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COVID-19 E OS NUMEROS: O QUESITO RAGA/COR E AS CONTROVERSIAS. DAS NOTIFICACGES Covid-19 and the numbers: race/color variable and controversies of notifications Tatiane Pereira Muniz Doutoranda/PPGAS/UFRGS. Dacente de Sociologia/IF&A. Email: taty_rp@yahoo.com.br Altera, Jodo Pessoa, v. 2, n. 10 — Numero Especial, p. 81-88, outubro 2020 ISSN 2447-9837 Totione Pereira Muniz RESUMO: A notificacao dos casos de covid-19, no Brasil tem sido objeto de uma série de disputas, que véo desde a dificuldade de diagndstico (devido a escassez de teste no inicio da pandemia), pasando pelas dificuldades de atualizacao diaria dos dados (face 4 demora dos resulta- dos da testagem dos pacientes) até o levantamento de dados por raca/cor, que € 0 objeto de atencio deste en- saio. Ao longo do texto exploro as dis- putas em torno da classificagao racial dos pacientes pelos servigos de satide, chamando a atenco para 0 maior gor no emprego das categorias raciais nos diferentes contextos regionais, de modo que os dados sejam produzidos € interpretados, garantindo fidedigni- dade a realidade das diferentes popula- «Ges atendidas, ja que é a partir desses indicadores que se formulam politicas Puiblicas para a mitigacéo das iniquida- des em satide. PALAVRAS-CHAVE: Covid-19. Classificacao racial. Subnotificagac ibilidade. ny ABSTRACT: The notification of Covid-19 in Brazil has been in the middle of series of dis- putes, since diagnosis difficulties (due to scarcity of tests in the first begin- ning of pandemics), difficulty related to daily data updating (due to delay of patient’s testing results), until the mis- takes around data survey by race/color, the subject under analysis in this essay. | seek to explore throughout this text the disputes surrounding racial classifi- cations in healthy services in the coun- try, calling attention to the needing of better accuracy in the use of racial cat- egories in different regional contexts and ensuring trustworthiness of data according the reality of different pop- ulations, once it is based on this data that public policies are formulated to fight against health disparities. KEYWORDS: Covid-19. Racial classification. Subnotification. Invisibility. Covide 9 & os nmeros: 0 quesito raga/cor€ os controvérsias dos notifcagées Antes mesmo da pandemia da covid-19 chegar ao Brasil, as noticias acerca da subnotificaco dos casos ao redor do mundo ja eram objeto da aten¢ao da imprensa nacional, seja pela indisponibilidade de testes em quantidade suficiente para serem aplicados em toda a populacio, seja pelas mais diversas teorias sobre as tentativas de encobrimento dos dades, a fim de evitar alarmar a populacao ou no sentido de justificar o retardo nas medidas de isolamento social e seus custos econémicos. Logo que a pandemia se instalou no pats, também assistimos a diversas con- trovérsias em torno das notificagdes. Tals controvérsias recafam, sobretudo, nas disputas em torno do diagnéstico, tendo em vista que, conforme as orientacdes do Ministério da Satide no que tange & definicdo de casos e notificaco, “casos de sin- drome gripal (SG), de sindrome respiratéria aguda grave (SRAG) hospitalizado e obi to por SRAG, independente da hospitalizacao, que atendam a definicdo de caso” e “individuos assintométicos com confirmacao laboratorial por biologia molecular ou imunol6gico de infeccdo recente por COVID-19” deveriam ser notificados no Sistema de Informagio da Vigilancia Epidemiolégica da Gripe (SIVEP-Gripe). Desse modo as secretarias de satide de alguns municfpios consideravam os pacientes com tais carac- teristicas como casos de covid-19 ¢ outros no. O resultado da falta de uniformizacao na contabilizagao foi a subnotifica¢ao ou supernotificagao dos casos de infeccao e do niimero de mortes. Com 0 aumento do niimero de testes disponiveis, somaram-se a estas con- trovérsias as mudangas na metodologia do cémputo destes ntimeros, pois 4 medida que os resultados dos testes de pacientes mortos ficavam prontos, é que se tornava possivel precisar se a morte por SRAG foi decorrente ou ndo da covid19. Assim, as notificagdes passaram a ser objeto de recorrentes retificagGes, tendo em vista que 0 resultados dos testes e a atualizagao dos boletins de satide nao acompanhavam a velocidade da divulgacdo disria pela imprensa. "informagées dispoi so emt 25 set. 2020. eis emi: https:/icoronavirus.saude,gov.br/definicao-de-caso-e-notificacao. Aces. S|» Totione Pereira Muniz Ao lado destas controvérsias, outras disputas em toro das notificacdes ~ ¢ sobre as quais eu me deterei aqui, sem a pretensdo de esgotar o debate nestas bre- ves linhas ~ dizem respeito a coleta do quesito raca/cor dos pacientes acometidos por covid-19. Incialmente ocorreram dentincias de que a divulgacdo dos boletins didrios néo trazia esta informagdo. Em maio de 2020, a Justica Federal do Rio de Janeiro determinou que os dados registrados e divulgados sobre os casos de coronavirus no pafs incluissem, obrigatoriamente, informagGes sobre a raca dos infectados’, em atencdo ao pleito da Defensoria Puiblica da Unido e do Instituto Luiz Gama e reconhe- cendo a necessidade de identificar grupos mais vulneraveis & pandemia. Ao lado das desigualdades de classe, as assimetrias de raca, no context pandemia, logo ficaram evidentes quando se comecou a verificar que, proporci mente, morrem mais negros do que brancos no enfrentamento 4 doenca, tend: vista as vulnerabilidades socioeconémicas e de acesso a satide 8s quais a popu pobre e, majoritariamente negra, jd esta historicamente exposta, em fungdo do 1 mo estrutural e institucional sobre o qual se organiza a sociedade brasileira, Diante deste cendrio, embora a situago distdpica colocada pela pand tenha criado um conjunto de demandas para organizacio da vida de todos dur; © isolamento social, a crise sanitdria evidenciou e exacerbou a gravidade de ni contramio de discursos que afirmavam o carter democratico da doenga, tendo em vista a novidade do virus ¢ a suscetibilidade bioldgica de todos o contrairem, pers- pectivas mais criticas destacam adoecimento e morte especificos, considerando a es- tratificaco social por varidveis como idade, classe, raca e género. Isto significa dizer que as mazelas e sofrimento social que afetam desigualmente diferentes estratos da populacao recrudesceram ante o caos. A analise de quase 30 mil casos de internaco pela covid-19 feita pelo Nuicleo de Operagées e Inteligéncia em Satide da PUCRio, destacando o impacto das desi- gualdades sociais na letalidade da doenga no pais, evidenciou que as chances de um paciente preto ou pardo e analfabeto morrer em decorréncia do novo coronavirus = ver: httpsi//terradedireitos.org.br/noticias/noticias/justica-determina registro-obrigatorio-deraca Srenchneontsy @| « Covide 9 & os nmeros: 0 quesito raga/cor€ os controvérsias dos notifcagées De acordo com 0 estudo, “este efeito pode ser resultado de diferengas de renda, que geram disparidades no acesso aos servicos basicos sanitarios de satide”. Conforme o acompanhamento das noticias e das mobilizagdes dos movi tos sociais, pudemos acompanhar que as disputas em torno do quesito raca/cor| se encerraram com a determinacao da justica quanto & obrigatoriedade da c: deste dado referente aos casos de covid-19 pelos servicos de satide. Dali em dia| © que passa a ser objeto de dentincia é a classificacao inadequada dos pacientes, uma entrevista concedida a um telejornal de exibic¢éo em rede nacional, em mai 2020, em uma reportagem que tratava dos casos de subnotificaco da covid-19 tre os indigenas do Amazonas, uma técnica de enfermagem indigena de Manaus: reivindicava que os pacientes indigenas fossem classificados como tal, € nao co pardos, como vinha acontecendo nas unidades de satide. E importante considerar, aqui, que ja existe uma legislac3o pertinente ao preenchimento do quesito raga/cor nos formularios dos sistemas de informag3o em. satide que normatiza o preenchimento deste dado. Conforme a Portaria n® 344, de 7? de fevereiro de 2017, em seu artigo primein A coleta do quesito cor e o preenchimento do campo denominado racal Cor serdo obrigatdrios aos profissionais atuantes nos servicos de satide, de forma arespeitar o critério de autodeclaragao do usuario de sade, dentro dos padrdes utilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE) e que constam nos formulérios dos sistemas de informacSes da sat: de como branca, preta, amarela, parda ou indigena (BRASIL, 2017). Entretanto, o que a técnica de enfermagem chamava atengao, na entrevi fissionais classi seus acompanhantes. O suposto comportamento dos profissionais de satide estaria desrespeitando o artigo 2°da Portaria, que preconiza que “nos casos de recémnas- cidos, dbitos ou diante de situages em que o usudrio estiver impossibilitado para a autodeclaracdo, caberd aos familiares ou responsdveis a declaragdo de sua cor ou Negros sem escolaridade tém 4 vezes mais chances de morrer por Covid.19 no Brasil, mostra estudo” Disponivel em: hitps:|/e1.globo.com/bemestar/coronavirus{noticia/2020]05/27/negros-semescolarida de-tem.4-vezes mais chances de-morrer por covid-19-no brasil mostra-estudo.ghtml. Acesso em: 31 S|» Totione Pereira Muniz pertencimento étnico-racial” (BRASIL, 2017). Além do desrespeito ao direito de autodeclaracdo e da subnotificacdo ntimeros da covid-19 decorrente da classificacao racial inadequada, entre os ind nas atendidos em Manaus, capturou minha atengdo na dentincia da profissional satide indigena 0 modo como a nogo de “pardo” tem substituido a categoria “i gena” no norte do Brasil, quando no restante do pais este deslizamento ocorre e pretos e pardos que, em conjunto, figuram na categoria englobante “negros”. Conforme observa a historiadora Larissa Viana no livro O idioma da mestica- gem, “o termo pardo teve miltiplos usos e significados no contexto colonial” (2007, P. 35), Sendo empregado no século XVII, em Sao Paulo, para designar indigenas es- cravizados ilegalmente. No nordeste acucareiro, com expressiva presenga africana, “tendia a ser sinénimo de mulato” (2007, p. 35). Entretanto, conforme adverte a au- tora, deve-se considerar que a emergéncia dos pardos no século XVII esteve ligada ‘também &s unides entre europeuis e africanos, e destes com os indigenas. No sudes- te o termo pardo se referia mesticagem, “mas também era usado como sinénimo de liberto ou homem livre de cor nascido na col6nia, independentemente de ser ou nao mestico” (2007, p. 35). Assim, conforme observa Viana (2007), a categoria par- do, neste tiltimo caso, era empregada para se referir a homens e mulheres livres de ascendéncia africana, relativamente distanciados da escravidao mas ndo necessaria- mente mestigos. Mais recentemente as nocdes de pardo e preto, apesar de estarem sep: das entre as categorias de classificagao racial do Instituto Brasileiro de Geogra Estatistica (IBGE), figuram conjuntamente na categoria “negro”, no que se refe intepretac3o dos indicadores sociais e & formulac3o de politicas publicas com rec racial, dentre elas as aces afirmativas. Uma das justificativas utilizadas por algur instituicdes, que consideram a categoria “negro” como englobando pretos e par é que quando se observam os indicadores socioecondmicos estas populacdes ap: cem muito préximas, especialmente no que diz respeito & marginalizac3o do ace a satide, a educaco, ao mercado de trabalho, sendo também as que mais partilht de vulnerabilidades sociais e exposi¢o aos mais diversos tipos de violéncia. @| « Covide 9 & os nmeros: 0 quesito raga/cor€ os controvérsias dos notifcagées Considerando a histérica complexidade das relacdes raciais ¢ dos processos de classificacao no contexto brasileiro, bem como a importancia da qualidade da pro- duco de indicadores sociais para subsidiar politicas piiblicas para a mitigagdo das iniquidades, causa perplexidade a falta de rigor na coleta de dados de um dado fun- damental para caracterizacao de populacGes alijadas do acesso ao servico ptiblico de satide, Neste sentido, 0 emprego das categorias de classificacao racial deve garanti maior fidedignidade possivel as realidades locais, especialmente porque tais dad so generalizados na intepretacao dos indicadores nacionais. Isto 6, como a categor “pardo” tem sido mais comumente associada a categoria “negro”, nao fica evident} sua relago com populacées indigenas quando os dados produzidos em Manaus s3 interpretados nacionalmente, o que resulta na invisibilizagao desta populacao. Com a breve recuperac3o do modo como a categoria “pardo” tem sido histo- ricamente empregada no Brasil, no texto de Viana (2007), bem como da situagao de disputa em torno da das classificagGes raciais na notificagdo dos casos e mortes por entre indigenas em Manaus, busquei langar luz sobre a necessidade de se conferir maior atencdo ao exame do lugar do pardo, nos processos de classificagao racial e no emprego do quesito raca-cor na producao ¢ interpretacao de dados oficiais. Tendo em vista a diversidade populacional e a distribuicao racial, em um pais continental como o Brasil, é preciso atentar para as especificidades regionais na pro- dugo de indicadores sociais correlacionados com a variavel raca-cor, pois na mani- pulagdo destes dados, em nivel nacional, ficam ocultas as controvérsias inerentes ao processo de produco de indicadores estatisticos com os quais se busca a pretensa objetividade de que os ntimeros falem por sisés. S|» Totione Pereira Muniz REFERENCIAS: BRASIL. Portaria n° 344, de 1° de fevereiro de 2017. Dispde sobre o preenchimento do quesito raca/cor nos formularios dos sistemas de informacao em satide. Didtio Oficial da Unido, Brasilia, DF., 02 fev. 2017, Seco |, p. 62. Disponivel em: https:|/wwww. in.gov.br/webjdou-/portaria-n-344-de-1-de-fevereiro-de-2017-20785508. Acesso em: 25 set. 2020. VIANA, Larissa. O idioma da mesticagem: as irmandades de pardos na América Portu- guesa, Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007. Recebido em: 31/05/2020 Aprovado em: 15/09/2020

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