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Agatha Christie (Mary Westmacott) - O RETRATO
Agatha Christie (Mary Westmacott) - O RETRATO
Agatha Christie
escrevendo sob o nome de
Mary Westmacott
O RETRATO
Tradução de
CLARICE LISPECTOR
Título original em inglês
UNFINISHED PORTRAIT
Capa:
SERGIO MATTA
Revisão:
LUZIA FERREIRA DE SOUZA
LIVRO I — A ILHA
1 A mulher no jardim
2 Chamada para ação
LIVRO II — QUADROS
1 O lar
2 No exterior
3 A avó
4 Morte
5 Mãe e filha
6 Paris
7 Maturidade
8 Jim e Peter
9 Dermot
10 Casamento
11 Maternidade
12 Paz
13 Companheirismo
14 Hera
15 Prosperidade
16 Perda
17 Desastre
18 Medo
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Dermot arriscou.
Deixou o Exército e foi para o comércio,
começando com um pequeno salário, mas com
perspectivas de muito dinheiro no futuro.
Célia se perguntava se ele não acharia a vida
de escritório muito cansativa, mas isso não parecia
acontecer. Dermot parecia inteiramente feliz e
satisfeito com sua nova vida.
Ele gostava de fazer coisas novas.
Também gostava de pessoas novas.
Às vezes Célia ficava chocada com o fato de
ele nunca querer ir visitar as duas velhas tias que o
haviam criado na Irlanda.
Enviava-lhes presentes e escrevia
regularmente uma vez por mês, mas nunca queria ir
vê-las.
— Você não gosta delas?
— Claro que gosto... especialmente de Tia
Lucy. Ela é como uma mãe para mim.
— E você não quer vê-las? Poderíamos
convidá-las para morar conosco se você quiser.
— Ah, isso seria uma chateação.
— Uma chateação? Mas você não gosta delas?
— Sei que elas estão bem. Muito felizes e tudo
o mais. Não gostaria exatamente de vê-las. Afinal,
quando a gente cresce, separa-se da família. A
natureza é assim. Tia Lucy e Tia Kate não significam
muito para mim hoje em dia. Eu me emancipei
delas.
Dermot era uma pessoa estranha, pensou
Célia.
Mas talvez ele a achasse igualmente estranha
por ser tão ligada aos lugares e às pessoas que
conhecera durante sua vida.
Na verdade, ele não a achava estranha. Jamais
pensava nisto. Dermot nunca pensava em como
eram as pessoas. Falar sobre pensamentos e
sentimentos parecia-lhe perda de tempo.
Gostava de realidades — não de idéias.
Às vezes Célia lhe perguntava coisas tais
como “O que você faria se eu fugisse com outro?”
ou “O que você faria se eu morresse?”
Dermot nunca sabia o que faria. Como
poderia saber antes da coisa acontecer?
— Mas você não consegue nem imaginar?
Não, ele não podia. Imaginar coisas que não
eram realidade parecia-lhe uma perda de tempo.
O que, é claro, não deixava de ser verdade.
No entanto, Célia não podia deixar de fazê-lo.
Ela era assim.
Memórias...
Havia uma solidão tão grande — tão estranha
na casa.
Sem Miriam...
Apenas baús cheios de roupas velhas —
gavetas cheias de cartas e retratos...
Doía — doía terrivelmente.
Uma caixa de charão com o desenho de uma
cegonha de que ela tanto gostava quando criança.
Dentro estavam guardadas cartas. Uma da mãe.
“Meu carneirinho...” Lágrimas escorreram pelas
faces de Célia...
Um vestido de noite de seda cor-de-rosa com
pequenos botões de rosa — jogado dentro de um
baú — para o caso de poder ser “reformado” — e lá
esquecido. Um de seus primeiros vestidos de noite...
Ela ainda se lembrava da última vez que o usara...
Uma criatura tão desajeitada, ansiosa, idiota...
Cartas pertencentes à avó — um baú cheio.
Devia tê-lo trazido com ela quando veio morar na
casa. Uma fotografia de um senhor sentado numa
cadeira de rodas, “Seu sempre devoto admirador”, e
algumas iniciais garatujadas. A avó e “os homens”.
Sempre “os homens” mesmo quando reduzidos a
uma cadeira de rodas à beira-mar...
Uma caneca com a figura de dois gatos que
uma vez Susan lhe dera de presente de aniversário...
De volta — de volta ao passado...
Por que doía tanto?
Por que doía tão terrivelmente?
Se ao menos ela não estivesse sozinha na
casa... Se ao menos Dermot estivesse com ela!
Mas Dermot diria: “Por que não queimar tudo
sem passar em revista?”
Tão sensato, mas por algum motivo ela não
podia fazê-lo...
Abriu mais gavetas fechadas.
Poemas. Páginas com poemas escritos numa
letra apagada. A letra da mãe quando criança...
Célia leu-os.
Sentimentais — pomposos — tão típicos da
época. Sim, mas alguma coisa — uma rápida
mudança de pensamento, de repente uma frase
original — que fazia lembrar tanto a mãe. A mente
de Miriam — rápida, vertiginosa, como um
passarinho...
“Poema para John em seu aniversário...”
Seu pai — seu pai alegre, barbudo...
Havia um daguerreótipo dele mostrando um
rapaz barbeado e solene.
Ser jovem — envelhecer — como era
misterioso — como dava medo tudo aquilo. Haveria
um momento em particular durante o qual a pessoa
seria mais ela mesma do que em qualquer outro?
O futuro. Para onde ela, Célia, iria no
futuro?...
Bem, era bastante claro. Dermot ficando um
pouco mais rico... uma casa maior... um outro filho...
dois, talvez. Doenças — indisposições infantis —
Dermot tornando-se um pouco mais difícil, ainda
mais impaciente com qualquer coisa que interferisse
em sua vontade... Judy crescendo — viva, decidida,
intensamente viva... Dermot e Judy juntos... Ela
própria, mais gorda — mais apagada — tratada com
um toque de desprezo divertido por aqueles dois...
“Mamãe, você é um tanto tola, sabe...” Sim, cada
vez mais difícil esconder a ignorância, quando a
beleza já não aparecesse. (Uma súbita lembrança:
“Nunca deixe de ser bonita, está bem, Célia?”) Sim,
mas tudo aquilo havia passado. Viviam juntos havia
tempo suficiente para que coisas tais como a beleza
de um rosto já tivessem perdido seu significado.
Dermot estava em seu sangue e ela no dele. Eles se
pertenciam — essencialmente estranhos, contudo se
pertenciam. Ela o amava por ele ser tão diferente —
porque embora acreditasse conhecer agora cada
reação sua às coisas, continuava a não saber e nunca
saberia por que ele reagia assim. Provavelmente ele
sentia o mesmo em relação a ela. Não, Dermot
aceitava as coisas como elas eram. Nunca pensava
sobre elas. Para ele isso era pura perda de tempo.
Célia pensou: “Está certo — está absolutamente
certo casar-se com a pessoa a quem se ama.
Dinheiro e coisas assim não têm a menor
importância. Eu seria sempre feliz com Dermot
mesmo que tivéssemos que morar numa minúscula
casa de campo e eu precisasse cozinhar e tudo o
mais”. Mas Dermot não ficaria pobre. Ele era bem
sucedido. Continuaria a ser bem sucedido. Ele era
desse tipo de pessoa. Seu aparelho digestivo, é
claro, esse ficaria cada vez pior. Continuaria a jogar
golfe... E eles continuariam vivendo —
provavelmente em Dalton Heath ou em um outro
local parecido... Ela nunca conheceria outras coisas
— coisas distantes — Índia, China, Japão — a selva
do Baluchistão — Pérsia, onde os nomes eram como
música: Ispaham, Teerã, Shiraz...
Pequenos arrepios passaram-lhe pelo corpo...
Se ao menos pessoa pudesse ser livre —
inteiramente livre — nada, não possuir nada, casa,
marido ou filhos, nada que prendesse, amarrasse, e
tocasse o coração...
Célia pensou: “Quero fugir...”
Miriam sentira isso.
Apesar de seu amor pelo marido e pelos
filhos, ela quisera, certas horas, fugir...
Célia abriu outra gaveta. Cartas. Cartas de seu
pai para sua mãe. Pegou a que estava por cima.
Trazia a data de um ano antes de sua morte.
“Querida Miriam: Espero que você possa vir
ao meu encontro em breve. Mamãe está muito bem
e muito alegre. Sua visão já não anda tão boa, mas
ela continua tricotando a mesma quantidade de
meias para seus namorados!
Conversei longamente com Armour sobre
Cyrill. Ele disse que o rapaz não é estúpido. Apenas
é indiferente. Conversei com Cyrill também, e
acredito que isso tenha lhe causado alguma
impressão.
Tente estar aqui comigo na sexta-feira, querida
— nosso vigésimo segundo aniversário. Tenho
dificuldade em dizer com palavras tudo que você
foi para mim — a mais querida, mais devotada
mulher que um homem poderia ter. Sou
humildemente grato a Deus por você, minha
querida.
Meu amor para nossa papoulinha.
Seu marido devotado,
John.”
Novamente os olhos de Célia encheram-se de
lágrimas.
Algum dia ela e Dermot também fariam vinte
e dois anos de casados. Dermot não escreveria uma
carta como aquela, mas, bem no fundo, talvez
sentisse o mesmo.
Pobre Dermot. Tinha sido muito triste para ele
vê-la tão triste e abatida naquele último mês. Ele
não gostava de tristezas. Bem, depois que acabasse
aquela tarefa ela deixaria a tristeza para trás.
Miriam, enquanto viva, nunca se interpusera entre
ela e Dermot. Miriam, morta, não deveria fazê-lo...
Ela e Dermot iriam em frente juntos — felizes
e divertindo-se com as coisas.
Isso seria o que agradaria à sua mãe.
Tirou todas as cartas de seu pai da gaveta, e
colocando-as num pilha na lareira, acendeu um
fósforo sobre elas. Pertenciam aos mortos. A única
que lera guardou para si.
No fundo da gaveta estava uma velha carteira
de notas bordada com fios de ouro. Dentro dela
havia uma folha de papel dobrada, muito velha e
gasta. Sobre ela estava escrito: “Poema enviado por
Miriam em meu aniversário”.
Sentimentalismo...
O mundo desprezava o sentimentalismo hoje
em dia...
Mas para Célia, naquele momento, era uma
coisa muito doce...
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***