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Daniel Mill
Doutor em Educação – UFMG. Professor e Coordenador de EaD –
Universidade Federal de São Carlos – UAB-UFSCar
mill@power.ufscar.br
Gláucia Jorge
Doutoranda em Educação – UFMG – e Professora –
Centro de Educação Aberta e a Distância/ Universidade Federal de Ouro Preto – CEAD-UFOP
glauciajorge@nead.ufop.br
No cerne dessas três situações está o domínio que temos ou não da escrita, o que está
atrelado ao nosso funcionamento cognitivo. Por isso, a emergência das sociedades
grafocêntricas digitais nos induz à reflexão sobre as formas de organização do
pensamento humano na sociedade atual. Que implicações cognitivas as recentes
transformações tecnológicas trouxeram aos indivíduos?
O processo de inclusão nessa sociedade digital, ainda que num nível mais rudimentar,
exige, no mínimo, saber ler, escrever e conhecer as tecnologias que dão sustentação a
essa sociedade. Entretanto, pensando na perspectiva da participação efetiva ou da
inclusão digital, é preciso que esses indivíduos detenham não apenas os
conhecimentos superficiais dessa sociedade tecnológica, mas devem, especialmente,
dominar os signos da sua linguagem ou o seu código. Soares (2001), ao discorrer sobre
diversidade lingüística e pensamento, resgata o conceito de habitus4 de Pierre Bourdieu
e afirma que "grupos sociais diferentes – classes ou frações de classe – desenvolvem
processos de socialização diferentes e, portanto, geram um habitus cultural e lingüístico
próprio de cada grupo" (p. 59). Assim, o acesso às novas tecnologias implicaria,
inevitavelmente, o desenvolvimento de um tipo de habitus lingüístico que tenderia a se
converter, também, em capital cultural.
Não saber ler e escrever, não dominar a linguagem legitimada pela sociedade,
desconhecer as tecnologias, a linguagem e a língua que lhe dão suporte ou não saber
fazer uso das mesmas significam, automaticamente, exclusão do grupo beneficiado
pelas tecnologias digitais. Esse fato evidencia que, mesmo não o desejando, as
tecnologias, já na sua origem, são excludentes. Primeiro porque pressupõem
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conhecimentos a priori que não são do domínio de todos, e segundo porque para ter
esse conhecimento é preciso que, histórica e socialmente, o acesso às mesmas
obedeça a uma lógica perversa e desigual de acesso aos bens culturais produzidos pela
sociedade. Esse argumento exige um olhar mais atento em relação aos estudos sobre
as modalidades de pensamento e sua relação com as condições de acesso às práticas
de letramento mais ou menos valorizadas socialmente, para que seja possível
contextualizar os indivíduos dentro das sociedades grafocêntricas digitais. Oliveira
(1995) aborda questões referentes ao pensamento descontextualizado, ao controle da
produção cognitiva e ao procedimento metacognitivo. A autora afirma que a
característica que melhor definiria o modo de funcionamento cognitivo dos indivíduos
pertencentes aos grupos sociais mais tipicamente letrados seria o pensamento
descontextualizado ou a capacidade de elaboração cognitiva descontextualizada. Essa
seria uma modalidade de pensamento pouco observada (ou não observada) naqueles
que foram expostos a exclusões sucessivas em práticas de letramento sejam elas
escolares ou não.
Algumas relações entre essas duas categorias conceituais já foram estabelecidas: entre
outros autores, podemos mencionar Jesus Martín-Barbero (1997, 1999), que se dedicou
à compreensão da maquinação da subjetividade e à subjetivação das máquinas; ou
Derrick de Kerckhove (1997), que cunhou os termos psicotecnologias ou
tecnopsicologias5. Para esses autores, mentes e máquinas estão em constante
interação entre si, uma modificando a outra.
Como [as tecnologias] mudam relações no tecido social, [elas] reestruturam ou modificam
também aspectos psicológicos, especialmente aqueles que dependem da interação entre
a linguagem e o organismo humano ou entre a mente e a máquina (Kerckhove, 1997, p.
275).
espaço nos leva a ser a terra a olhar para si própria, sem nunca termos ido ao
espaço. De novo, a tecnologia se apresenta como uma extensão humana.
Graças a esta fotografia, eu sou a terra, eu e toda a gente. Esta é uma nova experiência
psicológica com implicações imensas. A melhor vingança contra as psicotecnologias que
nos transformariam em extensões delas próprias é incluí-las dentro da nossa psicologia
pessoal. Um novo ser humano está a nascer (Kerckhove, 1997, p. 284).
Sendo as relações sociais travadas a partir da comunicação, que por sua vez passa
pela linguagem, podemos dizer que a inteligência humana e seu processo de evolução
estabelecem vínculos diretos e intrínsecos com as mudanças nos códigos de linguagem
e suas tecnologias. Como argumentamos anteriormente, a inteligência humana evolui
acompanhando as evoluções da linguagem e de suas tecnologias de suporte e
processamento (Kerckhove, 1997, p. 256).
inclui a habilidade para construir sentido a partir de textos que mesclam palavras,
elementos pictóricos e sonoros numa mesma superfície (textos multimodais), a
capacidade para localizar, filtrar e avaliar criticamente informação disponibilizada
eletronicamente, familiaridade com as “normas” que regem a comunicação com outras
pessoas através do computador, entre outras coisas (Buzato, 2003).
Todos esses argumentos nos levam a concluir que a tela do computador como espaço
de leitura e de escrita não traz apenas novas formas de acesso à informação, "mas
também, novos processos cognitivos, novas formas de conhecimento, novas maneiras
de ler e escrever" (Soares, 2002b, p. 152), ou seja, um novo estado ou condição de
apropriação da realidade a partir da tecnologia digital: o letramento digital. Trata-se de
uma condição essencial ao exercício da cidadania; à inclusão social neste Século XXI.
Esse cenário é injusto e traz consigo um aspecto angustiante que pode ser desdobrado
em duas questões: a) como podemos pensar em letramento digital se uma parcela
significativa da população caracteriza-se pelo analfabetismo? b) Por outro lado,
considerando que o letramento tradicional é, em geral, pré-requisito para o letramento
digital, seria sensato providenciar a alfabetização de todos os brasileiros para, somente
depois, iniciar o processo de letramento digital?
Sabemos que o Brasil é um país de contrastes. Assim, ao mesmo tempo em que temos
uma grande quantidade de pessoas que vivem no absoluto estado de exclusão digital,
temos outras tantas que se encontram significativamente inseridas em práticas que
exigem o letramento digital. A distância social e cultural que se estabelece entre esses
dois grupos é absurda, principalmente no que se refere à sua forma de inserção nas
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sociedades grafocêntricas digitais e aos espaços que um grupo e outro terão condições
de ocupar nessa mesma sociedade.
Nesse sentido, o abismo social que tende a existir entre um grupo e outro será maior e
mais grave do que o é atualmente. Isso parece justificar as iniciativas de movimentos
paralelos em busca de inclusão plena, inclusive pela inclusão digital. Ou seja, ao
mesmo tempo em que estamos lutando para combater os nossos altos índices de
analfabetismo, torna-se necessário, apesar de paradoxal, um sério debate sobre as
políticas de inclusão digital em nosso país, pois aqueles excluídos de diversas práticas
da cultura letrada tradicional (principalmente por não dominarem a escrita) têm uma
enorme desvantagem em relação aos que já são letrados tradicionalmente. O que dizer,
então, do abismo que os separa daqueles que, além de letrados tradicionalmente,
também são digitalmente letrados? Eis aí o sentido de discorrermos sobre o letramento
digital em um país como o Brasil que sequer conseguiu resolver a questão do
analfabetismo. Acreditamos que seja esse o embasamento que leva Bernard Sorj
(2003) a afirmar que o problema da exclusão digital não pode ser tratado como
secundário ou irrelevante.
Há, inclusive, quem acredite que o letramento digital possa contribuir direta ou
indiretamente para a redução do analfabetismo do país. Ao discorrer sobre essa
possibilidade, Buzato (2003) afirma que a escrita chega às crianças cada vez mais
através de dispositivos eletrônicos incorporados às práticas sociais, especialmente no
âmbito da família. Esse autor cita como exemplos a eletrônica utilizada nas eleições e
os cartões magnéticos para caixas automáticos (utilizados especialmente nos
programas sociais de governo). Entretanto, a utilização de tecnologias “simples” –como
terminais eletrônicos, cartões magnéticos e até consultas em bibliotecas – exige mais
do que conhecimentos relativos ao funcionamento de tais tecnologias ou o seu acesso
democratizado pressupõe, também, as habilidades cognitivas necessárias ao uso
satisfatório das mesmas. Quando se pensa que inclusão extrapola o simples nível de
usuário para o de criador da tecnologia, isso fica ainda mais evidente.
A simples convivência das pessoas com a urna eletrônica, com o cartão magnético, com
os joguinhos fliperama, videogame, mini-videogame, entre outros dispositivos mais
acessíveis às pessoas menos favorecidas socioeconomicamente, contribui de alguma
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forma para o letramento digital e para a transformação das estruturas cognitivas dos
indivíduos. Todavia, o letramento proporcionado por essas práticas sociais não se
iguala àquele resultante de práticas ciberculturais, por exemplo; e, por isso mesmo,
pouco ou nada contribui para a redução do abismo existente entre crianças com e sem
acesso a bens de cunho cultural, econômico, político etc.
Um outro exemplo são os jogos interativos de Internet, como o popular Graffiti (Figura
2): em poucos segundos, o participante deve escolher cores e desenhar algum objeto.
Ao mesmo tempo, os outros internautas que participam do jogo devem adivinhar o
nome do objeto que está sendo desenhado. Aquele que adivinhar primeiro marca
pontos no jogo.
Figura 2. Tela do jogo interativo Graffiti (disponível em www.yahoogames.com.br, acesso em: 11 out.
2006).
tecnologias. Nesse sentido, somos levados a pensar que ignorar as tecnologias pode
ser a melhor a alternativa. Esse é um bom argumento? Parece que NÃO – é a hipótese
que estamos tentando demonstrar desde o início deste artigo.
Isso significa que os atuais esforços dos educadores e gestores para porem fim nos
problemas decorrentes do baixo domínio da leitura e escrita nas sociedades
grafocêntricas precisarão ser multiplicados em muito, pois, agora, dominar as
tecnologias da tradicional sociedade letrada parece-nos insuficiente. Outras
capacidades estão a ser exigidas – algumas delas estão clara e diretamente
relacionadas ao desenvolvimento de habilidades necessárias ao mercado de trabalho,
enquanto outras dessas competências são mais essenciais ao exercício da cidadania.
Alguns serviços públicos, por exemplo, são disponibilizados por meios virtuais ou
eletrônicos: é o caso dos aposentados e pensionistas do INSS que precisam
movimentar suas contas bancárias e obter ou enviar informações para o governo etc.
Aqueles que têm acesso à Internet podem fazê-lo na comodidade de seus espaços
privados, enquanto aqueles que não têm essa condição de acesso precisam sair de
suas casas e enfrentar longas filas de espera. Em ambos os casos, serão utilizadas
tecnologias digitais.
Sendo a escola a nossa principal agência de letramento, parece claro que ela seja
também uma instância de busca de conscientização das necessidades específicas do
letramento tecnológico (digital). Neste contexto que vem se configurando nos últimos
anos, a educação de um modo geral e a escola mais especificamente estão sendo
convidadas a repensar suas propostas curriculares. Práticas pedagógicas diferenciadas
estão sendo exigidas dos educadores da sociedade contemporânea. A associação entre
as áreas educacional e tecnológica tornou-se o centro dos esforços pedagógicos para
formação do cidadão. Tanto as práticas cotidianas quanto as políticas de educação têm
sido repensadas a partir das novas relações com o saber que estão sendo gestadas na
sociedade contemporânea.
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Como manter as práticas pedagógicas atualizadas com esses novos processos [da
cibercultura] de transação do conhecimento? Não se trata aqui de usar as tecnologias a
qualquer custo, mas sim de acompanhar consciente e deliberadamente uma mudança de
civilização que questiona profundamente as formas institucionais, as mentalidades e a
cultura dos sistemas educacionais tradicionais e, sobretudo, os papéis de professor e de
aluno (Lévy, 1999, p. 172).
Por motivos facilmente explicáveis, a escola como principal agência de letramento ainda
parece desconhecer sua importância nesse processo. Não acreditamos que a maioria
dos (atuais e futuros) educadores esteja em condições de perceber as demandas dos
letrados (tradicional e digitalmente) e as dificuldades dos pouco letrados coexistindo na
mesma, porém desigual, sociedade. A maioria dos educadores ainda não tem
consciência das necessidades especiais que possuem aqueles excluídos das práticas
de letramento tradicional. Menos consciência ainda parece ter, em relação àqueles
excluídos das práticas de letramento digital. Trata-se de uma situação bastante grave,
se consideradas as transformações sofridas pelo processo de ensino-aprendizagem
com o desenvolvimento já atingido pelas tecnologias da informação e comunicação.
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Enfim, parecem ser muitos os desafios para aqueles que são comprometidos com a
educação. Em relação às tecnologias digitais, resumimos nosso desejo com a seguinte
afirmação: "permitir que os seres humanos conjuguem suas imaginações e inteligências
a serviço do desenvolvimento e da emancipação das pessoas é o melhor uso possível
das tecnologias digitais" (Lévy, 1999, p. 208). Isso amenizaria em muito a diferenciação
entre os que têm e os que não têm Internet. Essa lacuna entre os dois grupos
acrescenta uma divisão essencial às fontes já existentes de desigualdade e exclusão
social, numa interação complexa que parece aumentar a disparidade entre a promessa
da Era da Informação e sua sombria realidade para muitos em todo o mundo (Castells,
2003, p. 203). Está posto o desafio!!!
Como cerne desse desafio, desejamos a articulação do poder libertador da escrita para
o uso de faculdades mentais ao exercício de operações mais abstratas superiores
(Kleiman, 1995, p. 31) com o potencial amplificador das tecnologias intelectuais do
ciberespaço no desenvolvimento das funções cognitivas humanas (Lévy, 1999, p. 157).
Desejamos, como prêmio pela superação do desafio, o favorecimento, A TODOS, das
novas formas de acesso à informação e dos novos estilos de raciocínio e de
conhecimento. Desejamos a popularização da capacidade metacognitiva peculiar ao
letramento digital. Desejamos que todos experimentem modos diferentes de agir,
perceber, pensar, sentir, incorporados pela maneira de interagir com as tecnologias de
informação e comunicação e por certo modo de usar a língua (Soares, 2001, p. 59).
Notas
1
Letramento é aqui entendido como "estado ou condição em que vivem os grupos sociais
capazes de exercer as práticas de leitura e de escrita" que existem num dado contexto social e
nas quais os sujeitos se inserem (Soares, 1999).
2
De acordo com Lévy (1993), "a oralidade primária remete ao papel da palavra antes que uma
sociedade tenha adotado a escrita, e a oralidade secundária está relacionada a um estudo da
palavra que é complementar ao da escrita, tal como a conhecemos hoje" (p. 77).
3
Como temos em Houaiss (2001), o termo “cognição” significa “aquisição de um conhecimento”,
entretanto, acreditamos que neste artigo seja mais adequado compreendê-lo como sendo
“capacidade de processar informações, ou seja, de aprender”.
4
Soares (2001) explica que a noção de habitus em Boudieu "designa um sistema de disposições
adquiridas ao longo do processo de socialização; disposições compartilhadas pelos indivíduos
submetidos às mesmas condições de existência e que são, ao mesmo tempo, estruturadas pela
sociedade e estruturantes da ação, da percepção, do pensamento, do sentimento; é o habitus
lingüístico, com freqüência mencionado por Bourdieu" (p. 59).
5
Uma sistematização teórica sobre esta discussão homem-máquina foi feita por Mill e Bertoldo
(2007) e está em fase de publicação.
6
Dados do Censo de 2000 do IBGE podem ser encontrados em www.ibge.gov.br.
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Referências bibliográficas
The invention of writing marked the transition of non-graphical societies to the graph-centered
ones, and brought along with it cognitive implications. The evolution of human intelligence goes
along with the evolution not only of language, but also of technologies which give bases as well
as process language. The appearance of info-based and tele-communicational technologies
raised the graph-centered societies to the level of digital graph-centered: nowadays, digital
literacy is a basic condition for citizenship. The complexity of cognitive structures typical of
contemporary urban societies raised the cognitive level demanded in order for the individual to
actively participate in society. This goes to show that we need public practices and policies
directed towards digital inclusion. In this void, the abyss which exists between the literate and the
half-literate grows, together with the birth of another aspect of exclusion: the exclusion of the
included individuals, that is, the exclusion of the traditional literate individual from the digital
graph-centered societies.
Key words: Educational Technology, Digital Literacy, Digital Inclusion, Graph-centered Societies.