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Celeste Headlee

A Arte de não
Fazer Nada
Como quebrar o ciclo vicioso de
trabalhar demais e viver de menos

Tradução de
Michele Amaral
Para a Theresa,
sempre a minha maior
entusiasta e amiga

A Arte de não Fazer Nada 7


8 Celeste Headlee
Índice

Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

PARTE I: O Culto da Eficiência
1. Atenção ao intervalo entre o cais e o comboio................... 25
2. Tudo começou com uma máquina a vapor......................... 35
3. Ética do trabalho................................................................ 51
4. O tempo torna-se dinheiro................................................. 64
5. O trabalho regressa a casa.................................................. 92
6. O género mais ocupado...................................................... 106
7. Vivemos para trabalhar?..................................................... 122
8. Natureza humana universal............................................... 138
9. Será culpa da tecnologia?................................................... 157

PARTE II: Como Se Libertar do Culto do Trabalho e Resgatar


a Sua Vida
Primeira medida de resgate: Questione as suas perceções. . . . . 179
Segunda medida de resgate: Tire o online da sua vida social.. . 187
Terceira medida de resgate: Afaste-se da secretária. . . . . . . . . . . . . 196
Quarta medida de resgate: Invista no lazer. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209
Quinta medida de resgate: Estabeleça conexões reais. . . . . . . . . . 216
Sexta medida de resgate: Escolha o caminho mais longo. . . . . . 226

Conclusão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 233
Agradecimentos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241
Notas bibliográficas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243
Acerca da autora........................................................................... 261
10 Celeste Headlee
Introdução

A ideia dominante é a de que, embora seja bom ter um pouco de


lazer, os homens não saberiam como ocupar o seu dia se em vinte e
quatro horas apenas trabalhassem quatro. Assumindo que isso é uma
verdade do nosso mundo moderno, podemos dizer que vivemos numa
civilização condenada; tal não seria verdade em nenhum período
anterior. O dom da alegria e da brincadeira que caracterizava o
homem foi até certo ponto inibido pelo culto da eficiência. O homem
moderno pensa que tudo deve ser feito em prol de outra coisa, e nunca
pelo valor do ato em si.
– BERTRAND RUSSELL, «In Praise of Idleness» [O elogio do ócio],
in Harper’s Magazine, outubro de 1932

Respondemos a e-mails de trabalho aos domingos à noite. Lemos


inúmeros artigos sobre como rentabilizar o nosso cérebro para ser-
mos mais produtivos. Reenquadramos as nossas fotografias e usamos
filtros antes de publicá-las nas redes sociais, de forma a ganharmos a
aprovação dos outros. Lemos apenas os primeiros parágrafos dos ar-
tigos que achamos interessantes porque não temos tempo para os ler
na íntegra. Andamos sobrecarregados de trabalho e cheios de stresse,
sempre insatisfeitos e procurando corresponder a expectativas cada
vez mais altas. Somos membros do Culto da Eficiência e estamos a
matar-nos com a produtividade.
A passagem acima citada foi escrita em 1932, pouco depois do crash
da bolsa que provocou a Grande Depressão. A descrição de Russell do
«culto da eficiência» é anterior à Segunda Guerra Mundial, à ascensão
do rock’n’roll, ao Movimento dos Direitos Civis e ao despontar do

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século xxi. Mais importante ainda, na minha opinião, é o facto de
ter sido escrita antes da criação da Internet, dos smartphones e das
redes sociais.
Por outras palavras, a tecnologia não criou este culto, simples-
mente reforçou uma cultura existente. Ao longo de várias gerações,
fomo-nos tornando extremamente infelizes à medida que íamos
trabalhando de forma cada vez mais febril. Estamos neste comboio
desgovernado há tanto tempo, que já não nos lembramos do nosso
destino. Perdemos o dom da «alegria e da brincadeira».
Só podemos concluir que estamos sós, doentes e a matar-nos.
A cada ano que passa surge um novo estudo revelando que existem
mais pessoas isoladas e deprimidas que no ano anterior. Está na altura
de deixarmos de nos exasperar enquanto vemos as coisas seguirem o
rumo errado. Este é o momento de compreendermos o que está mal.
Durante toda a vida, fui uma pessoa obstinada. Esta palavra tem
sido usada para me qualificar desde a escola primária.
Dizer que uma pessoa é «obstinada» nem sempre é um elogio,
especialmente quando o adjetivo é atribuído a uma mulher. Não é
exatamente o mesmo que «ambicioso», e tem um significado ligeira-
mente diferente de «agressivo». Para ser franca, acho que «obstinada»
me assenta relativamente bem. A vontade de estar em constante pro-
gresso era algo que eu encarava como uma virtude.
Mesmo em criança, a minha agenda diária (eu tinha uma agenda
aos 12 anos de idade) estava repleta de longas listas de tarefas e eu
obrigava-me a finalizar mais tarefas do que aquelas que aí constavam.
Quando fazia dieta, motivava-me pensando que pesaria menos ama-
nhã do que hoje, nem que fosse um grama. Se passasse uma tarde a
ver filmes de terror, sentia-me culpada. Tinha medo de que alguém
me visse sentada no sofá sem fazer nada e me chamasse preguiçosa.
A minha obstinação ajudou-me a ter sucesso na vida. Deu-me
estrutura para lidar com a monoparentalidade, as demissões e as le-
sões físicas. Graças a ela, sempre fui capaz de produzir imenso, fosse
a trabalhar em casa ou no emprego. Porém, a determinada altura,
essa obstinação mesclou-se profundamente com um sentimento de

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pavor: o medo de que todo o meu trabalho e esforço nunca fossem
suficientes.
Entretanto, tive sorte. Por volta dos meus 40 anos, já tinha alcan-
çado muito daquilo a que me tinha proposto e tive finalmente tempo
para parar, respirar e reexaminar o meu modo de vida. Se por um
lado me mantive sempre determinada, por outro, sentia-me exausta,
stressada e sobrecarregada. Concluí que era natural estar esgotada,
visto ser mãe solteira, ter vários trabalhos e muitas contas que mal
conseguia pagar. No fundo, julgava que o stresse acabaria quando
tivesse estabilidade financeira.
Esta ideia preconcebida, como tantas outras, estava errada. Esse
momento tão esperado chegou alguns anos atrás, quando alcancei
um nível de estabilidade que supostamente me deixaria mais con-
fortável. Finalmente, pude pagar os meus empréstimos de estudante.
A bem dizer, paguei todas as minhas dívidas. Fiquei até com algumas
economias e uma boa poupança-reforma. Estava ansiosa por passar
as minhas noites a relaxar e a descansar. Esperava sentir um alívio,
uma libertação do stresse que sofri durante duas décadas, mas essa
acalmia nunca chegou.
A minha agenda (ainda a tradicional agenda em papel) estava tão
preenchida de tarefas como antes de pagar as dívidas, se não mais.
O volume de trabalho era tão grande agora, com um emprego, como
o que tinha quando me dividia por quatro empregos. À noite, estava
tão cansada e exausta como sempre.
Percebi que não eram as circunstâncias que me provocavam
stresse, mas sim os meus hábitos. Embora a minha lista de tarefas
no escritório tivesse diminuído, encontrava outras para preencher o
espaço que tinha agora livre e marcava mais reuniões do que nunca.
Em casa, decidi que finalmente tinha tempo para fazer o meu próprio
pão e aprender espanhol. Em vez de cozinhar os favoritos já testados e
aprovados do meu livro de receitas, passei a procurar na Internet pra-
tos novos e exóticos, que me obrigavam a pegar no carro e conduzir
durante uma hora para ir buscar os ingredientes necessários. Aceitei
fazer parte de dois conselhos consultivos e decidi começar a escrever
um blogue. Todas as sextas-feiras à noite, caía no sofá e lembrava-me

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de como antes costumava encontrar-me com os amigos para beber
um copo, coisa para a qual agora não tinha tempo. Tive de fazer a
mim própria algumas perguntas difíceis.
Porquê? Porque faço sempre isso? Porque fazemos todos isso?
Nos últimos anos, tenho tentado responder a estas questões. A lei-
tura desse artigo escrito há oitenta e sete anos por Bertrand Russell
fez-me de repente ver algo que antes nunca entendera. Percebi que
raramente fazia as coisas pelo seu valor e quase sempre por causa da
minha obstinação em melhorar constantemente e ser produtiva. Mui-
tos de nós foram atraídos por aquilo que Russell denomina de «culto
da eficiência». Somos voluntariosos e obstinados, mas há muito que
perdemos de vista o sentido da nossa ação. Avaliamos os nossos dias
com base em quão produtivos eles são, não em quão gratificantes.
Procuramos o método perfeito de fazer tudo, de reuniões a exer-
cício físico e churrasco, e somos atraídos pelas «ferramentas mais
eficazes» para melhorar as nossas vidas. Somos como mecânicos que
constroem um carro com peças de topo de gama, focados apenas em
encontrar o melhor de tudo, mas sem saber se essas peças funcionam
bem juntas. O resultado disso é um carro difícil de arrancar e sempre
a parar.
Quem vive pelo culto da eficiência? São aquelas pessoas que acre-
ditam fervorosamente na virtude da atividade constante, que se de-
dicam a encontrar o método mais eficiente de realizar tudo e mais
alguma coisa. Estão sempre ocupadas e acreditam que todo o esforço
que fazem se destina a economizar tempo e melhorar as suas vidas.
Mas estão enganadas.
A eficiência é uma ilusão, fazendo-os acreditar que estão a ser
eficientes quando na verdade estão apenas a perder tempo.
Imagine que precisa de aprender a nadar: compra uma série de
livros e DVD sobre natação, participa numa videoconferência sobre
o tema e instala várias aplicações no telemóvel que monitorizam o
seu tempo a nadar e o ajudam a encontrar a piscina mais próxima.
Em suma, faz tudo o que pode para aprender a nadar, exceto entrar
na água.
Esta é cada vez mais a nossa forma de abordar os problemas.

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Estamos a investir o nosso tempo, energia e dinheiro, ganho com
esforço, em coisas que julgamos que nos tornarão mais eficientes, mas
que acabam por consumir ainda mais o nosso tempo, esgotando-nos
e stressando-nos, sem nos aproximar dos nossos objetivos. Tomamos
medidas extraordinárias para sermos mais produtivos, mas só conse-
guimos o contrário. Como se explica este fenómeno?
O desejo humano de aperfeiçoamento e crescimento constante é
inato e, em muitos aspectos, louvável. O homem surgiu no planeta há
apenas 300 mil anos (comparemos com os dinossauros, que povoa-
ram a Terra há 66 milhões de anos), mas, ainda assim, percorremos
um longo caminho desde os primitivos abrigos de barro habitados
pelos primeiros Homo sapiens.
Passámos por dificuldades incríveis, suportámos tragédias inima-
gináveis, mas desenvolvemos um mecanismo de defesa que nos ajuda
a não ceder ao desespero. É a chamada adaptação hedónica. É uma
tendência da nossa espécie para ajustar o seu estado de felicidade:
independentemente das coisas terríveis que nos possam acontecer,
retornamos rapidamente ao nível de felicidade que tínhamos antes
do acontecimento traumático.
Porém, há um senão: esse mecanismo também funciona no sen-
tido contrário. Dito de outro modo, se uma mudança incrivelmente
boa ocorrer nas nossas vidas, não nos tornamos pessoas mais felizes.
Em vez disso, a adaptação hedónica faz-nos regressar ao estado de
espírito em que estávamos antes do aumento de salário, da casa nova
ou da perda de peso. Isto significa que a maior parte das pessoas nunca
estão satisfeitas.
Imagine que finalmente ganha um milhão de euros. Uma alegria
eufórica toma conta da sua vida – é o que pensa que aconteceria? Pois
engana-se. A sua mente ajustar-se-á e fá-lo-á regressar ao seu nível
de felicidade habitual. Como explica Alex Lickerman, autor de The
Undefeated Mind: On the Science of Constructing an Indestructible
Self [A mente imbatível: a ciência da construção de um eu indestru-
tível]: «O nosso nível de felicidade pode temporariamente mudar em
resposta aos acontecimentos da vida, mas regressa quase sempre ao

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seu nível básico à medida que nos habituamos a eles e às suas conse-
quências ao longo do tempo.»
Isto torna-nos vulneráveis às promessas de felicidade e de uma
vida melhor implícitas nas campanhas de certos produtos, dispositi-
vos ou softwares. Desejamos mais alegria e satisfação. Independente-
mente do que alcançámos, das horas extras que trabalhámos, ainda
não nos sentimos preenchidos. Como escreveu o economista Henry
George no século xix, o ser humano é «o único animal cujos desejos
aumentam à medida que são alimentados; o único animal que nunca
está satisfeito».
Nos últimos quinhentos anos, temos procurado soluções exter-
nas para o nosso problema interno. Fomos iludidos pelas forças da
economia e da religião, que nos levaram a acreditar que o propósito
da vida é trabalhar arduamente. Portanto, sempre que nos sentimos
vazios, insatisfeitos ou não realizados, trabalhamos mais horas. Essa
tendência remonta às noventa e cinco teses de Martinho Lutero, a
Cristóvão Colombo e aos Descobrimentos. Com Lutero, a preguiça
tornou-se um pecado; com Colombo e os Descobrimentos, os olhos
do mundo desenvolvido voltaram-se para lugares novos e desconhe-
cidos; a novidade tornou-se uma meta a atingir.
Essas obsessões difundiram-se durante a Era Industrial, tornando-
-se ainda mais fortes nos dois últimos séculos. Os nossos períodos
temporais deixaram de ser nomeados em referência ao desenvolvi-
mento humano, como o Renascimento e o Iluminismo. Atualmente,
estamos na era do jato, na era da informação, na era nuclear e a viver
uma revolução digital. Avaliamos os nossos anos em termos de pro-
dutos do trabalho, e não de desenvolvimento pessoal.
Ao fim e ao cabo, a solução não é digital. É tão analógica como o
corpo humano. A tecnologia traz-nos muitos benefícios: prolonga a
vida, dá-nos segurança, multiplica as opções de entretenimento, etc.
No entanto, não pode fazer-nos felizes. A chave para o bem-estar é a
humanidade partilhada, embora estejamos cada vez mais a avançar
no sentido do afastamento.
Parece que não confiamos nos nossos instintos humanos. Quando
deparamos com um problema difícil, buscamos a tecnologia certa, a

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ferramenta certa e o sistema certo que nos prometam a solução: seja
o bulletproof coffe, a bebida da moda com café, óleo de coco e man-
teiga; os 1001 treinos infalíveis para esculpir o corpo; a dieta paleo;
o BuJo, agenda com um método especial de organização de tarefas;
ou as várias aplicações de produtividade disponíveis. Acreditamos
que os nossos dispositivos e métodos altamente especializados podem
tornar-nos pessoas melhores. O meu objetivo é desfazer essa ilusão e
ajudá-lo a ver que, em muitos aspectos, não melhorámos e estamos
até pior.
Sim, parece que não temos escolha e que, se pudéssemos, trabalha-
ríamos menos, só que isso não é inteiramente verdade. Nos Estados
Unidos, somos muito resistentes a tirar folgas. Em 2017, deixámos de
tirar 705 milhões de dias de férias, sendo que mais de 200 milhões
deles jamais serão recuperados, uma vez que não podemos transferi-
-los para o ano seguinte. Isso significa que num ano os americanos
doaram 62 mil milhões de dólares aos seus empregadores. O número
de dias de férias usados diminuiu nas últimas três décadas, embora
as pessoas que gozam todo o tempo de férias demonstrem ser 20%
mais realizadas nos seus relacionamentos e 56% mais felizes em geral.
Desde o século xix, pelo menos, que esta tendência se mantém,
sendo os comportamentos ligados ao trabalho passados de geração
em geração, sempre com alguns acréscimos. Estamos a transmitir essa
mentalidade aos nossos filhos e a incutir-lhes essa cultura. Quando
confrontados, a maior parte dos pais diz apenas desejar que os filhos
sejam felizes. No entanto, vários estudos revelam que o que a gene-
ralidade dos progenitores realmente quer é que os filhos tenham uma
média alta, pois julgam que o sucesso escolar os tornará felizes.
Respiremos fundo. Considere por um momento o que sabemos
sobre a essência da natureza humana. De modo superficial, podemos
definir o homem como um dos grandes primatas bípedes eretos. De-
pendendo do lugar onde vivemos, parecemos diferentes, falamos uma
determinada língua e valorizamos coisas muito distintas, mas existirá
uma verdadeira natureza humana, comum aos homens de todos os
continentes e culturas? Teremos todos certas qualidades partilha-
das à nascença, independentemente da nossa nacionalidade, fé ou

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rendimento? Este é um debate antigo e aguerrido entre a comunidade
científica: até que ponto o nosso comportamento é controlado pela
biologia, ou antes pelo ambiente e as circunstâncias?
Ainda assim, existem algumas coisas que todo o ser humano faz
bem nos primeiros tempos de vida: brincar, pensar, interagir so-
cialmente, reagir emocionalmente, fazer cálculos e refletir sobre si
mesmo. No entanto, parece que deixámos de dar valor a algumas
dessas atividades, visto que já não investimos muita energia nelas.
Talvez por serem em geral inatas, presumimos que a nossa capacidade
de integração numa comunidade é um dado adquirido. Portanto,
na última década, descobrimos coisas «melhores» para fazer com o
nosso tempo.
No dia-a-dia, poucas são as atividades que realizamos que nos
ajudam a ser mais naturalmente brincalhões, atenciosos ou, cruci-
fiquem-me, sociáveis. As redes sociais não substituem as conexões
íntimas que ao longo de duzentos mil anos nos habituámos a estabe-
lecer, e os nossos horários de trabalho não nos deixam espaço para
gozar a vida.
Essencialmente, trabalhamos no sentido contrário ao da felicidade
e do bem-estar. Perdemos o equilíbrio entre a nossa ambição de ser-
mos melhores e o sentimento de gratidão pelo que temos. Perdemos
o contacto com as coisas que realmente enriquecem as nossas vidas
e nos dão alegria. Na última década, gastámos fortunas em busca de
substitutos para aquilo que nós, como seres humanos, já fazemos bem.
Iniciada há algumas centenas de anos, esta tendência tóxica já foi
longe demais: passou a dominar as nossas vidas, tanto no trabalho
como em casa. Estamos a cavar cada vez mais fundo num buraco
que acabará por nos enterrar se não pararmos a tempo. Há muito em
jogo: podemos perder a nossa própria humanidade.
Segundo inúmeros estudos, desde os anos 90, o isolamento social
duplicou entre a população adulta. Sabe-se hoje que a solidão pode
matar. Por isso mesmo, o Reino Unido criou em 2017 um novo de-
partamento governamental: o Ministério da Solidão. Nos Estados
Unidos, as taxas de suicídio entre os adolescentes estavam há anos
em declínio, mas em 2010 começaram a aumentar drasticamente e

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continuam em ascensão. Como é isso possível num mundo que nunca
esteve tão ligado? Como é isso possível numa época em que mesmo
nas zonas mais remotas do globo se pode receber uma encomenda da
Amazon em questão de dias?
Parte do problema é estarmos a eliminar expressões da nossa
humanidade mais essencial por serem consideradas «ineficientes»: o
tédio, as longas conversas ao telefone, os passatempos, os churrascos
com os vizinhos ou amigos, as associações ou coletividades. Sorri-
mos com ironia ternurenta quando nos lembramos das ingenuidades
do passado, quando havia tempo para coisas como jogos informais
de basquetebol e mostrar os slides das férias no Havai aos amigos.
Parece-nos pitoresco que as nossas avós tivessem tempo para grupos
de costura e jogos de bólingue na relva.
Mas não seria de esperar que os nossos antepassados tivessem
menos tempo do que nós? Afinal de contas, temos micro-ondas, má-
quinas de lavar louça, corta-relvas a gás e Internet! Podemos encomen-
dar qualquer coisa e recebê-la à porta de casa. Temos aspiradores-robô
e assistentes de IA que nos informam sobre as condições do tempo e
nos enviam alertas. Se somarmos todo o tempo economizado com o
avanço tecnológico dos últimos cem anos, não deveríamos ter horas
de sobra para fazer o que quiséssemos?
Por que razão somos tão eficientes e, ainda assim, andamos
tão sobrecarregados? Porque somos tão produtivos e isso parece
insuficiente?
Temos vindo a construir um caminho cada vez mais distante do
que fazemos melhor e nos torna mais humanos. Tal deixa-nos a vida
mais difícil e infinitamente mais triste. «Posso passar metade do dia
curvado sobre o ecrã do computador de volta de e-mails, numa grande
agitação, sem produzir nada de substancial», escreve Dan Pallotta na
Harvard Business Review. «Passo o tempo todo a recriminar-me e a
sentir-me um falhado, mas saio às seis da tarde com a sensação de
que trabalhei o dia inteiro. De facto, tendo em conta a minha fadiga
mental, trabalhei!»
É assim que a maior parte das pessoas chega ao ponto da exaus-
tão, trabalhando arduamente em tarefas que não resultam em nada

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de muito importante, mas que parecem necessárias. Em grande me-
dida, a solução para este problema passa por corrigirmos as nossas
perceções erróneas. À semelhança do que acontece com as pessoas
que sofrem de dismorfia corporal, que veem no espelho algo que não
corresponde à realidade, também a nossa sensação de estarmos a ser
produtivos não significa que estejamos realmente a produzir algo.
O facto é que o excesso de trabalho reduz a produtividade. Segundo
os dados da OCDE, os Gregos trabalham mais horas do que qualquer
outro cidadão europeu; no entanto, em vinte e cinco países, ocupam
a 24.ª posição em termos de produtividade.
Talvez tenhamos adotado alguns sistemas desnecessários. Ao fim
e ao cabo, o ser humano sabe fazer muitas coisas de forma esplên-
dida, sem assistência ou intervenção externa. Conseguimos diminuir
o stresse e induzir sentimentos de felicidade sem recorrermos ao uso
de medicamentos ou ao ioga. Há estudos que provam que o simples
ato de caminhar pode deixá-lo bem-disposto; não há necessidade de
monitorizar os seus passos.
Gostaria de motivar as pessoas a terem uma nova visão do lazer
e do valor do ócio. Ócio, aqui, não significa inatividade, mas sim
atividade improdutiva. «O lazer», diz Daniel Dustin, professor da
Universidade de Utah, «diz respeito a um ritmo de vida não gover-
nado pelo relógio. É algo que tende a contrariar as noções de efi-
ciência económica, de economia de escala, de produção em massa,
etc. No entanto, para mim, lazer significa desacelerar e aproveitar o
que a vida tem de valioso.» Este é o tipo de lazer para o qual espero
que consigamos todos arranjar tempo: faz parte da essência do ser
humano, que precisa dele para funcionar em pleno.
Para abraçar o lazer, não precisamos de abandonar o progresso.
Não acho que estejamos a avançar ou a mudar depressa demais. Na
verdade, afirmo exatamente o contrário. Acredito que este nosso
estado de esforço constante está neste momento a impedir-nos de
progredir.
Trabalhamos melhor quando temos hábitos mais flexíveis. Em vez
de cerrarmos os dentes e obrigarmos o corpo e a mente a trabalhar
mais tempo, para atingir uma determinada meta, a solução, pouco

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lógica à partida, pode ser mesmo fazer um intervalo. Insistir até ao
limite das nossas forças não vai ajudar-nos.
Podemos e devemos parar de nos tratar como máquinas que
podem ser conduzidas, bombeadas, impulsionadas e monitorizadas.
Em vez de limitarmos e reprimirmos a nossa natureza essencial, po-
demos celebrar a nossa humanidade no trabalho e no lazer. Temos
de aprender a conhecer melhor a nossa própria natureza e as nossas
capacidades. Pare de se afirmar no trabalho e comece a expressar
com assertividade as suas capacidades naturais.

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PARTE I

O Culto da Eficiência

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Atenção ao intervalo
entre o cais e o comboio

O ritmo é o som a movimentar-se; vem da pulsação, dos batimentos


cardíacos, da forma como respiramos; sobe e desce; leva-nos para
dentro de nós e leva-nos para fora.
– EDWARD HIRSCH

Falemos primeiro de «andamento». Para um músico, é a velocidade


e o ritmo de uma peça musical. Para o ser humano em geral, é a velo-
cidade e o ritmo da vida. Ter um andamento acelerado é geralmente
um elogio no mundo moderno e, como é óbvio, não há nada de errado
em fazer as coisas rapidamente.
Adoraria ir ao médico sem ter de esperar uma hora pela consulta,
e quase perco a sanidade quando fico retida no trânsito e estou an-
siosa por chegar a casa. A lentidão involuntária é irritante. As ferra-
mentas que reduzem o tempo necessário para fazer algo desagradável
são mais que bem-vindas. Existe uma máquina de lavar louça ótima
que nos livra de ter de lavar as panelas mais sujas à mão? Quero-a.
Uma aplicação que me permite fazer o check-in num hotel enquanto
ainda estou à espera no aeroporto? Com certeza que a quero.
Mas e o andamento das coisas que gostamos de fazer? E as nossas
demoras voluntárias? Enquanto buscamos formas de fazer tudo mais
rápido, podemos acabar por reduzir também o tempo que dedicamos
às coisas que nos dão prazer, como caminhadas ou palavras cruzadas.
Será sempre desejável ir mais rápido, chegar aos lugares mais depressa,

A Arte de não Fazer Nada 25


aumentar a velocidade e reduzir o tempo necessário para realizar algo?
Ou haverá vantagens em de vez em quando abrandar?
Estas são questões que comecei a colocar a mim própria no ano
passado, enquanto tentava curar a minha segunda crise de bronquite
em oito meses. «Descanse», disse-me o médico, «sente-se no sofá, leia
um livro ou veja um filme, mas não vá trabalhar».
Não segui o seu conselho. Na altura apresentava um programa de
rádio diário e tinha de estar no ar de segunda a sexta-feira. Também
dava palestras quase todas as semanas, as quais me obrigavam a viajar.
O meu dia típico era: levantar-me às 4h30 da manhã, apresentar o
meu programa de rádio até às 10h00, ir para o aeroporto, viajar para
uma cidade qualquer onde faria uma palestra, dormir, levantar-me na
manhã seguinte e fazer o meu discurso, apanhar o avião de volta para
casa, dormir e levantar-me no dia seguinte às 4h30 da manhã para
apresentar o meu programa na rádio.
Ao mesmo tempo, tinha de dar entrevistas em podcast para pro-
mover o meu livro, escrever artigos para diversas publicações e, uma
vez por outra, aparecia ainda na BBC para comentar as notícias do
país. Raramente via o meu filho e, quando estava com ele, a paciência
era muito pouca. Tudo o que queria fazer no meu tempo livre era
afundar-me no sofá a ver séries.
Comecei a questionar-me se não estaria a viver depressa demais.
Não tinha tempo para pensar sobre o que queria realmente fazer, nem
para perceber o que fazia apenas para cumprir a agenda. Compreendi
que estava em modo de piloto automático. Lembrei-me de um episó-
dio cómico daquela série antiga de televisão Eu Amo a Lucy, quando
a protagonista vai trabalhar numa fábrica de chocolates e começa a
comer bombons e a escondê-los desesperadamente dentro da roupa
por não conseguir embrulhar todas as unidades que passavam na es-
teira rolante. Sentia-me a Lucy, mas com a diferença de que eu corria
cada vez mais depressa para tentar acompanhar o ritmo sempre mais
acelerado da minha vida.
«Não achas que tentamos fazer muitas coisas ao mesmo tempo?», per-
guntei a um dos meus conselheiros. «Também fazia isso», respondeu-me,

26 Celeste Headlee
«e obriguei-me a reservar espaço na minha agenda para arejar a cabeça
e respirar».
Falei destas minhas preocupações com uma amiga, que me indicou
a TED talk de Carl Honoré sobre o Slow Movement. A palestra e o livro
de Honoré surgiram na esteira desse movimento de desaceleração da
vida, que havia nascido anos antes em Itália, espalhando-se depois para
o resto do mundo. Embora não tenha sido ele o mentor do Slow Mo-
vement, as suas ideias sobre o assunto são extremamente interessantes.
O Slow Movement começou por ser um protesto contra a indús-
tria da fast food. Provavelmente, já viu várias imagens da Piazza di
Spagna, em Roma. É uma praça aberta, calcetada, situada ao fundo
de uma monumental escadaria, exibindo no centro a famosa Fontana
della Barcaccia, criada por Pietro Bernini no início de 1600.
O projeto da fonte foi inspirado numa lenda. Diz-se que, no século
xvi, o rio Tibre galgou as margens e que, quando as águas desceram,
havia no centro da praça um barco solitário, trazido pelas cheias. Em
homenagem a esta história, Bernini esculpiu em travertino um barco
que parece estar a flutuar em águas cristalinas.
O poeta John Keats viveu na Piazza di Spagna até à morte, sendo
a sua casa hoje um museu aberto ao público. Em frente da praça, uma
monumental escadaria de 135 degraus leva-nos à Igreja da Trinità dei
Monti. Em suma, trata-se de um belíssimo lugar da cidade de Roma,
de enorme relevância história e, compreende-se, bastante acarinhado
pelo povo italiano.
Deste modo, na década de 1980, quando o McDonalds anunciou
que iria instalar um restaurante na Piazza di Spagna, houve quem
protestasse. Entre os manifestantes, destacava-se um homem magro,
de olhos azuis: Carlo Petrini, um reconhecido crítico gastronómico.
Quando o McDonalds foi inaugurado, Petrini decidiu distribuir
tigelas de massa penne à multidão que se manifestava na praça, for-
mando nesse momento um grupo chamado Slow Food.
No manifesto da organização podia ler-se: «Somos escravos da
velocidade e sucumbimos todos ao vírus insidioso da vida acelerada.»
O movimento incentiva as pessoas a desfrutar do processo de pre-
paração da comida, a saborear cada garfada, a apreciar a conversa à

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mesa. Neste momento, tem delegações em mais de cento e cinquenta
países.
O Slow Food propagou-se e desencadeou outras iniciativas, como
o movimento Farm-to-table, mas a ideia base de procurar um ritmo
mais calmo foi adotada por algumas indústrias não gastronómicas,
como a moda, a educação e certos setores turísticos.
A ideia não é defender que tudo deve ser mais lento, mas sim que
nem tudo precisa de ser feito a correr. Percorro por ano centenas de
milhas aéreas, em trabalho, e não tenho vontade de prolongar ne-
nhuma dessas viagens profissionais passando vinte e uma horas num
comboio, em vez de quatro num avião.
Se for a Nova Orleães visitar uns amigos, contudo, sou capaz de
substituir o tempo gasto a ir para o aeroporto, a passar pelo controlo
aduaneiro, a aguardar na porta de embarque e a apanhar no fim
da viagem um táxi para o hotel, pela tranquilidade que é viajar de
comboio. É mais lento, mas chego ao meu destino mais bem-disposta
(viajar de comboio é infinitamente menos stressante para mim do que
viajar de avião).
Atenção: não sou uma pessoa com tempo de sobra, a tentar con-
vencê-lo a andar por aí a contemplar as nuvens. Não só me identifico
com essa compulsão para fazer tudo o mais rápido possível, como
fui escrava dela durante a maior parte da minha vida. Obviamente,
tenho consciência de que agora sou uma trabalhadora independente
e não preciso de me submeter aos horários de outra pessoa, mas foi
enquanto ainda trabalhava a tempo inteiro que comecei a explorar a
ideia de reduzir a velocidade em algumas áreas da minha vida.
Depois de a pôr em prática, percebi que era possível desacelerar
em vários domínios. Descobri que podia preparar a minha comida
toda de raiz se limitasse o número de entrevistas que dava semanal-
mente. Evitando as redes sociais entre as 8h00 e as 17h00, conseguia
dar mais um passeio com o meu cão. No entanto, estas pequenas
mudanças não foram suficientes para mim.
A principal razão pela qual me demiti do meu emprego a tempo
inteiro e comecei a trabalhar por conta própria foi o desejo de con-
trolar o meu tempo. Andava tão ocupada, que sentia que o trabalho

28 Celeste Headlee
controlava a minha vida e comandava todas as minhas decisões,
tornando-me infeliz.
Achava que quando me tornasse a minha própria chefe teria au-
tomaticamente uma agenda menos apertada. Mas tal não aconteceu.
Uma vez que já não tinha de passar cerca de 40 a 50 horas por semana
na rádio, acabava por acrescentar umas 40 horas (ou mais) de outros
eventos e tarefas para preencher os vazios na minha agenda. O meu
raciocínio foi mais ou menos este: visto que já não me encontro a tra-
balhar a tempo inteiro, posso comprometer-me a dar mais palestras
ou a escrever mais alguns artigos. O resultado foi uma agenda mais
preenchida como freelancer do que quando trabalhava para outra
pessoa! Por outras palavras, o problema não era verdadeiramente o
meu chefe.
Para mim, esta ainda não é uma questão resolvida e, por isso
mesmo, decidi escrever este livro para explicar o meu percurso. Está
em causa um problema com o qual lido todos os dias, e a pesquisa
que encetei para levar a cabo este projeto tinha originalmente como
objetivo ajudar-me a resolver estes dilemas.
Quando comecei a ler sobre o Slow Movement, percebi imedia-
tamente como um ritmo mais lento poderia ajudar-me a reduzir o
stresse e a desenvolver a atenção plena. Realizei grande parte da
minha pesquisa para este livro em julho de 2018. Evidentemente,
não fui capaz de reter toda a informação reunida, visto que apenas
alguns meses depois, em outubro, dei seis entrevistas diferentes para
podcasts, de 30 a 60 minutos, e seis palestras em Atlanta, Chicago,
Los Angeles, Toronto, Palm Springs e Washington, DC.
Agora, um momento de pausa para identificarmos o privilegia-
díssimo elefante na sala: eu, uma pessoa com muita sorte. Em 2016,
aos 46 anos, depois de lutar muito na vida, criando sozinha o meu
filho e contando todos os meses os tostões, aconteceu-me um mila-
gre. A minha palestra na TEDx tornou-se viral e comecei a receber
convites para discursar muito mais bem pagos do que alguma vez eu
ousara sonhar.
Antes de 2016, trabalhava demais e vivia em constante estado de
stresse. Andava sempre preocupada com as contas e ansiosa com a

A Arte de não Fazer Nada 29


possibilidade de ter de lidar com uma emergência financeira. A par-
tir de 2016, continuei a trabalhar em excesso e a sentir-me exausta
e sobrecarregada, mas agora era bem paga. A renda da casa deixou
de ser uma preocupação e o medo de partir um braço ou de o carro
avariar já não me assolava a toda a hora, o que melhorou bastante o
meu bem-estar geral.
Não é possível negar que ter algum dinheiro facilita muito as
coisas. No entanto, durante todos esses anos a lutar para sobreviver,
imaginava que a minha vida seria muito mais feliz e tranquila se ga-
nhasse mais, e isso não aconteceu.
A maior parte das minhas viagens de trabalho são planeadas por
um assistente, com motoristas que me levam e vão buscar ao ae-
roporto, e estadias em hotéis que antes dificilmente poderia pagar.
A Celeste de 2015 ter-se-ia virado para mim hoje e dito: «Mas por
que diabo estás a reclamar? Tens muita sorte de poderes pagar um
táxi e não estares neste momento à espera do autocarro. Por isso
para de te queixares!» Mas a Celeste de 2018 teve, antes do jantar,
de editar quatro guiões e dar duas entrevistas para podcasts, e não se
sentiu muito sortuda. Na verdade, estava bastante infeliz.
Tornou-se claro para mim que nenhuma mudança ocorreria na
minha vida simplesmente porque eu a desejava. Tive de estabelecer
medidas concretas e definir novos limites. Como diz o provérbio
bíblico, «Médico, cura-te a ti mesmo!».
Em janeiro de 2019, fiz uma viagem de comboio que me levou a
percorrer os quarenta e oito estados dos Estados Unidos. Apanhei um
comboio em Washington DC com destino a Nova Orleães, outro para
Los Angeles e um terceiro para Seattle. Em seguida, apanhei um com-
boio para Chicago, outro para Boston, e, por fim, entrei no comboio
com destino a Washington DC, para regressar a casa. A viagem teve
a duração de quase duas semanas.
É preciso lembrar que os comboios interurbanos costumam atra-
vessar áreas remotas, onde as redes de telemóvel são fracas ou ine-
xistentes. A primeira vez que olhei para o telemóvel e vi as barras
de sinal apagadas admito que entrei em pânico. Comecei a verificar
obsessivamente o telemóvel em busca de rede. Numa hora, devo ter

30 Celeste Headlee
verificado o sinal umas quarenta vezes, e estava apenas no segundo
dia de uma viagem de duas semanas.
Com o passar dos dias, comecei a relaxar. Sobrevivi a várias horas
sem rede no telemóvel e não foi o fim do mundo. Não houve emer-
gências; estava tudo bem. Duas semanas sem qualquer ligação con-
sistente à Internet permitiram-me avaliar se seria de facto necessário
estar constantemente conectada, e a resposta foi: não.
Subir para um comboio sem se preocupar com a duração da via-
gem é algo bastante simples, mas neste tempo voraz, vivido a velo-
cidades galopantes, pareceu-me um ato revolucionário. Nessas duas
semanas, recebi vários convites para dar conferências e, se os tivesse
aceitado, poderia ainda ter auferido uma boa maquia. Em vez disso,
sentei-me numa carruagem de comboio a conversar com outros pas-
sageiros e a ler romances policiais. Em última análise, acho que usei
o meu tempo da melhor forma.
Quando me sentei no último comboio, viajando para sul, a ca-
minho de casa, sentia-me transformada. Acho que não olhei para o
relógio uma única vez, porque não estava preocupada com a hora de
chegada. Escrevi, li e conversei um pouco com o tipo do outro lado
do corredor. A sensação de que, a qualquer momento, algo de mal
poderia acontecer, ou de que alguma coisa urgente poderia surgir
e exigir a minha atenção imediata, tinha deixado de existir. Tinha
deixado de me comportar segundo o mecanismo de luta ou fuga.
No início, foi desconfortável romper com o ritmo imparável da vida
conectada, mas, no fim da viagem, tive medo de regressar àquele
cortejo triste da vida online.
«A viagem lenta compete agora com a cultura de apanhar o avião
para ir almoçar a Barcelona», diz Carl Honoré. «A primeira incita-
-nos a apreciar o percurso, viajando de comboio, barco, bicicleta ou
mesmo a pé, em vez de irmos amontoados num avião. Viajar devagar
permite-nos ter tempo para estabelecermos ligação com a cultura
local, em vez de andarmos a correr uma lista de armadilhas para
turistas.»
O que sei é que se não escolhermos conscientemente um caminho
mais lento, o mais provável é cedermos à tendência para carregar

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no acelerador da vida moderna. Não basta dizer que vai abrandar
quando tudo à sua volta parece acelerar. A maior parte de nós acom-
panha instintivamente o ritmo do ambiente.
Da mesma maneira, não é necessário cair no extremo oposto. Não
preciso de ficar sentada num comboio durante dias seguidos para ter
a experiência de um ritmo mais lento. Hoje de manhã, cheguei ao
aeroporto de Atlanta cerca de noventa minutos antes do meu voo e,
em vez de apanhar o transporte para o meu terminal, fiz o percurso
a pé. «Qual é a necessidade», pensei, «de ir a correr para o terminal
para ficar mais vinte minutos sentada à espera?»
Ao longo do percurso, vi dezenas de esculturas de grande escala
de artistas do Zimbabué e pude apreciar uma das minhas criações
artísticas preferidas, a Flight Paths [Rotas de voo], de Steve Waldeck.
Quando se vai do terminal A para o B, passa-se por um cenário de
recriação de uma floresta tropical, com sons de pássaros distantes e
de chuva de verão. É uma escultura de luz e cinética, no valor de 4,1
milhões de dólares, que tem o poder de deixar qualquer um mais
relaxado.
À minha frente, ia uma mãe, ainda jovem, com a filha. Andavam
bastante devagar. Primeiro, reagi com alguma irritação e quase me
desviei para o lado para tentar ultrapassá-las e caminhar rapidamente.
Foi aí que me lembrei de que tinha ainda muito tempo e acabei por
abrandar o passo, acompanhando o ritmo da criança. Vieram-me à
mente algumas recordações: vi-me a andar com o meu filho quando
ele era ainda pequeno. Lembrei-me de como muitas vezes me senti
pressionada a apressá-lo ou a pegar nele ao colo, para não atrasarmos
as pessoas atrás de nós.
Abrandei um pouco mais os meus passos para observar o espanto
da menina enquanto percorria a luminosa «floresta tropical». «Mamã,
estás a ouvir os pássaros?», gritou. «São pássaros de verdade?» Espero
que, ao ter optado por não as ultrapassar, eu tenha evitado que a mãe
se sentisse pressionada a apressar a filha.
Esta foi uma pequena mudança que me custou apenas alguns mi-
nutos; no entanto, cheguei ao terminal com um sorriso no rosto.
Há quanto tempo não me sentia assim feliz e descontraída num

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aeroporto? Foi uma pequena decisão que me ofereceu meia hora
de alegria! Talvez pareça pouco, mas se eu tomasse mais decisões
deste género teria muitos mais momentos de tranquilidade na vida,
tornando-me com o tempo mais equilibrada, menos propensa à an-
siedade e mais enérgica.
Obviamente, tomar este tipo de decisão nem sempre é tão fácil
como gostaríamos.
Venho de uma família de perfeccionistas e não sou nem de longe
o fruto mais dotado da minha árvore genealógica. Obviamente, algo
dentro de mim obriga-me a trabalhar mais, mesmo quando não pre-
ciso. Terá isso que ver com a minha educação?
Analisei os hábitos dos meus irmãos, da minha mãe e dos meus
avós. Li o que pude sobre a minha bisavó, Carrie Still Shepperson,
que era filha de uma escrava e de um fazendeiro e se formou na
Universidade de Atlanta em 1886. Durante anos, a minha bisavó deu
aulas na Union School, a primeira escola para crianças negras em
Little Rock, Arkansas. Após a morte do primeiro marido, criou os
filhos sozinha, levando quase uma década a voltar a casar-se. Ainda
hoje é difícil ser mãe solteira; não consigo imaginar como deve ter
sido complicada a vida de uma mulher negra a criar os filhos sozinha
em 1895, no Sul dos Estados Unidos.
Carrie também fundou a primeira biblioteca para afro-americanos
no Deep South, tendo produzido peças de Shakespeare e outros clás-
sicos para conseguir o financiamento necessário. Muitos dos seus
fins de semana eram passados a viajar pelas comunidades rurais do
Arkansas para ensinar as populações negras a ler e escrever. Quando
faleceu, em 1927, o meu avô descobriu que a mãe havia escrito um
livro que nunca tinha sido publicado.
Nem preciso de dizer que ninguém ousaria chamar Carrie Still
Shepperson de preguiçosa. No entanto, quando li sobre o dia-a-dia da
minha avó, pareceu-me que tinha uma vida extremamente relaxada
aos olhos do século xxi: ouvia ópera no gramofone da família, lia
poesia com os amigos nas reuniões do Lotus Club, tinha tempo sufi-
ciente para moldar a mente ainda tenra do seu filho precoce, e todas
as noites estava com a família ao jantar, normalmente preparado

A Arte de não Fazer Nada 33


pela mãe, que havia passado a maior parte da vida como escrava, na
Geórgia.
É absurdo e cruel falarmos sobre ética no trabalho nos mesmos
termos com que falamos sobre escravatura, e por isso recuarei ape-
nas até os meus primeiros familiares livres. Carrie era, sob todos os
aspectos, uma mulher incansável e destemida. Inculcou os princípios
do esforço máximo no meu avô, que os transmitiu à minha mãe,
que por sua vez conseguiu irritar-me muitas vezes nos meus anos de
infância e juventude, admoestando-me: «Ao menos faz alguma coisa
enquanto estás a ver televisão, não fiques só aí sentada!»
Os meus bisavós paternos eram fazendeiros do Texas. Tenho a
certeza de que trabalharam em condições difíceis e tiveram uma vida
pautada pelo trabalho e pelas boas ações. No entanto, também preen-
chiam os dias com conversas em torno da mesa de jantar, jogos de
cartas, peixe frito e trabalhos manuais. O meu avô costumava fazer
gelado caseiro na garagem, e enquanto ele rodava a manivela, eu
sentava-me na tampa da máquina para a manter estável.
Investigando o passado da minha própria família, aprendi duas
coisas: primeiro, a crença na importância fundamental da produtivi-
dade constante remonta pelo menos ao final do século xix; segundo,
sempre tivemos o hábito de compensar as muitas horas de trabalho
com quantidades iguais de lazer e convívio social. Portanto, tudo
isso vem de longe, tendo-se tornado mais enraizado e extremado nas
gerações seguintes.
Para descobrir a origem da minha adição à eficiência, tive de mer-
gulhar nos livros de história. Comecei a ler sobre as práticas laborais
na década de 1950, depois na de 1920, na passagem para o século xx,
e fui andando cada vez mais para trás no tempo, em busca do culpado
original. Por fim, comecei a ler sobre a vida quotidiana no século xvii
e fui recuando até chegar à Grécia antiga. Compreendi que, até cerca
de duzentos e cinquenta anos atrás, os hábitos de trabalho eram quase
totalmente diferentes, e tive uma epifania: tudo o que julgamos saber
sobre o trabalho, a eficiência e o lazer é relativamente recente, sendo
bastante provável que esteja errado.

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