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Caixa preta, cubo branco, zona cinzenta: exposicdes de danca e a atencao do publico CLAIRE BISHOP 2018 A medida que a performance foi se tornando um fendmeno mais frequente em ‘museus nos Estados Unidos e na Europa, ea também passow aficar sob o fogo cruzado de historiadores e crticos de arte que veer sua ascensio como um modismo equivocado e um gesto cinico de marketing.! O critico Jerry Saltz, por exemplo, foi bastante franco ao manifestar seu desgosto com o plano de extensio do Museum of Modern Art (MoMA) de Nova York porque “privilegia eventos e agdes ao vivo, performance, entretenimento e quase nada que fica simplesmente parado para ser olhadso,[...] O novo MoMA ¢ projetado para permitir uma quan- tidade crescente de eventos cujo primeiro objetivo é produzir pequenos picos de serotonina ¢ dopamina’’ Seus comentarios encontram eco no do critico Sven Lit- ficken, que argumenta que o trabalho de Tino Sehgal manifesta “perfeita compa tibilidade com o museu temporalizado e eventizado, em que algo (qualquer coisa) deve acontecer quase o tempo todo”.’ Quando a danga étrazida para dentro do :museu, escreve ele, “os vsitantes se tornam efetivamente coperformers no |...) ‘museu enquanto um Facebook tridimensional”.* Mais recentemente, uma critica canadense reclamou que Angst [Angiistia] (2016/2017), de Anne Imhof, é apenas tum “espeticulo absolutamente instagramével”, um “repertério de imagens sus- citadas de modo aleatério" em que performers trabalham quatro horas por noite para prodiuzir imagens coreografadas com cuidado, cada uma delas basicamente ia quanto os snapchats que a documentam”.* Mesmo que nem todos HISTORIAS DA DANCA: ANTOLOGIA esses crticos estabelegam diretamente uma relagio entre a performance e as rmidias sociai, eles tendem a equiparicla ao imediatismo, a distragdo e ao entrete- rnimento, defendendo implicitamente o prazer de olhar para objetos mortos* Os estudos de performance, por outro lado, vém sendo previsivelmente menos ansiosos quanto ao espeticulo, enxergando, em vez disso, 0 ressurgimento do inte- resse artstico pela performance ea virada performativa da cultura de maneira mais ampla, por meio de teorias do trabalho pés-fordista. Como argumenta Jon McKenzie ‘em Perform or Else: From Discipline to Performance [Performar ou nao da dsciplina & performance] (2001), economias neoliberais sio obcecadas pela performance como uum indice de avaliago. Ela se tornou o ideal regulatio de nossos tempos, substi tuindo a ideia de Michel Foucault (1926-1984) em torno da vigikincia disciplinar” Tedricos da performance voltaram-se para a teoria italiana do post-operaismo como uma estrutura para a performance contemporanea e, em contrapartida, 0s post-ope raistas italianos se voltaram para performance para rlatarpriticas do trabalho pés-fordista* Paolo Virno, por exemplo, argumentou que o pés-fordismo transforma todos nés em performers virtuosos, pos a base do trabalho no é mais a produgio de ‘uma commodity como produto final (como era na linha de produsio fordista). Hoje, cla é um ato de comunicasao, projetado para um piblico, Isso é 0 cumprimento de tuma ago interna d agio em si. Em seu relat, o trabalho assalariado é baseado em. torno da posse (e performance) de gostos estticos, afetos, emogdes e — o mais impor- tante — de “cooperagio linguistca”. Atualmente, todos somos performers virtuosos.” ssa relagio cruzada entre performance e economia se demonstra facilmente com um simples relance em trabalhos recentes em museus € suas galerias. Surgiu toda uma subclasse de performers especializados em performar pegas de outros artistas, com contratos que nao sio exatamente de trabalho temporirio, mas sio, com certeza, de curto prazo e desprovidos de plano de satide ¢ seguridade social. ({sso & diferente do mundo da danga, masica, teatro e cinema, em que esses bene- ficios so estabelecidos hi muito tempo e muitas veres automaticamente.) Para a exposigdo These Associations [Estas associages] (2012), de Tino Sehgal, na Tate “Modern (Londres), foram recrutadas mais de cem pessoas, das quais havia a todo ‘momento cinquenta performando. O trabalho afetivo com frequéncia faz parte des- ‘sas obras: pede-se cada vez-mais a performers terceirizados que facam uso de suas préprias experiéncias para conferir autenticidade ¢ criatividade ao projeto de um artista ou coredgrafo. These Associations, por exemplo, exigia que os performers se lembrassem de quando tiveram uma sensagao de pertencimento ¢ quando vivencia- ram uma sensagdo de chegada. Essas memérias eram entio condensadas em contos repetidas aos visitantes ao longo dos turnos dos performers com duracio de sete horas, durante quatro ou cinco dias por semana, 20 longo de trés meses. Uma parte Crucial dessa performance era uma “cooperacao linguistica” com 0 pablico. No entanto, por mais importantes que sejam essas leituras relacionadas ao trabalho, tenho minhas reservas quanto sua utilidade. Elas nos levam, em ‘ltima instancia, aos mesmos prognésticos sombrios dos historiadores da arte: ‘CAIKA PRETA, CUBO BRANCO, ZONA CINZENTA ‘performance no museu depende de praticas neoliberais de trabalho, como con tratos precirios de curto prazo, teceirizacao ¢ trabalho afetivo. Essas questées passam a dominara discussio e ttm o efeito redutor de transformar as artes vivas em vitima dos imperativos neoliberais* Isso também nos cega para outras opera Ges que ocorrem quando a performance entra no museu. Pretendo argumentar ue esse trabalho nao ¢ apenas uma repeticao irefletida da economia neoliberal da experiéncia na qual ele se desenvolve, mas nos diz coisas importantes sobre ‘mudangas na condigao de espectador [spectatorship]." Isso pode ser melhor obser ‘vado num tipo de performance novo e hibrido que chamo de exposigio de danca Idance exhibition]: protongamento da performance para preencher os horirios de abertura de uma galeria, Trata-se de um tipo empregado tanto por artistas vvisuais que contratam danarinos, cantores atores profissionais para realizar seus trabalhos (vale lembrar de Pablo Bronstein, Cally Spooner, Alexandra Pirici, Anne Imhof) quanto por coredgrafos que desejam adaptar seus trabalhos de palco Para espagos de exposicio de modo a atingir publicos mais amplos ¢ diversos (por exemplo, Anne Teresa De Keersmacker, Xavier Le Roy, Maria Hassabi).” Encaro aqui a exposicio de danca como forma paradigmitica das novas “zonas cinzentas” para a performance que evoluiram a partir da convergéncia histérica da “caixa preta” do teatro experimental com o “cubo branco” da galeria, Uma das caracte- risticas da zona cinzenta sio as midias sociais: smartphones sto parte integrante da condligdo de espectador, em parte porque a exposido de danga surgiu ( flo- resceu) precisamente no mesmo momento em que nossas vidas foram dominadas pela tecnologia porttil onipresente. As primeiras exposigdes de danca ocorre- ram em 2007, mesmo ano da introdugio do iPhone e da computacio em nuvem. Assim, a relacao simbiotica entre a exposigdo de danga e a tecnologia digital nlo é um problema a ser menosprezado ou atenuado, mas algo fundamental para a pro- liferagao e popularidade desse género, ao passo que também da origem a aborda gens coreogriticas que se opdem a essa atragao mnitua de aparénciairrefredvel. Museus e performance ‘Como chegamos a essa situagdo, em que tantos artistas visuais estdo contratando dancarinos e que tantos coredgrafos estdo se apresentando em museus? Para res- ponder a isso, precisamos ter em mente as pequenas (mas importantes) diferengas ‘entre a “performance em artes visuais” (isto é, trabalho criado por artistas visuais) ‘€as “artes performativas” (ou seja, trabalho feito por pessoas do teatro, da danca, da masica). Precisamos, entéo, focar na relagao cambiante entre esses dois modos no decorrer do século 20, evando em conta 0 dispositivo [dispositf. apparatus] por meio do qual a performance ¢ apresentada." Considero esse dispositivo uma forma de mediagdo anterior a algo que se costuma considerar como tal ~ conven- cionalmente, a documentagao fotografica e em video. ‘CLARE BISHOP ‘Como mostraram as histdrias da arte da performance, a performance em artes visuais das vanguardas historicas em diante existia em uma relagéo anta- gonistae des-qualficada com as artes performativas. Basta pensar nas serate Futuristas ¢ no Cabaret Voltaire (1916) dos dadaistas parodiando o teatro de varie- ddades, ou no modo como os happenings 0 acionismo cruzaram 0 proscénio," provocando a participacio do pblico, ou ainda nas divertidas (e ocasionalmente ‘iolentas)subversdes de recitais de musica clissia fitas pelo grupo Fluxus (1965- 1978)” A performance em artes visuais des-qualificou as convengbes do teatro profissional, abandonando acessérios técnicos (figurino, cenério,iluminasao, som “amplifcadc}, bem como lugares fixos ea centralidade do texto (com tum arco nar Tativo e desenvolvimento de personagem) em favor de eventos visuais no mesmo cespaco-tempo que o piblico. Muitas dessas performances usam partituras abre- vviadas em ver de roteiros elaborados, sendo sub-ensaiadas precisamente para fevocar a variagio, 0 risco, 0 acaso ea imprevisibilidade." As contingéncias de Tocagao e pablico eram parte importante das reivindicagées da performance em arte visual em termos de realismo, autenticidade e antivirtuosismo democritico, 'A forca ideologica da performance em seu aspecto mais experimental era firmada na singularidade do evento, pois a repetigao indicava nio apenas uma diminui- ‘eo de energia erisco, como também uma proximidade indesejada com 0 teatro Comercial, Essa recusa nio s6 da substancia do objeto, mas também dos imper vos comerciais, garanti que a performance visual pudesse sustentar sua reputa- do como algo institucionalmente irritate.” (Os locais onde essas performances de artes visuais eram apresentadas 20 piblico costumavam oscilar entre dois tipos: de um lado, teatros de varieda~ diese salas de shows (futurismo, dadé, Fluxus); de outro, galerias e lofts (happe- ning, body art)” Ocasionalmente, as duas estruturas eram rejeitadas em favor ddas ruas e de outros tipos de espacos puiblicos, Por volta do inicio dos anos 1980, fos artistas estavam mais uma vez gravitando em dirego a espacos como clubes t cabarés, aparecendo ao lado de miisicos alternativos, comediantes e dangari hos, em parte por causa de mudancas no financiamento ¢ em parte por um desejo ide autonomia econdmica, Nos anos 1990, o modelo do cabaré perdeu seu ape: pelo menos nos Estados Unidos, a lista de artistas visuais que performavam 20 vivo era pequena e uma ver-meis oscilava entre 0 museu (Andrea Fraser) ¢@ rua (William Pope.1). Todavia, de modo geral, essa geracio mais jovem se viu mais atraida pelos elevados valores de producio que eram possiveis ao performar para trabalhos em video ou em fotografia, o que se vé de maneira mais espetacular no trabalho de Matthew Barney Na Europa, durante essa mesma década, galerias encontraram um modo de acomodar dois tipos de instalagio ao vivo: a estéticarelacional, com sua ativagao do espaco da galeria por meio de participacio e convivialidade, €a performance dlelegada — um tipo de trabalho em que artistas contratam nao protissionais, mui- tas vezes para representa sua propria categoria demografica social (mulheres, CCAIKA PRETA, CUBO BRANCO, ZONA CINZENTA ddesempregados, imigrantes etc). Informada por trabalhos do Fluxus ¢ da arte conceitual baseada em instrucées, esta ultima tendéncia desvinculou a perfor- mance da figura de um artista carismatico singular. Tao logo o artista individual {oj substituido por uma forga de trabalho de aluguel, uma performance podia per- sistir em um espaco por dias, semanas ou até meses. Performers eram pagos por hora e organizados por escala de servico, tornando-se, assim, substituiveis e inter cambiaveis.” Dessa maneira, a performance em artes visuais se tornou sujeita& dlivisio de papéis observada na misica: 0 performer de um lado e 0 compositor de outro, Essas “instalagdes ao vivo” se tornaram prontamente performaveis porque no havia um original e suas instrugbes podiam até ser adquiridas por museus —algo que pode ser mais bem observado na ascenslo meteérica de Tino Sehgal (cuja primeira grande exposicdo individual ocorreu em 2005), mas também na nova disponibilidede mercadoldgica de trabalhos oriundos de geragdes mais anti gas? O evento-partitura, cuja iterabilidade™ aberta era tao radical e nao passivel de se tornar commodity nos anos 1960 — implicando que toda e qualquer pessoa podia realizar o trabalho —, se tornou, desde 2000, uma forca estabilizadora. Uma maneira, portanto, de garantir continuidade estética entre diferentes iteragies, de firmar significado e valor em uma figura de autoridade garantida e, com isso, per- mitir que a performance ao vivo adentre o mercado. Simultaneamente, durante os anos 1990, uma série de artistas comeoua se interessar pela reconstituigio como modo de fazer performances, revisitando trabalhos anteriores e eventos histéricos de modo a explorar a diferenca por meio da repetigao..* Um punhado de curadores adotou, entao, a estratégia da reconsti tuigio como maneira de avaliar a apresentacao histdrica da arte da performance zo contexto de exposigdes:e se artistas fossem convidados para reencenar suas performances e eventos, em vez de simplesmente representd-los por meio de obje- tos fotografias na galeria? A exposicao Out of Actions [Sem/A partir de acoes] (1998), no Los Angeles Museum of Contemporary Art, trazia reconstituigdes de John Latham (1921-2006), Raphael Montafiez Ortiz e Wolf Vostel (1932-1998), entre outros, acompanhando o que, de resto, era uma exposicio convencional de ‘museu.® A Short History of Performance Art (Uma breve historia da arte da per- formance] (2002-2006), na Whitechapel Art Gallery (Londres), por outro lado, surgiu da frustragdo da diretora Iwona Blazwick de ter que representar a historia da arte da performance unicamente por melo de fotografias. Artistas como Robert Morris (1931-2018), Carolee Schneemann (1939-2018) e Martha Rosler foram con- Vidados a revisitar e reencenar seus pr6prios trabalhos (hoje historicos), as duas tltimas com assistencia de jovens performers." Pode-se dizer que a reconstituicao de performance mais bem-sucedida foi a série Seven Easy Pieces (Sete pegas ficeis] (2005), de Marina Abramovie, em que ela reperformou trabalhos clissicos de body art de contemporaneos seus ao longo de sete noites no Guggenheim Museum (Nova York). No entanto, ao fim da década tornou-se mais comum que reconsti- tuigdes fossem terceirizadas com profissionais da danga, como na retrospectiva de Abramovié no MoMA, Marina Abramovié: The Artist Is Present [Marina Abra movie: a artista esta presente] (2010) — uma exposicao cuja escala e popularidade também marcaram a sentenga de morte da reencenagao.” (Desse ponto em diante, a ideia de reperformar um original pareceu perder todo apelo e foi substituida pela interminavel partitura reperformével) Em seguida ao modismo da reencenagao, museus comecaram a programar performances, ainda que no modelo de eventos tinicos. No inicio dos anos 2000, Tate convidou artistas visuais, mas também coredgrafos e masicos, para usarem espacos dentro e no entorno do Turbine Hall, na Tate Modern, das Duveen Gal- Ieries, na Tate Britain, e nos espacos de colegio em ambos os locais.* A distingio nnesse caso foi a expansio da performance para incluir as “artes performativas” especialmente a danca, a misica e o teatro fsico. Nao foi a primeira ver que uma programacio interdiciplinr assim ocorrew em museus: de meados dos anos 1960 tg fins dos anos 1980, o Whitney Museum of American Art (Nova York) reali- jou concertos musicaise noites de danca de baixo custo em seu prédio na Madi son Avenue, eventualmente até reformulando suas galerias para complementar os eventos." Contudo, foi somente em fins dos anos 2000 que um pequeno nimero de museus (incluindo o Whitney) contratou curadores dedicados & performan- ce. Hoje em dia, a performance se tornou até mesmo uma presenca de primeira necessidade em feiras de arte, embora mais como adorno ornamental do que ‘como parte integral das vendas. Em 2014, a Frieze Art Fair, em Londres, intro uziu uma segio chamada Live [Ao vivo], ao passo que, em 2016, a Foire Inter. rationale d’Art Contemporain (Paris) langou o Parades [Paradas|, urn festival de performance produzido em colaboracio com o Louvre." ‘Assim, a incursio das artes performativas no espaco da galeria coloca uma pressio considerivel na historia eno cardter da performance em artes visuals até foie. Desde seu principio nas primeiras décadas do século 20, a performance em artes visuais teve uma relacio dificil com insttuicSes de arte — mais obviamente porque sua efemeridade impedia a aquisigio convencional: nie se pode comprar performers, Porém, essa relagio também era tensa por causa do conteidlo das per Formances, que tendiam historicamente para o transgressvo, tummultuando a fron teira performer/piblico, wltrapassando os limites do corpo, perturbando normas t expectativas de género, recusando a temporalidade digerivel do entretenimento, lamando por politicas de oposicio e operando com taticas de guerrlha. Essa pro- pensio a indisciplina e rebeldia exacerbou o problema de conceder um la dentro te museus paraa performance em arts visuais. A ideia de “docuumentagao” em fotografas, filmes ou reliquias sagradas fetichizadas) nunca pareceu ser uma solu- o satisfat6ria,falhando em capturar a intensidade da boa performance, a qual Sempre ria uma dindmica social que excede o trabalho em si. Essa relagdo evasiva ‘com a substancia de objeto, além de uma inclinagio pelo transgressivo, consegullu tanter a performance em artes visuals fora dos museus — e das hist6rias da arte — durante boa parte do século 20. CCAIKA PRETA, CUBO BRANCO, ZONA CINZENTA Por isso, éparticularmente notivel que, conforme nos aproximamos da ter- ceira década do século 21, prevaléncia da performance em museus assuma com predominancia a forma de danga contempordnea.® Encontrar uma explicagao para essa mudanga nio é apenas uma questio de mapear 0 modo como museus tenderam a colonizar outras disciplinas, mas de entender mudancas dentro do teatro e da danca que facilitaram essa conjetuira. Nos estudos de performance muito se discutin acerca do “teatro p6s-dramitico”, termo proposto por Hans- “Thies Lehmann para descrever a descentralizacio do texto como base epistemo- ligica do teatro. Ele argumenta que o texto é substituido por formas abstratas: iiisica, mas em especial imagens visuais (apontando o Wooster Group e Robert Wilson como pioneiros proeminentes da miisica e da imagem, respectivamente).” Para Lehmann, tanto a abstracao da pintura modernista quanto as rupturas rad cais com a convengo por parte da performance em artes visuais s20 pontos cons~ tantes de referencia para o teatro pés-dramatico. Na danga, por outro lado, é notavel que o interesse de museus e galerias temha se focado em coreografias pertencentes somente a determinadas tradi- 6es, sobretudo as de Merce Cunningham (1919-2008) e do Judson Dance Theater (1962-1964), sendo que ambas estimularam ricas colaboracées interdisciplina- res com artistas visuais.** Os Events [Eventos] de Cunningham proporcionaram um modelo histsrico para a danga em galerias. Essas performances de noventa ‘minutos recombinavam elementos de seu repert6rio preexistente em novas com- binacées para locais nao teatrais, como museus, depSsitos, gindsios, quadras de basquete, espacos estudantis e pracas. O primeiro ocortew em Viena no ano de 1964, e desde entao ji houve mais de oitocentos. Os Events ndo sio frontais, podendo ser vistos de todos os angulos, eo publico pode ser itinerant, muito cembora, na realidade, tenda a ser estitico. Por outro lado, os dangarinos e per- formers associados a0 Judson Dance Theater empregaram estratéias equivalen- tes aquelas que entdo vinham sendo desenvolvidas nas artes visuais, sobretudo um interesse na dessubjetivacao e no cotidiano, como o uso de partituras, tarefas « procedimentos de acaso, 0 corpo nao treinado e movimentos pedestres, como andar, inclinar-se e correr. Tal des-qualificacao foi encarada como uma rei ‘lo tanto da expressividade da danga moderna como da conformidade dos cor- os treinados da Merce Cunningham Dance Company. Houve performances no gindsio e no santuario da Judson Memorial Church, em teatros da cidade de Nova, York, em galerias de arte ao ar livre (em telhados, pragas, paredes) e também em locais mais associados aos happenings (como a fazenda de George Segal em North Brunswick, no estado de Nova Jersey).”” ‘No entanto, nio é apenas uma linhagem coreografica reconhecida que satis- faza sede de curadores contemporaneos por danga. Desde os anos 1990, a coreo- {grafia em si se tornou mais abstrata e conceitual, muitas vezes em resposta a desenvolvimentos nas artes visuais. © termo “danea conceitual” surgit. nos anos 1990 como uma maneira de descrever a abordagem neutra, orientada por ideias, CLARE BISHOP dde uma geracdo mais jovem, que se inspirou na objetividade de Cunningham e do Judson Dance Theater, refletindo sobre o teatro enquanto instituiga0. Como explica a tebrica da danga Bojana Cvejié: ‘A “danca conceitual” europeia na década de 1990 surgiu a partir de ‘uma critica da representacao no teatro, levando o desmascaramento do espeticulo de [Yvonne] Rainer ainda mais longe, rumo a uma des- construcio da teatralidade em atos de fala e procedimentos autorrefe- renciados, com ready-mades,citagdes e colagens (.." E revelador que coreégrafos convidados com mais frequéncia para perfor- ‘mar em museus ¢ galerias costumem trabalhar dentro dessa tradigdo conceitual (entre eles, Jerome Bel, Boris Charmatz e Xavier Le Roy) ou se formaram em esco- las de arte (Maria Hassabi).Eles se interessam por artes visuais e tém consciéncia conhecimento da critica institucional.” Essa polinizacio cruzada com asartes ‘visuais resulta em novas formas de virtuosismo e em uma atenglo a exposigdo em si enquanto forma. Isso também instiga uma adaptagio a nova economia da pro- uso cultural, com flexibilidade para lidar com trabalhos site-specific, baseados ‘em projetos, capacidade de adaptar pegas existentes ao espaco-tempo de uma ins- tituigio diferente (0 musew), produgio de coreografias que podem operar em um fiuxo continuo sem comeyo, meio ou fim e disposigdo a expor nao s6 0 proprio trabalho, como também sua mio de obra (por exemplo, ao colocar ensaios & mos: tra), Porém, 0 resultado também é uma despolitizagio curiosa: quando a danga se move para dentro do museu, ela quase garante uma auséncia de critica institucio- nal, porque sua instituigao esté em outro lugar — no teatro." Retemporalizacao ‘A migeacdo das artes performativas para o espago do museu traz consigo uma série de efeitos, entre eles a retemporalizagao da performance, do tempo do evento a0 tempo da exposigao. Uso a expressio “tempo do evento” para fazer referéncia a um conjunto de convengies teatrais que nio sio apenas temporais, ‘mas também comportamentais e econdmicas. Chegar a um local designado, em geral durante a noite, para ocupar uma poltrona em uma performance que cexige ingresso, que alguém assiste na companhia de outras pessoas do inicio a0 fim.” Usareio termo “caixa preta” como forma abreviada para essa temporal acho teatral e seu modo de atencio.** O “tempo da exposigdo”, por outro lado, é mais difuso ¢ ligado as horas itis, geralmente das 10 as 18 horas. Ele é gover: nado por um assistir antodirigido que nao € sincronizado ao das outras pessoas presentes e também pela mobilidade fisica no lugar da inércia. Pode-se entrar e sair da exposigio a qualquer momento, Farei referencia a esse dispositivo como ‘CAIKA PRETA, CUBO BRANCO, ZONA CINZENTA “eubo branco’, usando-o como forma abreviada para todos 0s contextos de galeria, independentemente de sua real arquitetura e decoragao. Tanto a caixa preta quanto o cubo branco sio, ¢ claro, espagos carregados de sentido ideoldgico. O cubo branco é uma mistura de neutralidade, objetividade, atemporalidade e santidade, uma combinagao paradoxal que reivindica raciona: lidade e distanciamento ao passo que também coniere um valor e significdncia quase misticos para o trabalho." E também o arquétipo do espaco de exposi ‘¢io moderno. Ele comegou a surgir na Europa na primeira década do século 20, tonando-se, de modo gradual, a norma para galerias em todo o mundo. Conti rua sendo hoje o padrao global igualmente pare feiras de arte, museus e espa: os alternativos. A caixa preta, por outro lado, ganhou popularidade nos anos 1960, especialmente nos campi universitarios, nos quais podia fazer uso de uma forga de trabalho estudantil de baixo custo ou até de custo nenhum.* Embora sua arquitetura seja uma consequéncia do “teatro flexivel” edo “teatro modular” ddos anos 1950, a caixa preta ndo foi cristalizada ideologicamente até a publicagao de dois livros em 1968: Emr busca de um teatro pobre, de Jerry Grotowski (1933- 1999), e Oespaco vasio, de Peter Brook. Ambos os diretores buscaram eliminar as armadilhas teatrais, removendo a tecnologia elaborada e cenatios de modo a expora relacao ator-piblico que percebiam como a esséncia do teatro."*"Nas pala- vas de Grotowski: “‘Deixemos que a cena mais dréstica acontega face a face com 0 ‘espectador, de modo a que ele esteja de bracos com o ator, possa sentir sua respira ‘40 e seu cheiro”.* Para ambos, o que motivava esse desejo de proximidade era a nova tecnologia. O teatro seria incapaz de competir com as sedugGes do cinema e da televisio, mas podia oferecer imediatismo, proximidade e comunhio. Tanto 0 cubo branco quanto a caixa preta seriam supostamente estrutu ras neutras que conduzem e hierarquizam a atengo, construindo assim sujet tos espectadores. Ambos sio fundados em convengdes comportamentais nio dlitas e estabelecidas hd muito, No ambiente da caixa preta como no do cubo branco, interrupgdes tendem a ser mais auditivas do que Spticas — tosses, rumo. res, alguém comendo ou falando alto demais. Ambos disciplinam e moldam um modelo burgues do sujeito que monitora suas vizinhas e vizinhos em busca de indicios de comportamento nio conformista.® Assim, quando a danga ¢inserida em uma exposicdo, rompem-se as convengées do espectador tanto da caixa preta ‘quanto do cubo branco: uma perspectiva de um tinico ponto (sentado no teatro, «em pé diante de um trabalho) é substituida pelo multiperspectivismo e pela ausén- cia de uma posigao ideal para assisir. E raro que a ikuminacio dirija nossa atengio Gla ainda costuma ser dirigida & arte que se encontra nas paredes};o som, quando usado, tende a rebaterterrivelmente pelo espaco. Por causa da posicao indefinida do espectador, os protocolos em torno do comportamento do publico sto menos estveis e mais abertos &improvisagdo. E por isso que o ato de fotografar com smartphones predomina nas performances em museus, mas continua sendo rece- bido com cara feiano teatro.” ‘CLARE BISHOP ‘A migracdo das artes performativas para 0 museu ea galeria deve, portanto, ser lida nao (apenas) como uma tentativa cinica da parte dos museus para atrair publicos, mas como uma consequéncia direta das mudangas do cubo branco ¢ da caixa preta sob pressio das novas tecnologias, convergindo, eventualmente, para produzir um dispositivo hibrido, Desde os anos 1980, «caixa preta se tornow mnais orientada pela tecnologia, menos preocupada com a comunhio existencial ddo que coma imersio multimidia.* Desse modo, a exposicio de danga pode ser ‘vista como uma tentativa de recapturar a intimidade ¢ a experimentagao imputa- das 4 caixa preta numa era em que esses valores nao sto mais sindnimos daquele dlispositivo. Hoje, 0 cubo branco é aonde voce vai para ver performers suarem." ‘A caixa preta também se abriu para trabalhos de durago mais longa e publico ‘mével, mais semelhantes a instalagoes de arte (por exemplo, as “refracoes” de Sca- “fold Room [Sala de andaimes| [2014], de Ralph Lemon). Apesar da mobilidade do pblico nessa situagdo de instalacao, as paredes escuras ea configuracio teatral finda reforgam tacitamente um protocolo de atencio absorta que desencoraja a tirar fotos, conversar e enviar mensagens. Enquanto isso, 0 cubo branco, sob pressio da tecnologia digital, vem sendo recalibrado como um espaco para documentagao ilimitada. Tirar fotos de ins talagdes, ou sefies com elas, ¢ publicé-las em plataformas online que hibridizam piblicoe privado. Por volta de 2008, os museus comegaram a abandonar as restr {oes de fotografia que antes impunham agora até sugerem hashitags com as quals os visitantes podem inserir tags nas imagens que sobem no Instagram, no Twitter ‘eno Flickr. Assim, o movimento da caixa preta ao cubo branco coloca em tenso ‘Guas ideologias espaciais distintas e dois conjuntos de convengDes comportamen- tais, A exposicio de danca confere temporalidade a uma instituicdo que costuma negaro tempo a0 colecionar objetos para a posteridade, mas que agora precisa se confrontar a um corpo que deve ser alimentado, vestido, abrigado, medicado te pago.* Enquanto isso, atencao sedentiria efocada da caixa preta confronta a iluminagao inclemente do cubo branco e seus piblicos miltiplos e méveis munidos de smartphones — ou, ocasionalmente, confronta-se até mesmo com piiblico nenhum.” ‘0 desconforto advindo da mudanga da caixa preta para o cubo branco pode ser visto na relutancia de certo setor do mundo da arte em usar 0 termo “perfor- ance” para descrever as artes vivas em espacos de galeria: em ver-disso, dia-se {que a performance se aproxima da “condisio da escultura’. Ao longo dos anos 3000, Tino Schgal argumentou que suas situacOes [situations] eram mais bem pensadas enquanto esculturas, presentes na galeria durante todo o dia til — dima analogia que se observa melhor em seus trabalhos iniciais, como Kiss (Beijo] (2004).* Ao discutir a histarica retrospectiva de Abramovié no MoMA, Klaus Biesenbach observou que os performers que reconstituiriam suas obras “estarao presentes como se fossem esculturas”.” Rebecca Schneider sugeriu que essa insis- tencia em reformulara performance como escultura é uma maneira de validar (CAIKA PRETA, CUBO BRANCO, ZONA CINZENTA esse trabalho diante das “artes bagungadas, impuras e historicamente feminiliza- das do teatro e da danga, que se baseiam na performance”. Para Schneider, a nnhara performance &escultura afiia-a aos discursos de atemporalidade, maestria eautoria singular desta — e, eu acrescentaria, separa-a com clareza de qualquer associagZo com o teatro e o entretenimento.” A qualidade estitica e atemporal da escultura, porém, é um paradigma menos preciso para a performance no muse do que o loop autamatizado, um mecanismo similar 20 do CD e do DVD, introd zidos respectivamente nos anos 1980 ¢ 1990. 0 modo pelo qual as artes performa- tivas se acomodam ao tempo da exposicio é sobretudo 0 da repetigao — de scrips, gestos ou movimentos —, num loop a0 vivo com a durasao do hordrio comercial ‘Essa retemporalizagio da performance e sua relacao intrinseca com a tec nologia podem ser claramente observadas em trés exemplos recentes. PLASTIC [PLASTICO] 2015), de Maria Hassabi, desenvolvida para o Stedelifk Museum (Amsterda), para o Hammer Museum (Los Angeles) ¢ para 0 MoMA, €0 que ela chama de “instalagao ao vivo”, presumidamente porque, & primeira vista, trata- se de uma antitese da ativago: em ver de animar 0 espago, PLASTIC formava ‘um contraponto com uma composicao de corpos parados. Em dados momen- tos, 0s dangarinos se pareciam até com cadaveres inanimados, como se tives sem acabado de receber um tiro ou de ser abatidos por uma radiagao perigosa, ‘uma impressio particularmente notavel quando a instalacio era vistaa partir das galerias superiores. Essa horizontalidade abjeta contrastava com 0s Visitan- tes verticais que ou passavam por cima dos dancarinos como se nada estivesse acontecendo, ou os encaravam, se aproximavam e automaticamente pegavam seus smartphones para capturar 0 que viam — as vezes, em uma proximidade intrusiva e desconfortavel para os performers. Todavia, 0 movimento é central em PLASTIC: ele ¢ espontancamente progressivo, ao ponto de ser apenas visive. Foram necessarias duas horas, por exemplo, para Hassabi descer os 24 degraus dda escadaria principal do MoMA enquanto sucess6es de visitantes passavam se arrastando por ela. 0 virtuosismo foi reformulado como uma intensidade de camera lenta e autocontrole diante de uma multidao imprevisivel. Como a maio: ria das performances em museus, PLASTIC era também desconcertantemente low tech: sem palco, sem poltronas, sem iluminagao especial para demarcar a area dda performance e sem objetos ou efeitos especiais. Tampouco havia um inicio ou fim oficial para o trabalho, apenas uma performance continua durante 0 horério {de funcionamento da instituicao. PLASTIC se distingue da escultura e da instalacdo no paradigma da histé- ria da arte por sua organizagio do tempo. Conforme afirma Hassabi: “como pre cisamos sustentar o Joop, estrutura essencial do trabalho, 0 ato de contar se torna ‘muito importante. Cada performer conta tudo 0 que fazemos,¢ nosso ritmo de contagem ¢ sincronizado com o cronémetro do iPhone pela manha — feito peque- ras maquinas”** Ao passo que muitos coreégrafos desde Cunningham aban: donaram a batida musical em favor do tempo do reldgio, 0 que me interessa no ‘cuaRe aIsHOP comentério de Hassabi ¢ sua comparagdo especifica do dangarino com o iPhone,

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