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LETRAMENTO, COGNIÇÃO E PROCESSOS DE INCLUSÃO


EM SOCIEDADES GRAFOCÊNTRICAS DIGITAIS

Daniel Mill
Doutor em Educação – UFMG. Professor e Coordenador de EaD –
Universidade Federal de São Carlos – UAB-UFSCar
mill@power.ufscar.br

Gláucia Jorge
Doutoranda em Educação – UFMG – e Professora –
Centro de Educação Aberta e a Distância/ Universidade Federal de Ouro Preto – CEAD-UFOP
glauciajorge@nead.ufop.br

1 Das sociedades Ágrafas às Sociedades Grafocêntricas Digitais

A mudança da impressão para o computador não significa o fim do letramento.


O que se perderá não é o letramento propriamente dito, mas o letramento da impressão,
uma vez que a tecnologia eletrônica oferece um novo tipo de livro e novas formas de ler e escrever.
A mudança para o computador fará a escrita flexível, mas também ameaçará
as definições de boa escrita e leitura cuidadosa que foi propiciada pela técnica da impressão

(Bolter, 1991 apud Soares, 2002a).

Quando propomos estudar questões relacionadas ao letramento1, precisamos sempre,


também, discutir os aspectos das sociedades ágrafas e grafocêntricas. Soares (1999,
2002b), Tfouni (2002) e Kleiman (1995) fazem referência a essas sociedades,
ressaltando que a transição da primeira para a segunda é marcada pelo surgimento da
escrita. Antes do advento da escrita, o conhecimento produzido por uma sociedade era
marcado pela oralidade, uma vez que sua cultura era transmitida e perpetuada através
da língua falada. A essas sociedades marcadas pela oralidade, onde não há o advento
da escrita, chamamos de “ágrafas”.

Nas sociedades ágrafas, a palavra se constituía como principal canal de acesso à


informação, característica esta pertencente às sociedades orais primárias2. Na
sociedade oral primária, a cultura se organiza a partir das lembranças dos indivíduos e a
inteligência encontra-se identificada com a memória, principalmente a auditiva (Lévy,
1993, p. 77).

O processo histórico de transformação das sociedades ágrafas em grafocêntricas foi


lento e descontínuo, mas, com o advento da escrita, a forma de organização das
sociedades ágrafas sofreu implicações profundas. A utilização da escrita passou a
viabilizar uma outra forma de comunicação entre as pessoas e possibilitou que o
acúmulo e a transmissão de conhecimentos não estivessem mais atrelados à memória
ou à língua falada. A essas sociedades que têm a escrita no centro da sua organização
chamamos de “grafocêntricas”.

A invenção da escrita, enfim, marcou a transição das sociedades ágrafas para as


grafocêntricas. Todavia, o surgimento da escrita não marcou apenas essa transição e a
conseqüente transformação dessas sociedades. Trouxe também implicações cognitivas.
Este enfoque na análise das transformações às quais as sociedades grafocêntricas
vêm, paulatinamente, sendo submetidas centra-se em estudos da linguagem, cultura e
cognição3.
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Um corolário da tese das conseqüências cognitivas da aquisição da escrita (...) é a


incorporação desse poder transformador de nossas estruturas mentais como atributo
intrínseco da escrita. O poder libertador da escrita já é predicado quando se tece o
argumento de que a posse da escrita permite que o possuidor, seja ele um indivíduo ou
um povo, dedique suas faculdades mentais ao exercício de operações mais abstratas
superiores (Kleiman, 1995, p. 31).

Esta análise Propor um enfoque nas estruturas mentais do homem inserido em


sociedades onde existe ou não a escrita, não significa direcioná-lo rumo à proposição
de uma relação de superioridade ou inferioridade entre processos mentais da oralidade
e processos mentais característicos da escrita. Veremos adiante que há “preconceitos”
(e não “deficiências” cognitivas) que levam à desvalorização das sociedades ou
indivíduos ágrafos; isto é, há uma desqualificação ou discriminação daquele que não
possui a capacidade da escrita/leitura. No cotidiano social, há diferenciações. As
sociedades marcam e discriminam quem não sabe escrever e esse fato se dá pela
própria forma de organização das sociedades grafocêntricas contemporâneas, que se
caracterizam por serem "sociedades urbanas, escolarizadas, industrializadas,
burocratizadas, marcadas pelo conhecimento científico e pela forte presença dos meios
de comunicação de massa" (Oliveira, 1995, p. 147).

Evidencia-se, aí, certa desvantagem para indivíduos com um desenvolvimento cognitivo


mais típico de sociedades ágrafas ou orais. Essa “desvantagem” do caráter ágrafo está
também atrelada ao fato de que a sociedade grafocêntrica valoriza tudo aquilo que é
postulado como característico do pensamento transformado pela escrita (Kleiman, 1995,
p. 34). Assim, não dominar a escrita tem implicações diversas para os indivíduos que
vivem nas sociedades centradas na escrita – por exemplo: participação limitada nas
práticas sociais de leitura e de escrita ou exclusão de outras práticas que demandariam,
basicamente, o tipo de pensamento anterior, transformado pela escrita.

Com a expansão do desenvolvimento tecnológico, as sociedades grafocêntricas


passaram a se organizar também em função dos benefícios que as tecnologias,
principalmente as digitais, puderam oferecer. Com a invenção da Internet, por exemplo,
surgiram outras possibilidades de comunicação e, com isso, as fronteiras territoriais
ficaram menos palpáveis e o espaço e o tempo foram reconfigurados – o que pode se
converter em mais benefícios para a já beneficiada sociedade grafocêntica.
Paradoxalmente, para usufruir desses benefícios tecnológicos contemporâneos, é
necessário que tenhamos certos conhecimentos a priori, inclusive e especialmente o
domínio da escrita. Assim, a lógica que se estabelece é a de proporcionalidade entre o
grau de conhecimento dos indivíduos e as condições de participação da sociedade.
Dominar mais conhecimentos implica melhores condições de participação ativa na
sociedade.

A expansão do desenvolvimento tecnológico nas sociedades grafocêntricas a


caracterizou como essencialmente digital. É preciso marcar a diferença entre a
sociedade tradicionalmente denominada como grafocêntrica e a sociedade também
grafocêntrica, mas marcada pelo uso intenso das tecnologias digitais. Neste artigo,
demarcaremos essa diferença definindo a primeira como grafocêntrica tradicional e a
segunda como grafocêntrica digital.

O que torna essa questão mais complexa é que as sociedades grafocêntricas


tradicionais e as grafocêntricas digitais não se distinguem entre si numa relação espaço-
tempo – coexistem, no mesmo espaço e no mesmo tempo histórico. A tradicional
sociedade grafocêntrica foi incorporada pela grafocêntrica digital, de modo que as duas
sociedades estejam paralelamente “acessíveis” aos indivíduos. Estes ora transitariam
em uma, ora em outra ou em ambas, no mesmo espaço e tempo. O problema é que,
nas sociedades grafocêntricas digitais, temos indivíduos que, por razões diversas, não
estão inseridos nas práticas sociais e culturais que implicam no uso das tecnologias
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digitais. Dessa forma, é possível enquadrar os membros de uma sociedade


contemporânea em, pelo menos, três situações distintas.

a) os indivíduos que não sabem ler e escrever e que, portanto, se encontram


excluídos da maioria das práticas de leitura e de escrita típicas das sociedades
grafocêntricas digitais. Quando muito, esses indivíduos estabelecem relação de
extrema dependência do outro para participarem de tais práticas.

b) Os indivíduos dominam a escrita, mas não participam ativamente das


práticas sociais e culturais que demandam o conhecimento das tecnologias
digitais justamente porque, na maioria das vezes, não sabem utilizar essas
tecnologias. Embora incluídos nos grupos culturais mais tipicamente letrados,
esses indivíduos encontram-se, paradoxalmente, excluídos da maioria das
práticas que implicam o uso de tecnologias digitais. De certa forma, há
“exclusão dentro da inclusão”: incluídos por serem letrados, mas excluídos por
não dominarem a telemática. É a exclusão dos incluídos.

c) Os indivíduos sabem ler e escrever e, ainda, possuem condições adequadas


de inserção nas práticas que exigem o uso da escrita – inclusive naquelas
demandadas pelas tecnologias digitais.

No cerne dessas três situações está o domínio que temos ou não da escrita, o que está
atrelado ao nosso funcionamento cognitivo. Por isso, a emergência das sociedades
grafocêntricas digitais nos induz à reflexão sobre as formas de organização do
pensamento humano na sociedade atual. Que implicações cognitivas as recentes
transformações tecnológicas trouxeram aos indivíduos?

Para Kerckhove (1997, p. 256), "a evolução da inteligência humana acompanha a


evolução não apenas da linguagem, mas ainda das tecnologias que suportam e
processam a linguagem. A primeira dessas tecnologias é a escrita. A escrita como
tecnologia intelectual humana" (Lévy, 1993), assim como outras, provoca
transformações internas no homem. Uma dessas transformações é exatamente o seu
modo de funcionamento cognitivo.

2 Inclusão, Desenvolvimento Tecnológico e Modalidade de Pensamento

O processo de inclusão nessa sociedade digital, ainda que num nível mais rudimentar,
exige, no mínimo, saber ler, escrever e conhecer as tecnologias que dão sustentação a
essa sociedade. Entretanto, pensando na perspectiva da participação efetiva ou da
inclusão digital, é preciso que esses indivíduos detenham não apenas os
conhecimentos superficiais dessa sociedade tecnológica, mas devem, especialmente,
dominar os signos da sua linguagem ou o seu código. Soares (2001), ao discorrer sobre
diversidade lingüística e pensamento, resgata o conceito de habitus4 de Pierre Bourdieu
e afirma que "grupos sociais diferentes – classes ou frações de classe – desenvolvem
processos de socialização diferentes e, portanto, geram um habitus cultural e lingüístico
próprio de cada grupo" (p. 59). Assim, o acesso às novas tecnologias implicaria,
inevitavelmente, o desenvolvimento de um tipo de habitus lingüístico que tenderia a se
converter, também, em capital cultural.

Não saber ler e escrever, não dominar a linguagem legitimada pela sociedade,
desconhecer as tecnologias, a linguagem e a língua que lhe dão suporte ou não saber
fazer uso das mesmas significam, automaticamente, exclusão do grupo beneficiado
pelas tecnologias digitais. Esse fato evidencia que, mesmo não o desejando, as
tecnologias, já na sua origem, são excludentes. Primeiro porque pressupõem
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conhecimentos a priori que não são do domínio de todos, e segundo porque para ter
esse conhecimento é preciso que, histórica e socialmente, o acesso às mesmas
obedeça a uma lógica perversa e desigual de acesso aos bens culturais produzidos pela
sociedade. Esse argumento exige um olhar mais atento em relação aos estudos sobre
as modalidades de pensamento e sua relação com as condições de acesso às práticas
de letramento mais ou menos valorizadas socialmente, para que seja possível
contextualizar os indivíduos dentro das sociedades grafocêntricas digitais. Oliveira
(1995) aborda questões referentes ao pensamento descontextualizado, ao controle da
produção cognitiva e ao procedimento metacognitivo. A autora afirma que a
característica que melhor definiria o modo de funcionamento cognitivo dos indivíduos
pertencentes aos grupos sociais mais tipicamente letrados seria o pensamento
descontextualizado ou a capacidade de elaboração cognitiva descontextualizada. Essa
seria uma modalidade de pensamento pouco observada (ou não observada) naqueles
que foram expostos a exclusões sucessivas em práticas de letramento sejam elas
escolares ou não.

O controle da produção cognitiva está relacionado à forma como os indivíduos


controlam a sua produção cognitiva. A escola é o espaço privilegiado para que essas
formas de controle se evidenciem e se desenvolvam. Um bom exemplo seria a
capacidade de seguir instruções, que está intimamente relacionada à de auto-instruir-
se, de planejar ações e segui-las para alcançar um dado objetivo. As interações sociais
estão presentes na forma de organização desse comportamento de auto-instrução.
Também é preciso pensar sobre os tipos de interação social aos quais somos expostos
no nosso cotidiano e que nos possibilitam o desenvolvimento desse tipo de controle,
que está intimamente ligado à reflexão sobre o próprio pensamento, isto é, o controle da
produção cognitiva liga-se aos procedimentos metacognitivos. Como argumenta Oliveira
(1995), são esses procedimentos metacognitivos que "indicam consciência do sujeito a
respeito de seus processos de pensamento, a qual lhe permite descrever e explicar
esses processos a outras pessoas" (p. 152). Para esta autora, esses procedimentos
metacognitivos envolvem também "uma busca intencional de estratégias adequadas a
cada tarefa específica a partir da consciência de que há diversas regras e princípios
possíveis de serem utilizados na solução de problemas" (loc.cit.). Por isso, Oliveira
(1995) acredita que "membros de grupos pouco letrados tendem a transitar com maior
dificuldade por essa modalidade de pensamento" (p. 153). Com base nesses
argumentos, parece interessante estabelecer algumas relações entre modalidades de
pensamento e novas tecnologias: Quais as relações entre mentes e máquinas?

Algumas relações entre essas duas categorias conceituais já foram estabelecidas: entre
outros autores, podemos mencionar Jesus Martín-Barbero (1997, 1999), que se dedicou
à compreensão da maquinação da subjetividade e à subjetivação das máquinas; ou
Derrick de Kerckhove (1997), que cunhou os termos psicotecnologias ou
tecnopsicologias5. Para esses autores, mentes e máquinas estão em constante
interação entre si, uma modificando a outra.

Como [as tecnologias] mudam relações no tecido social, [elas] reestruturam ou modificam
também aspectos psicológicos, especialmente aqueles que dependem da interação entre
a linguagem e o organismo humano ou entre a mente e a máquina (Kerckhove, 1997, p.
275).

Para exemplificar essa dependência entre mentes e máquinas, o autor menciona a


evolução no processo de raciocínio abstrato decorrente da primeira fotografia da terra
tirada do espaço. “Essa fotografia iniciaria um novo estado psicológico” (Kerckhove,
1997, p. 282). É como se a tecnologia da fotografia possibilitasse outro ângulo de
análise ou outro ponto de vista... Como se a fotografia criasse a possibilidade de
sairmos de nós para observarmos a nós mesmos. Uma fotografia da terra tirada do
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espaço nos leva a ser a terra a olhar para si própria, sem nunca termos ido ao
espaço. De novo, a tecnologia se apresenta como uma extensão humana.

Graças a esta fotografia, eu sou a terra, eu e toda a gente. Esta é uma nova experiência
psicológica com implicações imensas. A melhor vingança contra as psicotecnologias que
nos transformariam em extensões delas próprias é incluí-las dentro da nossa psicologia
pessoal. Um novo ser humano está a nascer (Kerckhove, 1997, p. 284).

É nessa discussão que Kerckhove cunha os termos “psicotecnologia” e


“tecnopsicologia”, sendo este último por ele definido como o "estudo da condição
psicológica das pessoas que vivem sob a influência da inovação tecnológica". Para o
autor, a nossa realidade psicológica não é uma coisa “natural”, pois depende
parcialmente de tecnologias como o telefone, a rádio, a televisão, os computadores e os
satélites, que influenciam as estruturas cognitivas do homem.

No livro As tecnologias da inteligência, Lévy (1993) define o termo ecologia cognitiva


como sendo "o estudo das dimensões técnicas e coletivas da cognição". O despertar do
conhecimento se dá nas relações estabelecidas entre o sujeito pensante e o objeto, no
processo de conhecer o objeto, resguardando o individual de cada um. À medida que o
sujeito pensante se relaciona com diferentes artefatos, em distintos ambientes sociais
ou naturais, são geradas inúmeras possibilidades de desenvolvimento cognitivo.

Esses argumentos evidenciam uma forte dependência entre modalidades de


pensamento e desenvolvimento tecnológico. Em termos de uso social da linguagem,
essa dependência tem implicações diretas sobre as relações sociais entre os indivíduos;
ou seja, não é possível separarmos o cognitivo e o social. As possibilidades de
desenvolvimento cognitivo às quais os sujeitos estariam expostos têm relação direta
com as oportunidades que a sociedade oferece aos mesmos. Assim, essas
oportunidades são desiguais, pois se relacionam às condições de acesso que os
indivíduos têm a essas tecnologias. Ao analisar os significativos componentes sociais
da inteligência humana, Pierre Lévy (1993) cunha o termo ecologia cognitiva e
questiona a relação entre o pensamento individual, as instituições sociais e as técnicas
de comunicação:

A inteligência ou a cognição são o resultado de redes complexas onde interagem um


grande número de atores humanos, biológicos e técnicos. Não sou "eu" que sou
inteligente, mas "eu" com o grupo humano do qual sou membro, com minha língua, com
toda uma herança de métodos e tecnologias intelectuais (dentre as quais, o uso da
escrita) (p. 135).

Sendo as relações sociais travadas a partir da comunicação, que por sua vez passa
pela linguagem, podemos dizer que a inteligência humana e seu processo de evolução
estabelecem vínculos diretos e intrínsecos com as mudanças nos códigos de linguagem
e suas tecnologias. Como argumentamos anteriormente, a inteligência humana evolui
acompanhando as evoluções da linguagem e de suas tecnologias de suporte e
processamento (Kerckhove, 1997, p. 256).

Já mencionamos que a forma como as pessoas estabelecem o processo de


comunicação e a linguagem adotada nesse comunicar se distinguem. Afirma-se, agora,
que essa distinção não se limita à forma de comunicação, pois atinge, também, os
processos cognitivos necessários para estabelecer a comunicação. A escrita permitiu,
pela primeira vez, que os discursos pudessem ser separados das circunstâncias
particulares em que foram produzidos – uma façanha que gerou uma situação prática
de comunicação radicalmente nova (Lévy, 1993, p. 89). Isso traz consigo
conseqüências diretas para as sociedades que se dispuserem à prática de novas
formas de comunicação. O modo como as pessoas se relacionam e, por conseguinte,
as estruturas cognitivas desses sujeitos, sofrem transformações profundas. A escrita
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exige estruturas cognitivas mais complexas, portadoras de especificidades não


observadas na oralidade primária.

Do mesmo modo, a comunicação quando mediada por telefone, computador ou por


outra tecnologia de natureza semelhante, exige processos cognitivos distintos daqueles
necessários para a comunicação escrita. Certamente, a comunicação virtual exige um
tipo de letramento diferente do letramento dito tradicional. Por englobar também a
tecnologia da escrita, o que agora estamos denominando de letramento digital tem
como conseqüência (ou como exigência) estruturas cognitivas bem mais específicas e
complexas que aquelas da comunicação escrita. São necessárias todas as estruturas
cognitivas típicas da escrita ou do grafocentrismo tradicional e, ainda, outras estruturas
mentais exigidas pelas tecnologias digitais. Seymour Papert faz uma analogia entre
“aprendizagem e uso das línguas” e “aprendizagem e uso das tecnologias” e nos
apresenta o termo fluência tecnológica como um conjunto de capacidades
computacionais multimídias. “O modo de alguém adquirir fluência em tecnologia é
semelhante ao modo de adquirir fluência numa língua. A fluência vem com a utilização”
(Papert, 1997, p. 54). Para fazer uso “adequado” das tecnologias digitais, por exemplo,
seria necessário que o sujeito pensante passe a se relacionar com tais artefatos; e,
dessa forma, desenvolveria gradativamente as estruturas cognitivas necessárias ao uso
social dessas tecnologias. A inclusão digital depende do acesso digital.

Enfim, parece explícita a dependência entre modalidades de pensamento,


desenvolvimento tecnológico, condicionantes sociais e o surgimento do letramento
digital como detentor de especificidades que não estão presentes nas sociedades grafo-
tradicionais.

3 Letramento Digital e Modalidades de Pensamento

Além dos princípios inerentes ao letramento tradicional (capacidade de exercer as


práticas de leitura e escrita), o letramento digital, segundo Buzato (2003), remete a um
"conjunto de conhecimentos que permite às pessoas participarem nas práticas letradas
mediadas por computadores e outros dispositivos eletrônicos no mundo
contemporâneo". Não pressupõe apenas um conhecimento técnico ou uma
compreensão mecânica do uso do computador (ligar e desligar o computador, manipular
teclados, conhecer programas etc.). Ele é mais abrangente e

inclui a habilidade para construir sentido a partir de textos que mesclam palavras,
elementos pictóricos e sonoros numa mesma superfície (textos multimodais), a
capacidade para localizar, filtrar e avaliar criticamente informação disponibilizada
eletronicamente, familiaridade com as “normas” que regem a comunicação com outras
pessoas através do computador, entre outras coisas (Buzato, 2003).

Do ponto de vista da comunicação, a tela do computador como novo “espaço” da escrita


"traz significativas mudanças nas formas de interação entre escritor e leitor, entre
escritor e texto e até mesmo, mais amplamente, entre o ser humano e o conhecimento"
(Soares, 2002b, p. 151). Essa autora trabalha com a hipótese de que as mudanças
advindas desse novo espaço de escrita (a “tela” do computador) tenham conseqüências
sociais, cognitivas e discursivas e, por esta razão, podem estar configurando um
letramento digital. Por isso mesmo, Soares (2002b) concebe o letramento digital como

um certo estado ou condição que adquirem os que se apropriam da nova tecnologia


digital e exercem práticas de leitura e de escrita na tela, diferente do estado ou condição –
do letramento – dos que exercem práticas de leitura ou de escrita no papel (p. 151).

Nessa definição de letramento digital, esconde-se a pressuposição de que os indivíduos


da sociedade contemporânea possuem estratégias metacognitivas distintas. Ou seja,
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aqueles que possuem um bom domínio da leitura e escrita em papel (letrados


tradicionais) não desenvolvem o mesmo tipo de raciocínio lógico e abstrato daqueles
que fazem uso, também, de tecnologias digitais (letrados digitais). Todavia, pode-se
dizer que esses dois grupos letrados possuam modalidades de pensamento
“superiores” (ou mais complexas) do que aqueles indivíduos com nível de letramento
mais baixo, como aqueles de sociedades tipicamente ágrafas. Isso quer dizer que a
vivência na sociedade da informação e do conhecimento cria situações ou condições
para o desenvolvimento de processos cognitivos distintos daqueles desenvolvidos pelos
sujeitos “tradicionalmente” letrados. Ou seja, para atuar e participar (“inclusão”) numa
sociedade permeada por tecnologias digitais é necessário que sejamos letrados
digitalmente. Pierre Lévy (1999) resume isso da seguinte forma:

A recepção de uma mensagem pode colocar em jogo diversas modalidades perceptivas.


O impresso coloca em jogo sobretudo a visão, em segundo lugar o tato. Desde que o
cinema é falado, ele envolve dois sentidos: visão e audição. As realidades virtuais podem
colocar em jogo a visão, a audição, o tato e a cinestesia (sentido interno dos movimentos
do corpo) (p. 62).

Esta mutação psicológica pela convivência com tecnologias inovadoras é o cerne do


conceito de psicotecnologia, desenvolvido por Kerckhove (1997) – ao lidar com
tecnologias novas, o homem desenvolve estratégias metacognitivas cada vez mais
rápidas. Esse processo, segundo o autor, altera inclusive a relação que estabelecemos
com o saber.

Contudo, começamos a estar habituados à velocidade. Os nossos computadores estão a


acelerar as nossas respostas psicológicas e os nossos tempos de reação muito mais do
que fizeram os aviões, os comboios e os automóveis (p. 119).

No mesmo sentido, as relações estabelecidas pelo homem com as novas tecnologias


transformam também a relação homem-conhecimento, prolongando algumas de suas
capacidades cognitivas – é o que defende Lévy (1999): "o uso crescente das
tecnologias digitais e das redes de comunicação interativa acompanha e amplifica uma
profunda mutação na relação com o saber" (p. 192).

Ao prolongar determinadas capacidades cognitivas humanas (memória, imaginação,


percepção), as tecnologias intelectuais com suporte digital redefinem seu alcance, seu
significado, e algumas vezes até mesmo sua natureza (Lévy, 1999, p. 172).

No mundo contemporâneo, em especial no ciberespaço, qualquer relação que os


homens se dispuserem a estabelecer com a natureza, com outros homens ou com
coisas, há mudanças em ambas as partes: tanto do lado de quem ou do que sofre a
interferência, quanto do lado de quem interferiu. Como em Marx, um sujeito, ao
estabelecer uma relação de interação com a natureza (outro sujeito ou outra coisa),
sofre alterações psicológicas diretas, individual e coletivamente. Com efeito, a
característica essencial das relações virtuais (a interação) estimula a capacidade que
garante a nossa autonomia individual dentro da poderosa tendência da coletivização
psicotecnológica. Esta interação é fornecida pelos computadores e ainda mais
eficazmente pelas redes de computadores (Kerckhove, 1997, p. 35). O desenvolvimento
do ciberespaço abre novos planos de existência nos modos de conhecimentos, de
aprendizagem e de pensamento: simulações, navegações transversais em espaços de
informação abertos, inteligência coletiva (Lévy, 1999, p. 218). Os artefatos influenciam
as estruturas cognitivas e vice-versa e, assim, as extensões das nossas experiências
sensoriais retornam sobre a nossa experiência psicológica. Como afirmou Derrick de
Kerckhove (1997), "hoje somos convidados a ver mais, ouvir mais e sentir mais. (...) As
nossas tecnologias já nos fazem ver mais, ouvir mais e sentir mais" (p. 126).
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Todos esses argumentos nos levam a concluir que a tela do computador como espaço
de leitura e de escrita não traz apenas novas formas de acesso à informação, "mas
também, novos processos cognitivos, novas formas de conhecimento, novas maneiras
de ler e escrever" (Soares, 2002b, p. 152), ou seja, um novo estado ou condição de
apropriação da realidade a partir da tecnologia digital: o letramento digital. Trata-se de
uma condição essencial ao exercício da cidadania; à inclusão social neste Século XXI.

4 Processos de Inclusão/Exclusão em Sociedades Grafocêntricas Digitais

A desigualdade e a exclusão se manifestam de maneiras diversas. A exclusão digital é


apenas uma dessas formas. No Brasil, por exemplo, a maioria da população não tem
condições de ter computador em casa e o acesso à Internet também não é realidade
para todos. O uso doméstico dessas tecnologias tem aumentado, mas de modo restrito
àqueles que têm condições de pagar por elas, ou seja, uma parcela ínfima da
população. Podemos falar numa popularização das tecnologias digitais ou tecnologias
de informação e comunicação, mas nada além de um progressivo e lento acesso a elas.

Todavia, se a forma de organização das sociedades grafocêntricas digitais tende a


tornar-se cada vez mais complexa e dependente das tecnologias, aqueles que desde
cedo se familiarizam com elas acumulam vantagens em relação aos que não puderam
fazê-lo. E mais, o acesso e uso de tais tecnologias pressupõem habilidades que se
aprimoram cada vez mais com o convívio direto e freqüente das pessoas com essas
tecnologias, em todas as suas possibilidades. Possivelmente, aqueles que não tiverem
condições de utilizá-las terão o potencial de desenvolvimento de suas habilidades
oprimido. Em termos de inclusão, decorre daí um dos efeitos invisíveis das implicações
socioculturais das tecnologias nas sociedades grafocêntricas digitais; isto é, as
transformações ou aprimoramento das possibilidades cognitivas do ser humano em
função do convívio com as tecnologias da época. Ter ou não condições de acesso a tais
tecnologias torna-se centro de preocupações e análises.

Não é possível fazermos referência aos processos de inclusão/exclusão em sociedades


grafocêntricas digitais sem que, antes, façamos uma reflexão sobre questões
relacionadas ao letramento tradicional. No Brasil, por exemplo, ainda estamos lutando
para criar condições de acesso à leitura e à escrita para aqueles que ainda não
dominam essa tecnologia e são, por esta razão, considerados analfabetos e excluídos
de algumas práticas sociais essenciais ao exercício da cidadania. Segundo os dados
obtidos no Censo 20006 do IBGE, no Brasil existem mais de 16 milhões de analfabetos;
ou seja, mais de 16% da população brasileira maior de 14 anos de idade não sabe ler e
nem escrever ou o faz de maneira rudimentar. Além disso, cerca de 50 milhões de
brasileiros (aproximadamente 34% da população), também maior de 14 anos, não
chegaram a cursar sequer as quatro primeiras séries do ensino fundamental.

Esse cenário é injusto e traz consigo um aspecto angustiante que pode ser desdobrado
em duas questões: a) como podemos pensar em letramento digital se uma parcela
significativa da população caracteriza-se pelo analfabetismo? b) Por outro lado,
considerando que o letramento tradicional é, em geral, pré-requisito para o letramento
digital, seria sensato providenciar a alfabetização de todos os brasileiros para, somente
depois, iniciar o processo de letramento digital?

Sabemos que o Brasil é um país de contrastes. Assim, ao mesmo tempo em que temos
uma grande quantidade de pessoas que vivem no absoluto estado de exclusão digital,
temos outras tantas que se encontram significativamente inseridas em práticas que
exigem o letramento digital. A distância social e cultural que se estabelece entre esses
dois grupos é absurda, principalmente no que se refere à sua forma de inserção nas
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sociedades grafocêntricas digitais e aos espaços que um grupo e outro terão condições
de ocupar nessa mesma sociedade.

Vimos anteriormente que as sociedades grafocêntricas digitais exigem e permitem


formas de desenvolvimento cognitivo diferentes e, por vezes, mais complexas que
aquelas necessárias e possibilitadas numa sociedade grafocêntrica tradicional.
Portanto, o domínio dos saberes valorizados para se integrar nessa sociedade digital
está diretamente relacionado às condições de acesso e usufruto de determinados bens
culturais, econômicos etc. Melhor nível de letramento digital, numa sociedade capitalista
digital, tende a implicar melhores posições no mercado de trabalho e mais qualidade de
vida e de organização do tempo. Enfim, aqueles que têm condições de desenvolver
plenamente o letramento digital tendem a pertencer ao grupo dos que mais usufruem
das vantagens que a sociedade digital oferece e que ocupam os melhores cargos (com
melhor remuneração inclusive) no mundo do trabalho. Em outras palavras, a
possibilidade de compor o grupo dos letrados digitais gera melhores possibilidades de
inclusão e condições de exercer maior poder nessa sociedade.

Nesse sentido, o abismo social que tende a existir entre um grupo e outro será maior e
mais grave do que o é atualmente. Isso parece justificar as iniciativas de movimentos
paralelos em busca de inclusão plena, inclusive pela inclusão digital. Ou seja, ao
mesmo tempo em que estamos lutando para combater os nossos altos índices de
analfabetismo, torna-se necessário, apesar de paradoxal, um sério debate sobre as
políticas de inclusão digital em nosso país, pois aqueles excluídos de diversas práticas
da cultura letrada tradicional (principalmente por não dominarem a escrita) têm uma
enorme desvantagem em relação aos que já são letrados tradicionalmente. O que dizer,
então, do abismo que os separa daqueles que, além de letrados tradicionalmente,
também são digitalmente letrados? Eis aí o sentido de discorrermos sobre o letramento
digital em um país como o Brasil que sequer conseguiu resolver a questão do
analfabetismo. Acreditamos que seja esse o embasamento que leva Bernard Sorj
(2003) a afirmar que o problema da exclusão digital não pode ser tratado como
secundário ou irrelevante.

São poucos os que argumentam que o problema da exclusão digital é irrelevante ou


secundário, já que as novas tecnologias seriam um luxo de uma sociedade consumista e
que a desigualdade deve ser combatida no lócus clássico das carências de alimentação,
habitação e emprego. (...) Embora aceitemos que as novas tecnologias não sejam uma
panacéia para os problemas da desigualdade, elas constituem hoje uma das condições
fundamentais da integração na vida social; portanto, o combate à exclusão digital deve
ser concomitante e articulado ao conjunto do elenco de práticas sociais de luta contra a
desigualdade social (p. 14).

Há, inclusive, quem acredite que o letramento digital possa contribuir direta ou
indiretamente para a redução do analfabetismo do país. Ao discorrer sobre essa
possibilidade, Buzato (2003) afirma que a escrita chega às crianças cada vez mais
através de dispositivos eletrônicos incorporados às práticas sociais, especialmente no
âmbito da família. Esse autor cita como exemplos a eletrônica utilizada nas eleições e
os cartões magnéticos para caixas automáticos (utilizados especialmente nos
programas sociais de governo). Entretanto, a utilização de tecnologias “simples” –como
terminais eletrônicos, cartões magnéticos e até consultas em bibliotecas – exige mais
do que conhecimentos relativos ao funcionamento de tais tecnologias ou o seu acesso
democratizado pressupõe, também, as habilidades cognitivas necessárias ao uso
satisfatório das mesmas. Quando se pensa que inclusão extrapola o simples nível de
usuário para o de criador da tecnologia, isso fica ainda mais evidente.

A simples convivência das pessoas com a urna eletrônica, com o cartão magnético, com
os joguinhos fliperama, videogame, mini-videogame, entre outros dispositivos mais
acessíveis às pessoas menos favorecidas socioeconomicamente, contribui de alguma
10

forma para o letramento digital e para a transformação das estruturas cognitivas dos
indivíduos. Todavia, o letramento proporcionado por essas práticas sociais não se
iguala àquele resultante de práticas ciberculturais, por exemplo; e, por isso mesmo,
pouco ou nada contribui para a redução do abismo existente entre crianças com e sem
acesso a bens de cunho cultural, econômico, político etc.

Em países com o nível de pobreza como o Brasil, o acesso a tecnologias como o


computador e a Internet ainda é privilégio de poucos – principalmente quando
consideramos que a maioria das crianças não encontra na família ou na escola o
respaldo (intelectual e material) necessário para o desenvolvimento do seu processo de
letramento digital. A desigualdade e a exclusão vão se configurando cada vez mais
violentas e, paradoxalmente, mais tácitas e silenciosas.

Na privacidade do lar, crianças privilegiadas acessam sites, jogam em rede, navegam


pela Internet, assistem a vídeos, gravam músicas etc. Como uma espécie de “habitus
do virtual”, mesmo sem perceber ou sem uma intenção pedagógica direcionada, o
simples acesso a essas tecnologias e o seu uso fazem com que essas crianças
desenvolvam habilidades cognitivas direcionadas para o uso das mesmas, ou, ainda,
potencializem aquelas habilidades que já desenvolveram em suas relações com a
família e na escola. Um bom exemplo disso são as crianças e dos jovens que, hoje, têm
acesso às TVs-interativas que circulam pela Internet. A Figura 1 mostra uma das
primeiras TVs-interativas da Internet brasileira: a ALL-TV.

Figura 1. Tela de “interação” da All-TV, Programa “Central do Brasil” (disponível em www.alltv.com.br,


acesso em: 11 out. 2006).

Ao acessar e participar da programação, o internauta/espectador precisa ouvir o que os


apresentadores dizem, ler o que as pessoas escrevem no bate-papo (chat), pensar no
que irá escrever e digitar o que deseja no bate-papo. As interações se dão, ao mesmo
tempo, entre o internauta e o apresentador do programa e entre um internauta e outro.
Enfim, o participante da TV-interativa precisa captar e processar uma informação que é
dada pelo apresentador e ao mesmo tempo interagir com apresentador e “amigos
virtuais”. Isso possibilita o desenvolvimento ou potencializa alguma habilidade cognitiva?
11

Um outro exemplo são os jogos interativos de Internet, como o popular Graffiti (Figura
2): em poucos segundos, o participante deve escolher cores e desenhar algum objeto.
Ao mesmo tempo, os outros internautas que participam do jogo devem adivinhar o
nome do objeto que está sendo desenhado. Aquele que adivinhar primeiro marca
pontos no jogo.

Figura 2. Tela do jogo interativo Graffiti (disponível em www.yahoogames.com.br, acesso em: 11 out.
2006).

Esse jogo virtual aparentemente simples estimula quais habilidades cognitivas? Há


alguma relação entre a prática do Graffiti e velocidade de pensamento, rapidez e
precisão na tomada de decisão, desenvolvimento de habilidades comunicativas virtuais,
bem como apropriação da linguagem usada nos ambientes interativos da Internet?
Certamente, essas questões estão fundamentadas nas condições efetivas de
desenvolvimento de estratégias cognitivas necessárias ao uso das tecnologias digitais
mais complexas.

Toda tecnologia é, por natureza, excludente. Não se trata de uma afirmação


determinista infundada ou de uma negação do princípio da dialética marxista, mas de
entender as tecnologias numa perspectiva mais ampliada (Mill, 2007). Questiona-se,
entretanto, se as tecnologias, por si só, fazem dessa exclusão um processo maléfico e
direcionado a apenas uma parcela da sociedade. Discutindo as tecnologias da
cibercultura, Lévy (1999) afirma que qualquer avanço nos sistemas de comunicação
acarreta necessariamente alguma exclusão: "cada novo sistema de comunicação
fabrica seus excluídos. Não havia iletrados antes da invenção da escrita" (p. 237). Não
bastasse a confirmação de que tecnologias são, “por natureza”, excludentes, elas
também promovem a concentração de renda.

Sob as condições sociais e institucionais prevalecentes em nosso mundo, o novo sistema


tecnoeconômico parece causar desenvolvimento desigual, aumentando simultaneamente
a riqueza e a pobreza, a produtividade e a exclusão social, sendo seus efeitos
diferencialmente distribuídos em várias áreas do mundo e em vários grupos sociais
(Castells, 2003, p. 217).

Como uma penumbra, esses dois rótulos (exclusão e aumento da desigualdade)


contribuem para reduzir a visibilidade de possibilidades alternativas ao uso regular de
12

tecnologias. Nesse sentido, somos levados a pensar que ignorar as tecnologias pode
ser a melhor a alternativa. Esse é um bom argumento? Parece que NÃO – é a hipótese
que estamos tentando demonstrar desde o início deste artigo.

Letramento digital direcionado para os excluídos de práticas tradicionais ou digitais de


letramento; robótica pedagógica utilizando materiais reaproveitáveis (sucatas) e
softwares livres; informática educativa para educação de jovens e adultos, considerar a
maquinação da subjetividade pela mídia; formação docente pela e para a educação a
distância virtual; uso da Internet como espaço para aprendizagem colaborativa... estas
podem ser formas de fomentar a redução da exclusão digital (ou aumentar a inclusão
social). Elas podem ser vistas como estratégias de inclusão e democratização da
informação e do conhecimento; como demonstração dos inegáveis benefícios ou
contribuição das tecnologias digitais para a promoção de diversas formas de ações
inclusivas.

Isso significa que os atuais esforços dos educadores e gestores para porem fim nos
problemas decorrentes do baixo domínio da leitura e escrita nas sociedades
grafocêntricas precisarão ser multiplicados em muito, pois, agora, dominar as
tecnologias da tradicional sociedade letrada parece-nos insuficiente. Outras
capacidades estão a ser exigidas – algumas delas estão clara e diretamente
relacionadas ao desenvolvimento de habilidades necessárias ao mercado de trabalho,
enquanto outras dessas competências são mais essenciais ao exercício da cidadania.

Alguns serviços públicos, por exemplo, são disponibilizados por meios virtuais ou
eletrônicos: é o caso dos aposentados e pensionistas do INSS que precisam
movimentar suas contas bancárias e obter ou enviar informações para o governo etc.
Aqueles que têm acesso à Internet podem fazê-lo na comodidade de seus espaços
privados, enquanto aqueles que não têm essa condição de acesso precisam sair de
suas casas e enfrentar longas filas de espera. Em ambos os casos, serão utilizadas
tecnologias digitais.

Situação semelhante ocorreu em 2004, quando a Receita Federal realizou o


recadastramento dos CPF e a declaração de isento de Imposto de Renda. Aqueles que
tiveram acesso à Internet tiveram “menos trabalho” para resolver sua situação junto à
Receita Federal. Não se trata, portanto, da simples defesa da formação para o mercado
de trabalho, mas de uma formação para a vida; formação para o exercício político-social
como cidadão. Recadastrar um CPF pela Internet ou usar um caixa eletrônico/virtual
requer saberes bastante elaborados, típicos do letramento digital. Parece ser preciso
estabelecer novos paradigmas de aquisição dos conhecimentos e de constituição dos
saberes. O que dizer da escola/educação como principal instância de “produção” do
conhecimento ou como agência privilegiada de letramento?

5 Letramento Digital: desafios para a educação

Sendo a escola a nossa principal agência de letramento, parece claro que ela seja
também uma instância de busca de conscientização das necessidades específicas do
letramento tecnológico (digital). Neste contexto que vem se configurando nos últimos
anos, a educação de um modo geral e a escola mais especificamente estão sendo
convidadas a repensar suas propostas curriculares. Práticas pedagógicas diferenciadas
estão sendo exigidas dos educadores da sociedade contemporânea. A associação entre
as áreas educacional e tecnológica tornou-se o centro dos esforços pedagógicos para
formação do cidadão. Tanto as práticas cotidianas quanto as políticas de educação têm
sido repensadas a partir das novas relações com o saber que estão sendo gestadas na
sociedade contemporânea.
13

Se há um consenso acerca das conseqüências sociais do maior acesso à informação é


que a educação e o aprendizado permanente tornam-se recursos essenciais para o bom
desempenho no trabalho e o desenvolvimento pessoal (Castells, 2003, p. 211).

Trabalhar com a Internet ou desenvolver capacidade de aprendizado numa sociedade


baseada nela exige um novo tipo de educação. Como a maior parte da informação está
disponível, destaca-se a habilidade de decidir o que procurar, como obter isso, como
processar e utilizar as informações encontradas para a tarefa específica que provocou
sua busca – esse é o cerne dos quatro pilares da educação para o século XXI,
estabelecidos pela equipe de Jacques Delors (2001).

As habilidades peculiares ao letramento tradicional já não parecem suficientes para que


as pessoas usufruam adequadamente do mundo atual. Fazer amplo uso das mídias
digitais em favor próprio exige um letramento digital, o que implica o desenvolvimento
de estruturas cognitivas bastante complexas. Do ponto de vista da inclusão, carecemos
da popularização das condições de acesso e interação com as tecnologias de
informação e comunicação; carecemos de amplas estratégias de inclusão digital, que
incorporem a necessidade de letrar digitalmente a população ao elaborarem suas
políticas públicas de educação; carecemos de propostas pedagógicas que privilegiem e
possibilitem o letramento digital. Nessa carência, vigora a espreita não apenas do
crescimento do abismo já existente entre sujeitos letrados e pouco letrados, mas
também o surgimento de um outro aspecto de exclusão entre os letrados: a exclusão na
inclusão; a exclusão dos letrados tradicionais das sociedades grafocêntricas digitais.

Em tempos de cibercultura, vimos que a denominação de sociedade grafocêntrica de


tipo tradicional parece não dar mais conta das relações sociais estabelecidas entre as
pessoas letradas. Isso constitui um grande desafio para os educadores, pois não
bastará apenas o uso adequado das tecnologias da informação e da comunicação. Na
verdade, será necessária uma mudança de mentalidade por parte dos educadores e de
todos os envolvidos nos processos de ensino-aprendizagem, incluindo gestores e
alunos.

Como manter as práticas pedagógicas atualizadas com esses novos processos [da
cibercultura] de transação do conhecimento? Não se trata aqui de usar as tecnologias a
qualquer custo, mas sim de acompanhar consciente e deliberadamente uma mudança de
civilização que questiona profundamente as formas institucionais, as mentalidades e a
cultura dos sistemas educacionais tradicionais e, sobretudo, os papéis de professor e de
aluno (Lévy, 1999, p. 172).

Essa nova lógica de ensino-aprendizagem requerida pela Era da Informação contrasta


com a carência de formação de profissionais para desenvolver atividades com o apoio
das novas tecnologias. De um lado, surgem situações propícias para o desenvolvimento
de uma nova pedagogia (investimento em equipamentos e mudança de mentalidade em
relação ao uso de novas tecnologias) e, de outro, as condições de trabalho dos
professores não se apresentam como adequadas para desenvolver tal pedagogia.

Por motivos facilmente explicáveis, a escola como principal agência de letramento ainda
parece desconhecer sua importância nesse processo. Não acreditamos que a maioria
dos (atuais e futuros) educadores esteja em condições de perceber as demandas dos
letrados (tradicional e digitalmente) e as dificuldades dos pouco letrados coexistindo na
mesma, porém desigual, sociedade. A maioria dos educadores ainda não tem
consciência das necessidades especiais que possuem aqueles excluídos das práticas
de letramento tradicional. Menos consciência ainda parece ter, em relação àqueles
excluídos das práticas de letramento digital. Trata-se de uma situação bastante grave,
se consideradas as transformações sofridas pelo processo de ensino-aprendizagem
com o desenvolvimento já atingido pelas tecnologias da informação e comunicação.
14

Certamente, a relação com o conhecimento em tempos de cibercultura sofre mudanças


drásticas e isso tem implicações diretas sobre o processo educacional.

O saber-fluxo, o trabalho-transação de conhecimentos, as novas tecnologias da


inteligência individual e coletiva mudam profundamente os dados do problema da
educação e da formação. (...) Mas o essencial se encontra em um novo estilo de
pedagogia, que favorece ao mesmo tempo as aprendizagens personalizadas e a
aprendizagem coletiva em rede. Nesse contexto, o professor é incentivado a tornar-se um
animador da inteligência coletiva de seus grupos de alunos em vez de um fornecedor
direto de conhecimentos (Lévy, 1999, p. 158).

Enfim, parecem ser muitos os desafios para aqueles que são comprometidos com a
educação. Em relação às tecnologias digitais, resumimos nosso desejo com a seguinte
afirmação: "permitir que os seres humanos conjuguem suas imaginações e inteligências
a serviço do desenvolvimento e da emancipação das pessoas é o melhor uso possível
das tecnologias digitais" (Lévy, 1999, p. 208). Isso amenizaria em muito a diferenciação
entre os que têm e os que não têm Internet. Essa lacuna entre os dois grupos
acrescenta uma divisão essencial às fontes já existentes de desigualdade e exclusão
social, numa interação complexa que parece aumentar a disparidade entre a promessa
da Era da Informação e sua sombria realidade para muitos em todo o mundo (Castells,
2003, p. 203). Está posto o desafio!!!

Como cerne desse desafio, desejamos a articulação do poder libertador da escrita para
o uso de faculdades mentais ao exercício de operações mais abstratas superiores
(Kleiman, 1995, p. 31) com o potencial amplificador das tecnologias intelectuais do
ciberespaço no desenvolvimento das funções cognitivas humanas (Lévy, 1999, p. 157).
Desejamos, como prêmio pela superação do desafio, o favorecimento, A TODOS, das
novas formas de acesso à informação e dos novos estilos de raciocínio e de
conhecimento. Desejamos a popularização da capacidade metacognitiva peculiar ao
letramento digital. Desejamos que todos experimentem modos diferentes de agir,
perceber, pensar, sentir, incorporados pela maneira de interagir com as tecnologias de
informação e comunicação e por certo modo de usar a língua (Soares, 2001, p. 59).

Notas
1
Letramento é aqui entendido como "estado ou condição em que vivem os grupos sociais
capazes de exercer as práticas de leitura e de escrita" que existem num dado contexto social e
nas quais os sujeitos se inserem (Soares, 1999).
2
De acordo com Lévy (1993), "a oralidade primária remete ao papel da palavra antes que uma
sociedade tenha adotado a escrita, e a oralidade secundária está relacionada a um estudo da
palavra que é complementar ao da escrita, tal como a conhecemos hoje" (p. 77).
3
Como temos em Houaiss (2001), o termo “cognição” significa “aquisição de um conhecimento”,
entretanto, acreditamos que neste artigo seja mais adequado compreendê-lo como sendo
“capacidade de processar informações, ou seja, de aprender”.
4
Soares (2001) explica que a noção de habitus em Boudieu "designa um sistema de disposições
adquiridas ao longo do processo de socialização; disposições compartilhadas pelos indivíduos
submetidos às mesmas condições de existência e que são, ao mesmo tempo, estruturadas pela
sociedade e estruturantes da ação, da percepção, do pensamento, do sentimento; é o habitus
lingüístico, com freqüência mencionado por Bourdieu" (p. 59).

5
Uma sistematização teórica sobre esta discussão homem-máquina foi feita por Mill e Bertoldo
(2007) e está em fase de publicação.
6
Dados do Censo de 2000 do IBGE podem ser encontrados em www.ibge.gov.br.
15

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TFOUNI, L. V. Letramento e alfabetização. São Paulo: Cortez, 2002.
16

LITERACY, COGNITION AND PROCESSES OF INCLUSION IN DIGITAL GRAPH-CENTERED


SOCIETIES

The invention of writing marked the transition of non-graphical societies to the graph-centered
ones, and brought along with it cognitive implications. The evolution of human intelligence goes
along with the evolution not only of language, but also of technologies which give bases as well
as process language. The appearance of info-based and tele-communicational technologies
raised the graph-centered societies to the level of digital graph-centered: nowadays, digital
literacy is a basic condition for citizenship. The complexity of cognitive structures typical of
contemporary urban societies raised the cognitive level demanded in order for the individual to
actively participate in society. This goes to show that we need public practices and policies
directed towards digital inclusion. In this void, the abyss which exists between the literate and the
half-literate grows, together with the birth of another aspect of exclusion: the exclusion of the
included individuals, that is, the exclusion of the traditional literate individual from the digital
graph-centered societies.

Key words: Educational Technology, Digital Literacy, Digital Inclusion, Graph-centered Societies.

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