
valores mais próximos ao extremo direitista quanto aos costumes e projetos econômicos.
Contribuiu para isso o desfecho político dos protestos de 2013, quando forças governistas e a
oposição de direita esvaziaram as ruas, num pacto tácito de não acirramento momentâneo.
Da parte das forças governistas, o abandono das ruas se dá diante de duas situações: o
caráter conciliador e o frágil equilíbrio de classes do lulismo aliado e fortalecido pela
mobilização incipiente de suas bases sociais na sequência da Grande Onda.
Pelo lado das oposições de direita – como também ocorrera ao governo – havia clareza
de que o rumo dos protestos não era certo, podendo muitas vezes assumir dinâmicas e pautas
próprias. O cálculo de risco demonstrava que o acirramento das mobilizações poderia
conduzir as disputas hegemônicos a um quadro duplamente desfavorável, ao governo e aos
partidos da oposição. A estratégia do momento foi apostar no desgaste do governo, visando às
eleições de 2014.
Derrotada em 2014, a direita liderada pelo PSDB adere ao golpismo. Primeiro
questionando os resultados da eleição. Posteriormente encampando o impeachment de Dilma.
A frágil vitória de Dilma em 2014 e o posterior golpe que pôs fim ao seu segundo
governo agravaram a crise institucional brasileira, dando sinais da fraqueza do consenso em
que se baseia nossa legitimidade democrática.
Manejando a onda conservadora, o bolsonarismo atraiu todo um conjunto de setores
descontentes e ressentidos, todos unidos pelo antipetismo. Evangélicos, lavajatismo,
123

militaristas, classe média reacionária, elite financeira, empreendedores, corporações médicas


etc, grupos de empresários, grileiros e ruralistas, armamentistas, incels, enfim, uma miríade de
segmentos distintos atenderam ao chamado bolsonarista para a formação de um campo
político conservador em oposição ao PT. Esses segmentos não foram criados pelo
bolsonarismo, mas tiveram nele uma voz pública e uma identidade coletiva necessárias para
poder surgir como alternativa política em âmbito nacional. Através das redes sociais da
internet – com amplo recursos a fakenews e “robôs” – o bolsonarismo deu corpo ao que antes
eram agrupamentos de subculturas reacionárias e ressentidas.
Também a direita tradicional foi atingida pela crise de legitimidade crescente
sobretudo a partir de 2013. Os principais de seus quadros foram envolvidos em escândalos de
corrupção. A ponte para o futuro de Temer conduziu o país ao agravamento da crise
econômica e social vigente.
O bolsonarismo deslocou a imagem do principal partido da direita brasileira, o PSDB,
para aproximá-lo na percepção de seus eleitores ao PT. O discurso contra tudo que está aí
unia PT e PSDB no imaginário do eleitorado.
Muitos foram os eventos contingentes da eleição de 2018. O atentado a Jair Bolsonaro.
A operação Lava Jato. O grande papel das mídias sociais. Dentre eles, o mais importante foi a
exclusão de Lula, que até ter sua candidatura inviabilizada pela Justiça, liderava todas as
sondagens de voto.
Contudo, como exposto ao longo deste trabalho, sobre os fatores contingentes da
eleição pesaram decisivamente os contornos ideológicos marcantes das disputas hegemônicas
do Brasil na Nova República. A oposição entre direita e esquerda na preferência do eleitorado
se deu, em 2018, com a a substituição do PSDB por Bolsonaro como principal opositor do
petismo.
O neoliberalismo reacionário brasileiro traz consigo a defesa do papel repressor do
Estado, que pretendem aplicar no combate aos comportamentos considerados desviantes pelo
conservadorismo. A defesa dos valores religiosos e da família patriarcal se associam nesse
corpo ideológico a uma defesa aberta da violência como meio de contenção dos conflitos
sociais. Armamento da população civil, salvo conduto para agentes do Estado matarem,
simpatia e relações duvidosas, para se dizer o mínimo, com milícias privadas e paramilitares,
tolerância com queimadas e grilagem etc, são todos elementos que vão compondo o complexo
quadro das bases políticas e ideológicas do bolsonarismo.
Com a cooptação de Paulo Guedes, ou sua cooptação por este, o bolsonarismo firmou
os termos do pacto liberal-conservador que derrotou o PT nas urnas. A assunção de Guedes
124

como quadro técnico com autonomia mesmo diante do futuro presidente indicava, já na
campanha, o aprofundamento do projeto de afastamento dos fóruns de decisão das políticas
econômicas dos espaços da democracia, um novo tipo de insulamento, onde a tecnocracia se
vê protegida da pressão social e política pela presença um chefe de Estado forte e autoritário.
O programa econômico da nova frente ampla conservadora é marcado por um
neoliberalismo extremo e anacrônico. Ataques às bases da ação do Estado sobre a economia, a
recorrente e agora ascendente proposta de autonomia do Banco Central, submissão dos
interesses nacionais aos norte-americanos, enfraquecimento das relações multilaterais e do
Mercosul – enfim, um amplo conjunto de medidas e ações que buscam reduzir a graus
inéditos a autonomia política e econômica do país diante dos interesses do capital financeiro e
dos EUA.
Ao mobilizar amplas parcelas do conservadorismo brasileiro, Bolsonaro pôde se por
em condições de visibilidade e viabilidade políticas para se apresentar como principal
opositor do petismo. A adesão do bolsonarismo à fé neoliberal consagrou a aliança de classes
que permitiria sua eleição, sobretudo diante do papel interditor exercido pelo capital
financeiro no Brasil, que se verifica mesmo sobre a esquerda, como demonstrado a respeito da
Carta ao Povo Brasileiro de 2002.
Antes de derrotar o PT, Bolsonaro teve que derrotar os principais partidos da direita
brasileira em suas próprias bases. A principal vítima dessa conquista de posições foi o maior
partido da oposição, o PSDB. Ao ganhar o campo da direita, o bolsonarismo pôde se
constituir em novo polo aglutinador do antipetismo, vencendo o plebiscito do lulismo sem
Lula.
Assim, julgamos que um aspecto central na ascensão de Bolsonaro foi a capacidade de
aglutinar em torno de sua candidatura diversos segmentos sociais, inicialmente pautados por
uma agenda de costumes conservadora e um discurso autoritário pregador da violência estatal
como solução mágica para os graves problemas da sociedade brasileira. O contexto das ações
desestabilizadoras nos marcos da guerra híbrida e sua articulação contribuíram ao formar um
ambiente favorável ao discurso bolsonarista, que já vinha se articulando e mobilizando desde
a redemocratização, ainda que com outros contornos e por outras vozes. O uso das redes
sociais e da prospecção de dados de seus usuários foi mundialmente utilizado pelo
neoliberalismo reacionário para mover os anseios e a indignação da população para
confluência a políticas extremistas de direita. Não a toa a semelhança entre métodos e retórica
do bolsonarismo se comparados aos de outras lideranças da extrema-direita mundial. Embora
desde 2010 o PSDB tenha adotado uma linha política conservadora no que concerne aos
125

costumes, a ligação entre bolsonarismo e milícias e importantes setores evangélicos do país


permitiram a Bolsonaro constituir as bases de sua candidatura e se apresentar como alternativa
viável ao PT, pelo campo da direita. O discurso seletivo contra a corrupção foi elemento
central na estratégia política de Bolsonaro, que ainda teve a possibilidade de envolver o PSDB
em sua retórica, sugerindo que PT e PSDB seriam “os mesmos que estão aí há trinta anos”.
Contudo, a possibilidade de vitória de Bolsonaro não se deu antes de sua adesão aberta à
agenda econômica neoliberal, constituindo um projeto político inserido no âmbito do
neoliberalismo reacionário. O neoliberalismo reacionário, expresso em Jair Bolsonaro é um
arranjo político e ideológico que conforma valores e interesses contraditórios, centrado na
articulação do conservadorismo moral e do neoliberalismo econômico. A panaceia do livre
mercado e apelo a um inventado passado de ordem e estabilidade, centrado na defesa dos
“valores cristãos e da família tradicional”, forneceram os elementos que tornaram tal arranjo
possível. Transparece desse processo a reinvenção da hegemonia neoliberal em sua face mais
reacionária e autoritária, o neoliberalismo reacionário que no Brasil assume as formas do
bolsonarismo.
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