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A Arte de não
Fazer Nada
Como quebrar o ciclo vicioso de
trabalhar demais e viver de menos
Tradução de
Michele Amaral
Para a Theresa,
sempre a minha maior
entusiasta e amiga
Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
PARTE I: O Culto da Eficiência
1. Atenção ao intervalo entre o cais e o comboio................... 25
2. Tudo começou com uma máquina a vapor......................... 35
3. Ética do trabalho................................................................ 51
4. O tempo torna-se dinheiro................................................. 64
5. O trabalho regressa a casa.................................................. 92
6. O género mais ocupado...................................................... 106
7. Vivemos para trabalhar?..................................................... 122
8. Natureza humana universal............................................... 138
9. Será culpa da tecnologia?................................................... 157
Conclusão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 233
Agradecimentos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241
Notas bibliográficas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243
Acerca da autora........................................................................... 261
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Introdução
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pavor: o medo de que todo o meu trabalho e esforço nunca fossem
suficientes.
Entretanto, tive sorte. Por volta dos meus 40 anos, já tinha alcan-
çado muito daquilo a que me tinha proposto e tive finalmente tempo
para parar, respirar e reexaminar o meu modo de vida. Se por um
lado me mantive sempre determinada, por outro, sentia-me exausta,
stressada e sobrecarregada. Concluí que era natural estar esgotada,
visto ser mãe solteira, ter vários trabalhos e muitas contas que mal
conseguia pagar. No fundo, julgava que o stresse acabaria quando
tivesse estabilidade financeira.
Esta ideia preconcebida, como tantas outras, estava errada. Esse
momento tão esperado chegou alguns anos atrás, quando alcancei
um nível de estabilidade que supostamente me deixaria mais con-
fortável. Finalmente, pude pagar os meus empréstimos de estudante.
A bem dizer, paguei todas as minhas dívidas. Fiquei até com algumas
economias e uma boa poupança-reforma. Estava ansiosa por passar
as minhas noites a relaxar e a descansar. Esperava sentir um alívio,
uma libertação do stresse que sofri durante duas décadas, mas essa
acalmia nunca chegou.
A minha agenda (ainda a tradicional agenda em papel) estava tão
preenchida de tarefas como antes de pagar as dívidas, se não mais.
O volume de trabalho era tão grande agora, com um emprego, como
o que tinha quando me dividia por quatro empregos. À noite, estava
tão cansada e exausta como sempre.
Percebi que não eram as circunstâncias que me provocavam
stresse, mas sim os meus hábitos. Embora a minha lista de tarefas
no escritório tivesse diminuído, encontrava outras para preencher o
espaço que tinha agora livre e marcava mais reuniões do que nunca.
Em casa, decidi que finalmente tinha tempo para fazer o meu próprio
pão e aprender espanhol. Em vez de cozinhar os favoritos já testados e
aprovados do meu livro de receitas, passei a procurar na Internet pra-
tos novos e exóticos, que me obrigavam a pegar no carro e conduzir
durante uma hora para ir buscar os ingredientes necessários. Aceitei
fazer parte de dois conselhos consultivos e decidi começar a escrever
um blogue. Todas as sextas-feiras à noite, caía no sofá e lembrava-me
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Estamos a investir o nosso tempo, energia e dinheiro, ganho com
esforço, em coisas que julgamos que nos tornarão mais eficientes, mas
que acabam por consumir ainda mais o nosso tempo, esgotando-nos
e stressando-nos, sem nos aproximar dos nossos objetivos. Tomamos
medidas extraordinárias para sermos mais produtivos, mas só conse-
guimos o contrário. Como se explica este fenómeno?
O desejo humano de aperfeiçoamento e crescimento constante é
inato e, em muitos aspectos, louvável. O homem surgiu no planeta há
apenas 300 mil anos (comparemos com os dinossauros, que povoa-
ram a Terra há 66 milhões de anos), mas, ainda assim, percorremos
um longo caminho desde os primitivos abrigos de barro habitados
pelos primeiros Homo sapiens.
Passámos por dificuldades incríveis, suportámos tragédias inima-
gináveis, mas desenvolvemos um mecanismo de defesa que nos ajuda
a não ceder ao desespero. É a chamada adaptação hedónica. É uma
tendência da nossa espécie para ajustar o seu estado de felicidade:
independentemente das coisas terríveis que nos possam acontecer,
retornamos rapidamente ao nível de felicidade que tínhamos antes
do acontecimento traumático.
Porém, há um senão: esse mecanismo também funciona no sen-
tido contrário. Dito de outro modo, se uma mudança incrivelmente
boa ocorrer nas nossas vidas, não nos tornamos pessoas mais felizes.
Em vez disso, a adaptação hedónica faz-nos regressar ao estado de
espírito em que estávamos antes do aumento de salário, da casa nova
ou da perda de peso. Isto significa que a maior parte das pessoas nunca
estão satisfeitas.
Imagine que finalmente ganha um milhão de euros. Uma alegria
eufórica toma conta da sua vida – é o que pensa que aconteceria? Pois
engana-se. A sua mente ajustar-se-á e fá-lo-á regressar ao seu nível
de felicidade habitual. Como explica Alex Lickerman, autor de The
Undefeated Mind: On the Science of Constructing an Indestructible
Self [A mente imbatível: a ciência da construção de um eu indestru-
tível]: «O nosso nível de felicidade pode temporariamente mudar em
resposta aos acontecimentos da vida, mas regressa quase sempre ao
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ferramenta certa e o sistema certo que nos prometam a solução: seja
o bulletproof coffe, a bebida da moda com café, óleo de coco e man-
teiga; os 1001 treinos infalíveis para esculpir o corpo; a dieta paleo;
o BuJo, agenda com um método especial de organização de tarefas;
ou as várias aplicações de produtividade disponíveis. Acreditamos
que os nossos dispositivos e métodos altamente especializados podem
tornar-nos pessoas melhores. O meu objetivo é desfazer essa ilusão e
ajudá-lo a ver que, em muitos aspectos, não melhorámos e estamos
até pior.
Sim, parece que não temos escolha e que, se pudéssemos, trabalha-
ríamos menos, só que isso não é inteiramente verdade. Nos Estados
Unidos, somos muito resistentes a tirar folgas. Em 2017, deixámos de
tirar 705 milhões de dias de férias, sendo que mais de 200 milhões
deles jamais serão recuperados, uma vez que não podemos transferi-
-los para o ano seguinte. Isso significa que num ano os americanos
doaram 62 mil milhões de dólares aos seus empregadores. O número
de dias de férias usados diminuiu nas últimas três décadas, embora
as pessoas que gozam todo o tempo de férias demonstrem ser 20%
mais realizadas nos seus relacionamentos e 56% mais felizes em geral.
Desde o século xix, pelo menos, que esta tendência se mantém,
sendo os comportamentos ligados ao trabalho passados de geração
em geração, sempre com alguns acréscimos. Estamos a transmitir essa
mentalidade aos nossos filhos e a incutir-lhes essa cultura. Quando
confrontados, a maior parte dos pais diz apenas desejar que os filhos
sejam felizes. No entanto, vários estudos revelam que o que a gene-
ralidade dos progenitores realmente quer é que os filhos tenham uma
média alta, pois julgam que o sucesso escolar os tornará felizes.
Respiremos fundo. Considere por um momento o que sabemos
sobre a essência da natureza humana. De modo superficial, podemos
definir o homem como um dos grandes primatas bípedes eretos. De-
pendendo do lugar onde vivemos, parecemos diferentes, falamos uma
determinada língua e valorizamos coisas muito distintas, mas existirá
uma verdadeira natureza humana, comum aos homens de todos os
continentes e culturas? Teremos todos certas qualidades partilha-
das à nascença, independentemente da nossa nacionalidade, fé ou
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continuam em ascensão. Como é isso possível num mundo que nunca
esteve tão ligado? Como é isso possível numa época em que mesmo
nas zonas mais remotas do globo se pode receber uma encomenda da
Amazon em questão de dias?
Parte do problema é estarmos a eliminar expressões da nossa
humanidade mais essencial por serem consideradas «ineficientes»: o
tédio, as longas conversas ao telefone, os passatempos, os churrascos
com os vizinhos ou amigos, as associações ou coletividades. Sorri-
mos com ironia ternurenta quando nos lembramos das ingenuidades
do passado, quando havia tempo para coisas como jogos informais
de basquetebol e mostrar os slides das férias no Havai aos amigos.
Parece-nos pitoresco que as nossas avós tivessem tempo para grupos
de costura e jogos de bólingue na relva.
Mas não seria de esperar que os nossos antepassados tivessem
menos tempo do que nós? Afinal de contas, temos micro-ondas, má-
quinas de lavar louça, corta-relvas a gás e Internet! Podemos encomen-
dar qualquer coisa e recebê-la à porta de casa. Temos aspiradores-robô
e assistentes de IA que nos informam sobre as condições do tempo e
nos enviam alertas. Se somarmos todo o tempo economizado com o
avanço tecnológico dos últimos cem anos, não deveríamos ter horas
de sobra para fazer o que quiséssemos?
Por que razão somos tão eficientes e, ainda assim, andamos
tão sobrecarregados? Porque somos tão produtivos e isso parece
insuficiente?
Temos vindo a construir um caminho cada vez mais distante do
que fazemos melhor e nos torna mais humanos. Tal deixa-nos a vida
mais difícil e infinitamente mais triste. «Posso passar metade do dia
curvado sobre o ecrã do computador de volta de e-mails, numa grande
agitação, sem produzir nada de substancial», escreve Dan Pallotta na
Harvard Business Review. «Passo o tempo todo a recriminar-me e a
sentir-me um falhado, mas saio às seis da tarde com a sensação de
que trabalhei o dia inteiro. De facto, tendo em conta a minha fadiga
mental, trabalhei!»
É assim que a maior parte das pessoas chega ao ponto da exaus-
tão, trabalhando arduamente em tarefas que não resultam em nada
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lógica à partida, pode ser mesmo fazer um intervalo. Insistir até ao
limite das nossas forças não vai ajudar-nos.
Podemos e devemos parar de nos tratar como máquinas que
podem ser conduzidas, bombeadas, impulsionadas e monitorizadas.
Em vez de limitarmos e reprimirmos a nossa natureza essencial, po-
demos celebrar a nossa humanidade no trabalho e no lazer. Temos
de aprender a conhecer melhor a nossa própria natureza e as nossas
capacidades. Pare de se afirmar no trabalho e comece a expressar
com assertividade as suas capacidades naturais.
O Culto da Eficiência
26 Celeste Headlee
«e obriguei-me a reservar espaço na minha agenda para arejar a cabeça
e respirar».
Falei destas minhas preocupações com uma amiga, que me indicou
a TED talk de Carl Honoré sobre o Slow Movement. A palestra e o livro
de Honoré surgiram na esteira desse movimento de desaceleração da
vida, que havia nascido anos antes em Itália, espalhando-se depois para
o resto do mundo. Embora não tenha sido ele o mentor do Slow Mo-
vement, as suas ideias sobre o assunto são extremamente interessantes.
O Slow Movement começou por ser um protesto contra a indús-
tria da fast food. Provavelmente, já viu várias imagens da Piazza di
Spagna, em Roma. É uma praça aberta, calcetada, situada ao fundo
de uma monumental escadaria, exibindo no centro a famosa Fontana
della Barcaccia, criada por Pietro Bernini no início de 1600.
O projeto da fonte foi inspirado numa lenda. Diz-se que, no século
xvi, o rio Tibre galgou as margens e que, quando as águas desceram,
havia no centro da praça um barco solitário, trazido pelas cheias. Em
homenagem a esta história, Bernini esculpiu em travertino um barco
que parece estar a flutuar em águas cristalinas.
O poeta John Keats viveu na Piazza di Spagna até à morte, sendo
a sua casa hoje um museu aberto ao público. Em frente da praça, uma
monumental escadaria de 135 degraus leva-nos à Igreja da Trinità dei
Monti. Em suma, trata-se de um belíssimo lugar da cidade de Roma,
de enorme relevância história e, compreende-se, bastante acarinhado
pelo povo italiano.
Deste modo, na década de 1980, quando o McDonalds anunciou
que iria instalar um restaurante na Piazza di Spagna, houve quem
protestasse. Entre os manifestantes, destacava-se um homem magro,
de olhos azuis: Carlo Petrini, um reconhecido crítico gastronómico.
Quando o McDonalds foi inaugurado, Petrini decidiu distribuir
tigelas de massa penne à multidão que se manifestava na praça, for-
mando nesse momento um grupo chamado Slow Food.
No manifesto da organização podia ler-se: «Somos escravos da
velocidade e sucumbimos todos ao vírus insidioso da vida acelerada.»
O movimento incentiva as pessoas a desfrutar do processo de pre-
paração da comida, a saborear cada garfada, a apreciar a conversa à
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controlava a minha vida e comandava todas as minhas decisões,
tornando-me infeliz.
Achava que quando me tornasse a minha própria chefe teria au-
tomaticamente uma agenda menos apertada. Mas tal não aconteceu.
Uma vez que já não tinha de passar cerca de 40 a 50 horas por semana
na rádio, acabava por acrescentar umas 40 horas (ou mais) de outros
eventos e tarefas para preencher os vazios na minha agenda. O meu
raciocínio foi mais ou menos este: visto que já não me encontro a tra-
balhar a tempo inteiro, posso comprometer-me a dar mais palestras
ou a escrever mais alguns artigos. O resultado foi uma agenda mais
preenchida como freelancer do que quando trabalhava para outra
pessoa! Por outras palavras, o problema não era verdadeiramente o
meu chefe.
Para mim, esta ainda não é uma questão resolvida e, por isso
mesmo, decidi escrever este livro para explicar o meu percurso. Está
em causa um problema com o qual lido todos os dias, e a pesquisa
que encetei para levar a cabo este projeto tinha originalmente como
objetivo ajudar-me a resolver estes dilemas.
Quando comecei a ler sobre o Slow Movement, percebi imedia-
tamente como um ritmo mais lento poderia ajudar-me a reduzir o
stresse e a desenvolver a atenção plena. Realizei grande parte da
minha pesquisa para este livro em julho de 2018. Evidentemente,
não fui capaz de reter toda a informação reunida, visto que apenas
alguns meses depois, em outubro, dei seis entrevistas diferentes para
podcasts, de 30 a 60 minutos, e seis palestras em Atlanta, Chicago,
Los Angeles, Toronto, Palm Springs e Washington, DC.
Agora, um momento de pausa para identificarmos o privilegia-
díssimo elefante na sala: eu, uma pessoa com muita sorte. Em 2016,
aos 46 anos, depois de lutar muito na vida, criando sozinha o meu
filho e contando todos os meses os tostões, aconteceu-me um mila-
gre. A minha palestra na TEDx tornou-se viral e comecei a receber
convites para discursar muito mais bem pagos do que alguma vez eu
ousara sonhar.
Antes de 2016, trabalhava demais e vivia em constante estado de
stresse. Andava sempre preocupada com as contas e ansiosa com a
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verificado o sinal umas quarenta vezes, e estava apenas no segundo
dia de uma viagem de duas semanas.
Com o passar dos dias, comecei a relaxar. Sobrevivi a várias horas
sem rede no telemóvel e não foi o fim do mundo. Não houve emer-
gências; estava tudo bem. Duas semanas sem qualquer ligação con-
sistente à Internet permitiram-me avaliar se seria de facto necessário
estar constantemente conectada, e a resposta foi: não.
Subir para um comboio sem se preocupar com a duração da via-
gem é algo bastante simples, mas neste tempo voraz, vivido a velo-
cidades galopantes, pareceu-me um ato revolucionário. Nessas duas
semanas, recebi vários convites para dar conferências e, se os tivesse
aceitado, poderia ainda ter auferido uma boa maquia. Em vez disso,
sentei-me numa carruagem de comboio a conversar com outros pas-
sageiros e a ler romances policiais. Em última análise, acho que usei
o meu tempo da melhor forma.
Quando me sentei no último comboio, viajando para sul, a ca-
minho de casa, sentia-me transformada. Acho que não olhei para o
relógio uma única vez, porque não estava preocupada com a hora de
chegada. Escrevi, li e conversei um pouco com o tipo do outro lado
do corredor. A sensação de que, a qualquer momento, algo de mal
poderia acontecer, ou de que alguma coisa urgente poderia surgir
e exigir a minha atenção imediata, tinha deixado de existir. Tinha
deixado de me comportar segundo o mecanismo de luta ou fuga.
No início, foi desconfortável romper com o ritmo imparável da vida
conectada, mas, no fim da viagem, tive medo de regressar àquele
cortejo triste da vida online.
«A viagem lenta compete agora com a cultura de apanhar o avião
para ir almoçar a Barcelona», diz Carl Honoré. «A primeira incita-
-nos a apreciar o percurso, viajando de comboio, barco, bicicleta ou
mesmo a pé, em vez de irmos amontoados num avião. Viajar devagar
permite-nos ter tempo para estabelecermos ligação com a cultura
local, em vez de andarmos a correr uma lista de armadilhas para
turistas.»
O que sei é que se não escolhermos conscientemente um caminho
mais lento, o mais provável é cedermos à tendência para carregar
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aeroporto? Foi uma pequena decisão que me ofereceu meia hora
de alegria! Talvez pareça pouco, mas se eu tomasse mais decisões
deste género teria muitos mais momentos de tranquilidade na vida,
tornando-me com o tempo mais equilibrada, menos propensa à an-
siedade e mais enérgica.
Obviamente, tomar este tipo de decisão nem sempre é tão fácil
como gostaríamos.
Venho de uma família de perfeccionistas e não sou nem de longe
o fruto mais dotado da minha árvore genealógica. Obviamente, algo
dentro de mim obriga-me a trabalhar mais, mesmo quando não pre-
ciso. Terá isso que ver com a minha educação?
Analisei os hábitos dos meus irmãos, da minha mãe e dos meus
avós. Li o que pude sobre a minha bisavó, Carrie Still Shepperson,
que era filha de uma escrava e de um fazendeiro e se formou na
Universidade de Atlanta em 1886. Durante anos, a minha bisavó deu
aulas na Union School, a primeira escola para crianças negras em
Little Rock, Arkansas. Após a morte do primeiro marido, criou os
filhos sozinha, levando quase uma década a voltar a casar-se. Ainda
hoje é difícil ser mãe solteira; não consigo imaginar como deve ter
sido complicada a vida de uma mulher negra a criar os filhos sozinha
em 1895, no Sul dos Estados Unidos.
Carrie também fundou a primeira biblioteca para afro-americanos
no Deep South, tendo produzido peças de Shakespeare e outros clás-
sicos para conseguir o financiamento necessário. Muitos dos seus
fins de semana eram passados a viajar pelas comunidades rurais do
Arkansas para ensinar as populações negras a ler e escrever. Quando
faleceu, em 1927, o meu avô descobriu que a mãe havia escrito um
livro que nunca tinha sido publicado.
Nem preciso de dizer que ninguém ousaria chamar Carrie Still
Shepperson de preguiçosa. No entanto, quando li sobre o dia-a-dia da
minha avó, pareceu-me que tinha uma vida extremamente relaxada
aos olhos do século xxi: ouvia ópera no gramofone da família, lia
poesia com os amigos nas reuniões do Lotus Club, tinha tempo sufi-
ciente para moldar a mente ainda tenra do seu filho precoce, e todas
as noites estava com a família ao jantar, normalmente preparado
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