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O Aroma do Tempo 129 4, VITA CONTEMPLATIVA — OU DAVIDA REFLEXIVA % ; fodos vés, que amais 0 trabalho selvagem e 0 rdpido, 0 Novo, O estranho, suportais-vos mal a vés mesmos, a vossa diligéncia é fuga e vontade de es ; ;quecimento do vosso pré- prio ser. Se acreditésseis mais n 1a vida, lancar-vos-ieis me- ‘ nos no instante. Mas néo tendes em vés contetido bastante Para a espera — e nem sequer para a preguiga! FRIEDRICH NIETZSCHE O pensamento foi sempre, como Arendt assinala em A Con- digéo Humana, privilégio reservado a alguns poucos. Mas, precisamente por isso, o ntimero desses poucos nao se reduziu ainda mais na atualidade'®. Este juizo nao é completamen- te justo. Talvez seja um trago distintivo do presente que os pensadores, j4 escassos, escasseiem ainda mais hoje em dia. Talvez tenha prejudicado muito o pensamento 0 facto de a vi- ta contemplativa ter-se visto cada vez mais marginalizada em beneficio da vita activa e de a inquietagao hiperativa, a agita- Go e 0 desassossego atuais nao se casarem bem com o pen- samento, que este,em. consequéncia de uma pressaio temporal cada vez maior, tenda a nao fazer mais do que reproduzir 0 mesmo. Nietzsche j4 denunciara que a sua época era pobre em grandes pensadores. Atribufa essa pobreza a “uma ele ago e uma ocasional depreciagao da vita contemplativa > “o trabalho e o céu — outrora parte do séquito da grande deusa Satide — parecem por vezes causar estragos @ ae ta de uma doenga”!7®, Uma vez que falta temp’ oa ay € tranquilidade no pensar, as posigdes divergentes rep 169 H. Arendt, Vita activa, op. cit..p. 414. pp. 234 € Segs. 170 F.Nietasche, Menschliches, Allzumenschliches lop. cit PP 130 Byung-Chul Han -se. Comegam a odiar-se. A inquietagio generalizada nao permite que o pensamento aprofunde, que se distancie, que chegue a algo verdadeiramente outro. O pensamento ja nao dita o tempo, mas é 0 tempo que dita o pensamento. Dai, que este se torne tempordrio e efémero. Deixa de comunicar com o duradouro. Todavia, Nietzsche cré que estas queixas acabarao por emudecer quando “regressar, pujante, 0 génio da meditagio”!7!, O pensar, no sentido profundo, no se deixa acelerar fa- cilmente. O que o diferencia do calcular (Rechnen) ou do mero entendimento. Este torna-se muitas vezes arrevesado, Dai que Kant tenha chamado 8 sensibilidade ¢ 4 sagacida- de “uma espécie de luxo da cabeca”!””. O entendimento sé conhece 0 dever e a necessidade, mas nao 0 luxo, que com- porta um distanciar-se da necessidade e da unidireccionali- dade. O pensamento que se eleva acima do cdlculo possui uma temporalidade e uma espacialidade particulares. O seu curso nao é linear. O pensamento é livre precisamente por nao se poderem calcular o seu tempo e o seu espago. O seu curso tende a ser descontinuo. O célculo, em contrapartida, segue um percurso linear: Por isso, pode ser localizado com exatidfo e deixa-se acelerar de bom grado. Nao olha para tras. Fazer um rodeio ou recuar um passo néo tem senti- do, porque tem sé por efeito postergar o célculo, que é uma mera fase do trabalho. Hoje pensar equivale ao trabalho. No entanto, 0 animal laborans é incapaz de pensar. Pensar, pensar coisas que tenham sentido, Tequer algo que nao é um trabalho. Originalmente, pensar (sinnanm no antigo alto alemao) significava viajar (reisen). O itinerdrio do pensar é incalculdvel ou descontinuo. O Pensamento calculador nao est4 nunca a caminho. 171 Bbid., p.235 1721, Kant, Anthropologie in Pragmatischer Hinsicht, Werke in 10 Ba 0, Darmstadt, 1983, p.512. ferke in 10 Banden, vol. 1 O Aroma do Tempo z 131 Sem tranquilidade, nao (das Ruhende). A absolutiznests ao acesso ao repousado i Fo sei. vita active 2 da tudo aquilo que no seja um ato, uma siideieiag Bs > A pres- sio temporal generaliza: iquil f secoxotiids tonsa ene fs desvio € 0 indireto. Por figura, € um rodeio. $6 a amorfia aa foe forma, cada retira 0 indireto da lingua, esta aproxima-se do iat a ordem. Também @ amabilidade e a cortesia remetem para o rodeio eparao indireto. Em contrapartida, é para o direto que a violéncia remete. Quando faltam ao andar as vacilagdes e as interrupg6es, o andar entorpece-se sob a forma de uma mar- cha. Sob a press&o do tempo, desaparecem do mesmo modo a ambivaléncia, o indistingufvel, o discreto, o irresoltivel, 0 indeterminado, o complexo ou 0 aporético de uma brusca ni- tidez. Nietzsche releva que desaparecem 0 ouvido e a vista no que se refere & melodia dos movimentos. A propria melodia € um rodeio. S6 0 monétono é direto. O pensamento distingue- -se igualmente por uma melodia. O pensamento desprovido de todo o rodeio reduz-se a um calcular. A vita activa, que desde a modernidade tem vindo a ga- nhar em intensidade em detrimento da vida contemplativa, tem uma participagdo essencial na compulsdo & aceleragio moderna. Também a degradagio do homem em animal labo- rans 6 uma consequéncia deste novo desenvolvimento. Tan- to a intensidade do trabalho como ada agaio remetem para ° primado da vita activa na modernidade. Mas Arendt distin- Ho, i tando o primei- inj balho da agao, interpre Ir Oe inane siva no processO vital da To como tendo uma participagdo passiva a alquer espécie. O conceito de agdo de ce ali que reduz ; ai . forga que possa esconjurar 0 felt o conceito de % — uma vez que a pessoa a animal laborans ‘va, que do mesmo ; ita acti agiio tem origem no primado a jp trabalho. A resolugio modo remete para a absolutizag™ a mesma raiz A 54 assinaldmos, a agir e a trabalhar tém, com? jéiassin 122 Byung-Chul Han genealdgica. Sé a revitalizagao da vita contemplativa tornara possivel a libertacdo da compulsdo a trabalhar. ° lagna ia: borans mantém um vinculo remoto com 0 animal rationale, O entendimento puro, com efeito, é um trabalho. Todavia, o homem é algo mais do que um animal, Porque Possui a capacidade contemplativa, que nao éumestilo, e lhe permite comunicar com o duradouro. _ E interessante que Heidegger nao preste demasiada aten- gio A vita contemplativa. Esta apenas significa pent ele uma vida amena e monacal, contraria 4 vida das ocupagdes mun- danas. Heidegger reduz a contemplacao ao seu elemento racional, & visao classificat6ria — quer dizer, analitica!”>, Relaciona-a com a observacdo!™*. Entende-a a partir do tractare latino — “tratar” ou “elaborar”. Laborar nalguma coisa significa, segundo Heidegger, “trabalhar em vista de alguma coisa, persegui-la, buscd-la, seguindo-a para a por em seguranga”. A contemplacio é, portanto, “a elaboragio do real, uma elaboragio que persegue e pde em seguranga”, uma “elaboragao do real que intervém nele de um modo in- quietante”!”5. E, portanto, um trabalho. Apesar da sua pro- ximidade da mistica, Heidegger nao se interna na dimensio mistica da contemplagao, que, como atengdo amorosa de- morada em Deus, nao apresenta a intencionalidade da divi- sao nem o pér em seguranga. Na unio mystica, as divisdes e as cercas sao completamente superadas. Segundo Tomds de Aquino, a vita contemplativa mostra um modo de vida que torna os homens perfeitos: “In. vita contemplativa quaeritur contemplatio veritatis inquantum est perfectio hominis.”'76 Quando se perde por completo o 173 M. Heidegger, Vortrige und Aufsdtze, op. cit. p. 48. 174 Heidegger opera este movimento argumentativo, valendo-se, como é frequente nO $4 aso de uma referencia lingustico-etimoldgica: a tradugdo alem de contemplatio. € Betrachtung (“observagao”, “contemplagio"). 175 Ibid., p. 49, 176 Tomas de Aquino, Swnma theologica, Il,2, 180, 4, do Te O Aroma mMpo ia momento contemplativo, a vida fica reduzida ao trabalho, a um mero oficio. A detengao contemplativa interrompe qual- quer tempo que seja trabalho: “werc und gewerbe in der zit und bloz sin des selbens.”'”” A vita contemplativa eleva 0 préprio tempo. Contra as observagGes de Arendt, nao ha lugar na tradi¢ao crista para uma revalorizagao unilateral da yita contemplativa. Como em Meister Eckhart, procura-se uma mediagio entre a vita activa e a vita contemplativa. No mesmo sentido, Gregor escreve também: Cada qual deve saber que, quando aspira a um bom pro- grama de vida, a passar de uma vida ativa a uma vida tran- quila, € muitas vezes util, quando a alma regressa de uma vida aprazivel 4 atividade, que a alma, tendo no cora¢éo acesa a chama da contemplagiio, ofereca toda a sua per- feicdo a atividade. Assim, a vida ativa deve conduzir-nos a contemplagdo, mas a contemplagio deve partir daquilo que contempl4mos no nosso interior e que nos faz tornar a atividade!”®. A vita contemplativa sem ago é cega. A vita activa sem contemplagio é vazia. A propria filosofia tardia de Heidegger € guiada por um tom contemplativo. Der Felweg [“caminho de campo” é, por sua vez, uma via contemplativa. Nao conduz a parte al- guma, antes se demora na contemplagao. Nio € por acaso que Heidegger cita Meister Eckhart: “A vastiddo de tudo o que cresceu e habita os arredores do caminho dispensa mun- do. $6 no nao dito da sua linguagem Deus é Deus, segundo 177M. Bethart, Die deutschen und latinischen Werks vol. 3 Espa 1976 oF 85, 178 A. M, Haas,"-Die Beurteilung der Vita contemplative eta der Dat nermystik des 14. Jahrhunderts”, in B. Vickers (org.),Arbeit Musse .Zurique, 1985, p. 113. Byung-Chul Han 134 leituras e da Vida.»179 , velho mestre de ae diz Meister cance de leituras ¢ da vida”, Heidegger Ao falar do “ve! de de uma mediagao entre a yj. ‘ ida 4 a assinalar a necessicac™ : oh est a as ‘a vita contemplativa. E, assim, faz da meditacd . activa a) ou do pensar meditativo (besinnliche Denken), esinil s uma forma que se opde 20 pensar aca wa tra- balho, Em “Ciéncia e Meditagdo”, escreve: “ pobreza da sanz é a promessa de uma riqueza cujos te. meditagao, no entanto, € a promess®" ~ dei souros brilham no esplendor do inttil que nao se deixa nunca calcular.”!®° A meditagdo comega quando 0 pensar no traba- lho se detém. S6 no momento da detengao se atravessa um lugar no qual a formagao (Bildung)'*! se situa em frente!*?, S6 a reflexdo tem acesso Aquilo que nao é uma imagem, uma _ imaginagdio, mas que tem ugar. Na sua “serenidade para com 0 que é digno de ser questionado”, mistura-se com 0 perdurdvel e 0 sossegado, que se subtrai ao acesso rapido. Alarga o olhar, ultrapassando 0 esté em frente e 0 que esté a mao (Vor-und Zuhandende), 0 que serve o trabalho. Quando a mao se detém no acesso, quando duvida, introduz-se nela a amplidao. Heidegger fala de “uma mo calma, na qual se recolhe um contacto que est infinitamente distante de qual- quer tocar”!*3. $6 na vacilacio, a mo se abre a um espaco imenso. A mio vacilante “repousa na ampliddo de uma invo- cago que Ihe vem do siléncio”'8*, $6 num “passo atras” da editaedo, entendida deste modo, chegamos propriamente &s mona Lit ¥El0 por completo, residimos desde h muito. Na im lugar em que, pela primeira vez, se abre 0 espago a ‘onde sem o. xperienciar media, diigimo. todoo i ee ce deixar de fazer.” Produzir uma prescrigao, Preexistentes.(, da nossa morad, fitinaeh Sei, Significa, por um lado, estabelecer uma pré-figuta ¢ ‘Ameding its €™ Seguida, dar forma e desenvolver disposigO® ‘#9, €m contrapartida, & 0 que nos poe a caminho do lugs" : Unterwegs zur Sprache, op, cit, PP. 104 e segs. +0. cit... 171: “A vacilagao € aqui equiv + daquele que tem o énimo de ir lentamen'e” © Aroma do Tempo 135 7 sania que nao se abre ao ds Te S6 0 “passo atras” eek, ’ ‘ egger torna wi " poché Contemplativa: “Weden (d es ca perdurar, estar-se quiet a . to, conter-se tt “ 2 e Teter-se, a : mag en guieta. Goethe diz, num belo verso: “O oan gela, demora o bailador.”!8 No momento em que se detéin, letem, éncia de todo 0 espa a i ns co. Esse momento vacilante € a condigdo para ele de poder comegar uma danca completamente diferente, ° Qualquer “mio calma” embelece se se abstiver da violén- cia do agarrar. O verbo “embelecer” remete para a.antiga forma do alto alemao médio schéne, que pode significar também “améavel” (freundlich). Assim, a detengao contem- plativa é uma praxis da amabilidade. Deixa que suceda, que aconteca, mostra-se aquiescente em vez de intervir. A vida ocupada, a qual falta toda a dimensio contemplativa, nao é capaz da amabilidade do belo. Manifesta-se como uma pro- dugiio e uma destruicao aceleradas. Consome o tempo. Tam- bém o tempo livre, que se mantém submetido 4 compulsdo de trabalhar, néio se comporta de outro-modo em relagdo ao tempo. As coisas destroem-se ¢ mata-se 0 tempo. A demora contemplativa concede tempo. Dé ampliddo ao Ser, o que € algo mais do que estar ativo. Quando recupera a capacida- de contemplativa, a vida ganha tempo ¢ espago, duragao e amplidao. Se se expulsar dela to ba numa hiperatividade . sunto particular. Uma revitaliza necessdria, porque abre um espa¢o e me). Talvez 0 espirito deva a sua orige it uma respiracdo P: de tempo, a um otium, a do o elemento tranquilo, a vida aca- etal. A pessoa afoga-se no seu as- fio da vita contemplativa é respiragio (Atemrdu- igem a um excedente ausada. Poderia 185 Id., Der Satz vom Grund, op. cif Pe 186. i Byung-Chul Ha reinterpretar-se assim 6 pneuma, que tanto significa “tes. piragdo” como “espirito”. Quem fica sem alento nao tem espirito.A democratizagio do trabalho deve ser seguida por izacio do otium, para que a primeira se njg uma democrati: rita transforma na escravidéo de todos. Como diz Nietzsche: A falta de sossego, a nossa civilizagao desemboca numa.\__ - nova barbdrie. Em nenhuma época foram mais cotados os ativos — quer dizer, os desassossegados. Entre as correcdes necessérias que devem introduzir-se no carter da humani- dade, conta-se, portanto, uma ampla medida de fortaleci- mento do elemento contemplativo'®°, 186 F. Nietzsche, Mensch + Menschliches, Allzume 'nschliches 1, op. cit |, op. cit., p. 236,

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