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@ orenaceess EDUCACAO POR & )escornce ESCRITO pucrs | HUMANIDADES Educagto por eserito, Porto Alege, v.42. n.a,p.4-42,jan-dez. 2028, Chee cedecescinssebraimeaes0ats 900 SEGAO: A FORMACAO DE PROFESSORES E A EDUCACAO INCLUSIVA: AVANCOS, DESAFIOS E PERSPECTIVAS O desenvolvimento da pessoa com deficiéncia na teoria torico-cultural: caminhos indiretos e compensacao The development of persons with disabilities in the historical-cultural theory indirect paths and compensation Fabricio Santos Dias de Resumo: As discusses sobre o dlesenvolvimento psicologico da pessoa cam ‘Abreu: deficiencia marcam ¢ trajetoria intelectual de Lev Semionovitch Vigotski GE00- ere oooo-coos-s0ss-s70q 1024). A0analisé-la € 00ssivel perceber que o autor bielorusso antecipa um olhar fsbezorgarailcom para as ciferengas muito mais humanizado.ético e com contornos de incluso e ‘equidade que € percebide apenas no discurso cientfico do final do século Xe ras politcas puiblicas do século xxi, Neste artigo, por melo da analise de textos cléssicos de Vigotsk., puscamos debater os processos mediacionaise escolares Patricia Lima Martins _Gestinados as pessoas com deficiéncias a partir de dois sistemas conceituais, Pederiva? ‘que consideramios angulares na discusséo sobre a defciéncia na Teoria His- cicdorg/000-000%-a424-6571 — ténico-Cultural a) caminnes indiretos de Gesenvolvimento 6 b) compensacao atoedervagamalicom social. A compreensio desses aspectos teéricos contribui para a consolidacéo de uma sociedade inclusiva, pois baseia-se na assertiva de que a deficiencia ‘no anulla 0 desenvolvimento do ser humano. mas coloca-o em uma posicao diferenciada, que necessita de recursos mediacionais distintos para acessar os bens culturals e relacionais. Recebide em: 30/09/2021, Palayras-chave: Lev Semionovitch Vigotst (1806-1934. Teoria Historico-Cultural ‘Aprovade em 52/11/2028 enaansa yehcae Publicado em: 25/32/2023 ‘Albstract: Discussions about the psychological development of people with di- sabilties mark the intellectual trajectory of Lev Semionovitch Vigotsks 3895-1034) When analyzing It itis goss ble to see that the Belarusian author anticioates much more humanized, ethical look tditferences. with contours of inclusion and ‘equity. which is only percetved in the scientific discourse of the late 2oth century and in public policies in the 2ist century. In this article, through the analysis of ‘classical texts by VygoIsk, we seek to debate the mediational and school pro- cesses aimed at people with disabilities from two conceptual systems that we consider angular in the discussion of disablity in Historical-Cultural Theory. a) indirect ways of development and b) social compensation. Understanding these theoretical aspects contributes to the consolidation ofan inclusive society. asitis based on the assertion that disability does not nullify the development of human bbeings, but places them ina diferent position, which needs different mediational resources to access the cultural and relational goods. Keywords: Lev Semicnavich Vygotski (1896-1924). Historical-Cultural Theory. Disability. Inclusion + Unvotedade de Gracia (Und), Gracia. OF Brac. Secretana de Eetado oe Educagao do Ditto Federal Bracia OF raat Unversidace de Bastia (Une) reste. DF. rest 2/12 Eaucapio por esente Porto Alegre. 12.0.4 p £42 fn-dez 2008 @-41900 Introdugao As discusses sobrea organizagao psicolégica atipica - aquela marcada pela deficiéncia ou por outras intercorréncias de ordem fisica ou psico- Logica, gerando entraves ao desenvolvimento pleno e integral do ser - atravessam a obra ea vida de L. S.Vigotski (1896-1934). A analise cro- nolégica da produgao cientifica do bielorusso. precursor da Teoria Histérico-Cultural, indica que asteorizagdes sobre essas tematicas encontram- Se presentes desde o inicio da publicizagio de suas obras, em 1924 (com os textos “O defeito @ a compensago’. ‘Acerca da psicologia e da pedagogia da defectologia infantil’. “Principios da ediucacdo de criancas fsicamente deficientes’ (WYGOTSK\, 1997) € 0 capitulo 16 da obra Psico- logia Pedagéaica (VIGOTSKI 2003) inttulado “O comportamento anormal’). € vo até 0 perio- do préximos @ sua morte com o manuserito “O problema do retarcdo mental” (VYGOTSKI, 1997) Publicado em 1935 Ao tecer um olhar global sobre a obra vigot- skiana e sua teoria geral sobre o desenvolvimento da personalidade, pode-se afirmar quea deficién- cia, mesmo quancio n&o € o objetivo principal de discusséo travada em seus escritos. transversaliza ‘a maioria dos debates que 0 autor desenvolve, conforme é possivel notar nas obras A construgao. do pensamentoe da linguagem (VIGOTSKI, 2009) Sobre os fundamentos da pedologia (VIGOTSK 2016a). Estudos sobre a histéria do comportamen- to: omacaco. o primitivo ea crianga (VIGOTSKIE LURIA, 1996): Psicologia Pedagogica (VIGOTSK 2003), Problemas del desarrollo de la psique (WYGOTSK\, 20128), Paidologia del adolescente — Problemas de la psicologia infantil(VYGOTSK\ 20120) entre outros. Assim “os problemas do de- senvolvimento anormal ocuparam um lugar chave na atividade de Lev Semenovich ena sua escrita crlativa’ (VIGODSKAIA: LIFANOVA, 1996), Para ele, 0 problema da deficiéncia ¢ de processos patoldgicos eram fundamentais para explicar 0 modo de funcionamento do psiquismo, afinal:“a E necessivio rolembrar a datario da obra de Vigo ‘ceszontortave, coma ulzaes9 de termes como Geeta. « localzé-a dentro de seu conte hitirico pars que D1ag@Surdo-muco reareade, snormalcad Uteratira op primera metade do seco Xe. no conterto gotseano. no denctam um corstrulpao patologia nos fornece a chave para entender 0 desenvolvimento ¢ 0 desenvolvimento, a chave ara entender as condigbes patolégicas’ (VIGOT- SKI, 2012. p. 206) Os textos em que o autor trata diretamente sobre as questées da deficiéncia e do desenvol- vimento psicolégice atipico (tais como desordens psiquidtricas, criancas com comportamentos considerados inadequados. praticas diagnosti- cas fragmentarias etc) foram compilades, em 1983 na Russia, dentro de uma Unica publica- cdo denominada Tomo V das Obras Escogidas — Fundamentos de Defectologia (VYGOTSKI. 1997). Aheranga cientifica destes textos, que se alinham a0 prajeto social e eclucacional soviético apés a Revolugao Socialists de 1917, encontrs-se nas valorosas coniribuigées para o campo da aprendizagem e do desenvolvimento humane 20 propor uma visdio de ser humano integral. para alem dos diagnésticos ¢ rétulos biomédicos. No Brasil, apesar do crescente interesse de pesqui- sadores, educadores e psicdlogos pelas ideias do autor, 05 seus estudos sobre deficiéncia ainda ‘ocupam um lugar marginal. muito provavelmente ela dficuldade de acesso as abras e tradugdes, (© Tomo V das Obras Escogidas - Fundamentos de Defectologia. por exemplo. apenas em 1997, 14 anos apés a publicacdo do original. recebeu traducao do russo para o espanhol feita por Gull- terme Blanck - possibilitando a uma parcela de brasileiros uma aproximacdo a esses textos por uma lingua mais proxima do portugués. Dos 29 textos que constam no compilado, apenas trés tiveram tradugao para o portugués até 2021. a saber: 1)"Sobrea questo da dindmica do carater infantil’ (VIGOTSKI, 2006); 2) “A defectologia e 0 estudo do desenvolvimento ¢ da educacao da crianga anormal” (VIGOTSKI, 2011) €3)’Acerea dos processos compensatérios no desenvolvimento da crianga mentalmente atrasada’ (VIGOTSKI 2018b). Nessa conjuntura € fato que uma parcela consideravel de pessoas motivadas em estudara 80 2 cts esses S80 comuns na ou derminaters Fabricio Santos Das de Abreu Patricia Lime Martins Pederiva © desenvoluimente da pessoa com defckénea na tera nstorico-clfural. eames maieies e compensaca0 3/12 deficiéncia pelo vies da Teoria Historico-Cultural esbarram na problematica da disponibilidade de textos em tingua materna. Isto diftculta o enten- dimento da totalidade da obra que. de forma pioneira para a 6poca, ja defendia que a pessoa com deficiéncia precisava encontrar lugar efetivo na dindmica da vida coletiva, pois a diversidade na esfera blolgica ou emocional. por si. nao acarretaria uma personalidade deteriorada ou incompleta. Ha um redimensionamento da pro- blematica a0 se entender que as relacdes sociais ‘estabelecidas frente ao que se considera anormal orjam subjetividades precarizadas.e engendram desigualdades, Assim, “o defeito fisico provoca a perturbagao das formas sociais de conduta’ (VYGOTSKI, 1997, p. 80) e "as peculiaridades psicolégicas da crianga deficiente tem em sua base um nticleo nao biolégico. mas social’ (VY- GOTSKI, 1997. p. 82. Vigotski inaugura uma nova abordagem de estudo da pessoa com deficiéncia. que ganharia forga apenas nos anos 1970 do século XX com 95 tedricos do modelo social (DINIZ. 2012) ao propor que @ analise do desenvolvimento atipico deveria passar de um ponto de vista fenomena- Uistico - que apenas enumera. meds. hierarquiza @ sistematiza os sintomas a partir de manifes- tagdes exteriores e de facil observacdo - para ‘a busca da “esséncia interna dos processos de desenvolvimento” (VIGOTSK.. 1997, 9.319). partir de uma abordagem genético-condicional. Na sociabilidade da pessoa com deficiéncia ha uma tendéncia em ser potencializar apenas o que se considera como insuriciéncia. as interpretagdes socials do diagnéstico aniquilam as dimensdes subjetivas ¢ 0 individuo é reduzido a deficiéncia que possui Apratica pedagogica e terapéutica, por esses principios. inclina-se em realcar “as gramas de enfermidades € no indicam o5 quilos de saui- de" (VYGOTSKI. 1997. p. 62) € “hoje a educacéio se orienta em seus 9/10 & enfermidade endo salide" (VYGOTSKI, 1997, 78). Acritica de Vigotski convida a olhar a deficiéncia (e toca ¢ qualquer trajet6ria de desenvolvimento) por angulos mais construtivos. que ecoem visdes mais potentes © auspiciosas: ‘reparamos na pequens porcao que € 0 defeito e no captamos as enormes reas, tieas de vida, que as criangas possuem (YGOTSKI. 1997. p. 62), Essas concepgdes de Vigotski caminhavam no contrafluxo dos discursos cientificos de sua época - fortemente marcada pelo determinismo biolégico € pelas praticas eugénicas (GOULD. 1999). Suas defesas nao estavam interessadas em rotular os seres humanos ou impor limites por melo da mensuracdo da deficiéncia partir de nivels quantitativos de desenvolvimento, mas em Genunciar que essas agdes estavam empenhadas em’excluirda escola comum as criancas consi- deradas inadequadas para a mesma’ (VIGOTSKI 1997, p. 345). Além do interesse cientifico pela deficiéncia, havia também uma questo pratica que aproximou Vigotski dessa matéria. pois du- rante 0 periodo de reestruturagao seciapolitica da Russia apésa Revolucdo de 1917, milhares de criangas érfés (= muitas clelas com deficiéncias) vagavam pelas ruas das cidades. assoladas pela fome @ analfabetismo (KOZULIN. 1991: BAR- ROCO, 2007; PRESTES; TUNES, 2017). Esse era um enorme problema médico, educacional © psicolégico que © governo soviético precisava enfrentar com oauxilio dos académicos. Adicional a tarefa de identificagao, acompanhamento € insereao dessas criangas na sociabilidade, co- locava-se 0 encargo de introduzi-las no sistema de educagdo obrigatéria - estabelecido em1918 pela Deliberagao do Comité Executive Central de toda a Russia que instituiu. em seu artigo 4°, que ’a frequéncia 4s escolas de primeiro € se- undo graus 6 obrigatéria para todas as criangas* (KRUPSKAIA, 2027, p. 276). Buscando colaborar com 0 debate sobre o desenvolvimento das pessoas com deficiencia € 05 processos mediacionaise escolaresa elasces- tinacos, neste artigo buscamos discutir. com base em textos originais de Vigotski, aspectos tedricos que contribuem para a consolidagao de um olhar mais positive para o desenvolvimento atipicoea efetivacéo de uma sociabilidade marcada pela inclusdo e equidade. Nesse modo abordaremos dois sistemas conceituais que consideramos 4/12 Eaucapio por esente Porto Alegre. 12.0.4 p £42 fn-dez 2008 @-41900 centrais na discussao sobre a deficiéncia na Teoria Histérico-Culturat: a) caminhos indiretos de desenvolvimento e b) compensacao social. O desenvolvimento da pessoa com deficiéncia: 0s caminhos indiretos A deficiencia “nao apenas modifica a retagao dohomem com o mundo. mas. antes de tudo, se manifesta nas relagdes com a pessoa" (VYGOT- SKI. 1997. p. 73). Ena experiéncia social que os infortdnios ¢ barrelras vivenciados por aqueles que possuem uma deficiéncia se materializam. ois © mundo (em seus instrumentos e signos) se organiza para um perf tipico ¢ idealizado de ser humano. 0 acesso aos bens culturais ¢ aos elementos semidticos que compéem a esfera das criagdes humanas s&o limitados quando 0 desenvolvimento é marcado por um impedimento de ordem biolégica Para Luria @ grande contribuigso de Vigotski para area da educacao especial estavano fatode que ele “concentrou sua atengao nas habilidades que tas criangas possuiam, habilidades estas que oderiam formar a base para o desenvolvimento de suas capacidades integrais’ (2012, p. 34). A defesa da Teoria Historico-Cultural, nesses princi- ios, baseia-se na assertiva de quea deficiéncia no anula © desenvolvimento do ser humane, mas coloca-o em uma posicéo diferenciada, que necesita de recursos mediacionals dstintos para acessar a cultura. afinal: ‘a crianga cujo desen- volvimento esta complicado pelo defeito nao é simplesmente uma crianga menos desenvolvida que seus colegas normais, mas desenvolvida de outro modo" (VYGOTSKI. 1997. 9.12). Partindo da premissa teérica. que o desenvol- vimento € uma necessidadey cultural de todo ser humano, concorda-se com Vigotski quando afirma que a deficiéncia, ao colocar obstaculos .a05 meios usuais de desenvolvimento e acess ‘acaba por gerar caminhos indiretos/alternativos de desenvolvimento, Trajetos esses mais criado- res, inusitados ¢, muitas vezes, revolucionarios, pois deficiencia estimuls a formacao de novas estruturas de desenvolvimento, qualitativamente distintas © peculiares. Nesses termosa deficiéncia impulsiona “uma reorganizagio radical de toda a personalidade e poe em vigéneia novas forcas psiquicas. Impondo a elas uma nova direcao” (GOTSAl, 1997. p.50) Aestrutura das formas mediadas de compor- tamento organiza-se a partir de mecanismos que logram caminhos indiretos, auxiliande a crianca nas operagdes psicolégicas quando hé um im- pedimento no caminho direto. Esses fazem parte da historia da evolugao cultural da humanidade acontecem de forma tdo intrinseca ao processo de desenvolvimento que néo 0 percebemos: 55a [ei €‘aplicavel por igual ao desenvalvimen- to normal e ao mais grave" (VYGOTSKI, 1997. p. 15). Dessa maneira, os caminhos indiretos para resolugo de tarefas esto presentes nas mals diversas a¢des do cotidiano dos sujeitos, tal qual, ‘quando uma crianga néo consegue dar uma res- posta mental para a soma 6 + 3¢ utiliza material conereto. riscos ou os préprios dedos para che- gar ao resultado. Nesta situagao, por exemple, ha a crlagdo ou a apropriacao de instrumentos externos de auxilio, pois, 0 caminho direto esta impedico ou apresenta adversidades “a crianga comega a recorrer a caminhos indiretos quando. pelo caminho direto. a resposta 6 diffcultada, ou seja, quando as necessidades de adaptacao que se colocam diante da crianga excedem suas possibilidades’ (VIGOTSKI, 2011, p. 865) Nesses termos, 0 acesso aos caminhos in- diretos. também nomeada por Vigotskl (2011. p. 266) de forma superior de adaptagao. ¢ uma constante no desenvolvimento humane, “eacon- tece sob pressio da necessidade, pois tudo que se desenvolve desenvolve-se por necessidade" (VIGOTSKI, 2006, p. 262). O autor, interessado em demonstrar essas premissas em um contexte de aplicabilidade pedagdgica. defende que o obstaculo ~ previamente organizado e com in- tencionalidade - exige que a crianca reposicione seu comportamento ¢ que estruture meios para solucionar a tarefa e lograr éxito: "se a crianga are vgatsla a ncoessisage de uner em um melo histoioe © "eonstrur todas a Tungbes organess Se acoreo com as exgenciss ‘apresentaas por esse me (VIGOTSK| 2096 py 282) urdamentae determina toca 8 via human Fabricio Santos Das de Abreu Patricia Lime Martins Pederiva © desenvoluimente da pessoa com defckénea na tera nstorico-clfural. eames maieies e compensaca0 5/12 ndo tiver necessidade de pensar, ela nunca ir pensar’ (VIGOTSKI,2021, p. 866). Essas premissas estabelecem um novo formato de educagao as- sentada em outras bases pedagogicas em que “cumpre sempre enfrentar uma subida onde antes se via um caminho plano: ela deve dar um salto onde até entéo parecia ser possivel limitar-se a um passo" (VIGOTSKI, 2011, p. 867) A educagao, dessa forma. ¢ uma das principais responsaveis pelo entrelagamento dos planos naturale cultural de desenvolvimento, Actianga necesita de um meio social estruturado para ‘a emergéncia das formas mediadas de com- portamento onde natural e cultural coincidem € amalgamam-se “em um proceso tnico de formaao biolégico-social da personalidade da crianca’ (VYGOTSKI, 2012a. p. 36). No desen- volvimento tipico ha uma convergéncia desses panos. porém. na crianga com deficiéncia, esse processo apresenta discrepancias. disparidades € peculiaridades, uma vez que toda a cultura se organiza a um perfilneuropsicomotor tipico, para a pessoa dotada de certos érg8os - mao. olho. ouvido - e de cartas fungdes cerebrais. Todos 05 nossos instrumentos, toda a técnica. todos 08 signose simbolos s8o calcados para um tipe normal de pessoa” (VIGOTSKI. 2011. p. 867). Nesse contexto, a educacdo surge em auxilio, criando tecnicas culturais artifciais -“um sistema especial de signos ou simbolos culturais adaptados as peculiaridades da organizacéo psicofisiolégica da crianga anormal’ (VIGOTSKI, 2011. 9. 867) Os cegos, por exemplo, esto imersos em ume cultura letrada em que a obtencao do saber historicamente acumulado se efetiva, majorita- riamente. através da escrita ¢ da leitura optica, 0 -acess0, por essa via, é impedido por uma questo orgénica, Todavia. a necessidade de aquisicao permanece. @ 0 que ora se dava apenas pela visualidade tomna-se possivel por meio de um. Cédigo tatil HA uma reconfiguracao do padiao biol6gico tipico e a visdo (para essa operacdo) € substituida pela ponta dos dedos. Ocorre uma alteracdo da eserita-leitura visual pelo sistema braille que permite. através da combinagéo de ppontos em relevo, uma amplisc30 da acessibilida- de para pessoas cegas e combaixa-visdo, Dessa forma. ’o importante & que a crianga cega Lé. assim como néstemos, mas essa funeao cultural lhe garantida por um aparato psicofisiolégico completamente diferente do nosso" (VIGOTSKI 2011, p. 868). Na surdez ocorre um processo similar. Apecu- liaridade biolégica traz a privagdo da percepcao auditiva e obstaculariza 0 desenvolvimento da lingua orale, consequentemente, prejudica todas as outras formas dle comunicagao. socializagso © acesso (ABREU: SILVA. 2011). A comunicagao. principalmente via palavra, na cultura ocidental, & uma exigéncia para ainsercéo no meioe. a partir dessa necessidade, engendra-se a composicéio de uma lingua propria para os surdos que se materializa a partir da articulago viso-espacial das mos, Nesse caso 0s signos sonoros S80 substituidos por signos visuais que permitem “compor no ar uma escrita especial, quea crianga surda-muda lé com os olhos" (VIGOTSKI, 2011. 867) e que ‘as criangas surdas-mudas. por si mesmas, desenvolvem uma lingua mimica com- plexa, uma fala singular’ VIGOTSKI, 2011. p. 868), Esses exemplos demonstram que a deficiéncia impulsiona a criag8o de caminhos alterativos construidos para que o desenvolvimento se efetive e aproxime-se ao do perf de atividades desempenhadas pelo humane genérico: “ler com @ mo, como faz uma crianga cega, ¢ ler com a visdo séio processos psicol6gicos diferentes. embora cumpram a mesma funcdo cultural da conduta da crianca € tem, basicamente, um mecanismo fisiolégico similar" (VYGOTSKI, 1997. . 28), Mesmo que as discussdes sobre neuro- plasticidade datem da contemporaneidade, os trabalhos de Vigotsk ja indiciam que o psiquismo possui certa flexibilidade. e que as capacidades adaptativas de reestruturagso pociem ser acio- nadas por meio das necessidadies ¢ exigéncias impostas veto meio social Essa defesa sustenta-se quando 0 autor expla- hha que “nossa substancia nervosa é, certamente, a mais plastica de todas as que conhecemos 6/12 Eaucapio por esente Porto Alegre. 12.0.4 p £42 fn-dez 2008 @-41900 na natureza, Portanto, pode desenvotver, como henhuma outra, a capacidade para as mudan- Gas" (VIGOTSKI, 2003, p. 143) ou ainda quando defende que 0 desenvolvimento cultural do comportamento nao se relaciona forgosamente a determinacio Grado’ “a fala ndo esta obrigato- riaments ligada a0 aparetho fonador: ela pods serrealizada em outro sistema de signos. assim como a escrita pode ser transferida do cami- nho visual pare o tat (VIGOTSKI, 2011. p. 868), Vigotski, ao se desvencithar do determinismo biolégico, parece trazer para plano pratico aguilo que Baruch Spinoza (1832-1677) asseverou ho campo das idelas: 0 fato & que ninguém determinou. até agora (0 que pode 0 corpo, isto . a experiencia ninguém ensinou, até agora, o que @ corpo = exclusivamente pelas eis da natureza enquanto cconsiderada apenas corporalmente. sem que seja determinado pela mente - pode @ o que do pode fazer (SPINOZA, 2015, p. 100) A partir do que foi exposto até entao perce- ber-se que Vigotski (1997, 2011, 20180) € bastan- te categorico em afirmar que a educacao das criangas com deficiéncia deve ter como meta 0 aperfeigoamento das formas culturais de com- portamento por meio do estabelecimento de caminhos alternativos de desenvolvimento *o desenvolvimento cultural é a principalesfera em que possivel compensar a deficiéncia. Onde no € possivel avangar no desenvalvimento or- gAnico, abre-se um caminho sem limites para 0 desenvolvimento cultural’ (VIGOTSKI. 2011. p. 869), Assim, compete a “procedimentos peda- gogicos especiais’ (VYGOTSKI, 1997, p. 32) eriar instrumentos culturais auxiliares “adaptadoss & estrutura psicolégica dessa crianca’ (VYGOTSKI. 1997, p. 32) visando © acesso pleno as formas sociais de conduta e organizacao. De forma pioneira para a época. Vigotsk revo- luciona os estudos sobre a deficiéncia a0 propor uma abordagem que se afasta de concepgées ‘com foco apenas nas limitagbes ou em estabelecer comparages em relag0 a crianga dita normal, sé receante aubizagio. sempre centradas na perda. Nesses pressupostos “comparo principalmente a propria crianca com ela mesma em diferentes etapas de seu desen- volvimento® (VIGOTSKI, 2018a, p. 64). Nao € que para a Teoria Hist6rico-Cultural a defciéncia no exista, ela 6 um dado material que incice sobre © desenvolvimento produzindo obstaculos de adaptagao ao meio ¢ dificuldades de acesso 0s bens culturais. Porém. justamente por ‘riar dificuldades, estimula um progresso elevado e in- tensificado” (VYGOTSKI, 1997. p.14)0 seu estatuto é redimensionado a0 percebemos que, por produzi adversidades e romper com 0 equlisio tipico do desenvolvimento, reorganizagées psicolégicas 80 mobilizadas para estimular a emergéncia de caminnos altemativos de adaptaco “todo defeito criaos estimulos para elaborar uma compensacso” (VYGOTSKI, 1997, p.14), (Os caminhos alternativos de desenvolvimento nos casos da deficiéncia se orientam para acom- pensagéo social da limitacde orgéinica estabele- cendo a producéo de novas possibilidades (VY- GODSKAYA, 1999: NUERNBERG. 2008, DAINEZ: SMOLKA. 2014: DAINEZ: FREITAS. 2018), Essas “substituem ou superpdem fungdes que buscam compensar a deficigncia @ conduzir todo 0 sis- tema de eauilibrio rompido a uma nova order” (VIGOTSKI, 201, p. 86g) por meio de uma forga criadora A teoria da compensac0 ¢ da formagso de caminhosindiretos reforca 0 carater criador e potente do desenvolvimento humano e, através da defciéncia, podemos pereeber im “desenvol- -vimento criativo, infnitamente diversos, as vezes profundamente incriveis, iguals ou semethantes aquelas que observamos em desenvolvimento tipico de uma crianga normal’ (VYGOTSK\. 1967, P.19). Em sintese. urge estabelecer nas praticas educativas e terapéuticas voltadas para pessoas com deficiéncia ‘o principio da compensac3o, ou sela, de um desenvolvimento criativo” (VYGOTSKL 1997, 9. 35). questo abordada no préximo item, adaptados pars a poca om que 0 tento fo escrito Com apreclamaydo ds DeclarapSo de Sla- marca. em 1994 0 vocaoulo gannou destaque na detesa de que os rans pedagogeas deveram i” com centro cana. adapter ps suns necesscnces Fabricio Santos Das de Abreu Patricia Lime Martins Pederiva © desenvoluimente da pessoa com defckénea na tera nstorico-clfural. eames maieies e compensaca0 7/12 A teoria da compensagao social Para a Teoria Historico-Cuttural os obstacu- los que impulsionam o desenvolvimento e que mobilizam as forcas criadoras paraa compensa- cdo estéo entrelagados as condigdes obietivas impostas pelo meio social. Vigotski, de forma bastante didética. sintetiza esse proceso cro- nologicamente em trés momentos: 1) Principio de condicionamento social do desenvolvimento: refere-se a inadaptagao da crianga ao meio (sela pela deficiéncia ou por qualquer outro desafio) que acaba por gerar abstéculos ao desenvol- vimento: 2) Principio da perspectiva futura: os empecithos geram estimulos para o desenvol- vimento compensatério, “tornam-se seu alvo € ‘orientam todo 0 proceso” 2006, p.285)¢, por fim, 23) Principio da compensacéo os entraves incitam forcas que elevam @ compelem “as funedes a0 _aperfeigoamento, permitindo a superacao destes obstaculos. ou seja. a adaptagao" (2006. p. 285). Vigotski encontra na Psicologia Individual do Psiquiatra austriaco Alfred Adler (1870-1937) inspi- rago para referendar suas idelas sobre compen- ‘saga0 € 0 carater positive da deficiéncia, O autor bielorusso no texto “0 defeito a compensacao’ datado de 1924, escrito em sua fase inicial em Psicologia e sob a inspiragéo da reactolégia reflexolégia - bases teoricas que se atasta a posteriori - apresenta uma forte vinculagao aos postulados da Psicologia Individual que vao se dissipando em seus escritos futures, principal- mente naqueles pés 1928, Temos como suspeita que essa aproximagéo, bastante criticada por seus perseguiclores do period stalinista (RUDNIOVA. 2018). tem. além de uma admiracao te6rica por Adler. uma conotagao pessoal Atuberculose. os sofrimentos advindos pela doenga ea iminéncia da morte acompanharam a trajetéria intelectual de Vigotski desde os seus 1g anos “Vygotski devie saber nao apenas do distan- ciamento da morte, como todo ser human, mas centendia duplamente quea morte se aproximava’ (DEL RIO: ALVAREZ. 2007. p. 307). Esses autores apontam na que obra A Tragédia de Hamlet na uma tentativa de Vigotski dar"sentido para aceitar iste uma dteenga sua propria vida, sua propria tragédia”(VIGOTSKI 3999, p. 207). Supomos que o mesmo ocorre em “O defeito e a compensagio’ (VYGOTSKI, 1997), ois, nos parece que para aceitar o fatalismo da doenga era necessério se aproximar de uma teoria que demonstrasse ques diregao do movimento psicologico tende sempre a uma superacdo de dificuldades de todas as classes” (ADLER, 1968 54) © que a vida “é uma tendéncia da incom- pletude para a completude, Entéo, toda a linha da vida do individuo tem a tendéncia até a su- eragdo. um afa de superioridade’ (ADLER. 1968. 56). Em suas anotagées. sobre uma de suas internagdes médicas para tratamento, pode-se deduzir que Vigotski sabia de suas debilidades e da proximidade de sua morte: ‘No meio ano que passei nessa casa, onde a morte era téo comum € ordingria como 0 café da manh e a visita do médico. absorvitantas impresses da morte que estou inctinado a ela como uma pessoa cansada tende a dormir (VYGOTSKY. 2018c. p. 65) Por inspiragdes da Psicologia Individual de ‘Adler, Vigotski defencle que ‘todo deterioramento. ou acdo prejudicial sobre o organismo provoca por parte desse reacdes defensivas, muito mais energicas e fortes que as necessérias para para- Usar 0 peigo imediato' (VYGOTSKI. 1997 p.42€ nos chama aatenco que para exemplificar essa questo se utiliza da propria doenga: “quando se trata um paciente tuberculoso, ao injetar-the tuberculina, vale dizer, 0 téxico da tuberculose se esta contando com a supercompensagao do organismo" (VYGOTSKI, 1997. p42). Para poten- Cializara si mesmo era necessério repetir (como 0 faz varias vezes nos textos defectolégicos) € se apropriar da idela de que “da fraqueza surge a forca, dainsufciéncia surgem as capacidades” (VIGOTSKI, 2006, p 286). Para Vigotski a Psicologia Individual de Adler compreende a deficiencia por um viés dialético © ontracitéro:"o defeito. a nadaptagao. a insufcién- ia, no & somente algoa menos, uma deficiéncia uma magnitude negativa. mas um estimulo para a supercompensacéo"6 (VYGOTSKI, 1997. p. 44). E dele também, na defesa de Vigotski. a introdu- rte compensagio e supercomoenaaydo Essa se materaliza quando a ceficincia € compencad para alm 8/12 Eaucapio por esente Porto Alegre. 12.0.4 p £42 fn-dez 2008 @-41900 30 da perspectiva de futuro na psicologia ‘ele hos liberta do poder das teorias conservadoras, voltadas para o pasado’ (VIGOTSKI, 2006, p.287. Ao defender’o que decide o destino da persona- lidade, em Ultima instancia, ndo é 0 defeito emsi mas suas consequéncias sociais, sua realizacdo sociopsicologica’7 (VYGOTSKI. 1997. p. 45) Adler impée a necessidade de nao apenas entender 0 ato psicolégico em sua vinculagaocomo passado, assim como Freud, mas compreendé-lo como. um fenémeno em eterno movimento a pattir ‘dos rodeios de desenvolvimento, seus complicados Ziguezagueios’ (VYGOTSKI, 1997, p15) ‘Apesar de um Nerte inicial com aqueles pres- supostos da Psicologia Individual, Vigotski, em textos da fase final da vida, opta por afastar-se deles, dentre outros motives, pois Adler analisa a. compensacéo por um carater generico ¢ auto- matico. como se essa reorganizagao psicologica tivesse um “significado universal em qualquer desenvolvimento psiquico” (VYGOTSKI, 1997. p. 45). Vigotski (1997, 2006) aponta que seria um erro otimista ¢ infundado a suposigéo que a compensagao sempre lograra éxito. pois como qualquer processo de superacao ¢ de luta ‘pods ter duas conclusdes extremas:a vitériae a derro- ta’ (VYGOTSKI, 1997, p. 26), ncluindo as variantes de um polo a outro. A compensagao, em bases vigotskianas, portanto, é um proceso sécio-bio- logico ndo esponténeo ¢ torna-se um equivace supor que houvesse a transformacdo de “defeito emvirtuide. independentemente das condicées organieas intemas e das condigdes externas nas quais transcore esse proceso” (VIGOTSKI, 2006, 286), O caso de Hellen Keller, eternizado no cinema em © milagre de Anna Sullivan (1962). demonstra que os fatores sociais. pol econémicos exerceram. juntamente com ele- mentos biolégicos preservados, influgncia de- os € ‘So eservowmento aco Quando gee 90 026) pessoas com neapacidade Ge USS tomar cisiva para que a compensago ocorresse: "sua aprendizagem se converteu em um problema de todo o pals. Fizeram enormes exigéncias sociais ueriam vé-la transformada em doutora. em es- ciitora, em palestrante e ela cumoriu’ (VWYGOTSKI 41997, p. 54). Dessa forma, Vigotski sintetiza que a compensagao ¢ determinada por duas Forgas: “as exigéncias sociais que se apresentam a0 de- senvolvimento e a educagao eas forgas intactas da psique” (VYGOTSK(. 1997. p68) Nesses termos, o desenvolvimento da pessoa com deficiéncia tem como guias as exigancias do ambiente social a qual pertence e a neces- sidade de converter-se em ‘uma unidade social determinadar (VYGOTSKI, 1997, p. 19). Porém. 0 caminho percorrido tera como orientacao um modelo ideal, ou seja, o humano generico: a compensac&o nao “ui livremente, mas por um determinado caminho social’ (VYGOTSKI. 1967. . 19). Em sintese, 0 desenvolvimento dessas pessoas est condicionado socialmente por dois fatores: 2/a produgio cultural da deficiéncia em um contexto social que infturé no sentimento de inferioridade: e. 2) a orientagao social da com- pensagao pars a adaptacéo 30 meio. Conforms ja discutimos. deficiéncia na cultura ocidental assume a fungo de um signo social da diferenca na qual aquele que a possui é co- locado em uma posi¢ao inferiorizada por meio de uma espécie de ‘destocamento social” (VY- GOTSKI, 1997, p. 60). Suas relagdes com o meio que 0 rodelam“comeeam a fuir por um caminho diferente a da crianga normal’ (VYGOTSK, 1997, . 60) em que a valoracdo que o meio faz da deficiéncia engendra “ruptura. um deslocamento dos sistemas que determinam todas as fungoes da sua conduta social” (VYGOTSKI. 1997. p. 60) A agao da deficiéncia 6 sempre secundaria € mediada, pois"a crianga néo sente diretamente Go enraoranaro pessoas GUE nascem com aude aca tomsm-se musIeos rstas e pessoas com oetetos de ala torram-se ofacares” WYGUT: UR 905 22) Emuma ce suas anctapées Vigotsa vacua asupercompensagaa a dos x=mplos "Adela Ge supercernpenssez0 Acer Sabre Bethoven © Deméctenes (2025p. £0) primeir, mesmo quanco so torre sur, compés a famosa Nona Siena a Dernéstones venceut a gaguetae estrou para anstola como um dos mares cradores ca Gréoa Petarto.asuperoompersanso se ala a0 Geson- \olumente abentuado eva a consclens da hiporsauge no organismn doers a rarsformacso 6e deve em nieigenca capsedeoe {atenio | |ocamnho a0 pe’acconsimo passa staves da supmragao dos mecmenios da fic dade da fungao corso estima patasus elevarie’ WGOTSA 2097 “2oesar Ge a cag ser de um traene de Um text de Vigatsh ele chega a essa assertva a parr Se uma 3 bugdesde Alor para paccioga 80 sobre a8 cont- Fabricio Santos Das de Abreu Patricia Lime Martins Pederiva © desenvoluimente da pessoa com defckénea na tera nstorico-clfural. eames maieies e compensaca0 9/12 sua deficiéncia, percebe as diffculdades que derivam da mesma’ (VYGOTSKI, 1997, p. 18) a0 acessat a sociabilidade, pois a deficiéncia age como um signo que impugna a pessoa cue a possui um ‘destocamento da posi¢ao social (YGOTSKI, 1997. p. 20). Seus vinculos com as domais pessoas assentam-se em outras bases que a colocam sempre um lugar menor @6m um meio social empobrecido em relagdes e media- es. Por influéncia de Adler. Vigotski defende que 0 rebaixamento dese individuo na posigéio social gera um sentimento de inferioridade, ter- mo esse absorvido da Psicologia Individual, que atualiza 0 bindmio defciéncia-compensacac “0 defeito nao provoca a compensacao direta, mas indiretamente, atraves do sentimento de inferioridade que erie" (VYGOTSKI, 1997. p. 18). Ha, portanto, a incluso de um terceiro elemento intermediario: deficiéncia-sentimento de inferio- ridade-compensac3o, Adler (2960, 1968) explica que o sentimento de inferioridade € uma caracteristica tipica do desenvolvimento infantil. pois a crianga desela ‘agir sobre o mundo, mas logo percebe que isso 6 impossivel devido as suas caracteristicas: “da imperfeigao dos seus orgaos. da sua inseguranga edo seu estado de dependancia, da sua neces- sidade de se apoiar nos mais fortes ¢ de sua su- bordinacao aos outros nasce aquele sentimento de insuffciéncia (ADLER, 1960, p. 37). Nas criancas com deficiéncia ou com alguma enfermicacie 0 sentimento de inferioridade agudizado, pois © meio social ira demarcar suas incapacidadies, orem, esse se converts em forca para a supe- ragao (ADLER, 1960. 1968). Conforme assinala Vigotski“o sentimento ou consciéncia da menor valia, que surge no individuo em consequéncia do defeito, é valorizagio da sua posigao social @ essa se converte na principal forca motriz do desenvolvimento psiquico™ (1997. p. 43). A deficiéncia ndo se compensa unicamente ela via biologica - tal qual ocorre quando um Orgdo se torna capaz de suprira insuticiéncia de outro. Essa ideia € bastante arreigada nos estu- dos sobte a deficiéncia, pois acredita-se que a natureza recompensaria as pessoas que a pos- suem com um desenvolvimento extraordinario de outras funcdes preservadas: “acreditam que a natureza, ao nos privar de um dos sentidos, nos recompensaria com um desenvolvimento inusitado dos outros’ (VYGOTSKI, 1997, p.6. Essa concepcao ¢ percebida, por exemplo, quando se reverberam que cegos tém um tato extraordinario ou que surdos tém @ vis8o agueada, como se essas habilidades fossem inatas ou universais a todos os pertencentes a esses grupos. Para Vigotski,o foco de intervencaonao deveria sera reabilitagao sensorial, em uma espécie de com- pensaco viearia do aparato perceptualileso, mas a clag&o de métodos educacionals especificos e sistemas simbélicos alternatives para o desen- volvimento das funcdes psicologicas mediadas © 0.acesso aos processos de dominio dos meios extetno de desenvolvimento cultural tais comoa linguagem. calculo. escrita ete (KOZULIN. 1990) No caso dos cegos € surdos. por exemplo, no surgem novas habilidades exclusivamente pelo fato de possuirem uma deficiéncia, essas ja Integram o aparato biopsiquico do humano, @ so acionadas por meio da necessidade de acesso a cultural e. consequentemente. pela compen- sagao social. Tomna-se importante frisar que “as criangas com defeito nao criam uma ‘espécie particular de homens, segundo a expressao de K Budden, mas por causa da peculiaridade do desenvolvimento, manifestam a tendéncia de aproximarem-se a determinad tipo social normal’ (VYGOTSKI, 1997. p. 34). ou seja, a com- pensagao tence “na dlirecdo de um certo tipo social’ (VYGOTSKI, 1997. p. 48). Em sintese. compensacao no gera um novo tipo de sujeito ou uma espécie particular. mas por “pressdo das exigéncias sociais" (VYGOTSKI, 1997. P18). que sao idénticas para pessoas comesem Geficiéncia, a estrutura da personalidade tendea “lograr determinado tipo social’ (VYGOTSKI, 1997, . 18), O autor explica que no desenvolvimento da ctianga. “o que deve ser obtido ao final. como seu resultado” (VIGOTSKI, 2018a, p. 85) é dado elo meio, ou seja, 0 desenvolvimento nao se guia 20 acaso, pois as formas culturais de com- portamento - sintese da histeria social da huma- 10/12 Eaucapio por esente Porto Alegre. 12.0.4 p £42 fn-dez 2008 @-41900 hidade — ja estao presentes na sociabilidade em um formato terminal ou ideal, ‘Ideal no sentido de que consiste em um modelo do que deve ser Obtido ao final do desenvolvimento, ou terminal no sentido de que é essa a forma que a crianga, {20 final do seu desenvolvimento, deveré alcancar’ (VIGOTSKI. 20188. p. 89) Consideracées finais Demonstramos ao longo deste texto que Vi- gotski ndo desconsidera os efeitos biolégicos da deficiéncia. chamados por ele de defeito prima- rio, porém optou por estabelecer um olhar para além da deficiéncia, do diagnéstico e do rétulo. Luria (2012, p. 34) lembra que ele “rejeitava as descrigdes simplesmente quantitativas de tais criangas, em termos de tracos psicolégicos uni- dimensionais refletidos nos resultados de testes’ Cinteresse do autor (VIGOTSK, 1997, p. 82 recai em demonstrar que as narrativas ¢ as produedes semidticas sobre a deficiéncia no ambiente social 540 muitos mais perversas para o desenvolvimen- to. pois: “absolutamente todas as peculiaridades psicol6gicas da crianca deficiente séo baseadas em um niicleo nao biologico. mas social’ Em texto8 escrito ha quase 100 anos, Vigotski anuncia que "é possivel que nao esteja Longe o tempo em que a pedagogia se envergonhe do proprio conceito ‘crianga deficiente’ como ingica- So de um defeito insuperavel da sua naturezar (VYGOTSKI, 1997, p. 82). € que “gracas ao siste- ma social modificado, a humanidade alcancara condigdes de vida diferentes. mais saudaveis" (VYGOTSKI, 1997. p. 82). Quando a incluséo es- colar ainda no era pauta, Vigotski mostrava-se vanguardista ao defender que “o cego tem que viver uma vida em comum com videntes, para Isso deve estudar na escola comum’ (VYGOTSK 1997. p. 85), Esse modelo de escola teria a tarefa de “educar aos cages. quanto de reeducar os que ‘veem’ (VYGOTSKI. 1997. P85). Vigotski, no contrafluxo da sua épocag, ofe- rece para a psicologia e para a educac3o uma interpretacio mais otimista para o fenémeno da eficiéncia ao demonstrar que essa é uma variante do desenvolvimento humane, uma “peculiarida- de qualitative’ (VYGOTSKI, 1997, p. 13). Compete, Portanto. praticas pedagégicas de inspiragéo historico-cultural “dominar esta peculiaridade explica-la, estabelecer os ciclos € as metamor- foses do desenvolvimento, suas desproporges ¢ centros mutaveis, descobriras leis da diversidade” (WYGOTSKI. 1997. p.14).A partir dessas proposigoes, conforme explica Tunes (2017), 6 fundamental perceber a deficiéncia por um principio de va- Rabilidade, isto é, como caracteristica inerente a0 desenvolvimento humane. O grande desafio encontra-se em desvendar os motives dessas vvariagdes e 05 caminhos inciretos e as compen- sagdes que so organizadosinae pela cultura para que as pessoas que possuem alguma deficiéncia tenham o diteito de se desenvolverem em pleni- tude e integralidade, pois “o objeto nao constitui ainsuficiéncia em si, masa etianga oprimida pela inguficiéncia" (VYGOTSKI. 1997, p.14).0 foco. por- tanto, esté na reago do individu. nas formas de reorganizac&o do psiquismo e composigao da personalidade frente a deficiéncia e a todos 03 cerceamentos que ela engendra. Nessa linha, Vigotski (1997, p. 81) estabelece que*emum ambiente social diferente, a cequeira no é psicologicaments igual’ Adleficiéncia, por- tanto, como um feito social e no universal. vai inciair de forma divergente a depender de como ‘omeioa significa. Essa assertiva tem ainda mais endosso com os exemplos trazidos por Sacks (2010) e Ferreira (2010) a0 abordarem a dinamica da deficiéncia em outras culturas. Aquele relata que na itha de Martha's Vineyard. em Massachu- setts, devido a uma mutacdo genética, uma forma de surdez vingou por 250 anos na localidade. De acordo com os registros, no século XIX quase ‘Teita “cers dela psco.ogi ta pecagegi dela defected rant (VYGOTSKL 4997 sono em 524 © pero rstorco Ga reavgao academicn de vigolk € matcada Toten potas praveas eugenicas € pelo Getermiesmo bilo Era comum adefesa que olor dos ujetosestva elacsonas & quart Boda Suaintalgenca Essa premssa de grande orga res séculos MX e 3X impactcu dretarenis a vida de delerminados grupes minortres nagres, muveres pessoas com defeienca, Imsgrantes ete) Conform demonstra Goud gag) esses foram vlmas Ge um giance conlue Genten Que busoave wverotza ‘Srauraiza pelo vies bologco-natual opressoes e emceammntos Ge Gatos ABREU) 2039) Fabricio Santos Das de Abreu Patricia Lime Martins Pederiva © desenvoluimente da pessoa com defckénea na tera nstorico-clfural. eames maieies e compensaca0 1/12 no havia familias sem incidéncia de surdez. Em resposta a essa situagao, toda a comunidade aprendeu a lingua de sinais para que fosse pos- sivelalivre comunicagéo entre ouvintes e surdos. Estes, entio, ‘|. quase nunca eram vistos como surdos ¢ certamente ndo eram considerados doficientes" (SACKS. 2010. p. 39). Caso seme- Lhante fol identificado no Brasil com os estudos de Ferreira (2010). que observou entre os indios (Urubu Kaapor Luma incidéncia elevada de casos de surdlez (cerca de um a cada 75 habitantes) devido & necessidade de comunicagao, esse povo desenvolveu ums lingua de sinais especi- fica, a Lingua de Sinais Kaapor Brasileira (LSKB), que é utilizade por todos da comunidad Nessa configuracdo social ndo existe exclusdo do surcio pelo seu déficit de acuidade aucitiva, estes S80 Considerados apenas monolingues. a0 passo que 0s ouvintes. bilingues. transitam pelas linguas oral ¢ sinalizada. © que pode ser considerado uma utopia comunista de Vigotski materiaiza-se nesses contextos, pois “se acreditarmos em um pais onde 0 cego e@ surdo encontrem um lugar navida. onde a cegueira nso signifique inevitavel- mente uma insuficiéncia. af a cegueira no sera um defeite” (VYGOTSKI, 1997, p. 94). A pattir do que foi exposto a0 longo deste artigo, recordamos Marx e Engels (2009, p. 40). que estabelecem como primeiro objetivo de toda a existéncia humana e de toda a historia & "0 pressuposto de que os homens tém de estar em condigdes de viver para poderem fa- zer histori’. Portanto, a luta pela existéncia dos humanos. diferente cos demais animais, néo se vincula exclusiva mente a motivos biolégicos ou 4 uma aciaptago passiva ao meio. Q individuo luta dramaticamentet0 por uma existéncia cul- tural em uma busca constants para eliminar as inadaptagbes socials que se interpbem entre ele © 0 ambiente que 0 circunscreve. “Assim como a vida de todo organismo esta orientada pela exigéncia bioldgica da adaotaggo. a vida da personalidade esta orientada pelas exigéncias do 4% Vigoteti 2000.» 28nd Ineo 0 1 "a dinica da personalidad rama’ que ervoiv “tao "chogue de: ‘com base nas fommdacbes de Poutze’ Gg7e p 8) que esiabelece “0 noiiguo € singular porque sua ida e singular ‘cessovide porsun ver se sngular pelo seu cortevso sun singuladede ne ©. pos quaint seu ser social” (VYGOTSKI, 1997, p45). que se coloca em relevo é que a deficiéncia nao destrdi a capacidade humana de perseverar pela existén- cia. mas forjaa ctiagSo de caminhos alternativos de desenvolvimento e engendra compensacdes Referéncias ABREU, F.S.D A falsa medida do homem. Revista ‘Com Censo. 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Brasil profes- sora da Faculdade de Ecucago (FE) da Universidade de Brasila (Une, em Brasilar DF. Brasil, Endereco para correspondéncia Fabricio Santos Dias de Abreu/ Patricia Lima Martins Pederiva Universidade de Brasilia Faculdade de Educacéo Campus Universitario Darey Ribeiro ‘Asa Norte, 70910-900 Brasilia, DF Brasil Os textos deste artigo foram revisados pelo Poti Comunicagdo e submetidos para validagdo dots) ‘autortes) antes da publicagdo.

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