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CENTRO DE CIENCIAS BIOLOGICAS E DA SAUDE - CCBS UNIDADE ACADEMICA DE MEDICINA - UAMED DISCIPLINA: ETICA E RELAGOES HUMANAS ~ PROFESSORA: Luciene de Mélo Paz ALUNO (A) Otexto a seguir pertence ao livro de Marilena Chaul, Convite & Filosofia, publicado pela Editora Atica, em 2000. Etica ou filosofia moral Toda cultura e cada sociedade institui uma moral, isto é, valores concernentes ao bem e ao mal, 20 permitido € 0 proibido, e & conduta correta, vélidos para todos os seus membros. Culturas e sociedades fortemente hierarquizadas e com diferencas muito profundas de castas ou de classes podem até mesmo possuir varias ‘morais, cada uma delas referida aos valores de uma casta ou de uma classe social. ‘No entanto, a simples existéncia da moral n3o significa a presenca explicita de uma ética, entendida como filosofia moral, isto é, uma reflexdo que discuta, problematize e interprete o significado dos valores morals Podemos dizer a partir dos textos de Plato e de Aristételes, que, no Ocidente, a ética ou filosofia moral ini ‘com Sécrates. Percorrendo pracas e ruas de Atenas ~ contam Platdo e Aistételes -, Sécrates perguntava aos atenienses, fossem jovens ou velhos, o que eram os valores nos quais acreditavam e que respeitavam ao agir. Quais perguntas Sécrates hes fazia? Indagava: O que a coragem? O que & a justiga? O que é a piedade? O que & a amizade? A elas, os atenienses respondiam dizendo serem virtudes. Sécrates voltava a indagar: O que a virtude? Retrucavam os atenienses: € agir em conformidade com o bem. E Sécrates questionava: Que é 0 bem? ‘As perguntas socréticas terminavam sempre por revelar que os atenienses respondiam sem pensar no que diziam. Repetiam 0 que thes fora ensinado desde a inféncia. Como cada um havia interpretado & sua maneira 0 ‘que aprendera, era comum, no diélogo com o filésofo, uma pergunta receber respostas diferentes e contraditérias. Apés certo tempo de conversa com Sécrates, um ateniense via-se diante de duas alternativas: ou zangar-se e ir embora iritado, ou reconhecer que no sabia o que imaginava saber, dispondo-se a comecar, na companhia socratica, a busca filoséfica da virtude e do bem. Por que os atenienses sentiam-se embaracados (e mesmo irritados) com as perguntas socréticas? Por dois motivos principais: em primeiro lugar, por perceberem que confundiam valores morais com os fatos cconstatéveis em sua vida cotidiana (diziam, por exemplo, “Coragem € o que fez fulano na guerra contra os persas”); em segundo lugar, porque, inversamente, tomavam os fatos da vida cotidiana como se fossem valores morais evidentes (diziam, por exemplo, “€ certo fazer tal aco, porque meus antepassados a fizeram e meus parentes a fazem”). Em resumo, confundiam fatos e valores, pois ignoravam as causas ou razBes por que valorizavam certas coisas, certas pessoas ou certas agdes e desprezavam outras, embaracando-se ou irritando- se quando Sécrates Ihes mostrava que estavam confusos. Tals confus6es, porém, nfo eram (e nao sio) inexplicdveis. 'Nossos sentimentos, nossas condutas, nossas a¢des e nossos comportamentos so modelados pelas condigdes fem que vivemos (familia, classe e grupo social, escola, religido, trabalho, circunst8ncias politicas, etc.). Somos formados pelos costumes de nossa sociedade, que nos educa para respeitarmos e reproduzirmos os valores ropostos por ela como bons e, portanto, como obrigades e deveres. Dessa maneira, valores e maneiras arecem existir por si e em si mesmos, parecem ser naturais e intemporais, fatos ou dados com os quais nos relacionamos desde 0 nosso nascimento: somos recompensados quando os seguimos e punidos quando os transgredimos. Sécrates embaracava os atenienses porque os forcava a indagar qual a origem e a esséncia das virtudes (valores e obrigagSes) que julgavam praticar ao seguir os costumes de Atenas. Como e por que sabiam que uma conduta era boa ou mé, virtuosa ou viciosa? Por que, por exemplo, a coragem era considerada virtude e a covardia, vicio? Por que valorizavam positivamente a justica e desvalorizavam a injustica, Digitalizado com CamScanner combatendo-2? Numa palavra: 0 que eram e © que valiam realmente os costumes que thes haviam sido ensinados? Os costumes, porque séo anteriores a0 nosso nascimento e formam o tecido da sociedade em que vivemos, s30 considerados inquestiondveis e quase sagrados (as religides tendem a mostré-los como tendo sido ordenados pelos deuses, na origem dos tempos). Ora, a palavra costume se diz, em grego, ethos ~ donde, ética - e, em latim, mores ~ donde, moral. Em outras palavras, ética e moral referem-se ao conjunto de costumes tradicionais de uma sociedade e que, como tais, s40 considerados valores e obrigagées para a conduta de seus membros. ‘Sécrates indagava o que eram, de onde vinham, o que valiam tais costumes. No entanto, a lingua grega possui outra palavra que infelizmente, precisa ser escrita, em portugués, com as ‘mesmas letras que a palavra que significa costume: ethos. Em grego, existem duas vogais para pronunciar e rafar nossa vogal e: uma vogal breve, chamada épsilon, e uma vogal longa, chamada eta. Ethos, escrita com a vogal longa (ethos com eta), significa costume; porém, escrita com a vogal breve (ethos com épsilon), significa ‘arater, indole natural, temperamento, conjunto das disposigSes fisicas e psiquicas de uma pessoa. Nesse ‘Segundo sentido, ethos se refere as caracteristicas pessoals de cada um que determinam quais virtudes e quais vicios cada um é capaz de praticar. Refere-se, portanto, ao senso moral e & consciéncia ética individual. Dirigindo-se aos atenienses, Sécrates hes perguntava qual 0 sentido dos costumes estabelecidos (ethos com £12: 08 valores éticos ou morais da coletividade, transmitidos de geracSo a geracdo), mas também indagava uais as disposigdes de cardter (ethos com épsilon: caracteristicas pessoais, sentimentos, atitudes, condutas individuais) que levavam alguém a respeitar ou a transgredir os valores da cidade, e por qué. ‘Ao indagar o que s30 a virtude e o bem, Sécrates realiza na verdade duas interrogacées. Por um lado, interroga @ sociedade para saber se 0 que ela costuma (ethos com eta) considerar virtuoso e bom corresponde efetivamente a virtude e ao bem; e, por outro lado, interroga os individuos para saber se, a0 agir, possuem efetivamente consciéncia do significado e da finalidade de suas ages, se seu caréter ou sua indole (ethos com Epsilon) s80 realmente virtuosos e bons. A indaga¢io ética socrética dirige-se, portanto, & sociedade e 20 individuo. ‘As questdes socréticas inauguram a ética ou filosofia moral, porque definem 0 campo no qual valores e ‘obrigagées morais podem ser estabelecidos, a0 encontrar seu ponto de partida: a consciéncia do agente moral. E sujeito ético moral somente aquele que sabe 0 que faz, conhece as causas € os fins de sua ago, o significado de suas intengées e de suas atitudes e a esséncia dos valores morais. Sécrates afirma que apenas o ignorante & vicioso ou incapaz de virtude, pois quem sabe o que ¢ 0 bem no poderd deixar de agir virtuosamente. ‘Se devemos a Sécrates 0 inicio da filosofia moral, devemos a Aristételes a distingao entre saber teérico e saber Prético. O saber teorético é o conhecimento de seres e fatos que existem e agem independentemente de nds e sem nossa intervengo ou interferéncia. Temos conhecimento teorético da Natureza. O saber pritico € 0 conhecimento daquilo que s6 existe como consequéncia de nossa aco e, portanto, depende de nds. A ética é ‘um saber pratico, 0 saber pratico, por seu turno, distingue-se de acordo com a pratica, considerada como praxis, ‘ou como técnica. A ética refere-se & praxis. Na praxis, o agente, a acdo e a finalidade do agir s4o insepardveis. Assim, por exemplo, dizer a verdade & uma virtude do agente, insepardvel de sua fala verdadeira e de sua finalidade, que é proferir uma verdade. Na préxis ética somos aquilo que fazemos e 0 que fazemos é a finalidade boa ou virtuosa. Ao contrério, na técnica, diz Aristoteles, 0 agente, a agdo e a finalidade da aco estdo separados, sendo independentes uns dos outros. Um. carpinteiro, por exemplo, ao fazer uma mesa, realiza uma ago técnica, mas ele préprio no é essa aco nem é a ‘mesa produzida pela aco. A técnica tem como finalidade a fabricago de alguma coisa diferente do agente e da ado fabricadora. Dessa maneira, Aristdteles distingue a ética e as técnicas como praticas que diferem pelo modo de relacdo do agente com a a¢3o e coma finalidade da a¢do, ‘Também devemos a Aristételes a definico do campo das agles éticas. Estas ndo s6 so definidas pela virtude, pelo bem e pela obriga¢o, mas também pertencem aquela esfera da realidade na qual cabem a deliberaczo e a decisdo ou escolha, Em outras palavras, quando o curso de uma realidade segue leis necessérias e universais, n8o hd como nem por que deliberar e escolher, pois as coisas acontecero rnecessariamente tals como as lels que as regem determinam que devam acontecer. No deliberamos sobre as estacdes do ano, o movimento dos astros, a forma dos minerais ou dos veget deliberamos e nem decidimos sobre aquilo que é regido pela Natureza, isto é, pela necessidade. . N5o Digitalizado com CamScanner Mas deliberamos e decidimos sobre tudo aquilo que, para ser e acontecer depende de nossa vontade e de nossa ago. Nao deliberamos e no decidimos sobre o necessério, pois o necessério & 0 que é e 0 que serd sempre, independentemente de nés. Deliberamos e decidimos sobre 0 possivel, isto , sobre aquilo que pode ser ou deixar de ser, porque para ser e acontecer depende de nds, de nossa vontade e de nossa agdo. Aristoteles acrescenta 8 consciéncia moral, trazida por Sécrates, a vontade guiada pela razdo como o outro elemento fundamental da vida ética. ‘A importancia dada por Aristételes & vontade racional, & deliberacéo e & escolha o levou a considerar uma Virtude como condicdo de todas as outras e presente em todas elas: a prudéncia ou sabedoria pratica. O prudente é aquele que, em todas as situacSes, capaz de julgar e avaliar qual a atitude e qual a aco que melhor realizardo a finalidade ética, ou seja, entre as varias escolhas possiveis, qual a mais adequada para que o agente seja virtuoso e realize o que é bom para sie para 0s outros. Se examinarmos o pensamento filoséfico dos antigos, veremos que nele a ética afirma trés grandes principios da vida moral: 1. por natureza, os seres humanos aspiram ao bem e a felicidade, que sé podem ser alcancados pela conduta virtuosa; 2. a virtude & uma forga interior do caréter, que consiste na consciéncia do bem e na conduta definida pela vontade guiada pela razdo, pois cabe a esta iltima 0 controle sobre descontrolados que existem na natureza de todo ser humano; stintos e impulsos irracionais 3. a conduta ética é aquela na qual o agente sabe o que esté e o que nio esté em seu poder realizar, referindo- se, portanto, ao que € possivel e desejével para um ser humano. Saber o que esté em nosso poder significa, principalmente, ndo se deixar arrastar pelas circunsténcias, nem pelos instintos, nem por uma vontade alheia, mas afirmar nossa independéncia e nossa capacidade de autodeterminacio. O sujeito ético ou moral no se submete aos acasos da sorte, & vontade e aos desejos de um outro, 8 tirania das paixdes, mas obedece apenas & sua consciéncia — que conhece o bem e as virtudes ~ e 8 sua vontade racional - que conhece os meios adequados para chegar aos fins morais. A busca do bem e da felicidade s3o a esséncia da vida ética Os filésofos antigos (gregos e romanos) consideravam a vida ética transcorrendo como um embate continuo entre nossos apetites e desejos — as paixdes ~ e nossa razo. Por natureza, somos passionais e a tarefa primeira da ética € a educago de nosso caréter ou de nossa natureza, para seguirmos a orientacdo da razio. A vontade ossuia um lugar fundamental nessa educacdo, pois era ela que deveria ser fortalecida para permitir que a razo controlasse e dominasse as paixies. © passional é aquele que se deixa arrastar por tudo quanto satisfaca imediatamente seus apetites e desejos, tornando-se escravo deles. Desconhece a modera¢o, busca tudo imoderadamente, acabando vitima de si mesmo. Podemos resut a ética dos antigos em trés aspectos principal 1. 0 racionalismo: a vida virtuosa é agir em conformidade com a razo, que conhece 0 bem, o deseja e guia nossa vontade até ele; 2. 0 naturalismo: a vida virtuosa é agir em conformidade com a Natureza (0 cosmos) e com nossa natureza (nosso ethos), que é uma parte do todo natural; 3. a inseparabilidade entre ética e politica: isto é, entre a conduta do individuo e os valores da sociedade, pois somente na existéncia compartihada com outros encontramos liberdade, justia e felicidade. A ética, portanto, era concebida como educacio do caréter do sujeito moral para dominar racionalmente impulsos, apetites e desejos, para orientar a vontade rumo ao bem e 3 felicidade, e para formé-lo como membro da coletividade sociopolitica. Sua finalidade era a harmonia entre 0 cardter do sujeito virtuoso e os valores coletivos, que também deveriam ser virtuosos. Digitalizado com CamScanner (O cristianismo: interioridade e dever Diferentemente de outras religides da Antiguidade, que eram nacionais e politcas, 0 cristianismo nasce como ‘eligido de individuos que no se definem por seu pertencimento a uma nagdo ou a um Estado, mas por sua fé ‘num mesmo e unico Deus. Em outras palavras, enquanto nas demais religides antigas a divindade se relacionava ‘com a comunidade social e politicamente organizada, 0 Deus cristdo relaciona-se diretamente com os individuos que nele creem. Isso significa, antes de qualquer coisa, que a vida ética do cristdo no serd definida por sua relagdo com a sociedade, mas por sua relacdo espiritual e interior com Deus. Dessa maneira, o crstianismo introduz duas diferencas primordiais na antiga concep¢io ética: ‘¢ em primeiro lugar, a ideia de que a virtude se define por nossa relaco com Deus e no com a cidade (a polis) ‘nem com 0s outros. Nossa relacdo com os outros depende da qualidade de nossa relagdo com Deus, dnico ‘mediador entre cada individuo e os demais. Por esse motivo, as duas virtudes cristas primeiras e condicies de todas as outras so a fé (qualidade da relago de nossa alma com Deus) e a caridade (0 amor aos outros e a Fesponsabilidade pela salvacdo dos outros, conforme exige a fé). As duas virtudes so privadas, isto é, s30 relagdes do individuo com Deus e com os outros, a partir da intimidade e da interioridade de cada um; em segundo lugar, 3 afirmagio de que somos dotados de vontade livre ~ ou live-arbitrio ~ e que o primeiro impulso de nossa liberdade dirige-se para o mal e para o pecado, isto é, para a transgressSo das leis divinas. Somos seres fracos, pecadores, divididos entre o bem (obedigncia a Deus) e o mal (submissio 2 tentagdo

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