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Que bicho és?

“interessa-me o é da coisa” (Clarice Lispector, Água viva)

Suspendo “Siddhartha” – colocado onde a vista o alcance e provoque o desafio – para passar
um pano sobre mesa parcialmente suja das migalhas vespertinas e das reminiscências da noite
anterior.

Tomo logo um pequeno susto, desses que os olhos sofrem quando, ao levantar um livro,
identificam o movimento vivo de um pequeno intruso a saborear o silêncio e a sombra de um
bom esconderijo.

Era, evidente, um bicho.

Um bicho peculiar. Sensível e aparentemente inofensivo. Eu poderia ter-lhe matado em


instantes, não fosse minha grande afeição aos vivos.

Num golpe de vista, fugiu. Desceu da mesa e pôs-se ao chão, sobre o tapete já surrado dos
passos de dança que invento pela manhã para iluminar o dia e não cair na escuridão.

Silencioso, anônimo e pequenino, postou-se como quem quer ser visto, bem ao centro da sala,
cuja magia, asseguram alguns, vez em quando faz morada.

Contei-lhe as patas: 28. Vinte e oito patas tão finas quanto ágeis.

Olhei-o de frente, dei zoom, fiz dele um retrato para a posterioridade.

Vês os pingos bem pretos formando os olhos?

Vejo-o e sei que me vê. Encara-me, estou certa. Sabe que está sendo olhado.

Que bicho serei eu? Estaria ele também contando minhas patas e encarando meus grandes
olhos?

Diante do caso, ainda que com a mesa já limpa e o dia nublado, “Siddhartha”, o livro, teve de
esperar.

Quanto ao pequenino intruso, não o matei, evidente. Também não o meti para fora da janela.
Nem o espantei como quem teme o desconhecido e a possibilidade do veneno. Verdade é
também que não o toquei, embora o encontro tenha, por si só, nos tocado profundamente.

Ficamos os dois bichos mesmo ali, imóveis, distintos e livres. Tudo tão vivo quanto peculiar.

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