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Um Vey HUBERT DREYFUS ao Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow MICHEL FOUCAULT Uma Trajetoria Filosofica Para além do estruturalismo e da hermenéutica Tradugdo: Vera Porto Carrero Introdugdo: Traduzida por Antonio Carlos Maia FORENSE UNIVERSITARIA 1 edigho beanie — 1995, © Copyright ‘Tue Universiy of Chicago, Chicago, MUSA CHP-Brasl, Catlogasto-ne fle Sindicalo Naclooal dos Edores de Livros, RI D837m Dreyfus Huber L. Michel Pooceul, uve tajetoria boséticn: (para aléen do sotrurllstno¢ de hermeneutic) / Hubert Dreyfus, oul Rabinow; trndigéo de Vera Porto Cater. -- Rio de Janeiee:Forense Unive ‘Tradogio de: Miche} Foucault: beyond sructurlism and hermeneutss (SBN 85-218-0158-0 1. Foucle, Miche, 1926-1984. 2. Filosofia francess 1. Rabinow, Pau. IL To. IN. Série os-1eas cpp 194 CU 144) Proibide« reproducdo total ou parcial, bem como a reprodusio de apostas a panit dese livre, de qualquee forma ou por ‘qualquer meio eletrGaico ou mecénico, inclusive etravésde process xeropéfos, de Cotoedpins ee grovagto, ser perm do Editor (Leia? .988 de 14.12.23). Copa: Bitz Design Eetroragdo Eletrénica: Delt Une Reearvsdos 02 dition de propiedade dese adicho pela EDITORA FORENSE UNIVERSITARIA [Ros Si Freire, 23 — 20920-430 — Rio de Janeiro — RJ — Te: 4021) 80.0776 Lasgo de Sho Franeiveo, 20 — 01005.010 — Sio Paulo — SP = Tel: (011) 604-2005 fexpreso 00 Beast Printed in Bait O Sujeito e o Poder Michel Foucault I Por que estudar 0 ‘a questao do sujeito” As idéias que eu gostaria de discutir aqui nfo representam nem uma teoria nem uma metodologia. Eu gostaria de dizer, antes de mais nada, qual foi o objetivo do meu trabalho nos Ultimos vinte anos. Nao foi analisar o fendmeno do poder nem elaborar os fundamentos de tal anilise. Meu objetivo, ao contrdrio, foi criar uma historia dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos. Meu trabalho lidow com trés modos de objetivagio que transformam os eres humanos em Sujeitos. O primeiro ¢ o modo da investigacao, que tenta atingir 0 estatuto de ciéncia, como, por exemplo, a objetivagao do sujeito do discurso na gram- maire générale,’ na filologia ¢ na lingiiistica. Ou, ainda, a objetivacio do sujeito produtivo, do sujeito que trabalha, na andlise das riquezas ¢ na economia. Ou, um terceiro exemplo, a objetivacdo do simples fato de estar vivo na historia natural ou na biologia. Na segunda parte do meu trabalho, estudei a objetivagdo do sujeito naquilo que eu chamarei de *‘priticas divisoras’’. O sujeito é dividido no seu interior e em relagdo aos outros. Este processo o objetiva. Exemplos: 0 louco € 0 so, 0 doente ¢ 0 sadio, os criminosos ¢ os ‘“bons meninos”*. 1 Bm francés, no original (N. do T.). * Este texto foi escrito em inglés por Michel Foucault. 231 Finalmente, tentei estudar — meu trabalho atual — o modo pelo qual ‘um ser humano toma-se um sujeito. Por exemplo, eu escothi o dominio da sexualidade — como os homens aprenderam a se reconhecer como sujeitos de “‘sexualidade”’. Assim, néo é © poder, mas 0 sujeito, que constitui o tema geral de minha pesquisa. E verdade que me envolvi bastante com a questiio do poder. Pareceu- me que, enquanto 0 sujeito humano é colocado em relagdes de produgao ¢ de significagéo, é igualmente colocado em relagdes de poder muito complexas. Ora, pareceu-me que a histéria ¢ a teoria econdmica fomeciam um bom instrumento para as relagdes de produgdo ¢ que a lingiiistica e a semidtica ofereciam instrumentos para estudar as relagdes de significagao; porém, para as relagdes de poder, nao temos instrumentos de trabalho. O tinico recurso que temos so os modos de pensar o poder com base nos modelos legais, isto oque legitima o poder? Ou entdo, modos de pensar o poder de acordo com um modelo institucional, isto é: o que é o Estado? Era, portanto, necessétio estender as dimensdes de uma definigéo de poder se quiséssemos usé-la ao estudar a objetivacao do sujeito. Seré preciso uma teoria do poder? Uma vez que uma teoria assume uma objetivagio prévia, ela néo pode ser afirmada como uma base para um trabatho analitico. Porém, este trabalho analitico nao pode proceder sem uma conceituagio dos problemas tratados, conceituaao esta que implica um pensamento critico — uma verificacio constante. A ptimeira coisa a verificar é 0 que cu deveria chamar de “‘necessi- dades conceituais’’. Eu compreendo que a conceituagio nao deveria estar fundada numa teotia do objeto — 0 objeto conceituado nao ¢ 0 tinico critério de uma boa conceituagao. Temos que conhecer as condigdes histéricas que . motivam nossa conceituagio. Necessitamos de uma consciéncia histérica da situagao presente. A segunda coisa a ser verificada é 0 tipo de realidade com a qual estamos lidando. Certa vez, um escritor expressou, num jornal francés bem conhecido, sua surpresa: ‘Por que a nogao de poder ¢ discutida por tantas pessoas hoje emt dia? Trata-se de um tema tdo importante? E ela tio independente que pode ser discutida sem se levar em consideragdo outros problemas?" A sutpresa deste escritor me surpreende. Nao actedito que esta questo tenha sido levantada pela primeira vez no século XX. De qualquer maneira, nio se trata, para nés, apenas de uma questio tedrica, mas de uma parte de nossa experiéncia. Gostaria de mencionar duas ‘formas patolégi- cas"* — aquelas duas ““doengas do poder’? — o fascismo eo estalinismo. ‘Uma das numerosas razées pelas quais clas so, para nds, tao perturbadoras € que, apesar de sua singularidade historica, elas ndo so otiginais. Elas 232 utilizam ¢ expandem mecanismos ja presentes na maioria das sociedades. Mais do que isto: apesar de sua prépria loucura interna, utilizaram ampla- mente as idéias ¢ os artificios de nossa racionalidade politica. O que necessitamos é de uma nova economia das relagdes de poder — entendendo-se economia num sentido teérico e pritico. Em outras palavras: desde Kant, o papel da filosofia é prevenir a razio de ultrapassar 6s limites daquilo que € dado na experiéncia; porém, ao mesmo tempo — isto é, desde o desenvolvimento do Estado moderno e da gestéo politica da sociedade —, o papel da filosofia é também vigiar os excessivos poderes da racionalidade politica. O que é, alids, uma expectativa muito grande . Todos tém consciéncia de tais fatos tao banais. Porém, o fato de serem banais néo significa que ndo existam. O que temos que fazer com eles é descobrir — ou tentar descobrir — que problema especifico e talvez original a eles se relaciona. A relagao entre a racionalizagio ¢ os excessos do poder politico ¢ evidente. E nao deveriamos precisar esperar pela burocracia ou pelos campos de concentragio para reconhecer a existéncia de tais relagdes. Mas 0 problema é: o que fazer com um fato tdo evidente? Devemos julgar 2 razio? Em minha opiniao, nada seria mais estéril. Primeiro, porque o campo a ser trabalhado nao tem nada a ver com a culpa ou a inocéncia. Segundo, porque nao tem sentido referir-se a razio como uma entidade contraria & nao-tazéo. Por ultimo, porque tal julgamento nos con- denaria a representar 0 papel atbitrétio e enfadonho do racionalista ou do irracionalista. Devemos investigar este tipo de racionalismo que parece especifico da cultura moderna e que se origina na Aufkidrung’? Acredito que esta foi a abordagem de alguns membros da Escola de Frankfurt. Meu objetivo, con- tudo, nao ¢ iniciar uma discussdo em seus trabalhos, apesar de serem, na maior parte, importantes ¢ valiosos. Ao contrario, eu sugeriria uma outa forma de investigacdo das relagdes entre a racionalizagao ¢ 0 poder. Seria mais sabio nio considerarmos como um todo a racionalizagaéo da sociedade ou da cultura, mas analisé-la como um processo em varios campos, cada um dos quais com uma referéncia a uma experiéncia funda- mental: loucura, doenga, morte, crime, sexualidade ete. Considero a palavra racionalizagdo petigosa. O que devemos fazer é analisar racionalidades especificas mais do que evocar constantemente 0 progresso da racionalizagio em geral. A despeito da Aufkldrung tet sido uma fase muito importante da nossa histéria ¢ do desenvolvimento da tecnologia politica, actedito termos que nos 2 Em atemio no original (N. do). 233 seferir # processos muito mais remotos se quisermsos compreender como fomos capturados em nossa propria histéria. Gostaria de sugerir uma outra forma de prosseguir em diregdo a uma nova economia das relagdes de poder, que é mais empitica, roais diretamente relacionada 4 nossa situagiio presente, € que implica relagdes mais estreitas entre a teoria ¢ a pratica. Ela consiste em usar as formas de resisténcia contra as diferentes formas de poder como um ponto de partida. Para usar uma outra metéfora, ela consiste em usar esta resisténcia como um catalisador quimico de modo a esclarecer as relagdes de poder, localizar sua posigao, descobrir seu ponto de aplicagao ¢ os métodos utilizados. Mais do que analisar o poder do ponto de vista de sua racionalidade interna, ela consiste em analisar as relagdes de poder através do antagonismo das estratégias. Por exemplo, pata descobrir o que significa, na nossa sociedade, a sanidade, talvez devéssemos investigar o que ocorre no campo da insanidade; € 0 que se compreende por legalidade, no campo da ilegalidade. E, para compreender 0 que sao as relagdes de poder, talvez devéssemos investigar as formas de resisténcia ¢ as tentativas de dissociar estas telagdes. Para comecar, tomemos uma série de oposiges que se desenvolveram nos tltimos anos: oposi¢o ao poder dos homens sobre as mulheres, dos pais sobre os filhos, do psiquiatra sobre o doente mental, da medicina sobre a populagao, da administragao sobre os modos de vida das pessoas. No basta afirmar que estas sao lutas antiautoritarias; devemos tentat definir mais precisamente 0 que elas tém em comum. 1) Sao lutas “‘transversais"; isto é, nao sdo limitadas a um pais. Sem diivida, desenvolvem-se mais facilmente e de forma mais abrangente em certos paises, porém ndo estéo confinadas a uma forma politica e econémica patticular de governo. 2) O objetivo destas lutas séo 0s efeitos de poder enquanto tal. Por exemplo, a profisséo médica nao é criticada essenciaimente por ser um empreendimento lucrativo, porém, porque exerce, um poder sem controle, sobre os compos das pessoas, sua saide, sua vida e morte. 3) Sao lutas **imediatas"* por duas razdes. Em tais lutas, criticam-se as instaincias de poder que lhes sio mais proximas, aquelas que exercem sua agdo sobre os individuos. Elas ndo objetivam o “‘inimigo mor’, mas 0 inimigo imediato. Nem esperam encontrar uma solugao para scus problemas no futuro (isto ¢, liberagdes, revolugdes, fim da luta de classe). Em relagao a uma escala tedtica de explicagao ou uma ordem revolucionatia que polariza © historiador, so lutas anarquicas. Porém, estes niio sdio seus aspectos mais originais; os que se seguem me parecem mais especificos: 4) So lutas que questionam o estatuto do individuo: por um lado, afirmam 0 direito de ser diferente e enfatizam tudo aquilo que toma os individuos verdadeitamente individuais. Por outro lado, atacam tudo aquilo 234 que separa 0 individuo, que quebra sua relagdo com os outros, fragmenta a vida comunitéria, forga o individuo a se voltar para si mesmo e 0 liga & sua propria identidade de um modo coercitivo, Estas lutas nfio sio exatamente nem a favor nem contra 0 dividuo’’; mais que isto, sio batalhas contra o “governo da individuali- zagio™ 5) Sdo uma oposigao aos efeitos de poder relacionados ao saber, competéncia ¢ 4 qualificagao: lutas contra os privilégios do saber. Porém, sio também uma oposigao ao segredo, deformagho ¢ as representagdes mistifi- cadoras impostas as pessoas. Nao hé nada de “*cientificista”’ nisto (ou seja, uma crenga dogmiitica no vator do saber cientifico), nem ¢ uma recusa cética ou relativista de toda verdade verificada. O que é questionado é a maneira pela qual o saber circula e funciona, suas relagSes com o poder. Em resumo, o régime du savoir? 6) Finalmente, todas estas lutas contempordneas giram em torno da questo: quem somos nds? Elas so uma recusa a estas abstragdes, do estado de violéncia econémico ¢ ideolégico, que ignora quem somos individual- mente, ¢ também uma recusa de uma investigagao cientifica ou administra- tiva que determina quem somos. Em suma, o ptincipal objetivo destas lutas ¢ atacar, no tanto **tal ou tal’ instituigdo de poder ou grupo ou elite ou classe, mas, antes, uma técnica, uma forma de poder. Esta forma de poder aplica-se a vida cotidiana imediata que categoriza © individuo, matca-o com sua propria individualidade, liga-o 4 sua propria identidade, impée-lhe uma lei de verdade, que devemos reconhecet © que os outros tém que reconhecer nele. E uma forma de poder que faz dos individuos sujeitos. Ha dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo controle ¢ dependéncia, ¢ preso a sua propria identidade por uma consciéncia ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga ¢ toma sujeito a. Geralmente, pode-se dizer que existem trés tipos de lutas: contra as formas de dominagao (étnica, social ¢ religiosa); contra as formas de ex- ploragao que separam os individuos daquilo que eles produzem; ou contra aquilo que liga o individuo a si mesmo e¢ o submete, deste modo, aos outros (Iutas contra a sujeigaéo, contra as formas de subjetivagao ¢ sub- missio). Acredito que na historia podemos encontrar muitos exemplos destes trés tipos de lutas sociais, isoladas umas das outras ou misturadas entre si, Porém, mesmo quando estio misturadas, uma delas, na maior parte do tempo, prevalece. Por exemplo, nas sociedades feudais, as lutas 3 Em friinces no original (N. do). 235 contra as formas de dominagéo étnica on social prevaleciam, mesmo que a exploragdo econémica possa ter sido muito importante como uma das causas de revolta. No século XIX, a luta contra a exploragao surgiu em primeiro plano. £, atualmente, a luta contra as formas de sujeigéo — contra a sub- misséo da subjetividade — esta se tornando cada vez mais importante, a despeito de as lutas contra as formas de dominagao e exploragao nio terem desaparecido, Muito pelo contririo. Eu suponho que nio é a primeira vez que a nossa sociedade se confrontou com este tipo de luta. Todos aqueles movimentos dos séculos XV ¢ XVI, e que tiveram a Reforma como expresso ¢ resultado maximos, poderiam ser analisados como uma grande crise da experiéncia ocidental da subjetividade, e como uma revolta contra o tipo de poder religioso ¢ moral que deu forma, na Idade Média, a esta subjetividade. A necessidade de ter uma participagao direta na vida espititual, no trabalho de salvaco, na verdade que repousa nas Escrituras — tudo isto foi uma luta por uma nova subjetividade. Eu sei que objecdes podem ser feitas, Podemos dizer que todos os tipos de sujeigao sio fendmenos derivados, que sio meras conseqiiéncias de outros processos econdmicos ¢ sociais: forgas de produgao, luta de classe ¢ estruturas ideoldgicas que determinam a forma de subjetividade. Sem diivida, os mecanismos de su, io néo podem ser estudados fora de sua relacdo com os mecanismos de exploragio e dominagao. Porém, nio constituem apenas o ‘terminal’ de mecanismos mais fundamentais. Eles mantém relagdes complexas ¢ circulares com outras formas. A razéo pela qual este tipo de luta tende a prevalecer em nossa sociedade deve-se ao fato de que, desde o século XVI, uma nova forma politica de poder se desenvolveu de modo continuo. Esta nova estrutura politica, como todos sabem, é o Estado. Porém, a maior parte do tempo, o Estado é considerado um tipo de poder politico que ignora os individuos, ocupando-se apenas com os interesses da totalidade ou, eu diris, de uma classe ou um grupo dentre as cidadios. Bisto é verdade. Mas eu gostaria de enfatizar 0 fato de que o poder do Estado (¢ esta € uma das razSes da sua forca) é uma forma de poder tanto individualizante quanto totalizadora. Acho que nunca, na histéria das so- ciedades humanas — mesino na antiga sociedade chinesa —, houve, no interior das mesmas estruturas politicas, uma combinagio tio astuciosa das técnicas de individualizagaio ¢ dos procedimentos de totalizagao. Isto se deve ao fato de que o Estado modemo ocidental integrou, numa nova forma politica, uma antiga tecnologta ¢e poder, originada nas insti- tuigSes cristis, Podemtos chamar esta tecnologia de poder pastoral. Antes de mais nada, algumas palavras sobre este poder pastoral. 236 Dizia-se que o cristianismo havia getado um cédigo de ética funda- mentalmente diferente daquele do mundo antigo. Em geral, enfatiza-se menos 0 fato de que ele ptopés ¢ ampliou as novas relages de poder no mundo antigo. O cristianismo ¢ a tinica religido a se organizar como uma Igteja. E como tal, postula o principio de que certos individuos podem, por sua qualidade religiosa, servir a outros no como principes, magistrados, pro- fetas, adivinhos, benfeitores ¢ educadores, mas como pastores. Contudo, esta palavra designa uma forma muito especifica de poder. 1) E uma forma de poder cujo objetivo final é assegurar a salvagio individual no outro mundo. 2) O poder pastoral nao é apenas uma forma de poder que comanda; deve também estar preparado para se sacrificar pela vida pela salvagio do rebanho. Portanto, é diferente do poder real que exige um sacrificio de seus stiditos para salvar o trono. 3) Euma forma de poder que no cuida apenas da comunidade como um todo, mas de cada individuo em particular, durante toda a sua vida. 4) Finalmente, esta forma de poder nao pode ser exercida sem o conhecimento da mente das pessoas, sem explorar suas almas, sem fazer-lhes revelar os seus segredos mais intimos. Implica um saber da consciéncia e a capacidade de dirigi-la. Esta forma de poder ¢ orientada para a salvagdo (por oposigéo ao poder politico). E oblativa (por opasigéo ao principio da soberania); é individualizante (por oposicSo ao poder juridico); € co-extensiva a vida e constitui seu prolongamento; esta ligada & produgdo da verdade — a verdade do priprio individuo. Mas podemos dizer que tudo isto faz parte da histéria; a pastoral, se nao desapareceu, pelo menos perdeu a parte principal de sua eficécia. Isto € verdade, mas suponho que deveriamos distinguir dois aspec- tos do poder pastoral — por um lado, a institucionalizagao eclasidstica, que desapareceu ou pelo menos perdeu sua forga desde o século XVIII, e, por outro, sua fumgdo, que se ampliou ¢ se multiplicou fora da instituigio eclesidstica. Um fendmeno importante ocorreu no século XVII — uma nova distribuigdo, uma nova organizagdo deste tipo de poder individualizante. Nao acredito que devéssemos considerat o “Estado moderno’* como. uma entidade que se desenvolveu acima dos individuos, ignorando o que eles sfio e até mesmo sua propria existéncia, mas, ao contririo, como uma estrutura muito sofisticada, na qual os individuos podem ser integrados sob uma condi¢ao: que a esta individualidade se atribuisse uma nova forma, submetendo-a a um conjunto de modelos muito especificos. De certa forma, podemos considerar o Estado como a matriz moderna da individualizagao ou uma nova forma do poder pastoral. 237 Algumas palavras mais sobre este poder pastoral. 1) Podemos observar uma mudanga em seu objetivo. Ja nao se trata mais de uma questéo de dirigir 0 povo para a sua salvacdo no outro mundo, mas, antes, asseguré-la neste mundo. E, neste contexto, # palavra salvacdo tem diversos significados: saide, bem-estar (isto ¢, riqueza suficiente, padrao de vida), seguranga, protegao contra acidentes. Uma série de objetivos **mundanos”* surgiu dos objetivos religiosos da pastoral tradicional, e com mais facilidade, porque esta tiltima, por varias razdes, atribuiu-se alguns destes objetivos como acessério; temos apenas que pensar no papel da medicina ¢ sua fungio de bem-estar assegurados, por muito tempo, pelas Igrejas catdlica e protestante. 2) Concomitantemente, houve um reforgo da administragdo do poder pastoral. As vezes, esta forma de poder era exercida pelo aparelho do Estado ‘ou, pelo menos, por uma instituigéo publica como a policia, (Nao nos esquegamos de que a forga policial nao foi inventada, no século XVII, apenas para manter a lei c a ordem, nem para assistir os governos em sua luta contra seus inimigos, mas para assegurar a manutengao, a higiene, a sade e os padrdes urbanos, considerados necessarios para 0 artesanato ¢ o comér- cio.) Outras vezes, o poder se exercia através de empreendimentos privados, sociedades para o bem-estar, de benfeitores ¢, de um modo geral, de filan- tropes. Porém, as instituigdes antigas como a familia eram igualmente mo- bilizadas, nesta época, para assumir fungdes pastorais. Também era exercido por estruturas complexas como a medicina, que incluiam as iniciativas privadas, com venda de servicos com base na economia de mercado, mas que incluiam instituigSes piblicas como os hospitais. 3) Finalmente, a multiplicagio dos objetivos e agentes do poder pastoral enfocava 0 desenvolvimento do saber sobre o homem em tomo de dois pdlos: um, globalizador e quantitativo, concemente 4 populagio; o ‘outro, analitico, concernente ao individuo. Esto implica que o poder do tipo pastoral, que durante séculos — pot mais de um milénio — foi associado a uma instituigdo religiosa definida, ampliou-se subitamente por todo 0 corpo social; encontrou apoio numa multiplicidade de instituigdes. E, em vez de um poder pastoral ¢ de um poder politico, mais ou menos ligados um a0 outro, mais ou menos tivais, havia uma “‘titica’’ individualizante que caracterizava uma série de poderes: da familia, da medicina, da psiquiatria; da educago e dos empre- gadores. No final do século XVIII, Kant escreveu, num jornal alemao —~ o Berliner Monatschrift —, um pequeno texto. O titulo era Was heisst Aufk- Jdrung? que foi por muito tempo, e ainda é, considerado um trabalho de pouca importincia. ___ Porém, nao posso deixar de acha-lo muito interessante e perturbador, visto que foi a primeira vez que um fildsofo ptopés, como uma tatefa 238 filosdfica, a investigagao néo apenas do sistema metafisico ou dos fundamen- tos do conhecimento cientifico, mas um acontecimento histérico — um acontecimento recente ¢ até mesmo contemporaneo. Quando, em 1784, Kant perguntou: Was heisst Aufkldrung?, ele queria dizer: 0 que esti acontecendo neste momento? © que esti acontecendo conosco? O que € este mundo, esta época, este momento preciso em que vivemos? Emm outras palavras: 0 que somos, enquanto Aufkldrer, enquanto parte do Iluminismo? Fagamos uma comparagiio com a questo cartesiana: quem sou eu? En, enquanto sujeito unico, mas universal ¢ a-histérico — eu para Descartes é todo mundo, em todo lugar ¢ a todo momento? Kant, porém, pergunta algo mais: o que somos nés? num momento muito preciso da historia. A questéo de Kant aparece como uma andlise de quem somos nés ¢ do nosso presente. Creio que este aspecto da filosofia adq. cia. Hegel, Nietzsche ... © outro aspecto da ““filosofia universal’ no desaparecen. Mas a tarefa da filosofia como uma anilise critica de nosso mundo tothou-se algo cada vez mais importante. Talvez, o mais evidente dos problemas filoséficos seja a questiio do tempo presente € daquilo que somos neste exato momento. Talvez, 0 objetivo hoje em dia nao seja descobrir 0 que somos, mas recusar 0 que somos, Temos que imaginar e construir o que poderiamos ser para nos livrarmes deste ‘‘duplo constrangimento” politico, que ¢ a simultinea individualizagao e totalizagao propria as estruturas do poder modemo. A conclusio seria que o problema politico, ético, social e filosdfico de nossos dias nao consiste em tentar liberar 0 individuo do Estado nem das instituigdes do Estado, porém nos liberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualizagao que a ele se liga. Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposto hé varios séculos. ju cada vez maior importin- Como se exerce o poder?” Para certas pessoas, interrogar-se sobre 0 ‘*como’’ do poder seria limitar-se a descrever seus efeitos, sem nunca relacioné-los nem a causas nem. a uma natureza, Seria fazer deste poder uma substancia misteriosa que, sem diivida, se evita interrogar em si mesma, por preferir ndo ‘‘colocd-la em. questio"’, Neste mecanismo, que ndo se explicita racionalmente, suspeita-se de um fatalismo. Mas sua desconfianga no nos mostra que elas supdem que © poder é algo que existe com sua origem, sua natureza e suas manifestagdes? * Este texto foi traduzido do original em francés. (N. doT:) 239 Se provisoriamente atribuo um certo privilégio a questo do “‘como”’, iio é que eu deseje eliminar a questao do qué e do porqué. E para colocd-las ‘de outro modo; ov melhor: para saber se é legitimo imaginar um ‘*poder"* que reine um qué, um porqué, ¢ um como. Grosso modo, eu diria que comegar a anilise pelo “como” é introduzir a suspeita de que 0 “poder™* nao existe; é perguntar-se, em todo caso, a que contetidos significativos podemos visar quando usamos este termo majestoso, globalizante ¢ substan- tificador; é desconfiar que deixamos escapar um conjunto de realidades bastante complexo, quando engatinhamos indefinidamente diante da dupla interrogagao: *“O que ¢ 0 poder? De onde vem 0 poder?”” A pequena questio, direta ¢ empirica: ‘*Como isto acontece?"’, ndo tem por fungao denunciar como fraude uma ‘*metafisica’’ ou uma “‘ontologia’’ do poder; mas tentar uma investigagdo critica sobre a tematica do poder. 1. “‘Como”’ nao no sentido de ‘Como se manifesta?”’, mas ‘‘Como se exerce?"’, ‘‘Como acontece quando os individuos exercem, como se diz, seu poder sobre os outros?” Deste “‘poder’* ¢ necessétio distinguir, primeiramente, aquele que exercemas sobre as coisas ¢ que da a capacidade de modificd-las, utilizd-las, consumi-las ou destrui-las — um poder que remete a aptiddes diretamente inscritas no corpo ou mediatizadas por dispositivos instrumentais, Digamos que, neste caso, trata-se do “‘capacidade”. O que caracteriza, por outro lado, 9 “poder’* que analisamos aqui, € que ele coloca em jogo relagdes entre individuos (ou entre grupos). Pois nao devemos nos enganar: se falamos do poder das leis, das instituigdes ou das ideologias, se falamos de estraturas ou de mecanismos de poder, é apenas na medida em que supomos que **alguns** exercem um poder sobre os outros. O termo “*poder’* designa relagdes entre “parceiros"’ (entendendo-se por isto nao um sistema de jogo, mas apenas — © permanecendo, por enquanto, na maior generalidade — um conjunto de agdes que se induzem e se respondem umas as outras). E necessério distinguir também as relagdes de poder das relagdes de comunicagio que transmitem uma informagao através de uma lingua, de um sistema de signos ou de qualquer outro meio simbélico. Sem dtivida, comu- nicar é sempre uma certa forma de agir sobte © outro ou os outros. Porém, a produgao ¢ a circulagio de elementos significantes podem perfeitamente ter por objetivo ou por conseqiléncias efeitos de poder, que nio sio simples- Mente um aspecto destas. Passando ou nio por sistemas de comunicacao, as telagdes de poder tém sua especificidade. “Relagdes de poder”’, “‘relagdes de comunicagio"’, “‘capacidades objetivas’* nao devem, entéo, ser confundidas. O que nao significa que se trata de trés dominios separados; ¢ que haveria, de um ado, 0 dominio das 240 coisas, da técnica finalizada, do trabalho da tansformagao do real; ¢, do outro, o dos signos, da comunicagao, da reciprocidade e da fabricagio do sentido; enfim, 0 da dominagao dos meios de coagao, de desigualdade e de agdo dos homens sobre os homens.‘ Trata-se de trés tipos de relagao que, de fato, esto sempre imbricados uns nos outros, apoiando-se reciprocamente € servindo-se mutuamente de instrumento. A aplicagao de capacidade objetiva, nas suas formas mais elementares, implica telagdes de comunicagao (seja de informagao prévia, ou de trabalho dividido); liga-se também a relagdes de poder (seja de tarefas obrigatorias, de gestos impostos por uma tradigéo ou um aprendizado, de subdivisdes ou de repartigao mais ou menos obrigatoria do trabalho). As relagdes de comunicacao implicam atividades finalizadas (mesmo que seja apenas a “‘correta’® operagiio dos elementos significantes) ¢ induzem efeitos de poder pelo fato de modificarem 0 campo de informagso dos parceiros. Quanto as relagdes de poder propriamente ditas, elas se exercem por um aspecto extremamente importante através da produgdo ¢ da troca de signos; ¢ também nio sao dissocidveis das atividades finalizadas, seja daquelas que permitem exercer este poder (como as técnicas de adestra- mento, os procedimentos de dominagao, as maneiras de obter obediéncia), seja daquelas que recorrem, para se desdobrarem, a relagdes de poder (assim na divisiio do trabalho ¢ na hierarquia das tarefas), Sem diivida, a coordenagéo entre estes trés tipos de relagio nao ¢ uniforme nem constante. Nao ha, numa sociedade dada, um tipo geral de equilibrio entre as atividades finalizadas, os sistemas de comunicagao ¢ as relagdes de poder. Ha, antes, diversas formas, diversos lugares, diversas circunstincias ou ocasiées em que estas inter-relagdes se estabelecem sobre um modelo especifico. Porém, ha também “blocos”” nos quais o ajuste das capacidades, os feixes de comunicagio e as relagdes de poder constituem sistemas regulados e concordes. Seja, por exemplo, uma instituig&o escolar: sua organizagio espacial, o regulamento meticuloso que rege sua vida inte rior, as diferentes atividades ai organizadas, os diversos personagens que ai vivem e se encontram, cada um com uma fungao, um lugar, uni rosto bem. definido — tudo isto constitui um ‘*bloco” de capacidade-comunicagao- poder. A atividade que assegura o aprendizado ¢ a aquisigao de aptiddes ou de tipos de comportamento ai se desenvolve através de todo um conjunto de comunicagdes reguladas (ligdes, questes © respostas, ordens, exortagées, signos codificados de obediéncia, marcas diferenciais do **valor’’ de cada um e dos niveis de saber) através de toda uma série de procedimentos de poder (enclausuramento, vigilancia, recompensa ¢ punigao, hicrarquia piramidal). 4° Quando Habermas distingue dominagéo, comunicagdo e atividade finalizada, ele ndo vé al, acredito, trés dominios diferentes, mas trés “transcendentais”. 241 Estes blocos onde a aplicagio de capacidades técnicas, o jogo das comunicagdes ¢ as relagdes de poder esto ajustados uns aos outros, segundo formulas refletidas, constituem aquilo que podemos chamar, alargando um pouco © sentido da palavra, de “*disciplinas’’, A andlise empitica de certas disciplinas — de sua constituigao histérica — aptesenta, por isto mesmo, um certo interesse. Primeiramente, porque as disciplinas mostram, segundo esquemas artificialmente claros ¢ decantados, a maneira pela qual os sistemas de finalidade objetiva, de comunicagdes ¢ de poder podem se articular uns sobre os outros. Porque eles mostram também diferentes modelos de articu- lagdo ora com proeminéncia das relagdes de poder e de obediéncia (como nas disciplinas de tipo monastico ou de tipo penitencidrio), ora com proeminén- cia das atividades finalizadas (como nas disciplinas das oficinas ou dos hospitais); ora com a proeminéncia das relagdes de comunicagio (como nas disciplinas de aprendizagem); como também com uma saturagao dos trés tipos de telagao (coma talvez na disciplina militar, onde uma pletora de signos marca, até a redundancia, relagées de poder fechadas ¢ cui- dadosamente calculadas para proporcionar um certo numero de efeitos técnicos). E aquilo que se deve compreender por disciplinarizagéo das so- ciedades, a partir do século XVIII pa Europa, nao é, sem diivida, que os individuos que dela fazem parte se tornem cada vez mais obedientes, nem que elas todas comecem a se parecer com casernas, escolas ou prisées; mas que se tentou um ajuste cada vez mais controlado — cada vez mais racional e econémico — entre as atividades produtivas, as redes de comunicagio e o jogo das relagdes de poder. Abordar o tema do poder através de uma andlise do “‘como™* é, entio, operat diversos deslocamentos criticos com relagio 4 suposiggo de um “‘poder”* fundamental. E tomar por objeto de anilise relagdes de poder eno um poder; relagdes de poder que so distintas das capacidades objetivas assim como das relagdes de comunicagéo; relagdes de poder, enfim, que podemos perceber na diversidade de seu encadeamento com estas capaci- dades ¢ estas relagées. 2. Em que consiste a especificidade das relagées de poder? O exetcicio do poder nao é simplesmente uma relacdo entre “*parcei- ros" individuais ou coletivos; é um modo de acao de alguns sobre outros. O que quer dizer, certamente, que no hé algo como o “ r”* ou ““do poder” que existiria globalmente, macigamente ou em estado difuso, concentrado ou distribuido: 6 hé poder exercido por “‘uns"* sobre os “‘outros”’; 0 poder sé existe em ato, mesmo que, é claro, se inscreva num campo de possibilidade esparso que se apdia sobre estruturas permanentes. 242 Isto quer dizer também que o poder no é da ordem do consentimento; ele nfo é, em si mesmo, remincia a uma liberdade, transferéncia de direito, poder de todos ¢ de cada um delegado a alguns (0 que nfo impede que o consentimento possa ser uma condigao para que a relagdo de poder exista ¢ se mantenha); a relagéo de poder pode ser 0 efeito de um consentimento anterior ou permanente; ela néo é, em sua propria natureza, a manifestagio de um consenso. Sera que isto quer dizer que é necessirio buscar carater proprio as Telagdes de poder do lado de uina violéncia que seria sua forma primitiva, o segredo permanente ¢ o tiltimo recurso — aquilo que aparece em tiltima instancia como sua verdade, quando coagido a tirar a méscara e a se mostrar tal qual &? De fato, aquilo que define uma relagio de poder é um modo de agio que no age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre. sua propria agdo. Uma agao sobre a agdo, sobre agdes eventuais, ou atuais, futuras ou presentes. Uma relagdo de violéncia age sobre um corpo, sobre as coisas; eta forga, ela submete, ela quebra, ela destroi; ela fecha todas as possibilidades; nao tem, portanto, junto de si, outro polo senio aquele da passividade; ¢, se encontra uma resistencia, a nica escolha ¢ tentar reduzi-la. ‘Uma relacio de poder, a0 contrario, se articula sobre dois elementos que the sio indispensaveis por ser exatamente uma relagdo de poder: que ‘‘o outro”* {aquele sobre 0 qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como 0 sujeito de ago; ¢ que se abra, diante da relagao de poder, todo um campo de respostas, reagdes, efcitos, invengdes possiveis. O funcionamento das relagdes de poder, evidentemente, no é uma exclusividade do uso da violéncia mais do que da aquisi¢ao dos consentimen- tost nenhum exercicio de poder pode, sem dtivida, dispensar um ou outro € freqtientemente os dois a0 mesmo tempo. Porém, se eles sdo seus instrumen- tos ou efeitos, ndo constituem, contudo, seu principio ou sua natureza. O exercicio do poder pode perfeitamente suscitar tanta aceitagio quanto se queira: pode acumular as mortes ¢ abrigar-se sob todas as ameagas que ele possa imaginar. Ele néo é em si mesmo uma violéncia que, As vezes, se esconderia, ou um consentimento que, implicitamente, se reconduziria. Ele € um conjunto de agdes sobre agdes possiveis; ele opera sobre 0 campo de possibilidade onde se inscreve 0 comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais dificil, amplia ou limita, torna mais ou menos provavel; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas € sempre uma maneira de agir sobre um ou vatios sujeitos ativos, ¢ o quanto eles agem ou sio suscetiveis de agir. Uma ago sobre agoes. O termo “‘conduta™, apesar de sua natureza equivoca, talvez seja um daqueles que melhor permite atingir aquilo que ha de especifico nas relagdes de poder. A ‘‘conduta’’ é, a0 mesmo tempo, 0 ato de ““conduzir™* os outros (segundo mecanismos de coetgio mais ou menos estritos) ¢ a maneira de se 243 comportar num campo mais ou menos aberto de possibilidades. O exercicio do poder consiste ema “‘conduzir condutas” ¢ em ordenar a probabitidade. O poder, no fundo, é menos da ordem do afrontamento entre dois adversirios, ou do vineulo de um com relagdo ao autro, do que da ordem do **governo’*. Devemos deixar para este termo a significagao bastante ampla que tinha no século XVI Ele no se referia apenas as estruturas politicas ¢ & gestéo dos Estados; mas designava a mancira de dirigir a conduta dos individuos ou dos grupos: governo das criangas, das almas, das comunidades, das familias, dos doentes. Ele ndo recobria apenas formas institufdas ¢ legitimas de sujeigio potitica ou econédmica; mas modos de agao mais ou menos refletidos ¢ calculados, porém todos destinados a agir sobre as possibilidades de agdio dos outros individuos. Governar, neste sentido, é estruturar o eventual campo de acdo dos outros, O modo de telagdo proprio ao podet nao deveria, portanto, ser buscado do lado da violéncia e da luta, nem do lado do contrato ¢ da alianga voluntiria (que ndo podem ser mais do que instrumentos); porém, do lado deste modo de agdo singular — nem guerreiro nem juridico — que 0 governo. Quando definimos o exercicio do poder como um modo de ago sobre as agdes dos outros, quando as caracterizamos pelo ‘*governo” dos homens, uns pelos outros — no sentido mais extenso da palavra, incluimos um elemento importante: a liberdade. O poder s6 se exerce sobre “*sujeit livres”, enquanto “livres” — entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos que tém diante de si um campo de possibilidade onde diversas condutas, diversas reagSes ¢ diversos modos de comportamento podem acontecer. Nao hi relacdo de poder onde as determinagées esto saturadas — a esctavidao nao é uma relagdo de poder, pois 0 homem est acorrentado {trata-se entdo de uma relagao fisica de coagio) — mas apenas quando ele pode se deslocar e, no limite, escapar. Nao ha, portanto, um confronto entre poder ¢ liberdade, numa relagdo de exclusao (onde o poder se exerce, a liberdade desaparece); mas um jogo muito mais complexo: neste jogo, a liberdade aparecera como condigao de existéncia do poder (ao mesmo tempo sua precondigao, uma vez que € necessatio que haja liberdade para que 0 poder se exerca, e também seu suporte permanente, uma vez que se ela se abstraisse inteiramente do poder que sobre ela se exerce, por isso mesmo desapareceria, ¢ deveria buscar um substituto na coergéo pura e simples da violéncia); porém, ela aparece também como aquilo que so poder se opor a um exercicio de poder que tende, enfim, a determin4-la inteiramente. A relagio de poder ¢ a insubmissio da liberdade nao podem, entio, ser separadas, O problema central do poder no € 0 da “‘servidio volun- taria’” (como poderiamos desejar ser escravos?): no centro da relago de poder, “*pravocando-a’* incessantemente, encontra-se a recalcitrancia do querer ¢ a intransigéncia da liberdade. Mais do que um ‘‘antagonismo"* 244 essencial, seria melhor falar de um *‘agonismo**S — de uma telagdo que €, a0 mesmo tempo, de incitagéo reciproca e de luta; trata-se, portanto, menos de uma oposigao de termos que se bloqueiam mutuamente do que de uma provocagio permanente. 3. Como analisar a relagao de poder? Podemos, ou melhor, cu diria que é perfeitamente legitimo analisé-la em instituigdes bem determinadas; estas ultimas constituindo um obser- vatério privilegiado para as atingit — diversificadas, concentradas, orde- nadas ¢ levadas, parece, ao seu mais alto grau de eficicia; numa primeira abordagem, é ai que podemos pretender ver aparecer a forma ¢ a légica de seus mecanismos elementares. Contudo, a andllise das relagdes de poder nos espagos institucionais fechados apresenta alguns inconvenientes. Primeira- mente, o fato de uma parte importante dos mecanismos operados por uma instituigdo ser destinada a assegurar sua propria conservacao apresenta 0 risco de decifrar, sobretudo nas relagdes de poder “*inira-institucionais”’, fungies essencialmente reprodutoras. Em segundo lugar, ao analisarmos as telagSes de poder a partir das instituigdes, nos expomos de nelas buscar a ‘explicagdo © a origem daquelas; quer dizer, em suma, de explicar o poder pelo poder. Enfim, na medida em que as instituigdes agem essencialmente através da colocagio de dois elementos em jogo: regras (explicitas ou silenciosas) e um aparetho, corremos 0 risco de privilegiar exageradamente um ou outro na relacdo de poder e, assim, de ver nesias apenas modulagdes da lei ¢ da coergio. Nao se trata de negar a importancia das institigdes na organizacao das relagdes de poder. Mas de sugetir que é necessirio, antes, analisar as instituigdes a partir das relagdes de poder, ¢ no o inverso; e que o ponto de apoio fundamental destas, mesmo que elas se incorporem ¢ se cristalizem numa instituigdo, deve ser buscado aquém. Retomemos a definigdo segundo a qual o exercicio do poder seria uma maneira para alguns de estruturat o campo de ago possivel das outros. Deste modo, o que seria proprio a uma relagiio de poder ¢ que ela seria um modo de acto sobre agdes. O que quer dizer que as relagdes de poder se enraizam profundamente no nexo social; ¢ que elas nao reconstituem acima da ‘*so- ciedade** uma estrutura suplementar com cuja obliteragdo radical pudéssemos talvez sonhar. Viver em sociedade é, de qualquer maneira, viver 5 O neologismo usado por Foucault esti baseado na palavea grega ayvropa que significa “sum combate’ © termo sugeriria, portanto, um combate fisicono qual os opositores desenvolvem uma estratégia de reagdo ¢ de injirias mituas, como se estivessem em umna sesséo de luia, 245 de modo que seja possivel a alguns agirem sobre a aco dos outros, Uma sociedade “‘sem relagdes de poder" s6 pode ser uma abstragio. O que, diga-se de passagem, tora ainda mais necessétia, do ponto de vista politico, a anatise daquilo que clas sio numa dada sociedade, de sua formago historica, daquilo que as tora sdlidas ou frigeis, das condigées que so necessdtias para transforma umas, abolit as outras. Pois, dizer que no pode existir sociedade sem relagdo de poder nao quer dizer nem que aquelas que so dadas sdo necessdrias, nem que de qualquer modo 0 “*poder”” constitua, no centro das sociedades, uma fatalidade incontomaves; mas que a analise, a elaboragao, a retomada da questéo das telagdes de poder, edo “‘agonismo" entre relagdes de poder intransitividade da liberdade, é uma tarefa politica incessante; € que € cxatamente esta 2 tarefa politica incrente a toda existéncia social. Concretamente, a andlise das relagdes de poder exige que esta- belegamos alguns pontos: 1. O sistema das diferenciagées que permitem agir sobre « agdo dos outros: diferencas juridicas ou tradicionais de estatuto ¢ de privilégio; diferencas econdmicas na apropriagdo das riquezas e dos bens; diferengas de lugar nos processes de producdo; diferencas lingitisticas ou culturais; diferencas na habilidade e nas competéncias etc. Toda telagdo de poder opera diferen- ciagdes que so, para ela, ao mesmo tempo, condigdes ¢ efeitos. 2. O tipo de objetivos perseguidos por aqueles que agem sobre a ago dos outros: manutengdo de privilégios, actimuto de luctas, operacionatidade da autoridade estatutaria, exercicio de uma fungdo ou de uma profissio. 3. As modalidades instrumentais: de acordo com 0 fato de que o poder se exerce pela ameaga das armas, dos efeitos da palavra, através das dispari- dades econdmicas, por mecanismos mais ou menos complexos de con- trole, por sistemas de vigilancia, com ou sem arquivos, segundo regras explicitas ou do, permanentes ov modificaveis, com ou sem dispositivos materiais etc, 4. As formas de institucionalizagao: estas podem mistutar dispositivos tradi- cionais, estruturas juridicas, fenémenos de hébito ou de moda (como vemos nas telagdes de poder que atravessam a instituigao familiar); clas podem também ier a aparéncia de um dispositivo fechado sobre si mesmo com seus lugares especificos, seus regulamentos proprios, suas estruturas hierérquicas cuidadosamente tragadas, ¢ uma relativa autonomia funcional (como nas instituigdes escolares ou militares); podem também formar sistemas muito comptexos, dotados de aparethos mittiplos, como no caso do Estado que tem. por fungio constituir o invélucto geral, a instincia de controle global, o Principio de regulagio e, até certo ponto também, de distribuigao de todas as relagdes de poder num conjunto social dado. 5. Os graus de racionalizacdo: o funcionamento das relagdes de poder como agdo sobre umm campo de possibilidade pode ser mais ou menos elaborado em 246 fungio da eficdcia dos instrumentos ¢ da certeza do resultado (maior ou menor refinamento tecnolégico no exercicio do poder) on, ainda, em fungéo do custo eventual (seja do *“custo’* econdmico dos meios utilizados, ou do custo em termos de reagdo constituido pelas resisténcias encontradas). O exercicio do poder ndo € um fato bruto, um dado institucional, nem uma estrutura que se mantém ou se quebra: ele se clabora, se transforma, se organiza, se dota de procedimentos mais ou menos ajustados, Eis por que a antlise das relagdes de poder numa sociedade nio pode ‘se prestar ao estudo de uma série de institmigdes, nem sequer ao estudo de todas aquelas que mereceriam o nome de “*politica’’. As relagdes de poder se enraizam no conjunto da rede social. Isto néo significa, contudo, que haja um principio de poder, ptimeiro ¢ fundamental, que domina até o menor elemento da sociedade; mas que hé, a partir desta possibilidade de agao sobre 1 ago dos outros (que ¢ co-extensiva a toda relagao social), miltiplas formas de disparidade individual, de objetivos, de determinada aplicagzo do poder sobre nés mesmos e sobre os outros, de institucionalizagdo mais ou menos setorial ou global, organizagao mais ou menos refletida, que definem formas diferentes de poder. As formas ¢ os lugares de “governo’” dos homens uns pelos outros sio miltiplos numa sociedade: superpdem-se, entrecruzam-se, limitam-se ¢ anulam-se, em certos casos, ¢ reforgam-se em outros, E certo que o Estado nas sociedades contemporineas nio ¢ simplesmente uma das formas ou um dos lugares — ainda que seja o mais importante — de exercicio do poder, mas que, de um certo modo, todos os outros tipos de relagéo de poder a ele se referem. Porém, ndo porque cada um dele derive. Mas, antes, porque se produziu uma estatizagdo continua das relagdes de poder (apesar de no ter tomado @ mesma forma na ordem pedagogica, judici econémica, familiar). Ao nos referirmos uo sentido resirito da palavra * erno"’, poderiamos dizer que as relagées de poder foram progressivamente governamentalizadas, ou seja, elaboradas, racionalizadas ¢ centralizadas na forma ou sob a caugéo das instituigdes do Estado. 4, Relacoes de poder e relagdes estratégicas A palavra esteatégia é cortentemente empregada em trés sentidos. Primeiramente, para designar a cscotha dos meios empregados para se chegar 2 um fim; trata-se da racionalidade empregada para atingirmos um objetivo, Pare designar a maneira pela qual um parceiro, num jogo dado, age em fungaio daquilo que ele pensa dever ser a agio dos outros, ¢ daquilo que ele acredita que 0s outros pensario ser a dele; em suma, a mancita pela qnal tentamos ter uma vantagem sobre o outro. Enfim, para designar 0 conjunto dos procedi- ‘mentos utilizados num confronto para privar o adversitio dos seus meios de combate e reduzi-lo a renunciar a luta; trata-se, entéo, dos meios desti- nados a obter a vitdria, Estas trés significagées se retmem nas situagdes 247 de conforto — guerra ou jogo — onde o objetivo ¢ agir sobre um adversirio de tal modo que a luta Ihe seja impossivel. A estratégia se define entdo pela escolha das solugdes “‘vencedoras"’. Porém, ¢ necessario ter em mente que se trata de um tipo bem particular de situagdo; e que ha outros em que se deve mantera distingao entre os diferentes sentidos da palavra estratégia. Ao nos teferirmos ao primeiro sentido indicado, podemos chamar *‘estratégia de poder” ao conjunto dos meios operados para fazer fancionar ou pata mantet um dispositivo de poder. Podemos também falar de estratégia propria as relagdes de poder na medida em que estas constitem modos de agio sobre a agao possivel, eventual, suposta dos outros. Podemos entio decifrar em termos de *'estratégias’* os mecanismos utilizados nas relagdes de poder. Porém, o ponto mais importante é evidentemente a relag&o entre relagdes de poder e estratégias de confronto. Pois, se é verdade que no centro das relagdes de poder € como condicao permanente de sua existéncia, ha uma “‘insubmissdo"" ¢ liberdades essencialmente renitentes, nio ha relagao de poder sem resisténcia, sem escapatoria ou fuga, sem inversio eventual; toda relago de poder implica, entdo, pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta, sem que pare tanto venham a se superpor, a perder sua especificidade ¢ finalmente a se confundir. Elas constituem reciprocamente uma espécie de limite permanente, de ponto de inversio possivel. Uma relacao de confronto encontta seu termo, seu momenio final (¢ a vitoria de um dos dois ad- versarios) quando o jogo das reagées antagénicas € substituido por mecanis- mos estiveis pelos quais um dentre eles pode conduzir de maneira bastante constante ¢ com suficiente certeza a condute dos outros; para uma relagao de confronto, desde que nao se trate de luta de morte, a fixagdo de uma telagio de poder constitui um alvo — ao mesmo tempo seu completamento ¢ sua propria suspensio. E, em troca, para uma relagdo de poder, a estratégia de tuta constitui, ela também, uma fronteira: aquela onde a indugdo calculada das condutas dos outros no pode mais ultrapassar a téplica de sua propria aco. Como nio poderia haver relagées de poder sem pontos de insubmissio que, por definicao, Ihe escapam, toda intensificagdo e toda extensio das relagdes de poder para submeté-los conduzem apenas aos limites do exercicio do poder; este encontra entio sua finalidade seja num tipo de agdo que reduz. © outro a impoténcia total (uma *‘vitdria’’ sobre o adversdrjo substitui o exercicio do poder), seja numa transformag3o daqueles que sio governados em adversarios. Em suma, toda estratégia de confronto sonha em tornar-se relagdo de poder; e toda relacéo de poder inclina-se, tanto ao seguir sua propria linha de desenvolvimento quanto ao se deparar com tesisténcias frontais, a tomnar-se estratégia vencedora. De fato, entre relagdo de poder ¢ estratégia de luta, existe atragio teciproca, encadeamento indefinido ¢ inverséo perpétwa. A cada instante, relagdo de poder pode tornar-se, € em certos pontos se torna, um confronto entre adversatios. A cada instante também as relagdes de adversidade, numa 248 sociedade, abrem espago para o emprego de mecanismos de poder. Instabi dade, portanto, que faz com que os mesmos processos, os mesmos acon- tecimentos, as mesmas transformagdes possam ser decifrados tanto no inte- tior de uma historia das lutas quanto na histéria das relagdes ¢ dos disposi- tivos de poder. Nao serio nem os mesmos elementos significativos, nem os mesmos encadeamentos, nem os mesmos Upos de inteligibilidade que apare- cetio, apesar de se referirem a um mesmo tecido histérico e apesar de que cada uma das duas andlises deve remeter 4 outra. E é justamente a interfer cia das duas leituras que faz aparecer estes fenémenos fundamentais de “dominagdo" que a historia apresenta em grande parte das socicdades humanas. A dominago é uma estrutura global de poder cujas ramificagdes € conseqiiéncias podemos, is vezes, encontrar, até na trama mais ténue da sociedade; porém, e ao mesmo tempo, é uma situagao estratégica mais ou menos adquirida e sotidificada num conjmto histérico de Tonga data entre adversiirios. Pode perfeitamente acontecet que um fato de dominagao seja apenas a transcrigéo de um dos mecanismos de poder de uma relagio de confronto e de suas conseqiiéncias (uma estrutura politica derivada de uma invasdo); também pode ocorrer que uma relagao de luta entre dois adversdrios seja 0 efeito do desenvolvimento das relagdes de poder com os conflitos ¢ as clivagens que ela encadeia. Porém, o que torna a dominago de um grupo, de uma casta ou de uma classe, as resistencias ou as revoltas as quais ela se opde um fendmeno central na historia das sociedades ¢ 0 fato de mani- festarem, numa forma global ¢ maciga, na escala do corpo social inteiro, a integragao das relages de poder com as relagdcs estratégicas ¢ seus efeitos de encadeamento reciproco. 249

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