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Organizadores

Marlene Tamanini
Francisco G. Heidemann
Eliane Portes Vargas
Sandro Marcos Castro de Araújo

EDITORA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC
Marcus Tomasi
Reitor
Leandro Zvirtes
Vice-Reitor
Matheus Azevedo Ferreira Fidelis
Pró-Reitor de Administração
Leonardo Secchi
Pró-Reitor de Planejamento
Soraia Cristina Tonon da Luz
Pró-Reitor de Ensino
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Pró-Reitor de Extensão, Cultura e Comunidade
Antonio Carlos Vargas Sant’Anna
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação

EDITORA UDESC
Marcia Silveira Kroeff
Coordenadora

CONSELHO EDITORIAL
Marcia Silveira Kroeff – Presidente
Nílson Ribeiro Modro – CEPLAN
Alexandre Magno de Paula Dias – CESFI
Janine Kniess – CCT
Rosilaine Ripa – CEAD
Edelcio Mostaço – CEART
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Sílvia Maria Fávero Arend – FAED
Rosana Amora Ascari – CEO
Renan Thiago Campestrini – CEAVI
Renata Rogowski Pozzo – CERES
Veraldo Liesenberg – CAV

EDITORA UDESC
Fone: (48) 3664-8100
E-mail: editora@udesc.br
http://www.udesc.br/editorauniversitaria
O CUIDADO EM CENA:
Desafios políticos, teóricos e práticos

Organizadores
Marlene Tamanini
Francisco G. Heidemann
Eliane Portes Vargas
Sandro Marcos Castro de Araújo

FLORIANÓPOLIS
2018

EDITORA
COLABORADORES
Marlene Tamanini
Ana Paula Vosne Martins
Claudia Pedone
Sonia Roncador
Thays Almeida Monticelli
Sandro Marcos Castro de Araújo
Marcela Komechen Brecailo
Daniela Isabel Kuhn
Gilson Leandro Queluz
Maria Izabel Machado
Raquel Barros de Almeida Araújo
Marly Marques da Cruz
Eliane Portes Vargas
Cláudia Medeiros de Castro
Nicolle Feller

PROJETO GRÁFICO/CAPA
Mauro Tortato

REVISÃO
Francisco G. Heidemann

C966 O cuidado em cena: desafios políticos, teóricos e práticos. / Marlene Tamanini


et al. (Org.). – Florianópolis: UDESC, 2018.

380 p. : 21cm.

ISBN: 978-858302-141-4
Inclui Referências.

1. Democracia do cuidado. 2. Abordagens políticas. 3. Vulnerabilidades.


4. Feminização. 5. Autonomia I. Tamanini, Marlene. II. Heidemann, Francisco G.
III. Vargas, Eliane Portes. IV. Araújo, Sandro Marcos Castro de. V. Título.
IV. Ebook.
CDD: 350.847 – 20. ed

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA: Biblioteca Central da UDESC


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................7

PARA UMA EPISTEMOLOGIA DO CUIDADO: TEORIAS E POLÍTICAS.................31


Marlene Tamanini

EM BOAS MÃOS: ASSOCIATIVISMO FEMININO E FILANTROPIA NA


ORGANIZAÇÃO DA PROTEÇÃO MÉDICO-SOCIAL À MATERNIDADE
E À INFÂNCIA..........................................................................................................................71
Ana Paula Vosne Martins

MADRES ECUATORIANAS BAJO LA LUPA DEL ESTADO ITALIANO: MIRADAS


DISCRIMINATORIAS DE LAS RELACIONES DE GÉNERO Y GENERACIONALES
DE LAS FAMILIAS MIGRANTES...........................................................................................99
Claudia Pedone

CLARICE, PATROA................................................................................................................137
Sônia Roncador

CUIDADO E PODER: AS RELAÇÕES DO TRABALHO DOMÉSTICO


REMUNERADO ATRAVÉS DA CULTURA DOMÉSTICA............................................161
Thays Almeida Monticelli

CUIDADO, GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL: ESSENCIALIZAÇÕES


E INVISIBILIZAÇÕES NO TRABALHO DE CUIDADORAS DE PESSOAS COM A
ENFERMIDADE DE ALZHEIMER.......................................................................................185
Sandro Marcos Castro de Araújo

O CUIDADO DE CRIANÇAS: DESAFIOS CULTURAIS, SOCIAIS E


POLÍTICOS.............................................................................................................................217
Marcela Komechen Brecailo
MULHER AGUENTA TUDO: CATADORAS, CUIDADO DA FAMÍLIA E
TRABALHO PRECÁRIO ..................................................................................251
Daniela Isabel Kuhn e Gilson Leandro Queluz

CUIDAR DE SI A PARTIR DAS TECNOLOGIAS DO EU: O CUIDADO NA


ECONOMIA SOLIDÁRIA DESDE AS EXPERIÊNCIAS NOS CLUBES
DE TROCA .............................................................................................................................279
Maria Izabel Machado

PRÁTICAS DE CUIDADO NO TRATAMENTO DA TUBERCULOSE


NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE NA ROCINHA/RJ:
A VISÃO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE, DOS USUÁRIOS E SEUS
FAMILIARES.............................................................................................................................311
Raquel Barros de Almeida Araújo, Marly Marques da Cruz e Eliane
Portes Vargas

DESAFIOS PARA O CUIDADO NA ATENÇÃO AO PARTO DAS MULHERES


IMIGRANTES..........................................................................................................................343
Cláudia Medeiros de Castro

AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DA VONTADE E A RESPONSABILIDADE CIVIL


MÉDICA: CUIDAR DA VIDA, CUIDAR DA MORTE.....................................................359
Nicolle Feller

SOBRE AS ORGANIZADORAS E OS ORGANIZADORES.......................................379


APRESENTAÇÃO

O foco central deste livro é o cuidado e os desafios que ele nos apresenta
a partir dos diferentes contextos, das teorias, das práticas e da pesquisa,
tanto em âmbito nacional quanto internacional. No livro são contempladas,
como um conjunto reflexivo, importantes interfaces a respeito da prestação
dos cuidados; e os textos aqui publicados, em forma de capítulos, têm seus
fundamentos em pesquisas, abordam o estado da arte e recuperam aspectos
das tradições teóricas, ampliando assim os desafios ao seu escopo. Em cada
capítulo aparecem as controvérsias dos desafios trazidos pelas práticas já
estabelecidas, ou não, decorrentes da presença ou ausência de legislações, da
forma como interatuam, ou não atuam, as políticas públicas e dos diferentes
tipos de cuidado colocados em ação frente às exigências dos diversos
contextos.
Alguns contextos têm similitudes em suas exigências de cuidado e
outros conferem o imperativo de se pensar na vulnerabilidade de todas as
pessoas frente à vida, à morte, ao trabalho, à sobrevivência, ao abandono,
às condições de saúde individual e coletiva, e como é, pode ser ou deve ser,
sua relação com os sistemas de cuidado. Tem-se, portanto, um conjunto de
questões, com sua imersão nas diferentes intersecções relativas ao cuidado no
mundo contemporâneo e as suas complexidades epistêmicas, sua relevância
social, cultural, econômica, emocional e política como um fazer e, sobretudo,
com os processos de gendrificação dentro das relações com o cuidar e ser
cuidado. O cuidado vem se tornando a cada dia mais exigente, dada a grande
complexidade de questões que nele estão envolvidas. As vulnerabilidades e as
necessidades, bem como a demanda de trabalho físico, emocional e de saber
fazer estão com ele imbricadas e se tornam mais complexas e mais exigentes
frente aos contextos de envelhecimento populacional, de necessidades da
infância, de migração, falta de renda, adoecimento, desafios da preservação
do planeta e de toda sorte de atitude que exige ação humana na forma de
atenção e solicitude ética, pessoal e política.
Nos desafios do cuidar pode-se identificar diferentes epistemologias
e uma multiplicidade de abordagens, desde as que estão focadas na ética do

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cuidado para pensar sua democratização, sua justiça e seu compartilhamento,
quanto para constituir seu reconhecimento simbólico, cultural,
democrático e a sua eficácia frente às configurações relativas à economia, à
transnacionalização do trabalho, sobretudo feminino, e a sua organização
dentro dos diferentes países, com as múltiplas implicações de gênero, classe
e raça e dos novos desafios frente aos processos de migração.
Os temas do cuidado estão particularmente imbricados nas políticas
públicas e nos governos, na focalização da família, na profissionalização
de cuidadoras e cuidadores, exigindo formas sociais e governamentais de
atuação solícita, adequada, informada e eficaz, além de que ele traz também
um rol de conteúdos próprios da filantropia institucionalizada e do estado
das questões advindas de éticas comunitárias.
São muitas e diferentes as epistemologias, em cada texto deste
livro, e em todos estão presentes desafios, sejam eles relativos às políticas
culturais de gênero, às cuidadoras, às atividades filantrópicas, hospitalares,
à raça, migração, doença, fome, pobreza ou às decisões sobre a vida e a
morte. Convidamos a leitora, o leitor, a ler o livro com entusiasmo crítico e
com abertura reflexiva, considerando que muito ainda poderia ser dito, nos
seus intercursos, nos seus ditos não ditos e para cada pensamento, teoria,
linguagem produzida em outros contextos, quando confrontados com os
nossos contextos de pesquisa. Todos os textos nele contidos, são resultados
de pesquisas e de processos de formação contínuos; portanto, os temas e
seus desafios teóricos estão sempre abertos e podem gerar novas redes de
pensamento e de interpretações. Na sequência, pode-se identificar aspectos
do que se encontra em cada capítulo do presente livro.

Marlene Tamanini, em seu capítulo “Para uma epistemologia do


cuidado: Teorias e políticas”, posiciona o tema do cuidado no campo da
produção teórica e das desnaturalizações conceituais e baliza os fundamentos
para construir reflexão e propor mudanças. Este fazer permite enxergar
como as normatividades e os grandes princípios abstratos que delineiam
este campo – no sentido de como são as práticas em cuidado – não levam
em consideração o lugar dos sujeitos e sequer suas muitas interfaces, que
são todas problematizáveis, desde as que são compostas pelas relações entre
trabalho, reprodução e cuidado, casa, crise do cuidado e transnacionalização
do trabalho, até as que se compõem nos conteúdos das relações de gênero,

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no perfil de sexo e nas necessidades de quem cuida. A autora faz uma extensa
revisão teórica, com o intuito de visibilizar a produção, em sua maior parte
internacional, e reposicionar os conceitos, repensar suas normatividades,
bem como recolocar velhas e novas questões à sua reconfiguração, tendo
em mira reconstruí-lo como política social com abertura para os inúmeros
contextos de especificidades onde o mesmo é exercido.
A pesquisadora analisa como este campo teórico tem se constituído
em termos de sua consolidação conceitual e, dessa forma, produz reflexão
a respeito de suas diferentes e múltiplas perspectivas epistêmicas. Ao fazê-
lo, conversa com as ideias de Gilligan, Le Goff, Garrau, Tronto, Noddings,
Arendt, Ruddick, Thomas, Graham, Ungerson, Stacey, Molinier, Laugier,
Paperman, Gordon, Fraser, Kittay, Nussbaum, Feder, Hirata, Kergoat. E abre
espaço para os muitos paradoxos envolvidos, quando o lugar do cuidado está
em relações heterogêneas e exige um olhar para agências complexas, como as
familiares, locais, estatais, nacionais, internacionais e transnacionais.
Ela também demonstra como este é um campo de conhecimentos
envolvido em tensões com as relações de poder imbricadas nele e com
suas prerrogativas de feminização, que há muito tempo já são apontadas
por diferentes vozes e pelas múltiplas posições de sujeito, em particular
pela episteme feminista, que sempre esteve preocupada em retirar o tema
do cuidado e de sua prática das grandes composições abstratas, e o fez
porque entende que, com essas composições, ele se mantém naturalizado e
invisivilizado.
Tamanini parte do pressuposto de que no cuidado as normatividades
não podem ser tomadas como restritivas, mas como bases a partir das quais
se possa compor aspectos de validade para elocuções novas e para alcançar
acordo a respeito do lugar de relevância dos conteúdos do cuidar, que são
exigidos pelas linguagens, pelas práticas e pelo ordenamento das relações
gendrificadas no feminino e em relação aos recursos sociais, econômicos,
políticos e à chamada crise do cuidado. Tendo chegado a este ponto, como
maneira de oferecer alguma capacidade analítica inspiradora e criativa, –
cognitiva e praxiologicamente falando – a autora alerta para o fato de que
resgatar aspectos da formação teórica do campo não significa fechar as
possibilidades de articulá-lo como conceito de perspectivas diversas, para
evitar uma única heurística para as múltiplas realidades das vidas humanas e
de sua organização e processos de tomadas de decisões.

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Ana Paula Vosne Martins, no capítulo “Em boas mãos:
associativismo feminino e filantropia na organização da proteção médico-
social à maternidade e à infância”, elabora uma rica e intrincada análise
do ideário filantrópico exercido pelas mulheres e de suas características
não ameaçadoras à ordem masculina. Recorre à história da rica filantropa
Margaret Olivia Sage, para demarcar como ela se dirigia às mulheres com
talento, dinheiro e tempo, a fim de convencê-las a empregar seus trunfos
trabalhando pelos mais necessitados e para o bem da humanidade; e para
analisar a força moral deste movimento, durante os séculos XIX e XX, a partir
dos modelos da caridade cristã e da valorização moral da feminilidade. Com
grande competência, Martins denota como, por mais que o associativismo
feminino filantrópico tenha se sustentado num discurso moral e numa
ideologia de gênero conservadora, segregacionista e limitadora da cidadania
e dos direitos das mulheres, seus caminhos e direcionamentos não foram
guiados de uma maneira uniforme, pelos valores conservadores, como
se houvera um script seguido por todas as mulheres que participaram das
associações benemerentes que ofereciam cuidados sociais.
Ela aponta como estudos mais recentes, sobre a biografia de mulheres
que se destacaram na filantropia e sobre o associativismo feminino, mostram
que não há uma experiência histórica única, neste terreno dos cuidados
promovidos pela filantropia. Esses estudos revelam também os caminhos
entrecruzados entre religião, filantropia, valorização moral das mulheres,
consciência social e sufragismo, misturando experiências, aproximando
expectativas, borrando ideologias. Estes aspectos são bastante instigadores,
segundo a autora, à medida que trazem à luz uma categoria de cuidado
frequentemente negligenciada pelos estudos feministas e mal aparada
de perspectiva política, porque colocada aprioristicamente no interior do
rechaço. A autora obriga a refletir a respeito da capacidade organizativa
da filantropia para as instituições e para as práticas sociais em geral, sem
desconsiderar, evidentemente, o fato de que está circunscrita no interior da
naturalização e da essencialização do feminino.
Neste capítulo, Martins realiza uma aproximação histórica da
formulação da questão social no século XIX e de suas abordagens morais e
reformistas. Discute o processo histórico de feminilização da filantropia,
no século XIX, como um espaço moral privilegiado dos cuidados exercidos
pelas mulheres das classes mais privilegiadas em favor dos necessitados,

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particularmente das mães pobres e de seus filhos, numa aproximação
discursivo-ideológica com a medicalização da maternidade.
Analisa também como este processo crescente de institucionalização
da questão social, que começou no século XVIII e alcançou seu apogeu no
século XIX, nos mais diferentes países, é revelador daquela rearticulação do
poder levada a cabo pela filantropia, através da qual, ao invés de reforçar
a atitude reacionária e violenta frente às demandas e necessidades das
chamadas classes perigosas, os filantropos propunham ações movidas
pela razão e pela compaixão. Para Martins, organizar, distribuir, prover,
contar, relatar, controlar, tudo isto envolvia ações planejadas como parte da
construção de saberes sobre o mundo da pobreza; mas tais ações racionais
deviam ser mobilizadas pela compaixão, por este sentimento nobre de
benevolência pela humanidade; este sentimento social encontrou em
homens e mulheres, educados na nova sensibilidade burguesa, os executores
de uma forma específica de intervenção social e de um tipo de poder que
precisa ser mais bem conhecido: o poder de fazer o bem que somente pessoas
de elevada condição moral e social têm autoridade para exercer. O discurso
reformador e a ação filantrópica não afrontavam a rigidez da ideologia da
domesticidade e da separação das esferas pública e privada, preservando a
ordem de gênero e a respeitabilidade das mulheres que poderiam frequentar
o espaço público mais amplo e se envolver em aspectos da questão social,
sem ofender os padrões de moralidade e a honra familiar. Era igualmente
portador dos conteúdos religiosos, segundo Martins, tanto entre os
protestantes quanto entre os católicos, o movimento reformista do século
XIX, que dependeu diretamente da participação das mulheres. A partir do
século XIX, as mulheres católicas assumiram gradualmente um lugar de
destaque como protagonistas principais no sistema caritativo e filantrópico.
Apesar da sua importância, o apelo e zelo religiosos não são suficientes para
se entender a feminilização da filantropia ocorrida entre os séculos XIX e
XX. A ideologia da domesticidade e a valorização moral das mulheres, por
intermédio dos cuidados e da maternidade, constituem o pano de fundo para
a sua visibilidade pública.
A autora mostra como, por caminhos diferentes, as mulheres que
se envolveram com a filantropia passaram por esta experiência de ir além
de seus jardins. Mobilizadas pela religião ou pelo discurso laico reformista,
compreenderam que seu lugar no mundo poderia ser mais amplo. Para

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muitas delas, não se tratava somente de conquistar mais status de classe, mas
de acessar outros espaços e almejar outras paragens, para além de seus lares,
como as escolas, hospitais, escritórios, instituições sociais e, por fim, espaços
na estrutura do Estado como profissionais da assistência.
Por último, nossa autora pensa os contextos latino-americano e
brasileiro relativos à assistência e à proteção materno-infantil e a decorrente
aliança entre médicos e mulheres da elite, na organização de instituições e
de serviços para mães pobres e seus filhos. Ela esclarece como os congressos
pan-americanos da criança, que começaram a ocorrer a partir de 1916, são
o resultado de um movimento pelo bem-estar e a proteção materno-infantil
que, na Argentina, no Uruguai e no Chile, foi inicialmente organizado pelas
mulheres benemerentes e as médicas, algumas delas vinculadas ao movimento
feminista; ainda que conste, na memória histórica do pan-americanismo, que
os médicos foram os idealizadores e os organizadores da proteção materno-
infantil, imprimindo uma orientação e direção profissional e científica à
assistência, pautada pela autoridade do discurso médico e particularmente
por uma visão instrumental das mulheres como mães.
A pesquisadora encerra seu texto com um caso bem sucedido de
aliança, para o qual analisa o processo de criação da Associação das Damas
de Assistência à Maternidade e à Infância, na cidade de Curitiba, em 1914.
Esta associação feminina benemerente foi criada para apoiar e manter a
Maternidade do Paraná, também criada naquele ano, ligada à Universidade
do Paraná, fundada em 1912. Ela demonstra como mulheres bem nascidas e
casadas com homens ilustres da sociedade curitibana saíram do anonimato
ou da sombra de seus maridos, dando início ao trabalho de organização e
manutenção de uma instituição médico-social, a Maternidade. Este “trabalho
do coração” lhes deu a oportunidade de atuar na esfera pública, partindo da
experiência com os cuidados na esfera do privado, mantendo os códigos de
respeitabilidade e alargando sua esfera de influência para além de seus lares.

Cláudia Pedone, valendo-se de uma perspectiva transnacional e de


gênero, em seu capítulo “Madres ecuatorianas bajo la lupa del Estado italiano:
miradas discriminatorias de las relaciones de género y generacionales de
las famílias migrantes”, relata os resultados de uma pesquisa qualitativa
sobre a experiência de mulheres migrantes equatorianas no sul da Europa.
O quadro de crise socioeconômica generalizada que atingiu o Equador, a

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partir de 1999, associado à crescente demanda por mão de obra feminina
em países como Espanha e Itália, fez com que surgisse a mulher como cabeça
das cadeias migratórias ‘feminizadas’, como geradora dos principais recursos
econômicos do grupo doméstico em nível transnacional e como responsável
pelos processos de reagrupação familiar.
Na introdução, a autora se reporta à produção científica no
campo dos estudos sobre transnacionalismo familiar e as novas formas
de organização do trabalho. E relaciona os termos-chave empregados na
pesquisa, quais sejam: transnacionalismo familiar, família transnacional,
maternidade transnacional, família migrante, família ampliada, família de
orientação, contexto migratório familiar, concepções de família, famílias
como construções sociais e desterritorializadas, perspectiva de gênero,
relações de gênero e intergeracionais, cadeias migratórias ‘feminizadas’,
organização do trabalho produtivo e reprodutivo no seio das famílias
migrantes, formas de cuidado, cuidado transnacional, organização do
cuidado, reorganização do cuidado, laços emocionais e financeiros, vínculos
afetivos à distância, reacomodação nas relações de gênero e intergeracionais,
cooperativas de psicólogos e terapeutas, casas de acolhimento e instituições
de serviços sociais, renegociações de gênero e intergeracionais, menores sem
voz, dificuldades econômicas, estereótipos sobre mulheres migrantes e suas
famílias, abandono moral e material, estratégia de litígio, entre outros.
Na segunda seção, sob o título “Transnacionalismo familiar e formas
de organizar o cuidado: novas reflexões à luz da crise socioeconômica na
Europa”, Pedone evoca o conceito de cuidado transnacional, no contexto
migratório, para ajudar a compreender o intercâmbio de cuidado e apoio que
transcende a distância geográfica e as fronteiras. Segundo Pedone, quando
se aplicou a perspectiva de gênero ao estudo das cadeias migratórias, as
famílias migrantes se tornaram objeto de estudo pelas ciências sociais. Sob
uma perspectiva transnacional e de gênero, no final da década de 1990, o
conceito de uma “maternidade transnacional” permitiu e propiciou a análise
das implicações da migração internacional nas formas de organização
do trabalho produtivo e reprodutivo no interior das famílias migrantes.
A família transnacional foi definida como aquela cujos membros vivem
na maior parte do tempo dispersos entre dois ou mais países, apesar de
mesmo assim se manterem unidos por laços emocionais e outros elos. As
famílias transnacionais não são tidas como unidades biológicas, mas como

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construções sociais e desterritorializadas que sustentam e reconstroem
os vínculos afetivos à distância através de chamadas telefônicas, correios
eletrônicos, presentes, fotos, remessas e deslocamentos entre as sociedades
de origem e de destino. Ao final, entretanto, observou-se que ainda há falta
de estudos sobre a capacidade de agência das famílias transnacionais em
tempos de crise e sobre a incidência da intervenção dos Estados de origem e
de destino nas novas formas de organização do cuidado.
A terceira seção aborda as “Continuidades e descontinuidades nas
dinâmicas e estratégias migratórias das famílias transnacionais equatorianas
na Itália”, isto é, contextualiza a migração familiar equatoriana para a
Itália e os conflitos então gerados nas relações de gênero e geracionais. O
aprofundamento da crise socioeconômica no Equador e a demanda crescente
por mão de obra feminina na Europa fez com que as correntes migratórias
perpassadas por gênero produzissem outro efeito: a mulher passou a tomar
a dianteira da cadeia migratória. A participação da mulher no deslocamento
da população equatoriana e a sua inserção no serviço doméstico gerou uma
reacomodação nas relações de gênero e entre as gerações.
Com o título “A intervenção do Estado italiano na estrutura familiar
da população migrante e a resposta do Estado equatoriano”, a quarta seção
lida com as concepções de família, as formas de cuidado e a sua relação com
a população imigrante e desprovida de recursos. No contexto migratório
familiar, a atuação dos serviços sociais e, por decorrência, do tribunal de
menores do Estado italiano interveio na organização do cuidado das mulheres
migrantes e dificultou o seu acesso ao direito de viver em família. Os serviços
sociais e o tribunal de menores não reconheciam que o pai ou parentes como
avós, tias, irmãos e irmãs maiores fossem familiares capazes de cuidar dos
membros menores e consideravam que as casas de acolhimento e a adoção
eram os métodos mais idôneos para garantir os direitos universais dos
menores. Além disso, não cabia na perspectiva dessas instituições trabalhar
para recuperar as relações familiares. A contraofensiva diplomática e judicial
do Estado equatoriano tornou o afastamento ou a separação dos menores e
adolescentes do seio de suas famílias de orientação como o último recurso
legal disponível ao tribunal de menores, não o primeiro.
A última seção tem o título “A ingerência dos serviços sociais italianos
nas formas de organização do cuidado das famílias imigrantes”. Seguem
algumas das diversas situações reveladas pela pesquisa: (a) a intervenção

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dos serviços sociais ocorreu sempre que a própria família recorreu à ajuda
do Estado e seus órgãos por causa de sua situação precária, sobretudo para
tentar conciliar seus horários de trabalho com a organização do cuidado de
seus filhos/as nas casas de acolhimento; (b) a família que tinha menores
em comunidades ou em casas de acolhimento sempre esteve presente na
organização do cuidado e nos laços afetivos mediados pelos serviços sociais,
acompanhando o desempenho escolar e estando atenta ao uso de drogas
e outros problemas de seus rebentos, embora seu tempo de contato fosse
sempre mais reduzido do que o tempo permitido aos casais apostos para
adoção dos menores; (c) renegociações de gênero e geracionais para receber
de volta ao Equador os menores recuperados e reintegrá-los ao seio familiar
foram acompanhadas e atestadas pelos pesquisadores, embora o complexo
processo ainda esteja a requerer suporte interinstitucional adicional em
termos de saúde, educação e apoio psicológico. Em todos estes casos, a
interação com o Estado italiano, através das casas de acolhimento e do
tribunal de menores, foi marcada por vieses, dificuldades e incompreensão
da situação sui generis vivida pelas famílias migrantes.
Em suas conclusões, Pedone afirma que, no caso dos menores sob
a tutela do Estado italiano, a agência das famílias migrantes equatorianas
colocou de novo em debate a noção de família, de pertença, de lar e grau
de parentesco nos países de origem tanto quanto nos de destino. E, para
fechar, em todos os casos estudados, no centro do conflito aparece sempre o
papel das mães migrantes, que é marcado pela precariedade do trabalho e da
moradia, criando, assim, dificuldades para a organização do cuidado.

Sonia Roncador, sob o título “Clarice, patroa”, traz a questão do


cuidado a partir da literatura. Embora tenha origem na área de literatura
per se, seus interesses nas áreas de gênero, raça, literaturas e culturas luso-
brasileiras, questões de imigração, servidão doméstica, educação de mulheres,
estudos culturais brasileiros e transatlânticos estão muito bem estabelecidos,
conforme revela seu currículo. No texto submetido para o presente compêndio,
Roncador se debruça sobre as crônicas publicadas pela escritora Clarice Lispector,
no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, nas décadas de 1960 e 70, em pleno período
do regime militar. Dá destaque, em especial, aos textos de Lispector que tratam da
relação vivida pela escritora com suas antigas empregadas. Mas, como se pode logo
notar, são as ex-empregadas particularmente talentosas, perceptivas e sagazes

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que inspiram a autora a criar o panorama típico das domésticas retratadas
em suas crônicas.
Como mulher branca, de classe média e consciente de sua classe patronal,
Lispector passou por muita perplexidade, tensões e conflitos, na convivência com as
representantes de uma classe distinta da sua, a das empregadas domésticas. Como
reconhece Roncador, a escritora assumiu uma posição crítica em relação à cultura da
servidão estruturante da vida familiar da classe média brasileira, ao mesmo tempo
em que se valeu dessas narrativas pessoais como meio para revelar seu lugar social
incômodo, por usufruir de privilégios nada compatíveis com a posição de intelectual
politicamente engajada, ainda que tentando, em algumas crônicas, compensar esses
conflitos, associando-se a uma ética do cuidado como forma de relação com suas
empregadas.
Com efeito, quando foi criticada por não apontar ações concretas destinadas
a melhorar as condições degradantes de suas empregadas, Lispector retrucou que
o fato de não saber como abordar ‘literariamente’ a ‘coisa social’ não refletia falta
de sentimentos “de justiça”, “obrigação e responsabilidade social”. Na análise de
Roncador, os encontros da escritora com a realidade precária de sujeitos
circulando em seu espaço doméstico são, de modo geral, descritos como
experiências traumáticas de uma retomada de consciência das chagas sociais
não resolvidas, como revela, entre outras, esta sentença da autora: “o mundo
não é [‘água com açúcar’]. Fiquei de novo sabendo…” (Lispector, A descoberta
do mundo, p. 62).
Independentemente de quão traumática tenha sido sua percepção
dessa precariedade, Lispector também expressou uma compulsão à “ação
social”, definida por ela como uma incumbência de “tomar conta do mundo”.
Na crônica “Eu tomo conta do mundo” (4 de março de 1970), ela escreveu:
“Hão de perguntar-me por que tomo conta do mundo. É que nasci incumbida.
E sou responsável por tudo o que existe” (Descoberta, p. 421). Para Roncador,
se “tomar conta de” significa “encarregar-se de” ou “responsabilizar-se por”
algo ou alguém, pode-se igualmente ler a expressão como “cuidar de” e
“proteger” o outro, cuja capacidade de agência se considera nula ou precária.
Se Lispector tivesse escrito em outro momento de nossa história,
como nos dias correntes, ela possivelmente não teria se limitado à postura
politicamente correta e civilizada de uma ética do cuidado ou de tratamentos
afáveis e gentis. Pelo contrário, ela poderia ter a seu dispor um arsenal de
estratégias suscitadas pela plena vigência do regime democrático, dos grupos

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de advocacy e respectivos movimentos e do aparecimento da disciplina da
política pública, com sua ênfase na definição e seleção dos valores e objetivos
políticos pretendidos e eleitos, mas também das estratégias e outros recursos
efetivos necessários a sua efetiva implementação. O contexto histórico faria,
ao menos em parte, a diferença.

Thays Almeida Monticelli e Roncador colocam em foco as patroas,


muito embora para contextos e temporalidades muito diferentes. No presente
capítulo, Monticelli, ao dialogar com 15 mulheres patroas em Curitiba,
ressalta aspectos de como a “cultura doméstica” estabelece tanto as práticas
cotidianas dos lares, quanto os pressupostos de intimidade e cuidados
e quanto a própria compreensão de direitos trabalhistas. Essa “cultura
doméstica” é intrinsecamente formada nas relações de poder familiares, na
divisão sexual do trabalho e constitui subjetividades e posicionalidades da
patroa e da trabalhadora nas interações da vida cotidiana que carregam em si
as falsas dicotomias instituídas entre público e privado.
A partir da conceitualidade de “cultura doméstica”, ela analisa como
se instituem práticas cotidianas nos lares, pressupostos de intimidade e
de cuidados e até mesmo a própria compreensão de direitos trabalhistas.
Analisa também como a “cultura doméstica” está a atuar e ressalta como
o relacionamento entre patroas e trabalhadoras domésticas remuneradas
segue por lógicas que pautam negociações, subjetivações e práticas nas
quais não estão superadas as diversas desigualdades e inferioridades
estabelecidas. A autora visibiliza ainda como as tarefas e os cuidados
demandados cotidianamente pela casa e pela família são compreendidos
pelas mulheres que contratam uma trabalhadora doméstica remunerada e,
consequentemente, como elas se relacionam e se comunicam com esta, como
agenciam seus desejos e expectativas enquanto patroas, principalmente nos
aspectos relacionados à higiene e à limpeza das casas.
As transformações e as reconfigurações em relação à família e,
por consequência, em relação ao trabalho doméstico remunerado, têm
se visibilizado de maneira mais dinâmica, uma vez que a inserção das
mulheres no mercado formal de trabalho se mostra fortemente presente. Os
aparatos legislativos que asseguram direitos para a categoria profissional de
trabalhadoras domésticas remuneradas se tornaram amplos e igualitários,
no sentido do seu estabelecimento jurídico, e as críticas são cada vez mais
contundentes sobre a maneira como este trabalho é estabelecido no país,

17
tomando sempre mais espaço nas mídias, na imprensa. Mesmo que sejam,
porém, reconhecidas estas novas configurações familiares, tanto no discurso
como nas práticas das patroas, mostra-se, segundo a autora, uma faceta
conservadora em relação ao trabalho doméstico remunerado no Brasil,
reproduzindo hierarquias e desigualdades cotidianas e legislativas.
A cultura que permeia as relações com o doméstico estaria
diretamente conectada com as percepções e reconhecimentos legislativos,
pautando as negociações entre patroas e trabalhadoras, em uma complexa
rede meritocrática, na qual se interpõem afetos, doações, lealdade e
dependências, dificultando, assim, a democracia do cuidado.
De uma forma bem original, Monticelli apresenta a rotina doméstica,
na voz das patroas escutadas na pesquisa, e como suas narrativas demonstram
que elas se sentem aprisionadas, ao fazer o trabalho doméstico. Elas o
definem como desgastante e consumidor de tempo, para realizar algo que
elas consideram realmente produtivo, como é a convivência agradável com os
filhos, filhas e com os seus. O tempo produtivo almejado pelas patroas está
vinculado ao mercado de trabalho formal, ao desfrutar do tempo de lazer com
a família, dar mais atenção às demandas dos filhos e filhas, ter mais tempo
para suas próprias demandas enquanto mulheres. O trabalho doméstico
está vinculado com uma ideia de humilhação, infelicidade, improdutividade,
desvalorização; além disso, elas consideram que se trata de um trabalho que
as deixa “feias”, “mal arrumadas”, “cansadas”, “desgastadas e estressadas”. A
contratação de uma trabalhadora doméstica significa a possibilidade de estas
mulheres livrarem-se desses sentimentos de infelicidade, de aprisionamento,
desvalorização, canseira, já que não existe tampouco o compartilhamento
das atividades da casa entre cônjuges!
A autora mostra como no discurso das patroas ainda ressoam
pressupostos servis, práticas discriminatórias e relações baseadas em
negociações da vida cotidiana, e não dos preceitos legislativos. A resistência
em assimilar as novas práticas sobre o trabalho doméstico remunerado é
uma das formas de apresentação da “cultura doméstica” que tenta preservar
posições hierárquicas dentro das relações de poder e cuidado, mesmo que
esteja inserido em contexto “moderno”. Segundo a autora, a ausência do
Estado e dos homens na vida cotidiana doméstica distancia cada vez mais
o cuidado de ser pensado em um exercício político democrático, expondo
características conservadoras praticadas nos lares e provocando por

18
consequência uma desigualdade fundada nos aspectos de dependência,
interdependência e vulnerabilidade.

Sandro Marcos Castro de Araújo, em seu capítulo “Cuidado,


Gênero e Políticas Públicas no Brasil: essencializações e invisibilizações
no trabalho de cuidadoras de pessoas com a enfermidade de Alzheimer”,
aborda a complexa relação entre uma condição comum de todas as pessoas
dependentes de algo ou de alguém, isto é, a de receber algum tipo de cuidado,
em alguma circunstância e momento de suas vidas, a gendrificação desse
trabalho material e afetivo e a quase total invisibilização das trabalhadoras
do care no seio da sociedade e do Estado. O autor analisa essa problemática
a partir de narrativas obtidas em pesquisa com mulheres cuidadoras de
pessoas com a enfermidade de Alzheimer.
Em sua introdução, o autor evidencia essa codependência entre
todas as pessoas, ao afirmar que ora somos provedores, ora receptores de
alguma modalidade de cuidado. Da mesma forma, aponta que, apesar
dessa necessidade comum a todos, o cuidado continua a ser naturalizado e
essencializado como atividade de uma parcela da população, as mulheres. Outro
elemento presente nas ideias introdutórias do texto de Araújo é a crescente
demanda por serviços de cuidado em processos de transnacionalização, no
mercado global que demanda o cuidado de trabalhadoras do care.
Na primeira seção do capítulo, sob o título “A gênese do care na
trajetória de vida das mulheres cuidadoras”, Sandro Araújo analisa alguns
elementos comuns, na trajetória de mulheres que passam a desempenhar
o trabalho do cuidado: o parentesco, o gênero, a proximidade física, a
proximidade afetiva e a necessidade de algum tipo de ganho financeiro.
A esses aspectos o autor afirma que se soma uma espécie de dever moral
vinculado ao cuidado. Esta noção de dever moral, constituída pelos vínculos
afetivos e pela feminilização do trabalho do cuidado, efetiva-se, com toda a
sua carga normativa, na vida e na subjetividade dessas mulheres cuidadoras
e em suas relações sociais. Nesta seção, o autor destaca que, para além desse
enfoque, isto é, de uma dimensão de necessidade e de dever moral, é preciso
reconhecer os custos financeiros do cuidado, em especial quando se conjectura
um necessário processo de politização e democratização do mesmo.
Na segunda seção do capítulo, “Cuidado, envelhecimento e suas
vicissitudes”, Araújo ressalta o aumento da expectativa de vida das pessoas

19
e de como isso passa a configurar novos arranjos sociais e políticos, assim
como demandas próprias dessa parcela da população, como é o caso das
enfermidades típicas da respectiva faixa etária. A doença de Alzheimer está
nesse contexto como um dos problemas mais graves a ser considerado, uma
vez que atinge um percentual cada vez maior de pessoas e, dadas as limitações
que impõem aos atingidos e ao seu entorno social, exige atenção e cuidado
constante.
Sob o título “O espaço sociopolítico que (não) ocupa o/a trabalhador/a
do cuidado destinado aos idosos”, o pesquisador inicia a terceira seção de
seu capítulo, partindo de uma série de outros estudos sobre a temática para
evidenciar a desconsideração e a invisibilização social e política a que estão
submetidas essas trabalhadoras. Isso revela, dentre outros elementos, como
o cuidado continua sendo desconsiderado na agenda das políticas públicas
ou, quando citado, conforme reconhece Araújo, nada mais sendo do que um
apêndice de programas e projetos desenvolvidos no âmbito do Estado.
Por fim, ao destacar a falta de regulamentação da profissão do cuidador
de idoso, no cenário nacional, frente a experiências e práticas desenvolvidas
em outras nações, como França e Japão, nosso autor torna claro que se trata
de uma inequívoca orientação política do Estado brasileiro e de seus gestores,
assim como mais um obstáculo no processo de reconhecimento do cuidado
como atividade material e afetiva de todos os cidadãos.
Em suas observações finais, o texto de Sandro Araújo sugere que, ao
refletir sobre a problemática do care e de quem o executa, em sua complexidade,
é necessário evitar posturas ingênuas que postulam que a regulamentação de
uma profissão, como seria o caso da profissão do cuidador de idosos, seja
condição única para se obter o reconhecimento e a valorização do cuidado
e de suas/seus trabalhadoras/es. Não há dúvida de que esta é uma etapa
necessária, mas a democratização do cuidado e sua necessária politização
não serão obtidas de forma simplista, muito menos ao se estabelecer que um
fator isolado seja causa e solução de estruturas e ideologias tão arraigadas no
imaginário e nas práticas sociais.

Marcela Komechen Brecailo, no capítulo de sua autoria, “O


cuidado de crianças: desafios culturais, sociais e políticos”, apresenta os
entrelaçamentos culturais e sociais da feminilidade da maternagem e do
cuidado de crianças. Nesse contexto, o cuidado e o trabalho material e afetivo
são concebidos como uma espécie de dever moral das mulheres.

20
Em sua reflexão, Brecailo indica como a função da maternidade é
resultado de uma construção histórica, perpassada por essencializações e
naturalizações que, por sua vez, produzem discursos variados que, no âmbito
do cuidado, transformam essa atividade em algo próprio do espaço privado,
descaracterizado de sua dimensão política e econômica.
Na seção intitulada “As experiências de cuidado e aleitamento
materno”, partindo do diálogo, em situação de pesquisa de campo, estabelecido
com doze mulheres, mães de crianças com 6 meses a dois anos de idade,
a autora aborda suas rotinas de cuidado com os filhos e filhas, retratando
suas trajetórias, desafios e sobrecargas da maternagem. Neste processo de
vivência e de significação das experiências relacionadas à maternidade, ao
cuidado, especificamente ao aleitamento, existe um encontro/confronto
entre saberes que orientam e determinam as práticas e formas ideais de
care, na relação entre as mães, suas mães e os profissionais de saúde das
unidades de acompanhamento das mães, no que tange ao aleitamento. Sob
o título “A dimensão cultural e social do cuidado de crianças”, Brecailo indica
que as diferentes formas de cuidar, esperadas para um homem e para uma
mulher, incidem na forma em que o cuidado será efetivamente prestado às
crianças. Nas próprias famílias, o cuidado é concebido como uma atividade
de mulheres, que se unem em redes de solidariedade para a execução desse
trabalho. Daí decorreria, para algumas das mulheres com quem a autora
estabeleceu diálogo, uma valorização subjetiva de si, no trabalho do cuidado,
um “sentir-se” bem com suas tarefas e uma dignificação em ser, nas palavras
de Brecailo, “boa mãe” e “boa dona de casa”. Por outro lado, essa condição de
associação entre o cuidado e a mulher, neste contexto, limita as possibilidades
de escolha e realização pessoal dessas mulheres.
Na última seção do texto de Brecailo, sob o título “A dimensão
política do cuidado de crianças”, a discussão sobre o care é tensionada por
sua naturalização como atividade de mulher e por sua invisibilização social
e política. Nesse sentido, a desvalorização e a despolitização do trabalho
do cuidado geram injustiças sociais profundas e – como as mulheres
são as responsáveis pelo cuidado – limitam suas condições objetivas de
autodesenvolvimento, de ganhos em atividades remuneradas, ou mesmo no
gozo de seus períodos de tempo livre.
Por fim, em suas considerações finais, a autora descortina uma
continuidade entre as formas como as relações de cuidado são estabelecidas

21
socialmente e vivenciadas pelas pessoas e a falta de justiça e democracia
no exercício do trabalho do care. Esta divisão entre homens e mulheres
e suas supostas responsabilidades deve ser vista como elemento gerador
de arbitrariedades, que restringem as pessoas em suas possibilidades de
escolha. Por isso, a responsabilização diferenciada entre homens e mulheres,
para as atividades do cuidado, é definidora da construção de alternativas e
oportunidades.

Daniela Isabel Kuhn e Gilson Leandro Queluz, no capítulo


“Mulher aguenta tudo: catadoras, cuidado da família e trabalho precário”,
apresentam um contexto de trabalho absolutamente degradante, cuja
ausência de registros de direitos e condições de pobreza faz com que as
catadoras de lixo estejam exercendo seu trabalho movidas por necessidade
econômica, em situação de extrema vulnerabilidade à sua saúde, à vida e à
sociedade. Além deste aspecto, os autores trazem elementos da rotina de
trabalho das catadoras e dos catadores de materiais recicláveis, buscando
compreender como a noção de abjeção se expressa na vida destas pessoas.
Neste contexto, o trabalho com os afazeres domésticos e os filhos, assumido
prioritariamente e/ou exclusivamente pela mulher, colabora como um dos
fatores de dependência e desvalorização das relações de dependência que
empurra muitas das mulheres catadoras para a zona inóspita da abjeção:
o lixo. Catar materiais recicláveis não tem sentido positivo na cultura
do urbano e do social; é como se a pessoa fosse lixo, conforme apuram os
autores, a partir da narrativa de catadoras. Estas relações não se encontram
postas no interior de projetos urbanos de limpeza das cidades, do cuidado
do lixo e das questões ambientais. Também não estão inseridas em políticas
públicas vinculadas ao cuidado da saúde das catadoras e catadores, ou ao
projeto de urbanidade das cidades e do destino do lixo. As mulheres grávidas
estão neste trabalho, comprometendo a si mesmas e a saúde dos seus bebês,
e certamente não encontrariam outro meio para viver, a não ser este de
catar lixo. Este lhes permite cuidar dos seus. Elas conciliam o trabalho e
a maternidade, sem saber e sem sentir que, em outras condições, poderia
existir licença maternidade, um benefício previsto na Constituição. E o fazem,
porque precisam cuidar. Elas também não contribuem para a previdência,
trabalham na informalidade. Portanto, catadores e catadoras neste trabalho
são pessoas que encarnam as figuras sociais estigmatizadas do passado e do

22
presente. Elas estão fora de qualquer sistema de cuidados sociais, políticos,
filantrópicos, privados ou de terceiro setor. O cuidado político, social e
econômico está ausente. Carteira de trabalho, saúde, direitos trabalhistas,
previdência não existem. E elas também não são consideradas pessoas
necessárias e importantes para a construção do espaço urbano. Demonstra-
se como, neste contexto, a autonomia cede à necessidade, a vulnerabilidade
aprisiona as emergências diárias, fora do âmbito dos direitos e das próprias
emergências do cuidar. A dependência aprofunda as relações com a pobreza
e o tema do lixo não é tomado como constitutivo da ética do cuidado como
justiça, e sequer do respeito com o ambiente e as pessoas no seu entorno.
Não há políticas de Estado sensíveis e acessíveis, no sentido de viabilizar um
primeiro impacto positivo na vida destas mulheres. Elas não contam com
creches para os filhos, escolas, áreas de lazer, ou sistemas de saúde. Estas
mulheres catadoras se apegam aos horários flexíveis deste catar de lixo como
forma de organizar a sua sobrevivência.
Segundo a análise dos autores, as condições desse não cuidar,
desta cegueira e descaso frente ao lixo, desse desprezo pelos problemas das
periferias e das pessoas que estão vivendo do lixo, faz com que as pessoas que
trabalham com ele sejam alvos de abjeção como se fossem iguais ao lixo. Isto
mantém e constitui a vulnerabilidade social, somando as pessoas como mais
um vetor desta construção que aparece como se fosse natural. As incursões
teóricas que são praticadas pelos autores objetivam situar o debate que
acontece dentro do campo da pesquisa, a respeito dos códigos que regulam os
recintos da normalidade e da abjeção, reivindicando que sejam reconhecidos
como construções. Estes são considerados aqui como os conceitos e modelos
que circulam e se reafirmam, nos discursos e nas práticas sociais e culturais,
e são reproduzidos nas estruturas que empurram para a produção de
corpos subjugados como abjetos ou para os corpos limpos e higienizados,
aceitos como normais. Este capítulo, que é parte da tese de Daniela Kuhn,
permitiu concluir que ser catadora e catador de materiais recicláveis tem o
significado de conviver com a realidade da existência como um corpo que
causa abjeção. O reconhecimento de que existe uma concepção a respeito
das catadoras e dos catadores que os/as enquadra como corpos abjetos, que
opera por preconceitos, discriminações, medos e violências, pode significar
uma possibilidade de se rever esta percepção.
Os desafios são muitos e o cuidado não pode ser tomado apenas como
virtude ou vinculado a atos de prevenção e de proteção; é preciso pensá-lo

23
como justiça social. Não é, portanto, parte de atos isolados; é a capacidade de
agir eticamente frente aos desafios do reconhecimento.

Maria Izabel Machado desenvolve, em seu texto “Cuidar de si


a partir das tecnologias do eu: o cuidado na economia solidária desde as
experiências nos clubes de troca”, uma argumentação que está igualmente
inserida num contexto de grande vulnerabilidade econômica e social.
Machado analisa, a partir do campo de sua tese, como os clubes de troca, uma
das expressões da economia solidária no contexto brasileiro, reúnem pessoas
com o objetivo de fazer circular produtos sem a intermediação do dinheiro. Seu
foco repousa sobre o fato de que estes encontros regulares oportunizam que,
além das trocas, sejam desenvolvidas diversas experiências que ultrapassam
a circulação de objetos. Ela dá visibilidade ao cuidado construído a partir
das experiências das mulheres com práticas de cuidar de si e de cuidar do
outro. As reflexões acerca dessa temática em seu texto visibilizam uma teia
de complexidades que envolvem tanto quem cuida como quem demanda
cuidado. Ela mostra como o fato da participação, majoritariamente feminina
nos clubes, converte-se em espaço em que as mulheres trocam saberes e
práticas, produtos e experiências.
A autora põe o foco na percepção de que o cuidado, como vivido
pelas mulheres participantes nos clubes, é uma das faces da agência. Se os
contextos socioeconômicos em que se acham as possibilidades de reinvenção
se mostram limitados, a partir de uma experiência coletiva em que as
reciprocidades se estabelecem e se repactuam em cada interação, as margens
do existir ficam tensionadas. Se não há dinheiro, há a moeda social; se não
há psicólogo na unidade de saúde, há as colegas que ouvem atentamente; se
não sobra dinheiro para cuidar da aparência, há as trocas, trazendo a “roupa
de sair” e as bijuterias, nas palavras da autora.
Ao deter-se sobre a construção dos clubes de troca, sua história,
declínio e como alguns continuam a existir, a autora não apenas mostra
aspectos da sua estruturação e da sua relação com a conjuntura mais ampla
das questões econômicas, políticas e de assessoria. Igualmente, foca seu
olhar nas narrativas sobre as experiências e trajetórias que emergem, a
partir das entrevistas, tendo em comum não apenas condições similares de
existência prática e simbólica, mas também alguns pontos de inflexão em
que as trajetórias foram sendo alteradas. A experiência da morte, da doença

24
e do sofrimento psíquico como situações limítrofes, que exigiram novas
respostas, no caso dessas mulheres, foram respondidas em boa medida no
exercício da coletividade com outras mulheres. A economia colocada em
curso nos clubes pode ser alocada no campo do pragmático, do cotidiano, que
conecta experiências e sujeitos, tendo o cuidado voltado principalmente aos
filhos como o seu fio condutor. Machado demonstra como as experiências,
que se dão no âmbito dos clubes de troca, transcendem não apenas aos
limites do econômico como às próprias fronteiras do grupo. Segundo a
autora, elas possuem potencial de informar novas posicionalidades aos
sujeitos, desde novas percepções de si e de reconhecimentos entre os pares.
As relações intragrupo favorecem o restabelecimento de sociabilidades
primárias, resultando não apenas na mitigação da miséria absoluta, mas
no estabelecimento de redes de proteção que incluem o combate à fome, à
violência contra a mulher, a proteção da velhice e da infância e um espaço
de reconhecimentos mútuos. As mulheres recuperam sua voz, sua agência
nos clubes de troca. Ao acionar as teóricas feministas, analisa como as
teorias vêm, portanto, não apenas preencher lacunas teóricas, mas propor
abordagens intersectadas de forma mais complexa. Neste caso, demonstra
como as ordens sexual e econômica operam juntas, como as relações
perpassadas pelo sexo e pelo gênero estão profundamente imbricadas com
os sistemas produtivos, com a produção de representações, com as teorias e
epistemologias.

Raquel Barros de Almeida Araújo, Marly Marques da Cruz


e Eliane Portes Vargas, no capítulo “Práticas de cuidado no tratamento
da tuberculose na atenção primária à saúde na Rocinha/RJ: a visão dos
profissionais de saúde, dos usuários e seus familiares”, apresentam uma
reflexão sobre o cuidado ao usuário portador de tuberculose (TB) no
Tratamento Diretamente Observado (TDO), que tem como foco a observação
direta da tomada da medicação anti-TB, em uma unidade básica de saúde,
no Rio de Janeiro. No Brasil, em termos de organização das práticas de
atenção primária à saúde, as propostas de humanização e integralidade no
cuidado em saúde apresentam-se como alternativa de ação, no âmbito das
políticas públicas, sendo apontadas como estratégicas para o enfrentamento
da crise na assistência à saúde. Diante de alguns autores que, ao assumirem
uma perspectiva crítica na abordagem ao tema do cuidado, elas apontam

25
os limites da racionalidade técnica pautada em critérios biomédicos, posto
que este trabalho problematiza as tensões presentes no cuidado integral
no campo da saúde coletiva, que oscilam entre o cuidado centrado nas
necessidades do usuário e aquele centrado na medicalização e/ou organização
do serviço. O trabalho de campo realizado permitiu observar os diferentes
problemas enfrentados pelo portador de tuberculose, e/ou de sua família,
na interação com os profissionais de saúde, que se veem confrontados com
os desafios e as diferentes dimensões da vida cotidiana que intervêm no
tratamento medicamente definido, tais como as dificuldades envolvendo
a construção de vínculo, a manutenção da autonomia do usuário no
decorrer do tratamento e a violência naturalizada do território que impõe a
interrupção e a descontinuidade dos tratamentos. Ao entrarem em contato
com os diferentes problemas enfrentados pelo usuário, ou mesmo por sua
família, os profissionais interagem com a dinâmica de vida do usuário e com
os diferentes fatores que podem facilitar ou dificultar o seu tratamento.
De qualquer maneira, parece ser marcante para o usuário a presença do
profissional fora do espaço de serviço e mais próximo ao cotidiano de vida
do usuário e com a postura mais ativa de promoção da saúde. Cabe destacar
que a família foi referida e valorizada pelo profissional de saúde como
fundamental para a continuidade e o sucesso do tratamento pelo usuário
portador de TB. A inclusão da família na gestão do cuidado se apresenta,
portanto, potencialmente como recurso relevante das práticas de cuidado no
TDO da TB. No entanto, em que pese tal valorização, há que se considerar a
perspectiva generalizante da família no campo da saúde, onde esse apoio da
família muitas vezes se confunde com o apoio feminino aos seus familiares,
ressaltando uma dimensão gendrificada do cuidado em saúde. Ainda que
este trabalho não adote tal perspectiva de análise, torna-se relevante
ressaltar que as questões de gênero relativas às práticas de saúde, no que
concerne ao cuidado, são pouco problematizadas. O ponto de partida para a
caracterização das práticas de cuidado, neste estudo, foram as dimensões de
acolhimento, relação dialógica e vínculo, que estão diretamente relacionadas
com o conceito de integralidade do cuidado, e os princípios da Estratégia
de Saúde da Família, contexto onde o TDO é realizado. Com base nas
dimensões analisadas, se coloca o dilema entre o cuidado mais humanizado
e centrado no cuidado do usuário e o cuidado medicalizado e centrado na
organização do serviço. Trata-se de uma tensão que promove uma dicotomia

26
a ser superada, pois ambas as dimensões do cuidado se sobrepõem, de
modo a orientar a lógica de ação dos atores envolvidos. O estudo aponta a
necessária ampliação da abordagem do cuidado, dados os limites das práticas
de saúde contemporâneas para oferecerem respostas efetivas às complexas
necessidades de saúde de indivíduos e de grupos sociais.

Cláudia Medeiros de Castro, em seu capítulo intitulado “Desafios


para o cuidado na atenção ao parto das mulheres imigrantes”, aborda as
demandas para a atenção à saúde de mulheres imigrantes. Como se sabe,
a migração internacional é um fenômeno contemporâneo que mobiliza
governos em busca de respostas para as pessoas que fogem de regiões em
conflito, como é o caso dos refugiados sírios, ou que migram em busca de
trabalho, estudos, melhores condições de vida, como no caso dos imigrantes
vindos da Bolívia e do Peru para o Brasil.
Com efeito, os imigrantes que vêm ao país têm necessidades de saúde,
educação, proteção trabalhista, entre outras, que esperam ver supridas pelos
órgãos de governo. Neste capítulo, a autora aborda as demandas das mulheres
imigrantes que recorrem ao setor de saúde, enfocando, especificamente, o
cuidado no parto e pós-parto oferecido às imigrantes bolivianas no município
de São Paulo. Com base nos resultados de dois estudos centrados no tema
da atenção à saúde das imigrantes bolivianas, Medeiros de Castro discute a
atenção obstétrica oferecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que se pauta
pela Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher e é realizada
pelos profissionais dos serviços de saúde. Discute os (des)encontros que
acontecem no dia a dia dos serviços, onde diferentes perspectivas culturais
sobre saúde e sobre o cuidado a ser oferecido às mulheres no parto e pós-
parto provocam mudanças e novos posicionamentos, tanto nas práticas dos
profissionais de saúde quanto nas mulheres imigrantes.
Além de estudar especificamente o caso das imigrantes bolivianas
que demandam o serviço público de saúde no município de São Paulo, tendo
por base as referências teóricas adequadas e requeridas por seus estudos, a
autora também se reporta a duas experiências em outros países, para ilustrar
situações em que a dimensão cultural parece fazer parte há algum tempo
da política nacional de saúde. Trata-se dos casos do Chile e da França, onde
não ocorrem as dificuldades enfrentadas pelo serviço de saúde oferecido por
enquanto pelos profissionais brasileiros.

27
As reflexões de Medeiros de Castro focalizam como as diferentes
perspectivas culturais se expressam no cuidado e nas ações envolvendo o
atendimento, no contexto dos serviços públicos de saúde que, por sua vez,
impactam a experiência do parto das mulheres imigrantes. Diante de mudanças
ocorridas recentemente no processo de migração no Brasil, atingindo o setor
de saúde, ao qual incumbe o atendimento universal preconizado pelo SUS,
exemplos do cotidiano da assistência ao parto apresentados ilustram o
descompasso na comunicação dos profissionais de saúde com as mulheres,
resultando que esses profissionais, em geral, não tomam em consideração
as lógicas culturais norteadoras de suas atitudes no decorrer do trabalho de
parto e, muito menos, as lógicas culturais de suas pacientes. A reflexão indica
o risco de descaracterização do cuidado em saúde, como pensado por autores
do campo da saúde coletiva, na medida em que o modelo biomédico tende a
promover a subordinação dos aspectos relacionais a normatizações técnicas,
o que promove um empobrecimento da dimensão cuidadora.
Em resumo, as experiências citadas, do Chile e da França, ocorreram
em países em que a dimensão cultural parece estar incorporada de forma
efetiva na agenda da saúde. Quando nos voltamos para o Brasil, ainda que
em geral se pense que o nosso país é um lugar acessível às diferentes culturas,
onde não há discriminação e todos são recebidos de braços abertos, a ideia
de que, enquanto demandantes de serviços de saúde, somos todos nacionais
permanece, se mantém inalterada e se manifesta no dia a dia, como se pode
observar nos sistemas de registros dos dados sobre saúde e nos documentos
que dão base às políticas de saúde do país. A invisibilidade da população
imigrante tem impedido que políticas públicas voltadas para a população
imigrante resultem no desenvolvimento de ações de acolhimento e cuidado
para os que aqui chegam e passam a integrar a sociedade. Na falta de políticas
públicas e de diretrizes, nos diferentes níveis de gestão, resta às instituições
de saúde, que recebem inumeráveis imigrantes, dar respostas insatisfatórias,
posto que são reativas e não podem contar com a retaguarda do SUS.
Finalmente, a autora lembra que possibilidades de mudança do
cenário começam a ser delineadas, como mostram a aprovação da Política
Municipal para a População Imigrante no município de São Paulo, em 2016,
que é um exemplo de resposta construída coletivamente pela sociedade, e a
recente aprovação da Lei da Imigração em nível nacional. Embora um tanto
cética, Medeiros de Castro nutre a esperança de que as diretrizes contidas

28
nos novos marcos legais possam ser transformadas em ações de saúde
alicerçadas na perspectiva do cuidado intercultural.

Nicolle Feller, no capítulo “As diretivas antecipadas da vontade


e a responsabilidade civil médica: cuidar da vida, cuidar da morte”, nos
coloca frente à aplicação das diretivas antecipadas de vontade, no Brasil,
contextualizando-a na relação médico-paciente e na possível responsabilização
civil do profissional frente ao direito do paciente à manifestação antecipada a
respeito de sua vida ou de sua morte. A autora reflete sobre as questões que
envolvem as decisões de tratar da saúde e decidir pela morte, considerando
que, contemporaneamente, as pessoas têm como necessidade primordial
recorrer a atividades da área médica, para preservar, tratar, reduzir riscos e
potencializar sua saúde.
Estes aspectos fazem parte das novas condições tecnológicas, do
acesso aos serviços e da vontade de viver com qualidade, ao mesmo tempo
em que são processos exigidos dentro do foro da autonomia e da vontade,
no que tange ao direito de viver bem. A ideia de bem-estar, contudo, sempre
está carregada de outros elementos, como os que tratam da dignidade da
vida humana e do sentimento de viver bem. Por isso, quando se trata da
autonomia e do próprio direito humano de morrer dignamente, as questões
tornam-se complexas, porque o tema da vida e da morte tem diretivas
culturais e sociais diversas e esbarra, particularmente, em questões religiosas
e morais tais que, por vezes, fica atribuído a decisões atemporais, ahistóricas,
ou ligadas aos princípios sobrevindos de uma ética generalista, quando não
atribuídos à vontade divina.
Contudo, frente ao cuidado com a vida interpõe-se também o
cuidado com a morte como parte do mesmo processo de viver. A ausência
de condições de interagir, de protagonizar ou atuar, com participação
biopsíquica, espiritual e social, já é morte. A dignidade como uma complexa
teia envolvendo autonomia, capacidade biopsíquica, desejo e vontade,
que se expressam em ações, gestos, formas de sentir e de se comunicar, é
condição do viver. Perdidas estas condições, seguramente interpõe-se, entre
a dimensão física e o gozo dos direitos, o direito à antecipação da vontade
de morrer, se as condições de viver já não forem mais uma possibilidade.
Quando as condições de morte já estão desencadeadas, parece que se deva
poder amenizá-la, e não manter o sofrimento para prolongar uma vida que
já não existe.

29
No entanto, é grande a dificuldade humana para tomar estas
decisões. Estas experiências de ter de reconhecer que a prorrogação da morte
coloca em suspeição as formas que contenham processos de prorrogação
de sofrimentos exigem discutir que o respeito que se tem à vida deva
ser igualmente o respeito merecido em relação à morte, sendo coerente
proclamar-se o direito de morrer e de antecipar a vontade como decorrente
do direito fundamental a uma vida digna. Segundo nossa autora, o direito à
vida e à morte digna, como expressão de diretivas antecipadas da vontade,
coloca o foco das decisões na necessidade de adotar medidas prévias, para
facilitar o outorgamento das tomadas de decisão às pessoas e aos hospitais,
ou centros de tratamento, para os quais é útil existirem modelos e disposições
discutidas, como também espaços com reflexividade aberta aos diferentes
tipos de pedidos que as pessoas possam vir a fazer. A expressão da vontade
sobre a morte pode se dar em circunstâncias muito diferentes, de pessoa
para pessoa, e pode trazer grande dificuldade à tomada de decisão. Ela está,
portanto, envolta em cuidados legais e, particularmente, em princípios
que precisam ser mantidos de forma aberta aos sujeitos e ao diálogo com a
realidade empírica, para que se aperfeiçoem, à medida de sua necessidade.
Nesse contexto, portanto, para além da livre escolha do paciente acerca das
medidas e dos tratamentos curativos (em clara ênfase ao direito à vida),
ganha enfoque, na atualidade, o próprio direito de morrer dignamente.
As mesmas questões de cuidado da vida, que exigem a democracia
do cuidado, também se interpõem quando se trata do cuidado da morte;
e este processo é parte das muitas áreas de saberes a quem cabe assegurar
a possibilidade de tratar estes temas no interior de parâmetros amplos,
levando em consideração a antecipação da vontade e, inclusive, a eutanásia
como um paradigma do cuidado no alívio dos males. Ao vivermos o sentido
da morte, ou o sentimento de que ela se aproxima, trazemos muitos sentidos
simbólicos de perdas e de significações, que precisam ser preenchidas em
nossa temporalidade; morrer pode ser a culminação do viver.

Marlene Tamanini
Francisco G. Heidemann
Eliane Portes Vargas
Sandro Marcos Castro de Araújo

30
PARA UMA EPISTEMOLOGIA DO CUIDADO:
TEORIAS E POLÍTICAS
Marlene Tamanini1

Introdução2

Quando nos reportamos ao tema do cuidado como uma rede de produção


teórica e de exigências a respeito da necessidade de desnaturalizações
conceituais, com o intuito de balizar fundamentos para construir reflexão
capaz de propor mudanças, estamos sempre frente ao grande desafio de
estabelecer parâmetros que sejam flexíveis e abarcadores dos múltiplos
contextos de cuidado e para as epistemologias do próprio campo.
Trata-se de dizer quanta força reflexiva e articulação heurística
as diferentes compreensões de cuidado possuem, para transformar os
conteúdos normativos que o envolvem em diferentes contextos e para
considerar a diversidade de experiências empíricas, em seus âmbitos social,
cultural, político, pessoal e simbólico. As normatividades e os grandes
princípios abstratos que por vezes marcam este campo, quando fixados
em pressupostos universais, não tomam em conta o lugar dos sujeitos e

1 Professora no Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná,


doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Fez pós-
doutorado na Universidade de Barcelona com bolsa concedida pela Capes. Pesquisadora,
professora e Coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero da UFPR/PR, Vice Coordenadora
do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPR. Ministra disciplinas na área de
sociologia, epistemologia e metodologia da pesquisa. Pesquisa e ministra disciplinas com
ênfase em gênero, família, cuidado, trabalho, sexualidade e corpo. É autora de livros no campo
de Reprodução Assistida. Possui artigos e capítulos de livros no campo da reprodução humana
assistida, maternidades, cuidado, na área de gênero e trabalho, de violência doméstica, direitos
sexuais e reprodutivos, com transversalidades em bioética, tecnologias e interdisciplinaridade.
tamaniniufpr@gmail.com
2 Devo fazer um grande agradecimento ao companheiro de jornada Francisco G.
Heidemann, que compartilhou impressões, revisou textos, trocou ideias e conceitos na
construção deste capítulo, além de ter lido, atenciosamente, suas primeiras e últimas versões,
como aliás sempre tem feito, quando recorro aos seus generosos e atenciosos préstimos
acadêmicos e preciosas trocas na vida. Muito obrigada por tudo o quanto ainda é parte da
troca e da gratuidade deste fazer de cuidado solícito, atento e perspicaz.

31
sequer consideram que são muitas as interfaces da experiência na relação
em questão. Ao ignorar as interdependências que são complexas, múltiplas
e sujeitas a diferentes desafios, aplica-se com frequência um modelo de
decisão casuístico, que, baseado em grandes princípios, não dialoga com a
particularidade e a exigência real da situação.
As posturas casuísticas não são suficientes para as múltiplas
relações que se compõem no interior das diferentes e complexas interfaces
do cuidado. Os conteúdos, quando postos na relação caso a caso, ainda
que autorizem acionar grandes princípios, envolvem discutir as teorias, os
fatos e circunstâncias, os sistemas de valores, os afetos e necessidades de
alternativas frente aos problemas trazidos pela situação em questão. Toda
tomada de decisão ou indiferença a respeito dos fatos tem consequências e
toda composição de questões pode ocorrer tanto nos níveis mais distantes
dos envolvidos como nos níveis de grande envolvimento afetivo e emocional.
Contemporaneamente, quando se fala em cuidado, talvez dentre os
conteúdos mais discutidos estejam os das relações entre trabalho, reprodução
e cuidado, casa, crise do cuidado e transnacionalização do trabalho. De similar,
se encontra consolidada uma discussão focada nas relações que se compõem
com os conteúdos de gênero, perfil de sexo e a partir das necessidades de
quem cuida. Estes aspectos são complexos, portadores de muitos desafios e
também são centrais na mundialização atual do trabalho e na chamada crise
de cuidado.
As normatividades e os grandes princípios abstratos estão de modo
semelhante presentes nos aspectos econômicos, políticos, sociais, ideológicos
e culturais da inserção do trabalho feminino e masculino nos diferentes
processos informais, migratórios e gendrificados das profissões, nos setores
e nos ramos de atividades e nos novos arranjos do cuidado.
As posturas casuísticas com suas normatividades se apresentam
tanto no que se destina a atender à saúde, nos processos de envelhecimento
da população, nos necessitados de atenção especial, nas casas de abrigo, ou
até mesmo nas atividades para produzir cidadania e para a tomada de decisões
em políticas públicas, quando por vezes não se considera as condições em
que o cuidado é exercido, ou recebido. Estes aspectos são apenas uma parte
de um olhar histórico, empírico e conceitual sobre o cuidar e ser cuidado, sem
considerar todas as definições filosóficas, heurísticas e axiológicas que ele
passa a agregar frente à diversidade de situações.

32
Contemporaneamente, o tema exige reposicionar os conceitos,
repensar suas normatividades e recolocar velhas e novas questões à sua
reconfiguração, a fim de reconstruí-lo como política social, com abertura
para os inúmeros contextos de especificidades onde o mesmo é exercido ou
demandado. Isto implica mudar seu valor social, cultural e econômico para
positivá-lo, no sentido de que novas compreensões a seu respeito façam a
diferença na vida das cuidadoras e cuidadores, nas instituições de cuidado e na
família; para o mercado e para o Estado e as políticas públicas, em termos de
sua visibilização, reconhecimento efetivo e democratização. De igual modo,
a desidentificação das continuidades com os tradicionais marcadores de
gênero, raciais, sexuais, emocionais e afetivos vinculados ao feminino, nestes
âmbitos, significa constituir o processo necessário ao cuidado democrático e
à democratização do mesmo como meta que não pode seguir inatingível. Até
o presente, sua distribuição não é equitativa; é forçada por parâmetros de
gênero, raça, classe, migração, pobreza, vulnerabilidades e necessidades de
sobrevivência, situações extremamente desiguais. Instâncias várias, como o
Estado, famílias, mercado e comunidade, quando o realizam o fazem à custa
de mulheres mal reconhecidas como cuidadoras, com sobrecarga de trabalho,
baixa remuneração e que não possuem as habilidades necessárias. Estas
práticas estão do mesmo modo vinculadas a concepções de favor pessoal, a
necessidade extrema; ou, se as relações são de parentesco e de comunidade,
acionam-se elementos de um saber vinculado à noção de experiência
da mulher com este cuidar, seja porque esta mulher já o fez antes e sabe,
portanto, fazer, ou porque a pessoa que cuida tem relações de afeto com
quem demanda cuidado; nesse caso, se considera que ela tem a obrigação
moral de cuidar. Estou falando de situações de cuidado tanto de doentes,
de idosos, crianças, mas também de faxina, limpeza, diaristas, limpeza das
cidades, coleta do lixo, serviços diversos, e ambientes de trabalho em fábricas,
ou informais nas ruas, ou no virtual.
Com o intuito de resgatar parte das perspectivas que envolveram
e envolvem estas inter-relações múltiplas, analisaremos o ponto de
vista de como este campo teórico tem se constituído, em termos de sua
consolidação conceitual e, assim, tentaremos produzir uma reflexão que dê
as características da multiplicidade epistêmica que o próprio cuidado possui.
Ao fazê-lo, se abre espaço para os muitos paradoxos envolvidos, quando o
lugar do cuidado está em relações heterogêneas e exige olhar para agências

33
complexas tais como as: hospitalares, jurídicas, familiares, locais, estatais,
nacionais, internacionais e transnacionais.
O lugar do humano, entenda-se primacialmente mulheres, dentro
do cuidado, socialmente falando, é anunciado e circunscrito sem ser
pensado como necessitado de dar e de receber cuidado e sem ser posto como
basilar à circunscrição dos direitos de cidadania. As responsabilidades não
são compartilhadas; e, do ponto de vista político, econômico e cultural, o
cuidado tem pertencido ao campo das relações tensas que se dão entre
a responsabilidade e as decisões sobre quem vai cuidar, quando existe
a emergência da doença, a necessidade de alguém ser cuidado por sua
incapacidade, as intempéries e as grandes ou pequenas catástrofes. Define-
se como uma forma de trabalho, de relação e de epistemologia que é
circunscrita ao lugar dos que não têm direito; reproduz-se, portanto, uma
não ética do próprio princípio do cuidar. Este processo não considera o modo
como o humano se produz e se reproduz ou pode se desfazer, em sua própria
produção normativa, considerando-se sua realidade empírica.
Este é um campo de conhecimentos conectado a tensões com as
relações de poder imbricadas nele e com suas prerrogativas da feminização,
que desde longa data são apontadas por diferentes vozes e por múltiplas
posições de sujeito, em particular pela episteme feminista, que sempre
esteve preocupada em retirar o tema do cuidado e sua prática das grandes
composições abstratas e o faz porque entende que com essas composições
ele se mantém naturalizado e invisivilizado. Se estas atividades, concepções
e práticas em políticas públicas, de mercado e de voluntariado, frente às
necessidades e exigências do cuidado, se reduzirem ao objetivado pela
necessidade, sem democratização e desigualmente postas, no que tange aos
agentes que devem fazê-lo, nele são apagados os conteúdos subjetivos e de
desigualdades, mantendo-se sua construção monolítica que se mostra como
se fosse coerente e racional.
Em sintonia com as perspectivas feminista e descolonial, o corpo, a
cor, a geração, a etnia e os marcadores dos processos de feminização deste
campo constituem território de combate. A atuação política exige atos
criativos e vozes diversas; por isso, assim posicionada, parto do pressuposto
de que, no cuidado, as normatividades não podem ser tomadas como
restritivas, mas como bases a partir das quais se possa compor aspectos
de validade para elocuções novas e para alcançar acordo a respeito do lugar

34
de relevância dos conteúdos do cuidar que são exigidos pelas linguagens,
pelas práticas, pelo ordenamento das relações gendrificadas no feminino e
em relação aos recursos sociais, econômicos, políticos e a chamada crise do
cuidado, assim anunciada porque as necessidades do cuidado não encontram
respostas por carência de pessoas para cuidar. Para tal, impõe-se a necessidade
das ideias e dos conceitos, para que se tornem tangíveis e inteligíveis e para
que produzam mudanças nas práticas atuais, vividas pelas mulheres em suas
vidas pessoais e laborais.
As normas que orientam as definições do cuidado em torno do
bem comum, hoje, não são necessariamente justas, nem se imbricam com
as necessidades do cuidado democrático; além do que, são inúmeros os
trabalhos empíricos relacionados com as atividades do cuidado, o que faz,
portanto, com que convivam juntas diversas conceitualizações, aspecto que
pode ser percebido inclusive nos diferentes capítulos deste livro.
Chegada a este ponto, como forma de oferecer alguma capacidade
analítica inspiradora e criativa – cognitiva e praxiologicamente falando –
permito-me deixar em aberto o conceito de cuidado como caminho essencial
para repensar as bases a partir das quais ele próprio tem sido produzido.
Isto implica que, ao resgatar aspectos da formação teórica do campo, não
estejam fechadas as possibilidades de pensá-lo, que os conceitos não sejam
simplesmente acoplados à realidade e que o cuidado e o pensar a seu respeito
não sejam dissociados das formas de organização da vida material, ao mesmo
tempo em que abrigue o respeito à vida em si e ao fato de que todos e todas
necessitaremos de cuidado em algum momento, inclusive o planeta com
tudo o que ele contém.

Deslocamento de temporalidades e costura de conceitos

Desde o final dos anos 60, as teóricas feministas têm insistido sobre o lugar
do feminino nas diferentes relações sociais, na estruturação das construções
de pesquisa, no meio acadêmico, político e familiar, para dar-lhe condições
de positividade. A produção feminista já percorreu um longo caminho e
criou diversos corpos teóricos com inscrição a correntes consolidadas de
pensamento, ainda que, por vezes, divergentes entre si.
Foram enormes as mudanças produzidas a partir de textos acadêmicos
feministas e de sua militância política e epistêmica voltados a desnaturalizar

35
e deslocar as perspectivas analíticas, a fim de fazer emergir no tempo e no
espaço o lugar do invisibilizado, ou melhor, do cuidado, equivocadamente
naturalizado como sendo do mundo feminino.
Neste processo de desmistificação das relações pessoais, das
intimidades, do cotidiano e da luta para que a experiência das mulheres se
constitua como parte do reconhecimento político, o tema do cuidado e do
cuidar e de quem necessita de cuidado pode ser pensado como construção
teórica a partir dos anos 60. No contexto dos anos 60, ele ficou enunciado
e circunscrito dentro de uma perspectiva de igualitarismo não competitivo,
que manteve sua lógica binária e opositiva. A afirmação dos binarismos e das
oposições não significa negar que diferentes correntes feministas forjaram
diferentes entradas na problemática do trabalho e do cuidado, a fim de
dissolver as desigualdades entre os homens e as mulheres. Este engajamento
teórico e político se faz, inclusive, nas teorias que revisavam a perspectiva
patriarcal3 e marxista da naturalização do trabalho produtivo e reprodutivo,
ou nos textos que envolveram a problemática do uso do tempo e do acesso
das mulheres à tecnologia, bem como, no que tangia a problemática das
alianças, do parentesco e das trocas na construção das explorações. (RUBIN,
1998; SACKS, 1979; TABET, 2005; KERGOAT, 1987; HAICAULT; COMBES,
1987; HIRATA; KERGOAT et al., 2010; SASSEN, 2010; LOBO, 1991; 1992;
SCOTT, 1994; NICHOLSON, 1987).
Até o final dos anos 60 e parte dos anos 70, no Brasil, trabalhos
pioneiros como os de Aguiar (1978), Saffioti (1969) e Blay (1972) tiveram
como foco central a incorporação ou a expulsão do trabalho feminino, no
contexto da expansão do capitalismo. Estes estudos deixavam de lado,
naquele momento, os obstáculos culturais decorrentes da função reprodutiva
da mulher na sociedade e o enfoque da divisão sexual do trabalho, sobre
a qual se versará mais detidamente nos anos 80. As pesquisas afirmavam
3 Para uma crítica ao patriarcado, ver Sheila Rowbothan (1984), para quem a palavra
patriarcado coloca muitos problemas; ela remete a uma forma universal e histórica de
opressão, com fortes marcas biologizantes, produz um modelo feminista de base vinculado a
infraestrutura e superestrutura, uma estrutura fixa, enquanto que as relações entre homens
e mulheres são tão mutáveis quanto fazem parte de heranças culturais e institucionais,
implicam reciprocidades tanto quanto antagonismos. Esta crítica também se refere às
abordagens, sobretudo de cunho marxista, referentes à divisão sexual do trabalho. Assim
como o patriarcalismo, essa abordagem teórica também não é aceita de forma consensual,
embora sua grande contribuição se apresente no sentido de articular relações de trabalho e
relações sociais, práticas de trabalho e práticas sociais.

36
que o trabalho feminino ocorria em resposta aos movimentos de atração ou
rejeição do mercado. E foram seguidos, segundo Castro e Lavinas (1992),
por análises sobre distintos temas, apoiados em diferentes metodologias,
diversificando-se o campo das questões.
As teorias advindas de preocupações com os sujeitos e com suas
experiências se voltaram para a consideração e o apreço das relações
igualitárias entre homens e mulheres, o que configurava o cuidado no centro
das relações complementares e a sororidade entre mulheres como a bandeira
para suportar a opressão e fazer resistência às dominações de várias ordens.
A sororidade foi proposta e foi reinventada em seu potencial político e
reinscrita como de existência cotidiana na vida das mulheres. Uma grande
quantidade de textos mostrava como a competição, a guerra, a virilidade
masculina haviam espalhado a morte e a dominação. Igualmente, havia
forte teor apelativo sobre as mulheres militantes, da parte de diferentes
instituições e do próprio feminismo; eram vozes destoantes que chamavam as
mulheres à revisão de sua posição dita masculinizada. Segundo Fox-Genovese
(1992), nestas concepções a mulher poderia e deveria se portar de maneira
diferente da forma como se portavam os homens. Afinal, elas usavam uma
linguagem diferente dos homens, tinham concepções distintas de política,
de justiça e de moralidade. No centro da noção de irmandade, afirma-se a
solidariedade e a semelhança entre todas as mulheres. À medida que ocorre a
consolidação desta concepção no interior dos grupos de conscientização dos
anos 60 e início dos 70, segundo Fox-Genovese (1992), obteve-se uma das
mais poderosas armas do movimento de mulheres de classe média; mas tal
ocorreu também em grupos de comunidades escravas, por exemplo, na luta
das nigerianas contra o imperialismo inglês, ou em sociedades camponesas
que, de acordo com a autora, compartilhavam o trabalho, a camaradagem, a
religião e a resistência frente às ameaças. Irmanadas em suas práticas e em
suas concepções, ofereceram espaços de apoio psicológico no qual as mulheres
podiam conhecer melhor a si mesmas conhecendo umas as outras. Estas
perspectivas estavam baseadas em visões essencializadas da mulher, nas
quais se considerava que a experiência feminina havia dotado a mulher de uma
aversão à competição e aos padrões abstratos que caracterizam os modelos
tradicionais de justiça e de política do ideário iluminista. Contrariamente, a
ética racionalista em vigor depois do século XVIII, dentro da qual as teorias
e os julgamentos morais nascem da razão, a ética do cuidado era tomada

37
como aquela à que se acordava o papel moral das emoções, porque muitas
relações humanas concernentes aos indivíduos vulneráveis, aos doentes e
dependentes se fixavam mais na atenção às necessidades do que na atenção
que diz respeito ao direito da pessoa e nas responsabilidades coletivas.
O modo pelo qual os indivíduos conceituavam o que era uma ação
moral foi uma das entradas seminais para a construção das reflexões no
campo do cuidado que o livro fundador de Carol Gilligan se interessava
particularmente em observar. Nele a autora trabalha com uma visão sobre
o desenvolvimento moral e a ligação entre ele e a identidade de homens
e mulheres; para Gilligan, eles e elas possuem diferentes capacidades
cognitivas. Ela insiste sobre o fato de que a maturidade moral corresponde a
uma maturidade da capacidade cognitiva dos indivíduos e que esta é marcada
por uma ligação entre identidade e moral. Trata-se de um desenvolvimento
que vai em direção à autonomia e que se traduz na capacidade dos indivíduos
de esclarecerem as situações a partir de princípios gerais e abstratos.
Carol Gilligan (1982) fez entrevistas em colaboração com Kohlberg,
filiada à corrente da psicologia do desenvolvimento humano, e se deu conta
de que existem casos e discursos que não se encaixam no quadro de Kohlberg.
Escreveu então o livro Uma voz diferente, com o intuito de conceitualizar o
agir moral de maneira diferente de Kohlberg. Dentro de sua obra, Gilligan
define igualmente a orientação moral do cuidado, principalmente pelo
desejo de manter as relações com os outros. Esta orientação moral se funda
em certo senso de percepção que reconhece a configuração relacional do
cuidado e procura determinar a singularidade da situação, em vez de lidar
com referências abstratas para princípios universalmente válidos, conforme
propostos por Kohlberg, para quem o raciocínio moral é uma decisão baseada
sobre princípios efetuados por um indivíduo autônomo e racional.
Esta demarcação inicial irá contribuir para o estabelecimento de um
debate sem fim entre ética do cuidado e ética da justiça. Nesta construção,
o cuidado é um tipo de raciocínio moral contextual que se vincula aos
detalhes das configurações morais às quais Gilligan atribui configurações
relacionais como princípios complementares, mas que, enquanto princípios
gerais, seguem circunscritos à ética do cuidado para as mulheres e à ética
da justiça para os homens. Nesse livro, Gilligan apresenta um estudo acerca
do desenvolvimento psicológico moral de meninos e meninas, ao longo
de vários anos. Sustenta a tese de que o desenvolvimento psicológico de

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meninos difere do das meninas, sendo que na vida adulta as mulheres em
geral formam uma voz moral distinta da que é desenvolvida pelos homens.
Tem-se, por meio desta construção, uma conceituação de cuidado como
derivada de dois princípios distintos, um para homens e um para mulheres.
Os homens direcionariam seu desenvolvimento de propostas éticas pautadas
em princípios imparciais e de justiça e as mulheres estariam focadas em seus
relacionamentos em uma ética do cuidado. Assim, as mulheres desenvolvem
uma ética relacional, que advém de sua relação com suas mães preocupadas
muito mais com a moralidade do seu agir.
Segundo Gilligan e feministas liberais de mesma perspectiva, as
mulheres praticam uma ética de cuidados e os homens estão do lado de uma
ética de direitos e obrigações. (GILLIGAN, 1982). O fato de conceber a moral
ligada a uma ética do cuidado orienta o desenvolvimento moral ao redor dos
conceitos de responsabilidade e de relações humanas dependentes. A moral
fundada sobre os direitos difere da moral baseada sobre a responsabilidade,
porque ela separa os elementos; estão em primeiro lugar os interesses dos
indivíduos e não as relações entre os indivíduos. Esta reflexão desloca o
interesse pela sonoridade e/ou irmandade para o conceito de identidade
como contraposição entre o masculino e feminino, por razões de princípios
fundadores de ambos, e constitui um modelo binarizado para o lugar dos
corpos e das mentes, da cognição e do julgamento para masculino e feminino
e para os sentimentos de ambos.
Algumas autoras, segundo Le Goff e Garrau (2013)4, viram nas
proposições de Gilligan fonte possível de uma ótica que podemos qualificar
como materialista. Esta perspectiva foi colocada em ação dentro das relações
de dependência e, em particular, na relação mãe-criança (CHODOROW,
1979), que é um modelo que tem toda uma dimensão moral e que fica sem ser
percebida pela teoria moral bem como na política tradicional. Esta versão da
ética do cuidado – como valorização de um ponto de vista feminino ou como
valorização de uma ótica materialista – foi desenvolvida nos trabalhos de
Nel Noddings (1984). São estes primeiros posicionamentos de Gilligan que
vão marcar o campo prático e conceitual do cuidado. Intervirão notadamente
4 Entrevista com Le Goff e Marie Garrau. Disponível em: <http://dikephilopol.
wordpress.com/2013/02/18/alice-le-goff-et-marie-garrau-care-justice-et-dépendance/>.
Acesso em: jan. 2017. Cf. livro de GARRAU, Marie; LE GOFF, Alice. Care, justice et dépendance:
introduction aux théories du care. Paris: Universitaires de France, 2010. Acesso em: jan 2017.

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nesta concepção os pensamentos de ruptura de Joan Tronto, que se situa,
não mais no plano ético, mas sobre um plano de desvantagem sociológica.
Essa ideia significa romper com a abordagem também de Noddings (1984),
para quem cuidar é uma abordagem feminina da ética com significado
celebrativo e de legitimação de uma parte da vida das mulheres. Para Tronto
(1997), a formulação de Noddings sobre o cuidar não pode constituir um
modelo satisfatório para a teoria moral do cuidar. Tronto (1997) reposiciona
a questão da ética do cuidado entendida como uma ética feminina, porque
ela conduziria a certos estereótipos. A autora demonstrará que a noção
de cuidado pode permitir desenvolver o caminho de uma teoria crítica da
organização do trabalho. Esta é uma fase mais crítica das teorias do cuidado,
que não se atém somente ao domínio ético, mas que se coloca no domínio
da sociologia e da política. Sua preocupação voltar-se-á, notadamente, a
demonstrar que a marginalização do cuidado, sua identificação com uma
figura feminina de ética e um tipo de moral com validade unicamente dentro
da esfera privada é um fato, porém, está constituído como feito de contextos
políticos, a saber, é o reflexo da divisão gendrificada das atividades sociais.
Tronto demonstra que a perspectiva do cuidado precisa ser um diálogo com
as teorias da justiça. Se quisermos mostrar a validade geral da perspectiva
do cuidado, então se faz necessário dividir de maneira justa as atividades
sociais do cuidado. O conceito de Tronto é duplo: em primeiro lugar, porque
articula práticas e atitudes, ou cuidado e preocupação. Mas dizer isso ainda
não é o suficiente para entender o que ele permite; em segundo lugar, Tronto
mostra que existem várias fases nas atividades de cuidado que correspondem
a diferentes atividades, cada qual envolvendo uma atitude moral particular.
E é por isso que os problemas de tradução são legítimos.
Segundo Le Goff e Garrau (2013), nos cuidados pensados por
Tronto (2009) exige-se primeiro a identificação de uma necessidade e saber
atendê-la. Esta primeira fase é uma atenção para as necessidades dos outros.
Em seguida, há uma fase de cuidados que é assumir a responsabilidade,
seguida da competência e, finalmente, uma reatividade, fase ou capacidade
de resposta, que consiste no fato de se considerar a forma como os outros
reagem ou respondem. O cuidado é complexo, dividido em várias fases, e
toda a questão consiste em saber se o cuidado é genuíno, se estamos lidando
com um “bom atendimento” ou com um “cuidado inacabado, incompleto”. “O
cuidado concluído” irá designar práticas em que todas essas fases são então

40
integradas. Assim sendo, conforme Marie Garrau e Alice Le Goff (2010)
julgam Tronto, o que ela mostra é que há uma materialidade do cuidado.
Não é, portanto, apenas “preocupação ou se preocupar”, mas para quem deve
também realizar algum número de gestos; é preciso saber fazer; isto não
está, naturalmente, disponível para os indivíduos. É um processo complexo
que requer uma série de condições sociais a serem executadas corretamente,
incluindo uma ampla coordenação entre os diferentes atores envolvidos em
diferentes níveis.
Nas palavras de Alice Le Goff e Marie Garrau (2013), na entrevista
já citada, o que caracteriza o cuidado é precisamente que não há um núcleo
que se reduz a uma atitude ou disposição, mas que é uma prática complexa
que envolve diferentes fases de articulação de uns com os outros. O que
caracteriza o cuidado é a manutenção constante da tensão entre a polaridade
e a disposição prática – atitude. Segundo continuam elas, tomemos o exemplo
de uma enfermeira (é sempre o exemplo a que se recorre); para prestar
cuidados aos doentes, ela acaba fazendo tudo quase de maneira mecânica
e até mesmo, em alguns casos, com alguma forma de ressentimento e
distância de seu paciente. Ela executa ações que são esperadas dela sem se
sentir particularmente preocupada com a relação vis-à-vis ao paciente. É seu
trabalho, ela deve tomar cuidado com os doentes. Poderemos ainda falar de
uma prática de cuidados? Sim, mas é uma prática de cuidados que de alguma
forma não está concluída até o fim, já que não há integração das diferentes
fases que acabamos de falar. Esta continua a ser uma prática de cuidados,
embora não haja qualquer junção de empatia ou de cuidados especiais.
Podemos dizer que o que vai caracterizar o cuidado é a manutenção complexa
entre a prática e atitude e o fato de que a tensão entre a prática e atitude
nunca pode ser removida. São precisas certas condições sociais para uma
possível integração social, mas há sempre essa tensão que irá ocorrer entre
prática e atitude.
Segundo Tronto (2009), a linguagem do cuidado aparece em muitas
colocações em nossa fala cotidiana, incluindo um leque variado de agentes
e atividades. A realização de tarefas domésticas é cuidar da casa. Médicos,
enfermeiros e outros proporcionam cuidados médicos. Uma empresa
cuida de seus trabalhadores. Os juízes cuidam para que a justiça seja feita.
As mães cuidam de seus filhos, as enfermeiras cuidam dos pacientes, os
professores cuidam dos alunos. Tronto (2009) diz que o cuidado envolve um

41
compromisso; deverá, então, ter um objeto. Assim, cuidar é necessariamente
relacional. Dizemos que cuidamos de ou temos cuidado com alguma coisa
ou com alguém. Podemos distinguir “cuidado com” de “cuidar de”, com base
no objeto dos cuidados. “Cuidado com” refere-se a objetos menos concretos;
caracteriza-se por uma forma mais geral de compromisso. “Cuidar de”, como
caracteriza Tronto (2009), implica um objeto específico, particular, que é o
centro dos cuidados. As fronteiras entre essas duas formas de cuidar não são
tão nítidas como essas afirmações fazem subentender. Todavia, a distinção
é útil para revelar algo a respeito do modo como pensamos sobre cuidados
em nossa sociedade, porque se ajusta à forma de como ela define os cuidados
de acordo com o gênero. Quando Tronto (2009) explicita sua argumentação,
“cuidar de” quer dizer responder às necessidades particulares, concretas,
físicas, espirituais, psíquicas e emocionais dos outros. Por exemplo, uma
mãe cuida da criança, uma enfermeira cuida dos pacientes do hospital. Esses
tipos são unificados, por se originarem no fato de que os seres humanos têm
necessidades físicas e psíquicas (alimento, boa aparência, calor, conforto)
que requerem atividades para satisfazê-las. Essas necessidades são em
parte socialmente determinadas; também são atendidas em sociedades por
diferentes tipos de práticas sociais. Tronto (2009) faz bem essa distinção;
como nem todo cuidado apresenta um caráter moral, uma outra diferença
entre ter “cuidado com” (preocupar-se) e “cuidar de” torna-se óbvia. Quando
queremos saber se “ter cuidado com” (preocupar-se) é uma atividade moral,
indagamos sobre a natureza do objeto do cuidado. Preocupar-se com a justiça
é uma atividade moral, porque justiça é um assunto moral; preocupar-se com
o sapato da colega de trabalho não é uma atividade moral. “Cuidar de” adquire
significado moral de uma maneira diferente. Quando indagamos sobre isso,
não é suficiente conhecer o objeto do cuidado; provavelmente temos de saber
algo sobre o contexto em que se dá, especialmente sobre a relação de quem o
presta e de quem o recebe.
A atribuição da responsabilidade de cuidar de alguém, de alguma
coisa ou de alguns grupos, pode então ser uma questão moral. O que faz
“cuidar de” ser tipicamente percebido como moral não é a atividade em si,
mas como essa atividade se reflete sobre as obrigações sociais atribuídas a
quem cuida e sobre quem faz essa atribuição, como ela se encontra ou não
na esfera da democracia. Segundo, temos de considerar como as obrigações
de cuidar dos outros têm significado moral na sociedade como um todo; a

42
análise de Tronto (2009) não foi somente uma análise “feminina” e, sim, uma
análise feminista sobre o assunto.
A dificuldade é da construção de bases democráticas para o cuidado, é
passar do micro para o macro, isto é, não se ater apenas a relações face a face,
mas também passar para o relato das instituições e de suas responsabilidades.
Com o conceito de cuidado de Gilligan, é muito difícil pensar as instituições.
Tronto abre a pista para refletir sobre como podemos usar esse conceito de
cuidado, para pensar a relação com as instituições, o que significa sair da
relação dual e de uma concepção demasiado sentimental de atendimento.
No tema do cuidado, apresenta-se igualmente uma grande discussão
a respeito de necessidade; segundo Arendt (1958), a verdadeira atividade de
cuidar de outra pessoa parece muito longe do que consideramos habitualmente
como questão moral. Ela parece mais ligada à esfera da necessidade do que à
esfera da liberdade, onde presumivelmente os julgamentos morais têm lugar.
Para outras autoras, a esfera da necessidade leva por vezes ao cuidado forçado
(GLENN, 2012), negando-se que o valor dos cuidados seja simplesmente
uma atividade banal, que não envolva julgamento.
A respeito deste aspecto dos julgamentos, Sara Ruddick (1980),
autora de obras sobre o cuidado, descreve o pensamento maternal como um
tipo de prática, isto é, como uma atividade prudencial em que as emoções e a
razão são postas em ação para educar uma criança. Sua colocação sugere que
pode valer a pena explorar detalhadamente os caminhos através dos quais a
prática de cuidar envolve questões morais, a fim de determinar as dimensões
morais de cuidar dos outros, que é o tipo de cuidado mais intimamente
associado às mulheres em nossa sociedade.
No mais, geralmente há acordo a respeito do fato de que o cuidado
tem sido uma atividade predominantemente feminina; ainda que a entrada
analítica possa contemplar pontos diversos, tanto epistêmicos, conceituais
e axiológicos, sua feminização é estrutural; e isto tem consequências para a
democracia. Assim, se para algumas autoras ele envolve discutir as questões
morais, para outras, como Thomas Carol (1993), já que o cuidado tem sido
uma atividade predominantemente feminina, estudá-lo exige uma análise
baseada na ordem de gênero. Ela o faz, contemplando sete dimensões que
juntas formam o conceito de cuidado em sua proposição: (1) a identidade
social da pessoa que exerce o cuidado; (2) a identidade social da pessoa que
recebe o cuidado; (3) as relações interpessoais entre o responsável pelo

43
cuidado e o receptor; (4) a natureza do cuidado; (5) o domínio social dentro
do qual a relação de cuidado está situada; (6) o caráter econômico da relação
de cuidado; e (7) o local institucional no qual o cuidado é exercido.
Do ponto de vista da pesquisa feminista, Thomas (1993, p. 650)
argumentou sobre a inconsistência do significado de cuidado com base nas
contribuições da pesquisadora norueguesa V.Held. Esta autora distingue o
cuidado como atividade de trabalho e o cuidado como sentimento. “Cuidar
de” implica cuidar de alguém, executar o trabalho de cuidar, enquanto
um sentimento significaria importar-se com alguém, ter sentimentos de
“cuidado”. Estes aspectos não estão separados, quando se trata do cuidado,
e a análise da literatura tem revelado que o conceito de “cuidado” não é
uniformemente definido, tampouco é clara sua posição epistemológica.
Segundo Thomas (1993), depois de uma década de pesquisa sobre
o cuidado, as escritoras feministas Hilary Graham (1991) e Clare Ungerson
(1990) também apontaram, independentemente uma da outra, dificuldades
com o conceito de “cuidado”. As duas então reivindicaram um remanejamento
do conceito feminista de cuidado, só que em direções diferentes. O ponto
fundamental é uma inconsistência no significado de “cuidado” que produz
uma imagem parcial e fragmentada do “cuidado” na sociedade. O significado
de cuidado é geralmente entendido como prestação de serviço e, com
frequência, apresentado como abrangente em sua cobertura da atividade de
cuidar, enquanto que, na realidade, os conceitos de cuidado empregados são
representações parciais ou segmentos da totalidade do cuidado. As definições
de cuidado, para Thomas, são elaboradas de tal modo que os limites são
diferencialmente delineados em torno do que constitui o cuidado, com o
efeito de excluir ou incluir conjuntos de relações sociais em definições de
relações de cuidado. Particularmente, os conceitos de cuidado tendem a ser
apresentados como genéricos, quando na verdade são específicos e estão ao
alcance do domínio público ou privado.
Essa parcialidade não reconhecida de conceitos de cuidado tem duas
consequências. A primeira é obscurecer formas de cuidado que apareçam fora
dos limites socialmente criados. Thomas (1993) faz referência às análises de
Hilary Graham (1991) e examina estes aspectos em sua crítica do “cuidado
da família em casa”, conceito de cuidado característico da pesquisa feminista
britânica; tal conceito exclui formas não familiares de cuidado em casa, como,
por exemplo, o trabalho doméstico que é executado de forma desproporcional

44
por mulheres negras e, assim, ofusca a experiência social de parte das
mulheres que exercem o cuidado. (GRAHAM, 1991). Em conformidade com
Thomas, a persistência de um método de cuidado fragmentário impede que
se desenvolva um entendimento geral da divisão sexual do trabalho, um
entendimento do cuidar através e dentro dos domínios privados/domésticos
e públicos.
Este segundo ponto relaciona-se com um outro ponto da problemática:
o subdesenvolvimento do trabalho teórico sobre a natureza de práticas de
cuidado e a relação entre elas. Especificamente, o status epistemológico do
conceito de cuidado aguarda um esclarecimento. Em sua crítica, Graham
(1991) declara que esse conceito tem sido “subteorizado” na pesquisa
feminista, o que significa que, diferentemente teorizado, o “cuidado” pode
funcionar como uma categoria teoricamente válida. Esta ideia está sujeita
a dúvidas, segundo Graham. Para desenvolver uma compreensão teórica de
cuidado, Thomas sugere começar com a questão de o próprio cuidado ser uma
categoria teórica; ou se formas de cuidado são entidades empíricas, casos em
que elas necessitam ser analisadas em relação a outras categorias teóricas.
Estes aspectos são particularmente ilustrativos e bem observáveis,
quando vejo o quanto é praticamente impossível pensar-se o cuidado
como um único conceito abarcador, estruturante e sistêmico, depois de ter
orientado o tema, em relação a vários contextos; ainda assim, dizê-lo não
impede que haja uma epistemologia com muitas interfaces, sentido em que,
sim, ele se torna uma epistemologia aberta e que está em diálogo com o
empírico. Como parâmetro geral, nos contextos de cuidado, existe consenso
de que as categorias feminizadas são acionadas; e, de que quando o cuidado
fica circunscrito às atividades de serviço pessoal, perdem-se as relações de
poder e as assimetrias.
Outro aspecto fundamental garante que um conceito não é um
conceito puro e abstrato. Os conceitos são instrumentos intelectuais
potentes, mas não são suficientes intelectual e politicamente. Tronto alerta,
a este respeito, quando assevera que se tomarmos a premissa segundo a
qual nós devemos exercer o cuidado de modo a desenvolver a democracia,
então nós percebemos de pronto a problemática que o cuidado coloca para
a democracia, porque numerosas relações de cuidado não são relações
democráticas, seguem marcadas pela ética da valoração diferente da diferença.

45
Como Genevieve Lloyd (1984) argumentou em relação à razão,
o apelo à categoria do feminino como antítese da masculinidade mantém
o masculino como normal, o que está em oposição ao que é feminino,
considerado o portador de problemas. Nesse caso, a interpretação das
mulheres como atadas à atividade mais particular de cuidar dos outros está
em oposição às preocupações mais públicas e sociais dos homens. Tronto
(1997) torna esse argumento ainda mais contundente, ao afirmar que, na
medida em que o cuidar é uma maneira de “estar atento a”, pode refletir um
mecanismo de sobrevivência para as mulheres ou outros que estão lidando
com cuidado em condições opressivas, ao invés de ser uma qualidade de
valor intrínseco em si mesmo. Este aspecto costuma estar associado à outra
maneira de compreender o cuidado, segundo Tronto, que é vê-lo como a
ética mais apropriada para os que estão numa posição social subordinada,
como as mulheres – e outras pessoas que não estão nos corredores do poder
nesta sociedade. Essas pessoas adotam uma variedade de “maneirismos
diferentes” (diferenças na fala, no sorrir, nas formas de linguagem corporal
etc.), para servirem a seus propósitos de sobrevivência; também podem ter
adotado uma atitude de “estar atento a”, mas que, sob outros aspectos, pode
ser compreendida como a necessidade de prever os desejos de seu superior.
Esta posição estrutura relações desiguais.
No livro The Caring Self: the work experiences of home care
aides, encontramos o trabalho de Stacey (2004), que nos aproxima mais
especificamente ao campo da saúde, mas tem como foco quem cuida. Stacey
entra no contexto científico da produção de cuidado, focando aqueles que
são invisibilizados em suas experiências, combinando diferentes métodos, e
o faz dialogando com cuidadores e cuidadoras domiciliares. Ao escolher olhar
para quem cuida e ao fazê-lo nos contextos onde essas pessoas realizam o
seu trabalho, Stacey constrói uma análise importante, não só para quem
estuda a produção de cuidado, mas também para os temas do trabalho, das
desigualdades sociais e das questões de gênero.
A autora constrói um argumento que procura perceber como é que os/
as cuidadores/as domiciliares pagos encontram significado e identidade no
trabalho de cuidar – o que ela chamou the caring self – dentro de um contexto
de real desvantagem estrutural (pobreza, aumento do volume de trabalho,
baixos salários e poucos benefícios). Stacey (2004) também vai além das
questões da pobreza de quem cuida, para perceber como as biografias pessoais
dos/as cuidadores/as têm importância para compreender a sua relação com

46
o cuidado. Por essa razão, analisa as “trajetórias de cuidado” dessas pessoas,
concluindo que, na maioria dos casos, elas haviam cuidado, gratuitamente,
de pessoas que lhes eram próximas, antes de se tornarem cuidadores/as
formais. Este aspecto foi encontrado por Sandro Marcos Castro de Araújo
(2015), em sua tese sobre cuidadoras dos portadores do mal de Alzheimer. O
cuidado não era algo novo nas vidas das cuidadoras, sendo essa familiaridade
com o fenômeno um fator justificante para sua posição nele, ou seja, cuidar
parecia ser uma competência “natural” que elas mobilizaram inicialmente
para cuidar gratuitamente e agora servia para desempenharem as suas
funções no mercado de trabalho pago.
De acordo com Stacey (2004), ao enfatizarem essa competência
“natural”, em lugar de evidenciarem os constrangimentos que anteriormente
as levaram a assumir várias obrigações de cuidado, elas parecem não ter
consciência da pressão cultural existente para esse cuidar. Este fato também
foi constatado por Araújo (2015), quando as cuidadoras, por exemplo, dizem
não ter interesses em associações de proteção à sua profissão, ou fazer
cursos de formação como cuidadoras; este fato, segundo elas, provavelmente
as retiraria deste mercado, porque então entrariam critérios objetivados
legalmente. Frente a eles, nem elas nem seus contratantes poderiam assumir
as atividades do cuidado em casa.
O livro de Marie Garrau e Alice Le Goff, Justice et Dépendance:
introduction aux théories du care, publicado em 2010, é absolutamente
relevante para este campo reflexivo do cuidado, assim como o é o livro Qu’est
ce que le “care”? Souci des autres, sensibilité, responsabilité, de 2009, das autoras
Molinier, Pascale; Laugier, Sandra; Paperman, Patricia. Ambos nos inserem
em profundos aspectos epistemológicos, teóricos e de ordem prática, relações
nas quais a reflexão e a prática do care vêm se ancorando.
Estudos como os de Molinier, Laugier e Paperman (2005) revelam que
o quadro da ética do cuidado é adotado por sociólogos, juristas, psicólogos,
filósofos, geógrafos, juristas, antropólogos, estudos literários, bioética,
urbanismo, teologia e ciências da engenharia, e que as concepções são as
mais diversificadas. Eles mostram que não existe consenso sobre o conceito
de cuidado; ao contrário, existem muitas barreiras, também acadêmicas,
e que, para a maior parte do cuidado, trata-se de uma atividade de amor,
dentro da qual uma atividade privada ou íntima é realizada envolvendo um
estado emocional particular.

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Definem o que entendem por care, termo inglês, e soin, termo francês,
na mesma linha das dificuldades em estabelecer consensos semânticos e
políticos. O termo care se refere a uma atitude para com os outros que pode
ser traduzida para o francês como “atenção”, “preocupação”, “solicitude”,
“cuidado” e “zelo”. Cada uma dessas traduções retorna potencialmente
a um aspecto do cuidado. O termo “atenção” insiste em uma maneira de
perceber o mundo dos outros; o de “preocupação” e “solicitude” retoma
uma maneira/modo de estar preocupado com o outro; e o “cuidado” é uma
forma de se ocupar concretamente com o outro. O termo “care” oscila entre a
disposição – uma atenção ao outro que se desenvolve na consciência de uma
responsabilidade, no que diz respeito a uma preocupação com seu bem-estar.
Para conservar essa riqueza semântica, elas conservam o termo em inglês,
também porque, segundo elas, permite manter a riqueza semântica que soin
em francês não possui.
Raïd (2005) defende a utilização elaborada por Fisher e Tronto (1990)
de que se trata de uma atividade característica da espécie humana, que inclui
tudo o que nós fazemos com vistas a manter, continuar ou reparar o nosso
mundo, de sorte que possamos viver da melhor maneira possível. Este mundo
inclui nossos corpos, nossa individualidade e nosso desenvolvimento, que
buscamos tecer juntos, dentro de relações complexas que sustentam a vida.
As duas autoras também descrevem quatro fases do cuidado e, na sequência,
agregaram as dimensões morais para cada fase: (1) o fato de preocupar-se
com alguém ou com alguma coisa; (2) tomar cuidado de alguém; (3) tratar
de alguém; e (4) ser objeto de cuidado. O fato de preocupar-se com alguém
ou com alguma coisa implica, em primeiro lugar, o reconhecimento de uma
necessidade – é necessária a qualidade moral específica de atenção para com
o outro, que consiste em reconhecer aquilo que o outro necessita. Cuidar
supõe assumir a responsabilidade do trabalho de cuidado, que é necessário
cumprir – seu corolário ético é a responsabilidade. O fato de tratar é o
trabalho concreto do cuidado. A autora lhe atribui a qualidade moral da
competência que, mesmo podendo ser definida como uma questão técnica,
pode ser igualmente uma questão moral. Ser objeto de cuidado é a resposta
da pessoa frente ao que foi feito. Não se trata do dever da pessoa que foi
beneficiada pelo cuidado – mas da definição de Nel Noddings – o que implica
que todos os que estão envolvidos no processo de cuidado avaliam a qualidade
do cuidado colocado em ação. A capacidade moral implicada é a capacidade de
resposta, a reatividade.

48
Esta definição abrange muitas disciplinas e muitas perspectivas –
as ciências sociais tendem a distinguir o cuidado por si mesmo (preocupar-
se de si), que parece ser mais de fundo psicológico, o cuidado dos outros,
uma categoria sociológica, e o cuidado aos olhos do mundo – que parece se
apresentar como sendo das categorias econômicas e políticas. Estas definições
também combinam aspectos normativos e não normativos. Quando as
autoras definem cuidado deste modo, a concepção de mundo muda – não se
vê mais o mundo como uma junção de indivíduos autônomos perseguindo
fins racionais e projetos de vida – mas vê-se o mundo como a junção de
pessoas tomadas dentro das redes do cuidado e engajadas em responder às
necessidades do cuidado.
Interessa às autoras mostrar as diferentes posições nas quais se
encontram aqueles que oferecem cuidados e aqueles que o recebem. Os
primeiros podem ser seus beneficiários – os cuidados são vitais para eles.
No interior da segunda posição, caso os cuidados não atendam, podem ser
dispensados e a relação pode ser muito assimétrica sobre quem fornece o
cuidado. Sobretudo, problematizam esta posição, porque ela leva à negação
de que todos os seres humanos necessitam de cuidados.
Para as autoras Paperman e Fisher é preciso, em primeiro lugar, ir à
fronteira traçada entre cuidado necessário e atividade de serviço pessoal e
considerar, como ela é frequentemente política, uma condição para se pensar
o cuidado democrático e a democracia do cuidado. Contudo, a politização do
cuidado não é somente dessexualizar a moral do cuidado como feminino;
significa deixar falar a autoridade da experiência das pessoas que realizam
esta parte desvalorizada do trabalho de cuidado.
Os estudos contidos no livro de Molinier, Laugier e Paperman
(2005) mostram também como na França, país de origem do livro, prendre
soin (tomar cuidado de) é um trabalho que tem um certo número de
práticas e envolve muitas atividades. Mais do que o sentido médico, trata-
se de um certo número de práticas corporais, mas também da disposição
de se preocupar de, de se soucier. Trata-se de inquietude/preocupação, que
se preocupa. Souci desenvolve forçosamente outro conceito: a noção de
vulnerabilidade (preocupar-se). Trata-se então de ter compreensão de uma
política social, focada também na desigualdade racial, de gênero, classe,
nas vulnerabilidades.

49
A noção de vulnerabilidade será preocupação das autoras,
sobretudo no capítulo escrito por Sandra Laugier, intitulado: Le sujet du
care: vulnérabilité et expression ordinaire, no sentido de que há necessidade
de uma definição do ser humano que produza uma definição de humano
não significando que os seres humanos são vulneráveis. Não se trata de ser
essencialista. As autoras estabelecem diálogo com a ética do cuidado para
dizer que ela não é um conceito neoliberal, de que não se trata de produzir
um capital humano, como um indivíduo que pode se produzir a si mesmo,
indivíduo como performance de si. A ética do care, para as nossas autoras,
é um reconhecimento da vulnerabilidade, não só da autonomia; mas um
reconhecimento ao lado de práticas, ao lado da referência a um contexto
como situação de vulnerabilidade. O pensar a vulnerabilidade tem muitas
interfaces. Uma situação de vulnerabilidade vital pode ser a doença, a morte,
a incapacidade, perder pessoas, ser portador de incapacidades etc; ou pode
ser a vulnerabilidade social, como o desemprego, a fome, conforme tratam
Maria Izabel Machado, Daniela Isabel Kuhn e Gilson Leandro Queluz neste
livro, ou a vulnerabilidade ambiental por força de catástrofes.
O cuidado é uma maneira de pensar um acompanhamento, sustentar
uma proteção para os outros. A vantagem da noção de vulnerabilidade está
em se poder pensar as situações de fragilidade que são diferentes, mas que,
na forma em que existem hoje, exigem atenção. Segundo esta perspectiva, o
cuidado é uma maneira de pensar, de produzir proteção para os vulneráveis.
Ele envolve senso relacional e político, projeto de sociedade que tome em conta
a diversidade de situação e a vulnerabilidade. Isto não é uma ideia abstrata de
justiça, é uma nova compreensão da autonomia. Importa encontrar formas
coletivas: instituições públicas e famílias, trabalho e sentidos coletivos e
repensar a confiança na relação social com relações horizontais voltadas à
construção de uma democracia sensível.
Paperman e Molinier (2015, p. 43) afirmam: “Quase sempre
identificada com a discussão sobre a teoria da justiça, a ética do cuidado é
percebida como uma questão legítima para os filósofos, adequada para a
psicologia e embaraçosa para as ciências sociais, que, na melhor das hipóteses,
deixam-na de lado”. Isto nos desafia.
Marie Garrau e Alice Le Goff (2010), além de exporem a ideia de
centralidade do care para a justiça, apontam a essencialidade de se distinguir
as relações de dependência das relações de dominação como um aspecto

50
fundamental da existência humana. Esta obra nos apresenta uma análise do
care que nos estimula a ver as realidades dos trabalhos demandados no care,
as políticas públicas, as construções argumentativas de uma cidadania plena,
as desconstruções de estereótipos, os estigmas e a desvinculação necessária
dos pressupostos femininos, aos quais o care esteve e está conectado.
Igualmente, as autoras apontam a necessidade de reflexão social sobre o
cuidado, para que ela se desenvolva sob a perspectiva do seu sentido político,
econômico, institucional e com o seu consequente desmanche sexista.
Segundo resenha de Monticelli e Tamanini (2014), a obra nos traz
um rol abrangente de interfaces, para pensarmos formas coletivas de ação
nas instituições públicas e familiares, no trabalho e na relação social. Marie
Garrau e Alice Le Goff, (2010) produzem os fundamentos e as interrogações
sobre o modelo que se poderia usar para pensar a dependência em suas
múltiplas denominações. Para tal, consideram aspectos que se ligam às
representações sobre a precariedade da vida corporal e biológica em fases
diversas da experiência humana, como a infância, a velhice ou uma doença,
ou frente à fragilidade das identidades. Elas demonstram como as relações
que envolvem a dependência são marcadas por uma ambivalência essencial
que se produziu por razões históricas vinculadas à ideia de vulnerabilidade
e de incapacidade. Como exemplo, as autoras recorrem a Linda Gordon e
Nancy Fraser (1997), para assinalar como os processos de individualização e
a dependência foram inseridos nos programas de proteção social, provocando
a ascensão de sua psicologização e moralização.
As autoras elaboram ricas e densas considerações sobre as noções
de vulnerabilidade. Trazem ao debate as teorias do care e da justiça, para
considerar a irredutibilidade e a positividade das relações de dependência,
tendo em conta os riscos de sujeição abertos para toda a relação assimétrica.
Apoiadas em Gilligan, demonstram aspectos positivos da ética do care
e da dependência, já que a última se funda em uma ontologia social
concebida pelas noções liberais e, portanto, está identificada como o lugar
de uma experiência moral particular, de aprendizagem e implementação
de competências morais específicas e como fundamento das identidades
pessoais e morais dos sujeitos. Apoiam-se positivamente no fato de que
Gilligan nos demonstra que dependemos uns dos outros e que a preservação
das relações constitui um jogo moral tão importante quanto o da justiça.
Assim, reconhecem em sua obra uma mudança de paradigma na teoria

51
moral e um novo método de pesquisa na psicologia, que permite visibilizar
diferentes vozes morais. À dependência dá-se um valor positivo, como lugar
de uma aprendizagem moral e de uma experiência moral completa, o que
significa que no plano das reivindicações de direitos pode-se partir de outras
significações. O reconhecimento de nossas dependências mútuas vai ao
encontro do reconhecimento das responsabilidades mútuas; mas esse duplo
reconhecimento não significa o sacrifício do sujeito, mas, sim, a compreensão
do agir com responsabilidade em relação a si mesmo e aos outros. Por isso,
as autoras, ainda que ressaltem o valor da teoria do desenvolvimento moral
de Gilligan, também se associam às críticas que o feminismo produziu contra
o binarismo presente na forma de uma ética do cuidado e da justiça. Esta
construção de Gilligan acabou por ancorar o care em uma ideia tradicional de
solicitude natural das mulheres, acreditando-se numa equivalência entre a
preocupação com os outros e o sacrifício de si e justificando o confinamento
das mulheres no âmbito do sítio privado, de uma ética do care feminista que
se desenvolve a partir das críticas destes mecanismos que a primeira ideia
propaga.
Dessa crítica à visão binária e essencializadora do feminismo,
passou-se de uma perspectiva exclusivamente moral para uma perspectiva
social e política. Restituiu-se ao care seu duplo contexto histórico e social
e ressaltou-se a subordinação das mulheres, aspectos que Garrau e Le Goff
também tornam presentes.
Garrau e Le Goff (2010) trabalham com uma linha argumentativa
crítica sobre a desvalorização da dependência e preservam a ideia do care como
uma orientação moral importante, que renova um ideal político preciso. Elas
buscam nas reflexões de Joan Tronto aspectos da fundamentação do cuidado
nos níveis sociais, políticos e éticos e das consequências da marginalidade
da ética do care e de quem proporciona suas tarefas (em sua maioria, as
mulheres). Ao lutar contra a marginalidade da ética do care, Tronto torna
possível e visível a sua centralidade na vida humana, que é compreendida
como relacional e social. Essa definição holística de Tronto torna o conceito
de care um conceito crítico e político, que afasta das mulheres e do âmbito
privado a responsabilidade pelas práticas que ele envolve e traz para a
discussão política as desigualdades fomentadas nestas relações, além de
possibilitar o questionamento: quem cuida e em quais condições?

52
Garrau e Le Goff insistem que a implementação de princípios da
justiça no seio da família precisa se conectar com as responsabilidades
compartilhadas entre seus membros e fazem a renovação deste quadro de
teorias a partir dos argumentos de Eva Kittay e Martha Nussbaum. O trabalho
de Eva Feder Kittay (1999), citado em Garrau e Le Goff (2010), exprime a
ideia de que uma concepção de justiça que não leva em conta a necessidade
de resposta à vulnerabilidade com o care é incompleta. Extrai a discussão da
teoria rawlsiana de justiça, baseada em uma crítica da teoria liberal sobre
a dependência, e no modo como Kittay estende as posições feministas do
ponto de vista da diferença, dominação e diversidade. Apresenta a forma
pela qual a interdependência vem se conceitualizando nas teorias do care,
pois insiste em unir pessoas consideradas normais como interdependentes
e as “anormais” como dependentes. A autora então se concentra em uma
noção de dependência extrema e suas questões morais e políticas específicas.
De acordo com Kittay, a consideração central do care e a nossa desigual
vulnerabilidade a seu respeito gera o reconhecimento da importância da
escolha dos princípios de justiça de um terceiro poder moral, que consiste
em mostrar atenção às necessidades específicas do outro. A importância
desse poder está na percepção de uma repartição igualitária do care e no
reconhecimento, nas circunstâncias da justiça e em estar na lista de bens
primários, fundando a ideia de que as suas atividades do care precisam ser
sustentadas coletivamente como um direito.
Propõe uma concepção de justiça que leve a sério a dependência,
pois cada membro da sociedade tem fases de dependência em suas vidas e
alguns nunca conseguem chegar a uma independência para participar da
cooperação social. A concentração sobre a dependência extrema revela uma
escolha estratégica, cujo desafio não é negar a nossa interdependência,
mas achar “uma lâmina afiada o suficiente para perfurar a ficção da
interdependência”. Reconhecer as especificidades das formas extremas de
dependência implica o risco de reiterar o estigma já colocado, mas reduzi-
la, na referência de interdependência, ou atribuir os aspectos problemáticos
aos efeitos da construção social pode criar uma invisibilidade social destas
formas de experiência. Kittay (2010) assinala o caráter específico e trágico
como irreversível de certas formas. Para isso ela traz sua experiência com sua
filha Sesha, que tem um “problema” mental severo. A dificuldade de Kittay,
ao descrever sua filha, mostra o significado de critérios de normalidade,

53
pois colocam sua filha como deficiente, e o trabalho de reconfiguração das
normas operam no seu contato. A autora diz, sobre Sesha, que não gostaria
de realizar uma descrição em termos negativos, como aquela que, “perto
dos 30 anos não pode comer, se banhar, andar, falar, ler, escrever, dizer
“mamãe” e “papai”. Kittay assinala que ela preferiria começar a falar das
coisas que sua filha pode fazer, de suas manifestações de afeto e afeição,
da maneira que ela aprecia o seu banho ou a música. Ela distingue as
respostas positivas, fiéis ao que Sesha é verdadeiramente, e o modo negativo
de descrição que ela oferece às pessoas que não conhecem sua filha, assim
como a dificuldade de achar um lugar no mundo que a rodeia. É importante
confrontar os limites cognitivos de Sesha, pois eles moldam o seu estilo
de vida e impõem uma estrutura para qualquer tipo de desenvolvimento
possível. Ao mesmo tempo, uma concentração muito exclusiva sobre eles
traz a exclusão de Sesha e da personalidade moral e da cidadania, tais como
o liberalismo as definiu, em função de critérios intelectuais e de normas de
interdependência e produtividade. O retrato de Sesha torna visível o que a
definição liberal de individualidade moral oculta e constitui, ao montar uma
crítica da teoria rawlsiana da justiça. A teoria da justiça, como a teoria moral,
repousa, com efeito, sobre uma concepção de pessoa que, por meio de uma
intelectualidade, chega a um status moral. A importância deste poder não
significa que cada membro da sociedade inclua na sua concepção de bem o
fato de tomar efetivamente o cuidado do outro, mas que cada um reconheça
a importância de uma repartição igualitária do trabalho de care. A inclusão da
dependência nas circunstâncias da justiça segue assim acrescentando o care
à lista dos bens primários, que os integrantes da posição original poderiam
repartir igualmente.
Além disso, o trabalho de cuidado pode ser conseguido sem a atitude
apropriada; entretanto, sem uma atitude de cuidado, a disponibilidade
para com o outro, que é essencial para compreender aquilo de que se tem
necessidade, não acontece. Isto quer dizer que o trabalho, que não é
acompanhado pela atitude de cuidado, não pode ser um bom cuidado. Assim,
o engajamento afetivo não será um atributo do trabalho de care, mas uma
propriedade distintiva do bom cuidado.
Esta vulnerabilidade de posição dos que cuidam explica a ambivalência
dos sentimentos que eles retiram do seu trabalho. O trabalho de cuidado
pode ser vivido ao mesmo tempo como alienante e como gratificante. Esta

54
ambivalência, porém, não significa que a ética do cuidado colocada em
ação pelos trabalhadores equivale a uma racionalização de sua dominação.
A ênfase colocada sobre o engajamento do trabalhador de cuidado não
implica, portanto, reconectar-se com uma visão romântica do trabalho de
cuidado; ao contrário, torna possível a percepção das dificuldades próprias
a este trabalho.
O trabalho de Martha Nussbaum (2006) é próximo ao trabalho de
Kittay; ela traz a questão da “desvantagem” como um teste da teoria da
justiça. Situa-se em uma discussão crítica com a teoria rawlsiana e faz algumas
objeções às teorias da Kittay, principalmente em relação à conceituação de
dependência, rejeitando um quadro contratualista. A crítica da dependência
e da autonomia, que Nussbaum faz a Kittay, diz respeito ao fato de que ela
justifica a emergência de um Estado paternalista insuficientemente social
da liberdade dos indivíduos e unicamente focado sobre a satisfação de
necessidades.
Nussbaum opõe a distinção, elaborada por Kittay, entre a
interdependência e dependência extrema e a ideia de uma interdependência
que lhe parece mais apta a promover a inclusão de pessoas dependentes na
comunidade moral e política. Face ao dilema da dependência, Nussbaum
toma emprestada a segunda via: ela empresta menos ênfase à noção
da dependência do que questiona a ficção da independência. Antes de
começar uma discussão com as teorias do care, Nussbaum (2006) procurou
desenvolver, em referência a Aristóteles, uma antropologia que insiste sobre
a mistura entre animalidade e racionalidade, assinalando a dignidade da vida
humana como uma vida marcada pela dependência e fragilidade.
A racionalidade humana, longe de ser autossuficiente e desencarnada,
depende, para o seu desenvolvimento, de circunstâncias exteriores e pode
ser afetada pela idade, doença, acidente. Nussbaum prefere elaborar uma
teoria da justiça inspirada na aproximação das capacidades. Ela desenvolve
uma concepção de pessoa colocando a importância de certas capacidades
para uma vida autenticamente humana, pensando os princípios políticos que
visam a promover uma definição de “liberalismo aristotélico”.
Para Nussbaum o interesse de pensar aristotelicamente advém do
fato de unir uma antropologia que define o ser humano como um ente de
necessidades, expondo a capacidade de ascender à liberdade, que desenvolve
as práticas complexas na relação com o outro. Para a autora, a afinidade da

55
perspectiva aristotélica com a aproximação das capacidades vem entrelaçar
e definir substancialmente a liberdade e o papel acordado em um contexto
que condiciona o desenvolvimento. Se Aristóteles permite desenvolver esta
aproximação, contudo, é porque o seu exame de uma vida boa responde à
questão de se conhecer, entre todas as capacidades humanas, aquelas que
convém promover para se ter uma sociedade justa.
Nussbaum insiste também sobre a necessidade de estruturar a
teoria das capacidades em torno de uma análise normativa objetiva dos
fundamentos humanos centrais, que sejam compatíveis com o respeito à
relatividade cultural. Esta análise revela os traços essenciais que podemos
considerar, de maneira a determinar quais capacidades devem ser
desenvolvidas politicamente.
Sobre esta base, Nussbaum define uma lista com dez capacidades
fundamentais à vida, à saúde, à integridade física, à liberdade de pensar, de
imaginar, sentir e desenvolver sua vida emocional e sua prática. As outras
capacidades abrangem o pertencimento, a interação com as outras espécies,
a dimensão lúdica da existência e o controle – político e material – sobre o
ambiente. Este é o nível que Nussbaum pode reintegrar às teorias do care. O
care revê um conjunto de práticas e de atitudes, sem as quais nenhuma das
capacidades humanas centrais pode ser adquirida e exercida. Os cuidados
propiciam a vida, a saúde e a integridade física; o sentimento emocional e a
atenção são o que tornam possível o desenvolvimento e o uso dos sentidos, a
imaginação e o pensamento; estes são essenciais para o respeito de si mesmo.
Neste sentido, o care revê ou deveria rever a totalidade das capacidades
humanas centrais e ser colocado no centro da definição da sociedade justa e
da ação política.
A lista de capacidades constitui uma norma de avaliação da justiça
de uma sociedade e um guia na elaboração de políticas públicas; o desafio
está em considerar a situação dos membros da sociedade em se organizar
socialmente e garantir o acesso às capacidades centrais. As capacidades não
devem ser tomadas em conta como simples capacidades pessoais, mas como
as capacidades “combinadas” dos poderes internos – das potencialidades
naturais e individuais, nutridas por uma educação adequada – correlacionadas
com as oportunidades objetivas, que as circunstâncias externas permitem
exercer.

56
De um ponto de vista político, a perspectiva das capacidades se
distancia também de uma teoria distributiva da justiça: é menos a de
garantir aos indivíduos que possuam um certo número de bens, e mais de
agenciar um envolvimento afetivo, social e político, favorecendo o exercício
das capacidades.
Esta lista pode criar uma norma de avaliação da justiça e um guia
de políticas públicas que agencia um envolvimento afetivo e social. É neste
ponto que o care se mostra fundamental, pois é possível rever este conjunto
de capacidades e suas práticas e atitudes e defini-las como elementos centrais
da sociedade justa e da ação política, possibilitando a todos o acesso ao
exercício da cidadania.
As relações que envolvem a dependência são marcadas por uma
ambivalência essencial que se produziu por razões históricas vinculadas
à ideia de vulnerabilidade e incapacidade. Linda Gordon e Nancy Fraser
(1997) sinalizavam, já nos anos 90, como os processos de individualização e
dependência foram inseridos nos programas de proteção social, trazendo um
processo social e teórico compatível com sua psicologização e moralização,
que não foi produtiva, para mudar o estatuto deste campo conceitual e dos
seus desafios práticos.
Ambas as autoras apontam o surgimento de um dualismo que
foi produzido na posição representacional da dicotomia entre pessoas
produtivas e as dependentes e assistidas; de um lado, quem é beneficiado
por alguma política de assistência social, para quem são garantidas pensões
de aposentadoria e desemprego; e, de outro lado, programas de assistência
aos mais pobres. Estes últimos, no que tange às proteções sociais, são
englobados em uma representação negativa de dependência e são colocados
nos pressupostos da incapacidade, da falta de autonomia, da inutilidade
social, considerados parasitas, o que os subjetiva como estigmatizados, além
de institucionalizarem um forte processo racializado e feminilizado.
Estes desafios de autonomizar e produzir relações de proteção
encontram-se na estruturação das políticas de Estado, na economia nacional
e transnacional (HIRATA, Helena; KERGOAT, Danielle et al., 2010) e na
discussão a respeito das diferentes vulnerabilidades sociais. No interior das
relações familiares, nos modos como se configuram os cuidados em saúde, em
educação, nas políticas de atendimento às crianças e aos idosos, ou no modo
como apoiamos as pessoas portadoras de necessidades especiais, também

57
se interpõem conflitos e desafios à questão do cuidado, relacionando-a com
temas como as desigualdades sociais, a saúde e questões de gênero.
Além do mais, são aspectos que dizem respeito a como cada um,
cada uma de nós percebe e age frente à necessidade de algum tipo de cuidado
do qual todos e todas dependemos pessoalmente ou institucionalmente.
Estas relações, que são também de dependência e interdependência, estão
reduzidas, muitas vezes, à díade da divisão sexual e desigual do trabalho,
favorecem a privatização, ou os contratos pessoais, porque são realizadas
em contextos de grande precariedade e, com frequência, estão presas às
necessidades de atenção imediata, situação que se confunde frente às
fronteiras da autonomia e da vulnerabilidade. Não é só disso, porém, que
se fala; o tema do cuidado e sua problematização produz fundamentos
e interrogações a respeito de transversalidades e sentidos práticos que
poderiam ser utilizados para se pensar a dependência em suas múltiplas
denominações. Para tal, faz-se necessário considerar aspectos que se ligam
às representações sobre a precariedade da vida corporal e biológica, em
fases diversas da experiência humana, como na infância, velhice ou alguma
doença, ou frente à fragilidade das identidades, quando abjetadas, por não
serem reconhecidas como existentes ou invisibilizadas nas relações sociais.
(BUTLER, 1999).

Considerações finais

Conforme já observamos neste capítulo, tanto do ponto de vista


epistemológico como no seu sentido prático, os tensionamentos acadêmicos
a respeito do cuidado começaram a ser produzidos já na década de 1980,
com Carol Gilligan. Ainda que tenha sofrido críticas de diversas teóricas
do feminismo, a obra de Gilligan coincide com o movimento feminista, ao
articular o fortalecimento de questões desnaturalizadoras das concepções
tradicionais construídas sobre premissas únicas de desenvolvimento moral.
Joan Tronto (1997) elabora sólida reflexão, considerando os aspectos
da fundamentação do cuidado, nos níveis sociais, políticos e éticos, e das
consequências da marginalidade da ética do care e de quem proporciona suas
tarefas (em sua maioria, as mulheres).
Também referendamos como teóricas como Marie Garrau e Alice Le
Goff (2010) mostram nossa dependência uns dos outros e como a preservação

58
das relações constitui um jogo moral tão importante quanto o da justiça.
Vimos como em sua obra elas apresentam uma mudança de paradigma na
teoria moral e propõem um novo método de pesquisa na psicologia, que
permita visibilizar diferentes vozes morais. À dependência dão um valor
positivo, como lugar de uma aprendizagem moral e de uma experiência
moral completa, o que significa que, no plano das reivindicações de direitos,
pode-se partir de outras significações, como, por exemplo, o reconhecimento
de nossas dependências mútuas que vão ao encontro do reconhecimento das
responsabilidades mútuas; nesse caso, sem o sacrifício do sujeito, mas, sim,
com a compreensão do agir com responsabilidade em relação a si mesmo e
aos outros.
Dessa crítica à visão binária e essencializadora realizada pelas
teorias feministas, passou-se de uma perspectiva exclusivamente moral para
uma perspectiva social e política. Restituiu-se ao care seu duplo contexto
histórico e social e ressaltou-se a subordinação das mulheres, aspectos
que Garrau e Le Goff também tornam presentes, ao trabalharem com uma
linha argumentativa crítica, a respeito da desvalorização da dependência,
ao mesmo tempo em que preservam a ideia do care como orientação moral
importante, que renova um ideal político preciso.
As autoras demonstram como as teorias contemporâneas da justiça
não vêm contemplando as realidades familiares e como são frequentemente
vistas como harmônicas em suas desigualdades. Elas insistem que a
implementação de princípios da justiça no seio da família precisa se conectar
com as responsabilidades compartilhadas entre seus membros e renovam
este quadro de teorias a partir dos argumentos de Kittay (1999) e Martha
Nussbaum (2011, 2006).
Paperman e Molinier (2009) nos inserem na necessidade de tradução
constante dos conceitos e de seus sentidos múltiplos, o que nos reporta às
dificuldades de fundamentação das teorias do care e ao reconhecimento de que
as diferentes experiências de pesquisa em diversos contextos nos estimulam
a ver as realidades dos trabalhos demandados no care, as políticas públicas,
as construções argumentativas necessárias à construção de uma cidadania
plena, além das imperativas desconstruções de estereótipos, de estigmas e a
desvinculação necessária dos pressupostos femininos, aos quais o care esteve
e ainda está conectado. Igualmente, nos obriga a desenvolver a capacidade
de uma reflexão social sobre o cuidado que possa se dar sob a perspectiva

59
de seu sentido político, econômico, institucional e com seu consequente
desmanche sexista.
Este rol de questões trazidas pelas autoras a respeito do care nos
desafia na sociedade contemporânea e reposiciona os conceitos, nos seus
aspectos normativos, tanto quanto não normativos, recoloca as velhas e as
novas questões à reconfiguração do cuidado, para construí-lo como política
social. Isto implica mudar seu valor para refletir a respeito da vida em sociedade
e em família, do mercado e do Estado, além de desidentificar, nestes âmbitos,
as continuidades com os tradicionais marcadores raciais, sexuais, emocionais
e afetivos, para constituir o processo necessário ao cuidado democrático e à
democratização do cuidado. Estes desafios encontram-se na estruturação das
políticas de Estado, na economia nacional e transnacional, no interior das
relações familiares, nos modos como se configuram os cuidados em saúde, em
educação, nas políticas de atendimento às crianças e aos idosos, ou no modo
como apoiamos as pessoas portadoras de necessidades especiais. Também
dizem respeito a como cada um de nós percebe e age frente à necessidade
de algum tipo de cuidado do qual todos e todas dependemos pessoalmente
ou institucionalmente. Estas relações, que são também de dependência e
interdependência, seguem em grande medida reduzidas à díade da divisão
sexual e desigual do trabalho, favorecem a privatização, ou os contratos
pessoais, porque são realizadas em contextos de grande precariedade e,
muitas vezes, estão presas às necessidades de atenção imediata, situação que
se confunde frente às fronteiras da autonomia e da vulnerabilidade.
Portanto, atualmente, os desafios, quer de ordem heurística ou
axiológica ou de cunho pragmático, no que tange ao cuidado, têm inúmeras
complexidades, desde aquelas que envolvem as questões mais amplas,
em termos ambientais, até os aspectos mais próximos do nosso cotidiano
pessoal, que nos exigem olhar para o nosso próprio corpo, para o corpo
dos animais, para os objetos, para o ambiente de trabalho, para a moradia,
a alimentação, as amizades e o lazer. É de muitas sociabilidades que dizem
respeito, falam de nós mesmos, nossos parentes, amigos e das pessoas com
as quais nos relacionamos. Os sujeitos que precisam cuidar e aqueles que
recebem cuidados estão todos desafiados, em seus níveis humanos e afetivos
mais profundos, a viver a vida com o cuidado e a oferecer-se sempre mais
para o cuidado.
Entretanto, em época de mundialização neoliberal, de perda das
fronteiras entre os países, de deslocamento de homens, mulheres, crianças

60
e jovens pelo planeta, os riscos e as mortes atingem frontalmente a todos,
desafiando as instâncias de representação internacional a tomarem decisões
de proteção e amparo com cuidados destinados a todas estas vidas.
Frente a tantos gritos de morte, de violências, de perdas de tanta vida,
que não encontra eco nas instâncias governamentais, frente ao terrorismo,
frente às chacinas, frente às guerras, frente à dor e ao pânico das pessoas, o
cuidado ganha uma dimensão eminentemente política e se impõe como um
desafio que pode evitar escolher entre a vida e a morte de muitas pessoas.
Ele vai, portanto, muito além dos nossos contextos de pesquisa,
com seus recortes e especificidades, com seus desafios internos a cada tema
ou com a nossa capacidade ou não de sermos bons. Precisa igualmente
ultrapassar sua inserção presa à crise da previdência ou da inoperância dos
sistemas de proteção social e de saúde. A questão social e o Estado social não
podem ser mais pensados como previdência. A vantagem do cuidado é que
ele pode permitir considerar um novo estado de questões, em que o cuidado
pode, quem sabe, construir uma nova forma de ser do Estado social, que leve
em conta o lugar de devir das mulheres, dos vulneráveis e necessitados de
cuidado, que leve bem mais em conta a sociedade preocupada com as pessoas
e suas necessidades.
Este lugar heurístico nos permite eleger ou fazer escolhas, com
vistas a olhar de perto e identificar como pensar cada desafio que se conecta
a concepções de mundo e de cuidado. E tudo isto é fundamental, conforme
veremos em cada capítulo deste livro. Este olhar, porém, necessita ser
ampliado enormemente para dar conta da proteção da vida e do planeta
como um todo. Neste nível, há grande complexidade de questões e de
obstáculos, mas há também muitas possibilidades e aberturas que implicam
as “potenciais” alianças transnacionais, conforme trata Paola Bacchetta
(2010) para o feminismo, quando ela se reporta ao modelo de sororidade
global. Neste mesmo contexto, o termo global segundo Bacchetta implica uma
política de aliança para todos no mundo, mas que não pode ser afirmada com
a noção liberal de “sororidade global”, pois esta pressupõe um patriarcado
transhistórico, que atribui o ônus da diferença para as mulheres do “Terceiro
Mundo” e higieniza os contextos hierárquicos e relatos capitalistas e de
racialização, uma situação muito frequente, quando se trata do cuidado,
sempre pensado no feminino e sob a responsabilidade de mulheres, seja nos
espaços da filantropia, conforme texto de Ana Paula Vosne Martins neste livro,

61
ou da pobreza, como a maior parte das análises aqui dispostas. São poucas
as conexões concretas, as alianças e os arranjos nacionais, internacionais e
transnacionais, com o sentido de gerar espaços para o cuidado da vida das
pessoas e do planeta.
Este engajamento pressupõe sujeitos políticos dinâmicos que
construam relações também de intersubjetividade política e que, portanto,
se definam como redes de capacidades para impulsionarem o desejo de
aproximação e de agir na direção da definição das vidas e de sua preservação.
Exige reposicionar os sentidos das economias, pensar estratégias a partir das
diferentes posições e experiências, que nos facultem repensar os conceitos e
as relações da grade de inteligibilidade dominante.
Isto inclui um processo de descolonização cognitiva, para assegurar uma
maneira de se desidentificar com os discursos dominantes e para provocar o
surgimento de novas políticas necessárias às pessoas e aos sujeitos situados.
Necessita-se de uma compreensão do cuidado que envolva uma comunidade
mais ampla, face às pessoas consideradas vulneráveis e necessitadas também.
(GARRAU; Le GOFF, 2010).

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69
70
EM BOAS MÃOS: ASSOCIATIVISMO FEMININO
E FILANTROPIA NA ORGANIZAÇÃO DA
PROTEÇÃO MÉDICO-SOCIAL À MATERNIDADE
E À INFÂNCIA
Ana Paula Vosne Martins5

Woman is responsible in proportion to the wealth and time


at her command. While one woman is working for bread and
butter, the other must devote her time to the amelioration
of the condition of her laboring sister. This is the moral law.
(SAGE, 1905, p.712)

Em seu único texto publicado, a rica filantropa Margaret Olivia Sage se dirigia
às mulheres com talento, dinheiro e tempo, para convencê-las a bem empregá-
los trabalhando pelos mais necessitados e para o bem da humanidade. Ela
recorreu a dois modelos bem conhecidos de suas leitoras para fundamentar
seu apelo: a caridade cristã e a valorização moral da feminilidade.
Para a filantropa da cidade de Nova York, as mulheres da sua classe
social tinham muito a contribuir para a transformação da vida social das suas
respectivas comunidades. Ciente dos problemas que se avolumavam com o
crescimento acelerado das cidades e o aumento populacional incrementado
pela imigração européia aos Estados Unidos, desde a segunda metade do
5 Professora associada do Departamento de História da Universidade Federal do
Paraná, onde atua desde 1993. Foi coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História
da UFPR entre 2011 e 2013, vice-diretora do Setor de Ciências Humanas entre 2013 e 2014
e coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero da UFPR até 2015. É doutora em História
pela UNICAMP (2000), com pós-doutorado realizado na Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ
em 2004 e na Universidade Federal Fluminense em 2016. É bolsista de produtividade do
CNPq. Suas áreas de atuação são história das mulheres, história do corpo e das sexualidades,
história da maternidade, história da assistência e da filantropia, história da escrita de
mulheres. É autora dos livros Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX
e XX (Rio de Janeiro: Editora da FIOCRUZ, 2004), e Um lar em terra estranha: a Casa da
Estudante Universitária de Curitiba e o processo de individualização feminina nas décadas
de 1950 e 1960 (Curitiba: Editora da Universidade Federal do Paraná, 2012, – edição revista).
Organizou, com a professora cubana Maria de Los Angeles Arias Guevara, a coletânea Políticas
de gênero na América Latina: aproximações, diálogos e desafios (Jundiaí: Paco Editorial, 2015).
ana_martins@uol.com.br

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século XIX, Olivia Sage instava as mulheres das classes mais privilegiadas a
ampliar sua esfera de ação para além dos seus lares. Dirigia-se em particular
às mulheres solteiras e às viúvas como ela própria, ou àquelas cujos filhos já
estavam crescidos, encorajando-as a empregar seus talentos e sentimentos
morais nas causas e obras benemerentes.
Olivia Sage foi notável representante do movimento filantrópico que
ao longo do século XIX mobilizou homens e mulheres das classes média e alta
a atuar na chamada questão social, movimento sustentado na religião cristã
e na articulação entre um projeto civilizador e a noção de responsabilidade
moral dos mais ricos e privilegiados pela sorte, como então se dizia. Numa
época em que os Estados pouco interferiam na questão social, a ação caritativo-
filantrópica foi bastante valorizada. Ela se adequava à moralidade de elite de
seus praticantes, ao mesmo tempo em que atendia a algumas necessidades
urgentes e concretas dos beneficiários, além de proporcionar, especialmente
às mulheres, oportunidades de ação, de conhecimentos, de escolhas e de
mobilidade. Como bem reconheceu Olivia Sage, a ação caritativo-filantrópica
legitimava o exercício de um poder feminino não ameaçador à ordem social
e de gênero, emanado da autoridade moral das mulheres em cuidar dos seus,
de si e dos outros, o poder dos cuidados.
É notável como um movimento que mobilizou tantas mulheres
nos séculos XIX e XX tenha ficado esquecido ou tenha sido negligenciado
pela história das mulheres e pelos estudos feministas por tanto tempo.
Até os dias atuais o associativismo feminino filantrópico é visto como um
movimento conservador, senão mesmo reacionário, sem nenhuma relação
com o movimento de emancipação das mulheres.
Pesquisas iniciadas na década de 1980, sob uma perspectiva
analítica de gênero, mostram que estas histórias não estão necessariamente
divorciadas e nem sempre se opõem. Por mais que o associativismo feminino
filantrópico tenha se sustentado num discurso moral e numa ideologia de
gênero conservadora, segregacionista e limitadora da cidadania e dos direitos
das mulheres, seus caminhos e direcionamentos não foram uniformemente
guiados pelos valores conservadores, como se houvera um script seguido
por todas as mulheres que participaram das associações benemerentes.
Estudos mais recentes, sobre a biografia de mulheres que se destacaram na
filantropia e a respeito do associativismo feminino, mostram como não há
uma única experiência histórica neste terreno dos cuidados promovidos

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pela filantropia. Revelam também os caminhos entrecruzados entre religião,
filantropia, valorização moral das mulheres, consciência social e sufragismo,
misturando experiências, aproximando expectativas, borrando ideologias.
(SUMMERS,1979; PROCHASKA, 1980; ELLIOTT, 2002; MARTINS, 2016).
Tendo em vista a extensão e a complexidade do tema, neste
capítulo proponho uma reflexão em três momentos. Primeiro, realizo uma
aproximação histórica da formulação da questão social no século XIX e de suas
abordagens morais e reformistas. No segundo momento, discuto o processo
histórico de feminilização da filantropia no século XIX, como um espaço
moral privilegiado dos cuidados exercidos pelas mulheres das classes mais
privilegiadas em favor dos necessitados, particularmente das mães pobres e
de seus filhos, numa aproximação discursivo-ideológica com a medicalização
da maternidade. Por último, ajusto a lente para contextos latino-americano e
brasileiro relativos à assistência e à proteção materno infantil e à decorrente
aliança entre médicos e mulheres de elite na organização de instituições e
de serviços para mães pobres e seus filhos. Num ajuste ainda mais preciso,
apresento um caso bem sucedido deste tipo de aliança. Analiso o processo de
criação da Associação das Damas de Assistência à Maternidade e à Infância
na cidade de Curitiba, em 1914. Esta associação feminina benemerente
foi criada para apoiar e manter a Maternidade do Paraná, também criada
naquele ano, ligada à Universidade do Paraná, fundada em 1912.
Mulheres bem nascidas e casadas com homens ilustres da sociedade
curitibana saíram do anonimato ou da sombra de seus maridos, dando início
ao trabalho de organização e manutenção de uma instituição médico-social, a
Maternidade. Este “trabalho do coração” lhes deu a oportunidade de atuar na
esfera pública a partir da experiência com os cuidados na esfera do privado,
mantendo os códigos de respeitabilidade e ampliando sua esfera de influência
para além de seus lares.

O poder de fazer o bem

O escritor, poeta e esteta londrino John Ruskin (1819-1900) foi um admirador


e defensor das mulheres. Em seus escritos, a figura feminina é recorrente e
expressa valores como beleza, perfeição, moralidade, bondade e o cuidado
com o mundo. No livro Sesame and Lilies (1865), seu ideal romântico de
mulher é definido no texto intitulado Of Queens’ Garden, resultado de uma

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conferência pronunciada em 1864. Recorrendo à autoridade de Dante e de
Shakespeare, para provar a influência benfazeja das mulheres no mundo,
Ruskin atacava o que ele considerava ser um erro e uma tolice, ou seja, a idéia
de que as mulheres eram inferiores aos homens e deveriam para sempre se
aquietar e obedecer servilmente aos seus esposos e senhores.
Para Ruskin, homens e mulheres jamais poderiam ser entendidos
separadamente; seus deveres e suas missões no mundo eram complementares,
se apoiando e se fortalecendo mutuamente. Seu discurso se estrutura em
torno da idéia de que o mundo é constituído por duas esferas complementares
de atuação: o mundo feminino do lar e dos cuidados e o mundo masculino
do trabalho, das guerras e da política. Esta definição de espaços de gênero
se sustenta numa diferença natural e moral que não pode ser apagada; pelo
contrário, deve ser fortalecida e combinada, para que ambos possam bem
desempenhar seus papeis e assim garantir a felicidade individual e o bom
ordenamento social.
Diferentemente do homem, cujo intelecto estava voltado para a ação,
a invenção e a conquista, a mulher exercia um poder ordenador, arranjando
as coisas, identificando necessidades, estabelecendo qualidades, criando, no
seu espaço, o lar, uma ordem de paz, beleza, conforto, bondade, sabedoria,
gentileza e virtude. No entanto, Ruskin não via este espaço como uma
redoma separada do mundo. Homens e mulheres tinham deveres públicos e
privados; a ambos cabia garantir a manutenção e defesa do lar, mas somente
às mulheres cabia estabelecer a ordem, o conforto e a beleza deste espaço
privado e sentimental. No entanto, elas também deviam desempenhar um
papel público, diferente do papel masculino, expandindo seus talentos e
habilidades privadas para a sociedade: a mulher deve ser, fora dos limites
do lar, o bálsamo para a angústia, o espelho da beleza, pois é onde a ordem é
mais difícil, a angústia mais eminente e a beleza mais rara. (RUSKIN, 1909-
1914, p. 86).
Este papel público civilizador era a expressão máxima do que Ruskin
denominava o poder real ou soberano das mulheres. Este poder tinha sua
origem numa educação bem cuidada e na elevação moral das mulheres,
mas não devia ser exercido somente no lar. Seu texto não deixa margens
para dúvida quanto à extensão do poder soberano das mulheres. Se bem
empregado (com sabedoria e virtude), a ordem e a beleza induzidas por tal
poder permitiriam, como sublinha Ruskin, pensar num reino feminino para

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além dos seus lares. Este reino era o mundo transformado num jardim pelo
poder benevolente das mulheres de cuidar, de resgatar e de guiar.
Tal idealização, eivada de romantismo, teve ressonâncias e encontrou
muitos defensores, especialmente entre as mulheres. Recorrendo a uma
explicação naturalista e determinista das diferenças sexuais, a ideologia da
domesticidade acabou por criar um mundo à parte das mulheres, das crianças,
dos idosos e das classes inferiores; um mundo no qual cabia às mulheres das
classes privilegiadas garantir o que Ruskin chama de doce ordenamento,
capaz de renovar os laços familiares e restaurar as forças dos homens que se
expunham cotidianamente aos perigos do mundo.
No entanto, como Ruskin também sabia, as mulheres que viviam
nos lares confortáveis e distantes do alvoroço mundano dedicavam parte de
seu tempo livre à caridade e ao trabalho voluntário. Esta prática bastante
antiga, tanto como exercício da caridade cristã, como expressão do poder
paternalista das classes favorecidas, cabia às esposas, às filhas ou às viúvas,
como distribuidoras de esmolas, víveres e mesmo de proteção aos doentes,
órfãos e às mães pobres. Portanto, o discurso de Ruskin em defesa de uma
ação benemerente pública por parte das mulheres caiu num solo já preparado.
O fechamento de oportunidades no mundo público para as mulheres
levou algumas delas a se alinharem às ideias mais radicais do socialismo e do
feminismo, entre o final do século XVIII e as primeiras três décadas do século
XIX. Mas, a maioria das mulheres bem nascidas na Europa e nos Estados
Unidos não se envolveu com ideias radicais a respeito da igualdade, palavra
que parecia ser feita de fogo e que incendiou as ideias e os escritos de homens
e mulheres inconformados com o que lhes parecia uma ordem social injusta
e que precisava ser mudada. (MIRANDA, 2010).
Como demonstraram Perrot (1994), Porter (1998) e Diebolt (2005), a
maioria das mulheres encontrou outro caminho para contornar a ociosidade,
a frustração e talvez, de forma pouco elaborada ou mesmo inconsciente, a
insatisfação com seu lugar restrito no mundo. Para elas, a religião acenava
com as promessas de realização e apaziguamento da consciência que o
envolvimento com a caridade poderia trazer. Fazer o bem aos pobres e
desgraçados era um discurso adequado à manutenção da ordem social e de
gênero e as igrejas cristãs recorreram constantemente a ele para garantir as
obras de caridade das paróquias.

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Mas um novo discurso começara a ser elaborado em torno das
necessidades dos desamparados pela sorte (idosos, órfãos, doentes, mães
e crianças pobres) ou daqueles indivíduos que haviam sucumbido aos
vícios da luxúria, da preguiça e da intemperança (prostitutas, vagabundos,
embriagados). Este discurso secular e racionalista da filantropia raramente
chegou a se separar com nitidez do discurso cristão da caridade, mas seus
fundamentos morais e suas práticas eram diferentes. A caridade pressupunha
uma obrigação moral dos mais ricos em socorrer os necessitados. Daí ser
a esmola sua expressão mais usual e reconhecida, tanto para os pobres
individualmente quanto para as igrejas e suas instituições de caridade
bastante antigas, como hospitais e asilos. A filantropia se assentava em
outras bases.6
Entender como este novo discurso em torno de práticas tão antigas
relacionadas aos cuidados com os necessitados foi formulado requer uma
breve digressão sobre as transformações sociais e econômicas entre os séculos
XVIII e XIX. A introdução do sistema de fábrica teve um impacto sobre a
organização do trabalho e as comunidades de trabalhadores artesanais
e de camponeses, impacto este bastante estudado pela história social e
econômica. Um efeito imediato das novas formas capitalistas de produção
e de organização do trabalho foi o aumento expressivo da população das
cidades, resultado da migração do campo ou de províncias e pequenas cidades
duramente atingidas pelas flutuações do livre mercado sobre o trabalho.
(PORTER, 1998; HOBSBAWM, 1997; GEREMEK, 1995).
Preocupados com a garantia da ordem e da estabilidade social,
pensadores tão diferentes como Adam Smith, Francis Hutcheson, Conde
de Shaftesbury, David Hume, Montesquieu, Condorcet, Tom Paine, William
6 As diferenças entre as palavras filantropia e caridade nem sempre são nítidas.
O conceito de caridade, na sua origem cristã, se refere ao amor/desejo a Deus, ao laço
inquebrantável entre os homens e o Criador. Centro da vida moral cristã, a caridade se revela
e se expressa por meio do amor, da complacência, paz, misericórdia e comiseração pelo
próximo que sofre. A esmola é um ato de bem fazer que acabou se tornando uma das faces
mais populares da caridade. A filantropia é, da mesma forma, amor que se manifesta por ações
benevolentes em favor dos necessitados, tendo ou não motivação religiosa. Alguns autores
sublinham que a filantropia está relacionada a motivações seculares e a um quadro moral e
utilitário, tendo um escopo mais amplo de ações, como o amparo à educação, às artes e às
letras, ações públicas relacionadas ao patrimônio histórico e cultural, além das ações mais
tradicionais voltadas à criação e manutenção de instituições de saúde e de assistência social
Ver SANGLARD (2005).

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Godwin, entre tantos outros, estavam comprometidos com o ideal civilizador
e regenerador da sociedade, que por sua vez envolvia valores como a
polidez, o refinamento, o conhecimento e a compaixão com os sofredores. A
crescente inclusão dos sentimentos morais nas reflexões filosóficas e sociais
dos pensadores iluministas é reveladora de uma nova forma de pensar que
almejava o equilíbrio da razão com os sentimentos. Para estes pensadores,
a ordem social não seria aperfeiçoada e nem mesmo alcançada somente
com ações coercitivas e com o coração fechado. Percebe-se nos seus textos
que o sentimento da compaixão assume uma função socializadora. Fazer o
bem não era somente uma ação individual ordenada pela religião, mas uma
disposição coletiva racional e sentimental em favor daqueles que sofriam, a
fim de melhor regular as relações sociais.
Para tanto, o sistema das esmolas não era mais suficiente. Como
bem percebeu Adam Smith, era necessário que cidadãos de bem e o Estado
assumissem a responsabilidade com um movimento mais amplo de reforma
social na qual a razão e os sentimentos fossem os princípios reguladores de
ações e de instituições capazes de fazer frente ao pauperismo e à ignorância.
Este intento reformista envolvia ações voltadas para a mudança dos costumes
rudes dos pobres através da religião, mas tinha outras ambições.
O reformismo social, desde seus primeiros delineamentos na
Inglaterra do século XVIII, passando por outras experiências no continente
europeu e nos Estados Unidos ao longo de todo o século XIX, tinha entre seus
objetivos ordenar a sociedade cada vez mais complexa que se descortinava.
Foi inicialmente um movimento que expressava os valores da burguesia
mercantil tocada pelos princípios universalistas e humanitários, convergindo
o controle social ao ideário racionalista e civilizador. Se os pobres existiam
era necessário amenizar seus sofrimentos, a começar garantindo que
pudessem trabalhar. Aqueles que não tinham condições físicas ou mentais
nem idade para trabalhar deveriam ser amparados por instituições que lhes
garantissem uma vida digna. Entre os séculos XVIII e XIX, vê-se um amplo
e intenso processo de reformas em prisões, hospitais, albergues, asilos,
ao mesmo tempo em que novas instituições reformadoras foram criadas,
como ligas e associações de caráter educacional, de combate aos vícios e
de mobilização em favor de temas de interesse coletivo, especialmente no
contexto imediatamente posterior à Revolução Francesa.

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O movimento reformista filantrópico procurou, portanto, encontrar
soluções para a pobreza e outros problemas correlatos não no terreno
da política propriamente dita, mas na rearticulação do poder das classes
dominantes. Este processo pode ser interpretado como um esforço de
despolitização da questão social, que foi organizado em diferentes esferas,
envolvendo a reorganização do aparato de controle e segurança do Estado
e a institucionalização da questão social, tanto do ponto de vista da
organização da administração estatal da educação, da saúde, da segurança
e da assistência, como através das associações filantrópicas e suas múltiplas
formas de intervenção social.
Este processo crescente de institucionalização da questão social,
que começou no século XVIII e alcançou seu apogeu no século XIX nos mais
diferentes países, é revelador daquela rearticulação do poder levada a cabo
pela filantropia. Ao invés de reforçar a atitude reacionária e violenta frente
às demandas e necessidades das chamadas classes perigosas, os filantropos
propunham ações movidas pela razão e pela compaixão. Organizar, distribuir,
prover, contar, relatar, controlar, tudo isto envolvia ações planejadas como
parte da construção de saberes sobre o mundo da pobreza; mas tais ações
racionais deviam ser mobilizadas pela compaixão, por este sentimento nobre
de benevolência pela humanidade, sentimento social este que encontrou em
homens e mulheres educados na nova sensibilidade burguesa os executores
de uma forma específica de intervenção social e de um tipo de poder que
precisa ser mais bem conhecido: o poder de fazer o bem que somente pessoas
de elevada condição moral e social têm autoridade para exercê-lo.

Para além do seu jardim

Este apelo racionalista e sentimental da reforma social encontrou nas


mulheres das elites as receptoras ativas e dispostas a contribuir com tamanha
responsabilidade. É compreensível esta recepção, afinal eram mulheres bem
educadas, portadoras dos valores civilizadores de sua classe social, mas que
não tinham oportunidades mais amplas de participar do debate político;
afinal, não eram cidadãs com direitos políticos e civis; suas ideias raramente
alcançavam a esfera pública. O discurso reformador e a ação filantrópica não
afrontavam a rigidez da ideologia da domesticidade e da separação das esferas
pública e privada, preservando a ordem de gênero e a respeitabilidade das

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mulheres que poderiam frequentar o espaço público mais amplo e se envolver
com aspectos da questão social sem ofender os padrões de moralidade e a
honra familiar.
É preciso reconhecer o papel da religião neste processo que Michelle
Perrot (1994) chamou de “sair” para fora do lar em favor dos pobres, doentes
e abandonados pela sorte. Tanto entre os protestantes quanto entre os
católicos o movimento reformista do século XIX dependeu diretamente da
participação das mulheres. Nos países de predominância protestante como
os Estados Unidos o reavivamento evangélico pregava um cristianismo
de cunho mais individual e emocional e muitos fiéis, homens e mulheres,
responderam a este fervor religioso empregando seu trabalho, tempo e
dinheiro no movimento reformista – inclusive a luta em favor da abolição da
escravidão – e nas ações filantrópicas. (CLAPP, 1998).
As mulheres católicas também foram instadas a participar do
movimento reformista através do envolvimento com as ações caritativas com
as quais a igreja tinha uma experiência bastante antiga e bem consolidada.
Nos países de predominância católica as mulheres desempenharam
historicamente um papel secundário no sistema caritativo, seja como filhas,
esposas e viúvas de ilustres provedores das Santas Casas e das irmandades
religiosas, seja como pequenas doadoras anônimas de esmolas nas suas
paróquias e nos testamentos ou então como partícipes da hierarquia
eclesiástica na condição de irmãs de caridade. Foi a partir do século XIX que
este papel começou a mudar e as mulheres católicas assumiram gradualmente
um lugar de destaque como protagonistas principais no sistema caritativo
e filantrópico. Para tanto, desempenhou um papel importante a elaboração
da doutrina social da igreja católica efetuada pelos bispos ultramontanos
europeus desde a primeira metade do século XIX.
Tanto o clero quanto os intelectuais leigos católicos, especialmente
médicos e advogados, passaram a colocar na pauta de suas reflexões e
escritos a questão social, enfocada a partir das condições de trabalho de
crianças e mulheres, como também a insuficiência dos salários para manter
as famílias dos trabalhadores. No entanto, a questão tinha uma abrangência
muito maior, pois aos grupos que tradicionalmente eram protegidos pela
caridade católica como os idosos, os órfãos e os doentes, se somaram outros,
como os desempregados, as prostitutas, rapazes e moças que chegavam
desamparados às cidades para trabalhar e podiam ser corrompidos, e as

79
crianças, cujos pais trabalhavam ficando sem amparo algum perambulando
pelas ruas. O velho sistema da caridade católica precisava ser reformado,
começando pela ampliação das instituições, dos recursos e principalmente
da boa vontade dos fieis em colaborar com um projeto de intervenção social.
(VAN GESTEL, 1956).
Da mesma forma que as mulheres protestantes, as católicas também
atenderam ao chamado clerical ou dos médicos para se envolver com o
trabalho benemerente, atuando nas instituições mais tradicionais existentes
ou criando elas próprias associações de caridade. Recorrendo novamente a
Michelle Perrot pode-se dizer que também para as católicas

[...] a filantropia constituiu uma experiência não negligenciável,


que modificou a sua percepção do mundo, a idéia que tinham
de si mesmas e, até certo ponto, a sua inserção pública. [...]
Às senhoras caridosas, mais ou menos empurradas pelos
seus confessores ou pelos seus maridos, a quem desse modo
ilustram o nome, sucedem mulheres mais independentes,
frequentemente celibatárias, ou viúvas, indignadas com a
miséria física e moral e animadas por um espírito missionário.
(PERROT, 1994, p. 504-505)

Apesar da sua importância, o apelo e o zelo religiosos não são


suficientes para se entender a feminilização da filantropia ocorrida entre
o século XIX e o XX. A ideologia da domesticidade e a valorização moral
das mulheres, através dos cuidados e da maternidade, constituem o pano
de fundo para a sua visibilidade pública e a justificativa para o que Ruskin,
como visto, definiu ser o poder soberano das mulheres, o poder dos cuidados.
Num contexto de agudização dos problemas e das tensões sociais e de busca
por soluções que desarmassem os movimentos populares e a organização
socialista dos trabalhadores, a filantropia desempenhou um importante
papel político para o qual as mulheres estiveram na linha de frente.
(DONZELOT, 1986).
Se o lugar das mulheres era o lar, religiosos, médicos e escritores
perceberam que suas características naturais e morais poderiam ser bem
utilizadas para fora dos seus domínios. É interessante observar que o mesmo
discurso que estabelece a existência separada do privado e do público, a
partir da linha demarcatória de gênero, encontra na diferença feminina a

80
justificativa para o que podemos chamar de difusão das capacidades naturais
das mulheres para uma esfera intermediária entre a esfera privada e o Estado,
esta nova paisagem que se descortina no século XIX, o social, e as instituições
filantrópicas de cuidados.
Cabe lembrar a importância da maternidade na formulação de um
discurso de valorização das mulheres e de suas qualidades para os cuidados.
Desde meados do século XVIII e especialmente ao longo do século XIX, se
desenvolveu uma concepção espiritual e emocional da maternidade presente
nos mais diferentes discursos. Maternidade e feminilidade passaram a ser
sinônimos e as atividades ligadas a esta experiência, como os cuidados
físicos, morais e afetivos, foram ressignificados no interior do discurso social
emergente. Se os cuidados maternos tinham uma reconhecida qualidade
formadora de bons cidadãos, poderiam também ser empregados para fora
do lar sem prejuízo para outras pessoas. Este reconhecimento acionou
uma dupla operação ideológica: por um lado, reforçava as hierarquias de
gênero, mas por outro acenava com a possibilidade de as mulheres saírem
dos seus estreitos limites domésticos e das sociabilidades de classe, para se
enveredarem pelos caminhos mais tortuosos do que podemos chamar de
maternidade social, desta capacidade de expandir os cuidados maternos para
outras esferas e sujeitos.
Neste processo de feminilização da filantropia, os caminhos abertos
e seguidos pelas mulheres foram diferentes. Muitas se conformaram ao papel
da soberana que tudo provê e cuida, conforme sonhado por homens como
Ruskin, desempenhando o papel de gênero e de classe que delas era esperado
no controle das classes populares. (LANGLAND, 1992). Outras foram além,
como Olivia Sage e as filantropas brasileiras Pérola Byington, Stella Guerra
Duval e Jeronyma Mesquita, que ampliaram de forma significativa sua ação
benemerente para muitos projetos, apoiando a causa da emancipação das
mulheres pela educação e pelo sufragismo. Outras foram ainda mais longe.
Mesmo partindo do valor moral da maternidade, se engajaram no movimento
da reforma social lançando as bases da profissionalização da assistência
social, bem como estiveram na origem da organização das políticas públicas
e da definição de um Estado regulador. Este é o caso de Eugenia Hamann,
que atuou em diferentes frentes da questão social no Brasil, cuja trajetória
é um bom começo para se pensar nos caminhos cruzados do feminismo e

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da filantropia, bem como na pluralidade do conservadorismo feminino.
(MARTINS, 2016).
Por caminhos diferentes, as mulheres que se envolveram com
a filantropia passaram por esta experiência de ir além de seus jardins.
Mobilizadas pela religião ou pelo discurso laico reformista, entenderam que
seu lugar no mundo poderia ser mais amplo. Para muitas delas não se tratava
somente de conquistar mais status de classe, mas sim de acessar outros
espaços e almejar outras paragens, para além de seus lares, como escolas,
hospitais, escritórios, instituições sociais e, por fim, espaços na estrutura do
Estado como profissionais da assistência.
Para a maioria das mulheres que atendeu ao chamado para trabalhar
em prol dos necessitados – mesmo que mais restrita à noção moral e
normativa dos cuidados pela difusão da maternidade – sair de seus lares e
iniciar um trabalho benemerente as levou para outras experiências com as
quais não tinham familiaridade. Criar uma associação, organizar atividades,
angariar recursos, mobilizar novas associadas; enfim, as muitas atividades
que envolviam este tipo de trabalho voluntário estão na origem de uma nova
experiência neste espaço intermediário entre o público e o privado.

Em boas mãos: médicos, senhoras benemerentes e a proteção à


maternidade e à infância na Curitiba do início do século XX

No Brasil, os médicos envolveram-se com as práticas benemerentes desde


meados do século XIX, atendendo a pacientes das enfermarias nos Hospitais
de Caridade, nos lazaretos ou asilos para doentes mentais. Muitos médicos
oitocentistas tiveram seus nomes associados à caridade, alguns devido à
notoriedade conquistada pelo atendimento nos escassos e mal equipados
hospitais, outros porque, de uma forma mais direta, socorreram os doentes
pobres fundando instituições caritativas de saúde. Contudo, na segunda
metade do século XIX, mais especificamente a partir das últimas décadas,
um novo discurso começou a ser enunciado pelos médicos, muito mais
voltado para a prevenção e a manutenção da vida do que para o atendimento
aos doentes e incapacitados. Trata-se do discurso médico-social em prol da
maternidade e da infância produzido pelas especialidades da obstetrícia
e da pediatria que começaram a ser organizadas nas duas faculdades de

82
medicina brasileiras, a da Bahia e a do Rio de Janeiro. (MARTINS, 2004;
BARRETO, 2015).
Os médicos obstetras e pediatras foram influenciados pela medicina
francesa e pelos estudos produzidos a respeito das relações entre os problemas
populacionais e a proteção à maternidade e à infância. Os primeiros estudos
sobre os aspectos sociais da maternidade foram publicados na França, a
partir de 1870, tendo grande repercussão no meio médico brasileiro. Estes
estudos apontavam para a necessidade de ir além da anatomia, patologia e
da terapêutica, reclamando por uma visão clínica que também abarcasse com
a mesma importância a dimensão social da maternidade e dos cuidados com
as crianças; afinal este se mostrava ser cada vez mais um assunto de amplas
repercussões sociais, políticas e morais. Se na população de uma nação
residia a sua potência, riqueza e futuro, era mais do que urgente conhecer
os problemas que impediam o crescimento populacional como também
procurar gerenciá-lo através de medidas profiláticas que garantissem a sua
qualidade física, intelectual e moral. É nesse contexto que novos saberes se
articularam a um projeto mais ambicioso de controle social, como a eugenia
e a puericultura, voltados para os temas urgentes e interligados da infância e
do crescimento da população.
Os médicos brasileiros não tinham muito que argumentar a respeito
das ameaças de população, mesmo num país que havia saído da guerra
com o Paraguai; afinal, o Brasil não passava por uma crise populacional. Já
os obstetras e os pediatras que começaram a atender as mulheres pobres,
nas enfermarias de obstetrícia dos Hospitais de Caridade ou nas primeiras
maternidades criadas entre o final do século XIX e as primeiras décadas do
século XX, enfrentaram outro tipo de problema: a mortalidade infantil.
Sem contar com estatísticas oficiais confiáveis, os médicos se
basearam nas suas próprias observações e nos registros dos hospitais e
maternidades para lançar o alerta sobre uma realidade que extrapolava a
dimensão clínica e que seguramente era muito mais grave do que os registros
parciais mostravam. A mortalidade infantil se mostrava um problema
complexo envolvendo variáveis que os médicos cada vez mais percebiam
ser a causa das doenças congênitas, da fragilidade orgânica, dos empecilhos
para o desenvolvimento saudável. O conhecimento deste problema levou
os obstetras e pediatras a dar início no Brasil à organização da assistência à

83
maternidade e à infância através da construção de espaços hospitalares ou
então se envolvendo e mesmo promovendo a ação caritativo-filantrópica.
Neste movimento de proteção e assistência materno-infantil, os
médicos não estiveram sozinhos. Outros profissionais se uniram a eles, como
professores, advogados, clérigos e juristas. Algumas publicações médicas
já circulavam no Brasil, desde o final do século XIX, mas ainda restritas a
um meio de leitores especialistas. A partir do começo do século XX, este
movimento começou a se ampliar, bem como o alcance das suas ideias,
divulgadas também pela imprensa diária. (FREIRE, 2009).
Em sintonia com profissionais de outros países europeus e
principalmente da América Latina, alguns médicos brasileiros se notabilizaram
pelo caráter de militância que imprimiram à proteção à maternidade e à
infância, como Arthur Moncorvo Filho, Fernandes Figueira e Fernando
Magalhães. Eles participaram de um movimento internacional com várias
ramificações, entre elas o aspecto clínico da questão, a proposição de uma
legislação protetora do trabalho feminino e infantil, mas principalmente
a criação de um aparato institucional de saúde e de assistência social.
(MARTINS, 2005)
Na América Latina, o movimento em defesa da maternidade e da
infância encontrou na doutrina do pan-americanismo as condições políticas
e o ambiente intelectual propícios para a sustentação do ideário assistencial
e de proteção, para a interlocução e a troca de experiências, bem como para
o fortalecimento dos médicos, neste debate no qual não foram os únicos
participantes, como bem demonstrou Donna J. Guy (1998).
Os congressos pan-americanos da criança, que começaram a
ocorrer a partir de 1916, são o resultado de um movimento pelo bem-estar
e a proteção materno-infantil que, na Argentina, no Uruguai e no Chile,
foi inicialmente organizado pelas mulheres benemerentes e as médicas,
algumas destas vinculadas ao feminismo. Contudo, na memória histórica
do pan-americanismo, os médicos são os idealizadores e organizadores da
proteção materno-infantil, imprimindo uma direção profissional e científica
à assistência pautada pela autoridade do discurso médico e particularmente
por uma visão instrumental das mulheres como mães. No contexto
internacional do pan-americanismo, a questão se mostrou abertamente
favorável à proteção das crianças, se afastando do terreno dos direitos das
mulheres, como defendiam as feministas. (GUY, 1998).

84
O pan-americanismo articulou médicos de todos os países latino-
americanos, mas é notável a liderança exercida pelos uruguaios, chilenos e
argentinos, uma liderança reconhecida por seus pares brasileiros. Nomes de
alguns dos mais famosos deles, como Luís Morquio, Ramos Peralta, Eliseo
Canton, Emilio Coni e Gregorio Alfaro, foram citados e lembrados nos textos
dos médicos brasileiros que, nas décadas de 1910 e 1920, participaram
dos congressos médicos pan-americanos. Nestas oportunidades tomaram
conhecimento das ideias e das ações desempenhadas por seus pares dos
países vizinhos, elogiando e reconhecendo a sua importância e contribuição
para a puericultura e as políticas de assistência materno-infantil.
Os médicos brasileiros deviam se sentir numa terra ainda muito
atrasada, no terreno urgente da assistência, para amenizar, senão mesmo
debelar, os efeitos devastadores da pobreza, especialmente para as crianças
e as mulheres-mães. As repúblicas americanas que se fundaram no processo
das independências, nas primeiras décadas do século XIX, começaram
a organizar e a fornecer serviços públicos de saúde e de educação desde a
década de 1850, como é o caso do Uruguai, quando no Brasil esta organização
só começou a ser efetiva a partir das décadas de 1930 e 1940, ou seja, quase
um século mais tarde.
No Chile, a primeira maternidade foi inaugurada em 1831, resultado
da ação das senhoras de caridade que tinham como objetivo socorrer mulheres
pobres que iam dar à luz, doando roupas, alimentos e fornecendo uma
assistência médica primária. Já nesta iniciativa se pode ver a participação
médica dos obstetras chilenos que também compartilhavam dos mesmos
sentimentos de piedade e de compaixão pelas mulheres mães. Esta colaboração
entre o associativismo feminino benemerente e os médicos chilenos não
ficou restrita à criação da Maternidade, mas em várias outras atividades e
instituições criadas ao longo do século XIX pelas mulheres de elite visando
socorrer os pobres e os doentes, especialmente as mães pobres e seus filhos.
O Chile foi um dos primeiros países latino-americanos a instituir programas
públicos de assistência para a maternidade, substituindo gradualmente as
ações e instituições benemerentes pelas iniciativas públicas. Neste processo
os médicos desempenharam um papel muito atuante ao defenderem
que a assistência carecia de uma coordenação científica, especialmente a
assistência materno-infantil, chamando para si a função de coordenação e
gestão pública da assistência. Este movimento de controle e administração

85
médica se efetivou a partir da década de 1920, quando foi criado o Ministério
da Saúde, Seguridade Social e da Higiene. (ZÁRATE, 2007).
No Uruguai, o processo da centralização de serviços e de assistência
materno-infantil se delineava desde a década de 1890, tendo os médicos
uruguaios participado ativamente deste processo através da criação do
Conselho de Higiene em 1895. Em 1910 houve a nacionalização das
instituições de caridade com a criação da Assistência Pública Nacional,
embora o Uruguai contasse com uma ampla rede de assistência privada
dirigida por mulheres. Luís Morquio foi o médico mais famoso neste
processo de transformação da caridade para a assistência científica e pública
da maternidade e da infância no Uruguai. Talvez ele seja o melhor exemplo
de um coordenador político da assistência na América Latina; afinal, esteve
à frente da organização dos Congressos Pan-Americanos da Criança e da
criação do Instituto Interamericano de Proteção à Infância, cuja sede desde a
sua criação em 1927 está em Montevidéu. (BIRN, 2005; 2006).
Este mesmo movimento foi bastante intenso na Argentina. Buenos
Aires já contava com uma Assistência Pública desde 1850, centralizando
todos os serviços assistenciais disponíveis na cidade. A partir de 1870, a
puericultura era tão desenvolvida na Argentina quanto nos países europeus
e foi a partir do engajamento de médicos como Emilio Coni, Gregório Alfaro
e Eliseo Canton que a Assistência Pública criou em 1908 uma seção especial
de Proteção à Primeira Infância. A intensificação da participação médica nas
instituições de benemerência e nas instituições públicas de assistência levou,
da mesma forma que no Chile e no Uruguai, à organização de estruturas
coordenadas pelo Estado como Conselhos, Institutos, Seções ou mesmo
Ministérios, nos quais os médicos exerceram funções administrativas
e técnicas, coordenando instituições, programas e serviços públicos de
atendimento e de assistência materno-infantil. (NARI, 2004).
A situação era muito diferente no Brasil. Sem a intervenção do
Estado, a assistência à saúde e o sistema de proteção aos pobres dependiam
quase exclusivamente da caridade. Não houve no Brasil imperial nem no
republicano algo semelhante a uma assistência pública e, no que diz respeito
à assistência materno-infantil, os serviços médicos eram rudimentares e
restritos a alguns poucos leitos disponíveis nas enfermarias dos Hospitais de
Caridade que atendiam às necessidades do ensino clínico das faculdades de
medicina. (MARTINS, 2004).

86
Foi neste contexto finissecular que os médicos filantropos deram
início às primeiras iniciativas visando organizar a assistência à maternidade e
à infância a partir dos princípios da Obstetrícia e da Puericultura. Eles sabiam
que, à falta de uma assistência pública organizada, era necessário somar seus
conhecimentos científicos à caridade e à filantropia e neste sentido podemos
observar em várias cidades brasileiras o mesmo movimento de aproximação
entre médicos e mulheres propiciado pelas afinidades de classe, sem dúvida,
mas também por compartilharem do mesmo ideário de gênero que fortalecia
esta aliança em favor de mulheres pobres e crianças.
Em cidades como Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo
e Porto Alegre, a imprensa registrava com entusiasmo e palavras de júbilo esta
aliança benemerente entre médicos e senhoras de caridade. Desde a primeira
década do século XX, já se nota os resultados da aliança médico-assistencial
com a criação das maternidades, dos postos de saúde, de dispensários,
lactários e hospitais em colaboração com as senhoras de caridade. A produção
historiográfica mais recente tratou cuidadosamente deste processo bem
como de seus desdobramentos e efeitos sobre o corpo feminino e o controle
social. Contudo, pouco se conhece a respeito do associativismo feminino
no Brasil e de seu importante protagonismo na organização da assistência
médico-social. (MOTT; ALVES; BYINGTON, 2005; FREIRE, 2009).
Dadas as condições políticas e a ausência de uma assistência pública,
dificilmente os médicos teriam conseguido organizar instituições médico-
assistenciais sem a parceria e a colaboração das senhoras de caridade e das
filantropas. Se no começo do século é possível vê-las nas fotografias tomadas
por ocasião da inauguração de alguma obra assistencial, posando com seus
belos chapéus e vestidos elegantes, alguns anos depois elas deixaram de
ser apenas as representantes femininas do poder benevolente de seus pais
e maridos, fundando elas próprias e dirigindo associações de caridade, se
envolvendo com orçamentos, negociações, patrocínios e todas as outras
implicações de um trabalho voluntário e da inserção pública que ele requeria.
Passo agora a tratar mais de perto de uma destas iniciativas.
Em 15 de fevereiro de 1914 foi fundada em Curitiba a Associação
de Damas de Assistência à Maternidade e à Infância, para colaborar com
a maternidade inaugurada no mesmo ano pela Faculdade de Medicina do
Paraná. Atendendo ao apelo do então diretor da faculdade, o médico Victor
Ferreira do Amaral, várias senhoras da sociedade curitibana se reuniram no

87
seleto salão do Clube Curitibano para dar início a um trabalho assistencial
que muito exigiu das suas integrantes.
Curitiba era uma cidade pequena na virada do século. Sua população
na década de 1910 chegava aproximadamente a 50 mil habitantes, conforme
dados estimados por Nestor Victor (1913). No entanto, vários indícios
apontavam para o processo de modernização e a sensação de que uma
nova Curitiba nascia no alvorecer do século XX. Os contornos modestos da
pacata cidadezinha provinciana se ampliavam num traçado mais regular de
ruas calçadas, com iluminação pública nas principais vias, bondes, prédios
e residências requintados num estilo arquitetônico de fin de siécle, novos e
mais diversificados empreendimentos fabris e comerciais, bem como espaços
de lazer, que convidavam ao passeio e a uma sociabilidade mais urbana e
pública. Associações literárias, grêmios, clubes e a imprensa local reuniam
escritores, intelectuais, observadores das transformações que, segundo
Etelvina Trindade, davam “ao universo pensante da cidade um toque de
paixão, ação, sonhos, medos e esperanças, ideias e práticas”. (TRINDADE,
1996, p 20).
Um dos temas que agitavam este meio intelectual e literário era a
educação. Desde o final do século XIX, novas escolas foram criadas na cidade,
particularmente aquelas ligadas às congregações religiosas femininas e
masculinas. As meninas das classes mais privilegiadas poderiam ter uma
formação mais bem cuidada, aprendendo nos colégios de freiras o francês,
o alemão e o inglês, artes, gramática, música, religião e as boas maneiras tão
necessárias para o casamento e a vida social. Várias escolas também foram
criadas para os meninos e algumas delas para atender especialmente crianças
pobres e órfãs. (TRINDADE, 1996).
Neste cenário culturalmente mais diversificado e inquieto, germinou
uma idéia que vinha sendo acalentada desde o final do século XIX por
intelectuais como Rocha Pombo e Pamphylo d’Assumpção: criar uma
universidade no Paraná. Fundada em dezembro de 1912 com os cursos
de Medicina, Odontologia, Farmácia, Direito, Engenharia e Comércio,
a universidade se adequava e simbolizava o processo de modernização
econômica e cultural tão enaltecido pelos discursos da época, como também
reforçava o ideário positivista do qual seus idealizadores e fundadores eram
tributários. O lema da Universidade do Paraná sintetiza bem este ideário –
Sciencia et Labor – e como analisou Erica Cintra:

88
Era desejo de parte da sociedade paranaense, sua elite e
camadas médias, que entendiam a necessidade de um corpo
de profissionais especializados a bem de atender a população
nos eixos da educação e da saúde, bem como colaborar para
o desenvolvimento econômico e social, local e nacional. Daí a
urgência em se pensar os primeiros cursos na área da saúde,
bem como os da engenharia, os da área jurídica e os cursos
técnicos comerciais, cujas áreas se faziam bem representar na
cidade. (CINTRA, 2010, p.10).

Apesar dos ânimos afinados com o crescimento e desenvolvimento


da cidade, as realidades sociais não eram tão animadoras, em particular as
condições sanitárias e os efeitos da pobreza, especialmente sobre as crianças.
A criação da Faculdade de Medicina e da cadeira de Obstetrícia, esta sob a
responsabilidade de Victor Ferreira do Amaral, estão na origem da criação
de um espaço que garantisse as condições de ensino, atendimento médico-
hospitalar e assistência social às mulheres pobres que não tinham a quem
recorrer no momento de dar à luz.
O único hospital que atendia às pessoas sem recursos em Curitiba era
a Santa Casa de Misericórdia, mas não contava com um serviço organizado de
obstetrícia. Casos mais urgentes que necessitassem de intervenção cirúrgica
eram tratados, mas o atendimento ao parto propriamente não era realizado
na Santa Casa. A maioria das mulheres grávidas recorria às parteiras, sendo
os médicos chamados somente em casos de urgência. Portanto, no começo
do século XX dar à luz em hospital era somente para mulheres muito pobres,
geralmente sem família e abandonadas à própria sorte.
Este cenário começou a mudar no Brasil nas primeiras décadas do
século XX e em Curitiba a partir de 1914, quando foi criada a Maternidade
do Paraná, uma iniciativa do obstetra Victor Ferreira do Amaral e de
seu colega de profissão Reinaldo Machado. Formado pela Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro em 1884, especializou-se em obstetrícia
e ginecologia. Quando retornou ao Paraná clinicou na Santa Casa de
Misericórdia e foi desta experiência em atender aos pobres e de conhecer
os efeitos das péssimas condições sociais e sanitárias sobre as crianças
que Amaral levou à frente o plano de construir uma maternidade junto à
Faculdade de Medicina, sintonizado com as ideias da ciência obstétrica.
(MARTINS; BARBOSA, 2015).

89
Victor Ferreira do Amaral era um homem de prestígio. Originário de
uma das famílias mais tradicionais do Paraná e da cidade da Lapa, doutor em
medicina, foi presença marcante, não só no meio médico, participando e se
destacando igualmente na política, nos negócios e no meio intelectual. Foi,
portanto, alguém com autoridade para se pronunciar sobre muitos e urgentes
assuntos, entre eles a questão da saúde e da assistência. As afinidades de
classe facilitaram a execução de seus planos referentes à construção da
maternidade, pois as subvenções públicas logo se mostraram insuficientes,
além do enfrentamento da questão mais urgente que era a construção de
um espaço adequado para o funcionamento de uma maternidade. Seu
pertencimento à elite curitibana o aproximou das senhoras da sociedade, que
foram convencidas da grandeza humanitária e cristã do projeto. Começava,
assim, em 1914, uma sólida aliança entre eles com a fundação de uma
associação que deveria dar o suporte material e auxiliar na organização dos
serviços de atendimento às mulheres que recorreram à Maternidade.
As mulheres que criaram a Associação eram de famílias tradicionais
da cidade ou de outras localidades do Paraná. Estas famílias detinham o poder
econômico e político, algumas desde meados do século XVIII, constituindo
uma rede de sociabilidades sustentada por interesses comuns e vínculos
familiares e sociais. Esta elite local composta por políticos, magistrados,
comerciantes, médicos e advogados, não só tinha interesses comuns
relativos ao seu poder de classe, mas compartilhava valores, sobretudo
aqueles associados a uma identidade paranaense e ao fortalecimento cultural
do Paraná. As mulheres pertencentes a esta elite deviam cumprir seu papel
principal como elo da rede de sociabilidades e da sua reprodução através do
casamento e das relações sociais. (NEGRÃO, 1950; OLIVEIRA, 2001).
Na virada do século, já era uma prática das famílias da elite dar uma
educação mais aprimorada para as meninas e os jovens, especialmente com
a chegada das congregações religiosas europeias, em Curitiba. Aos poucos, a
educação diferenciada passou a ser um requisito social para as mulheres da
elite curitibana, tendo elas várias ocasiões para demonstrar suas habilidades
nos salões, nas associações culturais, muito comuns no início do século
XX e nos clubes. Declamar poesias, conhecer literatura, praticar a música,
o canto e a pintura, além das noções de conhecimentos menos essenciais
para elas como a Matemática, a História e as Ciências, constituíam, junto às
habilidades sociais, o conjunto de predicados e conhecimentos que eram não

90
só considerados adequados às mulheres bem nascidas, mas demarcavam o
status e o prestígio de suas famílias.
As fundadoras da Associação das Damas de Assistência à Maternidade
e à Infância faziam parte desta elite feminina que já não lembrava mais as
suas antepassadas que dificilmente saíam de suas casas, segundo relatos de
viajantes. As damas curitibanas do início do século XX eram mais ativas e
tinham interesses diversificados que não afrontavam seu papel de gênero e
de classe. Etelvina Trindade (1996) comenta que a imprensa local sempre
noticiava a presença feminina nas festas, nos bailes, nas atividades culturais
promovidas pelos grêmios femininos, como o Grêmio das Violetas, das
Camélias, das Glicínias. Muitos destes grêmios também promoviam festas
e atividades com finalidade assistencial, sendo a benemerência esperada e
praticada pelas mulheres da elite, bem como uma oportunidade para muitas
delas poderem exercer sua influência e ampliar seu raio de ação para além da
família e das relações com seus pares.
Soraia Gatti (2016) também analisou este contexto de ampliação
da presença feminina nos espaços públicos da cidade de Curitiba no começo
do século XX. Por meio dos jornais locais, Gatti encontrou uma envolvente
atuação feminina no Grêmio Literário e Recreativo das Violetas e no Grêmio
Bouquet, que patrocinavam eventos para a arrecadação de fundos com
finalidades benemerentes, entre eles a fundação do Hospital de Crianças e as
atividades da Cruz Vermelha, em colaboração com os médicos Vitor Ferreira
do Amaral e Raul Carneiro. (GATTI, 2016).
Foi a partir desta experiência benemerente que mulheres
representantes das famílias importantes da cidade se reuniram no Clube
Curitibano no dia 15 de fevereiro de 1914 e fundaram a Associação das
Damas de Assistência à Maternidade e à Infância. A iniciativa atendia às
necessidades da recém criada Maternidade do Paraná e os apelos de seu
diretor, um homem da mesma elite reconhecido por suas capacidades e
também por sua ação médico-filantrópica na Santa Casa de Misericórdia. Na
ocasião, foi aclamada como sócia benfeitora Zulmira de Araújo Marcondes,
de tradicional família paranaense, por ter doado a valiosa quantia de dois
contos de réis à Maternidade.
Em dez meses, a Associação chegou a ter 209 sócias, cujos sobrenomes
indicam seu pertencimento à elite local, tanto de famílias muito tradicionais
(Camargo, Albuquerque, Beltrão, Motta Garcez, Andrade, Franco, Miró,

91
Guimarães, Cavalcanti, Tourinho, Amaral, Leão) quanto de famílias de
imigrantes que chegaram à cidade no século XIX e se integraram à elite por
suas atividades econômicas e prestígio cultural (Gomm, Riedel, Wendler,
Hauer, Meissner, Kopp, Koehler, Huebel, Henn, Weiss, entre outros).
O objetivo da Associação era arrecadar fundos para manter a
Maternidade. Para tanto, precisavam ter número elevado de sócias que
contribuíam com doações mensais. No primeiro relatório a provedora da
Associação, Francisca Cavalcanti de Albuquerque, lamentava que aquele
número de associadas ainda fosse pequeno, considerando o que podiam
oferecer à sociedade curitibana. Ela conclamava suas colegas a se esforçarem
junto às amigas e famílias de suas relações para que conseguissem ampliar
o número de associadas a fim de garantir um auxílio financeiro mais
significativo para a Maternidade. Mulher da elite, Francisca recorria aos
mesmos argumentos que a rica filantropa americana Olivia Sage, instando
suas amigas e conhecidas a se envolverem com a causa benemerente, por
meio de seu dinheiro e da doação de seu tempo. (RELATÓRIO, 1914).
Para tanto, colocaram em prática o que sabiam fazer muito bem.
Recorreram à rede de sociabilidade elitária à qual pertenciam, e foram
atendidas. A provedora relata que logo após a criação da Associação foram
promovidas duas festas para arrecadação de fundos, uma delas sob os
auspícios da empresa Carmello Rangel & Companhia, no Teatro Éden, e a
outra patrocinada pelo empresário Cícero Marques nas dependências do
Jockey Clube.
No entanto, as despesas eram elevadas, como alertou Victor Ferreira
do Amaral no relatório apresentado à Associação: “Peço que vos esforceis
o mais que puderdes a fim de aumentar os recursos com que contamos e
que só podem provir da magnanimidade dos corações femininos, sempre
abertos às obras de altruísmo”. (RELATÓRIO, 1914, p.17). Além de procurar
ampliar o número de sócias, as damas curitibanas procuraram colaborar,
não só arrecadando fundos, mas organizando o trabalho assistencial na
Maternidade.
A diretoria da Associação foi organizada com os cargos de provedora,
primeira e segunda provedoras, secretária e tesoureira. A diretoria era
responsável pela atualização dos registros, elaboração das atas e dos balanços
financeiros. As outras sócias se dividiam como zeladoras da Maternidade e nas
cinco comissões criadas para dividir os trabalhos. As zeladoras fiscalizavam

92
o serviço prestado pelas pessoas que trabalhavam na Maternidade, uma
cozinheira, uma copeira, duas enfermeiras, uma governanta e um servente.
O trabalho das zeladoras era garantir que os atendimentos às mulheres que
procuravam a Maternidade fossem realizados com eficiência, pois geralmente
as parturientes ficavam em torno de 24 dias internadas, recebendo
atendimento médico, alimentação e roupas para si e para os recém nascidos,
fornecidas pela Associação.
Havia cinco comissões: Comissão de Contas, de Auxílios às Crianças,
de Festejos, de Donativos e a Comissão Parlamentar. Cada comissão era
composta formalmente por cinco sócias, mas delas acabavam participando
todas as sócias. As atribuições destas comissões proporcionavam às damas
de assistência oportunidades para estabelecer contatos, circular em seu meio
social e pela cidade, com a finalidade de conseguir contribuições, donativos
e principalmente o apoio do governo com subvenções. Chama a atenção a
existência de uma Comissão Parlamentar, o que significa que as associadas
sabiam que o “programa de amor” que as inspirava não era suficiente
para manter uma instituição médico-filantrópica como a Maternidade.
Seu pertencimento à elite da cidade e do Estado as habilitava a entrar nos
gabinetes de seus conhecidos, senão parentes, para demandar auxílio à obra
assistencial que representavam.
Esta experiência de se envolver em assuntos públicos como a
elaboração de balanços financeiros, o gerenciamento do cotidiano de um
hospital e de suas demandas específicas, fez com que aquelas mulheres
passassem a desenvolver habilidades e conhecimentos práticos, mesmo
que algumas continuassem a exercer atividades mais convencionais como a
confecção de enxovais para as assistidas e seus recém nascidos, ou o papel
de zeladoras no controle dos serviços prestados pelos trabalhadores da
maternidade. De qualquer forma, mesmo com limitações, este “trabalho do
coração” representou para as mulheres de elite um espaço de protagonismo
social, independente de como se possa qualificá-lo. Para além dos rótulos de
conservadorismo e de controle social, a benemerência resultante da aliança
entre médicos e mulheres de elite deu os primeiros passos em direção à
formulação das políticas públicas de saúde e de assistência que anos mais
tarde começaram a sair do papel no Brasil.

93
Considerações finais
As Damas de Assistência à Maternidade e à Infância não se aproximaram
do feminismo, nem se envolveram com as discussões acaloradas registradas
pela imprensa a respeito dos direitos das mulheres. O associativismo
feminino que se aliou aos médicos visando à assistência materno-infantil
proporcionou não só a possibilidade de sair de casa e dos círculos sociais
mais restritos dos clubes, grêmios e da igreja, mas também o exercício de um
poder benevolente, de um poder dos “corações femininos” que não ameaçava
a respeitabilidade de classe e de gênero. Pelo contrário, este poder estava
de acordo com o que se esperava das mulheres de elite, ou seja, proteger,
assistir, prover, cuidar. Empregando suas energias, seu tempo e capacidades
em favor das mães e das crianças pobres, elas cumpriam não só com o papel
de gênero socialmente prescrito e esperado, mas o ampliavam, o estendiam
para o campo das necessidades sociais.
Por certo que muitas associações femininas da época limitaram suas
ações aos objetivos cristãos, mas a pesquisa com o associativismo feminino
mostra que outras mulheres ampliaram significativamente suas ações
assistenciais, alinhando-se às políticas públicas de assistência e também ao
discurso reformador de médicos e juristas. Educação infantil e de adultos,
assistência materno-infantil, apoio às jovens mulheres trabalhadoras,
sanitarismo, moradias populares, assistência hospitalar e ambulatorial, são
alguns dos objetivos das associações filantrópicas nas quais as mulheres
exerceram uma liderança reconhecida, no Brasil e em outros países. Se foram
ações conservadoras e que justificavam o papel tradicional de gênero das
mulheres, foram, por outro lado, ações e experiências que possibilitaram
a algumas delas exercer um papel político reconhecido socialmente e que
não passava pelo formalismo do sistema representativo. Talvez essa ação
seja realmente uma expressão do protagonismo público feminino de perfil
conservador, mas antes das qualificações faz-se necessário compreender as
motivações, as práticas, os discursos e as redes de relações que facilitaram o
protagonismo social e político das mulheres das elites brasileiras.

94
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98
MADRES ECUATORIANAS BAJO LA LUPA DEL
ESTADO ITALIANO: MIRADAS DISCRIMINATORIAS
DE LAS RELACIONES DE GÉNERO Y
GENERACIONALES DE LAS FAMILIAS MIGRANTES
Claudia Pedone7

Introducción

En los últimos quince años los flujos migratorios hacia Italia que
experimentaron un proceso más claro de aceleración y feminización procedía
de América Latina, y particularmente de Ecuador. Desde 1999, la agudización
de la crisis socioeconómica ecuatoriana junto a una mayor demanda de mano
de obra femenina en las grandes ciudades italianas como Génova, Milán y
Roma provocó un cambio en las trayectorias migratorias atravesadas por el
género; así, la mujer dio inicio a cadenas migratorias “feminizadas”. Desde
esa época el patrón migratorio cambió y las mujeres se convirtieron en las
generadoras de los principales recursos económicos del grupo doméstico a
nivel transnacional y en las responsables de los procesos de reagrupación
familiar.
Sin embargo, desde el año 2008, en Italia, en el marco global de
una crisis económica europea generalizada, la pérdida de bienestar en las
familias migrantes, el endurecimiento de las políticas y el control migratorio
y la creciente problematización de la presencia inmigrante, son factores que
influyeron en las transformaciones de los proyectos migratorios de familias
ecuatorianas. Las actuales condiciones de precariedad han acentuado

7 CONICET/IIEGE-UBA, Buenos Aires Miembro del Grupo Interdisciplinario


de Investigadoras Migrantes (GIIM). Doctora en Geografía Humana por la Universidad
Autónoma de Barcelona. Investiga las migraciones internacionales latinoamericanas, desde
una perspectiva transnacional, los temas de cadenas y redes migratorias, relaciones de
género y generacionales, familias transnacionales, en particular la incidencia de las políticas
migratorias en las estrategias de las familias migrantes, la reconfiguración de las migraciones
en América del Sur y la migración cualificada. Actualmente es Investigadora Independiente del
Consejo de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) en el Instituto Interdisciplinario
de Estudios de Género (IIEGE), Universidad de Buenos Aires, y Co-coordinadora del Grupo de
Trabajo de la CLACSO: Migración Sur-Sur. claudiapedone@yahoo.es

99
contextos de alta vulnerabilidad social, económica, laboral y jurídica que
experimentan las mujeres ecuatorianas residentes en Italia y que afecta
directamente la situación legal y el bienestar de los y las hijas de estas
familias.
Ante situaciones de desempleo y de violencia de género el estado
italiano ha intervenido y ha puesto bajo tutela estatal a algunos/as hijos/
as de familias migrantes ecuatorianas y, en situaciones extremas, los/as ha
otorgado en adopción a familias italianas. A inicios del año 2014, el estado
ecuatoriano decidió idear e implementar una estrategia política, jurídica,
social y comunicacional para proteger los derechos humanos de las familias
migrantes ecuatorianas en Italia.
Es oportuno destacar que alrededor de 30.000 niños, niñas y
adolescentes de diferentes nacionalidades han sido separados de sus familias
y ubicados en casas de acogida en toda Italia. El 60% son italianos y el 40%
extranjeros. Hasta el mes de julio de 2016, la Embajada y los Consulados
de Ecuador en Italia reportaron 164 casos de familias ecuatorianas que
perdieron la tutela de sus hijos e hijas.
La Cancillería implementó en todas las representaciones consulares
del Ecuador en Italia servicios de asesoría, acompañamiento y patrocinio
jurídico, social y psicológico completamente gratuitos. Actualmente la
Embajada de Ecuador en Italia y los Consulados en Milán, Génova y Roma
cuentan con un grupo de 23 profesionales entre psicólogos, abogados y
trabajadores sociales para atender estos casos.
Como resultado de la estrategia gubernamental se han recuperado
46 niños, niñas y adolescentes de familias ecuatorianas residentes en Italia,
15 se acogieron al Programa de Retorno Asistido y están al cuidado de los
miembros de la familia que permanecen en Ecuador (abuelas, tías, madres,
hermanos/as mayores) y los/as restantes han vuelto a convivir con sus
familias en Italia.
Por otro lado, en cuanto a las relaciones diplomáticas, el estado
ecuatoriano impulsó la suscripción de convenios bilaterales de cooperación
mediante los cuales se promueven la aplicación de las convenciones
internacionales referentes a la protección de menores, apoyo y tutela de
las familias ecuatorianas en diversas problemáticas: violencia de género,
negociaciones intergeneracionales, apoyo educativo y sanitario, por
mencionar algunos aspectos. Asimismo, se firmó un Memorandum Bilateral

100
entre el Ministerio de Justicia Italiana y el Ministerio de Justicia, Derechos
Humanos y Culto de la República del Ecuador, con la finalidad de viabilizar
los canales de comunicación entre los ministerios para la cooperación
jurídica y social de estos procesos en ambos países y que además garanticen
los derechos de las familias migrantes en Italia.
En el año 2014, para abordar esta problemática, el Ministerio de
Relaciones Exteriores y el Vice-Ministerio de Movilidad crearon un Comité
de Crisis con expertas en temas de Migración Familiar y Violencia de Género y
una Gerencia Institucional para diseñar y poner en marcha la estrategia
política, jurídica, social y comunicacional. El Comité de Crisis tuvo entre sus
principales funciones, tanto en origen (Ecuador) como en destino (Italia),
asesorar y capacitar a funcionarios y equipos de abogados/as y dar un
seguimiento a las acciones llevadas a cabo en esta estrategia política, jurídica,
social y comunicacional.
Entre agosto y diciembre de 2015, planteamos una investigación
para analizar los alcances de esta problemática y de la intervención tanto del
estado italiano como ecuatoriano. El estudio llevado a cabo es cualitativo,
con un trabajo de campo transnacional (en origen y destino). Hemos
entrevistado a: a) funcionarios políticos y abogados que llevan los casos
desde los consulados de Ecuador en Italia; b) 9 entrevistas en profundidad a
familiares que recibieron a menores y adolescentes recuperado/as en Ecuador
(Guayaquil, Quito y Santo Domingo de los Tsáchilas) y menores y adolescentes
recuperados/as y retornados/as; c) 13 entrevistas en profundidad a madres,
tías, abuelas y adolescentes involucrados en la problemática de la tutela bajo
el estado italiano en Milán, Génova y Roma, áreas de mayor asentamiento de
la comunidad ecuatoriana en Italia.
En este capítulo exponemos algunos resultados de esta investigación.
En primer lugar, reflexionamos sobre la producción científica en el campo
de los estudios sobre transnacionalismo familiar y las nuevas formas de
organización del cuidado, a la luz de la actual crisis socioeconómica. En
segundo lugar, abordamos contextualmente la migración familiar ecuatoriana
hacia Italia y los conflictos en las relaciones de género y generacionales en el
presente contexto migratorio transnacional. En tercer lugar, analizamos las
concepciones sobre familia, formas de cuidado y su relación con la población
inmigrante y de escasos recursos de los Servicios Sociales y del Tribunal de
Menores en Italia, concepciones que, en numerosas ocasiones, han entrado

101
en conflicto con la gestión de la vida cotidiana de las familias migrantes. Por
último, analizamos algunos aspectos de la reorganización del cuidado en
las familias ecuatorianas residentes en Italia a partir de la injerencia de los
servicios sociales y de qué manera repercute en las pautas de crianza y en el
reacomodamiento de las relaciones de género e intergeneracionales.

Transnacionalismo familiar y formas de organización del


cuidado: nuevas reflexiones a raíz de la crisis socioeconómica
en Europa

La migración familiar fue una dimensión durante largo tiempo ignorada en


el análisis de los procesos migratorios debido a una visión predominante
que imaginaba la migración como un hecho económico protagonizado por
varones, resultado de decisiones y acciones individuales. La aplicación de la
perspectiva de género al estudio de las migraciones y la presencia mayoritaria
de mujeres como primer eslabón de las cadenas migratorias convirtieron
a las familias migrantes en objeto de estudio de las ciencias sociales, en
especial en lo que se refiere a la organización del cuidado de los/as hijos/
as que quedaban en los lugares de origen. Así, a finales de los años noventa,
desde una perspectiva transnacional y de género, el concepto de “maternidad
transnacional” (HONDGNEU-SOTELO; AVILA, 1997) permitió analizar las
implicancias de la migración internacional en las formas de organización
del trabajo productivo y reproductivo al interior de las familias migrantes.
También puso de manifiesto la importancia de las dinámicas familiares
como ámbitos de investigación y producción de conocimiento sobre los
desplazamientos de población. (KOFMAN et al., 2011; OSO; PARELLA,
2012).
Las primeras investigaciones que vincularon el género con los
procesos de transnacionalismo indagaron el importante papel que tienen
las mujeres en la configuración y mantenimiento de los vínculos familiares
transfronterizos (GRASMUCK; PESSAR, 1991; ALICEA, 1997; HONDGNEU-
SOTELO; AVILA, 1997), así como los obstáculos que deben enfrentar para
garantizar el cumplimiento de las tareas reproductivas cuando la familia está
dispersa geográficamente (BERNHARD; LANDOLT; GOLDRING, 2005), en
particular lo que se refiere al cuidado de los hijos e hijas que permanecen en
el país de origen. (PARREÑAS 2005; DREBY 2010). A pesar de la importancia

102
otorgada a la maternidad transnacional, aún faltan trabajos que den cuenta
de las transformaciones que experimenta este vínculo a lo largo del curso de
vida. (SORENSEN; VAMMEN, 2014).
En Europa, la investigación sobre los efectos que tiene la migración
internacional en las configuraciones familiares comenzó en la década de los
2000. La familia transnacional ha sido definida como aquella en la cual sus
miembros viven la mayor parte del tiempo dispersos entre dos o más países,
pero aun así se mantienen unidos por lazos emocionales y/o financieros.
(BRYCESON; VUORELA, 2002). Como otra familia, las transnacionales no
son unidades biológicas, sino construcciones sociales y desterritorializadas
(BESSERER 2004; SORENSEN 2008) que sostienen y reconstruyen los
vínculos afectivos a la distancia mediante llamadas, correos electrónicos,
regalos, fotografías, remesas y por (esporádicos o frecuentes) desplazamientos
entre la sociedad de origen y de destino. La dispersión espacial que genera la
migración confronta a los y las migrantes y sus familiares no migrantes con
nuevas maneras de organizar el cuidado y cambios en las pautas del crianza,
lo que conlleva rupturas en las concepciones y ejercicio de la maternidad y la
paternidad, pero también en las formas de entender (y ejercer) el ser abuelos/
as, hijos/as, nietos/as en un contexto migratorio transnacional. En este
contexto migratorio se construyó el concepto de “cuidado transnacional”,
entendido como el intercambio de cuidado y apoyo que trasciende la distancia
geográfica y las fronteras del estado nación. (BALDASSAR; BALDOCK;
WILDING, 2007).
Desde entonces, las investigaciones sobre la migración de América
Latina al Sur de Europa en perspectiva transnacional y de género componen
un importante corpus de conocimiento acerca de los vínculos familiares que se
generan en estos campos sociales transnacionales. En relación a los estudios
que analizan los vínculos transnacionales y el impacto de la migración en las
formas de organización del cuidado desde la óptica de quienes permanecen
en los lugares de emigración son recientes y en Colombia y Bolivia aparecen
una década después de la feminización de estos flujos8.
8 Un estado de la cuestión sobre el abordaje teórico-metodológico del
transnacionalismo familiar latinoamericano en el debate académico español se puede
consultar en Pedone, 2011. Para un estado del arte sobre los principales antecedentes en el
estudio del transnacionalismo familiar en el contexto migratorio, con especial atención a las
investigaciones que han analizado las dinámicas familiares en la migración entre América
Latina y Europa del Sur, ver Gil Araujo y Pedone, 2014; Pedone, 2014; Pedone, Gil Araujo,

103
Por otro lado, aún falta profundizar sobre la incidencia de la
migración en la división del trabajo productivo y reproductivo al interior
de las familias, en relación al género y la generación de sus integrantes, y
mostrar como esa división cambia a lo largo del tiempo, es decir, a lo largo
del curso de vida, del mismo modo que se ha resignificado el proyecto
migratorio. Aquí es imprescindible insistir en la importancia de incluir,
no solo la dimensión espacial, sino también la dimensión temporal en los
análisis sobre las formas de organización familiar en contexto migratorio, ya
que, como apuntan Sorensen y Vammen (2014), el ciclo de vida incide tanto
en las configuraciones familiares como en los patrones migratorios. Nuestra
producción científica en relación a la migración ecuatoriana (PEDONE,
2004, 2006, 2010, 2014) y colombiana (ECHEVERRI, 2010) hacia España
enfatiza en la dimensión temporal para abordar las dinámicas cambiantes de
las relaciones familiares en un contexto transnacional y los cambios en las
relaciones afectivas y de roles entre sus miembros. Esta perspectiva la hemos
afianzado metodológicamente con un trabajo de campo etnográfico en origen
y destino y de corte longitudinal trabajando con las mismas familias por más
de una década de migración.
Ahora bien, las crecientes restricciones a la migración familiar en
los países de la Unión Europea, junto a la estigmatización de la emigración
de mujeres-madres en los países latinoamericanos, han convertido a las
familias migrantes en problema social en ambos extremos de la cadena
migratoria. En el contexto europeo, la reagrupación familiar ha dejado de ser
un derecho para convertirse en una prerrogativa del Estado, a la que se puede
acceder cumpliendo una serie de requisitos económicos y, ahora también,
culturales. Es habitual que la justificación de las limitaciones al derecho
natural de la vida en familia se vincule con las diferencias/deficiencias
que cargan las familias migrantes (y sus integrantes) para alcanzar una
“integración” exitosa en la sociedad de llegada. Paralelamente, el aumento
de la presencia femenina en las corrientes migratorias procedentes de países
latinoamericanos ha generado importantes cuestionamientos a los lugares
y responsabilidades tradicionalmente asignados a varones y mujeres en el
ámbito de la familia. Estas transformaciones han disparado discursos en los
países de origen, que suelen asociar la migración femenina con el abandono
2016. El actual debate respecto as perspectivas sobre género, migraciones transnacionales,
trabajo y cuidado en La Europa del Sur se plantea en Barañano, Marchetti, 2016.

104
de la familia y diagnostican diversas disfuncionalidades a las familias con
madres migrantes. Ambos procesos han colocado a las familias migrantes
en el centro de los debates políticos sobre las implicaciones nacionales de las
migraciones internacionales. En ciertas ocasiones estas problematizaciones
dan lugar a políticas públicas dirigidas a estas familias y sus miembros,
principalmente las mujeres y las generaciones más jóvenes (GIL ARAUJO;
PEDONE, 2013), como analizaremos en el presente estudio de caso.
Algunas investigaciones ya apuntaron que, tanto a nivel europeo
como en países como Italia y España, las políticas migratorias estratifican
derechos y generan efectos desproporcionados y negativos sobre las mujeres
inmigrantes, que obstaculizan el disfrute de derechos que se les reconoce
formalmente en condiciones de igualdad y no discriminación respecto a
los varones inmigrantes y a las mujeres autóctonas o que cuentan con la
ciudadanía. En consecuencia, estas normativas aparentemente neutras
y objetivas en el papel, son indirectamente discriminatorias cuando se
aplican según el sexo, la edad y los momentos de llegada, la nacionalidad.
(FREEDMAN, 2003; KOFMAN, et al., 2011; PEDONE, C.; AGRELA
ROMERO, B; GIL ARAUJO, 2012; GIL ARAUJO; PEDONE, 2013; PEDONE;
ECHEVERRI; GIL ARAUJO, 2014).
Coincidimos con Staiano (2016) que las causas de esta situación son
diversas. En algunos casos, se derivan de una imposición normativa y judicial
de modelos de familias insostenibles – como por ejemplo los de la “buena
madre”, el proveedor único o el de familia basada sobre una rígida distinción
entre trabajo productivo y reproductivo, la falta de reconocimiento de las
familias transnacionales. En otros casos, los efectos de género de algunas
normas se deben a la subestimación, por parte de legisladores y funcionarios
de la justicia, de las necesidades y dificultades específicas de las mujeres
inmigrantes y sus familias y en el más amplio contexto social y normativo
del país de destino.
En tiempos de crisis socioeconómica, surge la necesidad de
incluir otros elementos de análisis a la hora de abordar los procesos de
transnacionalismo familiar. Para ello, es imprescindible considerar la vida
familiar como ámbito multidimensional que permita abordar de qué manera
interaccionan normas que habitualmente no se suelen conectar como, por
ejemplo, el derecho migratorio, el derecho del trabajo, el derecho penal, el
derecho de la familia. La interacción de estas normas puede producir, además,

105
un impacto dispar sobre las vidas de las mujeres inmigrantes. Por ello, un
enfoque teórico-metodológico de corte longitudinal que permita analizar
los procesos, y desde la perspectiva del litigio estratégico, son abordajes
analíticos que pueden complementar los hallazgos en el campo de los estudios
transnacionales familiares. (REY MARTÍNEZ, 1995; CHARLESWORTH,
2004; GUTIÉRREZ CONTRERAS, 2011; ARROYO VARGAS; PEDONE, 2015;
STAIANO, 2016).
En este contexto, se han recrudecido las miradas estigmatizantes
y discriminatorias con marcados rasgos xenófobos y racistas por parte de
funcionarios/as que tienen el poder de intervenir en la organización del
cuidado de las familias migrantes. Aún persiste un vacío en la producción
científica sobre la capacidad de agencia de las familias transnacionales en
tiempos de crisis y cuál es la incidencia de la intervención de los estados de
origen y de destino en las nuevas formas de organización de cuidado derivada
de la vulnerabilidad y precariedad que se agudizó a partir del año 2008.
En este sentido, es necesario reflexionar sobre las agencias
individuales y colectivas y sobre todo el modo de enfrentar la crisis, la búsqueda
de nuevas formas de supervivencia y la reproducción social para lo cual es
imprescindible considerar la des/re-construcción multiescalar de los lazos
sociales y la reconfiguración de estos vínculos en la distancia y la proximidad,
los desplazamientos en las relaciones de género e intergeneracionales que las
componen (BARAÑANO, 2016) y la intervención estatal en ambos extremos
de las cadenas migratorias.
A continuación, abordamos esta reconfiguración de las familias
ecuatorianas residentes en Italia a partir de la injerencia del estado italiano
en la organización del cuidado, el papel del estado ecuatoriano como
representante de la comunidad en destino.

Continuidades y discontinuidades en las dinámicas y


estrategias migratorias de las familias transnacionales
ecuatorianas
a Italia

A partir de 1999, la agudización de la crisis socioeconómica ecuatoriana


junto a una mayor demanda de mano de obra femenina en las grandes
ciudades de España (Madrid, Barcelona, Valencia y Murcia) e Italia (Génova,

106
Milán, Torino y Roma) provocó un cambio en las trayectorias migratorias
atravesadas por el género; así, la mujer se convirtió en el primer eslabón
de la cadena migratoria. La participación determinante de las mujeres en
el desplazamiento de la población ecuatoriana y su inserción en el servicio
doméstico en estas ciudades generó un reacomodamiento en las relaciones
de género y entre las generaciones. Por ello, la visibilización de las mujeres
y de los niños /as y adolescentes dentro del grupo doméstico y como parte
decisional en el juego de las relaciones de poder ha permitido centrar el
análisis de la familia como un lugar de conflicto y negociación. (PEDONE,
2006; LAGOMARSINO, 2006).
El caso de la migración ecuatoriana hacia España e Italia ha sido
uno de los primordiales campos de debate académico y político sobre las
vinculaciones entre los procesos migratorios y las dinámicas familiares.
(HERRERA 2004; LAGOMARSINO, 2004; PEDONE, 2004, 2006, 2008,
2010; LAGOMARSINO; TORRE, 2007; PARELLA; CALVANCANTI, 2007;
CAMACHO; HERNÁNDEZ, 2009; ABBATECOLA; LAGOMARSINO, 2010;
PAGNOTTA, 2010). Estos estudios enfatizan en el papel fundamental
de las mujeres como primer eslabón de la cadena migratoria, pioneras del
proyecto migratorio familiar e iniciadoras y responsables de los procesos de
reunificación familiar.
Las mujeres pioneras de este desplazamiento tomaron la decisión de
reagrupar a sus hijos e hijas una vez instaladas en los lugares de destino. Este
hecho constituyó una de las resignificaciones más importantes del proyecto
migratorio inicial. Una vez que la familia estuvo asentada en destino,
comenzó el largo y conflictivo proceso que dirime el asentamiento definitivo
del retorno, donde nuevamente se ponen en juego las cuotas de poder que
han ido ganando o perdiendo los miembros del grupo doméstico migrante.
(PEDONE, 2004).
Debido a la compleja trama de situaciones familiares y el contexto
socioeconómico y jurídico, las reagrupaciones familiares no siempre han sido
armoniosas. No obstante, en un corto periodo de tiempo, las estrategias para
llevar a cabo estas reagrupaciones en destino se han visto dificultadas por
diferentes motivos, como las restricciones jurídicas implementadas mediante
las leyes de extranjería a las posibilidades de reunificación en destino, las
escasas vías de migración regular, la mayor permanencia de las mujeres

107
en el servicio doméstico interno, las dificultades en el acceso a la vivienda
y la paulatina estigmatización de “los jóvenes latinos” en la sociedad tanto
española como italiana. (QUEIROLO; PALMAS; TORRE, 2005; PEDONE,
2010, 2014).
Numerosas investigaciones a lo largo de los últimos 15 años (PEDONE,
2004, 2008, 2010; RAMOS, 2010; HERRERA, 2013) han destacado los
importantes cambios que las familias ecuatorianas han sufrido en las últimas
décadas, en las que se ha modificado el modelo tradicional, insistiendo al
mismo tiempo en la importancia del papel educativo de figuras sustitutivas
como abuelos/as, tíos/as, hermanos/as mayores. El cuidado compartido y el
hecho de crecer con otros familiares es una práctica más bien extendida en
Ecuador, según los diversos sectores sociales y regiones, la familia nuclear
occidental existe como modelo dominante pero no como práctica única ni
mayoritaria en Ecuador (como tampoco lo es en las sociedades de destino).
En muchas de las familias que han participado en estos estudios, la crianza
de los hijos y de las hijas ya había sido compartida antes de la primera
emigración de la madre. (LAGOMARSINO, 2014).
Los complejos procesos de reagrupación familiar y la actual crisis
socioeconómica en Europa que ha ocasionado altos índices de desempleo entre
la población migrante ha sido uno de los problemas que han debido enfrentar
las familias ecuatorianas migrantes a la hora de gestionar su supervivencia en
los contextos de destino. En las entrevistas con madres, padres e hijos/as en
Génova, Roma y Milán, aparecen problemáticas recurrentes a lo largo de estos
años de migración como: conflicto entre padres, niños y niñas violentadas,
violencia de género, precariedad económica y abandono de menores, son
situaciones complejas y diversas, donde estas causas se superponen y en
ocasiones todas aparecen imbricadas en una sola situación familiar. Nuestro
trabajo de campo constata que donde hay niños/as violentados/as, hay
violencia hacia la mujer. En muchos casos, esos círculos de violencia familiar
han tenido origen en Ecuador y se perpetúan en los contextos de destino.
El tema del maltrato en los hijos/as para corregir comportamientos
forma parte de las pautas de crianza en una parte de la sociedad ecuatoriana.
Estas pautas no han tenido aún un abordaje directo por parte de las
instituciones públicas (como el Estado, las instituciones educativas y algunas
instituciones religiosas, principalmente por la iglesia católica) y de la familia;

108
por lo cual, en ocasiones, se traslada a la migración familiar y debido a los
reacomodamientos intergeneracionales se convierte en un tema central en
la problemática de los niños/as y adolescentes de las familias ecuatorianas
residentes en Italia.
En este contexto migratorio transnacional algunas familias
ecuatorianas residentes en Italia, particularmente en Génova, Milán y Roma,
están siendo interpeladas por el estado italiano en sus roles como padres y
madres y como sostenedores/as del bienestar familiar. Desde el inicio de la
crisis en Italia en el año 2008, muchas mujeres migrantes, en algunos casos
únicas sostenedoras económicas de las familias, han perdido sus empleos y
esta situación se ha visto agravada por los reiterados círculos de violencia de
género en los cuales están involucrados algunos grupos domésticos. Estas
situaciones de precariedad social, económica y complejos reacomodamientos
de los vínculos familiares han conllevado la intervención del estado italiano,
mediante los Servicios Sociales y el Tribunal de Menores, a separar a niños,
niñas y adolescentes de sus madres y de sus hogares y quedar así bajo el
tutelaje estatal de Italia.

La intervención del estado italiano en la estructura familiar


de la población migrante y la respuesta del estado ecuatoriano

En los lugares de destino, las mujeres inmigrantes son presionadas para


cumplir con modelos normativos que las encasillan como madres y esposas,
si no quieren poner en peligro su derecho a la vida familiar. Algunas de
estas mujeres inmigrantes han acudido a los tribunales supranacionales
y nacionales, con el fin de cuestionar la legitimidad de estas normas, y en
consideración de sus circunstancias de vida concretas. En otros casos, estos
tribunales han elaborado por su cuenta interpretaciones judiciales que
afectan cotidianamente a las mujeres inmigrantes y a su derecho a la vida en
familia, así como a sus roles familiares. Los aspectos de género de las normas
examinadas, o sus efectos, apenas han sido discutidos y confrontados de
manera explícita en estos contextos judiciales. (STAIANO, 2016).
El Tribunal de Menores en Italia basa sus decisiones y veredictos
en los informes que realizan los Servicios Sociales. Según los testimonios
de los abogados italianos contratados por los Consulados de Roma, Milán y
Génova, los servicios sociales se basan sobre el concepto de familia nuclear

109
con la madre como figura naturalizada encargada del cuidado; esta mirada
restringida no contempla las formas de organización familiar en un contexto
migratorio transnacional9.
A partir de estas concepciones, cualquier inconveniente entre
la conciliación de la vida familiar y laboral de las mujeres migrantes se
convierte en un disparador para la intervención de los servicios sociales en
la gestión de la vida familiar. Además, esta naturalización de la maternidad
y del cuidado los conduce a que no reconozcan ni a la figura del padre ni a
otros parientes como abuelas, tías, hermanos/as mayores como familiares
capaces de hacerse cargo de los y las niñas y consideran que el sistema de
casas de acogida y adopción son los métodos más idóneos para garantizar los
derechos universales de los/as menores.
Por otro lado, en los servicios sociales italianos existe un
problema estructural a nivel institucional. Cada asistente social supervisa
aproximadamente 30 casos de forma simultánea, lo cual conlleva a una falta
de profundidad en los informes recabados en un número muy reducido de
visitas. Si bien no hay una discriminación directa para parejas ecuatorianas
y/o binacionales, en muchas situaciones el tipo de inserción laboral, la
dificultad lingüística, la falta de diálogo intercultural y las concepciones
y formas de entender la familia, son factores que conllevan a analizar el
problema en abstracto, donde no se tiene en cuenta el contexto migratorio.
Los testimonios de los y las abogadas afirman que las diferencias
culturales son dificultades que se reflejan en los informes de los servicios
sociales. La sobresaturación de casos en estos servicios, junto a las dificultades
económicas de las familias migrantes refuerzan estereotipos culturales y al
trabajar sobre la urgencia, la primera opción es quitarles la tutela a los padres.
La falta de conciliación familiar-laboral en las familias migrantes
conduce a decisiones más punitivas; por ejemplo, una de las causas que alegan
es que en ocasiones los niños y niñas quedan al cuidado de vecinos. Entre
estas familias el foco de atención se centra más en estos aspectos que cuando

9 La organización institucional y actuación de los Servicios Sociales y el Tribunal de


Menores en Italia que aquí se describen provienen de las entrevistas en profundidad realizadas
a los equipos de abogados/as a cargo de los casos patrocinados por el Gobierno del Ecuador
en los Consulados de Roma, Milán y Génova. Es oportuno resaltar que las entrevistas se
realizaron en diciembre de 2014, cuando comenzaba la estrategia jurídica, y en diciembre de
2015, a un año de gestión para evaluar los resultados obtenidos hasta el momento (PEDONE,
2014, 2015).

110
se trata de familias autóctonas, por lo cual, algunos abogados afirman que
podría verse como una discriminación indirecta.
Otro aspecto que dificulta una atención adecuada a las familias
autóctonas de escasos recursos y a las familias migrantes se refiere a que
toda la estructura y la asistencia están a cargo de una empresa privada. En
sentido, el Estado sólo se hace cargo de las evaluaciones, la asistencia a las
familias se realiza a partir de la externalización de esta gestión.
Una vez que los Servicios Sociales intervienen por primera vez en
la familia migrante, se detectan varios inconvenientes. El mayor problema
se refiere a que desde esta institución no se trabaja en la recuperación
de las relaciones familiares. Existen varios casos que demuestran que,
cuando la familia se acerca a pedir ayuda económica, los servicios sociales
inmediatamente proceden a retirarles la tutela de sus hijos y así se entra
al circuito institucional. Otra problemática que enfrentan los familiares
entrevistados apunta a que los servicios sociales no otorgan información
fiable a madres y padres inmigrantes. Desde la institución se establece el
modo y la frecuencia de las visitas y en ella recae la responsabilidad de las
irregularidades que se presentan en las mismas.
En líneas generales, es una frecuencia muy mínima, una o dos
veces a la semana, y a veces más espaciadas, de una vez por
mes por una hora con personas presentes; de este modo no se
puede crear y/o recomponer los vínculos. (Abogado italiano,
contratado por la Embajada de Ecuador en Italia, dic. 2014)

Un tema recurrente en las entrevistas a madres, abuelas y tías que


tienen a menores en casas de acogida o comunidades es la casi nula capacidad
de maniobra para solucionar problemas familiares y consolidar los lazos
afectivos. Los horarios son muy acotados, no siempre tienen en cuenta las
largas jornadas laborales de las personas migrantes.
En las situaciones de niños pequeños que están en casas de acogida,
pero ya en proceso de adopción, los familiares enfatizan en que tienen
más derecho a estar más tiempo con los/as niños/as las posibles familias
adoptantes que los familiares directos que están en las mismas condiciones
sociales, económicas y residenciales de hacerse cargo de los/as menores.
Estas situaciones se reiteran cuando se trata de adolescentes en casa de
acogida y el régimen de visitas que no promueve el reacomodamiento de los
vínculos afectivos entre madres e hijas/os.

111
Las actuaciones de los jueces son muy discrecionales. Una práctica
extendida ha sido no recurrir al testimonio directo de los menores, a pesar
de que el artículo 13 de la Convención de Derechos del Niño establece que
el menor a partir de los 14 años está capacitado para declarar. Por lo tanto,
recurrir a esta instancia depende de un requerimiento de la defensa; lo
mismo ocurre con la búsqueda de otros familiares, denominados de cuarto
nivel, tanto en Italia como en Ecuador.
Separar a los hijos de la familia, en lugar de que sea la última
instancia, para los jueces ha sido la primera. Para los jueces las
dificultades económicas es la principal motivación para alejar a
los menores de la familia. Es difícil confrontarse con el sistema,
puesto la mujer es vista como vulnerable por su condición de
extranjería. Los jueces escuchan a los servicios sociales, el ojo
y el brazo del juez son los servicios sociales, no escuchan a los
chicos. La óptica de los jueces es muy punitiva, no se trabaja por
la readaptación a la familia de orientación. (Abogado italiano
contratado por el Consulado Ecuatoriano en Milán, dic. 2014)

Un aspecto prioritario a la hora de decidir otorgar a los/as menores


en adopción tiene que ver con la situación económica. Muchos jueces
privilegian la posibilidad que los niños y niñas queden bajo la custodia de
familias con recursos económicos, es decir, familias autóctonas. Así, en el
caso de las familias migrantes transnacionales, donde la crisis ha afectado
profundamente las condiciones de vida y ha extendido aún más las jornadas
laborales de las mujeres migrantes, aunado a casos continuados de violencia
de género, los informes en su gran mayoría son negativos. Estos informes
negativos tienen dos consecuencias: la más grave es el alejamiento de los hijos
e hijas del seno familiar, y en otros casos, las familias se ven obligadas a seguir
un recorrido psicológico, de mediación familiar y tratamientos psicológicos
para los menores. Este recorrido institucional tiene un alto costo, entre 3.000
y 4.000 euros y generalmente hay que acudir a profesionales que nombran
los propios jueces del tribunal de menores.
La/el trabajador/a social está ejerciendo una función de control
y policía, en lugar de crear consenso con la familia. Algunos
procedimientos han ido en contra de los derechos humanos y
no ha habido reparación. (Abogado italiano, contratado por el
Consulado de Milán, dic. 2014)

112
Es oportuno destacar que el tribunal de menores está compuesto por
jueces honorarios que vienen del sector privado y del área de la psicología,
la educación y trabajo social, por lo que algunos testimonios de informantes
clave en Italia presuponen que enviar niños a casa de acogida forma parte de
toda una red muy lucrativa para estos profesionales.

La intervención del Gobierno del Ecuador ha sacado a la luz un


problema muy serio en Italia que es el negocio que hay detrás
del tribunal de menores, todas estas figuras profesionales
[…] los psicólogos, los cuidadores, los servicios sociales, las
asociaciones, las casas de familia que ganan dinero por acoger
a los menores. Es increíble, yo gracias al gobierno ecuatoriano
tuve la impresión de que este tribunal se debería cancelar y
reconstruir, porque aparte de no tener una disciplina jurídica
cierta y que pueda reconocer derechos a los padres y todos los
familiares, tiene una disciplina procedimental inexistente.
(Abogado italiano contratado por el Consulado Ecuatoriano en
Roma, nov. 2015)

La estrategia diplomática, jurídica y de atención integral en sus


representaciones consulares en Italia y comunicacional del Estado ecuatoriano
se ha orientado a conseguir que la medida del alejamiento de los/as niños/
as y adolescentes sea el último recurso legal. A partir de esta intervención
se ha logrado revertir algunos casos, recuperar niños/as y adolescentes a
sus familias de orientación; con el patrocinio jurídico y el asesoramiento
psicológico gratuitos brindado desde los consulados ha conllevado un mayor
cuidado no sólo en las evaluaciones de los servicios sociales italiano, sino
también, una mayor cautela de los jueces a la hora de tomar decisiones
definitivas. Dos de los cambios más significativos han sido escuchar los
testimonios de los/as menores involucrados/as y buscar a parientes de cuarto
nivel (abuelos/as, tíos/as y hermanos/as mayores) que residan tanto en Italia
como en Ecuador y que estén en condiciones socioeconómicas para asumir el
cuidado de los/as menores. Así lo ilustra uno de los abogados que llevan los
casos de familias ecuatorianas.

Los jueces que saben de la intervención del Gobierno


Ecuatoriano y desde ahí son más respetuosos. Y lo digo porque
tengo casos del tribunal de menores no sólo de ecuatorianos,

113
sino de italianos y de otros latinoamericanos. Tengo además
de los ecuatorianos otros 10, 15 casos de otros inmigrantes.
Si vi por ejemplo, conseguí resultados positivos también otros
inmigrantes después de que haya intervenido el gobierno
ecuatoriano con una lucha de carácter político y también con
todo un servicio de apoyo. Y sinceramente noté un cambio de
concepto por parte de los jueces. (Abogado italiano contratado
por el Consulado Ecuatoriano en Roma, nov. 2015)

Existe una práctica generalizada por parte de los tribunales de


menores italianos de no buscar miembros de la familia ampliada en Italia
y/o en Ecuador previo a una decisión de adopción. Esta acción ha cambiado
paulatinamente a partir de la intervención del gobierno ecuatoriano en la
validación de informes entre Servicio Social y Consulados, de tal manera
que la ubicación de los y las/niños/as y adolescentes pueda ser en su núcleo
familiar, como indica la legislación ecuatoriana, italiana e internacional10.
En algunos casos desde las instituciones italianas, menoscaban
la cultura ecuatoriana, las formas de crianza, con enfoques más
rígidos y con marcos institucionales que apuntan directamente
a retirar a los menores del hogar. Sin embargo, para nosotros
esta debería ser la última instancia y encontramos en muchos
casos que esto no se hacía, no se daban el trabajo de buscar
otros familiares y muchas de nuestras familias desconocían
que tenían este derecho. Entonces las circunstancias hacían
que los chicos fueran a casas de acogida y en que en algunos
casos fueran dados en adopción. (Canciller Ricardo Patiño
Aroca, Quito, Oct. 2015)

Otra problemática detectada en los fallos del tribunal es la


parcialidad en el caso de parejas binacionales que benefician en su mayoría
a los ciudadanos nacionales del país de destino. Actualmente, desde el
estado ecuatoriano se patrocinan casos en que los hombres italianos ejercen
violencia psicológica sobre las mujeres ecuatorianas que deciden terminar
sus relaciones de pareja y utilizan a los/as hijos/as en común, para obligar a
10 Consultar el Memorandum Bilateral entre el Ministerio de Justicia, Derechos
Humanos y Cultos de la República del Ecuador y el Ministerio de Justicia de la República
Italiana en los procedimientos relacionados con los menores de edad, Quito, Ecuador, 11 de
febrero de 2016.

114
las mujeres a continuar con ese vínculo. Estos hechos de violencia y el temor a
las resoluciones de alejamiento de sus hijos/as han llevado a algunas mujeres
a regresar a Ecuador en un proceso legal erróneo que luego se caratula como
delito: la sustracción ilícita de menores11.
Como ya apuntan otras investigaciones precedentes (PEDONE;
AGRELA ROMERO, 2012; PEDONE; GIL ARAUJO, 2016; STAIANO, 2016),
los regímenes jurídicos más restrictivos imponen requisitos adicionales que
implican una vigilancia normativa acerca de la implicación de las madres en
la vida de sus hijos, además de un control de su historia personal, afectiva y
sexual.

La injerencia de los servicios sociales italianos en las formas


de organización del cuidado de las familias migrantes

La reproducción física y social que conlleva procrear, criar y socializar a


niñas y niños, así como constituir y mantener los hogares desde la infancia
hasta la edad adulta se logra, experimenta, valora y recompensa de distinta
manera, según las desigualdades que, en contextos históricos, políticos
y culturales específicos, condicionan el acceso a los recursos materiales y
sociales. (COLEN, 1995). Estas desigualdades en la reproducción generan
estratificación y, a su vez, reproducen e intensifican las desigualdades de las
que son fruto. Así, las desigualdades presentes en los contextos migratorios
transnacionales se reflejan en los ámbitos familiares, cotidianos y locales
en los lugares de origen y de destino. En este sentido, las instituciones
(estados, mercados de trabajo, familias, comunidades locales, medios de
comunicación) contribuyen a que se den unos acuerdos vitales y familiares y
a que algunos sean representados como legítimos y, por el contrario, otros,
como marginales. (KOFMAN, 2016).
Como adelantáramos, la migración familiar implica un
reacomodamiento en las relaciones de género y generacionales. Las
11 Actualmente en Italia, algunas reformas están previstas en lo referente a la
normativa y procedimientos en tema de menores. Uno de los cambios será la desaparición
del Tribunal de Menores y su incorporación a una sección especializada de los Tribunales
ordinarios y en la Corte de Apelación. Se creará un Tribunal de Familia; según el texto de la
ley habrá una reorganización de las responsabilidades hasta ahora fragmentadas entre las
distintas autoridades. Consultar: http://studiocataldi.it/articoli/21066-riforma-processo-
civile-addio-al-tribunale-dei-minori-e-al-rito-ordinario-in-primo-grado.asp

115
condiciones jurídicas, laborales, residenciales y educativas en los contextos
de destino han complejizado la reasunción de roles y autoridades entre
madres, padres e hijos/as. Una particularidad en el caso europeo y, más
específicamente, en el caso italiano es la intervención del Estado, mediante
los servicios sociales en las relaciones familiares de los grupos domésticos
migrantes.
Una vez que las familias migrantes ecuatorianas entraron al circuito
de tutelaje del Estado italiano, ya la injerencia de los servicios sociales en la
vida cotidiana es una realidad difícil de cambiar. Las dinámicas familiares se
ven modificadas, se cambian las pautas de crianza y los roles generacionales
ejercidos hasta el momento. Nuestro trabajo de campo reveló situaciones
muy diversas: a) la intervención de los servicios sociales, cuando es la misma
familia quien recurre a la institución por sus condiciones de precariedad;
b) la presencia de la familia con menores que residen en comunidades o
casas de acogida en la organización del cuidado y lazos afectivos mediados
por los servicios sociales italianos; y c) las renegociaciones de género y
generacionales, para recibir a los/as menores recuperados/as y retornados/
as a Ecuador.

La injerencia de los servicios sociales por solicitud de las


madres migrantes

Existen casos en que las propias familias por diversos motivos han acudido
a los Servicios Sociales italianos y este hecho ha ocasionado que la familia
quede bajo tutela estatal. En ocasiones, la precariedad laboral y residencial
ha conducido a algunas madres a pedir ayuda, lo cual ha repercutido en
la futura configuración de las relaciones familiares y en casos extremos la
separación de hijos/as de sus madres. Uno de los casos más emblemáticos lo
encontramos en Roma, donde una madre pidió ayuda a los servicios sociales
para poder conciliar sus horarios laborales con la organización del cuidado
de sus dos hijas:
Aquí la guardería cuesta como el arriendo. Yo tenía mis trabajos
en negro, tenía una anciana que trabajaba y me iba con las dos,
iba a limpiar las escaleras, la pequeña quedaba a veces con la
mayor que en ese tiempo era pequeña. Entonces, yo hice el
pedido a los servicios sociales, cuando la más pequeña tenía

116
casi 9 meses, porque el abogado me dijo mira tú tienes que
volver al trabajo sino lo pierdes. Y como es un trabajo que yo
lo tengo hasta ahora entonces me fui una mañana donde la
asistente social le dije mire yo estoy esperando para el puesto
de la guardería de la niña. Y fue así que me dieron el puesto,
pero mi problema no acababa con eso porque la escuela habría
7:30 pero yo al trabajo tenía que estar 8:30 y yo vivía en un
punto de Roma por decirle en el sur y yo tenía que irme al
trabajo al otro lado. Mi problema no acababa ahí porque igual
entraba 7:30 y la niña salía a las 16:30 y yo salía del trabajo
apenas a las 16:00 y hasta llegar a la guardería eran 17:30.
Entonces yo le dije a la asistente social que no era mi culpa, era
mi necesidad. Me tienes que ayudar a ver otra persona que me
saque a la niña y me la tenga ahí hasta yo volver del trabajo.
Entonces fue ahí que ella me encontró una familia, la primera
familia de acogida con la que yo hasta el día de hoy tengo una
relación buenísima. (Madre con 2 hijas tuteadas que fueron
recuperadas y retornadas al Ecuador)

Si bien el sistema de los servicios sociales ayuda a gestionar con las


acciones mencionadas a la madre para conciliar la vida laboral con la familiar,
este antecedente a su vez estigmatiza a la madre sola y sus pautas de crianza.
El abogado que lleva el caso, por patrocinio del Gobierno de Ecuador,
desde el Consulado de Roma, explica los recorridos institucionales por los
cuales la madre pierde la custodia en definitiva: el problema de fondo era la
precariedad laboral en esta que la madre se encontraba desde los inicios de
la migración, sobre todo, las extensas jornadas de trabajo; y que las otras
mujeres de la familia –madre y hermana– estaban en la misma situación, lo
cual impedía organizar el cuidado cotidiano de las niñas.

En esta situación problemática intervienen los servicios


sociales y como solución le ponen una custodia conjunta con
una familia romana que la podía ayudar en estos asuntos. Ese
fue el paso para empezar a volver otra vez en el tribunal para
quitarle otra vez la patria potestad. Yo asesoré todo el proceso.
El problema fue que la señora se encontró en un momento de
dificultad, aceptó el consejo de los servicios sociales, de esta
ayuda para 6 meses. La aceptación de esta ayuda implícitamente

117
significa volver a aceptar la intervención de los servicios
sociales y una declaración implícita de la incapacidad de cuidar
de las niñas. Aceptar esta ayuda puede implicar el riesgo de
perder los hijos. La solución fue la de mandar definitivamente
a las niñas a Ecuador con la abuela para que el caso se archive.
Así, los servicios sociales se quitan de toda esta situación y se
puede prever en un futuro regresar a Italia. (Abogado italiano
contratado por el Consulado de Ecuador en Roma, Roma, nov.
2016)

Esta presencia de los servicios sociales y la policía en la vida cotidiana


de las familias de escasos recursos, en nuestro caso, migrantes, en ocasiones,
ha llevado a algunos/as niños/as y adolescentes que los utilicen como
elementos de negociación en la gestión de las relaciones intergeneracionales.
Tanto los equipos de abogados/as como los propios adolescentes o adultos
reconocen que muchas veces son los propios miembros de las familias que
han incorporado a sus conflictos al sistema de los servicios sociales.

La presencia de la familia en las casas de acogida: horarios


limitados y controles

Un tema recurrente en las entrevistas a madres, abuelas y tías con menores


en casas de acogida o comunidades es la casi nula capacidad de maniobra que
tienen para solucionar problemas familiares y consolidar los lazos afectivos.
Los horarios son muy acotados, no siempre tienen en cuenta las largas
jornadas laborales de las personas migrantes.
Los/as niños/as pequeños/as que están en casas de acogida con un
proceso de adopción en marcha tienen muy limitado el contacto con sus
familiares consanguíneos. Los testimonios enfatizan en que tienen más
derecho y más tiempo de visitas las posibles familias adoptantes que los
familiares directos que están en las mismas condiciones sociales, económicas
y residenciales de hacer-se cargo de los/as menores. Existen dos casos
significativos, uno en Milán y otro en Génova, sobre menores que desde
muy pequeños están bajo tutela de los servicios sociales italianos y están
en proceso de adopción. Aunque existen parientes directos como tías y/o
abuelos/as que están en condiciones de adoptarlos para que continúen en su
familia de orientación.

118
En Milán, entrevistamos a una tía que luego de cinco años de litigio
logró la tenencia de su sobrino, hijo de su hermano, también migrante en
Italia. Ella es una migrante pionera, reagrupó a sus hijos y se hizo cargo de
su crianza frente a una paternidad y maternidad ausentes. Cuando su hijo
mayor ya estaba inserto en el mercado laboral y sus dos hijas en la escuela
secundaria, su hermano pierde la custodia de su hijo por problemas con el
alcohol y el niño muy pequeño va a una casa de acogida; con el transcurso
del tiempo aparece una familia adoptante. Durante más de tres años hubo
una competencia por los horarios de visita, tiempos de permanencia con el
menor y supervisión por parte de las autoridades, que en todo momento
favorecieron a la familia adoptante. Finalmente, la tía logró la tenencia del
menor; la entrevista se llevó a cabo en la residencia de la familia un mes
después que el menor ya convivía con su tía y sus primos.

Corrimos el riesgo de perderlo porque había una familia de


padres italianos que lo querían al niño. El servicio social
autorizaba que el niño siempre estuviera en casa de esa familia,
hasta dormía, comía, salía con ellos. En dos o tres ocasiones
con mi hermana nos tocó ir juntas a hacer la visita al niño y
hablábamos en español; no se puede hablar en español, nos
decían, al niño no se le habla en español, sino en italiano. Y
ellas allí como policías. La familia italiana lo ha visto siempre,
porque el niño era compañerito desde la guardería con el hijito
de esta pareja y llegaron a tanto que ya prácticamente les
enseñaban a que eran hermanos. En la comunidad a ellos le
daban prioridad; con nosotros nada estaba bien, ni respirar!...
fue un sufrimiento durísimo. (Tía de menor recuperado, Milán,
Nov, 2015)

Además, durante todos estos rituales burocráticos también debieron


afrontar las contradicciones del propio sistema: los servicios sociales y las
empresas privadas que manejan las casas de acogida, un servicio que el
estado italiano externaliza en empresas privadas:

Los servicios sociales me dijeron ‘no señora no es verdad,


nosotros primero estamos la estudiando a usted que es la tía’,
pero era todo mentira porque también armé un alboroto en la

119
comunidad. Ya muchas me apreciaban y me decían calladitas
‘te está mintiendo el servicio social, nosotros como comunidad
no podemos hacer nada que ellos no nos autoricen y nos
manden firmado, ellos se están lavando las manos’ y yo cada
vez que iba encontraba a esta pareja en todas las fiestas, y a mí
no me aumentaban los días, una vez al mes, tanto luchar, tanto
hablar, después era una vez a la semana. Hasta que mi hijo me
dijo ‘ándate al consulado que allá te ayudan, y me fui, hay que
nervios tenia! (Tía de menor recuperado, Milán, Nov, 2015)

En Génova, entrevistamos a una abuela y un abuelo que presentaban


un caso aún más complejo; tienen una hija adicta a las drogas y un nieto
pequeño; ambos han estado en régimen de acogida. Debido a la adicción de
su hija, estos abuelos han estado bajo la lupa de los servicios sociales, a pesar
que tienen recursos económicos, empleo estable, vivienda de propiedad y
estabilidad psicológica para optar a la tenencia de su nieto. Sus testimonios
relatan la supervisión con educadores en las visitas con su nieto y los
cambios en restringidas franjas horarias que no favorecen el afianzamiento
del vínculo afectivo. Así nos lo cuenta la abuela del menor que aún está bajo
tutela de los servicios sociales y que el tribunal los ha obligado a abandonar
la posibilidad de ayudar a su hija con su enfermedad de adicción si quieren
hacerse cargo del nieto.
Fueron a mi casa, vieron la casa y le digo ‘aquí no nos falta nada’
‘el bebé estará bien aquí’. Siempre hemos entregado todos los
documentos. Después dice la asistente social ‘bueno es que no
es que interesa tanto la situación económica, sino el afecto’,
le digo ‘entonces el afecto lo tiene de más’ pero apuesto que
si yo no tuviera donde vivir, si viviera en un cuartito que no
tuviera las comodidades me dirían ‘no señora, usted no tiene
como tener a su nieto aquí’, ellos no van a ver el el amor que yo
le tengo, sino en cómo vivo. Yo le enseñé que vivía muy bien,
que tengo mi casa arreglada, que en mi trabajo me respetan y
me quieren. Entonces ellos o sea no lo ven bien, claro, buscaron
otro protector. Bueno, tanto, tanto luchar porque hasta mi
marido no podía ni ver todavía el bebe, ya lo vio una vez fue
cuando cumplió dos años. Ahorita lo tiene una familia de
acogida y dicen que podíamos verlo una vez por semana, pero

120
la señora que lo tiene al bebe no puede venir todas las semanas.
Ahora es cada 15 días, el educador que trae al niño, ayer recién
me dio hora y media, y está alrededor de uno, porque no lo
dejan ahí solo. A nosotros nos han pedido que nos olvidemos
de mi hija si queremos criar a nuestro nieto, mire lo que ellos
pretenden! (Abuela y abuelo que están en juicio por la custodia
de su nieto, Génova, Nov, 2015)

En relación a la experiencia de los y las adolescentes en casas de


acogida, los testimonios aluden a que sus problemas de conducta y falta de
constancia en los estudios se agudizaron en los periodos que vivieron en las
casas de acogida, como así también el aumento en el consumo de drogas y
alcohol, debido a la facilidad que encuentran para burlar los controles en
estos establecimientos.
En algunas ocasiones, las mismas adolescentes que denunciaron a
sus madres a los servicios sociales, acudieron a ellas para poder salir de esa
situación; así lo relata una madre que tuvo que buscar a su hija, ante la fuga
de la casa de acogida debido a que ni los servicios sociales ni la policía podían
encontrarla:

A pesar que ellos me quitaron a mi hija, ella salía de la


comunidad y venía a mi casa. Cuando mi hija salió embarazada,
mi hija estuvo 1 año conmigo; en un año la policía no la buscó.
La asistente social me preguntaba si sabía algo de ella. Luego
llamaron las asistentes sociales a la comunidad… Me llamaron
la atención que, como un mes que mi hija se desaparecía yo
andaba con fotos por todo Génova, le dije yo menos mal justo
llamé y mi hija apareció. Les había dicho que si no aparecía
pasaba las fotos por televisión para ver quien la ha visto. Y de
ahí comenzaron a tenerme un poco de venganza, porque yo
le dije ‘cualquier cosa que pase con mi hija, yo las denuncio’.
La responsabilidad era de ellas (las responsables de la casa de
acogida). Por suerte recuperé la tutela de mi hija y la mandé a
Ecuador, porque la habían amenazado que como había vivido
en comunidad, cuando tuviera al bebé, se lo iban a quitar y a
dejar bajo tutela de los servicios sociales. (Madre con una hija
recuperada retornada al Ecuador, Génova, Nov. 2015)

121
Tuvimos la oportunidad de entrevistar a madre e hija en un régimen
de acogida con semi-autonomía. El motivo por el cual estaban en esta
situación era porque el padre de la niña había abusado sistemáticamente de
ella durante años. Si bien nos presentamos como funcionarias del Consulado
de Milán, las entrevistas fueron supervisadas por una educadora que no
nos permitió interactuar con la mamá y la adolescente ecuatorianas. La
educadora mediaba y condicionaba todas las respuestas. En un momento
pude hablar a solas con la adolescente en su habitación, que si bien reconoció
que su situación económica había mejorado y que estaban tranquilas lejos
del agresor, convivían bajo un régimen de control permanente. La joven
sentía que tanto su comportamiento como el de su mamá estaban siempre
bajo una lupa. Tanto la percepción de los equipos de los consulados como
los resultados de nuestro trabajo de campo nos corroboran que si bien el
sistema de casas de acogida tiene una infraestructura adecuada para la vida
residencial y estudiantil de los/as menores y adolescentes, existen varios
inconvenientes en la estructura institucional y su funcionamiento atenta
contra el restablecimiento y la consolidación de los vínculos afectivos
familiares y, en ocasiones reiteradas, no ofrecen condiciones de seguridad y
normas de convivencia que permitan a los/as adolescentes retomar su vida
familiar y socioeducativa12.
Según nuestros hallazgos, las acciones de los servicios sociales se
orientan de manera prioritaria a cortar con los lazos familiares, cuando se
detecta un problema.

Renegociaciones de género y generacionales para recibir


a los/as menores recuperados/as y retornados/as a Ecuador

Una de las estrategias que se llevó a cabo a partir de la intervención del Estado
ecuatoriano fue la posibilidad de buscar parientes directos que pudieran

12 Es oportuno destacar que en algunas familias la intervención de los servicios


sociales ha permitido una vida libre de violencia para mujeres y menores migrantes.
Existen casos en los cuales la separación de progenitores violentos fue una buena
solución para algunas adolescentes que lograron salir de un círculo de violencia
cotidiana para poder centrarse en una vida con amigos y continuar sus estudios, no
obstante, son una minoría en todos los casos detectados por las representaciones
consulares.

122
asumir la custodia de los/as niños/as y adolescentes recuperados/as, muchos
de ellos residentes en Ecuador: madres, padres, abuelas, tías, hermanos y
hermanas mayores.
Asumir esta custodia significa renegociar los roles de género y
generacionales a nivel transnacional. Como en los inicios de la migración,
es necesario realizar nuevamente “arreglos familiares” para gestionar la
crianza de estos hijos e hijas retornadas. Por lo tanto, las negociaciones
son múltiples entre madres y padres separados, hermanos mayores que
asumen paternidades de hermanos/as con los cuales no han convivido y tías
que reasumen el cuidado de sobrinos/as. Estos reacomodamientos revelan
nuevas desigualdades y se profundizan otras existentes, puesto que estos
retornos implican reacomodar vínculos afectivos y también organizar la
convivencia bajo nuevas reglas.
Un proceso parecido al que se vive con las reagrupaciones en los
lugares de destino lo encontramos en los casos de retornos de adolescentes
que llegaban a vivir con alguno de sus progenitores después de largos
periodos de separación, la mayoría de las veces a grupos domésticos de
nueva constitución. Es el caso de una madre que retornó de Italia y sus dos
hijas quedaron al cuidado de su padre y su nueva pareja. Las niñas sufrieron
maltrato sistemático durante muchos años por parte de estos adultos
hasta que fueron llevadas a una casa de acogida. Posteriormente, y por
intermediación del estado ecuatoriano, regresaron a Guayaquil al cuidado de
su madre. El proceso de reacomodamiento de los vínculos intergeneracionales
fue muy complejo, así lo relata la mamá que volvió a vivir con sus hijas luego
de ocho años de separación:

El padre de mis hijas se comunicó por medio de mensaje en


el facebook, ‘quieren sus hijas hablar con usted, llámelas’,
entonces yo hicimos una videoconferencia y me comentaron
‘mami, me quiero regresar a Ecuador’, la niña que ahorita tiene
trece años, la última niña. Yo digo ‘pero, ¿por qué?’, ‘es que
ya no me enseño’. Pero la otra niña no quería venir. Pero yo
más o menos creo que es porque le metieron muchas cosas en
contra de mí y ella se crió con eso; porque a mí no me decía
mamá, a mí me decía señora. Ella prefería quedarse allá e
incluso cuando llegó aquí dice, ‘si yo allá tenía todo, yo vivía
bien’ [...]. El proceso de adaptación fue muy difícil, porque

123
ellas vienen con otra forma de vivir, con otras actitudes, y
venir acá se chocaron porque yo tengo dos bebés pequeños.
Ahora nos estamos comenzando a querer, a adaptar entre
todos, porque al comienzo era todo complicado. Llegaron muy
desobedientes, ellas quieren hacer lo mismo que hacían allá;
salir [...] o yo no sé porque ellas dicen que ellas hacen aquí
porque ellas no eran libres allá, ellas pasaban encerradas, el
papá las tenía encerradas. Entonces yo en parte las entendía,
‘bueno, ya, está bien, tienen razón de salir pero aquí no están
en Italia, aquí hay mucho peligro, aquí hay mucha gente mala
[...] ustedes allá salían, se divertían, llegaban hasta 10, 11 de la
noche y hay gente; aquí no. Aquí, pasadas las 10 de la noche es
muy peligroso, hay mucho ladrón, hay mucha droga. (Madre
retornada que recuperó a sus dos hijas, Guayaquil, nov. 2016)

Otro caso es el de una adolescente y su hermano víctima de abuso


sexual en Italia que retornaron a Ecuador bajo el cuidado de su padre, aunque
aún mantiene la custodia compartida con su ex-mujer, que reside en las
afueras de Génova con su actual pareja y una hija pequeña de esta relación.
Estos dos hermanos desde el inicio de la migración familiar han tenido
complejos procesos de adaptación tanto en origen como en destino. Luego de
la gestión y patrocinio del gobierno ecuatoriano mediante la intervención del
Consulado de Génova y el equipo de abogados se logró que los dos menores
retornaran a Guayaquil al cuidado de su padre y abuela. El testimonio de la
menor da cuenta que ellos/as están en condiciones de llevar la voz cantante
en los conflictos familiares cuando son consultados/as y nos alejamos de
las miradas y decisiones con un corte exclusivamente adultocéntrico. En su
diálogo con la jueza, la adolescente expuso su visión de lo que para ella es
una familia, la situación en la que vivían en destino y la necesidad afectiva de
retornar a Ecuador:
Y los servicios sociales me decían... ‘tú tienes más
palabras que tu mamá, y has sido una chica que
nos ha enseñado que a pesar que uno te diga las
cosas no te quedas callada’. Yo le digo: ‘nunca me
voy a quedar callada’. Ahí fue cuando la jueza dijo

124
‘Julio y Paula13 pueden irse’, porque un día antes
que mi papá llegue yo había tenido una visita con
ella, estábamos en un cuarto solas las dos y a mí
se me salieron las lágrimas y por lo último dije ‘mi
familia es lo más importante para mí, yo quisiera
regresarme a Ecuador porque yo aquí no tengo a
nadie’. Sí, ‘Y yo no tengo a nadie’ y dije, ‘teniéndola
a mi mamá que sólo pasa trabajando y solamente
consigue dinero, le digo así: ‘una casa sola para mí’.
Mi hermano sale a jugar pelota, mi madre llegaba
a las 4 de la tarde, yo pasaba en esa casa sola, no
había nadie, y a la noche mi padrastro llegaba
gritando como si fuera mi padre y cosas así por el
estilo. Pasaba más encerrada en mi cuarto y él todo
me hacía quitar y mi mamá a todo le hacía caso y
todo me lo quitaba. (Adolescente retornada junto
a su hermano a Guayaquil, Guayaquil, Nov. 2015)

Además, una de las problemáticas emergentes en el retorno asistido


de menores a sus hogares en Ecuador tiene que ver con la disponibilidad
de recursos económicos para hacer frente a su inserción en los ámbitos
educativos y sanitarios, principalmente, porque la mayoría de ellos/as
necesitan apoyo psicológico y de salud.
La mayoría de los/as adolescentes entrevistados/as nacieron en
Italia o llegaron mediante reagrupaciones a escolarizarse en ambientes
socioeducativos italianos, se adaptaron a un nuevo sistema educativo,
aprendieron un idioma nuevo, se apropiaron – no sin conflictos ni
contradicciones – de un espacio público diferente al de Ecuador. Por ello, si bien
la estrategia de recuperación y viaje de retorno con sus familiares a Ecuador es
una opción adecuada en el momento en que el sistema institucional italiano
comienza a gestionar sus vidas lejos de sus familias, su retorno definitivo a
Ecuador para muchos/as de ellos no es parte de sus planes para continuar
con sus propias trayectorias. “Yo quería quedarme allá en Italia, yo veo mi
futuro allá” (Adolescente recuperada, residente en Guayaquil, nov. 2016). Es
oportuno destacar que en el tema del retorno a Ecuador, las generaciones que
13 Nombres ficticios

125
se encuentran en los extremos de la cadena migratoria – nietos/as y abuelas
–- evidencian en sus relatos que la adaptación no es sencilla. Una abuela
que decidió hacerse cargo del retorno de sus nietas cuando le devolvieron
la custodia de las niñas a su hija, relata lo difícil que fue para ella terminar
con su vida en Italia y decidir volver a su casa de Quito. Ella había migrado
a Roma hacía más de una década y media, era la reagrupante de sus tres
hijas mujeres, ahora adultas, casi toda la familia había establecido su vida
en destino, con el agravante que esta abuela sino trabaja unos años más en
Italia y pierde su permiso de residencia y trabajo y no tendrá posibilidades de
tramitar su jubilación. Ella opina que a pesar que el retorno les resolvió una
situación grave a nivel familiar, en cuanto a un futuro para ella y sus nietas,
en Quito no tienen las condiciones adecuadas:

A mí me falta la Italia, lo mismo a ella (nieta adolescente) le


falta... a la más grande. Pero la mamá ha dicho que hasta que
no se diplome aquí no le llevan nuevamente para allá. Ahorita
ellas están un poquito acopladas pero siempre hay quejas en
la escuela, que no cooperan porque es otro método de estudio
acá. Por ejemplo, ella allá estudiaba sólo con libros, creo que
sólo tenían un cuaderno y nada más, en cambio aquí para cada
materia, cada cuaderno bien presentado, entonces ha habido
muchos problemas. Pero ella ya está adaptada. Dice... está
decidida... “si me toca quedarme aquí hasta los dieciocho años
me quedo, porque yo tengo que cursar en Italia la universidad”.
Yo sí quiero ir con ellas nuevamente, porque allá estamos
mejor, hay más oportunidades... por ejemplo, si una chica no
pueden estudiar le dan su una carrera, allá hay futuro. (Abuela
retornada a Quito, junto a sus dos nietas recuperadas, Quito,
nov. 2015)

Por ello, si bien el retorno asistido ha constituido una solución para


prevenir y/o recuperar menores y reincorporarlos/as al seno familiar, es
un proceso complejo que requiere de un apoyo interinstitucional a nivel de
salud, apoyo psicológico y educación.

126
Conclusiones

En el marco global de una crisis económica generalizada y drástica reducción


de empleo en el espacio europeo con un mayor impacto en el desempleo
masculino, las mujeres migrantes, una vez más, reafirman su rol de cabeza
de las unidades domésticas, lo cual evidencia su compromiso en las tareas de
reproducción social y sostenimiento de sus hogares allí donde se encuentren.
Este contexto migratorio familiar se ha analizado desde la actuación
de los servicios sociales y del tribunal de menores del estado italiano que
– bajo una serie de prejuicios económicos y morales – ha intervenido en la
organización del cuidado de las mujeres migrantes y dificultado el acceso al
derecho de vivir en familia.
La injerencia del estado italiano en la dinámica de las familias
migrantes ecuatorianas ha conllevado que exista un alto porcentaje de
niños/as y adolescentes en casas de acogida, en numerosas ocasiones
injustificadamente. Ante esta grave situación es pertinente reflexionar
sobre la rentabilidad económica que producen estos procesos como una
externalización de funciones del Estado italiano hacia el sector privado:
cooperativas de psicólogos y terapeutas que abren muchas fuentes de trabajo.
Otra problemática son los jueces honorarios, que proceden de las carreras de
Psicología, Ciencias del Comportamiento; por lo tanto, fomentan estas redes
de profesionales privados, donde también hay discrecionalidad en la elección
de psicólogos.
Las concepciones de clase se refuerzan en los veredictos donde se
fundamenta el alejamiento de los hijos e hijas de sus madres (y padres)
alegando las dificultades económicas y los estereotipos sobre las mujeres
migrantes, en particular, y sus familias, en general, cuando las caracterizan
en torno a atributos genéricos como: falta de idoneidad, fatiga, falta de horas
de dedicación a los hijos, pero no especifican cuál es el problema concreto
que se quiere afrontar con la separación de los menores de la familia. Por
último, una de las mayores problemáticas es la falta de voz que niños, niñas
y adolescentes tienen en estos procesos.
Según afirman los y las abogadas que comenzaron a patrocinar
los casos desde el estado ecuatoriano, uno de los puntos críticos son las
sentencias que aluden al abandono moral y material para que los menores
sean adoptados. Desde el enfoque del litigio estratégico, las defensas han

127
apuntado a deconstruir sobre qué fundamentos se ha definido el “abandono
moral”, que aparece como un prejuicio de clase social y cultural en las
sentencias.
La agencia – tanto individual como colectiva – de las familias
transnacionales ecuatorianas en el caso de los y las menores bajo tutelaje
del estado italiano pusieron nuevamente en debate la noción de familia,
pertenencia, hogar y grado de parentesco tanto en los lugares de origen como
en los de destino.
Tanto los servicios sociales, la policía y, en la instancia superior,
el tribunal de menores en Italia tienen una injerencia notable y compleja
en las negociaciones de género y generacionales de las familias migrantes
ecuatorianas que han vivido procesos de reagrupación familiar complejos.
En todos los casos estudiados, aparece en el centro del conflicto el rol de las
madres migrantes, que está marcado por la precariedad laboral y residencial
que dificulta organizar el cuidado. Como ya hemos demostrado en las
investigaciones de la última década, las difíciles condiciones de trabajo de las
otras mujeres de la familia y la imposibilidad por las restricciones jurídicas de
reagrupar abuelas jóvenes y en buenas condiciones de salud, son condiciones
determinantes que no permite reorganizar una red de cuidado en destino.
Un dato llamativo en todos los relatos, tanto entre las familias, como entre
abogados/as, funcionarios de los consulados es la invisibilidad de los varones
en estos procesos. No obstante, en los testimonios de mujeres e hijos/
as se pone muy claramente de manifiesto una paternidad irresponsable o
situaciones de violencia que generan, entre otras cosas, una falta de recursos
económicos que agudizan las situaciones de precariedad.
Abordar esta problemática, desde una mirada interdisciplinaria
y orientada por el enfoque del litigio estratégico, permitió capturar las
complejas experiencias de discriminación de las mujeres inmigrantes en
el espacio jurídico italiano y los efectos de género que no son causados
por normas individuales, sino por la interacción de normas generalmente
y tradicionalmente atribuidas a campos legales separados. Esta estrategia
jurídica se basa en considerar a las mujeres inmigrantes no como individuos
aislados, sino como sujetos contextualizados, o sea, como sujetos inmersos
en redes relacionales. El trabajo de formación a funcionarios ecuatorianos
y a los equipos de abogados/as italianos/as contratados para patrocinar los
casos llevó a la recuperación de 46 menores de una mirada multidimensional,

128
transnacional y de género que adoptó el Estado ecuatoriano frente a una
mirada homogénea y monolítica de las mujeres (familias) migrantes de los
servicios sociales y el tribunal de menores en Italia. La interacción entre los
dos estados fue cambiando paulatinamente esta visión entre los funcionarios
del país de destino: la mujer definida como vulnerable por su condición de
extranjería.
La presencia del estado ecuatoriano en los lugares de destino como
respaldo político y jurídico a su comunidad migrante ha revertido poco a
poco estos procesos y estas miradas discriminatorias. Sin embargo, aún resta
mucho camino por andar. Es imprescindible continuar con las evaluaciones
sistemáticas de las estrategias política, jurídica, social (principalmente
con la comunidad ecuatoriana, aunque también con instituciones político-
administrativas, educativas, sanitarias en los lugares de destino y de origen
involucradas en la problemática) y comunicacional.

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135
136
CLARICE, PATROA
Sonia Roncador14

O almoço estava bem servido, inteiramente longe da idéia


de cozinha: antes da chegada das convidadas, haviam sido
retirados todos os andaimes. (LISPECTOR, 1984, p. 283)

Em agosto de 1967, Clarice Lispector (1920-1977) aceitaria a proposta


do colega e jornalista Alberto Dines, “sabendo-a necessitada de trabalho”
(“Clarice jornalista”, p. 8), para escrever crônicas sobre assuntos variados para
uma coluna semanal no Jornal do Brasil. O jornalismo já lhe havia servido
como meio oportuno (às vezes o único) para a promoção e publicação de
parte de sua obra ficcional por quase duas décadas. Além disso, segundo seus
biógrafos, a atividade jornalística lhe garantiu apoio financeiro, sobretudo
nos anos seguintes ao seu retorno definitivo ao Brasil, após quinze anos
no exílio em matrimônio com um diplomata. Contudo, a “carreira paralela”
como cronista e a participação no negócio lucrativo das colunas assinadas
por celebridades representou uma fonte de stress moral para a autora – ao
mesmo tempo preocupada com sua reputação intelectual e com sua forma
ou “estilo” de escrever ficção que, a seu ver, o exercício da crônica poderia
corromper. Em uma de suas primeiras crônicas para o Jornal do Brasil, “Amor
imorredouro” (9 de setembro de 1967), observa-se, sobretudo, o desconforto
da autora em “escrever para ganhar dinheiro” (A descoberta do mundo, p. 20),
14 Sônia Roncador é professora de literatura/cultura luso-brasileira, na Universidade
do Texas em Austin, e diretora do Centro de Estudos Brasileiros na mesma universidade.
Desde o término de seu doutorado em Literatura Comparada (Universidade de Nova York,
1999), ela publicou inúmeros artigos em revistas acadêmicas norte-americanas e brasileiras,
além de três livros: Domestic Servants in Literature and Testimony in Brazil (1889-1999),
(Palgrave Macmillan, 2014), A doméstica imaginária: literatura, testemunhos, e a invenção
da empregada doméstica no Brasil (1889-1999) (Editora Universidade de Brasília, 2008)
e Poéticas do empobrecimento: a escrita derradeira de Clarice Lispector (Annablume, 2002).
Seu novo projeto de pesquisa justapõe arquivos literários e científicos da imigração e
escravidão para demonstrar os paralelos entre as diásporas Africana e Portuguesa no Brasil.
roncador@austin.utexas.edu

137
o que comprometeria sua visão diletante da literatura e sobretudo o mito
da escritora mulher não profissional, o qual muitas intelectuais de sua
geração por uma razão ou outra terminaram por reforçar. Tais fatores, pois,
reforçariam uma espécie de “retórica de autodesqualificação” como cronista
em várias de suas contribuições ao longo de seus seis anos nesse jornal
(1967-73), além da necessidade de separar sua “verdadeira” vocação literária
do “circunstancial” ofício de cronista.
Neste capítulo sobre as ex-empregadas domésticas de Lispector
que frequentaram assiduamente as “conversinhas” ou “impressões leves”
na sua coluna assinada (seus termos), os conflitos de Lispector como
cronista ganhariam uma nuance temática especialmente reveladora de
sua posicionalidade enquanto mulher branca de classe média, ao mesmo
tempo consciente do papel de sua classe patronal na preservação da cultura
de servidão doméstica que tem persistente e profundamente configurado
o modus operandi do serviço doméstico remunerado no Brasil. Como
argumentam as sociólogas Raka Ray e Seemin Qayum (2009): “[A]queles
que vivem numa determinada cultura da servidão a aceitam como a ordem
natural das coisas, a maneira de ser do mundo e da casa […] a servidão se
normaliza de tal modo que se torna virtualmente impossível imaginar a vida
sem ela, e as práticas, pensamentos e sentimentos das práticas se organizam
segunda ela” (Cultures of servitude, p. 4). Como demonstro neste capítulo,
Lispector se posiciona criticamente à cultura da servidão estruturante da
vida familiar da classe média brasileira; ao mesmo tempo, ela se utiliza dessas
narrativas pessoais sobre suas relações intersubjetivas com ex-empregadas
domésticas como meio de revelar seu lugar social incômodo por usufruir de
privilégios moralmente incompatíveis à posição de intelectual politicamente
engajada com a qual ela e muitos escritores de sua geração se identificavam.
Em algumas dessas crônicas, como veremos, Lispector tenta compensar
tais conflitos associando-se a uma ética do cuidado como forma de relação
com suas empregadas. Contudo, esse gesto afetivo jamais se materializa em
ações concretas destinadas a melhorar as condições degradantes de suas
empregadas, desse modo revelando uma verdade expressa em outras de suas
crônicas sobre domésticas: os conflitos podem ser atenuados, mas jamais
resolvidos.

138
II

O cronista latino-americano tem sido estudado na sua função mediadora


nos processos de formação, problematização e consolidação de práticas
e identidades sociais nos espaços urbanos, especialmente a partir de seu
interesse em “comenta[r] a forma como vivemos, os costumes e valores
morais no contrato social das grandes cidades”. (“Lispector, cronista”, p. 98).
Tendo a crônica no Brasil se estabelecido como um “gênero de escritor”,
mas sem perder a autoridade epistemológica do jornalismo, o cronista é
igualmente reconhecido por “sobressair-[se] no registro do cotidiano em
toda a sua urgência, na sensibilidade à fascinante diversidade da vida, na
construção de cenas completas em vez de, secamente, recontar as notícias
(“Lispector, cronista”, p. 98). No caso particular das crônicas de Lispector,
interessa-me em particular a “construção de cenas completas” das relações
cotidianas intersociais/raciais no espaço doméstico urbano e burguês. O
conjunto de suas crônicas reeditadas na coletânea A descoberta do mundo
(1984) revela que, dentre suas experiências da diversidade sociocultural no
contexto urbano carioca, as que se registraram com maior frequência em sua
coluna semanal foram suas relações com distintas ex-empregadas domésticas
(pelo menos dez crônicas da referida coletânea dedicam-se ao tema).
A frequente alusão às empregadas domésticas no ambiente urbano de
suas crônicas demonstra o que é uma realidade para várias famílias de classe
média no país: incorporada ao ambiente íntimo da casa na condição de um
“outro domesticado” (CLIFFORD, 1988), a empregada doméstica constitui a
relação mais duradoura, e pessoal, que um membro da classe média se permite
estabelecer com a pobreza. O fato de que Lispector se valeu do espaço de
sua coluna aos sábados para produzir sua imagem pública como intelectual
brasileira perante as tensões e traumas sociais não resolvidos certamente teve
um impacto no repertório das personagens domésticas selecionadas para
essas crônicas. Num sentido sua coluna assinada lhe serviu para negociar e
justificar sua fama de escritora introspectiva e formalmente experimental,
num período da história cultural quando escritores se sentiam compelidos
a produzir textos com temáticas políticas explícitas _ em decorrência, como
sabemos, do regime militar autoritário que se instalou no país por 21 anos.
Por outro lado, como procuro demonstrar, a autora enfrentou o desafio
evitado por outros escritores de sua geração e classe social: o de exemplificar,

139
através de suas crônicas pessoais sobre ex-empregadas domésticas, as
contradições inerentes à sua autopromoção como intelectual socialmente
responsável frente a sua posição de autoridade e privilégios sócio raciais.
Em uma crônica de sua coletânea A legião estrangeira (1962),
“Literatura e justiça”– uma resposta às acusações recebidas nesses anos pelo
descompromisso social e político de sua literatura, – Lispector argumenta
que o fato de não “saber como [s]e aproximar “de um modo literário […] da
‘coisa social’” não refletia, no seu caso, a falta dos sentimentos “de justiça”,
obrigação e responsabilidade social. “Desde que me conheço,” escreve a
autora, “o fato social teve em mim importância maior do que qualquer
outro: em Recife, os mocambos foram a primeira verdade para mim” (Legião,
p.149). Não é novo o argumento de que Lispector, ao contrário de sua
própria autodefesa, na verdade soube aproximar-se “literariamente” do fato
social, embora esse tema tenha sido mais frequente e relevante em sua obra
literária na década de 70. Em outra crônica publicada na sua coluna no Jornal
do Brasil, “O que eu queria ter sido” (2 de novembro de 1968), Lispector uma
vez mais associaria o impacto do drama social dos pobres às suas incursões
infantis pela periferia de Recife, como também desassociaria sua literatura de
seu sentimento interno de justiça social. Nessa segunda crônica, porém, ela
introduz a figura mediadora de uma empregada doméstica, sem a qual suas
idas aos mocambos não se teriam realizado: “Em Recife, eu ia aos domingos
visitar a casa de nossa empregada nos mocambos. E o que eu via me fazia
como que me prometer que não deixaria aquilo continuar. Eu queria agir” (A
descoberta do mundo, p. 217). Como revelam ambas as crônicas, a consciência
ética adquirida na infância (o que lhe rendera na família o apelido de “a
protetora dos animais”, p. 217), seguiria compelindo-a a uma “ação social” na
vida adulta – compulsão esta transformada em um senso de responsabilidade
(e, como veremos, obrigação maternal) que sua atividade como escritora,
segundo ela, não lhe permitia aliviar: “no entanto, o que terminei sendo, e
tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se
sente e usa a palavra que o exprima. É pouco, é muito pouco” (Descoberta, p.
218).15
15 Vale ressaltar o fato de que seu senso de responsabilidade social e a atitude
condescendente de “protetora dos animais” termina por reforçar certa ideologia maternalista,
que, segundo Judith Rollins, tende a definir as relações entre patroas e suas empregadas
domésticas.

140
Transitando entre dois mundos socialmente opostos, a doméstica
emerge em muitas circunstâncias históricas e subjetivas como uma ameaça
à ordem familiar e social da classe patronal. 16 Nas crônicas de Lispector,
a doméstica atua como faca de dois gumes: ela é a figura intermediária _ o
“outro domesticado” _ que conduz a autora a uma revelação social traumática,
embora edificante (função esta que Lispector soube tão bem explorar na
figura da empregada Janair, no romance A paixão segundo G. H.). Por outro
lado, conquanto ela mesma uma mulher de origens social e cultural distintas
da autora, a doméstica é também aquela que injeta no mundo doméstico
“protegido” o drama da exploração social. Além disso, como argumenta Lucia
Villares, a figura da empregada doméstica igualmente força a autora a se
confrontar com o problema da diferença e hierarquia raciais; ou seja, “a se
colocar numa posição de privilégios em que sua branquidade se torna visível”
(“Welcoming”, p. 80).
Em uma das várias crônicas em que Lispector alude às empregadas
domésticas, “Dies Irae” (14 de outubro de 1967), ela escreve: “E ter empregadas,
chamemo-las de uma vez de criadas, é uma ofensa à humanidade” (Descoberta,
p. 33). O tom “irado” dessa passagem revela a diferença no tratamento dado
às domésticas nas colunas “femininas” de sua autoria (1952/1959-61) e
aquele predominante alguns anos mais tarde na coluna semanal do Jornal
do Brasil.17 Em ambos os contextos, a autora enfoca as dificuldades inerentes
16 A empregada doméstica como signo de mediação entre mundos opostos (casa/
rua; sala de visita/fundos da casa; etc.) aparece frequentemente na literatura, sobretudo
nas memórias de infância. Consultar o estudo de Leonore Davidoff sobre a doméstica nas
memórias infantis do período britânico vitoriano “Class and Gender in Victorian England”
(In: Worlds Between: Historical Perspectives on Gender and Class. Cambridge: Polity Press,
1995); consultar também a análise sobre a doméstica na configuração do desejo do infante
Walter Benjamin em Peter Stallybrass & Allon White “Below Stairs: the Maid and the Family
Romance” (In: The Politics and Poetics of Transgression. Ithaca: Cornell University Press, 1986).
Em Lispector, um dos exemplos mais interessantes da doméstica na sua função de mediadora
entre o universo burguês e o da miséria aparece em uma passagem, ainda inédita, de seu
manuscrito “Objeto gritante” (sobre a passagem em questão, ver meu ensaio “Nunca fomos
tão engajadas: Style and Political Engagement in Contemporary Brazilian Women’s Fiction”.
In: Anne J. Cruz et al. (ed.). Disciplines on the Line: Feminist Research on Spanish, Latin
American, and U.S. Latina Women. Newark, de: Juan de la Cuesta Press, 2003).
17 Sua produção pouco conhecida como colunista de assuntos “para mulheres” em
alguns jornais cariocas foi parcialmente publicada após o exaustivo trabalho de Aparecida
Maria Nunes, que selecionou e editou suas crônicas femininas em três coletâneas: Correio
feminino (2006), Só para mulheres: conselhos, receitas e segredos (2002), e Clarice na cabeceira:
jornalismo (2012) _ todas pulicadas pela Rocco editora.

141
à relação patroa-empregada, ou os desencontros domésticos entre mulheres
de duas classes, e geralmente raças distintas, embora apresente razões
opostas para tais conflitos: ao contrário de suas colunas para mulheres,
nessas crônicas tardias, Lispector associa a dificuldade da relação não aos
defeitos de personalidade e serviços da empregada, mas, precisamente, à sua
condição servil.
Em outra crônica no Jornal do Brasil, “Por detrás da devoção” (2 de
dezembro de 1967), Lispector problematiza a visão idealizada da “devoção”,
ou servilismo, como expressão de amor, gratidão e lealdade da classe
trabalhadora; pode-se, como ela mesma argumenta, ser devota “odiando”.
Na crônica em questão, Lispector se refere especificamente às personagens
domésticas da peça As criadas, de Jean Genet, que ela então acabara de
assistir. “Fiquei toda alterada”, ressalta a autora, revelando a seus leitores
o trauma dessa experiência: “Vi como as empregadas se sentem por dentro,
vi como a devoção que às vezes recebemos delas é cheia de um ódio mortal”
(Descoberta, p. 54). Segundo Lispector, “a escravidão aos donos é arcaica
demais para poder ser vencida” e, por isso, “às vezes o ódio não é declarado,
toma exatamente a forma de uma devoção e de uma humildade especiais”.18
Tal reflexão a faz pensar, por exemplo, no “ódio não declarado” de uma
ex-empregada doméstica, a acima referida argentina Maria Del Carmen:
“Pseudamente me adorava. Nas piores horas de uma mulher – saindo do
banho com uma toalha enrolada na cabeça – ela me dizia: como usted é linda.
Bajulava-me demais” (Descoberta, p. 54-5).19
Contudo, sem diminuir o valor da narrativa do ódio social e as formas
censuradas que esse sentimento pode tomar (pseudo adorações, excessivas
bajulações), concordo com Marta Peixoto (2002) que a autora “reserva[ria]
para a sua ficção – especialmente A paixão segundo G.H. – uma visão mais crítica
dessa relação, carregada de emoções negativas” (“Fatos”, p. 111). Talvez por
atenção às “convenções” do gênero da crônica (para ela, “impressões leves”,
18 Sua referência à escravidão doméstica constitui uma das raras passagens em suas
crônicas em que raça é tratada como fator relevante na estruturação das relações entre patroas
e empregadas.
19 Como revela Vilma Arêas, em “Peças avulsas”, a visão do “ódio censurado” da
empregada doméstica aparece em sua literatura a partir da leitura pessoal de um artigo de
jornal, “Un ‘prolétariat’ en Tablier Blanc”, assinado por Elvire de Brissac, e publicado no Le
Monde no dia 14 de março de 1963. Segundo a matéria em questão, as “condições psicológicas”
desse grupo social, ou os sentimentos que constituem sua relação com os patrões, são
precisamente o ressentimento reprimido, a humilhação e a alienação.

142
ou narrativas de entretenimento), e sobretudo para se livrar de possíveis
constrangimentos que o papel de patroa lhe reservava, Lispector elabora na
sua coluna semanal distintas estratégias para “atenuar diferenças e ressaltar
semelhanças inesperadas” com suas (ex-)empregadas (“Fatos”, p. 113).
Aceitando a sugestão bem-humorada da irmã Tania Kaufmann de que “cada
um tem a empregada que merece” (Lispector, Descoberta, p. 51), a autora
presenteia os sábados de seus leitores com alguns fatos divertidos sobre sua
cozinheira vidente, a ex-empregada “que fazia análise, juro” (Descoberta, p.
55), ou “uma outra, que foi comigo para os Estados Unidos, por lá ficou depois
que vim embora, para casar-se com um engenheiro inglês” (Descoberta, p.
55). Além disso, segundo Peixoto (2002), “o retrato lírico e suave” de algumas
de suas empregadas – que “aceita diferenças de experiência e valores e
perdoa roubos discretos” (“Fatos”, p. 115) – igualmente revela o tratamento
predominante da empregada doméstica nas crônicas de Lispector para o
Jornal do Brasil: a escritora fala de “culpa, tensões e estranhamento” (“Fatos”,
p. 115) derivados de suas inúmeras relações com empregadas, embora
procure superá-los por meio do humor ou do lirismo.
Para “atenuar” as diferenças sociais trazidas para o seu mundo
doméstico por uma “criada”, ela tende a ressaltar certas excentricidades
da personalidade de suas empregadas que desviam o foco da relação
de exploração para áreas menos constrangedoras desse entrosamento
intersocial/racial diário. Contudo, se por um lado ela liberta suas empregadas
de certos estereótipos negativos (alguns deles utilizados em suas colunas
para mulheres), por outro, ela termina por fixá-las numa nova taxionomia
de personalidades e manias. Tipos como a cozinheira cômica, empregadas
com vocação artística e um senso agudo de psicologia humana, ou mesmo
as “inconscientes” (por surtos psicóticos ou breves “ausências mentais”)
terminam por se integrar mais ao universo ficcional de suas personagens que
ao constrangedor espaço doméstico das diferenças sociais. O investimento
de Lispector para “atenuar” tais diferenças e “ressaltar semelhanças
inesperadas”, porém, nem sempre lhe parece um projeto possível de se
realizar. Em uma passagem de seu manuscrito “Objeto gritante”, Lispector,
por exemplo, antecipa o susto de incompreensão que sua empregada
“sertaneja”, Severina, sentiria quando pela primeira vez diante do mar: “É
capaz de sentir-se mal. Porque o mar não é compreensível. É sentido e é
visto. Estou me pondo na pele desta empregada que se chama Severina. E

143
eu sendo ela fico toda assustada. Devo ter visto uma primeira vez o mar.
Só que não me lembro…” (“Objeto gritante”, p. 71).20 Como se sabe, o mar
constitui um importante motivo na obra de Lispector; na sua escrita, um
simples ato de entrar no mar pode converter-se em ritual solene. Dentre
outros fatores, o mar exerceu um verdadeiro fascínio na autora por estimular
suas reflexões sobre as possibilidades de expansão máxima de si mesma e
de verdadeiros contatos com existências não humanas. Na passagem acima
citada, Lispector projeta no encontro inédito de sua empregada com o mar
uma reação semelhante a de suas personagens literárias, e a dela própria,
para em seguida desistir dessa projeção: “Mandarei embora Severina: ela é
oca demais. Não tive coragem de ir levá-la a ver o mar: temia sentir por ela
o que ela não sentisse. É nordestina e é oca de tanto sofrimento”. (“Objeto
gritante”, p. 74).
É, portanto, dos relatos sobre as empregadas “surpreendentemente”
talentosas, perceptivas e sagazes que a autora cria o panorama típico das
domésticas que frequentam as suas crônicas. Por um lado, Lispector ressalta
o sentido e efeito poéticos de frases ditas pelas domésticas em suas interações
diárias, como é o caso, por exemplo, de sua empregada Rosa, em “A italiana”
(4 de abril de 1970; anteriormente publicada em A legião estrangeira como
“Uma italiana na Suiça”): “não sei mesmo porque gosto mais do outono do
que das outras estações, acho que é porque no outono as coisas morrem tão
facilmente [...]. Também diz: ‘A senhora alguma vez já chorou como uma
boba e sem saber por quê? Pois eu já!’ – e cai na gargalhada” (Descoberta,
p. 432).21 Em “Conversa puxa conversa à toa” (16 de maio de 1970),
Lispector, ademais, surpreende sua cozinheira “cantando uma melodia
linda, sem palavras, uma espécie de cantilena extremamente harmoniosa.
Perguntei-lhe de quem era a canção. Respondeu: é bobagem minha mesmo”.
(Descoberta, p. 444). Contudo, tal qual sucede com outros projetos de
valorização estética da expressão popular, nessas crônicas, Lispector tem que
se servir de sua autoridade artística para agregar às palavras “poéticas”, ou
melodias “harmoniosas” de suas empregadas, um valor simbólico alheio à
intenção das mesmas. Como ela mesma admite, com respeito a tal cozinheira
cuja “boca sabe cantar”, “ela [a empregada] não sabia que era criativa”
(Descoberta, p. 444).
20 LISPECTOR, Clarice. “Objeto gritante”. Arquivo de Clarice Lispector. In: Arquivo-
Museu de Literatura da Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 1971.
21 Como a autora explica nessa crônica, trata-se de uma empregada imigrante da Itália
durante seus anos em Berna, na Suíça.

144
Em uma de suas crônicas mais interessantes sobre o tema das
domésticas, “O lanche” (7 de março de 1970; publicada em A legião
estrangeira com o título “O chá”), Lispector igualmente ressalta o impacto
poético (embora involuntário) de várias frases soltas, por ela atribuídas às
empregadas que tivera ao longo da vida. Nessa crônica, a autora imagina-se
anfitriã de um chá oferecido “a todas as empregadas que já tive na vida” –
“quase um chá de senhoras, só que nesse não se falaria de criadas” (Descoberta,
p. 423). À parte o tom irônico da comparação, a narração desse imaginado
encontro social não se propõe a retratar realisticamente esse “quase chá de
senhoras”. Em primeiro lugar, o cenário imaginado para o chá/lanche seria a
Rua do Lavradio, por onde mais tarde transitaria sua personagem Macabéa,
de A hora da estrela (1977). Além disso, ela mistura elementos de um cenário
urbano periférico (zona portuária carioca) com “um certo clima de teatro do
absurdo” (Arêas, “Peças”, p. 563): à princípio “sentadas, de mãos cruzadas no
colo […] e mudas” (Descoberta, p. 423), as domésticas, “rediviva[s], morta-
viva[s]” passam a “recitar” frases, outrora ditas de um modo espontâneo
e que, pelo efeito de humor, beleza, banalidade, revelação ou mesmo
desconforto ficaram retidas na memória da autora: “Mudas – até o momento
em que cada uma abrisse a boca e, rediviva, morta-viva, recitasse o que eu me
lembro” (Descoberta, p. 423).
Lispector, por exemplo, volta a “se lembrar” do que lhe dissera a acima
mencionada empregada italiana, Rosa, ao ouvir o comentário de um estranho
na rua sobre a queda simultânea das últimas folhas de outono e a primeira
neve: “‘É a chuva de ouro e de prata.’ Fingi que não ouvi porque se não tomo
cuidado os homens fazem de mim o que querem” (Descoberta, p. 424). Às
vezes, porém, confessa que uma única frase banal, como “Gosto de filme de
caçada”, “foi tudo o que me ficou de uma pessoa inteira” (Descoberta, p. 424).
É provável, por outro lado, que do convívio cotidiano com suas empregadas
domésticas, a autora tenha aprendido que na banalidade de certas frases
encontram-se duras verdades, tais como “Quando eu morrer, umas pessoas
vão ter saudade de mim. Mas só isso” (Descoberta, p. 424). Observa-se em
uma outra frase “recitada” por uma de suas ex-domésticas a revelação de que
o amor maternal pode-se manifestar em forma de um desejo violento, nem
sempre reprimido (tema de seu famoso conto “A legião estrangeira”): “Era um
miúdo tão bonito que até me vinha a vontade de fazer-lhe mal” (Descoberta, p.
424). Mas é da frase recitada pela “mais antiga de todas” que Lispector parece

145
tirar a lição mais profunda – transformada em perdão – dessa “crueldade de
amor”, ou “ternura amarga”, para ela um produto da humilhante condição
servil da empregada doméstica:

Lá vem a lordeza - levanta-se a mais antiga de todas, aquela


que só conseguia dar ternura amarga e nos ensinou tão cedo a
perdoar crueldade de amor. - A lordeza dormiu bem? A lordeza
é de luxo. É cheia de vontades, ela quer isso, ela não quer aquilo.
A lordeza é branca. (Descoberta, p.424)

O efeito estético de um “certo clima de teatro do absurdo”, assim


como a ênfase na performance da recitação das frases, demonstram que,
se por um lado a autora se propõe a “dar voz” às empregadas por meio da
citação de frases como as acima citadas, por outro, introduz tais frases de
forma descontextualizada – o que intensifica sua força poética, mas dilui
sua função prática e, em alguns casos, política. Além disso, limitada pela
memória, Lispector recupera de seu convívio com várias domésticas somente
aquelas frases que lograriam diminuir a incômoda e culposa distância
social. Num sentido, ela “ressuscita” por meio desse curioso chá de criadas
fantasmais os fragmentos (verbais) desse convívio que constituem o quadro
geral das domésticas que a autora haveria gostado de ter, e de “merecer”.
A singularidade das empregadas domésticas de Lispector não passou
desapercebida do escritor Paulo Mendes Campos, em cuja crônica “Minhas
empregadas”, comenta, com certo ciúme, sobre as “sutilezas” (p. 186) ou
“certas finuras de reações psicológicas” das domésticas da amiga, quando ele,
ao contrário, via-se “bastante fatalizado a ter empregadas um pouco, como
se diz, sôbre a débil mental” (Campos, “Minhas empregadas”, p. 185). Segundo
Campos, “a falar frequentemente coisas que lembram as personagens”,
muitas domésticas de Lispector terminam por “imita[r]-lhe a arte” (“Minhas
empregadas”, p. 185). O último parágrafo de “O lanche”, na verdade um longo
collage de partes das frases recitadas nesse pseudo “chá de senhoras”, pode-se
aplicar ao comentário de Campos: por um lado, Lispector ressalta, por meio
da fala de suas domésticas, certos aspectos invisíveis de suas “condições
psicológicas”; por outro, ela manipula a fala da doméstica (por seleção,
composição, cortes, descontextualização) de forma a enfatizar muito mais
suas próprias preferências estéticas e temáticas do que as possíveis tensões
que essa fala certamente geraria em seu contexto real:

146
– Comida é questão de sal. Comida é questão de sal. Comida é
questão de sal. Lá vem a lordeza: te desejo que obtenhas o que
ninguém pode te dar, só isso quando eu morrer. Foi então que
o homem disse que a chuva era de ouro, o que ninguém pode
te dar. A menos que não tenhas medo de ficar toda de pé no
escuro, banhada de ouro, mas só na escuridão. A lordeza é de
luxo pobre: folhas ou a primeira neve. Ter o sal do que se come,
não fazer mal ao que é bonito, não rir na hora de pedir e nunca
fingir que não se ouviu quando alguém disser: esta, mulher, é a
chuva de ouro e de prata. Sim. (Descoberta, p. 424)

Em suas crônicas semanais sobre as empregadas domésticas,


Lispector, pois, reconhece as tensões desse convívio doméstico intersocial/
racial, embora tomada de constrangimento e culpa, ela tente dissolver tais
tensões por meio da narração de situações bem humoradas. Além disso,
a autora valoriza os potenciais perceptivo e criativo das domésticas como
meio de desviar para os aspectos dessa relação diária que pudessem aliviar a
constrangedora desigualdade social, e condição servil das mesmas. Contudo,
ela às vezes se ressente de não poder realizar esse gesto “redentor”, como é
o caso da acima mencionada doméstica Severina, a nordestina “oca”, a qual,
talvez por reforçar (em vez de diminuir) sua culpa, ela termine por demitir:
“Quero empregada toda viva embora me dê mais trabalho”, justifica a autora.
“Não posso ter coisa morta em casa” (“Objeto gritante”, p. 75).

III

Várias crônicas de Lispector revelam, porém, que “empregada toda viva”


pode ser igualmente problemático, não somente por lhe “dar mais trabalho”,
mas também por desrespeitar os protocolos de comportamento servil e as
fronteiras sociais que a autora, embora culpada, não se interessa em romper.
Por exemplo, na crônica “A mineira calada” (25 de novembro de 1967), a
empregada Aninha parece superar-se de seu estado “oco”, semimorto, por
meio de uma inusitada interpelação à autora/patroa; nesse caso, um pedido
a Lispector para que esta lhe emprestasse um de seus livros. A sequência de
sustos, hesitações, fingimentos e, finalmente, recusas por parte da autora
revela que a mesma tampouco deseja substituir uma relação de exploração
social (não obstante o constrangimento que esta lhe impingia) por um

147
contrato social menos “hierárquico” entre autor e leitor: “Já que eu não queria
lhe dar livro meu para ler, pois não desejava atmosfera de literatura em casa,
fingi que esqueci” (Descoberta, p. 53).
No início da crônica, patroa e empregada executam silenciosamente
as atividades domésticas que a um só tempo as definem na organização
hierárquica do serviço doméstico e as separam física e socialmente: “Um dia
de manhã estava [a empregada] arrumando um canto da sala, e eu bordando
no outro canto”. (Descoberta, p. 51). O pedido acima referido da empregada,
embora feito em voz “abafada”, vem, contudo, perturbar não somente o
confortável silêncio daquela manhã, como também trazer à tona a tão
constrangedora diferença social: “Fiquei atrapalhada”, revela a autora. “Fui
franca: disse-lhe que ela não ia gostar de meus livros porque eles eram um
pouco complicados” (Descoberta, p. 51). O uso do humor ao final da crônica
revela, repito, que o reconhecimento da autora das tensões e desencontros
inerentes ao seu dia-a-dia com as domésticas não se realiza sem que ela, ao
mesmo tempo, tente atenuar (mas sem resolver) tais tensões: “Foi então que,
continuando a arrumar, e com voz ainda mais abafada, respondeu: ‘Gosto
de coisas complicadas. Não gosto de água com açúcar” (Descoberta, p. 51).
Lispector reservaria a narração da continuação desse breve interlúdio com sua
empregada Aninha para a já citada crônica “Por detrás da devoção”, publicada
no sábado seguinte à “A mineira calada”. Para compensar a recusa em atender
o pedido de sua empregada, “pois não desejava atmosfera de literatura em
casa”, a cronista, “em troca, de[u]-lhe de presente um livro policial que [ela]
havia traduzido” (Descoberta, p. 53). Porém, a despeito dos preconceitos da
autora, a crônica revela que as preferências literárias da empregada Aninha
não pareciam incluir um tipo de literatura que Lispector julgava mais
acessível: ‘Acabei de ler’, diz Aninha, referindo-se ao livro policial traduzido
por Lispector. ‘Gostei, mas achei um pouco pueril. Eu gostava era de ler um
livro seu’. É renitente a mineira. E usou mesmo a palavra ‘pueril’ (Descoberta,
p. 53). É possível, sem dúvida, relacionar essas passagens sobre os gostos
literários de Aninha às críticas negativas que Lispector recebeu sobre o
hermetismo de sua literatura; em outras palavras, a autora pode haver-se
valido das respostas, inventadas ou não, de uma doméstica para revidar com
ironia a opinião então corrente entre leitores e alguns críticos de que seus
livros eram excessivamente obscuros e antipopulares. Contudo, sua recusa
em compartilhar sua produção literária com uma doméstica revela, por outro

148
lado, que a autora, embora ressentida dos ataques críticos, tampouco parecia
interessada em se promover como escritora lida e apreciada por membros de
distintas classes sociais.22
A empregada Aninha seria tema de mais duas crônicas para sua
coluna no Jornal do Brasil: “Das doçuras de Deus” e “De outras doçuras de
Deus” (16 de dezembro de 1967). Mas, ao contrário das crônicas anteriores
sobre essa “mineira calada” que gostava de ler textos complicados, aqui o
humor e a ironia são substituídos pelo lirismo. Lispector elegeria o mesmo
tom lírico para uma outra crônica sobre (ex-) empregadas domésticas, “Como
uma corça” (27 de janeiro de 1968). Em ambas as crônicas, a mudança ou
substituição de tom constitui, a meu ver, a materialização de um sentimento
maternal, o qual a autora reservaria somente para poucas domésticas, em
particular às que se associam ao tipo “inconsciente” acima mencionado.
Em “Como uma corça”, a “inconsciência” da empregada em questão, de nome
Eremita, associa-se aos seus momentos de “repouso” ou “ausência” mental:
“porque tinha ausências”, explica a cronista, “o rosto se perdia numa tristeza
impessoal e sem rugas. Uma tristeza mais antiga que o seu espírito. Os olhos
paravam vazios; diria mesmo um pouco ásperos. A pessoa que estivesse ao
seu lado sofria e nada podia fazer. Só esperar” (Descoberta, p. 85). Em “Das
doçuras de Deus”, como demonstro abaixo, a “ausência mental” da empregada
Aninha adquire um aspecto patológico, embora ao mesmo tempo “doce” e
“áspero”.
É válido, por um lado, associar o interesse especial de Lispector
por suas domésticas “inconscientes” à sua longa trajetória de exploração e
valorização de modos de experiências irracionais, ou nos termos da narradora
de Água viva, o que se experimenta quando corajosamente se liberta dos
limites impostos pelo “raciocínio” para adquirir, “atrás do pensamento”, a
visão paradoxal do informe: “mas agora quero o plasma – quero alimentar-
22 Lispector mencionaria uma vez mais o uso por uma doméstica de vocábulos eruditos,
sofisticados, ou seja, “próprios” da classe patronal, para narrar uma situação de “enigma”
social. Na crônica em questão, “Enigma” (26 de abril de 1969), ela encontra casualmente no
elevador de seu prédio uma mulher que “falava como dona-de-casa, seu rosto era o de dona-
de-casa” (Descoberta, p. 282), porém, entrara em “sua” casa “pela porta de serviço” e ademais
“estava uniformizada”. No entanto, por se tratar de empregada alheia, esse estremecimento de
fronteiras sociais não a “atrapalha”; o humor final dessa crônica aparece mais por obediência
às suas “convenções” genéricas, do que por uma necessidade da autora: “E – juro – acrescentou
o seguinte: ‘A vida tem que ter um aguilhão, senão a pessoa não vive’. E ela usou a palavra
aguilhão, de que eu gosto” (Descoberta, p. 282).

149
me diretamente da placenta” (Lispector, Água viva, p. 9). No contexto de
suas crônicas sobre empregadas domésticas, por outro lado, essa experiência
inspira um interesse particular por se apresentar como possibilidade de
redenção da condição servil desse grupo social. Talvez seja essa a razão pela
qual, ao contrário das expectativas de sua classe patronal, a cronista, em
“Como uma corça”, mostra-se mais interessada no quase-nada produtivo das
“ausências”, ou “repousos” da empregada Eremita do que em seus serviços.
Além disso, mesmo quando reintegrada à ordem dos afazeres domésticos
capitalizados (“lavar a roupa”, “enxugar o chão”, “estender lençóis”), Eremita
mantém-se acima de sua condição de criada, posto que tais tarefas convertem-
se nesse texto em simulacro de um ritual primitivo de adoração “a outros
deuses”. Em confluência a outras crônicas, Lispector descreve os momentos
ausentes de Eremita, rebatizada de “a infante misteriosa”, como perigosa
descida de si para si mesma, ou melhor, para a “profundeza” e “escuridão”
(Descoberta, p. 85) de si mesma (“Sim, havia profundeza nela”).
Na crônica “Estado de graça – trecho” (6 de abril de 1968), essa descida
constitui uma “abertura para o paraíso” (Descoberta, p. 121); aqui, ela é um
“atalho para a floresta” (Descoberta, p. 85). Segundo a cronista, regressada
da “floresta”, Eremita punha-se a executar subversivamente suas obrigações,
pois que ao aparentar (simular?) obediência à patroa, na verdade “servi[a]
muito mais remotamente, e a outros deuses”: “Pois se alguém prestasse
atenção veria que ela lavava roupa – ao sol; que enxugava o chão – molhado pela
chuva; que estendia lençóis – ao vento” (Descoberta, p. 86). “Como uma corça”
é, nesse sentido, uma de suas representações mais transgressoras da ordem
social, onde se instala a relação hierárquica patroa-empregada; ao mesmo
tempo, ironicamente, esse texto constitui um dos tipos mais confortáveis de
empregada doméstica em suas crônicas, onde até mesmo os signos sociais
associados a Eremita – a “fome”, “má-criação de empregada mesmo”, “medo”
e “roubos” – são naturalizados, ou desprovidos de um sentido político-
ideológico, para servirem à imagem misteriosa e insubjugável da moça: “Pois
não havia no seu espírito nenhum endurecimento, nenhuma lei perceptível.
‘Eu tive medo’, dizia com naturalidade. ‘Me deu fome!’ dizia, e era sempre
incontestável o que dizia, não se sabe por quê”. (Descoberta, p. 84).
É somente na crônica “Das doçuras de Deus” que Lispector, ao
contrário, revela as frustrações, e falhas, implicadas na tentativa de compor

150
uma imagem empoderada, e redimida de culpa, de suas empregadas. Ao início
de “Das doçuras de Deus”, Lispector se dirige aos seus leitores, em tom quase
acusatório, para apontar-lhes a indiferença, e esquecimento, à sua empregada
Aninha, a despeito de que apenas duas semanas haviam-se passado desde
a publicação de “Por detrás da devoção”: “Vocês já se esqueceram de minha
empregada Aninha, a mineira calada, a que queria ler um livro meu mesmo
que fosse complicado porque não gostava de ‘água com açúcar’” (Descoberta,
p. 60). Chama-me a atenção a ambivalência dessa passagem de Lispector, que
denuncia o esquecimento de seus leitores (reflexo, por certo, de uma cultura
dominante de indiferença às domésticas), reconhecendo-lhes, por outro lado,
a admiração e fidelidade enquanto leitores constantes de suas crônicas; tal
passagem revela que Lispector, já passados alguns meses desde sua primeira
crônica no Jornal do Brasil, pressupunha haver conquistado um público de
leitores fiéis, que acompanhava regularmente os textos de sua coluna aos
sábados. Ao mesmo tempo, causava-lhe certo constrangimento beneficiar-
se de um sistema social em que escritores recebiam o carinho e a lealdade,
de um público, que por sua vez era incapaz de tratar da mesma maneira as
suas empregadas. Além disso, a autora denuncia o esquecimento dos leitores,
que contrasta com suas qualidades de patroa afetuosa e o lirismo dominante
nesse texto: “O que eu não disse talvez foi que, para ela existir como pessoa,
dependia muito de se gostar dela. Vocês a esqueceram. Eu nunca a esquecerei”
(Descoberta, p. 60).
A cronista “nunca se esqueceria” de uma manhã em que Aninha
retornara à casa, de uma suposta ida ao mercado, com o dinheiro ainda
amassado em uma das mãos, e na outra o saco de compras cheio de tampinhas
de garrafa e pedaços de papel sujo, para “enfeitar [s]eu quarto”. Examinada
por um médico residente do Instituto Pinel, a moça foi prontamente
diagnosticada como vítima de um surto psiquiátrico e levada para internação,
não sem a intervenção de algumas amizades influentes da autora. A maneira
singular como a patologia de Aninha é descrita revela que, não obstante o
afeto e carinho da patroa, fora preciso que a empregada enlouquecesse para
efetivamente “poder existir como pessoa”. Em primeiro lugar, Aninha (que
a autora sem saber o motivo insistia em chamá-la “Aparecida”) “estava um
pouco mais ‘aparecida’, como se tivesse dado um passo à frente” (Descoberta,
p. 60). Além disso, ela adquirira uma “expressão pueril e límpida”: “doçura
maior nunca vi”, reforça a autora (Descoberta, p. 61). O breve diálogo

151
entre Lispector e o médico psiquiatra, “quem vim a saber ser o acadêmico
Artur” (Descoberta, p. 62), no entanto, sequestra a autora de seu mundo de
“expressões pueris” e “doçuras” para a realidade social daquela que somente
para ela “estava um pouco mais aparecida”: Aninha, na verdade, não passava
para os demais de uma criada. Ao inteirar-se da identidade da autora, o
psiquiatra residente – ele mesmo um leitor de Lispector – estava “mais
emocionado comigo do que com Aninha” (Descoberta, p. 62). Repete-se,
portanto, agora no nível da história, a mesma sensação de desconforto que
às vezes a admiração (neste caso, de seus leitores) pode causar, sobretudo
quando esta se apoia na injusta hierarquia social: “E ele acrescentou simpático,
efusivo, mais emocionado comigo do que com Aninha: ‘Pois tenho muito
prazer em conhecê-la pessoalmente.’ E eu, boba e mecanicamente: ‘Também
tenho’” (Descoberta, p. 62). Por outro lado, como argumenta Debra Castillo
(2007), evidencia-se nessa troca desequilibrada de efusões e simpatias (por
parte do médico) e respostas mecânicas e abaladas (de Lispector) a própria
posição social instável da autora, condicionada pelos “pressupostos de classe
e sexo” (Castillo, “Lispector, cronista”, p. 105). De fato, a pergunta “A senhora
é escritora?” – primeiramente feita pela empregada Aninha e, em seguida,
pelo médico residente – gera duas respostas distintas, dependendo da
posição social ocupada por Lispector: “autoritária no primeiro caso, confusa
e subordinada no segundo” (“Lispector, cronista”, p. 105).
Além de lhe dar a “expressão pueril e límpida” de uma pessoa, ainda
nos termos de Lispector, “brandamente desperta” (Descoberta, p. 62), a
“doçura doida” de Aninha era, por assim dizer, contagiante: “Também eu
sentia uma doçura em mim, que não sei explicar. Sei, sim. Era de tanto amor
por Aninha” (Descoberta, p. 61); ou ainda: “A casa estava toda impregnada
de uma doçura doida como só a desaparecida podia deixar” (Descoberta, p.
62). Mas essa não é a primeira vez em suas crônicas que a autora ressalta
o componente “contagiante” da “doçura”: “A doçura contagia: também me
aquieto”, escreve Lispector em “Corças negras” (5 de abril de 1969; publicada
em A legião estrangeira como “África”) quando “cercada de pretas moças
e esgalhadas” (Descoberta, p. 271), em sua breve passagem pela Libéria.
Nessa crônica, Lispector descreve uma série de tentativas frustradas de
comunicação com os moradores das “vilas de Tallah, Kebbe e Sasstown,
dentro da Libéria” (Descoberta, p. 270), onde um sinal de adeus (“já que eles
gostam tanto de dar adeus”) pode ser respondido com “gestos obscenos”

152
(Descoberta, p. 270), uma frase longuíssima em que “não reconheço um só
r ou s, apenas variações na escala do l” (Descoberta, p. 271) é resumida pelo
intérprete com um brevíssimo “She likes you”, e onde até mesmo o inglês mal
assimilado pelos nativos soava como “um dialeto local” (Descoberta, p. 270).
Pois, para contrastar com esses lapsos de linguagem e gestos, ou precisamente
no momento em que a autora, “sem jeito”, tenta mostrar o uso de seu
lenço de cabeça a um grupo indiferente de pretas moças, ela se contagia da
“doçura”, cuja única manifestação concreta consistia, assim como no caso da
empregada “doida e mansa”, em certa expressão no rosto: “Nos rostos opacos
as listas pintadas me olham. A doçura contagia…” (Descoberta, p. 270). O
estado de doçura é tão misterioso, quanto frequente nas crônicas e ficção
de Lispector. Não se está aqui, obviamente, diante da “doçura” subalterna
idealizada pela classe patronal (sinônimo de devoção absoluta, como é o caso
do mito da mãe-preta), embora ela esteja geralmente associada na obra de
Lispector aos que estão em posição de subalternidade (os animais, em “Estado
de graça – trecho”; uma camponesa, em “Alegria mansa – trecho”; os bobos,
em “Das vantagens de ser bobo”). A doçura, nesse caso, é o estado crucial
(utópico?) para o contato, literalmente o tato, entre mulheres de condições
socioculturais distintas, pois que prescinde do desejo da “compreensão” e da
linguagem: “Uma delas então se adianta no seu pé leve, e como se cumprisse
um ritual – eles se dão inteiramente à forma-pega nos meus cabelos, alisa-
os, experimenta-os, concentrada. Todas assistem. Não me mexo, para não
assustá-las”. (Descoberta, p. 271).
Na crônica “Das doçuras de Deus”, Lispector igualmente narra seu
“ritual” de contato com uma doméstica: aqui fora preciso que a empregada
“aparecesse” em sua mansa loucura, ou contagiante doçura e, não mais,
através da perturbadora vontade de ler os livros da patroa. Contudo, para tal
estado de “doçura”, ou de “tanto amor”, as reações de Lispector que seguem
a partida de sua empregada Aninha são um tanto quanto “ásperas”: “ela
não gostava de ‘água com açúcar’ e nem o era”, escreve a autora, dando-se
finalmente conta de um sentido, ou efeito, menos irônico para tal expressão-
cliché. “O mundo não é. Fiquei sabendo de novo na noite em que asperamente
fumei. Ah! Com que aspereza fumei. A cólera às vezes me tomava, ou então
o espanto, ou a resignação” (Descoberta, p. 62). Segundo Castillo, tais
reações resultam da experiência de autoconsciência, ou revelação, na qual
a empregada Aninha “serve de espelho para Lispector, expondo a feiura de

153
seu preconceito social” (“Lispector, cronista”, p. 104). A meu ver, no entanto,
em vez de uma atenção narcisística voltada a si mesma, onde o outro atua
somente como “espelho”, tais reações “ásperas” revelam, ao contrário, um
“conflitivo senso de obrigação maternal” (“Fatos”, p. 109), mais consistente
com outras crônicas sociais da autora. De um modo geral, seus encontros
com a realidade precária de sujeitos que circulam nos espaços imediatos de
suas crônicas são narrados como experiências traumáticas de uma retomada
de consciência das feridas sociais não resolvidas: “o mundo não é [‘água com
açúcar’]. Fiquei de novo sabendo…”. (Descoberta, p. 62).
Por outro lado, não importa quão traumática seja essa visão da
precariedade, Lispector igualmente sente/expressa uma compulsão à “ação
social”, que em alguns textos ela define como uma incumbência a “tomar
conta do mundo”. Na crônica “Eu tomo conta do mundo” (4 de março de
1970), ela escreve:

Antes de dormir, tomo conta do mundo em forma de sonho e


vejo se o céu da noite está estrelado e azul-marinho, porque em
certas noites em vez de negro o céu parece azul-marinho intenso.
Tomo conta do menino que tem uns nove anos de idade e que
está vestido de trapos e magérrimo. Terá tuberculose, se é que
já não a tem […] Se tomar conta do mundo dá trabalho? Sim.
Por exemplo: obriga-me a me lembrar do rosto terrivelmente
inexpressivo da mulher que vi na rua. Com os olhos tomo
conta dos favelados encosta acima. Hão de perguntar-me
por que tomo conta do mundo. É que nasci incumbida. E sou
responsável por tudo o que existe. (Descoberta, p. 421).

Se “tomar conta de” significa “encarregar-se de” ou “responsabilizar-


se por” algo ou alguém, essa expressão pode igualmente ser lida como “cuidar
de” e “proteger” o outro cuja capacidade de agência é percebida como nula ou
precária. Lispector sente-se então interpelada a responder maternalmente à
visão do menino mal nutrido e tubérculo, ou à difícil lembrança de um rosto
anônimo e “terrivelmente inexpressivo” de mulher. Em outras palavras,
ela adota um modo de “pensar maternal” (nos termos de Sara Ruddick)23,
quando fala desses sujeitos precários anônimos e “dos favelados encosta
23 RUDDICK, Sara. Maternal Thinking: Toward a Politics of Peace. 2 ed. Boston: Beacon
Press, 1995.

154
acima”, para justificar sua tarefa contínua e exaustiva de “tomar conta do
mundo” e de sentir-se “responsável por tudo o que existe”. Deixo fora da
discussão a impossibilidade de tamanha incumbência e, certamente, as
implicações maternalistas de seu papel de “protetora dos pobres e animais”,
para ressaltar o fato de que semelhante atitude nos remete à forma sui generis
de engajamento social baseado em uma “ética do cuidado”.24 Por outro lado,
como argumenta Marta Peixoto (2002), a compulsão maternal em Lispector
a “tomar conta do mundo” “resulta ser não mais que uma observação
cuidadosa das superfícies visíveis do mundo e, assim, ela constitui [um ato]
completamente autocentrado, sem afetar, para o bem ou para o mal, os
objetos do cuidado, incluindo os despossuídos” (“Fatos”, p. 109). Na crônica
em questão, Lispector tenta dar à empregada Aninha um lugar melhor no
mundo, onde mesmo sua “feiura” (“Esqueci de dizer que Aninha era muito
feia”, p. 60), ou sua “falta de gosto” em se vestir, “era mais uma doçura
sua” (Descoberta, p. 62). Porém, sua “ação” maternal limita-se a registrar as
doçuras de Aninha, mesmo assim para um público que, ela bem o sabia, iria
esquecê-la em pouco tempo: “quem a quereria, por Deus? A resposta é: por
Deus (Descoberta, p. 62).

IV

Atuando nas crônicas de Lispector como mediadora entre dois mundos


socialmente opostos e, por outro lado, como signo de alteridade sócio racial
no universo familiar da cronista, a doméstica age, portanto, sobre a auto
constituição do sujeito ético de maneira ambivalente: ela é o pretexto para as
incursões, traumáticas mas moralmente edificantes, da cronista pelas zonas
24 Apesar das controvérsias em torno de sua proposta de desassociar o “trabalho”
da maternidade da figura da mãe biológica, além de uma visão um tanto quanto burguesa
desse trabalho maternal, o livro de Sara Ruddick, Maternal Thinking (primeira edição, 1989)
inaugurou um debate importante sobre as implicações éticas dos cuidados maternais.
Segundo Peta Bowden, em Caring: Gender-Sensitive Ethics (Nova York, London: Routledge,
1997), “Ruddick tenta ‘identificar algumas das atitudes metafísicas específicas, capacidades
cognitivas e conceitos de virtude (…) inspirados pelas demandas dos filhos [adotivos,
biológicos ou de criação]’ (MT, p. 61), com o objetivo de valorizar os ideais de uma razão
forjada pela responsabilidade e pelo amor, em detrimento da distância emocional, da
objetividade e da impessoalidade. Seu argumento central é o de que as práticas que emanam
das respostas maternais à ‘promessa de nascimento’ têm o potencial de gerar um corpo de
prioridades, atitudes, virtudes e crenças que formam uma ética do cuidado e uma política
pacifista” (tradução minha; Bowden, Caring, p. 24-5).

155
urbanas periféricas, embora igualmente atue nessas crônicas como fonte
de culpa e constrangimento. Como argumentei neste capítulo, Lispector
reconhece seus conflitos e as tensões inerentes à relação patroa-empregada,
mas não se dispõe a responder à demanda que a colocação desses conflitos
produz. Daí, talvez, porque tais conflitos e tensões se manifestam como um
estado de atenção (versus “ação social”). Por outro lado, não obstante suas
oscilações entre “ver” e “não ver” (“Fatos”, p. 119) os conflitos gerados por
essa relação afetivo-trabalhista de exploração social, a cronista propõe algo
original na história da literatura brasileira. Em primeiro lugar, ela introduz o
trauma e a culpa de classe, deflagrados pelo encontro com a pobreza. Como
argumenta Jean Franco (2002), “embora aparentemente motivada pelo
desejo modernista de representar e controlar [campos culturais de alto risco],
os encontros de Lispector com a classe baixa é invariavelmente devastador”
(Franco, “Seduction of margins”, p. 204). Além disso, dos desencontros sociais
no seu universo familiar doméstico, Lispector extrai um aspecto – o olhar
imaginário da doméstica sobre a patroa, ou o seu “ressentimento censurado,
– que por motivos óbvios desafia a apropriação mitificada da doméstica como
símbolo de confraternização inter-racial (a mãe preta, a mulata sedutora).
Tais reflexões se desdobram em sua narrativa dos anos 70 em
uma série de questionamentos do poder do intelectual, e da literatura,
de intervenção no estado de coisas no mundo. Por certo, suas indagações
de algum modo se integram à “cultura da derrota” (FRANCO, 2003),
característica da literatura brasileira pós-utópica, ou pós-revolucionária
desses anos; nos termos de Renato Franco, uma literatura forçada a “narrar
os impasses do escritor que não sabia decidir se era mais necessário escrever
ou fazer política, constituindo assim um tipo de romance desiludido tanto
com as possibilidades de transformação revolucionária da sociedade como
com sua própria condição” (“Literatura e catástrofe”, p. 358). A seu próprio
modo, Lispector chegaria nesses anos a semelhantes impasses. Por exemplo,
em A hora da estrela (1977), o narrador se dispõe “a contar as fracas aventuras”
(p.15) da nordestina “retirante” Macabéa, embora não espere superar, por
meio da mediação literária, a distância social entre si e sua personagem: “[e]
ste livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta” (p.17).
Os vários testemunhos de empregadas domésticas, que emergem a
partir dos anos 80 no Brasil, são um sinal de que, por um motivo ou outro, o
“silêncio” ou a “pergunta” não atendiam às novas pressões políticas impostas

156
pela emergência dos movimentos sociais populares. O “silêncio” não servia
tampouco como resposta para as autoras domésticas emergentes que viam
suas práticas culturais como um exercício inédito de cidadania. Portanto,
não obstante o enfretamento das contradições entre sua posicionalidade
como patroa e sua oposição à cultura da servidão doméstica, Lispector
de modo geral se aproxima a outros escritores canônicos brasileiros. Suas
crônicas sobre domésticas parecem estar mais a serviço da construção de sua
imagem pública do que da luta interpretativa para revisar os estereótipos
que produziram/produzem estigma e injustiça contra as trabalhadoras
domésticas na sociedade brasileira moderna.

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159
160
CUIDADO E PODER: AS RELAÇÕES DO
TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO
ATRAVÉS DA CULTURA DOMÉSTICA
Thays Almeida Monticelli25

As diversas formas de cuidado estabelecidas e requeridas dentro da esfera


privada têm se mostrado como uma complexa fonte de análise, pois
mesclam aspectos relacionados às vulnerabilidades humanas, dependências,
emoções, afetos, violências e reproduções de desigualdades. Historicamente
vinculado ao trabalho realizado por mulheres, o trabalho doméstico tem
se construído tanto como um desafio para os estudos feministas em suas
contradições analíticas e de militância, como para os sujeitos que precisam
encarar cotidianamente uma exaustiva rotina de trabalho, impactando as
significações, representações e interações familiares.
Em pesquisa realizada durante o ano de 2015 em Curitiba-PR26,
foi observado um quadro de poucas mudanças no que tange às questões
relacionadas à divisão sexual do trabalho. A pesquisa tinha por objetivo
compreender quais eram os desafios elencados pelas empregadoras
de trabalhadoras domésticas remuneradas – patroas – em relação às
contratações legais trabalhistas. No entanto, nas entrevistas com essas
mulheres foi percebido que majoritariamente elas eram as responsáveis
pelas demandas de cuidados e tarefas da casa, sentindo assim não somente
o peso da dupla jornada de trabalho, mas todas as frustrações, violências e
“aprisionamentos” que a casa lhes trazia por meio de uma rotina considerada
cíclica, exaustiva e “pesada”. A maneira que tradicionalmente essas
mulheres, pertencentes à classe média e classe média alta, têm encontrado
para mudar a dinâmica de suas vidas familiares e de trabalho é por meio da

25 Doutora pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal do


Paraná. Tem trabalhado especificamente com as questões que envolvem o trabalho doméstico
remunerado, atuando em temas como gênero, trabalho, família, divisão sexual do trabalho,
emoções e direito. Atualmente, é integrante da pesquisa DomEQUAL, financiada pela
Università Ca’Foscari, Venezia. tamonticelli@gmail.com
26 Essa pesquisa fez parte do meu projeto de doutorado e foi totalmente financiada por
bolsa de estudos da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).

161
contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada. Mas estabelecer
uma relação harmoniosa e minimamente igualitária com essa outra mulher
que adentra a casa e acessa os mecanismos do cuidado é uma realidade rara;
o relacionamento entre patroas e trabalhadoras domésticas remuneradas
segue por lógicas que pautam negociações, subjetivações e práticas que não
superam as diversas desigualdades e inferioridades estabelecidas.
De tal modo, o objetivo desse capítulo é analisar como as tarefas
e os cuidados demandados cotidianamente pela casa e pela família são
compreendidos pelas mulheres que contratam uma trabalhadora doméstica
remunerada e, consequentemente, como se relacionam e comunicam
com esta, como agenciam seus desejos e expectativas enquanto patroas,
principalmente nos cuidados e aspectos relacionados à higiene e limpeza
das casas. Parto da ideia conceitual de “cultura doméstica”, que estabelece
práticas cotidianas dos lares, pressupostos de intimidade e cuidados e
até mesmo a própria compreensão de direitos trabalhistas. A “cultura
doméstica” é intrinsicamente formada nas relações de poder familiares, na
divisão sexual do trabalho e constitui subjetividades e posicionalidades da
patroa e da trabalhadora, construídas nas interações da vida cotidiana e
carregando em si as falsas dicotomias instituídas entre público e privado.
Dessa forma, lançamos luz sobre as relações de poder que se vinculam aos
cuidados estabelecidos na casa, na intimidade e nas relações familiares, para
assim descortinar os elementos que embaraçam as discussões sobre o tema
e apontar os mecanismos que insistem nas desigualdades como fundantes
dessas relações trabalhistas.

A “infelicidade” como produto das tarefas domésticas

Mas eu, para eu ser feliz, eu preciso trabalhar, trabalhar [...]. Eu


hoje, o que eu ganho é o que eu pago quase à empregada. Mas
eu não me importo. Eu prefiro estar lá fazendo o que eu faço
e ela fazendo o que ela faz (risadas). Nem que empate o meu
salário com o dela. Porque eu fazer o que ela faz não me traz
felicidade, me traz depressão. Eu fico doente, não posso.

162
Esse relato é de uma farmacêutica, pertencente à classe média
curitibana, branca, 38 anos, casada há mais de 10 anos, dois filhos pequenos
e que contratava uma trabalhadora doméstica remunerada para ser sua
“retaguarda” na organização de sua vida cotidiana com seu marido, com filhos
e com ela mesma, como me disse na entrevista realizada em 2015 na capital
paranaense. A rotina doméstica era percebida de uma forma muito similar
por todas as patroas escutadas na pesquisa; elas se sentiam aprisionadas ao
realizar o trabalho doméstico, que as desgastava e lhes retirava o tempo para
realizar algo realmente “produtivo”, da convivência agradável com filhos e
filhas, de seus momentos enquanto esposas.
O tempo “produtivo” que as patroas dessa pesquisa tanto almejavam
estava vinculado ao mercado de trabalho formal, era desfrutar o tempo de
lazer com a família, dar mais atenção às demandas dos filhos e filhas, ter
mais tempo para suas próprias demandas enquanto mulheres. O trabalho
doméstico está vinculado com uma ideia de humilhação, infelicidade,
improdutividade, desvalorização; além disso, é um trabalho que as deixava
“feias”, “mal arrumadas”, “cansadas”, “desgastadas e estressadas” – de acordo
com suas narrativas.
Nesse sentido, não era necessariamente a “casa” que trazia o
sentimento de aprisionamento e infelicidade descrito pelas patroas, mas
as tarefas domésticas. Eu não escutei na pesquisa que o matrimônio ou as
suas relações enquanto mães as deixavam sobrecarregadas, mas varrer e
passar pano no chão, lavar e passar, cozinhar todos os dias, arrumar, tirar pó,
lavar banheiro, lavar louça, organizar, não eram trabalhos que lhes traziam
sentido de realização, produtividade e superação. O trabalho doméstico não
é percebido, por elas, como algo a que se deva dispensar tempo, atenção,
cuidado para si mesmas; muito pelo contrário, o trabalho doméstico é
percebido como algo que elas fazem para os “outros”, que nunca tem fim e
acima de tudo não é reconhecido. Além disso, casa bem organizada e limpa,
comida na mesa e filhos bem educados eram considerados, por elas, o seu
dever enquanto mulher.
As obrigações e desigualdades impostas pela divisão sexual do trabalho
eram pontos fortes nessas narrativas, principalmente quando o marido era
o principal provedor financeiro da casa. A inserção dos filhos e filhas na
dinâmica da organização residencial se mostrava, timidamente, como algo
que essas mulheres começavam a incluir em suas vidas. Pelo fato de poderem

163
contratar uma trabalhadora doméstica remunerada, essa “ajuda” é realizada
em casos excepcionais, não sendo uma obrigação de fato, e não contam com
os “ensinamentos” delas de como a limpeza e a organização devem ser. “Eu
acho que eles aprenderam só vendo, porque eu nunca chamei para ensinar”
– Como me disse uma das patroas entrevistadas. No entanto, elas sempre
me diziam como essa dinâmica era uma de suas exigências enquanto mães,
expondo que já não podiam mais deixar tudo para a “empregada” fazer. Essa
é, sem dúvida, uma das mudanças que começou a aparecer dentro dos lares;
se antes os filhos eram totalmente excluídos das atividades domésticas e as
filhas destinadas a aprender, minimamente, algumas coisas para se tornarem
boas donas-de-casa no futuro, hoje há sim uma compreensão de que os filhos
e filhas precisam se responsabilizar, ao menos, pelas suas próprias demandas
– o quarto, por exemplo.
Mas, o que se mostrou como ponto realmente complexo era a relação
com o marido sobre as responsabilidades das tarefas domésticas. A maior
parte das entrevistadas não contava com absolutamente “ajuda” alguma
advinda de seus maridos no trabalho doméstico; quando muito, eles faziam
mercado ou cortavam a grama nos finais de semana. Esta é uma realidade
compartilhada na maioria das residências brasileiras, já que pelas pesquisas
recentemente (2016) realizadas pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada), 90% das mulheres em idade adulta realizam o trabalho doméstico,
dispensando a estas atividades, em média, 25,3 horas semanais, enquanto
51% dos homens em idade adulta responderam fazer as tarefas domésticas,
dispensando em média 10,9 horas semanais nestas. (PINHEIROS; JÚNIOR et
al., 2016). Inclusive, esse era um ponto de ruído nas relações matrimoniais;
as patroas entrevistadas incluíam, na lista de benefícios na contratação de
uma trabalhadora doméstica remunerada, não terem mais que brigar ou
discutir com seus maridos sobre as demandas da casa.
A relação conjugal se mostrou desigual em todas as casas em
que pude fazer a pesquisa, seja nas configurações da divisão sexual do
trabalho, seja nas desigualdades salariais, pois o rendimento dos maridos
representava 70% do orçamento doméstico. E muitas vezes, para essas
mulheres, realizar as tarefas domésticas era mais um ponto para se sentirem
humilhadas, diminuídas, cansadas perante seu cônjuge. A contratação de
uma trabalhadora doméstica remunerada foi até mesmo descrita como um
processo de não se sentirem mais subalternas nas configurações domésticas,

164
pois já se sentiam demasiadamente cansadas por ter dupla jornada de
trabalho, por estar sempre dispostas para seus maridos e ainda ter de realizar
um trabalho “duro”, “chato”, “que nunca acaba”, sem reconhecimento algum.
A trabalhadora doméstica remunerada também passa a ser um escopo das
próprias ânsias das patroas enquanto esposas.
Ainda soma-se a essa percepção que os homens não têm a mesma
relação com o trabalho doméstico que as mulheres. De acordo com as
empregadoras, a relação dos homens com as demandas domésticas é
diferente, não somente na maneira de se responsabilizarem por elas, como
na maneira de concretizá-las, “não fazendo direito”, “são desajeitados”,
“deixam tudo engordurado, desorganizado”, “não limpam direito”, “o que
está limpo para um homem, não está limpo para uma mulher”. A contratação
de uma trabalhadora doméstica é a possibilidade de essas mulheres livrarem-
se desses sentimentos de infelicidade, aprisionamento, desvalorização,
canseira, que as inferioriza, as deixa feias e mal arrumadas e ainda cessa com
as brigas com os maridos, de acordo com suas narrativas e percepções. Quando
perguntado na entrevista se elas poderiam pensar suas vidas cotidianas
domésticas sem uma trabalhadora doméstica remunerada, a resposta foi
majoritariamente “não”.
Todas essas posições, características e descrições sobre a maneira
como as patroas enxergam as tarefas domésticas já foram detalhadamente
analisadas pelas perspectivas da divisão sexual do trabalho, análises de
classe pautadas pelos pressupostos marxistas, perspectivas estruturalistas e
decoloniais. As mulheres dessa pesquisa não contam com políticas públicas
advindas do Estado e tampouco contam com o compartilhamento das
responsabilidades com seus cônjuges. A ausência do Estado e dos homens na
vida cotidiana doméstica distancia cada vez mais o cuidado de ser pensado
em um exercício político democrático, expondo características conservadoras
praticadas nos lares, o que traz como consequência uma desigualdade
fundada nos aspectos de dependência, interdependência e vulnerabilidade.
(GARRAU; LE GOFF, 2010). Por isso mesmo, se torna um desafio analisar
esse quadro, seja porque já foi demasiadamente pesquisado nas análises
sobre as configurações domésticas familiares, seja porque é difícil encontrar
novas posições, compreensões pautadas por uma ideologia diferente entre a
classe empregadora.

165
Dessa forma, proponho então fazer uma análise sobre o
“conservadorismo” em relação ao trabalho doméstico e ao trabalho doméstico
remunerado, já que este se mostra como um elemento fundamental nas
insistências das desigualdades reproduzidas dentro dos lares e na própria
discussão política do cuidado. O primeiro ponto a ser pensado sobre as práticas
e lógicas que ainda preservam características conservadoras é a posição em
que essas mulheres se veem na composição familiar e doméstica. Elas se
colocam como as principais responsáveis pelo mantimento dos cuidados da
casa, pela sua organização, limpeza impecável e pela alimentação de todos
os membros da família. As relações de poder conectadas com o rendimento
salarial se mostram um forte elemento de negociação entre essas mulheres e
seus maridos, já que são os cônjuges varões que ganham mais e contribuem
mais com as demandas financeiras domésticas; as mulheres, quando não os
isentam de quaisquer tarefas na casa, encontram dificuldades para tentar
compartilhar, de uma forma minimamente igualitária, as responsabilidades
do trabalho doméstico. Isso porque não possuem salários iguais, já que a
grande maioria das entrevistadas estavam inseridas no mercado formal de
trabalho. Das 15 patroas dessa pesquisa, apenas uma tinha o rendimento
mensal parecido com o do marido; nas outras casas, os homens chegavam a
receber até 15 vezes mais que suas esposas.
Viviana Zelizier (2009) afirma que os acordos econômicos para
o fornecimento de cuidados não devem ser pensados somente pelo custo,
conveniência e eficiência, pois essas relações também implicam negociações
das formas como são estabelecidas suas representações, obrigações e os
direitos neles envolvidos, que, por sua vez, são inseparáveis dos laços de
significados interpessoais. São esses tipos de negociações que nos apontam
as frágeis e imaginárias fronteiras entre o mundo público e o privado, porque
o tradicional pensamento de a casa ser o lugar do amor, do cuidado, dos afetos
mais sinceros também “esconde” que nesse espaço há transações monetárias,
direitos instituídos pela legislação, obrigações e responsabilidades que são
negociados o tempo todo nas práticas cotidianas domésticas, nos tribunais
de causas familiares etc., levando em consideração as representações do
cuidado. O que foi uma constante na pesquisa é a subvalorização dos salários,
do rendimento monetário, do poder de comprar, contratar e manter a vida
doméstica em parâmetros confortáveis para setores da classe média. Se, para
muitos, a divisão estabelecida nas casas pesquisadas parece justa – homens

166
garantem o sustento financeiro e as mulheres, o conforto do cuidado, – ou
parece uma óbvia separação de tarefas (inclusive para próprias entrevistadas),
elas nos mostram que as desigualdades entre os sexos e no matrimônio ainda
são uma realidade nos lares. As mulheres dessa pesquisa ganhavam menos no
mercado formal de trabalho, mas isso não significava que elas trabalhavam
menos; à semelhança de seus maridos, elas tinham uma rotina de mais de
44 horas de trabalho semanais, mas não era necessariamente essa questão
que entrava nas negociações sobre as tarefas domésticas, sendo na verdade
pautadas por lógicas mercantis sobrepostas em uma violenta desigualdade
de gênero.
Como já analisado por bell hooks (1990), o “lar” para muitas pessoas,
sobretudo mulheres, pode ser o espaço marcado por violências, desigualdades
e fragmentação dos sujeitos, principalmente quando pensado em termos de
classe e étnico-raciais. Dessa mesma forma, Costa (2002) observa que o “lar”
não pode ser pensado como um lugar, mas como múltiplas localizações que
produzem dispersão e fragmentação. O lar pode ser pensado como uma espécie
de ficção necessária que criamos para construir o senso de pertencimento
e para localizar as identidades. Justamente nesse sentido, acredito que a
“cultura doméstica” oferece as posicionalidades para cada membro da família,
colocando as mulheres como esposas, mães e as detentoras do “verdadeiro”
afeto e cuidados, preservando uma esfera conservadora sobre constituição
familiar e do “lar”. O que se mostra surpreendente, nessa pesquisa, é o fato
de que muitas das patroas nem sequer pensavam em outras lógicas para suas
vidas domésticas, considerando-se que a pauta dos diversos movimentos
feministas sobre a divisão sexual do trabalho tivesse sido super explorada
no Brasil desde a década de 70. Durante as entrevistas, o rol de reclamações
frente às demandas domésticas era enorme, mas elas não se colocavam
em outra posição – eram as mulheres da casa que precisavam organizá-la,
limpá-la e cuidá-la, ou eram elas as responsáveis por “mandar” e “vigiar” se
a trabalhadora doméstica remunerada estava realizando todo o trabalho da
maneira mais correta possível.
Arlie Hochschild (2008) nos aponta que as “novas” configurações
familiares e, principalmente, as novas possibilidades das identidades e
posições das mulheres na família como, por exemplo, esposas que não são
mães, mães que não são esposas, madrastas, segundo casamento, matrimônios
homoafetivos, duas mulheres que são mães, não podem ser confundidas com

167
as novas configurações do cuidado. O incentivo do movimento feminista
em inserir as mulheres, pertencentes à classe média, no mercado formal de
trabalho, gerou uma mercantilização dos cuidados e da vida íntima, fazendo
com que as noções e pressupostos do mundo público e do privado ficassem
cada vez mais fundidas27. Assim, os mecanismos capitalistas acabam por
reforçar mais as imagens da família, da casa e do “lar”, relacionando-as à
figura materna, como uma forma de criar um imaginário de que esse espaço
não é tão precário e violento como o “mundo exterior”.

A simbolização hiperbólica da mãe é em parte uma resposta à


desestabilização sobre as bases culturais e também econômicas
sobre a família. Em virtude de seu extremo dinamismo, o
sistema capitalista desestabiliza tanto a economia quanto
a estrutura familiar. Quanto mais precário se manifesta o
mundo exterior à família, mais nos parece que precisamos crer
em uma família inquebrável e, em sua omissão, em uma figura
inquebrável da esposa-mãe. (HOCHSCHILD, 2008, p.63).
(Tradução livre)

Considerando então que a casa não é apenas um espaço geográfico,


mas um símbolo metafísico ressonante sobre “amor”, “carinho”, “cuidado” e
“afeto”, as posições dos sujeitos nele inseridas serão representadas por esse
ideal – e o “familiar” torna-se uma extensão simbólica e uma confirmação
de si mesmo. (FELSKI, 2000). Mas, apesar de as patroas dessa pesquisa se
situarem nessas posições de mães, esposas detentoras dos mais “puros”
sentimentos em relação a sua família, elas constantemente relatavam a
infelicidade, o aprisionamento e as humilhações que a casa lhes propiciava.
Não seriam estas então posições ambíguas ou contraditórias? Mais que uma
forma de demonstrar que essa percepção ideal da “casa” é uma imaginação
construída pelas necessidades sociais, políticas e culturais, é apontado por
essas narrativas que o tão sonhado e aconchegante “lar” lhes causam tédio,
canseiras, sentimento de improdutividade e desvalorização de seu tempo

27 Se transações como a contratação de trabalhadoras domésticas remuneradas,


cuidadoras, babás tornaram-se mais complexas pelas imposições legislativas, abrindo
reflexões para questões de ordem moral, de valores e as posicionalidades que se derivam dessas
relações, é igualmente importante lembrarmos que o mercado de trabalho também passa a se
estruturar com limites às posições familiares como, por exemplo, incentivar a contratação de
pessoas sem filhos e solteiras. (HOCHSCHILD, 2008).

168
e trabalho. Essas percepções e afetos em relação à casa estão diretamente
ligadas à compreensão moderna sobre a vida cotidiana.
De acordo com Felski (2000), a vida cotidiana moderna foi socialmente
construída de uma maneira intrinsicamente vinculada com a ideia de hábito
que, por sua vez, se tornou o inimigo de uma vida “verdadeiramente”
autêntica. A liberdade foi tradicionalmente conectada com movimentos
através de espaços públicos, enquanto o espaço residencial, com uma vida sem
novidades, marcada por uma ideia cíclica e não linear do tempo. A repetição
se tornou algo aprisionador. A casa, que sempre demandou trabalhos
cíclicos, que precisam ser realizados todos os dias, se tornou aprisionadora.
Os discursos dos movimentos feministas, principalmente nos anos 70,
investiram na imagem da casa como o lugar que aprisiona a mulher. Nesse
sentido, como as mulheres sempre foram interligadas à esfera doméstica, são
elas que vão sentir e se afetar com as pressões advindas do cotidiano. O que
Felski (2000) vem nos dizer é que a construção do hábito e da vida cotidiana
é um elemento essencial da vida moderna, que tanto homens como mulheres
experimentam, mas de formas diferentes.
De acordo com a autora, o cotidiano não está somente no domínio
dos outros, como em “si mesmo”, não somente no domínio da transgressão,
mas também no domínio da familiaridade, do tédio e do hábito. Reconhecer
que todos nós habitamos o cotidiano não é negar as diferenças sociais, mas
simplesmente conhecer a base comum do mundano. Partindo dessa premissa,
Felski (2000) pensa em uma teoria feminista que reflita sobre o cotidiano,
tentando não separar o “sujeito moderno” do lar e que, simultaneamente,
pudesse compreender a dimensão moderna das experiências cotidianas
domésticas, considerando que esse espaço possa ser também um lugar
central para as experiências das mulheres. (FELSKI, 2000). É claro que
não podemos deixar de lembrar do esforço das feministas, durante os
anos 70, de evidenciar as análises ligadas às desigualdades entre os sexos
nas predominantes percepções de classe e, posteriormente, redefinindo o
próprio conceito de trabalho para a Sociologia, em um movimento de abarcar
num outro status analítico e prático as vivências e experiências da esfera
doméstica. (HIRATA, 2002). Mas, pensar a vida cotidiana sem pensar que
as mulheres são parte constituinte de uma representação sobre o diário, o
cíclico e a repetição, é colocar uma venda nas formas como os sujeitos na
vida moderna se posicionam. Como indica Felski (2000), o problema ainda se

169
complexifica, porque existe uma visão romântica da ligação entre mulheres e
a vida cotidiana, associando-as com o natural, autêntico, originário.

Eu explorei alguns dos caminhos que a vida cotidiana tem sido


conectada com a mulher, sem simplesmente endossar que as
mulheres representam a vida diária. O problema com essa
visão, como Lefebvre particularmente esclarece, é que esta
apresenta uma visão romântica da vida cotidiana e das mulheres
associando-as com o natural, autêntico e primitivo. Essa
nostalgia alimenta uma longa cadeia de dicotomias – sociedade
versus comunidade, modernidade versus tradição, público versus
privado – que não nos ajudam a entender a organização social
do gênero e que negam a contemporaneidade das mulheres.
Além disso, situar as mulheres nas bases da vida cotidiana é
assumir um ideal mítico heroico da transcendência masculina
e ignorar o fato de que os homens também são encarnados,
sujeitos incorporados que vivem, na maior parte das vezes, de
uma forma repetitiva, familiar e ordinária. (FELSKI, 2000, p.
94) (Tradução livre).

Nesse sentido, penso que uma das chaves para romper com a ideia
de que a casa seja um lugar aprisionador para as mulheres é compreender
como primordial que a esfera doméstica não se opõe à esfera pública, sendo
essas intrinsecamente incorporadas uma à outra. Esta é uma ideia que parece
óbvia, mas que ainda sustenta dicotomias e posicionam sujeitos em espaços
desiguais, fomentando subjetividades frustradas em relação à compreensão
do mundo moderno.
A concepção de que a esfera pública e privada são loci diferentes e
que não se complementam está historicamente reproduzida na sociedade
brasileira e reconfigurada na contemporaneidade, separando essas duas esferas
embasadas nas noções de tempo – o cotidiano/aventura, aprisionamento/
liberdade – mostrando que as separações entre as duas tão somente mascara a
complexidade das relações familiares e, consequentemente, das contratações
de terceiros que adentram o ambiente familiar. Totalmente inspirada
pela ideia de Felski (2000), ainda julgo que as reflexões feministas podem
alcançar um estranhamento, ou desconstruções, em relação à maneira como
a vida cotidiana é simbolicamente representada através dos pressupostos de

170
gênero. O entendimento de que a vida doméstica cotidiana pode ser repleta
de possibilidades e posicionalidades requer a compreensão de que o lar pode
ser o espaço das experiências na modernidade. Isso resulta em pensar em
formas de tentar romper com as reproduções das desigualdades, que se
apresentam nesse contexto, preservando ainda as falsas dicotomias entre
público/privado e sendo o lugar da infelicidade entediante das patroas.

A “cultura doméstica” e as relações trabalhistas entre patroas e


trabalhadoras: os cuidados, intimidades e vigilância

Ao compreender então que as desigualdades geradas entre os sexos, nas
relações familiares, ainda são suficientemente fortes, trazendo à margem
as negociações que envolvem dinheiro e afetos, posicionando os sujeitos
em determinados e tradicionais papéis, lugares e espaços “aprisionados”
pela vida cotidiana, reproduzindo desigualdades de gênero e sustentando
desigualdades étnico-raciais e de classe – por meio da contratação de uma
trabalhadora doméstica remunerada –, podemos traçar alguns pontos dos
desafios encontrados, para estabelecer uma visão democrática sobre o
cuidado, além de trazer à tona uma percepção sobre a “cultura doméstica”.
O “doméstico”, do qual as mulheres assumem posições e constroem
suas subjetividades enquanto esposas, mães e donas-de-casa, é também o
lugar onde elas precisam nutrir o seu papel de “gerenciadora do lar” – isso inclui
saber “mandar” na trabalhadora doméstica remunerada. O “gerenciamento
do lar” é pautado por noções e compreensões de limpeza, culinária e
organização bem específica, que são, ao mesmo tempo, compartilhadas
socialmente e instituídas por idealizações biomédicas de higiene e que
também passam pelas percepções individuais, de cada patroa, de como deve
ser e estar a sua casa e sua intimidade. Essa “cultura doméstica” molda o que
é exigido de uma trabalhadora doméstica remunerada. A “cultura doméstica”
é, pois, explicitada nas representações, nos símbolos e posicionalidades que
constroem as noções do que seja uma casa bem limpa e organizada, uma
comida bem feita, uma mesa bem servida, um banheiro impecavelmente
limpo e desinfetado, uma roupa perfeitamente lavada e passada, quintal
sem sujeiras, móveis e cantinhos sem absolutamente qualquer vestígio de
pó, quartos discretamente cheirosos e organizados, além das posições dos
sujeitos em espaços determinados e hierarquizados da casa e das exigências
de comportamentos, práticas e posturas morais e controle dos corpos.

171
Nesse sentido, compreendo que as exigências sobre os parâmetros
do que seja uma boa limpeza, uma boa organização, comida bem preparada e
por fim uma “boa” trabalhadora doméstica remunerada são mecanismos de
acesso ao poder, e que essas exigências – muitas vezes chamadas de “cricris” –
são parte de uma construção subjetiva das patroas em relação ao seu exercício
de poder e à administração de suas necessidades. É importante dizer que,
além de construir comportamentos, práticas e noções sobre a organização,
limpeza e culinária de uma casa, a “cultura doméstica” forma subjetividades
ligadas ao “familiar”, que simbolicamente passam a representar o mais íntimo
dos sujeitos. (FELSKI, 2000). Isso significa dizer que, dicotomicamente, a
esfera privada preserva os afetos, as intimidades, “os segredos”, o domiciliar
essencializado, construindo subjetividades e compreensões de “si mesmo”
embasadas por esse contexto.
As patroas dessa pesquisa compartilhavam de uma ideia sobre
as suas posições enquanto esposas, mães, donas-de-casa e profissionais,
que se demonstravam com poucas variações em relação aos modelos já
tradicionalmente estabelecidos sobre o casamento, a maternidade e os
“papéis de mulher”. Elas se colocam como as principais responsáveis pela
manutenção do lar, pela organização da vida de cada membro da família
e como detentoras dos cuidados, atenções e do amor por todos eles. No
entanto, sentem-se aprisionadas por esse espaço, por essas posições e pelas
tarefas domésticas. Costa (2002) nos remete à ideia dos interstícios, ou os
espaços chamados in-between, onde as subjetividades são construídas por
essas ambiguidades posicionais. As experiências múltiplas e conflitantes
do sujeito patroa simbolizam um processo reflexivo entre as representações
essencializadas da casa e do lar conectadas com os cuidados e os amores
femininos, ao mesmo tempo em que escolhem uma vida “moderna” em
termos estéticos, profissionais vinculados aos pressupostos dicotômicos
da esfera pública. Nesse complexo jogo reflexivo, ao sentirem as pressões
advindas das imposições e necessidades da manutenção da casa, as
patroas não introduzem novas formas de pensar a relação doméstica e de
compartilhar as responsabilidades com a sua família; elas repassam todas
as desigualdades geradas pela divisão sexual do trabalho para a trabalhadora
doméstica remunerada, como já extensamente analisado por Ávila (2009).
Mas, ao repassarem essas responsabilidades, elas enumeram diversas ordens,
estabelecem normas, organizam e querem que a trabalhadora contratada faça

172
tudo impecavelmente, da maneira como elas subjetivamente já pensaram
como deve estar suas casas.
Assim, ao repassarem as responsabilidades domésticas para outra
pessoa, essas mulheres passam a se verem e a se posicionarem em relação
ao seu exercício de poder, instrumentalizando as subjetividades construídas
nos pressupostos de intimidade e de familiaridade. Suely Kofes (2001) nos
mostra que os mecanismos de diferenciações, que ocorrem constantemente
nas iterações entre as patroas e trabalhadoras, são formas de esclarecer as
posições, não tornando-as “borradas” ou híbridas, já que a trabalhadora
assume as posições que seriam destinadas às patroas naquela casa. Para
além disso, julgo que os pressupostos da “cultura doméstica” estabelecem
as interações entre as patroas e as trabalhadoras domésticas remuneradas,
embasando não somente a organização e a limpeza da casa, a maneira de
agir e falar uma com a outra, constituindo parâmetros meritocráticos,
moldando as exigências e ordens, mas também construindo interações que
vinculam os cuidados ao poder e à própria construção de si mesmas frente
às “contradições” narradas: mantêm seus papéis enquanto mulheres, mas se
sentem aprisionadas neles.
A maior parte das entrevistadas se percebiam como mulheres
modernas, que tinham um trabalho no mercado formal de trabalho,
responsabilidades domésticas, a educação dos filhos, mantinham uma
programação de viagens e férias com toda a família e tentavam se manter
“informadas sobre o que acontecia no mundo”. Essas mulheres se opunham
à ideia de ter uma vida sem movimento, sem liberdade e que o seu tempo
fosse de fato produtivo – a compreensão do sujeito moderno em relação
ao tempo e à vida cotidiana, como já foi analisado por Rita Felski (2000).
Nesse sentido, nada mais “antigo”, “antiquado”, “escravocrata” do que
tratar mal uma trabalhadora doméstica remunerada, com pressupostos
racistas e discriminatórios. As patroas também “dão” liberdade para as suas
trabalhadoras – “tratar bem a empregada, só isso, é o mínimo esperado” –
como me disse uma empregadora.
No entanto, no discurso das patroas ainda ressoam pressupostos
servis, práticas discriminatórias, relações baseadas em negociações da vida
cotidiana e não dos preceitos legislativos, nas representações e símbolos
da casa organizada e limpa. Esses discursos, muitas vezes, apareceram
declaradamente abertos, em algumas das entrevistas e, em outras, de uma

173
forma camuflada. Assim, penso que a resistência em assimilar novas práticas
sobre o trabalho doméstico remunerado seja uma das formas de apresentação
da “cultura doméstica”, que tenta preservar posições hierárquicas dentro das
relações de poder e cuidado, mesmo inseridas em contexto “moderno”.
A maior parte das patroas entrevistadas eram mães, e me relataram
que a contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada se tornou
primordial em suas vidas a partir desse preciso momento. De acordo
com elas, a vida com apenas adultos compartilhando o mesmo lar é mais
dinâmica, não precisando ter horários fixos para as refeições, nem estas
serem necessariamente saudáveis, com variedades – “adulto se vira com
um sanduíche, com uma pizza, sai para comer”, como uma patroa me
exemplificou. O cuidado com os filhos também envolve o tempo gasto ao
dar banho, lavar mais roupa, “deixar pronto para ir para a escola”, além da
bagunça adicional da casa com brinquedos e material escolar.
De acordo com Dominique Vidal (2007), a classe média brasileira
muitas vezes justifica a contratação de uma trabalhadora doméstica
remunerada, porque não pode contar com uma boa infraestrutura estatal em
relação a creches, escolas, saúde pública, espaços públicos com segurança etc.,
como nos países europeus ou como nos Estados Unidos. Mas, como lembra
o autor, justamente essa classe, que não acessa esses serviços públicos, é a
classe que se alia ao pensamento político de privatizações como saída para
encontrar uma boa qualidade nos mesmos, distinguindo-se como a classe
que gera o desenvolvimento do país e que se enxerga como parte de uma elite,
não ocupando os mesmos espaços que o restante da população. Para Vidal
(2007), esses seriam discursos contraditórios que camuflam as justificativas
para as desigualdades de classe.
De fato, o Brasil não oferece uma gama de serviços estatais de
qualidade para toda a população, dificultando enormemente diversos
setores econômicos e principalmente a entrada de mulheres das classes mais
populares no mercado formal de trabalho, ampliando assim uma rede de
cuidados parental feminina – avós que cuidam de netos, tias e madrinhas que
se responsabilizam pelas demandas de sobrinhos e afilhados, vizinhas que
agrupam várias crianças para levar a escola. (FONSECA, 1998). Todavia, me
aproximo da interpretação de Dominique Vidal (2007) de que a contratação
de uma trabalhadora doméstica remunerada é uma forma de se perceber
como uma classe social distinta, pois a não realização do trabalho doméstico

174
ou não se ocupar das tarefas mais pesadas no cuidado das crianças são formas
de se diferenciar enquanto classe média – demostrando um aspecto da
“cultura doméstica”. Mas, não podemos deixar de notar que essas mulheres
se posicionam como as principais responsáveis pelas demandas da casa, e a
chegada de filhos realmente traz uma sobrecarga de trabalho que as limitam
em seu cotidiano. A “ajuda” contratada então é um escape da desigualdade
gerada pela divisão sexual do trabalho e também uma forma de se posicionar,
enquanto mulher de classe média, frente às novas exigências que a casa
produz na rotina familiar.
Por outro lado, importa salientar que, se a chegada dos filhos e das
filhas traz demandas novas e mais pesadas para a rotina do trabalho doméstico,
estes passam a ser igualmente mais um alvo de vigilâncias e exigências em
relação à limpeza, organização e o preparo de alimentos. E é justamente
nessa parte que aparecem as narrativas sobre a “falta de profissionalismo”, as
falhas, as constantes reclamações, os motivos de desgaste, do fato de ter que
se impor enquanto patroas, de frustrações de expectativas, de motivos para
demissões e de negociações (inclusive de direitos trabalhistas). A limpeza
é o ponto crucial para saber se uma trabalhadora doméstica remunerada é
realmente “boa” ou não; é necessário enxergar a limpeza, sentir o cheiro de
limpo, estar tudo no lugar, guardado, passado, feito no capricho, deixando os
detalhes impecáveis, fazendo tudo da forma mais higiênica possível.
As excessivas ordens de limpeza e os padrões estabelecidos para
saber se uma casa está realmente limpa ou não – limpa-se o invisível, como já
nos apontou Brites (2000) – são as características que mais se conectam com
os pressupostos construídos pela “cultura doméstica”.

Pesquisadora: quais são as principais falhas que você


considera em uma trabalhadora doméstica? Que você
vê e pensa: ah, não vai mais poder ficar aqui em casa.
Patroa: Ai, falta de higiene, né. Porque ter, já vi várias vezes,
é, lavar pano de chão com pano de cozinha. Essas coisas, é,
sabe? Logo no começo eu falava muito pra, porque quando a
babá veio, a babá era filha da empregada. Aí eu precisava de
uma pessoa para cuidar do meu filho que eu estava voltando a
trabalhar, e ela falou: eu tenho a minha filha. Então enfim veio
a filha, e eu sempre falava para ela: “olha, o que é de banheiro
é banheiro, o que é de cozinha é de cozinha; você nunca pode

175
misturar uma coisa com a outra. Pano de cozinha é pano de
cozinha, esponja que lava cozinha não pode ir no banheiro”.
Então, eu sempre falava as coisas assim, sabe? Meio que
marcava, olha: escova de banheiro, escova de cozinha, para não
misturar. Então isso também é uma coisa importante. Sabe,
ela é bem, ela é limpinha também, porque funcionário fedido
também não dá, né. E gente que mistura, deixa pano de louça,
pano de chão, lava calcinha com pano de prato? Também não
dá. Aqui na minha casa é tudo separado, então ela lava tudo
que é de cozinha, pano de mão, pano de louça, lavo, toalha de
mesa essas coisas não têm problema. E roupa, tudo separado,
roupa de adulto lava separado de roupa de criança, que lava
separado de roupa de bebê. (Entrevista realizada em 2015).

As patroas entrevistadas não só gostam de ver a limpeza, sentir que


a casa passou por uma transformação higiênica enquanto elas não estavam
lá, como também precisam saber se essa limpeza foi feita da forma mais
organizada, separada e “higiênica” possível. Lavar as roupas de adultos,
crianças e bebês em separado significa triplicar o trabalho de quem faz,
aumentar a vigilância sobre o trabalho e estipular padrões de higiene que
são formas de controle, de exercício do poder. Além disso, elas querem ver os
lugares não visíveis limpos, as gavetas que não são usadas, os armários que
dificilmente são abertos, o cantinho atrás do sofá que só aparece se o sofá for
mudado de lugar, até o teto precisa ficar livre da sujeira, absolutamente tudo
precisa estar impecavelmente limpo, desinfetado e sem pó – mesmo que não
seja usado, que não faça parte dos espaços ocupados cotidianamente e que
sejam “invisíveis”.
Cozinha e banheiros são os cômodos para os quais mais se exige uma
limpeza e uma higiene redobrada. Possivelmente, porque nesses espaços o
trânsito de pessoas é maior; o banheiro é o espaço da limpeza dos corpos;
então este não pode conter o resto de gordura corporal, pelos do corpo,
cabelos, unhas, lixinho retirado cotidianamente, além do depósito das roupas
sujas. O banheiro não pode ser simplesmente limpo, ele tem que ser lavado.
Isso significa que todo o espaço, as paredes, o chão, box, pia, torneiras,
vaso sanitário, os espelhos precisam ser esfregados com água e sabão,
desinfetados com água sanitária, passar produtos de limpeza com cloro,
álcool, desinfetantes, sapólio, enxugar e finalizar com um produto aromático.

176
A variedade de produtos de limpeza utilizados para “verdadeiramente”
higienizar o banheiro também é um veículo de vigilância e observação das
patroas. O mercado oferece uma gama de possibilidades de desinfetantes,
sabão, soluções aromáticas, etc. Afinal de contas, a limpeza não produz
necessariamente cheiros e odores; a tão famosa e desejada sensação de
“cheirinho de limpo” advém dos produtos utilizados para a limpeza.
No clássico livro de Corbin (1987), sobre os odores e sabores e
as transformações sociais e históricas em relação a estes, o autor expõe
que, no final do século XVIII, a construção do espaço privado foi de suma
importância para idealizar o sujeito individualizado, o “eu”. O espaço privado
e íntimo também passa a ser o lugar de “esconder” ou “reservar” os odores
íntimos; o ato de defecar e seus cheiros incidentes passam a ser delimitados
longe da cozinha e da sala de receber as visitas, por exemplo. Mas “o fato de
que os odores do eu tenham sido mais bem definidos, mais intensamente
ressentidos, só fez estimular a repulsa contra os odores do outro”, contra
o “cheiro da multidão, os suores nos lugares apertados do espaço público”.
(GOMES, 1988, p. 85). É aqui que tem início a etapa da insularização dos
odores pessoais na qual estamos inseridos. (GOMES, 1988).
É importante lembrar que a maior parte das casas, nas quais fiz
a pesquisa, tinha mais de um banheiro e todos tinham que ser limpos e
desinfetados da mesma forma. A limpeza do banheiro é imprescindível para
as patroas que entrevistei; é aí que elas podem ver se a trabalhadora doméstica
remunerada é de fato “boa” e “eficiente”, se retira todas as sujeirinhas e
“lodos” dos rejuntes, se não sobrou um pelo ou fio de cabelo no azulejo, se a
torneira está brilhando, se foram jogados produtos em quantidade suficiente
– não podem ser usados em demasia, nem em extrema economia – para
matar os germes que se instalaram no vaso sanitário, box e pia.
A cozinha, por sua vez, é o espaço da higiene, dos cuidados extras
com a alimentação e um lugar de segregações e diferenciações. Uma cozinha
limpa é caracterizada, de acordo com as patroas, pela louça lavada, seca e
devidamente guardada, a pia sem sujeiras e seca, os armários organizados
e sem poeira, os panos de prato lavados adequadamente, geladeira limpa e
organizada; e, assim como o banheiro, este cômodo também deve ser lavado,
porque é assim que se retira a gordura do fogão, do chão, das paredes. A
limpeza da cozinha também é alvo das mais minuciosas vigilâncias, pois

177
a comida não pode ser preparada em um lugar “sujo”, “mal arrumado”,
“engordurado”, “com mofo”, pois as refeições podem ser contaminadas.
Os germes precisam desaparecer.
Apesar de a exigência sobre os aspectos da limpeza da cozinha ser tão
alta quanto a do banheiro, o que as patroas entrevistadas mais listavam como
pontos de ruído nas relações com a trabalhadora doméstica remunerada era
a parte do preparo dos alimentos. Muitas reclamavam que não encontravam
mais trabalhadoras dispostas a cozinhar e isso era o grande desafio atualmente,
já que o tempo para cozinhar todos os dias era elevado e elas precisavam de
alguém que pudesse suprir essa necessidade. Cozinhar e cozinhar bem, com
variedade no cardápio, com higiene, usando toucas e garantindo a nutrição
dos membros da família ainda é uma atividade compartilhada entre patroas
e trabalhadoras domésticas remuneradas, pois a patroa precisa comprar
verduras, legumes, carnes, grãos, farinha, formas e panelas específicas, para
que a trabalhadora execute o seu trabalho da melhor forma possível. Essa
exigência saudável do cotidiano alimentar foi observado, principalmente,
com as patroas que tinham crianças.
Uma comida tradicionalmente conhecida como saudável para essas
mulheres é poder ter na mesa, todos os dias, pelo menos, arroz, feijão, carne
e salada, que é uma refeição já incorporada no cotidiano das famílias, mas que
demanda muito tempo no preparo e nas variedades. Muitas vezes, as patroas
me diziam que cozinhar a mesma comida todos os dias era extremamente
cansativo, utilizando da cozinha somente quando querem fazer algum prato
diferente, mais elaborado ou nos finais de semana. Outras me confidenciavam
que o principal motivo para ainda se contratar uma trabalhadora doméstica
remunerada era porque “alguém” devia cozinhar, manter a rotina dos
alimentos em casa, com temperos caseiros, com a mesa bem servida.
Se o ato de cozinhar é tarefa primordial para as patroas, tanto no
fato de se responsabilizar por fazer, comprar os alimentos e gerenciar o seu
preparo pelas mãos das trabalhadoras domésticas remuneradas, mostrando
assim as características, símbolos e representações da “cultura doméstica” e
como ela pode se reconfigurar nas dinâmicas familiares contemporâneas, por
outro lado, é também a comida que é utilizada como alvo de diferenciações
camufladas por essas mulheres. Há duas “regras” em relação a esse
aspecto: patroa não cozinha para a trabalhadora doméstica remunerada
e trabalhadora não pode comer tudo que tem na casa. Essas são as formas

178
de se diferenciar enquanto classe, enquanto mulheres não iguais, enquanto
alguém que precisa servir e outra que precisa ser servida. No entanto, como
já mencionado anteriormente, separar comida, não chamar a trabalhadora
para se sentar à mesa e comer as refeições junto com a família empregadora,
não oferecer o que ela mesma cozinhou, não são práticas ditas “modernas”.
Essas patroas não querem ser vistas como mulheres que tratam mal, com
desrespeito, que enxergam a trabalhadora como inferior; isso é “antigo”,
“antiquado”, “escravocrata”, e elas não querem ser associadas à imagem da
reprodução de desigualdades.
Assim, muitas vezes, as patroas me relataram que elas são boas,
mas que a trabalhadora doméstica remunerada também tem que ter noção
do que ela pode e não pode fazer, pode e não pode comer, pode e não pode
estar. Se ela já sabe onde se posicionar, a patroa não precisa agenciar esses
mecanismos velados de diferenciação, “eu falei para ela comer, mas ela não
quis” – como disse uma das entrevistadas. Dessa forma, essa relação continua
sendo desigual, mas com uma narrativa que nada mais é do que igual à do
passado, porque elas estão fazendo a sua parte e respeitando a vontade da
trabalhadora.

Patroa: A gente nunca fez assim, distinção de coisas - olha,


isso, isso a senhora não faz – e a empregada aqui de casa é uma
pessoa que tem noção, sabe? Que nem assim, eu compro uma
caixa de...vou falar, minha filha gosta de uma fruta diferente,
ela vê que são frutas diferentes e ela tem noção que é para
minha filha. Ela não vai lá comer a caixa de cereja. Eu compro
banana, maçã, é, as outras frutas, ela come as outras frutas.
Ela não vai lá comer o que é da, ela percebe que foi comprado
para a criança, sabe? Do mesmo jeito as outras coisas, então ela
é uma pessoa que tem muita noção. (Entrevista realizada em
2015).

As cerejas são caras, são especiais, são frutas diferenciadas; é por


isso que somente as pessoas da família “podem” comer. Muitas vezes essas
práticas são justificadas através do discurso de que, em empresas, no mercado
formal de trabalho, os funcionários também não comem juntamente com
seus chefes, ou não comem a mesma refeição que seus superiores; assim, essa
lógica seria totalmente compreensível, já que os empregadores não teriam

179
que compartilhar suas refeições com a trabalhadora contratada. Ao mesmo
tempo, o discurso de que a casa não é uma empresa e que arcar com todos os
direitos trabalhistas é demasiado para uma família é amplamente usado pelas
patroas, mostrando as dificuldades em manter essa contratação trabalhista
de acordo com os parâmetros legislativos. Os discursos são acessados e
manipulados para que a ordem hierárquica permaneça nas casas, usando os
pressupostos do mercado formal de trabalho para que as diferenças sejam
mantidas e trazendo à tona as dicotomias público/privado para os interesses
das posicionalidades dos sujeitos.
Outra característica usada em relação à comida e a formas para
estabelecer diferenciações com as trabalhadoras domésticas remuneradas é o
modo de se pensar as compreensões do que é “sujo”, “impuro”, “fedorento”,
“nojento”. Como já citado anteriormente, algumas vezes a ideia de sujeira
se vincula à trabalhadora e logo o que ela prepara, o que ela toca e o que ela
faz também se torna “sujo”, “nojento” e passa a não ser mais acessado pelas
empregadoras. A obra de Corbin (1987), em que o autor conectava a ideia
da purificação dos odores, cheiros com os comportamentos sociais através
da classe social, onde as elites passavam por um processo de segregação dos
espaços e lugares com mau cheiro, o saneamento básico passa a ser uma arma
do Estado e começa a se criar uma ideologia política frente aos odores que
vinham das ruas, das multidões, lixos, muretas, cemitérios e até os cheiros
dos corpos dos trabalhadores que produziam suor. “Sem dúvida, o primeiro
grupo a manifestar náuseas em relação a este tipo de comportamento foi
a elite. Desse modo, os odores passaram a constituir um dos cenários
privilegiados por onde se tratava a luta de classes. De fato, a burguesia
elaborou um extenso aparato ideológico fundado exclusivamente no aspecto
olfativo”. (GOMES, 1988, p. 262). Essas definições de cheiros, do que é
simbolicamente sujo, como já apontou Fleisher (2002), tem se mostrado
um mecanismo de poder hierarquizante das classes sociais, considerando os
aspectos, afetos e emoções das interações sociais dentro de uma residência;
essas micro diferenciações tornam-se essenciais e fundamentais para a
posicionalidade dos sujeitos.
A literatura específica sobre as compreensões do que seja impuro
e puro, sujo e limpo, nojento e aceitável nas relações de sociabilidade, nos
processos sociais, culturais e econômicos, nos mostra que essas dicotomias
foram utilizadas para moldar a ideia de “civilização” ocidental, além de
ter caracterizado um teor ideológico de separar e diferenciar os sujeitos,

180
como nos apontam Mary Douglas (1976), Marcel Mauss (1974), Goffman
(1988), Elias (1991), por exemplo. O que tenho tentado demostrar é que
essas práticas ideológicas dicotômicas não foram sanadas, quando se trata
de pensar em relações contemporâneas nas contratações de trabalhadoras
domésticas remuneradas; de fato, elas tem sido reconfiguradas. A limpeza
e a comida são formas de perceber essa características de diferenciações
mais veladas, camufladas na narrativa do convite para sentar à mesa, de
fazer parte da festinha de aniversário de algum membro da família, ou de
comprar frutas distintas – uma para a família e outra para quem trabalha
para ela – demostrando como aspectos da “cultura doméstica” se apresentam
atualmente.
Ao realizar a análise das narrativas, dos discursos, das práticas e
lógicas das empregadoras, em relação ao trabalho doméstico e ao trabalho
doméstico remunerado, através das narrativas dessas empregadoras,
percebeu-se como as representações e os símbolos da “casa ideal” eram
concebidos. As patroas idealizavam uma casa impecavelmente limpa e
organizada, em que nada estivesse fora do lugar, nenhuma poeira ou
sujeirinha acumulada em algum dos mais escondidos cantinhos da casa,
que a roupa estivesse lavada e passada, quartos devidamente acomodados,
banheiros absolutamente desinfetados e cheirosos, cozinha sem gordura
e impurezas, além da alimentação diária nutritiva e variada. Essa era uma
idealização que as desgastava emocionalmente, as fazia sentir que seu
tempo era improdutivo e as subjetivava em aspectos ligados à inferioridade.
Essa casa ideal estava no rol das competências exigidas enquanto esposas,
mães e donas-de-casa, utilizando da contratação de uma trabalhadora
doméstica remunerada como uma forma de administrar as demandas que
essa idealização estabelecia. Nesse sentido, a faceta conservadora que ainda
estava estabelecida dentro desses lares vai além das subjetivações frente à
contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada; o conservadorismo
também se expõe na dificuldade de estabelecer debates e de concretizar os
cuidados de uma forma politizada, com o qual uma sociedade democrática
deveria se comprometer enquanto elemento essencial para sanar essas
diversas formas de desigualdades. Enquanto isso, as mulheres pertencentes
à classe média e classe média alta insistem na alternativa da contratação
de uma trabalhadora doméstica remunerada, trazendo elementos que
sustentam relações de poder hierarquizadas, que nada ampliam as percepções
democráticas do cuidado.

181
A contratação era percebida como o caminho da “liberdade” por essas
mulheres, que as retiravam do aprisionamento entediante e desgastante do
cotidiano cíclico do lar. Mas essa tão sonhada liberdade lhes custa caro”; a
capacidade para conduzir todas as complexidades que se inseriam em suas
vidas privadas, ao colocar outra mulher no espaço residencial, da intimidade,
do cuidado, da nutrição e da manutenção desse lugar, requer muita habilidade
nas formas de negociações, tanto as que precisavam realizar consigo mesmas,
quanto em suas posições de poder. Nas negociações subjetivas, as patroas
precisam agenciar suas posicionalidades para que nada fique “fora do lugar”
nessa relação; elas demandam os cuidados a outra mulher, mas são elas que
mandam, observam, vigiam, estabelecem os parâmetros do que consideram
bom ou não; querem ser livres, mas continuam vinculadas ao lugar primordial
estabelecido como o da responsabilidade feminina. Tendo em mira tal intuito,
as negociações enquanto sujeitos administrando suas posicionalidades e o
seu exercício de poder para manter os diversos sentidos de pertencimento do
lar, as patroas acessam variados aspectos de diferenciações que se interpõem
nessa relação empregatícia, sobretudo as de classe social e étnico-raciais.
Todavia, importa lembrar que se as patroas pagam “caro”
na contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada, quer
economicamente quer emocionalmente, as trabalhadoras continuam ainda
a receber as misérias das desigualdades de classe e étnico-raciais, além de
não saírem de um quadro marginalizado economicamente, sem seus direitos
plenamente reconhecidos. A “cultura doméstica”, antes de mais nada, pauta
os parâmetros da não empatia, do não reconhecimento e de uma idealização
da casa, do lar e da família irreais, reproduzindo uma violenta realidade que
angustia e causa infelicidade nas patroas e mantém uma precária relação
trabalhista ainda vinculada aos pressupostos de servilismo. O rompimento
real com a “cultura doméstica” se mostra, pelas análises realizadas nessa
pesquisa, como um caminho para se concretizar parâmetros minimante
modernos, em termos contratuais legais e igualitários, no que tange às
relações travadas cotidianamente no lar. Enquanto isso, as patroas continuam
tentando encontrar a trabalhadora “perfeita”, que cubra seus desejos de
liberdade, suas idealizações referentes ao lar e que sejam o contraponto
posicional de seus exercícios de poder.

182
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184
CUIDADO, GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS NO
BRASIL: ESSENCIALIZAÇÕES E INVISIBILIZAÇÕES
NO TRABALHO DE CUIDADORAS DE PESSOAS
COM A ENFERMIDADE DE ALZHEIMER
Sandro Marcos Castro de Araújo28

Introdução

A necessidade crescente de algum tipo de cuidado e a constatação de que as


pessoas são ora receptoras, ora provedoras do care ainda não produziram,
mesmo que minimamente, uma democratização desse trabalho material e
afetivo. Persiste a concepção de que se trata de uma atividade circunscrita ao
mundo privado, ao espaço doméstico, assim como, de forma naturalizada e
essencializada, a uma atribuição de mulheres ou de pessoas que estejam em
algum tipo de relação de subalternidade.
O mercado consumidor de alguma modalidade de cuidado,
especialmente os destinados à parcela idosa de suas populações, tem crescido
num ritmo frenético, sobretudo em nações cujo poder econômico de seus
cidadãos permite a contratação de careworkers, normalmente pessoas
oriundas de regiões empobrecidas e com uma situação social e econômica
desfavorável. Essas/es trabalhadoras/es representam, por um lado, a solução
para o problema da falta de mão de obra vinculada ao cuidado nesses países e,
por outro lado, a principal fonte de recursos econômicos para suas famílias e
para a economia do local de origem. O que se observa é uma atual e complexa
rede de transnacionalização de trabalhadoras do care.
No âmbito da regulamentação estatal dessa atividade no Brasil, o que
se verifica é um quadro de completa falta de institucionalização e proteção
jurídica. A profissão de cuidador não existe, sendo que o projeto que trata
28 Membro do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Federal do Paraná.
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Desenvolve pesquisas abordando
as áreas do cuidado, gênero e suas interseccionalidades, especialmente no que concerne
ao desenvolvimento de políticas públicas destinadas ao care e a suas trabalhadoras. Exerce
atividades de pesquisa, ensino e extensão no Instituto Federal do Paraná, campus de Campo
Largo. sandro.araujo@ifpr.edu.br

185
dessa questão tramita no Congresso Nacional a passos lentos e sem a atenção
política necessária. Não existe motivação nem ações concretas do Estado, no
que diz respeito ao desenvolvimento de políticas públicas que constituam
o cuidado como algo prioritário e direito/dever de todos os cidadãos. Nos
raros casos existentes ou em que apenas se tangencia a problemática social
do cuidado, reproduz-se de forma explícita ou, em alguns casos, através de
linguagem sofismável, a perpetuação de essencializações e distorções que
estabelecem a mulher como seu quase único responsável, bem como o não
reconhecimento do valor social e econômico desse trabalho.
Esta invisibilização das/dos trabalhadoras/es do cuidado e da
complexidade que está presente no que elas/eles executam e como isso
incide objetiva e subjetivamente sobre as suas vidas e das demais pessoas
que passam a constituir relações sociais perpassadas por algum tipo de care,
está a constituir, portanto, uma questão social e política que requer reflexões
e ações efetivas de transformação.
Neste capítulo, tendo como referência uma pesquisa realizada entre
cuidadoras de pessoas com a enfermidade de Alzheimer, no período de 2012
a 2016, nos estados do Paraná e Santa Catarina29, analisar-se-á como essas
trabalhadoras estão compreendendo suas atividades de cuidado e como se
sentem em relação ao não reconhecimento jurídico e social do que fazem,
uma vez que não existe a profissão regulamentada de “cuidador de idosos”
no Brasil.

A gênese do care na trajetória de vida das mulheres cuidadoras

De maneira geral, o percurso que as pessoas desenvolvem até ingressar


no círculo do cuidado, seja ele o que ocorre nas relações familiares ou na
perspectiva de uma atividade remunerada, é marcado por circunstâncias e
fatores tais como parentesco (cônjuges e filhas/os), gênero (na sua maioria
mulheres), proximidade física (quem vive com a pessoa), proximidade
afetiva, bem como a necessidade de alguma forma de rendimento financeiro.
(MENDES, 2005; SANTOS, 2010; ARAÚJO, 2016). Nos depoimentos obtidos

29 Trata-se da tese de doutorado realizada no período de 2012-2016, junto ao


Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná, intitulada
“Cuidado e Gênero entre Cuidadoras de Pessoas com a enfermidade de Alzheimer”.

186
com mulheres cuidadoras de pessoas com a enfermidade de Alzheimer30, isso
ficou notadamente verificado:

Na verdade, na época foi necessidade, até porque eu era quem


ficava mais em casa, eu era a filha mais nova. Todos trabalhavam
fora, aí acabei cuidando, até porque tem o envolvimento
familiar também, eu sou a filha dele, que eu não ia deixar outra
pessoa qualquer cuidar dele [pai doente]. Eu prefiro cuidar,
porque nem sempre a gente pode confiar em outra pessoa.
(Clarice)

Não sei, uma porque minha mãe trabalhava fora, outra porque
eu gostava deles. Minha mãe morava praticamente ao lado
deles, eu gostava de tá com eles, com os dois [avós], sempre
assim. Tanto que quando ela morreu, pra mim foi um choque,
porque morreu comigo. Ela [avó] sempre dizia “quero morrer
com você”; daí eu dizia, não, não quero que você morra comigo.
Ela morreu comigo. E aí depois o meu avô ficou doente e ele não
aceitava ninguém que não fosse eu. Não tinha mais ninguém,
ninguém queria. Ele também morreu em meus braços. (Rachel)

Em ambas as narrativas, o aspecto da necessidade impõe-se como


algo determinante no processo de construção de suas trajetórias como
cuidadoras, assim como os laços de parentesco e de afeto. Num primeiro
instante, essa necessidade decorre, revelando a gendrificação do cuidado,
da ausência de outras mulheres, mãe, tias, irmãs mais velhas, que poderiam

30 Tive a oportunidade de conhecer as trajetórias de doze mulheres cuidadoras. Estas,


no período da pesquisa, viviam e trabalhavam nas cidades de Curitiba e de Campo Largo,
Estado do Paraná, e nas cidades de Florianópolis, São José e Palhoça, Estado de Santa Catarina.
A faixa etária variou entre vinte e dois anos e cinquenta e cinco anos de idade. A escolaridade
apresentou-se entre seis que possuíam ensino fundamental completo, três com ensino médio
incompleto, duas com ensino médio completo e uma graduada em Curso de Enfermagem.
Duas dessas cuidadoras são solteiras, cinco separadas, uma divorciada e quatro estão casadas.
No que concerne ao tempo em que exercem a atividade do cuidado, de forma remunerada
ou não, verificaram-se os extremos de dois e dezenove anos. Dessas trabalhadoras, sete não
possuem qualquer registro em sua carteira de trabalho. As cuidadoras com registro em carteira
são alocadas no grupo das trabalhadoras domésticas. Não foram questionados nessa pesquisa
dados relacionados ao número de filhos dessas mulheres, bem como aspectos ligados a suas
identidades raciais.

187
assumir para si as tarefas do care familiar, mas que estavam impossibilitadas
em função de terem saído de casa para trabalhar em outras ocupações.
Esses depoimentos evidenciam também que, normalmente somado
à esta dimensão da necessidade e da proximidade afetiva, existe o conteúdo
moral do care, da resposta dada à necessidade manifestada; isto é, para essas
cuidadoras, a necessidade e a responsabilidade decorrente de terem que
assumir o cuidado de suas casas e parentes constituem uma espécie de dever,
de acordo moral, onde a dependência mútua pressupõe a preservação das
relações. (GARRAU; LE GOFF, 2010).
Esta noção de dever moral, constituída pelo vínculo afetivo e pela
feminilização das atividades de care, socialmente estabelecida, efetiva-se
com toda sua carga normativa na vida e na subjetividade dessas mulheres
cuidadoras e em suas interações sociais. Pascale Molinier e Patrícia
Paperman (2015), analisando essa dimensão moral do care nas sociedades
contemporâneas, consideram:

As relações de cuidado são, primeiramente, interpessoais,


quer se trate de trabalho remunerado ou não, mas fazem
parte também de um processo social mais amplo, que
comporta diferentes fases ou momentos morais que envolvem
protagonistas múltiplos (indivíduos, grupos e instituições),
em relações frequentemente hierarquizadas. (MOLINIER;
PAPERMAN, 2015, p.34).

Todavia, a dimensão da necessidade, que atinge as trajetórias dessas


cuidadoras em seus encontros e aproximações com a afetividade, e uma moral
estabelecida a partir das relações de cuidado requerem uma consideração
adicional, sob outro enfoque, isto é, como uma possibilidade do exercício
de uma atividade laborativa remunerada, que cobra inegavelmente novas
composições do trabalho doméstico e do trabalho de care.
O depoimento de Conceição explicita esse aspecto:

Foi com a senhora que eu comecei a cuidar como te contei [...].


Os filhos me pagavam um dinheiro pra eu cuidar. Ahh, eu não
sei, não vejo nenhum problema né, eu estou trabalhando, estou
lá cuidando [...] não sei, mas acho que é um trabalho como
qualquer outro, né. (Conceição)

188
Para Conceição, seu trabalho como cuidadora requer ser considerado,
em sua importância e valoração financeira, como qualquer outra atividade
profissional. Na mesma perspectiva segue a narrativa de Hilda. Sua fala
evidencia que, na contratação de uma/um trabalhadora/or do cuidado, se
estabelece uma relação de trabalho como todas as outras, com as suas nuances,
conflitos, interesses e, em muitos casos, injustiças e disputas trabalhistas.

Nossa Senhora, eu começo nove da manhã e vou até às 5 horas,


sem parar; não tem horário de almoço. Aí quando eu viajo, se
for pra ver, no caso eu vou ficar quatro meses diretos, não tem
férias, não tem feriado, não tem fim de semana. Eles não pagam
por isso, não pagam por esse tempo da gente [...]. (Hilda)

O tempo do cuidado, à que se refere Hilda, não é o tempo fabril, o


tempo do relógio, da máquina. O começar e o findar, no âmbito do cuidado,
não são circunscritos pelo ponteiro do relógio. Trata-se de uma “atividade do
afeto”, onde a combinação de sentimentos, de afeição e das responsabilidades
é acompanhada de ações que surgem das necessidades ou do bem-estar da
pessoa dentro de uma interação face a face. (CANCIAN, apud MOLINIER;
LAUGIER; PAPERMAN, 2005).
Este tempo, que também não é alcançado pelo dinheiro, mas que se
insere na troca pela remuneração financeira em forma de salário, também é
de uma lógica da moral que acompanha uma ética do cuidado que, por sua vez,
exige da trabalhadora do care resposta e capacidades ao que se lhe apresenta
no cotidiano de suas atividades, independentemente de estar ela sendo
paga com justiça ou não. (MOLINIER; LAUGIER; PAPERMAM, 2005). Nesta
perspectiva, o reconhecimento dos custos financeiros do cuidado apresenta-
se como uma questão central, especialmente quando se pensa num processo
de politização e democratização do care. (TRONTO, 2007; ZELIZER, 2012).
Nas entrevistas realizadas, todas as cuidadoras revelaram que
estavam, nesse momento de suas vidas, desempenhando a atividade do
cuidado por necessidade financeira; ou seja, para elas o care constitui
inegavelmente uma fonte de renda; em alguns casos, a única fonte de renda
em seus domicílios.
A necessidade de ganhos financeiros, os valores obtidos em forma
de salário, vistos por elas como injustos, em muitos casos, e a afetividade
emanada de relações tão próximas, como as que ocorrem com o cuidado de

189
pessoas fragilizadas por enfermidades como o Alzheimer, se interpenetram
e atingem diretamente a subjetividade dessas trabalhadoras.
A desconsideração da forma pela qual esses elementos se conectam e
determinam tanto estados psicológicos distintos quanto práticas de cuidado
consideradas “boas” ou “más” resulta numa visão estereotipada do care e de
suas/eus executoras/es, em sua maioria mulheres. Da mesma forma, associar
o trabalho do cuidado à dimensão da filantropia segue essa visão distorcida,
isto é, aquela que transforma o care numa atividade vinculada ao plano da
caridade, práticas de pessoas abnegadas, espiritualizadas.
Não se trata de desconsiderar que alguns elementos da idiossincrasia
dos indivíduos informem as visões que se tem sobre o trabalho e as
motivações para o mesmo. Isso acontece no trabalho desenvolvido pelas
cuidadoras. Todavia, desconsiderar que, além desses elementos intrínsecos
de cada pessoa, também existam outros legítimos interesses (necessidades)
em sua disposição de trabalhar com o care, como por exemplo, o recebimento
de um valor financeiro, constitui uma forma perversa e histórica da
manutenção de formas de exploração do trabalho feminino, bem como de
representações estereotipadas do devotamento e cuidado como expressão de
amor. (MOLINIER, 2012).

Cuidado, envelhecimento e suas vicissitudes

A longevidade é uma das mais relevantes conquistas do ser humano nos


últimos séculos, alcançada pela conjunção de vários fatores, tais como o
desenvolvimento de novas tecnologias na área da saúde e medicamentos,
acesso a formas mais equilibradas de alimentação, desenvolvimento de
políticas públicas destinadas ao bem-estar e à saúde, entre outras. Essa
conquista que de alguma forma alcança grande parte das pessoas no mundo
contemporâneo, por um lado deve ser mantida através de contínuos esforços
da sociedade civil e dos governos; por outro, o aumento da expectativa de vida
das pessoas suscita novos desafios, novas vicissitudes e, consequentemente,
carece de estratégias de solução.
Dentre esses desafios, está a manutenção e a conquista de direitos
direcionados a essa parcela da população, especialmente àqueles que
proporcionam condições objetivas de viver a velhice com qualidade de
vida. Aqui deve-se incluir todas as possibilidades de realização dos projetos

190
pessoais e uma contínua e qualitativa inserção dessas pessoas e de suas
experiências no todo da vida comunitária. Disso se conclui que esses direitos,
incluído aqui principalmente o direito à saúde em sua plenitude, deve ser
meta preponderante na elaboração de políticas públicas destinadas a essas
pessoas.
Neste capítulo, em que se aborda o trabalho das mulheres cuidadoras
de pessoas com a enfermidade de Alzheimer e de como essa atividade
permanece socialmente invisibilizada, é preponderante a discussão do
aumento exponencial de casos de pessoas portadoras de enfermidades
neurodegenerativas, uma vez que esta experiência, perpassada por eventos
de dor e sofrimento (dos portadores e de todos os que estão à sua volta), está
vinculada à forma como o cuidado, enquanto atividade material e afetiva,
estará sendo ofertada ou não a esses cidadãos.
Em países como o Brasil essa problemática é acentuada pela
velocidade com que a população entrou nesse processo de envelhecimento.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE,
2013), a expectativa de vida aumentou, no período de 2002 a 2013, em 3
anos; em média, vive-se até 74,6 anos (para o sexo masculino, a expectativa
é de 71 anos; e para o sexo feminino, esse índice alcança os 78,3 anos). As
projeções desse Instituto indicam que tal valor deverá alcançar a média de
81,2 anos de idade, para ambos os sexos, em 2060.
No que concerne aos dados que revelam esse ininterrupto processo
de envelhecimento da população brasileira, segundo o IBGE (2013), em 1960
o número de pessoas com 60 anos ou mais correspondia a 2,7% do total da
população (70 milhões de habitantes). Em 2010, esse percentual já atingia a
marca dos 7,4% do total da população (190 milhões de habitantes). Na outra
ponta do perfil da sociedade brasileira, em 1950, o percentual de jovens, isto
é, pessoas incluídas na faixa etária de 15 a 29 anos de idade, era de 42%,
passando para 30%, em 2000, e projetada para 18%, em 2050.
Outro dado relevante é a expectativa que se tem para a população
brasileira idosa; no ano de 2025, essa faixa etária representará algo em
torno de 32 milhões de indivíduos, saltando para 59 milhões, em 2060.
Desta forma, no que diz respeito ao problema das doenças incapacitantes
típicas dessa faixa etária, a falta de preparo e de políticas públicas para o
atendimento a essas pessoas e famílias exige ações urgentes. (IBGE, 2014).
Esses dados revelam que o envelhecimento da população brasileira
é um fenômeno inquestionável e suscitador de debates e de ações políticas

191
que busquem compreender e atender aos significados e às necessidades
sociais e individuais desse processo. No que tange mais especificamente aos
propósitos desse capítulo, diante do aumento das doenças crônicas nessa
faixa etária, especialmente das neurológicas, faz-se necessário o debate
em torno da construção coletiva de políticas públicas que atendam a esses
cidadãos, seus familiares e às trabalhadoras do care, para assim se criar
capacidade de responder de forma eficaz a essas novas demandas.
Outro elemento que permite um olhar analítico sobre os conteúdos
do cuidado, dentro da problemática que se está apresentando, reside em
perceber como as doenças neurodegenerativas, seus portadores e quem
está próximo a essas pessoas, sejam familiares ou cuidadoras (remuneradas
ou não), são analisados e descritos pelos discursos externos e distantes de
sua realidade, isto é, pela lente do especialista31 e de seu arcabouço teórico-
científico.
Dessa forma, a enfermidade de Alzheimer tem se tornado, segundo
esses discursos advindos especialmente das áreas ligadas às ciências da
saúde, a mais severa demência que, associada normalmente a outras doenças
típicas, mas não exclusivas do processo de envelhecimento, tende a afetar
pessoas em todo o mundo. O vertiginoso acréscimo do número de pessoas
que são diagnosticadas com esta enfermidade crônica e degenerativa indica
que essa constitui uma das maiores preocupações das autoridades públicas
ligadas à área da saúde, sobretudo por demandar cuidados de longa duração.
Esses cuidados necessitam ser compreendidos como todo o tipo de atenção
prestada a pessoas com doença crônica ou deficiência, que não podem cuidar
de si mesmas por longos períodos de tempo. (CAMARANO, 2012).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Alzheimer’s Disease
International (ADI) apontam, em seus relatórios32, dados indicando que

31 No caso dos interesses manifestados nesse capítulo, refiro-me especialmente aos


discursos e às práticas provenientes da área da saúde, em que o especialista é representado
pelo médico e os agentes públicos estão envolvidos na gestão pública, no Estado e em sua
burocracia, a qual detém o saber-poder de estipular e desenvolver programas para todos os
segmentos sociais envolvidos nesse universo de enfermidades neurodegenerativas ou não.
32 A ADI (Alzheimer’s Disease International) publica anualmente relatório sobre
a doença de Alzheimer e suas circunstâncias médicas, políticas, econômicas e sociais, em
cada região do mundo. Reporta também números e estatísticas sobre o avanço da doença,
resultados de pesquisas vinculadas ao tratamento da enfermidade, modelos de planos e ações
políticas já implementadas em alguns países para o enfrentamento desse problema de saúde
pública, bem como uma série de informações para as famílias dos pacientes, para os próprios

192
a enfermidade de Alzheimer constitui uma problemática sem fronteiras
física, étnica, cultural, de gênero ou econômica. Segundo relatórios dessas
duas organizações, a cada quatro segundos surge um novo caso de doença
neurodegenerativa no mundo (7,7 milhões de novos casos anualmente),
sendo essa uma estimativa até o momento progressiva. No ano de 2013,
mais de 44 milhões de pessoas viviam com Alzheimer, distribuídas pelas
várias regiões do mundo e dos países. A projeção, segundo essas instituições,
é que muito em breve o número de casos diagnosticados seja muito maior,
ressalvando que esse diagnóstico se dá muitas vezes pela exclusão de outras
possíveis demências; portanto, é possível considerar que no ano de 2030
esse número de pessoas portadoras de Alzheimer será, infelizmente, de 75,6
milhões, alcançando no ano de 2050 a marca dos 135,5 milhões de doentes.
(ADI, 2014).
Pesquisas realizadas pela ADI indicam também que a maioria das
pessoas portadoras de Alzheimer está vivendo sem receber um diagnóstico
formal da enfermidade. Em países cuja população possui uma alta renda
per capita apenas 20-50% dos casos de doenças neurodegenerativas são
reconhecidos e documentados, sendo que esse déficit de documentação
é certamente muito maior nos países de baixa e média renda. Um estudo
desenvolvido na Índia indicou que 90% dos casos de demências permanecem
não identificados. Se esses dados forem extrapolados para outros países,
especialmente aos mais empobrecidos, é possível que a maioria das situações
de pessoas com esse tipo de enfermidade não tenha recebido diagnóstico
oficial e, portanto, esteja sem condições, inclusive formais, para ter acesso ao
tratamento, aos cuidados e apoios necessários por parte de políticas públicas,
quando existentes. (ADI, 2014).
O desconhecimento acerca do diagnóstico da doença, do número de
pessoas que são dela portadoras, bem como de sua associação com outros tipos
de enfermidades e/ou características da senilidade, serve como elemento
norteador para a identificação de como o care se coloca objetivamente às
sociedades contemporâneas. No Brasil, segundo a Associação Brasileira
de Alzheimer (ABRAz)33, as estimativas sobre o número de portadores de

pacientes e a comunidade em geral. O acesso e a crítica aos dados desse relatório e a todos
os outros documentos e tecnologias desenvolvidos pela ADI podem ser feitos pelo endereço
eletrônico. Disponível em: < http://www.alz.co.uk>. Acesso em: 02 fev. 2015.
33 A Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz) foi fundada em 16 de agosto de 1991,
no município de São Paulo. Trata-se de uma entidade privada, de natureza civil e sem fins
lucrativos, tendo como objetivo principal ser uma espécie de núcleo central, em todo país,

193
Alzheimer, ainda que a maioria esteja vivenciando essa enfermidade sem
um diagnóstico médico, giram em torno de 1,2 milhão de pessoas. Importa
ressaltar que em muitas famílias e no próprio âmbito da saúde pública e
de seus responsáveis, o desconhecimento sobre a doença, seus sintomas,
diagnóstico e tratamento, assim como de sua associação com outros tipos
de problemas neurodegenerativos, decorrentes do avanço da idade, acabam
por camuflar a gravidade do problema ou por induzir ao equívoco da não
representatividade da realidade por esses coeficientes estatísticos. Por isso,
ao se considerar que enfermidades como o Alzheimer são debilitadoras e
exigem atenção e cuidado permanentes, incluindo pessoas que desenvolvam
esse trabalho, quer sejam familiares, voluntários ou cuidadoras remuneradas,
constatar-se-á que não se pode considerar, de fato, esse quadro como um
problema individual, localizado e específico dessa ou daquela família, mas
sim na perspectiva de um problema público de saúde.
Esse cenário, que não pode ser vislumbrado sob a ótica impessoal da
estatística, deve ser considerado prioridade na agenda das políticas públicas
nacionais, pois impacta tanto os indivíduos que portam essas doenças,
quanto suas famílias e entorno social. Ou seja, as doenças degenerativas
criam custos emocionais e econômicos, frise-se, passando por necessidades
objetivas de care que precisam ser consideradas como sendo de todos os
cidadãos que convivem em sociedade. Trata-se, portanto, fundamentalmente
de um problema político.
Tanto a situação atual quanto o quadro projetado deveriam ser
utilizados como valioso instrumento para o planejamento e execução
de políticas públicas que atendam a essas demandas crescentes de suas
populações e que, como indica Tronto (2007, 1997), deveriam constituir um
conjunto de ações concretas, executadas por mulheres e homens pertencentes
a comunidades democráticas de cuidado.

O espaço sociopolítico que (não) ocupa a(o) trabalhadora(or)


do cuidado destinado aos idosos

De maneira geral, as pesquisas que abordam a temática do trabalho de care


das pessoas envolvidas com a D.A. e outras demências. Atualmente, possui 13 mil associados,
distribuídos em 21 divisões regionais e em 51 sub-regionais em todas as cinco regiões do
Brasil. Faz parte da Federação Brasileira das Associações de Alzheimer que, por sua vez,
representa os interesses de seus associados na Alzheimer’s Disease International (ADI) e na
Alzheimer Ibero-Americana (AIB).

194
apontam para um cenário de significativas carências, quanto aos direitos
fundamentais desses cidadãos e a falta de políticas públicas que reconheçam
e atendam às necessidades das pessoas que se dedicam a essa atividade,
especialmente quando se desconsidera os impactos que o cuidar tem sobre a
saúde física e mental dessas/es trabalhadoras/es.
Pesquisadoras brasileiras do cuidado como Altafim (2007) e Brito
(2009) propõem uma análise desses impactos, abordando-os em duas
perspectivas, ainda que de forma apenas didática: a dimensão objetiva
e a dimensão subjetiva na forma como isso se manifesta na vida da/o
cuidadora/or.
Na dimensão objetiva estariam aquelas situações vinculadas ao
cotidiano, como as alterações nas relações familiares do cuidador, a diminuição
considerável de suas atividades sociais, a falta de qualificação e remuneração
justa pelo trabalho que executam e, principalmente, uma sensível propensão
ao desenvolvimento de agravantes em sua saúde. A dimensão subjetiva está
atrelada ao processo de adoecimento psíquico da cuidadora. Isso é verificado
na experiência de Adélia e Cecília:

Querendo ou não, o sofrimento de uma pessoa passa pra gente;


você vê que a pessoa está sofrendo, você não fica esperando;
nossa, a pessoa está sofrendo. Você retém aquilo e ninguém
pergunta se você sente aquilo, se você está sofrendo ou não.
Eu sofro muito por causa dela, tem dia que chego em casa e só
quero chorar [...] meus filhos perguntam por que to chorando.
(Adélia)

Têm dias que parece uma tortura, mexe muito com o lado
emocional da gente, ao mesmo tempo que é gratificante, as
vezes massacra. (Cecília)

A pesquisa de Caldeira e Ribeiro (2004) indica que o trabalho


desenvolvido pelas pessoas que passam a cuidar de um idoso debilitado,
especialmente dos portadores de algum tipo de doença neurodegenerativa,
– situações em que as dificuldades são maiores, normalmente afetando áreas
cerebrais responsáveis pela capacidade de comunicação verbal e gestual, –
aumenta consideravelmente sua vulnerabilidade a doenças físicas, depressão,
perda de peso, insônia, abuso de medicamentos psicotrópicos e álcool.

195
Esses aspectos debilitantes decorrentes da atividade do cuidar
também são confirmados em pesquisa desenvolvida por Paiva e Flausino
(2006). Dados dessa investigação indicam outro grave problema nessa
relação entre quem cuida e quem é cuidado, a saber, a faixa etária avançada
de algumas das pessoas que desempenham essa atividade.
Os dados apontados por essas estudiosas indicam que, em muitos
casos, trata-se de pessoa idosa, que já tem uma problemática relacionada à
sua saúde pessoal, cuidando de outro idoso debilitado. Para Doornbos (2002),
o cuidador, por força de sua exposição prolongada aos diferentes estressores
presentes na situação de cuidado, está sob o risco de apresentar problemas
de saúde semelhantes aos evidenciados pela pessoa para a qual ela provê
o cuidado, tais como artrite, hipertensão arterial, doenças coronarianas,
processos dolorosos, alterações em seu sistema imunológico, dispepsia,
úlceras, etc.
A situação vivenciada por Cora é reveladora dessa problemática.

Eu adquiri o túnel do carpo, tendinite, bursite. E agora eu tô


com um problema no joelho, na rótula do meu joelho, que está
com a cartilagem gasta. Eu vou fazer mais exames e iniciar um
tratamento. (Cora)

A pesquisa realizada por Pinto (2009), intitulada “Qualidade de


vida de cuidadoras de idosos com a doença de Alzheimer”, demonstra o quão
complexo é esse processo, sendo que existe uma forte prevalência de doenças
similares em ambas as pessoas. Também se confirmam por essa análise as
indicações de que em muitas situações o que está ocorrendo é uma espécie
de “endocuidado”34 na velhice. Em amostra observada de 118 cuidadoras/es,
quase 60% dos casos são de pessoas acima dos 55 anos de idade. O número
de mulheres que realizam as atividades do cuidado atinge os 86%.
Outro dado revelador dessa pesquisa está na indicação de que 96,6%
das cuidadoras entrevistadas apresentavam algum tipo de doença, antes de
começar a trabalhar com o care:
34 Pesquisa de Lapola, Caxambu e Campos (2008), com cuidadores de pacientes com
Alzheimer numa unidade de saúde de referência no município de Curitiba, também confirma
o cenário da cuidadora pertencer à mesma faixa etária do paciente (65% dos casos analisados
nessa amostra). Não há dúvida que isso indica um cenário onde o cuidado ainda não foi
percebido como uma dimensão fundante da vida social, assim como ausência e ineficácia de
programas públicos de atendimento a essas pessoas, pacientes e suas cuidadoras.

196
Cuidadores de pacientes com Alzheimer possuem maiores
chances de ter sintomas psiquiátricos, problemas de saúde,
maior frequência de conflitos familiares e problemas
profissionais, se comparados a pessoas da mesma idade que não
exercem esse papel. Até 60% dos cuidadores de pacientes com
a enfermidade de Alzheimer podem desenvolver distúrbios
físicos e psicológicos; e os mais comuns são hipertensão arterial,
desordens digestivas, respiratórias, propensão a infecções,
depressão, ansiedade e insônia. (PINTO, 2009, p.652).

Nesse sentido, são oportunas as considerações de Dejours (1996),


ao se referir aos estados psíquicos que incidem sobre a vida dos indivíduos,
quando estabelecem relações consigo e com outras pessoas, em função
de uma ocupação. Para ele, o trabalhador inserido numa determinada
organização de trabalho desenvolve uma carga psíquica resultante das
excitações exógenas e endógenas às quais está constantemente submetido.
No caso das cuidadoras, isso fica muito evidente, conforme indicaram as
pesquisas citadas anteriormente.
Isso alcança um grau ainda mais acentuado, ao se perceber que
não existe um muro a separar a vida pessoal e a vida profissional. De certa
forma, portanto, estados de tensão que propiciam um determinado nível de
sofrimento, sobretudo em situações concretas de patologias onde não há
prognóstico de melhora, são como que inevitáveis no exercício do cuidado.
Para Dejours (1996, p.101), “a relação subjetiva com o trabalho leva
seus tentáculos para além do espaço da fábrica ou do escritório e coloniza
profundamente o espaço fora do trabalho”. Existe, nessa afirmação, uma
rejeição categórica, aplicável ao mundo do cuidado, de espaços estanques e
distintos, isto é, expressões obsoletas que se referem a um dentro e a um fora
do trabalho.
Assim, ao se analisar os impactos que a atividade do cuidar produz
sobre as cuidadoras, sobre como sua subjetividade é atingida, sobre como seu
corpo somatiza e manifesta-se em função desse trabalho, deve-se considerar
um Outro real, o “homem concreto” de Dejours (1996), ou ainda, conforme
Souza (2012), a parte viva, sensível, reativa e sofredora do trabalhador, os
elementos constituintes da sua forma de ser, que não pode ser negligenciada
na análise da relação ser humano versus trabalho.

197
Entretanto, apesar de pesquisas indicarem, em sua maior parte,
aspectos que diretamente ou não debilitam o estado de saúde física e mental
das cuidadoras, não é pertinente desconsiderar que, para algumas dessas
trabalhadoras, existe uma espécie de valoração positiva dos aspectos de sua
vida pessoal e social, ao desempenharem atividades de care.
O trabalho de Caldas (2002) indica, por exemplo, que, ao realizarem
atividades relacionadas ao cuidado, algumas pessoas relatam ganho em sua
autoestima, em especial por verem que estavam de alguma forma atendendo
satisfatoriamente às necessidades de outra pessoa. Sommerhalder e Neri
(2001) constataram que a execução do care pode desencadear, em algumas
pessoas, um processo de ressignificação existencial onde a saúde, doença, a
vida e morte passam a ser considerados dentro de um conjunto de situações
complementares.
Na análise que Santos (2010) fez sobre o cuidado prestado por e para
membros familiares, ele constatou uma mobilização de toda a família, no
sentido de compreender o fenômeno que está ocorrendo em seu interior, o
que, por sua vez, possibilitaria um amadurecimento nas relações e decisões
tomadas entre seus membros.
Associados aos resultados obtidos nas pesquisas citadas estão
presentes também elementos considerados positivos pelas pessoas que
cuidam que se ligam a um sentimento de gratidão pelo que já receberam
de outras pessoas, inclusive, da pessoa assistida, de realização pessoal e,
inegavelmente, de satisfação por cumprirem bem uma missão perpassada
pelo discurso religioso. (SANTOS, 2010). Os depoimentos a seguir seguem
essa direção:

Cuidado é dar atenção que a paciente precisa, o carinho, o


amor, porque nessa fase eu acho que eles precisam bastante do
carinho e amor que é o principal, pra eles terem um pouquinho
de estabilidade, um pouquinho de bem-estar. É uma coisa, eu
gosto, sinceramente, eu gosto, quando eu vi o cartaz ali no
postinho, porque naquele dia eu levantei assim, se aparecesse
assim uma pessoa idosa, porque eu tava em casa, não tava
trabalhando, não tenho como trabalhar agora por causa do
meu problema de saúde também, e se aparecesse alguém pra
eu cuidar seria bom, pelo menos também eu ocupava a minha
cabeça. Porque eu tava sem fazer nada, daí eu vim nesse

198
postinho e em seguida eu liguei, já vim aqui e no outro dia,
dois dias depois eu já comecei. Estou muito bem, muito feliz
trabalhando. (Bertha)

Eu consegui perceber assim, eu estava muito em depressão


quando estava em casa e eu já melhorei depois que eu vim pra
cá, já melhorei porque eu tô fora de casa. O trabalho me faz
bem. (Hilda)

Sim, eu me tornei, como é que vou te dizer, uma pessoa mais


bondosa. Eu já era antes, mas agora eu sou mais, sou mais
dedicada, mais preocupada com aquela situação. (Simone)

Por isso mesmo, a criação de estratégias que visem a garantir


algum suporte, tanto no aspecto da execução de suas atividades, quanto
na observação e manutenção das condições de saúde e da qualidade de
vida de quem executa os trabalhos de cuidado, é urgente e deve ser uma
corresponsabilidade de todos os segmentos sociais liderados pelo Estado.
Nesse sentido, a falta da regulamentação jurídica da profissão de
cuidador de idosos no Brasil explicita de forma inequívoca uma orientação
política do Estado e de seus gestores (HEIDEMANN, 2009), assim como
um obstáculo ao processo de reconhecimento do cuidado como atividade
material e afetiva de todos os cidadãos, e não como algo feito para e por
pessoas que ocupem posição de subalternidade (de gênero, econômica,
política) nas sociedades.
Essa desconsideração institucionalizada pelo conjunto de pessoas
que se dedica ao trabalho do cuidado a idosos explicita também como
tradicionais formas de divisão sexual do trabalho são produzidas e
reproduzidas. O cuidado persiste dentro do imaginário social e cultural do
país como uma atividade doméstica e de mulheres. Isso ficou evidenciado
nos conteúdos das narrativas das cuidadoras entrevistadas, revelando, entre
outros sentimentos, um profundo mal-estar e indignação com o fato de não
terem reconhecimento social, moral e financeiro, nos locais onde executam o
seu trabalho como cuidadoras de idosos. Uma dessas entrevistadas, Rachel,
revelou, em seu depoimento, num momento de indignação, ao ser indagada
porque não estava registrada em carteira de trabalho como cuidadora de
idosos e sim como trabalhadora doméstica, que não desejava estar assim
registrada, que não era empregada doméstica, mas sim cuidadora. Todavia,

199
essa situação era imposta a ela e, pela necessidade do trabalho, ela acabava
se submetendo e de algum modo isso atingia sua saúde emocional, sua
motivação e sua auto percepção como cuidadora.

Sandro- E registro em carteira, você tem?


Rachel- Hoje eu tenho.
Sandro- E como está registrada?
Rachel- Como doméstica.
Sandro- Por que não é registrada como cuidadora?
Rachel- Eu acho que pelo piso.
Sandro- O piso é maior?
Rachel- É bem maior e eu como não tinha nenhuma anotação
no registro, aí a minha patroa nem me perguntou, ela registrou
como doméstica, porque foi naquela época, com todos aqueles
direitos, que a doméstica tinha e tudo e ela falou que seria
praticamente a mesma coisa. Só que eu tô registrada com um
salário e ela me paga mais do que tá...
Sandro- Ela paga por fora?
Rachel- Paga por fora.
Sandro- Então no seu registro profissional é empregada
doméstica?
Rachel- Empregada doméstica.
Sandro- Você preferiria que fosse cuidadora?
Rachel- Sim.
Sandro- Por quê?
Rachel- Porque eu sou cuidadora, não faço serviço doméstico
[ênfase]. Tanto que quando eu trabalhava como doméstica eu
não queria que me registrasse, porque eu não queria ter no
meu registro o doméstica, mas me registrou como doméstica e
eu fiquei como doméstica.
Sandro- Você tentou conversar com ela para alterar isso?
Rachel- Não, porque ela comentou comigo, vou colocar como
doméstica por causa dos direitos que está tendo agora.
Sandro- Como se fosse algo melhor pra você?
Rachel- Sim.
Sandro- Mas na prática é melhor?
Rachel- Não, porque se você ver a quantia que ganho hoje, não
é a quantia que uma cuidadora de idosos ganha.

200
Esse desejo manifesto por Rachel de ser reconhecida em sua
carteira de trabalho pelo conjunto de atividades que de fato executa, isto
é, relacionadas ao cuidado que presta, explicita aspectos conflituosos das
relações estabelecidas entre quem oferece e quem contrata esse tipo de labor.
Guita Debert, ao tratar dessa questão, que imbrica afeto e
reconhecimento financeiro pelo trabalho que as cuidadoras executam,
considera:

É, no entanto, preciso reconhecer que as situações vividas


pelas cuidadoras são muito mais ambíguas do que as análises
de cunho estrutural tendem a revelar. As relações de trabalho
não evidenciam apenas a tendência dos empregadores de tirar
partido dos trabalhadores, tidos como escravos modernos
indefesos. Processos de negociação entre cada uma das partes
estão envolvidos: da cuidadora com o idoso assistido, dela
com os seus familiares, dos familiares e cuidadores com a
equipe técnica. Nessa relação, que é muito diferente daquelas
típicas dos contratos trabalhistas e do trabalho em linhas de
montagem, fatores emocionais e psicológicos estão sempre
envolvidos. O entendimento entre as partes requer uma
interação dinâmica, contextual e frequentemente conflitiva,
porque é nas tarefas cotidianas que direitos e deveres dos
diferentes atores são definidos e é a vida diária que reforça
ou embaça as fronteiras entre essas duas esferas de interação.
(DEBERT, 2012, p. 7).

Como pondera Zelizer (2012), essa zona conflituosa, típica de


ambientes onde se estabelecem visões estereotipadas da atividade do
cuidar, sejam as que apenas observam problemas e obstáculos no binômio
care e dinheiro, pertencentes invariavelmente a mundos distintos, hostis
e incomunicáveis, seja em percepções que limitam o cuidado como outra
forma, exclusiva, de comércio, portanto, requerente apenas de acordos sobre
um preço justo pelo trabalho ofertado, como, supostamente ocorre em outras
atividades profissionais, além de não vislumbrar um poder comunicativo e
emancipatório, para ambas as partes, no próprio conflito, não compreende
e não debate os aspectos centrais da relação cuidado e afeto, cuidado e
remuneração financeira. (ZELIZER, 2012).

201
Além disso, como se constata na narrativa de Rachel, a formalização do
contrato profissional na carteira de trabalho revela, dentre outros elementos,
um direito assegurado constitucionalmente a todas/os trabalhadoras/es no
Brasil e, no caso específico do cuidar, vem ao encontro de um conjunto de
atividades que, ideologicamente, sempre foram vistas como tarefa moral e
gratuita destinada às mulheres. Esse direito, até esse momento, é negado às
cuidadoras de idosos.
Além das questões financeiras e trabalhistas, o registro profissional
como doméstica impacta diretamente na percepção dessas trabalhadoras.
A hierarquia de reconhecimento do valor e relevância do trabalho coloca as
domésticas na última posição, de modo que ser reconhecida formalmente
como cuidadora implicaria não apenas melhorias salariais e trabalhistas,
mas também outro status social, o conferido aos que executam tarefas
consideradas socialmente relevantes. Para essas trabalhadoras, ser cuidadora
as coloca num estatuto diferenciado em relação às trabalhadoras domésticas.
Enquanto o que fazem lhes concede um certo empoderamento, por outro lado,
enxergam, no registro em carteira profissional como domésticas, uma marca
de “incapacidades”, de estigmas socioculturais e históricos permanentes.
São pertinentes as abordagens que postulam que o trabalho das
cuidadoras não pode ser reduzido à condição de trabalho doméstico, na
medida em que este não leva em conta as especificidades desses empregos,
que fornecem condições para relações sociais às pessoas atendidas, em
determinados casos e momentos e condições de vida autônoma. (TRABUT;
WEBER, 2012).
No entanto, há que se considerar até que ponto esse processo que
historicamente tem estigmatizado o trabalho doméstico e suas trabalhadoras
não ocorre de modo semelhante com as trabalhadoras do care. A questão
moral que produz uma visão romanceada da cuidadora como possuidora
de uma “aura do bem”, do belo, da abnegação, do “lugar” que socialmente
foi construído como da mãe, da crença sobre virtudes e qualidades, que
supostamente a empregada doméstica não possui, não tem condições de
estabelecer o lugar político que o cuidado necessita ocupar nas sociedades
como atividade democrática, especialmente o care que esteja livre desses
estereótipos e essencializações. Nesse sentido, tratando dos conteúdos do
trabalho de cuidado e de como isso é percebido pela sociedade, Martinez,
Marques e Silva (2009, p.6) consideram:

202
O cuidador muitas vezes acaba invisível aos olhos da sociedade,
ora confundido como empregado doméstico, ora como
profissional da enfermagem, não sendo atingida ainda a real
compreensão do seu trabalho de apoio ao idoso, devido à falta
de informação da família e da sociedade.

Retornando ao necessário processo de regulamentação e de


valorização das/os trabalhadoras/es, mulheres e homens, que se dedicam
ao cuidado de pessoas idosas, faz-se necessário reconhecer que o mesmo já
ocorreu em diversos outros países, acarreando consigo benefícios sociais para
os envolvidos. Países como o Japão e, especialmente as nações do continente
europeu, passaram pelo processo de envelhecimento de suas populações ao
longo dos últimos 100 anos, mas de forma distinta das experiências vividas
pelo Brasil, onde esse fenômeno é mais recente e propiciou um debate
político muito mais profícuo em torno dessa problemática. Foram sendo
criados programas públicos de assistência aos idosos necessitados, a suas
famílias, assim como houve uma série de medidas, econômicas e políticas,
que incentivaram a qualificação de trabalhadoras do care.
Na França, por exemplo, dada a importância que os cuidados a
idosos adquiriram, a partir do final da década de 1970, novos tipos de
direitos sociais foram surgindo, que, por sua vez, segundo Trabut e Weber
(2012), produziram uma situação altamente complexa de ajuda informal,
trabalho não declarado e serviços de cuidados oferecidos pelo mercado ou
pelos governos. No que concerne à profissionalização das trabalhadoras do
cuidado, nesta realidade social, é possível identificar certa tradição; isto é, a
primeira convenção coletiva para definir a profissão de cuidador foi assinada
em 1980. Nesse momento, as relações trabalhistas entre contratantes e
cuidadoras baseava-se na negociação interpessoal. Num segundo momento,
1983, quando já havia forte presença de associações de trabalhadores do
cuidado, o care foi definido como complementar aos serviços médicos, o que
notoriamente, por um lado, gerou na opinião pública maior atenção sobre o
mesmo.
Outro aspecto relevante nesse processo de contratação de
prestadores de cuidado a idosos, também aplicável na realidade francesa
às cuidadoras de crianças e pessoas com alguma necessidade especial, foi a
dispensa do pagamento da contribuição previdenciária sobre os salários de

203
seus contratados. Essa estratégia lançada pelo governo francês propiciou um
aumento considerável na contratação desses profissionais.
Nos dias atuais, o que rege o campo da prestação de cuidado
na França, seguindo uma tendência comum no continente europeu, é a
introdução de uma lógica comercial no setor de cuidados, sobretudo, com a
utilização de mão-de-obra resultante dos fluxos migratórios. Essa perspectiva
“inscreve-se na vontade de transformar os empregos de cuidadores numa
‘oferta industrial’ capaz de implementar suas próprias inovações: segurança,
reprodutibilidade e homogeneidade”. (TRABUC, WEBER, 2012, p.140).
Segundo Guimarães, Hirata e Sugita (2012), a situação profissional
das trabalhadoras do cuidado na realidade japonesa, que também são
conhecidas pela expressão homehelpers, está associada ao tipo de formação
que obtiveram. Isso resulta na existência de três categorias distintas de
profissionais: na primeira, estão aquelas que fizeram curso para se tornarem
cuidadoras/es com pelo menos 230 horas; a segunda exige um total de 130
horas; e, a terceira estabelece como patamar mínimo de formação um curso
com 50 horas de duração. Em todos os três casos, apesar da concessão de
diplomas e certificados, não existe qualquer tipo de exame ou prova que
possa aferir os conhecimentos e a competência dos concluintes. Existem
também diplomas conferidos pelo Estado que titulam especialistas na área
do cuidado.
Como indicado anteriormente, não existe a regulamentação da
profissão de cuidador de idosos no Brasil, assim como não existe para as
demais ocupações do código 5162 (Classificação Brasileira de Ocupações),
isto é, para os que trabalham com o cuidado de crianças, jovens e adultos. Um
dos problemas decorrentes dessa situação está na falta de cobertura jurídica
para os direitos trabalhistas dessas pessoas, assim como, em muitos casos,
nos arranjos informais para a contratação e acordos, tais como a duração
da jornada de trabalho, as atribuições esperadas pelo contratante e, claro, o
valor a ser pago em forma de salário.
Até esse momento, o cuidador de idosos submete-se a três tipos
básicos de contrato: regular, autônomo e doméstico. No caso de contratos
regulares, a cuidadora é normalmente contratada por uma empresa e o vínculo
empregatício é regido pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Segundo
Ribeiro (2015), as empresas contratantes prestam atendimento domiciliar ao
idoso e podem ser particulares ou Organizações não governamentais (ONGs)

204
cofinanciadas pelo poder público. Essas entidades são obrigadas a cumprir
os direitos trabalhistas previstos na legislação, tais como assinar a carteira
de trabalho, estabelecer carga horária de até 44 horas semanais, pagar
hora extra, adicional noturno, adicional de periculosidade e insalubridade,
repouso semanal remunerado, inscrição no Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço (FGTS) e no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Para as trabalhadoras autônomas, como não se estabelece relação de
emprego ou qualquer subordinação jurídica, os contratos são regidos pelo
Código Civil Brasileiro e não pela CLT. A cuidadora de idosos que desenvolve
suas atividades na casa da pessoa assistida é contratada diretamente pela
família, sendo que a legislação que orienta essa relação é a mesma aplicada
às/os demais trabalhadoras/es domésticos (Lei 11.324/2006). Nesse caso
específico, deve-se considerar a recém regulamentada “PEC das Domésticas”
(01/06/2015). Essa emenda constitucional garante aos empregados
domésticos direitos assegurados aos demais trabalhadores. (RIBEIRO, 2015).
A existência de uma legislação específica para as cuidadoras de idosos
pressupõe a regulamentação de sua profissão. É preciso, portanto, considerar
os conteúdos presentes na atual proposta de regulamentação que tramita
no Congresso Nacional, desde maio de 2011. Trata-se do Projeto de Lei do
Senado (PLS) 284, que dispõe sobre o exercício da profissão de cuidador de
idoso, assinado pelo Senador Waldemir Moka, via Comissão de Assuntos
Sociais (CAS). Deve-se considerar que a autoria do projeto pertence à Tânia
Mara Garib, então responsável pela Secretária de Trabalho e Assistência
Social do Mato Grosso do Sul.
Segundo análise feita por Ribeiro, o projeto original estava assim
configurado:

Apresentava quatro artigos que versavam sobre o âmbito de


atuação (domicílio e instituição de longa permanência para
idosos), funções (prestação de apoio emocional e na convivência
social do idoso; auxílio e acompanhamento na realização de
rotinas de higiene pessoal e ambiental e de nutrição; cuidados de
saúde preventivos, administração de medicamentos de rotina e
outros procedimentos de saúde; auxílio e acompanhamento no
deslocamento de idoso), sobre quem pode exercer a profissão
(maior de 18 anos que tenha concluído o Ensino Fundamental
e curso de cuidador de pessoa) e restrições (desempenho de

205
atividade que seja de competência de outras profissões da área
da saúde legalmente regulamentadas). (RIBEIRO, 2015, p.80).

Após ser publicado no Diário do Senado Federal, o projeto foi recebido


na CAS que, por sua vez, através de sua presidência, designou a senadora
Marta Suplicy como sua relatora. O itinerário regimental estabeleceu ainda
no ano de 2011 requerimento para Audiência Pública para instruir o referido
projeto. Essa primeira audiência ocorreu em 20 de outubro de 2011, em
Brasília, sendo seguida de consulta pública realizada no período de 01 de
dezembro de 2011 a 25 de fevereiro de 2012 e de uma segunda audiência
pública em São Paulo (01 de junho de 2012).
Como confirma a pesquisa de Raquel Noel Ribeiro (2015), em todas
essas etapas ocorreu a participação de instituições e pessoas que trabalham
na área, sendo que na segunda audiência houve participação in loco de várias
pessoas que estavam no recinto da discussão, mas que não faziam parte
da mesa de discussão, tais como representantes de idosos, cuidadoras de
idosos, conselhos profissionais, profissionais, “que puderam contribuir com
posicionamentos variados e explicitar concordâncias e discordâncias com as
ideias apresentadas, tanto nas falas, como na vaias e aplausos”. (RIBEIRO,
2015, p.85).

Todo esse processo político e administrativo, que ocorre quando se


objetiva a regulamentação de uma profissão, é permeado por conflitos de
interesses entre categorias profissionais. Isso não deixa de ocorrer quando
se trata da questão do cuidado e de suas/eus trabalhadoras/es. Da mesma
forma, é salutar refletir sobre os discursos que ou positivam de maneira
exacerbada os aspectos benéficos de uma regulamentação profissional ou,
pelo contrário, só vislumbram dificuldades provindas desse tipo de decisão.
A linha de abordagem principal adotada pelos defensores da
regulamentação da profissão do cuidador de idoso baseia-se no pressuposto
de fortalecer a qualificação desses trabalhadores, conferindo-lhes maior
visibilidade, reconhecimento e possibilidade de integração e inserção nas
políticas públicas. Outro argumento levantado nesse sentido está no possível
esclarecimento que esse processo pode trazer, especialmente quanto ao papel
e responsabilidade que cada instância deve assumir, isto é, empregadores,
cuidadoras e poder público.

206
Também é extremamente oportuno colocar na fileira dos argumentos
favoráveis à reflexão de Guimarães, Hirata e Sugita (2012), em especial por
se ver nesse movimento de questionamento e busca de direitos, por parte
das cuidadoras, uma possibilidade de crítica a um modelo que essencializa
o care como atribuição “natural” de mulheres. Para essas estudiosas, a
emergência do cuidado como profissão pode implicar um processo de ruptura
e distanciamento da concepção de que esta atividade ocorra como uma
“servidão” voluntária e naturalizada do trabalho feminino doméstico. No
mesmo sentido, é pertinente a reflexão de Camarano e Kanso (2009),
especialmente por vislumbrar na formalização e mercantilização do cuidado
uma forma de suprir as carências que as novas configurações familiares já
não conseguem satisfazer.
Por outro lado, as maiores dúvidas sobre os benefícios que a
regulamentação da profissão de cuidador de idosos pode trazer para todos os
segmentos sociais envolvidos, sobretudo para os trabalhadores que já estão
em atividade e para aqueles que vislumbram nessa atividade profissional
uma forma de entrar no mercado de trabalho, residem na elevação dos
custos econômicos do care. O receio de que a regulamentação da profissão do
cuidador de idoso gere elevação nos custos econômicos desse trabalho ficou
muito evidenciado no campo da pesquisa realizada com as cuidadoras de
pessoas portadoras da enfermidade de Alzheimer. As cuidadoras, apesar de
não conhecerem o conteúdo do projeto que preconiza esse reconhecimento
jurídico e formal diante do Estado, estão em seu cotidiano percebendo
através das falas de quem lhes contrata um certo temor, uma preocupação
com os gastos que esse processo virá a determinar. Algumas cuidadoras
revelaram preocupações quanto à permanência delas nos atuais empregos,
assim como dificuldades em conseguirem novos locais e boas condições de
trabalho. De um lado, elas reconhecem a importância de serem reconhecidas
e contratadas pelo que fazem, isto é, cuidadoras. Por outro, na concretude
de seu cotidiano, estão cientes de que a elevação de custos na contratação e
permanência em seus locais de trabalho pode vir a constituir um risco a seus
empregos. O depoimento de Carolina explicita esse sentimento ambíguo
existente entre essas mulheres cuidadoras, de um lado, o receio de que uma
eventual profissionalização possa redundar em demissões e falta de trabalho
e, por outro, o desejo de ter seus direitos enquanto cidadã e trabalhadora
respeitados:

207
Olha, eu vou ser muito sincera com você, mas sincera mesmo,
isso de criar uma lei, de criar uma profissão de cuidadora não sei
se vai ajudar muito não. Sandro, o povo não quer pagar direito,
não adianta, a gente precisa de trabalhar, precisa sustentar os
filhos, manter a casa [...]. Veja, esse negócio mesmo, essas leis aí
das outras empregadas (refere-se às empregadas domésticas),
tenho um monte de conhecida que tão morrendo de medo
de perder o emprego. Então, não adianta ter a profissão e
depois não ter o trabalho né [...]. Agora, se tiver a profissão e
respeitarem os direitos da gente, daí eu acho que seria bom.
(Carolina)

De fato, a regulamentação de uma profissão enseja, entre outras


coisas, a pressão da classe no sentido de se estabelecer uma espécie de piso
salarial para a categoria. Para os críticos, tal desencadearia um expressivo
encarecimento desses serviços e a dificuldade de acesso por parte de famílias
e idosos em situação econômica desfavorável. A exigência de qualificação
dessas profissionais, estipulada pela legislação que regulamenta a criação
da profissão, também é percebida como um fator que pesará na definição
dos custos do cuidado, pois o profissional qualificado requererá um salário
condizente com sua formação.
A pesquisa de Martins e Mello, “A contratação do cuidador de idosos:
quem pagará essa conta?”, aborda essa preocupação com o aumento dos
custos do cuidado que decorre da regulamentação da profissão do cuidador
de idosos.

Em breve levantamento com familiares de dez idosos que


possuem cuidadores domiciliares, percebeu-se que a diferença
percentual entre o menor e o maior salário pago é de 190%,
sendo que a média salarial é de R$ 1.219. Observou-se que 70%
dos cuidadores não possuem registro em carteira, 70% fizeram
curso de formação de cuidador e 40% dos maiores salários são
atribuídos aos profissionais que fizeram o curso, embora não
haja correlação entre fazer o curso e ser registrado. (MARTINS;
MELLO, 2013, p.60).

Além desses argumentos que seguramente estão coadunados com


uma orientação econômica que enxerga, na livre iniciativa, nas leis do

208
mercado, as melhores formas de adequar demandas e respostas satisfatórias
às mesmas, no presente caso de contratação da mão-de-obra disponível na
sociedade, existe também a defesa dos interesses de categorias de outros
profissionais da saúde. Fica notório que emanam desses setores as críticas
mais severas a todo esse processo.
Normalmente, o argumento principal que tem sido utilizado para
rechaçar os defensores da regulamentação e seus discursos centra-se na
competência necessária para o desempenho de algumas das atividades que,
a partir da regulamentação, poderiam vir a ser atribuições do cuidador
de idosos. Como se trata de disputas travadas no interior de uma área
fundamental para a população, ou seja, em relação ao acesso à saúde e
obviamente aos riscos que podem ser gerados pela inabilidade técnica de um
profissional mal preparado, não são raros os argumentos que possuem, em
seus conteúdos, falácias e um tom exagerado de emocionalismo.
Esse processo de disputa e de busca de manutenção de um mercado
de trabalho, por parte de determinadas categorias, não é algo novo, como,
muito menos, deixa de seguir pressupostos de uma filosofia econômica
neoliberal. Também não deve ser visto como algo exclusivo de trabalhadores
da área da saúde. Nesse sentido, é muito provável que essa não seja a questão
de fundo de todo esse processo, até porque seria um enorme contrassenso,
caracterizado por ilegalidades, estabelecer para as cuidadoras de idosos
atribuições para as quais não foram e não estão preparadas.
A discussão poderia ser muito mais produtiva se, por exemplo, o
problema do acesso aos cuidados e o trabalho do care fosse democraticamente
distribuído, fundamentando decisões políticas de governos; enfim, se fosse
enfrentado por ações das políticas públicas em mais de um setor, estando
aqui incluída a Saúde, a Assistência Social, os Direitos Humanos, o mercado
profissional e, afinal, a sociedade como um todo.

Considerações finais

A situação das/os trabalhadoras/es do cuidado no Brasil é de abandono e


invisibilização perante ao Estado e à sociedade de maneira geral. Nas poucas
políticas públicas que visam a construir algum tipo de atendimento e
acompanhamento para as famílias de pessoas enfermas, assim como para
as pessoas que são responsáveis e executoras do cuidado, esse trabalho é
realizado por outras mulheres.

209
De qualquer modo, o que se constata nesse tipo de iniciativa é que
se trata de mulheres, agentes do serviço público, cuidando de mulheres,
mulheres e cuidado, ou ainda, que a participação masculina, quando existe,
é mínima e pontual, como nos momentos em que se definem os recursos
financeiros dessas políticas, suas orientações, objetivos e fins. A questão
que se coloca é que mais uma vez são as mulheres que são responsabilizadas
pelo cuidado, reforçando-se essencializações e naturalizações. E isso dificulta
ainda mais a politização do cuidado enquanto exigência para o exercício
democrático da cidadania.
O cuidado com as trabalhadoras do care, quando existente, ocorre
sob condições precárias, resultando em mais um obstáculo para a sua
democratização. Um reflexo dessa invisibilização política do cuidado e de
suas trabalhadoras, no caso brasileiro, está nas condições de trabalho às quais
são submetidas essas pessoas, especialmente, por não possuírem, através da
regulamentação de sua profissão, amparo jurídico e institucional por parte
do Estado.
Todavia, é preciso pensar essa problemática em sua complexidade,
evitando posturas ingênuas que postulam que a regulamentação de uma
profissão, como seria o caso da profissão do/a cuidador/a de idosos, seja
condição única ou exclusiva para se obter o reconhecimento e a valorização
do cuidado e de suas/eus trabalhadoras/es. Não há dúvida de que esta é
uma etapa necessária, mas a democratização do cuidado e sua necessária
politização não serão alcançadas de maneira simplista, muito menos ao
se estabelecer que um fator isolado seja causa e solução de estruturas e
ideologias tão arraigadas no imaginário e nas práticas sociais.
Assim, a omissão do Estado e da sociedade, de maneira geral, para
com essas cidadãs trabalhadoras, está a revelar de maneira categórica
que o cuidado ainda não adquiriu centralidade na elaboração de políticas
públicas democráticas. O care é tomado como um apêndice de outros poucos
programas sociais, algo secundário, destituído de sua real importância social
e política. Nesse sentido, é oportuna a reflexão de Joan Tronto, ao falar da
necessidade do estabelecimento de sociedades assistenciais democráticas,
isto é, “se não ocorrer uma transformação do contexto social e político, o
cuidado é condenado a permanecer uma ética marginal e de subalternos”.
(TRONTO, 2013, p.180).

210
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215
216
O CUIDADO DE CRIANÇAS: DESAFIOS
CULTURAIS, SOCIAIS E POLÍTICOS
Marcela Komechen Brecailo35

O cuidado e a maternidade se entrelaçam social e culturalmente por


aspectos vinculados à naturalidade e à feminilidade da maternagem; e,
contextualmente, o cuidado materno foi tomado como um valor moral
nas diversas estruturas sociais como a médica, jurídica e econômica, em
saberes que associam a feminilidade com o cuidado. Por se tratar de um dos
pilares da desigualdade social entre homens e mulheres, a produção teórica
feminista não poderia ficar aquém da perspectiva do cuidado e, dentro dela,
da maternagem e do cuidado de crianças.
O cuidado, o cuidar e, mais precisamente, a necessidade de cuidado
são temas não apenas pessoais e privados, mas também sócio-políticos, dado
que, em algum momento da vida, todas as pessoas precisam ou precisarão
de algum tipo de cuidado e, em algum momento, dispensam ou dispensarão
atos de cuidado. Trata-se de uma relação que ganha mais importância por se
tratar de uma dinâmica cotidiana que afeta, no mínimo, quem cuida e quem
está sendo cuidado. (TRONTO, 1997).
O cuidado concerne à experiência e a tudo o que fazemos para cuidar
e reparar o mundo. Assim, ele ganha sentidos tanto de prover o cuidado
quanto de experiência pessoal. Colocado no centro da discussão democrática,
Joan Tronto (1997) mostra como a maior parte deste tipo de trabalho é
realizado pelas mulheres, escravos e classes mais pobres. Estes aspectos
trazem as razões históricas da desvalorização constante dessas práticas,
aspectos que, segundo Tronto, precisam ser superados, porque todos em
algum momento precisam de cuidados. Para ela, cuidar comporta uma visão
ética e política para a vulnerabilidade. Vulnerabilidade e dependência não
35 Nutricionista, Mestre em Nutrição, Doutora em Sociologia. É docente do
Departamento de Nutrição da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO-PR), nas
áreas de Saúde Pública, Bioética, Sociologia da Alimentação e Antropologia da Alimentação.
É pesquisadora das áreas de Nutrição em Saúde Pública e Cultura, Gênero e Saúde.
marbrecailo@gmail.com

217
são momentos acidentais na vida; todas as sociedades sabem que precisamos
de cuidado e que somos igualmente doadores de cuidado. Para tal, o desafio
é sair da descrição normativa e superar a separação entre ética do cuidado
como elemento exterior à prática.
Ainda segundo a mesma autora, os atos de cuidado envolvem
não apenas uma eficácia técnica, mas também uma eficácia simbólica,
acompanhada de vínculos afetivos, principalmente quando ocorre no
âmbito familiar e não profissional, como é o caso do cuidado das crianças
por mães, tias e avós. De fato, a carência de uma visibilidade como produto
mercadológico ou serviço profissional é um dos motes mais importantes para
manter o cuidado na esfera privada, escamoteando em uma ética deturpada
o trabalho afetivo como um cuidado que deve ser dispensado sem qualquer
interesse. Cristaliza-se, desta forma, o cuidado como um trabalho doméstico,
do feminino e desprovido de valor econômico, reforçando as estruturas
diferenciadoras de gênero e constituindo-se em instrumento de análise das
relações sociais de desigualdade e poder.
É que, segundo Brunella Casalini (2011), ele se relaciona com
colocar crianças no mundo e assisti-las, assim como assistir a outras pessoas
necessitadas de carinho e de atenção, e também com a limpeza das casas e das
roupas, a preparação da comida e de todas as atividades cotidianas orientadas
à satisfação de necessidades físicas e afetivas, e que são, tradicionalmente,
realizadas por mulheres, no âmbito do lar, de forma gratuita ou parcamente
remunerada.
Embora algumas mudanças venham se delineando nas conformações
familiares, as mulheres mantêm-se como prioritárias na responsabilidade
pela casa, muitas vezes mantendo uma dupla jornada de trabalho. (OLIVEIRA,
2007). São elas também as responsáveis pelas crianças e idosos, necessitando
muitas vezes o auxílio de outras mulheres, em redes de solidariedade, que
incluem mães, irmãs, tias, primas, amigas, vizinhas e filhas mais velhas. A
maternidade, como função historicamente atribuída às mulheres, se conecta
aos cuidados maternos e à naturalização da capacidade de cuidar, incluindo
a obrigatoriedade do aleitamento materno, considerado no discurso médico
e político como sendo natural para a mulher que gerou uma criança, além
de moralmente desejável como ato de cuidado prestado por uma “boa mãe”.
Este capítulo remete à relação social e cultural que se faz da mulher
com as atividades do cuidado de crianças e do amamentar e o entrecruzamento

218
político nesta relação, a partir de políticas públicas que não estão sensíveis
para as formas como as mulheres são afetadas pela responsabilização
diferenciada das atividades do cuidado de uma criança. Para impulsionar a
discussão, serão utilizadas as entrevistas feitas com 12 mulheres, mães de
crianças entre 6 meses e dois anos de idade, sobre suas rotinas de cuidado
de seus filhos e suas filhas, retratando suas experiências de maternagem e
amamentação. Estas mulheres recebiam informações sobre cuidado, saúde
e aleitamento materno institucionalizado, provindo da Estratégia Saúde da
Família36 e das suas relações sociais e familiares, como suas mães, irmãs, tias,
primas, vizinhas e amigas. As entrevistas foram realizadas em um município
de médio porte no estado do Paraná, Brasil. Todos os nomes citados são
fictícios, para garantir o anonimato das participantes e de seus filhos e filhas.

As experiências de cuidado e o aleitamento materno

Por fazer parte de um tema do cotidiano, relacionado à história e à cultura de


um local, a maternidade, o aleitamento materno e as formas de se cuidar de
uma criança aparecem em diversos modos e por diversas vozes, assim como
retratado por Fernanda (21 anos, 1 filho): “Sempre vai ter alguém que vai
dar um palpite, sobre o filho, sobre a gravidez, se é a roupa passada, se é
o cabelo, sempre vai ter alguém para dar um palpite [risos]. Sempre tem!
Sempre tem!” A forma como as mulheres gestantes e as mães recebem,
acolhem e ressignificam estas falas varia na sua rede de interdependências
para a prática e de acordo com suas experiências.
O pertencimento ao grupo social como mãe não pode definir
isoladamente sua posição, mas marca sua sociabilidade em relação aos
profissionais e outros membros da família, especialmente outras mulheres.
36 A Estratégia Saúde da Família (ESF) é um programa federal de racionalização da
atuação dos serviços básicos de saúde, composta, no mínimo, por um médico da família, um
enfermeiro, um auxiliar ou técnico de enfermagem e de cinco a 12 Agentes Comunitários
de Saúde (ACS) – majoritariamente mulheres – que visitam os domicílios perto de cada
Unidade Básica de Saúde (UBS), abarcando o maior número possível de pessoas com diabetes,
hipertensão, gestantes e crianças menores de dois anos e repassando informações em cuidado
e saúde para a mulher residente no domicílio (a mãe, a dona da casa). A Estratégia Saúde
da Família potencializa a assistência básica em saúde, que posiciona a mulher como terreno
da intervenção médica, reforçando seu lugar como auxiliar para as questões de cuidado dos
outros membros familiares.

219
As vantagens e os constrangimentos específicos de ser mãe são elementos
de suas trajetórias, mas não são os únicos; a interação entre diferentes
elementos, em cada contexto específico, caracteriza o indivíduo, socialmente,
em sua trajetória e pertencimento e sua subjetividade. (BIROLI, 2013).
Embora todas as mulheres entrevistadas tenham, em maior ou menor
intensidade, e com variadas expressões de importância, feito referência ao
aconselhamento institucionalizado de profissionais sobre o aleitamento
materno, outras falas dão maior segurança às mulheres, principalmente às
provindas das mulheres mais experientes da família, como suas mães, tias,
irmãs e primas. Suzana (21 anos, 1 filho) e Joana (25 anos, 2 filhos), por
exemplo, referem a confiança nos aconselhamentos de suas mães e sogras,
uma vez que tiveram e criaram seus próprios filhos; portanto, são pessoas
que podem aconselhar, pois “ela entende”, e “eu tenho ela pra me guiar, né,
nas coisas para eu fazer com ele”, uma vez que a experiência demonstrou
adequação da forma de cuidado prestado por elas.
A falta de uma proximidade linguística também se torna um
obstáculo para estas mães, no contato com os profissionais de saúde. Além
da ligação afetiva com as mulheres de sua família e a confiança na experiência
– em desapreço às teorias contidas em livros – estas mulheres entendem-se
com seus pares, podendo tirar dúvidas e seguir suas recomendações. Bruna
(18 anos, 1 filha) conta que sua mãe a “orientava mais”, “o que ela sabia ela
me explicava, o que ela podia passar ela me passava”. Ela explica porque esta
forma era mais adequada para ela:

No posto, lá, eles querem mais explicar do jeito deles, né. Agora,
a mãe explica mais do jeito dela, o que ela viveu. Agora, o do
posto, eles querem explicar mais o que eles estudaram. [...] tem
mulher que “Ah, sente dor pra ganhar, mas é pouca”, daí minha
mãe perguntava “Você já tem filho?”, “Não, não tenho nenhum,
e nem quero ter”. Então acho, assim, que falta um pouco de
[...]. Certo, os livros ensinam muito, mas você tem que também
viver a experiência pra saber. [...] acho que eles deviam explicar
mais de um jeito natural pra gente e não tanto, tanto como de
livro, livro [...] ah, as palavras [...] complicam, acho que é isso.
(Bruna, 18 anos, 1 filha).

220
Bruna explicita em sua fala que a dinâmica da relação é mais
importante para a tomada de decisões sobre o como fazer. Sinaliza que os
conhecimentos que circulam na estrutura do Setor Saúde e, portanto, pelas
profissionais da Unidade de Saúde, falham em traduzir o conhecimento para
a rede familiar e para as necessidades e especificidades do vivido por ela com
a filha.
No diálogo entre pessoas leigas e profissionais da saúde, existem
interrupções, desencontros de interpretações e de entendimentos, que
dificultam a interação. A tradução, porém, não se refere a uma simples troca
de palavras, mas, sim, a uma sensibilidade em relação aos significados que
aproximam as categorias médicas e as categorias nativas. (GOOD, 1994).
Trata-se de compreender as relações que perpassam as práticas e ordens
simbólicas do fazer das mães e de entender a experiência mediada por estas
categorias.
A fronteira entre o saber técnico e o social poderia assim ser
reconhecida como complexa e fluida, onde a pluralidade de conhecimentos
seria intrínseca à ciência. (SANTOS, 2005). Separados e hierarquizados, os
saberes não se encontram; ao contrário, muitas vezes se chocam em uma
disputa de legitimação da verdade, que, simbolicamente, vem privilegiando
o discurso médico, em detrimento da experiência, pois o primeiro está
totalmente descolado da realidade prática. Mas se, simbolicamente, ele é
tido como verdadeiro, quando gera um conflito frente a um outro saber mais
adequado à ela, a reflexividade se volta para o saber não técnico e para as
informações e a ajuda de suas relações pessoais e familiares.
Laís (25 anos, 1 filha), por exemplo, demonstra que o discurso
institucionalizado não foi adequado para ela. Não se recordava do que foi dito
a ela na Unidade de Saúde e no hospital, demonstrando que não lhe pareceu
importante ou não foi compatível ao seu entendimento. As explicações da
mãe e da tia, no entanto, bem como a ajuda objetiva com o cuidado da filha,
ensinaram a Laís o que era necessário para ela se sentir segura, pois “[Minha
mãe e minha tia] estavam me ajudando ali, tipo, se elas não me falassem, eu
ficava sem entender, né, porque não sabia... era o primeiro filho. [...] Se elas
não me explicassem nada, eu ia ficar igual um peixe fora d´água, sem saber
fazer nada” (Laís, 25 anos, 1 filha).
Da mesma forma, as recomendações institucionalizadas não fizeram
sentido para Suzana (21 anos, 1 filho), que não reproduz em discurso as

221
recomendações fixas, porém oferece o peito por livre demanda a seu filho, não
porque aprendeu desta maneira pela teoria, – embora em algum momento
ela possa se inter-relacionar com os conteúdos subjetivos –, mas, pelo que
observou em sua prática, da forma como “o peito sustenta, porque ele mama
e depois fica quietinho”. Relata que já sabe que “Quando ele chora eu sei que
ele quer mamar.” (Suzana, 21 anos, 1 filho).
Gabriela (30 anos, 3 filhos) seleciona o que acolhe do discurso
médico e o que, ao contrário, se conflita com ele, e decide seguir sua própria
experiência e o aconselhamento de sua mãe. Para iniciar a introdução dos
alimentos para seus filhos, escolheu seguir o recomendado por sua mãe:

Então, no postinho, a médica dizia que era depois dos seis


meses. Mas só que aqui na casa da minha mãe – ela é, assim, do
tempo antigo – então ela achava que com três meses já podia
dar. Então ela começou a dar com três meses. Começou a dar
água, dava suco, dava papinha. Então com seis meses ele já
estava comendo de tudo. No postinho eles diziam, com seis
meses, mas eu comecei a dar com três. [...] [as informações do
postinho] é de se aproveitar, algumas coisas, porque já outras,
eu já… [...] Só isso que eu não levei a sério, mas o resto eu levei
tudo a sério, o mamá, o cuidado, né, as vacinas que têm que
estar todas em dia... (Gabriela, 30 anos, 3 filhos)

Demonstra-se que, não necessariamente, há uma discordância no


fundamento do que é recebido como aconselhamento vindo da teoria médica.
E também a transgressão destas normas não é sentida como discordância.
A prática, no entanto, baseia-se na experiência, que tem várias formas de
conjugar o vivido com as novidades aprendidas por meio da teoria.
Para Joana (25 anos, 2 filhos), a oferta de chazinho para seu
bebê, encorajada pela sua sogra, não é incoerente com o discurso do
aleitamento materno exclusivo. A confusão entre este tipo de alimentação
e a alimentação artificial é resolvida pela sua própria percepção, concluindo
que o aconselhamento de sua sogra trouxe melhores resultados do que a
recomendação de sua médica.

Daí ela [médica] dizia: “Até os seis meses, só leite do peito, não
dê água, não dê chá, não dê nada”. Daí, agora, eu estou dando,

222
porque eu acho que com o leite [fórmula infantil] ele sente
sede, daí alguma coisa eu sempre dou pra ele. [...] Daí eu acho
que agora ele está se alimentando mais. Eu acho, né, não sei se
isso é verdade. (Joana, 25 anos, 2 filhos).

Já as boas experiências com o aleitamento materno na família


encorajam o seguimento da recomendação, como no caso de Simone (24
anos, 2 filhos), que acompanhou sua madrasta no amamentar seu irmão
exclusivamente por seis meses e de forma complementar por mais de dois
anos, recusando-se a oferecer mamadeira, mesmo com o aconselhamento
contrário de outras mulheres da família. Simone observou que o modo como
sua madrasta escolheu amamentar seu irmão foi efetivo na sua percepção,
pois “eu vi, assim, que meu irmão era forte, gordo assim, bem gordão, né,
então só o peito, entendeu?”, decidindo-se pela mesma forma de alimentação
para seus filhos.
As trocas de experiência fazem parte das relações destas mulheres,
com suas mães, tias, irmãs e filhas. Quando, porém, é necessário confrontar
o vivido por seus pares e a experiência, é o que é vivido pela própria mulher,
no cuidado de outras crianças e na amamentação de seus primeiros filhos,
que é considerado o mais importante.
Andréa (39 anos, 6 filhos), por exemplo, em seu sexto filho, considerou
que sua prática dispensa aconselhamentos, relatando não ter conversado
com ninguém sobre gestação, parto e cuidado de recém-nascidos na última
gestação. Ao ser questionada sobre uma possível conversa com sua filha de
17 anos, que estava grávida de 5 meses no momento da entrevista, sobre a
amamentação e o cuidado do bebê, Andréa respondeu em negativa, explicando
que sua filha já auxiliou no cuidado de seus irmãos e cunhados, então, “ela já
sabe [...], acho que ela está tranquila”, demonstrando que é a experiência e a
prática cotidiana que são relevantes, e não os aconselhamentos.
Gabriela (30 anos, 3 filhas), que relata ter sempre se aconselhado com
sua mãe e ter experiência com o cuidado de sua sobrinha, antes de ter seus
filhos, também confia na sua prática, frente ao discurso institucionalizado.
Conta que ouviu sobre aleitamento materno, cuidado, forma de colocar o
bebê para dormir, entre outras coisas, mas que são “essas coisas que a gente
já sabe, né”.

223
De fato, verifica-se que é a própria experiência, atual ou anterior, que
faz com que estas mulheres confrontem ou confirmem o discurso médico e
estabeleçam o seu próprio ideal de aleitamento. Ana Rosa (37 anos, 4 filhos)
fala sobre as palestras realizadas na maternidade para ensinar as mães
a amamentar com o seio. Ela considera que, quando é o primeiro filho de
uma mulher, algumas informações são úteis; porém, ela “já tinha um pouco
de experiência; então [...] já não [...] aquilo dali foi mais, mesmo, pra estar
ali, junto com elas”. Luana (26 anos, 2 filhas) também só teve confiança
no discurso médico quando o confirmou com a sua experiência, pois relata
que anteriormente teve medo, porque não acreditava que “Uma coisa que
é branquinha, que não tem nem cor direito, pudesse ser rico em tanta
vitamina, pudesse sustentar”. Mas, com o passar dos dias, fui vendo que
estava engordando, que estava tendo um desenvolvimento bom; aí comecei a
parar com a neura de [...] de que o leite não adiantava”.
Joana (25 anos, 2 filhos) credita valor à recomendação médica e
o reproduz, em conformidade com a norma da necessidade de se oferecer
exclusivamente o seio até os seis meses de idade da criança, confiando nas
palestras a que assistiu no puerpério e nos conhecimentos adquiridos no
curso técnico de enfermagem. Na prática, entretanto, cotejou isso com a sua
rotina e decidiu por interromper a aleitamento materno exclusivo, pouco
antes de seu filho completar três meses de idade, e reconheceu vantagem
nesta prática, com base em sua observação.

Eu intercalava, quando comecei a dar [fórmula infantil]. Eu


dava uma mamadeira, daí depois de três horas eu dava o peito.
Daí eu e a [sogra] começamos a contar. Quando ele pegava no
peito demorava uma hora ele já queria mamar de novo, e [a
fórmula infantil], a gente dava, ele demorava mais. [...] Daí eu
acho que agora ele está se alimentando mais. (Joana, 25 anos,
2 filhos)

Assim, Joana, mesmo considerando o leite do peito o melhor


para uma criança, refletiu e confrontou a recomendação com sua prática.
Verbalizou que “o leite materno é excelente”, mas ponderou que seu filho
“só chora”. A médica a aconselhou a dar, “até os seis meses, só leite do
peito”; mas, com a mamadeira, ele ficou “bem tranquilinho”, chora menos e
dorme mais.

224
Por acolher o discurso médico, Joana (25 anos, 2 filhos) passou por
um período de dúvida para introduzir a mamadeira; mas, depois observou
que o não seguimento da recomendação melhorou seu cotidiano e parece ter
sido benéfico ao filho:

eu pensei, quando eu comecei a dar o [fórmula infantil],


eu falei: “Ah, eu vou dar o [fórmula infantil]”, só que daí eu
fiquei pensando “se ele pegar [...]”, porque eu já sabia que se
ele pegasse mesmo o [fórmula infantil] ele iria largar o peito.
Então eu sabia esse lado, mas mesmo assim eu queria dar o
[fórmula infantil]. Acho que foi o momento que eu pensei que
ele iria largar do peito. [...] Eu fiquei, assim, em dúvida: “Será
que eu dou ou não dou [fórmula infantil]?” E optei por dar
mesmo, porque ele, olha, está bem tranquilinho aqui. (Joana,
25 anos, 2 filhos).

Da mesma forma, Melissa (31 anos, 3 filhas), ao encontrar dificuldades


no manejo da amamentação, começou a fazer negociações consigo mesma a
respeito do tempo que amamentaria sua filha. Da consideração inicial de, no
mínimo, seis meses, por causa da importância do aleitamento materno para
a criança, Melissa passou a ponderar que deveria amamentar pelo menos um
mês, quando começou a ter fissuras que não cicatrizavam e lhe causavam muita
dor. Ao ser auxiliada pela irmã, que lhe aconselhou uma pomada cicatrizante
específica, Melissa chegou ao terceiro mês de amamentação. O conflito com a
norma médica, a relativização de sua subjetividade e a reflexividade levaram
Melissa a tomar a todo momento decisões que se adequassem ao vivido na
experiência com a filha.
Então, mesmo conhecendo a norma médica e verbalizando
inicialmente sua concordância, existe uma reflexão com base na experiência,
naquilo que se verifica em sua família e em sua rede de relações. Com isto, para
considerar a prática do aleitamento materno, as mães contrapõem os prós
e os contras verificados na experiência concreta. Isto também foi expresso
por Andréa, que reconhece a individualidade de cada criança e, portanto, a
diferença no cuidar de uma ou de outra, e também que as repercussões de
um mesmo ato, como amamentar, não necessariamente, são as mesmas para
duas crianças diferentes.

225
Ah, tem bastante criança que não mamaram no peito e é
saudável [risos]. Eu acho que não tem muita diferença em dar
de mamar na mamadeira ou no peito, né. Tem criança que
mama na mamadeira e são mais saudáveis que as que mamam
no peito [risos]. Depende também de cada organismo da
criança também, né. (Andréa, 39 anos, 6 filhos).

Com base nesta individualidade de cada criança, observa-se também


que esta experiência prévia é bastante influente, mas não é absoluta, para o
cuidado e a amamentação do filho mais novo, pois uma criança é diferente
da outra. Joana (25 anos, 2 filhos) conta que “vê a diferença hoje em dia”
entre os dois filhos. Diferente da sua primeira filha, Marco Antônio queria
mamar frequentemente (“de quinze em quinze minutos”). A recomendação
institucionalizada prevê que o aleitamento materno deve ser oferecido sob
livre demanda e esta recomendação é conhecida por Joana. Entretanto,
neste caso, torna-se inviável sua aplicação, fazendo com que Joana buscasse
outras estratégias de alimentação do filho, que não lhe exigisse mantê-lo ao
seio o dia inteiro. Ao contrário do que está observando de sua experiência,
a recomendação é fixa e Joana, mesmo considerando a importância do
que aprendeu nos cursos na área da saúde, seguiu até quando considerou
adequado para si mesma.
Valentina (39 anos, 4 filhos), por exemplo, possuía uma percepção
pessoal sobre a necessidade das crianças, que é diferente da que é veiculada
pela ciência médica, e está bastante convencida de que sua prática é a melhor
para seus filhos, além de facilitar sua rotina. Dizia não concordar com a
recomendação de dar água, chá e iniciar a alimentação apenas após os seis
meses de idade da criança. Começou a fornecer alimentação complementar
aos seus filhos aos dois meses, explicando que considera que quanto mais se
espera, mais dificuldade a mãe terá depois com a alimentação da criança, e
“a vida da mulher hoje está muito corrida; então, quanto mais fácil puder,
melhor”.
Bruna (18 anos, 1 filha) declara ter seguido a norma apenas enquanto
era ‘obrigada’ pela política de pós-parto do hospital, que só autoriza a alta da
mãe quando considera que o aleitamento materno está estabelecido. Contou
que lhe diziam: “Se você não aprender a dar de mamar pro nenê você não
vai embora”. Assim que possível, iniciou a alimentação conforme considerou
melhor para ela, ou seja, “[no primeiro dia em casa] eu pus na mamadeira”.

226
Da mesma forma, Gabriela (30 anos, 3 filhos) se aconselhou com a
mãe, que tinha outra opinião em relação ao aleitamento materno exclusivo.
A experiência da mãe é predominante para a prática de Gabriela, mas a
recomendação médica transgredida fica escondida, para evitar desgastes;
utiliza-se desta forma o silêncio como um jogo estratégico, mas onde
prevalece sua decisão, tomada a partir de outras relações. Na consulta, ouvia
as recomendações da médica, mas fazia em casa conforme era coerente com
a sua percepção.

Gabriela – Quando eu ia na médica: “Ah, agora você comece


com a água, com o suquinho”, e eu já estava dando suco a
tempos, né, mas o resto não [...].

Pesquisadora – E você falou para a médica que você já estava


dando?

Gabriela – Não [risos]. Não, porque ela brigava. Porque uma


vez que eu fui, que tinha palestra, sempre que a gente ia, todas
as mães que iam consultar tinham palestra sobre o nenê. Daí
ela começou a falar disso, que era pra dar comida depois dos
seis meses, e a menina falou: “Ah, eu já dou comida para o
meu filho”, ele já tinha quatro meses, ela pegou e brigou com a
menina, né, falando que dilata o estômago [...]. falou um monte
de coisas lá, mas só que [...]. Daí eu não falava pra ela, mas eu
dava comida pra ele. (Gabriela, 30 anos, 3 filhos)

No caso de Valentina (39 anos, 4 filhos), sua percepção sobre o que é


mais adequado para um bebê e para ela mesma, em termos de amamentação
e alimentação, é vista como uma transgressão do aconselhamento médico e
lhe rendeu um desconforto na consulta médica; ela relata que “era chamada
à atenção algumas vezes pelos pediatras”, quando contava que antes dos seis
meses oferecia água, frutas, papas e sopas.

Pesquisadora – E como você se sentia quando o médico chamava


a tua atenção?

Valentina – Ah, muito segura da minha posição [risos]. Muito


segura, não me traz confusão aquilo que eu tenho certeza

227
que não está fazendo mal. [...] E na questão do pediatra teve,
inclusive, um episódio, que foi um episódio que foi mais
marcante, que a pediatra era mãe também, e eu falei pra
ela: “Olha, eu estou dando sopinha [...]”, na época era para a
[terceira filha], “[...] já, de batata, cenoura[...]” ela já tinha cinco
meses. [...] a pediatra bateu na mesa assim, quando eu terminei
de falar, ela disse que eu estava louca [risos], disse que iria me
processar, que iria me levar no conselho tutelar [risos], porque
eu estava sobrecarregando o estômago do bebê. Mas ela estava
dentro do peso normal, ela estava feliz e contente, você viu ela
ali, né, feliz e contente. (Valentina, 39 anos, 4 filhos)

Uma ciência médica, que parte apenas do abstrato e invisibiliza as


representações da mãe sobre o corpo e a alimentação de seu filho, torna
impossível um diálogo entre os dois saberes. A separação mente/corpo feita
pela medicina ocidental reduz a pessoa a parâmetros bioquímicos; e esta base
estatística, objetiva e quantificável não permite espaço de comunicação entre
as duas realidades, das mulheres e da medicina, reiterando a superioridade
do conhecimento médico.
O seguimento da orientação médica, a transgressão de tal orientação,
a escuta das falas experientes de outras mulheres, as próprias experiências
e a individualidade da criança formam arranjos para o aleitamento materno
que geram um caleidoscópio de possibilidades, gerenciados de acordo com as
possibilidades, saberes e empoderamento de cada mulher. “A singularidade
da trajetória dos indivíduos e seu investimento criativo na sua própria vida
não estão em contradição com o reconhecimento dos constrangimentos
estruturais à sua agência”. (BIROLI, 2013, p.61).
Estas mulheres atuam articulando a cultura e sua posição frente às
necessidades e estratégias de conhecer, mas não necessariamente decidem
assumir. Elas decidem suas práticas a partir de uma interdependência
com outros saberes, trocados com mães, amigas, mães desconhecidas que
encontram na Unidade de Saúde, bem como com as profissionais de saúde.
As relações podem ser concebidas como a formação de um tecido por
uma teia que está em constante mudança e movimento, com diversos polos
interligados. As representações abstratas e simbólicas sobre cada situação
vivida posicionam esses polos e os põem em movimento; a cada ação em uma
direção, todo o tecido se reorganiza, reposicionando os polos e originando

228
as novas tomadas de decisão. (ELIAS, 1993). Os polos de interdependência
desta teia se formam na relação com outras mulheres, com as representações
prévias, com a experiência em curso, com os profissionais da área da saúde,
com a estrutura da saúde e com outros fatores da vida cotidiana.
O entrecruzamento entre elas ainda pressupõe uma reciprocidade.
Entretanto, não é uma reciprocidade com isonomia ou equilíbrio destas
relações. A maior ou menor dependência de um ou de outro polo da teia
puxa a tomada de decisão para uma ação. (ELIAS, 1993). Deste modo, as
mulheres que necessitam de suas mães para o cuidado dos filhos tendem a
considerar mais os seus conselhos; as que ingressaram como profissionais no
setor saúde podem dar mais valor a estas informações; e as que dependem
da manutenção de seu emprego para o sustento da família podem dar ainda
maior peso aos horários de seu cotidiano para decidir sobre a alimentação
dos filhos. Mesmo que estes fatores reorganizem toda a teia, porém, nenhum
é decisivo para a tomada da decisão final, que depende da situação concreta.
É a partir dela, vivida no cotidiano, que a mulher aciona os polos que forem
mais convenientes para o momento e organiza a sua rotina.

A dimensão cultural e social do cuidado de crianças

As diferentes formas de cuidar, esperadas para um homem e para uma


mulher, incidem na forma com que as crianças serão implicadas no cuidado.
Para explorar este tema, teremos em mente as teorizações da ética da justiça
e da teoria moral universal revisitadas pela teoria moral de Carol Gilligan,
para assim chegarmos à proposição de uma ética feminista do cuidado e
posteriormente desenvolvê-la na política do cuidado.
Na medida em que a gestação significa uma conexão de grande
amplitude, esta fase se traduz como uma das principais responsabilidades
da vida, na visão das mulheres. É neste sentido que a “mãe boa” é julgada
pela sua capacidade de satisfazer a necessidade dos outros – os filhos e o
marido –, enquanto que a “mãe ruim” desiste ou escapa deste autossacrifício,
instaurando-se aí um conflito entre compaixão e autonomia. Tomando
em conta que a moralidade reside no cuidado, a mãe se questiona sobre o
egoísmo de incluir suas próprias necessidades na esfera do cuidado e passa
a incorporar em seu julgamento interno o que as outras pessoas pensam.
“Quando a incerteza sobre o próprio valor impede uma mulher de reivindicar

229
igualdade, a autoafirmação cai vítima da velha crítica do egoísmo”.
(GILLIGAN, 1982, p.98).
Algumas das mulheres entrevistadas contam como começaram
a cuidar de seus filhos ainda na gestação, deixando de realizar algumas
atividades fora de casa, alimentando-se da maneira que consideravam mais
adequada ao bebê, entre outras condutas, e lembrando-se constantemente
de que a partir daquele momento uma outra pessoa dependia delas, fato
que muitas vezes foi relacionado com a necessidade de esquecer-se dos seus
problemas e necessidades para poder atender à criança, “fazer de tudo por
ela” e “colocar o filho sempre em primeiro lugar”.
A conexão entre a moralidade e o cuidado gera o egoísmo como
antônimo de responsabilidade, uma vez que a satisfação pessoal é contrária
à moralidade em atos considerados bons e responsáveis. O ideal moral,
portanto, torna-se o dar aos outros sem receber nada em troca. Esta noção de
autossacrifício marca o desenvolvimento das mulheres, contrapondo a moral
da bondade com a possibilidade de assumir responsabilidades e escolhas para
si. Tal antagonismo entre egoísmo e responsabilidade, portanto, interfere de
maneira profunda na possibilidade de as mulheres fazerem escolhas, uma vez
que sua identidade é pautada pelo padrão de relacionamento e de cuidado.
(GILLIGAN, 1982).
As relações de cuidado que se formam são determinantes nas
possibilidades de acesso a recursos, bem como um fator de organização das
relações afetivas, configurando-se, nos padrões atuais, como reprodutor das
desigualdades de gênero. As mulheres são as mais responsabilizadas pelo
cuidar e, por isso, as mais afetadas pela desvalorização social do trabalho
do cuidado. Ser mulher permanece sendo um motivo organizador da esfera
privada, de forma desvantajosa para as mulheres, que continuam a ser as
principais responsáveis pelo trabalho cotidiano de reprodução da vida,
naturalizando-se este processo e mantendo-as em uma tarefa tida como
natural, pré-política e, assim, longe do acesso à igualdade. A responsabilização
desigual pelos atos de cuidado, portanto, está no cerne de várias questões
que perpetuam a desigualdade de gênero. (BIROLI, 2015).
A partir do conhecimento do curso de uma gestação, às mulheres é
cobrado o comportamento de proteção de sua cria. Suas ações não dizem
respeito ao seu corpo, à sua saúde e à sua liberdade; remetem-se agora ao bem-
estar dos filhos. As mulheres entrevistadas nesta pesquisa, por muitas vezes,

230
expressaram-se responsáveis pelos filhos a partir de um reconhecimento de
que seria natural à mulher fazer sacrifícios quando se torna mãe, apenas pelo
motivo de ser mulher e mãe.
O cuidado das crianças remete à sua importância, à sua centralidade
na família, o que se coloca desde o momento em que a mulher se descobre
grávida. Suzana (21 anos, 1 filho), conta que “desde a barriga, eu já estava
cuidando. Comia as coisas certas que tinha que comer. Não fazia muita força,
né, não pegava peso”, realizando as tarefas conforme seu entendimento
aconselhava como o melhor para seu bebê. Como o cuidado está naturalizado
na figura da mulher e essencializado na aptidão para cuidar, ele envolve
sacrifícios que devem ser feitos por seu/sua filho/a, como parte de sua função
de mãe e na busca pela auto intitulação e prazer de se reconhecer como “boa
mãe”. Quando ficou grávida, Laís (25 anos, 1 filha) conta que parou de sair,
“ficava mais dentro de casa”, por medo dos riscos que o bebê poderia correr,
mesmo não tendo experienciado nenhum problema durante a gestação.
Joana (25 anos, 2 filhos), da mesma forma, conta que “amadureceu”,
quando soube que estava grávida, e passou a agir da forma que considera
coerente a alguém que será solicitada pela necessidade de um bebê. Considera
que sua filha lhe deu “juízo”, principalmente por pensar que “vai criar alguém
que precisa da gente”.
No puerpério, o cuidado de si é mantido pensando no bem do recém-
nascido, principalmente porque a mãe está alimentando a criança com seu
corpo e percebe uma relação entre seu corpo e o cuidado de si com a saúde de
seu filho, como se depreende na fala a seguir:

Depois que eu ganhei, eu segui tudo certinho, comida sem


cebola, sem sal, sem alho. Tanto que o meu bebê nunca
teve cólica, e daí quando os dentes dele estouraram, né,
porque está estourando ainda, ele não teve febre, diarreia,
nem nada. Acho que por tudo que eu segui, certinho a
alimentação depois do parto. Daí eu acho que trouxe uma boa
consequência, porque ele não sofre quando os dentes dele
estouram, ele não chora, não dá dor de cabeça, não dá diarreia,
nada, se alimenta direitinho, nunca teve cólica. (Fernanda,
21 anos, 1 filho)

231
A normatização dos corpos se dá, no curso de uma gestação, de uma
forma em que a mulher não é mais vista como uma pessoa, livre e autônoma
de suas decisões e responsável por si mesma. O autocuidado tem caráter
obrigatório, pois, por seu corpo, uma criança está sendo cuidada. A gestação,
na esfera do social e do cuidado médico, tem como objetivo a saúde da
criança, em prejuízo das escolhas, da subjetividade e da corporeidade da mãe.
O sacrifício, se tiver que existir, é visto como parte natural deste processo e
deve ser encarado pelas mulheres pelo bem do bebê.
O sacrifício em prol da criança pode também gerar uma satisfação que
é utilizada para amenizar os dissabores da maternidade, como o imaginado
para o parto, as dores e as demais dificuldades no cuidado dos filhos. Suzana
(21 anos, 1 filho) imaginava o parto como algo que traria uma “dor horrível”,
mas consolava-se a si mesma pensando que, pelo filho, iria aguentar.
Este lugar possível da maternidade é o projeto de vida realizável para
muitas mulheres, especialmente das dos estratos mais empobrecidos, onde a
realização de outros projetos de vida tem o acesso mais dificultado. Embora
constrangida, estruturalmente, a escolha pela maternidade é uma realidade
vivida por estas mulheres, que obtêm prazer na relação com os filhos, na
satisfação de ser boa mãe e no enaltecimento de suas capacidades para vencer
as dificuldades da vida. (BIROLI, 2013; SILVA, 2013).
O pensamento de que elas são as responsáveis prioritárias pelas
crianças faz com que estas mulheres mães ganhem forças para a tarefa do
cuidado e encontrem reconhecimento de sua capacidade para o trabalho e
autovalorização, em comparação ao que consideram que um homem poderia
fazer, como exemplificam as mulheres entrevistadas:

eu sentia que alguém iria precisar de mim, por isso que eu


reagia. (Joana, 25 anos, 2 filhos).

eu tive as duas [filhas mais velhas] e sempre corri sozinha,


quando elas ficavam doentes, eu ia sozinha para o médico,
quando elas ficavam internadas eu ficava com elas, eu não
abandonava elas em nenhum momento. Porque eu penso
assim, a gente que é mãe, a gente nunca pode abandonar os
nossos filhos, né. (Gabriela, 30 anos, 3 filhos).

Não é fácil, a gente, mãe, sofre mesmo. Por isso que eles até

232
falam [...] que a mulher [...] o homem não aguentaria o que a
mulher aguenta. (Ana Rosa, 37 anos, 4 filhos)

O próprio aleitamento materno é uma forma de sacrifício com o


corpo. Ele é demandante de tempo e energia; e as intercorrências podem
agravar o sacrifício exigido. Melissa (31 anos, 3 filhas) conta que da sua
primeira filha ela teve fissuras no seio que a faziam “chorar de dor, mas tinha
que amamentar”, permanecendo aproximadamente vinte dias desta forma,
até as feridas melhorarem.
O sacrifício pela filha ou filho e a relação biológica com a criança
também são fontes de diferenciação entre mãe e pai, suas aptidões e amor
pela criança, conforme explicitado nas falas de Bruna e Simone:

Aquele amor, aquela coisa que a mãe tem [...] 9 meses, passar
aquela dor. Eu passei por tudo isso pra ter esta criança. Agora,
o homem não, ele faz, ali, pelo prazer na hora, não por que ele
vai fazer filho; o homem é mais pelo prazer de homem. Depois
ele acompanha o que a mulher diz, né, então ele não sente, né.
(Bruna, 18 anos, 1 filha)

[...] a partir do momento que você vê aquela coisinha ali, que


saiu de você, você ficou 9 meses ali [...] da tua carne, estava
dentro de você, saiu de dentro de você, saiu de dentro de mim,
é minha carne, é meu sangue, é um amor assim que, sabe, é
uma coisa, assim, quando você ganha o nenê bota no teu colo,
é uma coisa maravilhosa, muito bom, muito bom. (Simone, 24
anos, 2 filhos)

A aptidão para o cuidado é vista de forma diferenciada para homens


e mulheres, conforme relatam as entrevistadas. As mulheres cuidam, os
homens não têm paciência, isto é, são inaptos para o cuidado. Quando ficam
um pouco com as crianças, é para brincar; mas quando começam a chorar,
as crianças são entregues para quem “tem o dom”, como conta Joana (25
anos, 2 filhos), que relata que seu marido “não tem paciência para ficar com
ele”, alegando que apenas a mãe e a avó sabem acalmar a criança. Suzana (21
anos, 1 filho) diz que se ela deixa o seu filho ao encargo do pai, este transfere
a responsabilidade para sua mãe, assim que encontra uma dificuldade:
“Daí eu deixo com ele, ele joga no colo da mãe dele. [...]. Eu deixei com ele,

233
fui lá, e estava com a mãe dele. ‘Ah, ele chorou, deixei com a mãe’”. Sem
perspectivas de ajuda por parte do pai de seus filhos, Gabriela (30 anos, 3
filhos) se pergunta: “[...] se eu não cuidar, quem é que vai cuidar? Eu que
tenho que cuidar”. Poder-se-ia supor que são atividades a serem cumpridas
por qualquer pessoa. O pai, porém, não é elencado pelas mulheres como a
pessoa mais adequada ao cuidado de uma criança pequena.
Para o auxílio nas atividades de cuidado, a inserção das mulheres
se inicia desde cedo, como no caso das sobrinhas de Laís (25 anos, 1 filha),
que passam o dia com ela cuidando da bebê, e Joana, que incentiva sua filha
a cuidar do irmão pequeno, solicitando a sua ajuda nas trocas de fralda e
explicando que ela “tem que cuidar do seu irmãozinho, ele precisa de você”
(Joana, 25 anos, 2 filhos). Gabriela também explica que “quando eu era
nova, eu sempre trabalhei de cuidar de criança” (Gabriela, 30 anos, 3 filhos),
adquirindo experiência para hoje cuidar de seus próprios filhos.
Na família, o cuidado claramente é visto como uma atividade de
mulheres, que se unem, se revezam e se ajudam nesta tarefa. Até aqui foram
citadas, prioritariamente, as mães como fonte de ajuda, mas também acorrem
tias, irmãs, sogras, primas, filhas mais velhas, vizinhas e amigas. Mesmo
quando suas mães estão geograficamente longe, elas auxiliam no cuidado
subjetivo e no aconselhamento. O cuidado objetivo de fazer e oferecer comida,
dar banho, tomar conta, também fica por conta das mulheres da família, que
se ajudam mutuamente formando redes de solidariedade, principalmente
quando já possuem suas próprias experiências.

a vó dele vinha e ajudava, e as sobrinhas dele [do pai], né,


vinham aqui ajudar, minha mãe ajudava, todo mundo ajudava,
assim. (Suzana, 21 anos, 1 filho, grifos nossos)

Tinha essa minha prima, ela já estava com dois filhos já. Então
o que eu não sabia, assim, porque a [filha] era a primeira, ela
daí dizia: “Jo, olha, não é assim”, “Faz assim”, então ela me
ajudava um pouco nessa fase que eu não sabia. (Joana, 25 anos,
2 filhos, grifo nosso)

Daí também tem a minha sogra, que já teve três filhos, já teve
um monte de netos, então ela me ajuda, ela fala: “Olha, filha,
é assim”, “Ó, dá o chazinho”, daí eu tenho ela pra me guiar, né,

234
nas coisas para eu fazer com ele. (Joana, 25 anos, 2 filhos, grifo
nosso)

Pra cólica, a mãe deu chazinho até os 6 meses [...]. Camomila,


erva doce [...]. Daí ela [filha] até dormia. (Bruna, 18 anos, 1
filha, grifo nosso)

Eu já tinha base assim, né, por causa que minha prima teve
neném antes de mim, né, daí eu cuidava do filhinho dela [...]
eu gostava de cuidar [...] trocava fralda, dava comida, então já
sabia como tinha que cuidar, né, cuidava bastante da minha
prima, assim. Daí já sabia cuidar [...]. (Simone, 24 anos, 2
filhos, grifos nossos)

A construção social da maternidade, que se faz a partir do corpo,


coloca a mulher mais próxima à ideia de natureza e ligada às questões de
reprodução e cuidado. A mulher fica relacionada, e muitas vezes limitada, ao
seu útero e a todas as atividades ligadas à reprodução como naturalmente
femininas e ainda, em um nível de hierarquia, abaixo do ocupado pelos
homens. A visibilidade das funções da mulher na reprodução cria um vínculo
com as atividades que precisam ser exercidas posteriormente ao parto,
como a amamentação e o cuidado da criança. A responsabilidade foi dividida
socialmente de forma não justa e igualitária, porque se cria esta percepção de
que a natureza está influenciando na capacidade de cuidar. (ORTNER, 1979).
Existe uma valorização subjetiva no trabalho do cuidado para estas
mulheres, um sentir-se bem com suas tarefas e uma dignificação em ser “boa
mãe” e “boa dona de casa”, alcançando assim seu projeto de vida realizável.
As poucas perspectivas de vida, em outras esferas, trazem na maternidade
um lugar social e uma sensação de valorização a que teriam acesso muito
mais difícil por outras vias. (SILVA, 2013).
O cuidado da casa e a execução das atividades domésticas também
ficam sob a responsabilidade das mulheres, que se sobrecarregam fazendo
tudo sozinhas, ou encontram apoio nas outras mulheres da família, como
Joana (25 anos, 2 filhos), que cuida dos filhos enquanto a sogra cuida da casa,
e Suzana (21 anos, 1 filho), que, quando ainda mantinha um relacionamento
com o pai de seu filho, tinha a sogra e as cunhadas para auxiliar no cuidado do
filho, enquanto ela limpava a casa e lavava a roupa. Ao se separar do marido,

235
Suzana voltou para a casa de sua mãe e não encontrou o mesmo auxílio
para o cuidado do filho, pois sua mãe “tem os dela”. Desta forma, é ela que
sozinha passa o dia inteiro cuidando do filho. Isto lhe dá a impressão de que,
quando está longe do pai, o filho “fica mais chato”, o que se configura como
uma sobrecarga para Suzana, que pede para sua sogra que “leve ele lá um
pouco”, pois fica “sem paciência para cuidar dele” e chega a ter pensamentos
extremos: “Às vezes, dá vontade de largar ele, assim. Esses dias [...] eu até
pensei em dar ele já, pensei até em dar ele pra alguém. Sério, esses dias eu
pensei: ‘Vou dar ele pra alguém’”.
As relações de parentalidade, com a biologização do parentesco, e a
naturalização da maternidade criam uma moralidade que é diferenciada para
as distintas pessoas da família e para homens e mulheres. A última pessoa a
abandonar é a mãe, e ela não poderia abandonar (ou ela é “desnaturada” – não
corresponde à sua natureza). A condenação da mãe por abandono não está
fora de qualquer outra lógica imposta à mãe, ao contrário da paternidade,
que tolera separações sem colocar em risco a moralidade ou o seu status de
pai. (FONSECA, 2009). O trabalho é da mãe, mesmo quando as condições
exteriores não são favoráveis e são injustas para quem permanece cuidando.
Além da mãe, as redes de solidariedade para o cuidado das crianças se
constroem ao redor das mulheres, nas diversas fases da gestação, puerpério
e infância das crianças. Bruna (18 anos, 1 filha) relatou que sua mãe foi “sua
médica”, orientando e cuidando com tudo o que podia durante a gestação.
Gabriela (30 anos, 3 filhos) precisou de auxílio no puerpério, também
contando com a ajuda de sua mãe, que assumiu os cuidados com o bebê
enquanto ela permaneceu no hospital para um tratamento de saúde. A rede
de solidariedade de Gabriela na família também serviu de suporte financeiro,
uma vez que os pais de suas duas primeiras filhas são de “relacionamentos
rápidos”, conforme ela descreveu. Ora sua mãe cuidava das meninas para
Gabriela poder trabalhar, ora ela obtinha suporte financeiro de seus pais para
“sustentar as meninas”. Atualmente, Gabriela fica a maior parte do tempo
em casa, mas quando ela trabalha, sua mãe, sua irmã e suas cunhadas se
revezam no cuidado dos menores e para levar os maiores para a escola.
A solidariedade possui um componente material e outro afetivo, e
isto constitui a base dos relacionamentos familiares. Uma grande parcela da
população acima de 60 anos auxilia seus filhos financeiramente ou com a
prestação de serviços, estabelecendo-se, muitas vezes, como o único apoio

236
existente, principalmente nos casos em que as políticas sociais falham.
(PEIXOTO, 2007).
As atividades de cuidado das crianças são frequentemente assumidas
pelas avós, quando as mães trabalham fora de casa. Para as camadas populares,
esse tipo de arranjo impede a superação da situação de pobreza, pois não
atua no sentido de promoção social, mas, sim, de suprir as necessidades
cotidianas de sobrevivência. (PEIXOTO, 2007).
Não restritas às avós, as mulheres parecem se dividir na família entre
as que trabalham e as que cuidam dos filhos de quem trabalha. O último
filho de Andréa (39 anos, 6 filhos) foi cuidado pela filha mais velha, para
que Andréa pudesse trabalhar. Gabriela (30 anos, 3 filhos), quando nova,
cuidava de sua sobrinha, para a irmã trabalhar. Simone (24 anos, 2 filhos)
deixa seu filho mais velho com a bisavó, quando sai para trabalhar, para esta
arrumá-lo e alimentá-lo, antes de ele ir para a escola. Não é possível que todas
trabalhem fora, pois não haverá quem cuide. Não dá para todas cuidarem
(especialmente as separadas), pois não haverá renda suficiente. A rede de
solidariedade funciona como subsistência, mas não prevê a superação da
condição atual.
Estas redes de solidariedade são formadas por mulheres – e muito
relacionadas às avós maternas – e funcionam o quanto possível seja
como estratégia de manutenção da vida. Há revezamento de mulheres
que cuidam e trabalham, o que gera, porém, menores possibilidades de
autodesenvolvimento por educação, emprego e renda para umas e/ou outras.
Portanto, não há, desta maneira, expectativas de superação da pobreza, pois
o trabalho do cuidado continua desvalorizado e tido como algo pré-político,
invisibilizado e mantido na esfera privada. O cuidado de crianças é uma
função social e deve ser pensado como tal. A responsabilização diferenciada
e a falta de apoio estatal são as bases das desigualdades e estão no centro das
questões de autonomia das mulheres que são mães.
Ao contrário do que acontece com a percepção das atribuições
da mãe, os homens não são vistos como aptos para o cuidado de crianças,
nem pelas mulheres, nem por eles mesmos, que conseguem utilizar-se do
estereótipo para alocar as atividades do cuidado às mulheres da família.
Suzana (21 anos, 1 filho) conta que tem medo de deixar seu filho apenas com
o pai, pois “Não sei se ele sabe cuidar, assim. Nunca fiz um teste, deixar um
dia com ele sozinho. Daí eu deixo com ele, ele joga no colo da mãe dele”. Ana

237
Rosa (37 anos, 4 filhos) diz que seu marido pega no colo, por algum tempo,
mas ao menor sinal de choro ou de agitação, o pai leva a criança de volta à
mãe dizendo para ela que “ele não sossega”, “ele não fica quieto”.
A divisão sexual do trabalho do cuidado implica que haverá
responsabilização desigual das atividades, no caso, entre homens e
mulheres. (BIROLI, 2015). O trabalho de cuidar realizado por homens não
é de responsabilidade consciente e, muitas vezes, é tomado como ajuda.
Simone (24 anos, 2 filhos) conta que o pai de seus filhos “nunca foi de
ajudar”. Ao ser questionada do por que, ela explica que “tem homem que tem
jeito com criancinha pequena, tem homem que já tem medo, porque é muito
pequenininho”. Ao mesmo tempo, pensa que ele não se responsabilizou por
alguma esfera qualquer de cuidado, mesmo que não envolvesse a criança,
como, por exemplo, “não lavava louça, não passava uma vassoura na casa,
nada”.
A participação do pai está quase que restrita à esfera do econômico,
da vida pública. A figura paterna é um bem em si mesmo. Uma vez que a mãe
é naturalmente apta ao cuidado, esta tarefa não cabe ao pai. A definição de
um “bom pai” está vinculada ao provimento da casa. Este é o outro lado da
divisão sexual do trabalho, que não será rompido se o acesso das mulheres
à vida pública não atingir igualdade. Para isto, é necessário que o cuidado
saia da esfera pré-política e seja entendido como algo compartilhado entre os
membros da família e de responsabilidade da esfera social e estatal.
A divisão entre o trabalho produtivo realizado por homens e o
realizado por mulheres está presente de maneira bem marcante nas falas
destas mulheres, porque eles estão marcados também em seus cotidianos.
É corriqueiro vermos estas mulheres trabalhando o tempo todo (em casa ou
fora dela), sem tempo de descanso, pois assumem o cuidado da casa e das
crianças da família, em tempo integral, ou após chegarem do trabalho fora do
domicílio. Ou seja, “quando é teu, você é obrigada a olhar, é obrigada, tipo...
é teu. Quem pariu Matheus que balance, né, como diz o ditado” (Simone, 24
anos, 2 filhos). Os homens, por sua vez, descansam quando estão em casa,
porque já trabalharam durante um período, assim como conta Suzana (21
anos, 1 filho), cujo pai de seu filho trabalha à noite, e “O dia inteiro ele está
em casa dormindo, para trabalhar de noite”.
Esta visão do trabalho produtivo, que se considera como tal se
realizado fora do lar, quando remunerado, é compartilhada por algumas

238
mulheres entrevistadas, mesmo em face de suas dificuldades para cumprir
as obrigações que consideram de sua competência. Luana (26 anos, 2 filhas)
conta que teve de parar de trabalhar, quando teve sua primeira filha. Agora,
com duas meninas em casa, relata que não consegue dormir e não tem tempo
de realizar todas as atividades domésticas: “Por que eu não consigo... eu mal
consigo lavar minha roupa, que é só jogar na máquina e estender, né. Eu
não consigo”. O marido trabalha em regime de escala. E quando questionada
sobre a ajuda que recebe em casa, explica que o esposo “tem que descansar”,
porque “ele trabalha”; então, “os dois dias de folga que ele tem, ele dorme”.
As mulheres ficam quase que exclusivamente responsáveis pelo
cuidado das crianças, ainda que algumas não possuam uma rede de
solidariedade eficiente nas suas relações familiares e de amigas. Ana Rosa (37
anos, 4 filhos) tem uma filha mais velha, que tem seus próprios filhos, razão
pela qual não a auxilia. A cunhada de Ana Rosa tem a mesma idade, filhos
mais velhos e também um filho temporão, da idade de seu filho mais novo.
Por se perceberem na mesma situação, as duas se auxiliam conversando e se
aconselhando, mas não prestam ajuda material uma a outra. Pensando em
uma pessoa que poderia ajudar com todos os afazeres, Ana Rosa lembra que
também não encontra corresponsabilidade em seu companheiro: “É tudo eu.
Eu sou sozinha pra tudo, mesmo, pra cuidar dele”.
As mudanças ocorridas no caráter institucional da família, como
as impulsadas pela esfera jurídica das formas de união e separação, e as
mudanças culturais das relações entre homens e mulheres enfraqueceram
a autoridade do pai. A família, porém, é um espaço de interação afetiva
onde as demandas à mãe são mais preeminentes. Se foi aberto às mulheres
o acesso à esfera pública e se existe a possibilidade de rompimento de um
relacionamento insatisfatório, as atribuições das mulheres na esfera privada,
no entanto, pouco se modificaram, com vantagens para os homens, que se
beneficiam do trabalho do cuidado deles mesmos e de seus filhos, ainda que
não participem ou participem pouco deste trabalho. (ARAÚJO; SCALON,
2005).
Essa divisão sexual do trabalho proporciona objetivamente
diferenças nas possibilidades de acesso à esfera pública, pela socialização e
pela responsabilização diferenciadas, que restringem as possibilidades de
escolha às mulheres. A desvalorização do trabalho do cuidado, por sua vez,
contribui para o silenciamento das experiências das mulheres, e a superação

239
dessa questão implicaria que os homens teriam que se desfazer de seus
privilégios. (BIROLI, 2015).
Esta clivagem de gênero está na ordem da subjetividade e gera
novos conflitos, permitindo-se repensar o trabalho do cuidado enquanto
algo da esfera do privado e da responsabilidade feminina. Novas dinâmicas
de organização entre homens e mulheres precisam emergir, garantindo
condições iguais a todos os membros. Ao se tratar do cuidado de crianças,
no entanto, o cuidado não pode ser negado; precisa ser pensado por políticas
públicas que sejam adequadas às novas relações sociais. (ARAÚJO; SCALON,
2005). Denegá-lo significa mantê-lo desvalorizado e despolitizado, o que
amplia a vulnerabilidade social das pessoas que exercem o trabalho do
cuidado. (BIROLI, 2015).

A dimensão política do cuidado de crianças

As entrevistas realizadas com as 12 mulheres, mães de crianças pequenas,


alvos de seu cuidado, permitem afirmar que o cuidado de crianças fica
restrito à esfera privada e invisibilizado para se pensar políticas públicas
que permitam que estas mulheres alcancem condições iguais de renda, de
busca de um trabalho remunerado, ou de que gozem de alguma rede de
apoio estatal que lhes permita autonomia sobre suas vidas e suas condições
na maternidade. Sem este apoio, as mulheres criam arranjos entre elas, em
uma divisão e uma troca de mulheres que cuidam em casa e mulheres que
trabalham fora de casa para obter renda. Entretanto, de uma forma ou de
outra, alguém permanece no domicílio, o que incide sobre suas próprias
possibilidades atuais ou futuras. Desde modo, passamos a refletir agora
sobre o cuidado como uma questão política.
Atualmente, as práticas sociais em muitos contextos ainda estão
embasadas nesta visão essencialista da mulher, em que o cuidado é visto
como sua tarefa natural e, portanto, mesmo trabalhando fora de casa, ela
se mantém no papel de responsável pela casa e pelos filhos. É um ranço de
longa data que mantém as relações e as práticas entre homens e mulheres.
Mesmo quando negam seu papel de provedor, são as mulheres que assumem
a responsabilidade abandonada pelos homens, haja vista o número de
famílias pobres chefiadas por mulheres, sem negar as tarefas de cuidado
como contrapartida. (OLIVEIRA, 2007; SCAVONE, 2004; GIDDENS, 1993).

240
Se o cuidado é político, como também um instrumento para a
observação da dinâmica das relações sociais, e a maternidade faz parte de uma
prática social impregnada de normatização dos corpos, as políticas públicas
não estão isentas de criar ou aprofundar as diferenças existentes entre os
sexos. As políticas brasileiras de Saúde Pública refletem o desequilíbrio entre
as funções maternas e as paternas. Pensam e agem no sentido da manutenção
das desigualdades sexuais relacionadas ao planejamento e à execução de
políticas, programas e estratégias de saúde e alimentação na agenda da
Saúde Pública brasileira, que reafirmam o modelo de maternidade e excluem
a possibilidade da participação igualitária.
As desigualdades impostas pela divisão sexual do trabalho também
passam pela maior vulnerabilidade da posição da mulher em um casamento
e cerceamento de sua livre vontade, pois a decisão de rompimento tem custos
diferenciados para homens e mulheres. A independência econômica das
últimas é mais difícil de ser alcançada, pela socialização diferenciada entre
os gêneros e pela responsabilização desigual que sobrecarrega seu tempo e
energia. Ela resulta em uma apropriação coletiva do trabalho das mulheres,
liberando os homens. (BIROLI, 2015; 2016).
As desvantagens das mulheres para participar na esfera pública as
tornam vulneráveis e, muitas vezes, dependentes de um relacionamento
ou de políticas públicas que também se formam como reprodutoras das
desigualdades e não contribuem para o alcance da autonomia feminina, o que
ocorre porque as mulheres são responsabilizadas por tarefas cotidianas que
deveriam ser de responsabilidade de cada um e do coletivo; como problema
político, tal desigualdade permanece invisibilizada.
Se às mulheres é permitido o divórcio, ou a maternidade sem
casamento, esta escolha pode estar relacionada a constrangimentos
materiais, a depender de sua dinâmica social. Não são as escolhas que geram
constrangimentos. A exploração de seu trabalho na vida doméstica afeta as
outras áreas de sua vida. Os movimentos feministas muito contribuíram para
alargar as possibilidades das mulheres na vida pública e para a ressignificação
das relações de gênero. A família, porém, “permanece, ainda assim, como
nexo na produção do gênero e da opressão às mulheres” (BIROLI, 2016,
p.731), mantendo a posição desvantajosa para elas, revelando conexão entre
a vulnerabilidade feminina e a divisão sexual do trabalho.

241
Ana Rosa, mãe de quatro filhos, considera como invariavelmente
dela as atividades domésticas, mas observa que o cuidado do filho menor,
incluindo o aleitamento materno fornecido a ele, é também uma tarefa
extenuante e que, na combinação das duas, não resta muito tempo de
organização ou para ela mesma:

Mas, agora, assim, de casa... pra fazer as coisas de casa, com ele,
pra dar conta... daí não tem como. É muito complicado. Você
tem que esperar ele dormir um pouquinho pra poder fazer as
coisas, porque, tipo assim, eu não tenho ninguém que me ajude
[...]. Você não tem tempo pra você, tipo assim... nem pra tomar
banho, se você ficar dependendo dele, tem que colocar ele junto
com você no banheiro pra poder tomar banho, sete, oito horas
da noite. (Ana Rosa, 37 anos, 4 filhos)

Luana (26 anos, 2 filhas), que teve que deixar de trabalhar como
manicure, após o nascimento de sua primeira filha, também considera
exaustiva a rotina de cuidado das crianças e da casa, dificultando a realização
de todas as atividades. Conta que não consegue manter a casa limpa e
arrumada, “sempre tem bagunça” e as outras atividades são feitas conforme
consegue: “mal consigo estender a minha roupa, a comida tem que ser feita
rápida, correndo”.
Algumas das entrevistadas trabalham fora, ou pensam em poder
trabalhar. Neste momento, lançam mão de estratégias para arranjos
familiares que lhes permitam, ou que permitam a outras mulheres da
família procurarem emprego. Assim, vemos uma rede de solidariedade
para o cuidado, formada exclusivamente por mulheres – mães, tias, avós,
primas, irmãs – em que algumas trabalham e outras cuidam dos filhos das
que trabalham. Por exemplo, Laís (25 anos, 1 filha) permanece em casa
cuidando de sua filha e também das sobrinhas e irmãs menores, para que sua
irmã trabalhe e sua mãe possa fazer diárias, a fim de contribuir para a renda
familiar. Ela não tem condições de buscar um emprego, pois cuida de todas as
crianças. Simone (24 anos, 2 filhos) deixa seus dois filhos com a bisavó, para
manter um trabalho remunerado formal, muito embora o pai dos meninos
tenha tempo disponível para cuidar.
Andréa (39 anos, 6 filhos) considera que “depende” de suas filhas,
em especial da filha mais velha, para o cuidado dos irmãos menores, pois

242
a logística de levar os filhos à creche não se encaixaria em seu cotidiano,
criando ainda mais dificuldades, uma vez que o município não possui vagas
suficientes, em lotações convenientes para as mães, e próximas de seus
domicílios ou trabalhos, e que aceitam crianças com a idade de todos os seus
filhos. Deste modo, a filha de Andréa, que tinha 20 anos no momento da
entrevista, permanecia em casa cuidando dos irmãos menores. Por precisar
trabalhar, considera que não consegue cuidar bem de seus filhos, pois não
possui tempo para aconselhá-los. Relaciona sua falta de disponibilidade para
a família com as frequentes faltas de seus filhos à escola, culminando em sua
perda do benefício do Programa Bolsa Família, o que dificultou ainda mais a
vida de Andréa. Desta forma, ela não enxerga outra solução, que não manter
sua filha mais velha em casa para cuidar dos dois filhos menores, enquanto
ela trabalha para o sustento da família. O modo como são ofertadas creches
no município não se ajusta ao cotidiano, que ficaria mais complicado sem
a ajuda de sua filha. Vemos, entretanto, uma mulher sendo necessária ao
cuidado, permanecendo em casa, para que outra trabalhe.
A desvalorização e a despolitização do trabalho do cuidado geram
enormes desvantagens para quem exerce esta tarefa. Como são as mulheres
as responsabilizadas, seu tempo será gasto em benefício dos outros membros
familiares, gerando para elas maiores dificuldades de provimento da vida.
Estas dificuldades serão maiores quanto menor for o apoio de instituições
públicas. Atreladas à atividade do cuidado, as mulheres veem “reduzidas
não apenas suas condições para o exercício de trabalho remunerado, mas
também seu acesso a tempo livre e oportunidades de autodesenvolvimento”.
(BIROLI, 2015, p.111).
A falta de apoio estatal é sentida também por Melissa, que não possui
trabalho remunerado formal, mas recorre à ajuda de sua prima, quando
aparece uma diária, o que aumenta seu rendimento. Conta que recebe o
benefício do Programa Bolsa Família e, assim, pode permanecer em casa
com suas três filhas. Se conseguisse um trabalho formal, analisa que gastaria
mais em creche para suas duas filhas menores do que o salário recebido em
um emprego de acordo com sua formação; portanto, não possui condições
objetivas para trabalhar fora de casa.

Eu precisava de creche, no caso. Porque pra eu trabalhar,


familiares, não tem ninguém. Minha irmã trabalha, os que

243
poderiam ficar também trabalham, então eu precisaria de,
agora, no caso, pra eu poder trabalhar, mesmo, o que está
difícil é creche para elas, mesmo. Para as duas [menores], né,
porque a outra [mais velha] é [escola] integral. (Melissa, 31
anos, 3 filhas)

Nas ocasiões em que consegue trabalhar em regime de diária, ela


paga para sua prima cuidar das filhas. Neste caso, Melissa tem seu pagamento
subtraído, para pagar o cuidado de suas filhas; e outra mulher também
é subpaga pelo seu serviço de cuidado, propagando-se a vulnerabilidade
econômica entre mulheres. Nesta divisão entre mulheres que trabalham e
mulheres que cuidam, na família de Melissa (31 anos, 3 filhas) existem mais
mulheres que trabalham ou estão procurando emprego, o que faz com que ela
sinta mais a carência de políticas públicas que lhe deem este suporte, como a
necessidade de vagas em creches municipais.
Esta condição limita as escolhas das mulheres, que ficam com a
responsabilidade de cuidar das crianças e só podem trabalhar quando
contam com ajuda, que, permanecendo na esfera do privado, limita a escolha
e oportunidade de outra mulher. A prima de Melissa (31 anos, 3 filhas), que
cuida de suas filhas esporadicamente, deixa clara a inviabilidade desta rede
de cuidados, quando se recusou a trabalhar em tempo integral cuidando das
filhas de Melissa, caso esta arrumasse um emprego formal, alegando que
“ganha muito pouco pra cuidar de criança. Nem quero, não compensa”.
Valentina (39 anos, 4 filhos) relata outro tipo de dificuldade para
encontrar um emprego formal, que ela relaciona com o fato de possuir quatro
filhos. Ela é técnica em contabilidade e possui experiência na área. Deixou
um emprego que considerava bom para acompanhar o novo marido (pai de
seu filho mais novo), mudando de município. Continuou prestando serviço
remotamente por algum tempo, mas quando acabou seu contrato de trabalho
e também sua licença maternidade como autônoma teve que procurar
alternativas para manter no mesmo patamar a renda familiar suficiente para
a família de seis pessoas e para pagar a pensão dos três primeiros filhos do
marido.
Mesmo sem familiares próximos para auxiliar no cuidado das crianças,
caso fosse trabalhar fora, Valentina procurou emprego, pois considera que,
com sua formação, seu salário seria suficiente e compensaria pagar alguém
ou algum local para cuidar dos filhos menores, diferentemente do quadro

244
imaginado por Melissa em suas possibilidades. A dificuldade, no caso de
Valentina, foi sentida no que se refere à reação de possíveis empregadores
frente à sua quantidade de filhos, sendo um deles ainda bebê.

eu creio que algo que atrapalhou [...] que vem atrapalhando,


eu acredito, além da quantidade de filhos, eu tenho um bebê,
porque eles sempre perguntam: “Está amamentando?” Eu:
“Não, não estou amamentando, tem creche, tem pessoas que
cuidam”, né. [...] Mas mesmo assim eu achei tudo muito difícil,
estou achando uma dificuldade muito grande nessa parte. [...]
porque sempre as pessoas: “Ah, que pena”, eles falam logo
assim, então existe esse termo, eles deixam bem claro, né.
(Valentina, 39 anos, 4 filhos)

Desta forma, Valentina começou a fazer salgados em casa para


vender, pois após a perda do seu rendimento “já caiu metade, mais da metade
da renda que entrava na casa, em seis pessoas. Então está bem complicado
agora para nós; então só está o meu esposo trabalhando”. (Valentina, 39
anos, 4 filhos)
Além da quantidade de filhos, Valentina credita à sua falta de titulação
parte da dificuldade para encontrar emprego (“30%, por não ter graduação”).
Conta que não conseguiu terminar sua graduação, em contabilidade,
“justamente devido à falta de recursos”. Valentina ficou muito tempo
solteira, após a separação do primeiro marido, cuidando dos três primeiros
filhos. Com um valor insuficiente de pensão, os recursos eram destinados
à sobrevivência, impossibilitando-a de concluir a graduação. Para situações
como a dela, acredita que deveria haver um recurso público, “por exemplo,
programas para ajudar” na conclusão dos estudos, para mulheres com filhos,
que não conseguem ter recursos disponíveis para criar os filhos e também
para poder pagar cursos profissionalizantes ou manter-se na graduação.
A fruição de prazer e os sacrifícios impostos pelo exercício da
maternidade coexistem e não chegam a ser contraditórios na experiência
destas mulheres. “[...] a ênfase nas experiências singulares dos indivíduos
é um passo importante na atribuição de relevância social e política a suas
perspectivas e interesses” (BIROLI, 2013), tomando-se o cuidado de
considerar que as preferências socialmente aprendidas não se tornem
dispositivos reprodutores de desigualdades e relações de poder, como ocorre

245
na maternidade como valor positivo, mas que naturaliza a divisão sexual do
trabalho. A experiência vivida pelas mulheres mães não está dissociada da
maneira como representa a naturalização da maternidade.
O que vemos é a manutenção das relações de cuidado como um
problema para a democracia, pois que mantém a mulher na responsabilidade
do trabalho desvalorizado socialmente, natural, pré-político, mantendo a
desigualdade. A divisão precisa ser vista como um gerador de arbitrariedades
que restringem os indivíduos em suas possibilidades de escolha. A
responsabilização diferenciada entre homens e mulheres para as atividades
de cuidado é definidora da construção de alternativas e oportunidades.
(BIROLI, 2015).
Ainda que não se configure na forma de uma coação propriamente
dita, o trabalho do cuidado é assumido pelas mulheres, que veem seu tempo
e seu esforço despendido em prol de outros. Elas não são controladas e não
têm, a priori, seu acesso à esfera pública negado. Suas condições de exercer
esse direito, porém, não são as mesmas de quem não é responsabilizado
pelo trabalho do cuidado. O cuidado, portanto, atua como modulador da
sua posição em outras esferas da vida. Não se trata de uma exclusão, mas,
como Flávia Biroli (2015) coloca, de “formas desiguais de inclusão”, e que,
portanto, “A escolha do casamento e a reprodução das formas convencionais
da família [...] pode ser explicada [...] pelo ônus imposto, quando as mulheres
procuram construir suas vidas de outras formas”. (BIROLI, 2015, p.91).
No caso do cuidado de crianças, é necessário considerar que quem
está sendo beneficiado é uma pessoa que ainda não pode realizar sozinha
vários tipos de tarefa. O cuidado de crianças é, portanto, uma contribuição
social, de responsabilidade de todos e que deveria pressupor igualdade na
distribuição de tarefas, na esfera pública e privada. A necessidade impõe que
se estruture a oferta de serviços públicos de forma suficiente (creches, escolas
em período integral, Unidades de Saúde, ações de lazer), além de alternativas
sociais, como cozinhas coletivas, rodízio no cuidado, entre outras ações.
(BIROLI, 2015).
A realidade, no entanto, é que mulheres e homens possuem
responsabilizações diferenciadas no cuidado de crianças, de maneira
desvantajosa para mulheres, que gastam seu tempo e sua energia neste trabalho
invisibilizado, enquanto que suas oportunidades de autodesenvolvimento
diminuem. As responsáveis são mães e mulheres relacionadas a ela, e uma ou

246
outra, em cada uma das relações, verá afetada sua possibilidade de participar
igualitariamente da vida social e pública.

Considerações finais

O trabalho do cuidado, como um trabalho gendrificado, acarreta prejuízos


sociais e democráticos para as mulheres. Elas se organizam na família, em uma
rede feminina de solidariedade para com o cuidado de crianças, diminuindo
as possibilidades de autodesenvolvimento de quem permanece cuidando, na
esfera do privado, o que é determinante para o acesso a recursos, educação e
renda, configurando-se, assim, em um potente reprodutor de desigualdades
de gênero. E afeta as mulheres, porque elas estão responsabilizadas pela
tarefa de cuidar, naturalizando este processo e mantendo-as responsáveis
pelo trabalho cotidiano de reprodução da vida. O lugar de mãe é, neste caso,
o projeto de vida realizável para muitas mulheres, especialmente daquelas de
classes socioeconômicas menos favorecidas, em que os projetos de estudo e
trabalho enfrentam maiores obstáculos.
As desvantagens engendradas pela divisão sexual do trabalho terão
consequências no sentido de sua dependência de um relacionamento ou
de políticas públicas. Ambas as formas reproduzirão as desigualdades em
longo prazo; a primeira, por manter a hierarquia entre os gêneros dentro da
família, com a suposta posição de neutralidade do masculino, político; e a
segunda, porque as políticas públicas são elaboradas a partir da mesma visão
de naturalidade do cuidado na figura da mulher, que se responsabiliza pela
família. Reforçam as desigualdades, ao invés de combatê-las, pois vinculam
as mulheres a um trabalho que deveria ser de responsabilidade de cada um e
do coletivo e como tema político, e não privado.
As mulheres gastam seu tempo e energia em benefício de outros
membros familiares. Não é uma atividade coercitiva e envolve fruição de
prazer, mas elas terão maiores dificuldades com as provisões para as suas
vidas. Quando envolve a separação do pai de seus filhos e filhas, sua situação
de vulnerabilidade econômica pode se agravar ainda mais. A elas não está
sendo negado espaço na esfera pública, mas o acesso a ele se dá por uma
forma diferente de inclusão, em que elas não possuem acesso a seu tempo
livre e a oportunidades de desenvolvimento da mesma maneira que ocorre
para quem não se ocupa com o trabalho do cuidado.

247
O cuidado de crianças envolve uma relação com alguém que ainda não
consegue realizar seu autocuidado sozinho. As relações de cuidado, na verdade,
são fluidas ao longo da vida e todas as pessoas passarão pela experiência de
necessitarem de ajuda neste sentido. Deve ser tratado, portanto, como uma
atividade de contribuição social e de igual responsabilidade para todos. As
redes de solidariedade formadas pelas mulheres dão conta de desempenhar
as tarefas imediatas, reproduzindo a vida e criando condições de subsistência
para a família. Mas não dão conta de tirar o cuidado da esfera pré-política
e invisibilizada, impossibilitando as expectativas de superação da pobreza
para muitas famílias.
Para se pensar em democracia do cuidado, há que se pensar em
serviços públicos, em alternativas sociais e participação igualitária dos
gêneros que representem medidas para superar as desigualdades e enfrentar
as dificuldades sentidas pelas mulheres. Trata-se de reformas políticas e
sociais, em que creches, Unidades de Saúde, cozinhas coletivas, escolas e
dinâmicas relacionais estejam atentas às necessidades de cada criança e de
cada mãe, para o cuidado como função social. As dinâmicas de organização
entre homens e mulheres precisam garantir as mesmas condições a todos os
membros da família, compreendendo a possibilidade de inserção igual para as
mulheres, em termos de escolarização, trabalho e renda. E ainda ultrapassar
o cuidado para a esfera política, combatendo no longo prazo a reprodução
da estrutura que mantém as mulheres em vulnerabilidade social, por não
conseguirem livrar-se de um exercício exclusivo do trabalho do cuidado.

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250
“MULHER AGUENTA TUDO”:
CATADORAS, CUIDADO DA FAMÍLIA E
TRABALHO PRECÁRIO
Daniela Isabel Kuhn37
Gilson Leandro Queluz38

Introdução39

As reflexões propostas neste texto originam-se da minha pesquisa de


doutorado, da qual resultou a tese intitulada: “‘Eu não sou lixo’: abjeção
na vida de catadoras e catadores de materiais recicláveis” (KUHN, 2016).
Abordo, nesta tese, a rotina de trabalho das catadoras e dos catadores de
materiais recicláveis, buscando compreender como a noção de abjeção
se expressa na vida destas pessoas. Ao refletir sobre estes aspectos, foi
significativo perceber que uma concepção atuante na sociedade de que o
cuidado dos afazeres domésticos e da família deve ser assumido prioritária

37 A autora possui Bacharelado e Licenciatura em Dança (1995) pela UNICAMP,


mestrado em Artes/Artes Corporais (2001) pela mesma instituição e doutorado em Tecnologia
e Sociedade (2016) pela UTFPR. Atua como docente no curso de bacharelado em Educação
Física da UTFPR. Tem experiência em Artes, especificamente em dança, atuando nos seguintes
temas: dança, consciência e expressão corporal, cultura popular brasileira, corporeidade,
catadoras/es de materiais recicláveis, relações de gênero e educação para a consciência.
Nota do revisor: É a autora Daniela Kuhn que se expressa na primeira pessoa do singular,
para assim indicar que o texto é de sua lavra, mas também para reconhecer a contribuição
que recebeu do coautor na forma de orientação acadêmica em seu projeto de doutorado.
kuhndaniela@hotmail.com
38 O coautor tem graduação em História (1989) pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR) e mestrado em História pela mesma UFPR (1994). Realizou doutorado sanduíche no
Departamento de História da University of Delaware (1998-1999) e concluiu o doutorado em
Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, em 2000. Realizou estágio pós-doutoral em Política
Científica e Tecnológica na UNICAMP (2009). É professor no Departamento de Estudos Sociais
e no Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal
do Paraná. É vice-presidente da ESOCITE.BR (Associação Brasileira de Estudos Sociais das
Ciências e das Tecnologias) e membro da diretoria da ESOCITE (Asociación Latinoamericana
de Estudios Sociales de la Ciencia y la Tecnología). Entre as suas principais publicações estão
os livros Concepções de Ensino Técnico na República Velha (2001) e Representações de Ciência e
Tecnologia no Modernismo Conservador Brasileiro (2016). gqueluz@gmail.com
39 Agradecemos a leitura do texto realizada por Lennita Ruggi.

251
ou exclusivamente pela mulher colabora como um dos fatores que empurra
muitas das mulheres catadoras para a zona inóspita da abjeção.
A relação entre lixo, sustentabilidade e cuidado foi uma questão
que atravessou o estudo, demonstrando um potencial a ser explorado e
sobre o qual aqui proporei uma reflexão. Para desenvolver a pesquisa do
doutorado, foi realizada uma pesquisa de campo inspirada em etnografia.
Esta vivência ocorreu no ano de 2014 em uma Associação de catadoras/
es na região metropolitana de Curitiba, além de abarcar experiências em
eventos referentes ao mundo da catação que contaram com a participação
do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR)40.
Parti da compreensão de que o trabalho das/os catadoras/es tem sido
uma atividade plenamente vinculada à estrutura do sistema capitalista. A
prática da produção e do intenso consumo gera uma volumosa quantidade
de materiais descartados, condição básica para a existência do trabalho de
catação na sua atual configuração. Além disso, a profissão de catadora/r tem
sido exercida, de maneira geral, em condições precárias e indignas, o que
permanece como uma característica de vários outros trabalhos no sistema
capitalista. Os dados de campo se mostraram férteis para a reflexão sobre
as relações entre as condições precárias deste trabalho e a construção de um
corpo considerado abjeto, como parte da vida das/os catadoras/es, sobretudo
pelo fato de trabalharem com o lixo.
A vida das mulheres e dos homens que trabalham como catadoras/
es de materiais recicláveis apresenta certas características específicas e tem
instigado diversas/os pesquisadoras/es a estudar o cotidiano desta categoria
de trabalhadoras/es a partir de variados enfoques e abordagens. (ALENCAR,
2008; BORTOLI, 2012; BOSI, 2008; BURGOS, 2009; ESCURRA, 2011;
FREITAS, 2010; GOMES, 2014; GRECCO, 2014; JUNCÁ, 2004; MEDEIROS;
MACEDO, 2006; MAGALHÃES, 2012; MIURA; SAWAIA, 2013; SOUZA,
2013). De certa forma, estes estudos apontam, cada um a seu modo, para
40 Optei pelo anonimato do nome da Associação, para manter protegidas as pessoas
envolvidas na pesquisa. O nome de cada catadora foi alterado pelo mesmo motivo e escolhido
pela própria pessoa participante da pesquisa, pois estas demonstraram o desejo de poderem
identificar a si mesmas nos textos oriundos do estudo. Contudo, nos trechos em que são
expostas questões mais íntimas que me foram confiadas, optei por não atribuir nem mesmo
o nome escolhido, com o intuito de resguardar fatos dolorosos da história e vida das pessoas.
No caso do MNCR, todos dados expostos de forma pública, explicito a origem e autoria. No
capítulo da tese sobre a metodologia, exploro as particularidades e motivos que balizaram
estas escolhas.

252
as condições adversas e desafiantes nas quais estas/es trabalhadoras/es
desenvolvem a atividade de catação. O trabalho como catadora e catador
envolve o desafio de ter que enfrentar significativas limitações para a
conquista de condições dignas no ambiente de trabalho e, também, para
garantir a sua sobrevivência e a de sua família muitas vezes em situações de
extrema precariedade, desrespeito e violência no âmbito da família.
Em consonância com esses estudos, as experiências que conheci em
relação a esta realidade, antes e durante o curso de doutorado, me permitiram
um entendimento de que existe uma concepção social depreciativa e
permeada de preconceitos sobre as/os catadoras/es41. O fato de trabalharem
com lixo produz um contexto que coloca estas pessoas em uma condição
de abjeção, porque elas são enquadradas socialmente em uma classificação
de pessoas menos importantes, desprezíveis no sentido proposto por Julia
Kristeva (1982) e Judith Butler (2012)42.
As condições de trabalho das/os catadoras/es na Associação
conduziram-me a refletir sobre a indignidade presente nesta atividade
desenvolvida por estas pessoas. Portanto, no enfoque deste estudo, as
condições de trabalho das/os catadoras/es são vetores que impulsionam
estas pessoas para o que Butler (2008, p. 113) descreveu como as “zonas
‘inóspitas’ e ‘inabitáveis’ da vida social, que são, não obstante, densamente
povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar
sob o signo do ‘inabitável’ é necessário para que o domínio do sujeito seja
circunscrito”.
Com o intuito de contextualizar, cabe expor, ainda que de maneira
breve, que na Associação na qual realizei a pesquisa as pessoas estavam
41 Na condição de Professora do Departamento de Educação Física da UTFPR,
desenvolvi um projeto de extensão com catadoras de materiais recicláveis na cidade de
Piraquara. Este projeto contou com a colaboração das Prof.ªs Leandra Ulbricht (UTFPR) e
Márcia Oliveira (UFPR) e com o financiamento da Fundação Araucária. O projeto desenvolveu
várias ações, como a criação e apresentação do espetáculo de dança intitulado “Catadoras de
si: o que você faz com o seu lixo?”, e a realização de um documentário sobre o processo da
pesquisa. Este processo durou cerca de um ano e seis meses e meu envolvimento foi intenso.
As alunas e bailarinas-criadoras eram Luiza Santini e Valleska Zych, e o documentário foi
dirigido por João Marcelo Gomes.
42 No texto da tese, desenvolvo, em diversos momentos e por múltiplos vieses, uma
articulação entre o conceito de abjeção proposto por Judith Butler (2008; 2012) e seu confronto
com a experiência de minha convivência na pesquisa de campo com as/os catadoras/es. No
presente artigo, cabe fazer um recorte desta abordagem da abjeção que nos auxilie a pensar
sobre as relações entre um imaginário do cuidado e a presença predominante das mulheres no
trabalho de catação.

253
expostas a diversas situações questionáveis, do ponto de vista dos direitos
trabalhistas e do ambiente de trabalho43. Vi de perto a falta de luva para
lidar com os materiais, a ausência de máscara para proteger narinas e boca,
o estado depreciado em que as sacolas e objetos chegam até a Associação
– resultando em muita sujeira, mau cheiro e material orgânico apodrecido
– o trabalho repetitivo na esteira, a dificuldade em debater e dialogar temas
e demandas internas individuais ou de grupo e a exploração por parte
dos atravessadores44. O trabalho das/os catadoras/es, na configuração da
Associação na qual realizei a pesquisa, fundamenta-se numa realidade que
naturaliza a existência dessas pessoas no domínio dos corpos abjetos.
Proponho, incialmente, um debate sobre alguns desafios que perpassam
o mundo da catação e que ocorrem no campo da política e das decisões
que cabem ao Estado. Pensar no corpo abjeto das/os catadoras/es implica
levar em consideração que os desafios que brotam das dependências e das
vulnerabilidades das pessoas que vivem na pobreza dependem em grande
parte das decisões e práticas políticas que ocorrem no país. Assim, pensar na
responsabilidade da produção advinda das empresas e indústrias e de cada
cidadã/ão em relação ao consumo e ao lixo que produzem, requer averiguar
como têm sido as políticas públicas em relação ao meio ambiente.

Lixo, sustentabilidade e cuidado

Para Leonardo Boff (2012), sustentabilidade e cuidado são dois valores


centrais para uma nova abordagem da organização social. A primeira
“significa o uso racional dos recursos escassos da Terra, sem prejudicar
o capital natural, mantido em condições de sua reprodução, em vista

43 Demonstro na tese como o MNCR vislumbra que a maior parte das/os catadoras/
es vem enfrentando “condições precárias” de trabalho e “exploração”, além de compararem
a relação com os atravessadores com a “exploração do trabalho nos tempos da escravidão”.
(MNCR, 2009).
44 Atravessadores são pessoas para as quais as/os catadoras/es vendem os materiais
coletados e triados. Eles recebem os materiais e revendem para as diversas indústrias
recicladoras. Trata-se de um comércio cheio de meandros e que, segundo o MNCR, tem
explorado historicamente a mão de obra das/os catadoras/es. A figura do atravessador tem
sido combatida pelo Movimento Nacional dos Catadores, pois é encarada como um grande
inimigo. Aqui, adere-se à meta de domínio do processo produtivo inteiro da reciclagem, sendo
que, desta forma, o atravessador seria eliminado da cadeia. Para se atingir tal meta, o papel de
negociação com as indústrias de reciclagem seria assumido pelas/os catadoras/es.

254
ainda ao atendimento das necessidades das gerações futuras que também
têm direito a um planeta habitável”. (BOFF, 2012, p. 21). Ou seja, a
sustentabilidade tem relação direta com as condutas da sociedade, requer
ação consciente e inovadora da política e do Estado e se relaciona com a vida
de cada pessoa. O cuidado, define o autor, “representa uma relação amorosa,
respeitosa e não agressiva para com a realidade e por isso não destrutiva”.
(BOFF, 2012, p. 127).
Portanto, a sustentabilidade estaria atrelada a uma responsabilidade
mais direta do Estado, na medida em que “representa o lado mais objetivo,
ambiental, econômico e social da gestão dos bens naturais e de sua
distribuição”. (BOFF, 2012, p. 21). Entendo que, com ações políticas neste
sentido, estaríamos sendo educados e estimulados a uma cultura do cuidado,
ao escolher “as atitudes, os valores éticos e espirituais que acompanham todo
esse processo sem os quais a própria sustentabilidade não acontece ou não se
garante a médio e longo prazo”. (BOFF, 2012, p. 227).
Catadoras e catadores de materiais recicláveis têm sido vinculadas/os
ao papel de “agentes ambientais”. Quais seriam os significados deste tipo de
asserção? De maneira geral, nas andanças de minha pesquisa de campo, essa
era uma expressão amplamente utilizada como estratégia para a valorização
de sua profissão. As/os catadoras/es têm sido consideradas/os “agentes
ambientais”, porquanto cumprem um relevante papel no reaproveitamento
das matérias primas; contudo, em grande parte, realizam esta contribuição
à sustentabilidade em uma situação de exploração, precarização e exclusão
social. Isso contrasta radicalmente com os preceitos do cuidado, dos direitos
humanos e da justiça social. É neste sentido que Alencar (2008, p. 3)
argumenta “que não há possibilidade de sustentabilidade enquanto existir
exclusão social” e, portanto, “a proposta de desenvolvimento sustentável não
se integra ao paradigma de acumulação capitalista”. (ALENCAR, 2008, p. 6).
Ou seja, neste cenário, sustentabilidade e cuidado encontram-se um
tanto destorcidos e desarticulados. Aos meus olhos, o selo verbalizado por
algumas pessoas, sobretudo enquanto representantes do Estado, de “agentes
ambientais” parecia uma forma de engodo, já que, – apesar de estas/es
trabalhadoras/es colaborarem para o meio ambiente, para o bem social de
muitas pessoas, cuidando do meio ambiente, – no seu dia a dia laboral, a
sustentabilidade e o cuidado não pareciam atuantes, gerando condições de
trabalho precárias e, por vezes, insustentáveis.

255
O estudo desta realidade me levou a refletir que, para considerar as/
os catadoras/es de materiais recicláveis como “agentes ambientais”, deve-
se partir de uma abordagem que enfoque o desenvolvimento sustentável
como aquela invocada por Ignacy Sachs (2004). Tal abordagem se baseia
na universalização dos direitos humanos fundamentais, o que abrange
um “desenvolvimento a partir de dentro, ou seja, socialmente inclusivo,
ambientalmente sustentável e sustentado”, destacando-se a necessidade
de as pessoas estarem exercendo o chamado “trabalho decente”45. (SACHS,
2004, p. 102).
A lógica da produção, do consumo e do descarte segue persistente
com um encaminhamento numa configuração que representa uma situação
nociva, que macula o direito ao respeito que possui cada pessoa que trabalha
como catadora e catador. Um dado que nos auxilia a compreender esta
configuração nos informa que a geração de lixo no país aumentou 29% de 2003
a 2014, o equivalente a cinco vezes a taxa de crescimento populacional no
período, que foi 6%. (ABRELPE, 2015). Entretanto, a quantidade de resíduos
com destinação considerada adequada não acompanhou o crescimento da
geração de lixo. Em 2014, apenas 58,4% do total foi direcionado a aterros
sanitários. Segundo a mesma pesquisa, das 78,6 milhões de toneladas de
resíduos sólidos gerados no Brasil em 2014, cerca de 41% delas tiveram como
destino lixões e aterros controlados que são considerados locais inadequados,
por oferecerem sérios riscos à saúde pública.
Estes dados originam-se do primeiro estudo realizado após a vigência
da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) de 2010 e demonstra a
situação da gestão dos resíduos. A pesquisa retrata uma evolução de 7,2%
em relação à reciclagem de materiais. No ano de 2010, apenas 57,6% dos
municípios nacionais possuíam alguma iniciativa de coleta seletiva. Em
2014, o percentual aumentou para 64,8%.
Diante deste crescimento substancial do descarte de materiais e dos
números menos expressivos quanto a reciclagem dos mesmos e da coleta
seletiva nos municípios, podemos compreender a urgente demanda de que
o Estado assuma de forma intensa estas questões como parte de sua política.
45 Sachs (2004) faz uma diferenciação que nos interessa, para pensar essa
situação das/os catadoras/es. Ele classifica como excludente (do mercado de consumo)
e concentrador (de renda e riqueza) o padrão de crescimento perverso que muitos
“países menos desenvolvidos” adotam. O desenvolvimento ideal para o autor seria
inclusivo, o que vem a requerer a garantia do exercício dos direitos civis, cívicos e
políticos: assistência aos necessitados, educação, saúde, moradia etc.

256
Contudo, existe ainda mais um fator relevante em relação ao
lixo e às/aos catadoras/es para refletirmos sobre as articulações relativas
às responsabilidades do Estado, isto é, a sustentabilidade e o cuidado,
envolvendo as ponderações de Leornardo Boff (2012) e Ignacy Sachs (2004).
Precisamos considerar as condições em que o material tem chegado às
associações ou cooperativas. No cotidiano de trabalho destas pessoas, esse
fator acarreta um grande diferencial. Estando na mesa de triagem com as/os
catadoras/es como estive, pude vivenciar o descaso, o descuido, o despreparo
e uma despreocupação generalizada com estas condições. Coisas melecadas,
contaminadas, quebradas, perfurocortantes e fétidas são uma constante na
prática do manuseio na mesa de triagem. Isso pareceu algo naturalizado, como
parte do trabalho, embora muitas/os catadoras/es também se queixassem
desta situação, classificando-a como “falta de respeito”.
Penso que esta realidade exige que se acionem e se formulem
problematizações com base nas sugestões de Boff (2012) e Sachs (2004).
Podemos questionar quais são as responsabilidades do Estado sobre garantia
de sustentabilidade e cuidado que devem ser aplicadas ao lixo de cada
cidadão a ser descartado de sua casa. Importa questionar o papel do Estado
no entendimento de que a sustentabilidade se articula com o cuidado e que,
desta articulação, pode-se pensar sobre um trabalho sustentável para as/os
catadoras. Devemos refletir sobre a responsabilidade compartilhada pelo
cuidado com o lixo, em que o Estado estimule e cobre este cuidado de todo
e qualquer cidadão, das empresas, indústrias e dos ambientes públicos, não
admitindo que reste para a/o catadora/r lidar com a “sujeira” e o descaso de
outra pessoa.
Na atual configuração, as razões atuantes que parecem predominar,
para que este descarte seja feito, são as que restringem a responsabilidade do
poder público e das/os cidadãs/ãos em relação a este descarte. Outra razão
que explica o encaminhamento dos resíduos, da maneira como hoje se faz,
parece encontrar-se no propósito de se buscar o máximo de lucro possível
para as empresas que trabalham com a reciclagem. E o imaginário que
perpassa estas condutas possivelmente é aquele que apregoa que as pessoas
que habitam os espaços da abjeção são vidas que não merecem viver, vidas
que não merecem cuidado e vidas que merecem lidar com aquilo que Ricardo
de Souza (2013) definiu como “experiência insuportável da vida urbana” – o
lixo. Ainda que hoje exista uma positivação destes materiais, pelo seu uso

257
na reciclagem, o autor reforça uma percepção de dejetos humanos como
indesejados socialmente; segundo ele, portanto, esta parcela da sociedade
acaba encarando a tarefa de cuidar daquilo de que ninguém quer cuidar,
daquilo de que as pessoas querem se livrar; e que o Estado segue deixando
de assumi-la como uma parte indispensável da tríade formada por produção,
consumo e descarte.
Em outras palavras, existe uma estrutura cultural, social, econômica
e política que sustenta um encadeamento de discursos e de práticas que
nos autorizam a desenvolver hábitos de consumo e descarte que afetam
diretamente o corpo das/os catadoras/es. A materialidade do resíduo
descartado – por não se incorporar uma conduta que compreenda a
articulação entre sustentabilidade e cuidado – contribui para que este corpo
habite os espaços da abjeção. Este lixo marca seu corpo e demarca ou reforça
seu espaço social. Este lixo é um dos carimbos que incidem no corpo de cada
catadora/r e chancela a rubrica da abjeção. Este lixo reivindica ser parte de
um projeto político assumido pelo Estado.

Catadoras e catadores: estudos e convergências

Diversas pesquisas que tematizam o mundo da catação denunciam condições


de trabalho, em diferentes contextos, que apresentam características
semelhantes àquelas que vim a conhecer. Trata-se de concepções sobre o
trabalho das catadoras/es que guardam semelhanças e articulações com a
definição de corpos abjetos. Representam outras formas de abordar questões
que compreendem aderência entre elas, preservando, evidentemente,
algumas peculiaridades, de acordo com a linha de pensamento adotada.
Reuni algumas concepções e expressões propostas por pesquisadoras/
es que nos apresentam um recorte de como o trabalho das/os catadoras/es
vem sendo enunciado e pensado na academia. Podemos, desta forma, ampliar
a nossa percepção sobre problemas presentes na vida das/os catadoras/es.
A “pobreza e a precariedade”, os processos de “exploração, opressão
e alienação” (BORTOLI, 2012) e a incidência da “violência” na vida das/os
catadoras/es (GRECCO, 2014) articulam-se com a abjeção e com a realidade
encontrada na pesquisa de campo. A situação em que vivem permite
enquadrar estas/es trabalhadoras/es como um “lumpemproletariado”,
menção a grupo de pessoas classificadas como “refugo humano” (FREITAS,

258
2010), como “excluídas e marginalizadas” ou como parte fundante de uma
“liminaridade”. (MAGALHÃES, 2012). Tal atributo faz alusão a uma condição
social que se encontra entre os signos de uma “exclusão explícita” e de uma
“inclusão indireta ou incipiente” (MAGALHÃES, 2012), o que situa estas
pessoas como potenciais componentes da zona de abjeção.
São vidas preenchidas pelo “sofrimento ético-político”, permeadas
pela “vergonha” e pela “humilhação”, decorrentes, sobretudo, da
“discriminação” e do “preconceito”. (MIURA; SAWAIA, 2013). Ser a/o
alcunhada/o como corpo abjeto está plenamente vinculado a bulir com o lixo,
como já foi comentado, – “experiência insuportável da vida urbana” (SOUZA,
2013) – podendo ser alocada/o ao ambiente daquelas/es que são “varridas/os
do mundo”, numa condição de “desumanização”. (JUNCÁ, 2004).
As/os catadoras/es categorizadas/os como “trabalhadoras/es
sobrantes” (BURGOS, 2009), como a “população excedente” (ESCURRA,
2011), atrelada à “lógica da acumulação capitalista”, que labuta sob “difíceis
condições, sob permanentes pressões” e constantemente sofrendo da
“exploração da mão-de-obra” (ESCURRA, 2011), podem ser pensadas como
corpos abjetos.
Cada qual com quem cruzei e tive a oportunidade de conhecer,
no percurso da pesquisa de campo, me possibilitou entender o mundo da
catação de materiais recicláveis, dentro desta ótica que, mesmo trazendo
múltiplas interpretações, soma sentidos, nexos e proporciona um panorama
que assegura um profícuo debate sobre a precariedade no trabalho das
catadoras. Estas são realidades variadas e espalhadas em todo o vasto
território brasileiro, onde as catadoras têm em comum a dura realidade de
trabalhar em meio a condições degradantes. Foi esse transe que me conduziu
a questionar o que leva estas mulheres catadoras a aguentar tal situação.

Catação, trabalho precário e corpos abjetos: uma maioria de


mulheres

A percepção do que ocorria na Associação fazia saltar aos olhos alguns


fatos: havia ali um número maior de mulheres e a maioria trabalhava na
triagem, tendo algumas atribuições exclusivas, como a divisão de tarefas
de limpeza e de preparo de alimentos, enquanto a prensa era um local de

259
domínio masculino, raramente contando com a participação de mulheres.
Também ficou latente a percepção de fortes traços de hierarquia de gênero,
predominando mulheres com histórias vinculadas afetivamente a homens
– como pai, padrasto, namorado ou marido – que causaram sofrimento,
histórias sobre desilusões amorosas, violências e abandono46.
Como o trabalho que ali se desenvolve é assumido por uma maioria
de mulheres, algumas indagações se impuseram: já que há uma história de
segregação e desvalorização das mulheres, presente em diversos contextos
da sociedade humana e fortemente afirmada na sociedade capitalista, o
trabalho destas catadoras significa a única opção, aquela que “sobra” para elas
enquanto trabalhadoras e enquanto mulheres? O fato de uma categoria de
mulheres pobres e excluídas ser considerada “desprezível” permite atribuir a
essa categoria um trabalho que a coloca – ou a acrescenta – em uma posição
de abjeção? Existe relação entre esta maioria de mulheres que trabalha na
catação e a insistente sugestão de que o cuidado direcionado às/aos filhas/os
e às tarefas domésticas são condutas “naturais” para as mulheres, ou mesmo
obrigação predominantemente destas (e não dos homens pais)?
Na convivência e nas conversas, durante todo o período em que
desenvolvi a pesquisa de campo, uma visão que as catadoras expressaram
sobre estas questões tem relação com a ideia de que alguns homens teriam
vergonha de exercer este trabalho, mas que as mulheres não teriam. “Mulher
já enfrenta tanta coisa, não tem frescura. Tem filhos, tem que fazer as
coisas”47, foi a fala da catadora Laura, a qual, do meu ponto de vista, resume
a percepção acima exposta e que será retomada logo adiante.
Importa que se diga que a existência de uma maioria de mulheres
não foi um atributo exclusivo na Associação. Embora ocorresse uma intensa
flutuação no número de associadas/os, nela o percentual de mulheres sempre
foi maior. Durante a pesquisa de campo de nove meses, o número mais estável
foi de dezessete catadoras/es: doze eram mulheres e cinco eram homens.
Nos eventos de catadoras/es, esta conjuntura de a catação abranger
uma provável maioria de mulheres foi um tema frequentemente comentado,
tanto por integrantes do MNCR como nas entrevistas que fiz individualmente
com diferentes catadoras/es. Em meu caderno de campo, posso apontar
nove membros de associações ou cooperativas de catadoras/es de diferentes

46 Todos estes aspectos foram explorados na tese e articulados com as concepções de


corpo abjeto no capítulo 4, “MULHERES CATADORAS: VIOLÊNCIA E ABJEÇÃO”.
47 Caderno de campo, 16/10/2014.

260
regiões do país que afirmaram trabalhar ao lado de uma maioria de mulheres.
Em uma ocasião, no “Fórum Estadual Lixo e Cidadania”, presenciei uma
catadora representante do MNCR questionando o resultado de um relatório
de pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), no qual
constava existir no país uma maior parte de homens trabalhando na atividade
de catação. “A gente que anda por este Brasil afora, que conhece as catadoras,
os catadores e os barracões, sabe que a realidade é outra. Sempre tem mais
mulher, é só mulherada nos barracões”48.
Ela estava se referindo ao relatório da “Situação social das catadoras
e dos catadores de material reciclável e reutilizável” (IPEA, 2013), no qual
divulgava-se que, no Brasil, 68,9% destas/es trabalhadoras/es são homens.
Entretanto, no próprio relatório são expostos questionamentos quanto
ao resultado destes dados, explicando-se que sua dubiedade se deve a
“fatores sociológicos”. É esclarecido que, como algumas mulheres exercem
outras atividades, como os afazeres domésticos, elas interpretam a coleta
de resíduos como uma atividade complementar. Mesmo trabalhando como
catadoras, estas mulheres acabam não se identificando enquanto tais para
quem coleta os dados do referido relatório, informando sua atividade como
domésticas ou trabalhadoras do lar.
Existe um bom número de estudos que apontam indícios que
corroboram os dados da pesquisa de campo e as falas de membros do MNCR
e das/os demais catadoras/es com quem conversei durante a pesquisa. Ao
estudarem a temática das/os “catadoras/es”, diversas/os autoras/es afirmam
que nos grupos de trabalhadoras/es em que realizaram suas pesquisas foi
encontrada uma maioria de mulheres trabalhando como catadoras. É o caso,
por exemplo, das pesquisas de Salgado e Teixeira (2012) que relatam 100%
de catadoras mulheres no grupo em que realizou sua vivência; de Feitosa
(2005), com 95%; de Wirth (2010), que aponta 75%; de Gomes (2014), com
70%49; de Bortoli (2012), que apresenta 61%; e de Barros e Pinto (2008), que
descrevem um total de 57% de mulheres como catadoras em sua pesquisa.
Estes números aproximam-se de outras duas referências. Na tese
de doutorado de Caballero (2008, p. 63), que também enfoca o trabalho

48 Caderno de campo 07/11/2013.


49 A autora não apresenta estes dados em percentagens. Este foi um cálculo que
realizei a partir de seus dados do estudo, no qual consta que as/os “participantes foram 30
associados que integravam a associação de catadores de materiais recicláveis, 21 mulheres
(incluindo a presidente) e nove homens”. (GOMES, 2014, p. 62).

261
de catadoras/es, embora não sejam indicados os percentuais relativos a
gênero, entre estas/es trabalhadoras/es encontra-se o depoimento de um
funcionário do departamento que gerencia os resíduos sólidos da prefeitura
de Porto Alegre, que declara que 80% das pessoas que trabalham com
catação são mulheres. Outra referência é do MNCR, na voz de um dos seus
representantes, Alex Cardoso, o qual afirma que das/os 85 mil catadoras/
es organizadas/os no Movimento, mais de 70% são mulheres50. Presente no
“4º Encontro Nacional de Mulheres Catadoras de Materiais Recicláveis”, a
mesma liderança declarou no microfone para a plateia quase exclusiva de
mulheres participantes do evento que encabeçaria uma proposta de alteração
do nome do coletivo. Propôs que o nome fosse alterado para “Movimento
nacional dos catadores e das catadoras de material reciclável”. A proposta de
inclusão das catadoras no nome do Movimento se deu pelo reconhecimento
da relevância da participação das mulheres no movimento, no qual, segundo
Alex, representam o maior número.
Com base na realidade mais singular da Associação, somada às
demais vivências na pesquisa de campo e incluindo dados de outras fontes
de pesquisa, constituiu-se um panorama no qual visualizamos um grande
número de mulheres envolvidas na atividade de catação de lixo. Seguindo as
mesmas fontes, na maioria das vezes, estas catadoras têm desenvolvido sua
atividade em condições precárias de trabalho, que envolvem conviver com
situações perigosas e, por vezes, humilhantes, o que me permite afirmar que
a realidade destas mulheres – aqui evidenciada como inseridas socialmente
nas zonas inóspitas dos corpos abjetos – vai ao encontro de um cenário que
vem sendo pesquisado e denunciado pelos estudos da divisão sexual do
trabalho como sendo de extrema vulnerabilidade.
Nestes estudos são abordadas as relações de poder entre homens e
mulheres e, portanto, as relações de dominação, exploração e opressão dos
homens sobre as mulheres, mais especificamente no mundo do trabalho,
amplamente discutidas nos estudos de gênero. Segundo Helena Hirata (2001;
2002; 2007; 2010), a divisão sexual do trabalho assenta-se num princípio de
hierarquia, no qual o trabalho masculino é sempre mais valorizado do que o
trabalho feminino, por exemplo, com os homens recebendo maiores salários
e maior reconhecimento.51
50 Notícia vinculada no site do MNCR. Disponível em: http://www.mncr.org.br/
box_2/noticias-regionais/mncr-propoe-programa-de-reciclagem-popular-ao-governo-
federal. Acesso em: 10 mar. 2015.
51 São muitos os estudos que demonstram a existência desta hierarquia. Segundo

262
Historicamente, a intensificação da inserção da mulher no mercado
de trabalho no sistema capitalista ocorreu em meio a uma tendência
voltada a diminuir custos, com a exploração cada vez maior da mão-de-
obra, sedimentando-se a força da engrenagem da acumulação capitalista
assentada na exploração das pessoas. Denise Carreira (2004) enfatiza que
estas características nutrem potenciais de desigualdades, sendo uma delas
a de gênero. Este contexto “gera grandes impactos na vida da maioria das
mulheres, aumentando a vulnerabilidade, a precariedade das condições de
vida e a perda dos direitos”. (CARREIRA, 2004, p. 16).
Estes impactos têm uma relação direta com os ideais da família
burguesa, pois nela vislumbramos fortes traços da essencialização do espaço
doméstico e das relações interpessoais como sendo o ambiente da mulher,
assim como o espaço público seria aquele de domínio do homem. (SCOTT,
2002). No bojo desta divisão de papéis, percebemos uma outra essencialização
específica, qual seja, aquela que identifica as mulheres como cuidadoras por
excelência, em decorrência de seus atributos femininos que, nesta visão de
mundo, seriam inatos e essenciais. (MARCONDES; YANNOULAS, 2012). A
história da precarização do trabalho feminino encontra-se articulada com a
concepção do papel de cuidadora atribuído às mulheres.
Segundo Cláudia Nogueira (2010), a construção deste cenário, com
estas características, ocorre porque o capital não ignorou a hierarquia de
gênero instalada historicamente nas relações sociais construídas no processo
de desenvolvimento da sociedade humana. Ao contrário, reforçou e explorou
a dominação e a subordinação de gênero, com mais contundência no modo
de produção capitalista. De tal modo:

A intersecção do trabalho com a reprodução, na configuração


capitalista, serve ao capital, não somente pela exploração da
força de trabalho feminina no espaço produtivo, mas também
porque as atividades desenvolvidas pelas mulheres na esfera

dados do DIEESE, de 2003, as mulheres recebem 65% do que recebem os homens. A Fundação
Carlos Chagas (2007) reafirma esta realidade na qual as mulheres ganham um salário menor,
independente do setor de atividade econômica em que estão inseridas, da posição que ocupam
(como empregadas, autônomas, empregadoras ou trabalhadoras domésticas) e da jornada
semanal. Somado a isso, a mesma pesquisa afirma que, embora seja verdade que quanto mais
elevada é sua escolaridade, maiores são as oportunidades de alcançar melhores rendimentos
para ambos os sexos. Ainda assim, este é um fator que parece se aplicar mais aos homens do
que às mulheres.

263
doméstica garantem, entre outras coisas, a manutenção de
“trabalhadores/as” para o mundo do trabalho assalariado, bem
como a reprodução de futuros trabalhadores/as que acabam
por se constituir enquanto forma de trabalho disponível para o
capital. (NOGUEIRA, 2010, p. 59)

E nesta intersecção encontram-se as mulheres de “carne e osso”, que


trabalham fora de casa e fazem mais de uma jornada de trabalho por dia,
pois precisam dar conta das tarefas domésticas em casa e do cuidado com
as/os filhas/os. Essas tensões e desafios para a mulher que trabalha fora e
dentro de casa ainda acarreta debates acirrados e são fatores que exercem
impacto direto na vida das mulheres catadoras, segmento no qual tal ocorre
de maneira sistemática. Não conheci uma catadora que relatasse que, ao
chegar em casa após o dia de trabalho, contava com um companheiro ou
marido que dividisse as tarefas dos afazeres domésticos. Trata-se ainda de
uma sobrecarga que ganha contornos intensos nos muitos casos vivenciados
com a ausência de um pai participativo nos cuidados com as/os filhas/os.
No caso das catadoras com as quais convivi, muitas delas relataram
ser as únicas responsáveis pela criação de sua prole e especificaram que
este foi um dos fatores que as levaram a escolher o trabalho como catadora,
principalmente por existir nele uma certa flexibilidade de horários. Isso
assegura a possibilidade de cuidar das/os filhas/os, frente às necessidades
de comparecer a reuniões de escola, enfrentar fila para vaga em creches ou
em escola e ficar com elas/es quando adoecem. Estas são situações que, de
fato, pude testemunhar na minha vivência na Associação. Foram diversas
as circunstâncias em que alguma catadora se ausentou do trabalho, chegou
mais tarde ou saiu mais cedo, por conta dessas demandas relacionadas com
os filhos. Quando faltava, quase sempre era por algum motivo relacionado
ao cuidado com a prole, nomeadamente por problema de doença com a/o
filha/o.
Nos relatos era comum ouvir a ressalva, como a de Andrea: “se fosse
em outro emprego, numa firma, ou como doméstica, já me descontavam ou
me mandavam embora”52. Inclusive, por vezes, uma ou outra catadora me
contou sobre situações na sua história em que foi despedida por este tipo
de dificuldade. Nesse sentido, o trabalho torna-se uma exigência, sobretudo,
para adquirir a renda necessária para o sustento das/os filhas/os e ser
52 Caderno de campo 23/08/2014.

264
catadora foi relatada como sendo uma opção quase que única, diante das
exigências dos trabalhos mais formais e das demandas que são projetadas a
estas mulheres, por conta do fato de serem mães.
Outra situação que ilustra o trabalho de catadora como uma das
únicas alternativas visualizadas por uma mulher refere-se aos casos de
trabalhadoras que engravidam. Quando Marcela começou a trabalhar na
Associação, já estava no início da gestação. Ela contou-me que precisava de
dinheiro para custear as despesas com o bebê que estava chegando. O pai
não estava assumindo os cuidados nem os gastos relativos à filha pequena
do casal e tampouco estava contribuindo para cobrir os gastos referentes
aos preparativos para a criança que vinha chegando. Indaguei: “e por que
você começou a trabalhar aqui? Você não acha um trabalho pesado, com a
gravidez, né?” Ela me respondeu: “É pesado, mas tudo bem, a gente faz. Que
outro lugar ia aceitar eu barriguda deste jeito? Nenhum, não aceitam mulher
grávida para trabalhar. Só aqui na Associação”53.
A responsabilidade do cuidado atribuída exclusivamente à mulher
de criar e sustentar economicamente a prole exige que esta catadora se
exponha a um trabalho que ainda segue existindo sem condições agradáveis
e dignas para qualquer pessoa. No caso da gravidez, podemos problematizar
duas características que aparentam ser prejudiciais à gestação. A primeira
deve-se ao fato de muitas dessas mulheres carregarem um peso bem grande,
sacos com 70 quilos de materiais, por exemplo, o que pode ser inadequado
para uma gestante, a depender do desenvolvimento de sua gestação. Outra
característica preocupante são as substâncias que estas pessoas manipulam e
inalam na lida com os materiais. Presenciei inúmeras situações de alimentos
em estado de putrefação, produtos químicos, material hospitalar e outras
possíveis substâncias às quais as/os catadoras/es ficam expostas. Estes
riscos à saúde devem ser percebidos, levando-se em consideração que nesta
Associação, bem como em outras realidades da catação que conheci, as/os
trabalhadoras/es não fazem uso de máscaras nem de luvas, estando a pele e
as mucosas de boca e narinas mais expostas a possíveis contaminações.
Cumpre destacar que, durante a pesquisa na Associação, fizeram
parte do quadro de associadas/os outras três mulheres grávidas, suscitando
um peso ainda maior para este dado. Percebo, desta forma, que o cuidado
com as crianças – que socialmente vem sendo atribuído como um encargo
53 Caderno de campo 04/05/2014.

265
quase que exclusivo de mulheres – parece ser um fator agudo que empurra
estas mulheres para a atividade de catação, mesmo que tenham que se expor
a condições adversas. Este significa o trabalho possível, neste contexto.

“Mulher aguenta tudo”: o cuidado e o trabalho na catação

Na intenção de investigar os motivos pelos quais existe nesta profissão esse


grande número de mulheres, conversei com as próprias catadoras sobre o
assunto. Quando perguntei à catadora Rosinha: “Por que será que a maioria
das pessoas aqui na Associação é formada por mulheres?”, ela respondeu:
“Isso aqui não é para qualquer um não. Muitas vezes, homem não aguenta o
tranco. E ainda, às vezes, homem tem vergonha de trabalhar com lixo. Mulher
aguenta, aguenta de tudo nessa vida, não tem frescura. Tem que aguentar,
né, por causa dos filhos!”54.
Esta modo de viver que demanda responsabilidade e uma lida
cotidiana e laboriosa com relação à criação da prole tem conexão com uma
norma social vigente, em que as mulheres continuam sendo alocadas como
protagonistas na responsabilidade pelo atendimento às necessidades do
cuidado e à articulação de outras estratégias de provisão das/os filhas/os.
(MARCONDES; YANNOULAS, 2012).
Na análise aqui proposta, esta percepção de Rosinha encontra-se
vinculada a uma expressão que foi recorrente na pesquisa. Muitas mulheres,
ao relatarem episódios tristes de sua história de vida envolvendo relações
afetivas com homens, inseriam em sua fala expressões como: “eu fui tratada
como lixo” ou, “eu me senti como um lixo”.
Desta forma, considerando os estudos que apontam as diversas
formas de segregação histórica das mulheres, na tese refleti sobre as
articulações entre estes depoimentos: aqueles que definem que “mulher
aguenta”, e os outros, segundo os quais as catadoras se identificam com o lixo
– o fato de trabalharem como catadoras de materiais recicláveis e a condição
de corpo abjeto na qual estão socialmente inseridas.
De um lado, parte-se do depoimento que abaliza que a existência de
uma maioria de mulheres na atividade da Associação se justificaria porque,
diante das adversidades atualmente inerentes ao trabalho da catação, as
mulheres teriam um perfil mais adequado para suportar tais condições,

54 Caderno de campo 05/06/2014.

266
já que “mulher aguenta tudo”. De outro, são apresentadas as histórias
das catadoras que evidenciam que estas mulheres, de fato, “aguentaram”
intensos sofrimentos e violências em diferentes momentos de suas vidas,
quase sempre provocados por homens com os quais mantinham algum
tipo de relação afetiva e certa proximidade. Estas histórias as conduzem a
escolher como representação dessas situações a metáfora de ser tratada ou
de se sentir como um lixo.
O “corpo lixo” destas mulheres, já identificado nos estudos que fiz
na área de dança, foi assim lapidado a custo de intensos e diversificados
sofrimentos e privações. São trajetórias de vida marcadas pela abjeção,
que acarretaram a produção de estratégias de sobrevivência. Nas histórias
que foram contadas, desvelou-se que estas catadoras são corpos abjetos,
também porque são mulheres e sofrem as violentas segregações advindas
de características já amplamente debatidas pela literatura dos estudos de
gênero55.
Piscitelli (2002, p.2) define que a subordinação feminina é assumida
como ainda presente em nossa sociedade, embora não se trate de algo dado,
inquestionável e imutável. Ainda que se saiba que existem alguns espaços
sociais com maior flexibilidade nas formas de alguém ser mulher – ou homem,
ou outra denominação mais fluida qualquer de gênero – e que se sucederam
conquistas importantes de vários movimentos sociais, a divisão social que
regula os gêneros permanece atuante em nossa sociedade e demarcou seu
espaço na realidade da pesquisa de campo.
Os modelos daquilo que pode ser considerado dentro de uma
“normalidade” atuam constantemente e estabelecem limites que segregam
as mulheres. Mesmo quando a mulher já está no mercado de trabalho,
com frequência isso ocorre em condições precárias, além de ainda caber
predominantemente a ela ser responsável pelo cuidado dos afazeres
domésticos, incluindo os cuidados com as filhas e os filhos. (HIRATA, 2009;
NOGUEIRA, 2004). Essa é uma realidade que tem se replicado na vida das
mulheres catadoras.
Deste modo, a vida das catadoras que conheci, além de todas as
características já apontadas, que as conformam numa condição social de
abjeção, reclamou alguns questionamentos específicos. Inicialmente, pelo
fato de elas comporem a maioria e, no desenvolvimento da pesquisa, por
55 Estes também são conteúdos sobre os quais reflito no capítulo 4, “MULHERES
CATADORAS: VIOLÊNCIA E ABJEÇÃO”, de minha tese de doutorado.

267
reunirem muitas histórias de vida carregadas pela violência de gênero. Ser
catadora e ser mulher significa ser vista como um corpo abjeto,
guarnecido de uma carga a mais de abjeção pelo fato de ser considerada
mulher56.
As mulheres aguentam mais, aguentam estar no meio do lixo,
trabalhar em condições inóspitas, como disse Rosinha, porque como
mulher e como homem cada qual de nós aprende, reforça e naturaliza
comportamentos que se enquadram nestas características. E Rosinha sabe
das coisas, ao associar à capacidade de “aguentar” da mulher a realidade de
ter que cuidar das/os filhas/os. Ela sabe que às mulheres têm sido atribuído
o papel, muitas vezes exclusivo, de cuidar. Rosinha sabe que se uma mulher
não cuidar da casa e das/os filhas/os, existe o risco de que ninguém cuide.
As catadoras que participaram desta pesquisa confirmaram que
os números apontados sobre as mulheres “chefe de famílias” no Brasil vão
muito além das estatísticas, pois revelam uma realidade composta por
tramas complexas. Os impactos relativos a esta situação são intensos em seu
cotidiano, na intimidade dos lares e nas escolhas pessoais destas mulheres.
O “relatório anual socioeconômico da mulher” (BRASIL, 2015),
organizado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, veiculou que em

56 A escolha da expressão “ser considerada mulher” é proposital e aborda uma


indagação que aqui não será possível desenvolver. Em consonância com os debates que
questionam a abordagem de “mulher” que está presente nos estudos de gênero, naqueles
sobre patriarcado ou nos próprios estudos de “mulheres”, este estudo se identifica com as
problematizações feitas por Judith Butler. Está próximo do questionamento que a autora
faz da categoria gênero, principalmente naquilo que ela entende como uma possível fluidez
e plasticidade performática, nas denominações de “masculino”, de “feminino”, de “homem”,
de ‘mulher”, reivindicando um questionamento tanto teórico como político a respeito desse
binarismo. Se adoto aqui uma perspectiva binária, abordando os homens e as mulheres, é
porque entendo que na realidade pesquisada estas demarcações estão bem estabelecidas e,
portanto, esta classificação entre homens e mulheres funciona bem para a análise. Outra
reflexão é a que discute, no campo de pesquisa, como este binarismo presente na realidade é
um dispositivo de poder, refletindo como poderiam se configurar outras estratégias de relação
entre as pessoas, numa perspectiva mais igualitária e que respeitassem as diferenças; uma
perspectiva na qual as pessoas não precisassem apoiar suas identidades nestas classificações
binárias. Uma excelente referência sobre a temática pode ser conferida nas obras de Leticia
Lanz, em sua dissertação de mestrado “O corpo da roupa: A pessoa transgênera entre a
transgressão e a conformidade com as normas de gênero”.
Disponível em:< http://www.leticialanz.org/wrdp/wp-content/uploads/2014/10/
Let%C3%ADcia-Lanz-O-corpo-da-roupa-vers%C3%A3o-final-05-10-14.pdf, e seu livro “O
Corpo da Roupa: Uma introdução aos Estudos Transgêneros”, da editora Transgente, 2014.

268
quase 38% dos domicílios a “pessoa de referência” – pessoa responsável pelo
domicílio, ou assim considerada por seus membros57, – era mulher. Entre essas
famílias com “pessoa de referência” do sexo feminino, 42,7% eram compostas
por mulheres com filhas/os e sem cônjuge. Quando se observa estes dados
na parcela de famílias que tem como “pessoa de referência” alguém do sexo
masculino, este percentual chega somente a 3,5% das famílias. Assim sendo,
embora minoria entre as pessoas de referência (38%), segundo o relatório,
as mulheres representam um número maior entre as famílias sem cônjuge e
com filhas/os. Este panorama brasileiro elucida a divisão desigual do cuidado
com dependentes entre mulheres e homens. O peso nesta balança pende,
sem a menor sombra de dúvida, para o lado das mulheres, devido ao papel
social que lhes é atribuído. O cuidado tende a pender para as mãos, o corpo e
o investimento afetivo das mulheres.
Conheci diversas catadoras que se enquadram neste percentual,
criando suas/eus filhas/os sem a presença do pai, quase sempre sem a sua
participação na educação, no cuidado cotidiano e nas despesas financeiras.
Quando indagadas sobre o que pensam sobre esta circunstância, e se têm a
pretensão de pleitear que o progenitor venha a cumprir com sua obrigação
legal de, pelo menos, arcar com parte das despesas das/os filhas/os, a resposta
que recebi de três catadoras revela-se sintomática. Elas argumentam que não
desejam tomar esta atitude, porque querem “manter distância” de seu antigo
parceiro. Alegam: “eu sofri muito”, “ele me batia”, “melhor ele ficar longe,
eu me viro”, “ele me tratou como lixo”58, ao relatarem casos de violência
que sofreram. Elas preferem assumir sozinhas esta responsabilidade do que
estabelecer algum tipo de vínculo com o pai da criança, devido ao sofrimento
que passaram e por considerarem a ocorrência de possíveis novas agressões
e desgastes, caso venham a estabelecer qualquer tipo de relação com o pai

57 Parece existir uma tendência recente, nestes estudos, em dar preferência à expressão
“pessoa de referência”, mais do que “chefe de família”, embora eu não tenha encontrado
uma bibliografia específica sobre esta tendência. Penso que isso vem ocorrendo devido aos
significados que a palavra “chefe” deva evocar, pois se trata de uma expressão munida de uma
carga grande de força masculina na família tradicional.
58 Este depoimento e os demais que estão presentes no decorrer da análise deste
capítulo foram extraídos do meu caderno de campo, ou fazem parte das entrevistas que
realizei. Contudo, neste capítulo, não especifiquei a data, quando trato de temas que possam
expor o sofrimento e a intimidade das pessoas que confiaram suas histórias a mim, para que
não seja identificada a fonte de origem. Isso foi aplicado tanto em relação aos eventos quanto
à pesquisa de campo na Associação.

269
da prole. Por mais desafiante que seja, “aguentam tudo” sozinhas e querem
distância dos pais de suas/eus filhas/os.
Constata-se que esta tem sido uma responsabilidade assumida pelas
mulheres num contexto que apresenta elos de uma complexa teia, com raízes
que se espraiam e se nutrem de concepções historicamente assentadas em
nossa sociedade. Trata-se de uma situação exemplar de como se expressam
as relações de gênero no mundo das catadoras.

Considerações finais

Neste estudo considera-se que o trabalho de catadora/r continua a ser precário


e tem exposto muitas mulheres a situações degradantes. Na pauta de luta
apresentada pelo MNCR, estão explicitadas proposições de condições dignas
de trabalho, com uma lista ampla de pleitos a serem atendidos, admitindo-se
que no cenário nacional ainda existem muitas demandas urgentes a serem
transformadas. No desenvolvimento das lutas por melhores condições, as
articulações entre sustentabilidade e cuidado configuram uma urgência para
que se pense as políticas ambientais. Quando o trabalho de catação envolver o
cuidado com os seres humanos, o que, necessariamente, reclamará uma outra
relação – mais cuidadosa – com o lixo produzido por cada pessoa, poderemos
pisar um espaço menos abjeto na vida das catadoras e dos catadores. Nesta
perspectiva, conjecturo qual seria o contexto deste trabalho, caso boa parcela
dessas transformações almejadas fossem conquistadas. Se fosse este um
trabalho com melhores condições, “sobrariam” tantas oportunidades para
as mulheres? Esta foi uma indagação que me acompanhou durante toda a
pesquisa.
O ato de assumir sozinha e a todo custo as tarefas de cuidado da casa
e da prole tem restringido as possibilidades de escolha de um trabalho mais
digno para muitas catadoras. Caberia, sem dúvida, uma pesquisa sobre as
dificuldades enfrentadas por essas mulheres, para o acesso ao estudo formal e
à creche para suas/eus filhas/os. Sabemos que estes são direitos das mulheres
e crianças e que ambas as chances possibilitam uma maior autonomia
econômica e o reconhecimento de seu direito ao trabalho. Aqui, novamente,
se advoga que problematizemos as responsabilidades do Estado, como aquele
que gera e garante estas oportunidades e estes direitos. Cabe mencionar que
na pesquisa de campo várias catadoras relataram que deixaram de estudar

270
porque tiveram filhas/os na adolescência e que enfrentaram dificuldades
para colocar suas/eus filhas/os em alguma creche. Contudo, esses foram
dados até então não desenvolvidos neste estudo e que reconheço como parte
importante para se ampliar a reflexão aqui proposta.
Neste capítulo explorei o quadro que projeta que à mulher permanece
sendo atribuído o papel social preponderante de cuidadora e isso tem gerado
consequências graves para sua vida. Segundo dados de 2015, 83,6% (8,6
milhões) das crianças brasileiras com menos de 4 anos tinham como primeira
responsável uma mulher (mãe, mãe de criação ou madrasta). (IBGE, 2015).
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD)
expressam que as mulheres chegaram a dedicar entre 20 e 25 horas semanais
aos cuidados com a casa e os filhos, mesmo que cumpram jornadas de trabalho
de 40 a 44 horas semanais, enquanto que em média os homens aplicaram em
torno de 9 horas semanais a esse fim. Quando estão desempregadas, a jornada
de trabalho doméstico sobe para cerca de 26 horas semanais. (OLIVEIRA;
MARCONDES, 2016). Ainda com base no estudo de Oliveira e Marcondes
(2016), chega-se à conclusão que as mulheres que trabalham fora respondem
por uma jornada média em afazeres domésticos três vezes superior à dos
homens, principalmente as que são mães.
Parece-me relevante sublinhar que estamos falando de atividades
cotidianas muitas vezes inadiáveis, que sempre demandam que sejam refeitas
e sustentadas, como limpar a casa, fazer faxina, cozinhar, ir ao mercado e
cuidar das/os filhas/os. No dia a dia, elas cobram dedicação de tempo, esforço
corporal e geram cansaço e estresse.
A expressão que afirma que as “mulheres aguentam tudo” e que
tal ocorre principalmente em função da responsabilidade de cuidar das/os
filhas/os nos ensina muito sobre a realidade da vida das catadoras. Nesta
fala – que amplia sua potência, quando articulada à etnografia que vivenciei
e a outros dados de pesquisas – vemos o peso projetado às mulheres com
a responsabilidade de cuidar da casa e da família. “Aguentar tudo” produz
desgaste emocional e corporal excessivo para qualquer pessoa e tem exposto
estas mulheres a um ambiente de trabalho que ainda precisa ser melhorado,
para que nenhuma mulher tenha que aguentar um cenário tão abjeto como
aqueles que conheci.
Por isso, a problematização da leitura essencialista do cuidado que
ainda está a influenciar os comportamentos sociais pode significar a tomada

271
de condutas mais equilibradas, justas e dignas, tanto na divisão de tarefas
domésticas e cuidado com as/os filhas/os entre homens e mulheres, quanto
nos debates, nas concepções e nas decisões sobre as políticas públicas.
Joan Tronto (1997, 2007) recomenda que lutemos para que o
cuidado seja tratado como pauta de âmbito público e seja reconhecido o seu
cunho político, enquanto uma estratégica de traços feministas que busque
alternativas para que muitas mulheres possam se livrar da carga que ele pode
representar. “Aguentar tudo” é uma carga que compromete a possibilidade
de dignidade.
Reconheço como crucial a proposta dessa autora de que o cuidado
seja entendido como uma contribuição à vida coletiva e seja plenamente
possível de ser comparado aos empregos considerados relevantes no mercado
de trabalho formal. Isso implicará, segundo Tronto (2007), uma revisão das
fronteiras entre moral e política, moral e afetos e entre o privado e o público,
a partir de uma sensibilidade feminista. Reclamará, pois, que mulheres
como as catadoras resguardadas ao espaço dos corpos abjetos deixem de
ser alocadas a realidades em que “aguentar tudo” é naturalizado e atribuído
como parte da essência feminina.

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277
278
CUIDAR DE SI A PARTIR DAS TECNOLOGIAS DO EU:
O CUIDADO NA ECONOMIA SOLIDÁRIA DESDE AS
EXPERIÊNCIAS NOS CLUBES DE TROCA
Maria Izabel Machado59

Os clubes de troca, como uma das expressões da economia solidária no


contexto brasileiro, reúnem pessoas com o objetivo de fazer circular produtos
sem a intermediação do dinheiro. Os encontros regulares oportunizam que,
além das trocas, se desenvolvam diversas experiências que ultrapassam a
circulação de objetos. Pensar, pois, o cuidado a partir das experiências das
mulheres nesses clubes conduz o olhar para práticas que envolvem o cuidar
de si e o cuidar do outro. As reflexões acerca dessa temática têm procurado
visibilizar a complexidade do tema bem como os desafios enfrentados
cotidianamente tanto por quem cuida quanto por quem demanda cuidados.
De participação majoritariamente feminina, os clubes convertem-
se em espaço onde as mulheres trocam saberes e práticas, produtos e
experiências. Desenvolvem para isso estratégias, metodologias e processos
que têm no falar um importante vértice. Submetidas a contextos de violências
múltiplas, acentuadas pela pobreza, as participantes encontram nos clubes
uma escuta atenta e respeitosa, condição necessária para ressignificar o falar.
Dizer-se nos contextos dos clubes significa, em muitos casos, mover-se do
sentimento de inadequação para a percepção de si como sujeito.
O fio condutor da análise aqui proposta é a percepção de que o
cuidado como vivido pelas mulheres participantes dos clubes é uma das
faces da agência. Se, desde os contextos socioeconômicos em que vivem,
as possibilidades de reinventar-se se mostram limitadas, a partir de uma
experiência coletiva na qual as reciprocidades se estabelecem e se repactuam
em cada interação, as margens do existir ficam tensionadas. Se não há

59 Professora colaboradora na Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG,


defendeu tese em março de 2017 com o título “Mulheres, economia solidária e a reinvenção de
trajetórias”, junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do
Paraná – UFPR. Com mestrado e graduação pela mesma instituição, atua como pesquisadora
nas áreas de gênero, economia solidária e trabalho. izabelpjmp@gmail.com

279
dinheiro, há a moeda social60, se não há psicólogo na unidade de saúde, há
as colegas que ouvem atentamente, se não sobra dinheiro para cuidar da
aparência, há as trocas trazendo a “roupa de sair”, as bijuterias.
Os caminhos teóricos em torno do sujeito e da agência não raro nos
conduzem a armadilhas conceituais pouco frutíferas. Delimitar a condição de
sujeito, como aquele que reproduz estruturas e modelos, em contraste com a
noção da agência, por vezes encharcada de racionalidade instrumental, não
é suficiente para apreender o que vivem as mulheres em questão. Quando a
noção de agência é acionada no contexto desta pesquisa, traz como conteúdos
significativos a compreensão de que, não obstante as contingências impostas
pela fragilidade econômica e pelas assimetrias de gênero, essas mulheres não
são telespectadoras de sua própria história. Agem, se movimentam, criam
estratégias e se reinventam.
O cuidado é, pois, o modo como as participantes dos clubes colocam
essa agência em curso, ou seja, cuidar de si e dos outros a partir da pertença
comunitária permite a essas mulheres responder aos desafios de forma que o
existir não seja uma condenação.

Os clubes de troca e suas participantes

A partir de 1990, na Argentina, e do ano 2000, no Brasil, em resposta à recessão


econômica e com a baixa circulação de moeda, alguns grupos organizaram-se
para trocar produtos e serviços, utilizando troca direta (produto por produto)
e moeda social. No bairro curitibano de Sítio Cercado, em 2001, teve início
o primeiro Clube de Trocas, com a motivação de contribuir para a superação
do assistencialismo, através da distribuição de cestas básicas. A ideia era que
as famílias necessitadas dessa assistência pudessem gradativamente partir
para esquemas alternativos de geração de renda e autonomia, rompendo
com o ciclo de assistencialismo–dependência. O primeiro passo foi implicar
ou envolver, de alguma forma, os que receberiam os alimentos na produção
de algo. A cada encontro desse grupo que se formava, era preciso aportar
algo de produção própria: artesanato, hortaliças, pães etc. O que levavam
era trocado entre eles e, ao final das reuniões, se distribuíam também os
alimentos doados.
60 Moeda utilizada pelos clubes de troca, para intermediar as trocas em substituição ao
dinheiro. No caso dos clubes pesquisados, a moeda social utilizada recebe o nome de “pinhão”.

280
Rapidamente, a experiência se multiplicou, sendo seu sucesso
atribuído em parte ao CEFURIA61, centro de formação e educação popular que
atuava com suporte político e metodológico aos grupos. Ao mesmo tempo
em que animadores ligados ao centro contribuíam para a multiplicação dos
grupos, também se gestavam as balizas de seu funcionamento. A distribuição
de cestas básicas, por exemplo, passou em alguns casos a ser condicionada
à participação assídua nos encontros. Outros princípios comuns diziam
respeito à gestão democrática do grupo, com coordenações rotativas eleitas
entre os participantes, e à partilha equitativa dos recursos, fossem eles
alimentos ou outros itens.
Durante o período mais efervescente, Curitiba e região contavam
com cerca de 50 grupos em funcionamento. Por inúmeras razões, o número
de Clubes de Troca foi paulatinamente reduzindo-se. Atualmente, são quatro
os que estão em funcionamento regular e um que está retomando suas
atividades, depois de um hiato de aproximadamente três anos.
O decréscimo no número de grupos precisa ser analisado de forma
articulada à conjuntura política, religiosa e econômica do país. Na década de
90, quando se ouve falar pela primeira vez em Economia Solidária no Brasil e
quando se multiplicam rapidamente os empreendimentos, o país enfrentava
uma ofensiva neoliberal pós-consenso de Washington. Na década seguinte,
ainda que mantendo políticas neoliberais no plano macroeconômico, foram
implementadas políticas sociais, destinadas especialmente às camadas mais
vulneráveis da população.
Esse é um dos elementos que pode ter contribuído para o esvaziamento
dos grupos, uma vez que estes atuavam na mitigação da pobreza extrema
através da distribuição de alimentos. No entanto, a resposta precisa à questão
de por que as pessoas deixaram de participar e se isso estaria relacionado a
programas como Bolsa Família62, por exemplo, exigiria a compreensão das
razões dos que abandonaram os grupos, tarefa impossível, considerando-
61 Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo, com sede em Curitiba, Paraná,
Brasil.
62 Programa de complementação de renda destinado ao combate à pobreza e à
desigualdade no Brasil, promovido pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário
(MDSA), com gestão descentralizada entre União, estados e municípios. Podem acessar o
benefício famílias com renda por pessoa de até R$ 85,00 mensais e famílias com renda por
pessoa entre R$ 85,01 e R$ 170,00 mensais, desde que tenham crianças ou adolescentes de
0 a 17 anos. Disponível em: < https://mds.gov.br/assuntos/bolsa-familia/o-que-e/como-
funciona>. Acesso em: 4 jan. 2017.

281
se a inexistência de registros com dados que permitissem o acesso a esses
participantes. Entretanto, fazendo-se o caminho inverso, constata-se que
não há entre as entrevistadas beneficiária alguma de programas como
Bolsa Família e não foi sequer possível identificar famílias entre as demais
participantes que se enquadrassem nas condicionalidades do programa.
Entre as possibilidades explicativas, mais especulativas que
inferenciais, estaria o alcance efetivo dos programas sociais na mitigação da
pobreza extrema que, de certa forma, teria desobrigado os beneficiários da
dependência de cestas básicas ou de outras doações feitas por organizações
religiosas e/ou do terceiro setor, somada a outro fator importante que foi a
escassez de recursos para a animação e o suporte aos Clubes.
Assim, da mesma forma que outras organizações do terceiro setor,
o CEFURIA dependia totalmente de projetos internacionais vinculados a
organizações religiosas. O encerramento desses projetos produziu uma
impactante redução de educadores no quadro de funcionários, levando
a organização a trabalhar com o mínimo possível, no que se refere a
pessoal e a recursos materiais. Nesse cenário de adequação entre recursos
humanos disponíveis e frentes de trabalho abertas, priorizaram-se outras
iniciativas, como as padarias comunitárias. Formadas também por mulheres
e em bairros periféricos, as padarias tinham maiores possibilidades de obter
financiamento, principalmente porque têm foco direto na geração de renda.
Este é um ponto crucial para os clubes. Nenhuma organização, mesmo
as filantrópicas, estão dispostas a financiar grupos que “não produzem nada”.
O fato de não circular dinheiro e de não se poder quantificar, segundo os
parâmetros do mercado, o que se produz nos clubes, coloca essas mulheres –
que já estão em posição de fragilidade econômica – em uma situação de total
invisibilização.
Não obstante o esvaziamento e a ausência de apoio, há grupos que
permaneceram em funcionamento, mesmo sem a presença constante de
animadores externos. Estes grupos mantêm, em grande parte, os princípios
básicos que direcionam o funcionamento dos clubes, compartilhando
elementos entre si. Entre eles está a manutenção de uma estrutura comum
para a realização dos encontros: na chegada, cada participante apresenta os
produtos que trouxe para troca, descrevendo-os brevemente e faz-se uma
acolhida com a apresentação dos membros, caso haja algum participante
novo ou visitante. Segue-se um momento conhecido como mística, no

282
qual se desenvolvem reflexões sobre a solidariedade ou temas afins. Após
esse momento, dedica-se um tempo à formação, ocasião em que alguém do
grupo ou um convidado expõe um assunto de interesse do grupo. Também
há espaço para avisos e encaminhamentos de ações que envolvam o clube,
comumente ligados a atividades que relacionam os coletivos entre si e que
mobilizam a Rede Pinhão dos Clubes de Trocas, ou ainda iniciativas das
comunidades locais em que os participantes estão inseridos. O ponto central
dos encontros, contudo, é o momento em que são realizadas as trocas.
A pesquisa de campo foi realizada durante os anos de 2014 e 2015
e compreendeu a observação participante de quatro clubes de troca (CT1,
CT2, CT3, CT4), sendo dois deles em Curitiba e dois na região metropolitana
(um deles na área rural). Foram realizadas também entrevistas em
profundidade com 12 participantes selecionadas por meio de sorteio. Os
perfis são diversos, em muitos aspectos. Em comum, pode-se dizer que são
mulheres acima dos 40 anos de idade, migrantes, casadas, com filhos, com
pouca escolarização, sendo que apenas duas das entrevistadas conseguiram
ir além do ensino fundamental. A exceção entre as entrevistadas é Julia,
assistente social designada por uma organização religiosa para acompanhar o
Clube de Trocas 2.
As inserções no mercado de trabalho, em geral, se deram em
ocupações de baixa remuneração, comumente como empregadas domésticas
ou cozinheiras. Apenas em um caso, a aposentadoria se deu por contribuições
próprias à previdência social; dentre as que recebem o benefício, este se deve
à condição de pensionista por viuvez.
Nos clubes urbanos, as experiências religiosas apareceram com mais
intensidade, enquanto que no clube da área rural os vínculos familiares, por
sua vez, emergiram com mais força. O lazer na cidade é ir à igreja, ao culto, à
missa; no campo, é sair pra se distrair e visitar a família.
Do ponto de vista das condições de vida, apenas o clube de trocas de
Colombo (CT3) destoa dos demais. Nele, as condições de pobreza se acham
mais acentuadas. A distribuição de alimentos ganha uma maior relevância
que as trocas propriamente ditas e é preciso criar estratégias como bingos
para garantir o frete63 e a distribuição da comida.

63 O Clube está inserido em um programa de distribuição de alimentos adquiridos


pelo governo federal diretamente de pequenos produtores. A distribuição é gratuita, mas fica
a cargo dos beneficiários a retirada dos mesmos do local onde são distribuídos. Ainda que os

283
Há ainda em comum entre as entrevistadas os modelos tradicionais
de família, com a clara demarcação do que sejam atribuições femininas e
masculinas, não apenas no que toca à divisão do trabalho, mas às práticas
cotidianas como um todo. Em alguns casos, é preciso pedir autorização ao
marido para ir ao clube de trocas; quando não é preciso pedir, é necessário
ouvir as queixas. O direito de ir e vir, de falar e ser ouvida e o direito ao
próprio corpo está sob a tutela do outro: “Eu falo pra ele [marido]: eu vou sair
pra igreja e pro troca, eu fui mãe de 10 filhos, porque fiz todos os teus gosto,
agora é os meus”. (D. Rosana, 76 anos, CT2).
As narrativas sobre as experiências e as trajetórias que emergem a
partir das entrevistas têm em comum, não apenas condições similares de
existência prática e simbólica, mas também alguns pontos de inflexão em
que as trajetórias foram sendo alteradas. A experiência da morte, da doença,
do sofrimento psíquico, como situações limítrofes que exigiram novas
respostas, no caso dessas mulheres foram respondidas em grande medida no
exercício da convivência com outras mulheres.
A economia colocada em curso nos clubes pode ser alocada ao campo da
dimensão pragmática, do cotidiano que conecta experiências e sujeitos, tendo
o cuidado principalmente com os filhos como fio condutor. As experiências
que se dão no âmbito dos clubes de troca transcendem não apenas aos limites
do econômico como às próprias fronteiras do grupo. Possuem potencial de
informar novas posicionalidades aos sujeitos, como novas percepções de
si e de reconhecimentos entre os pares. As relações intragrupo favorecem
o restabelecimento de sociabilidades primárias, resultando não apenas na
mitigação da miséria absoluta, mas no estabelecimento de redes de proteção
que incluem o combate à fome, o combate à violência contra a mulher, a
proteção da velhice e da infância e um espaço de reconhecimentos mútuos.

Cuidar de si a partir das tecnologias do eu

Durante os períodos de realização das entrevistas individuais, foi possível


confirmar a importância da fala e da escuta atenta entre as participantes.
De maneira geral, as sorteadas para serem entrevistadas inicialmente se

valores sejam baixos (cerca de R$ 20,00 por frete), este não é um valor do qual as famílias
disponham. O clube organiza, pois, pequenos bingos, cujos prêmios são objetos doados, a fim
de levantar a cada quinze dias o montante necessário.

284
mostravam tímidas, mas, uma vez quebrado o gelo, demonstravam certo
orgulho. Alguém achava suas histórias relevantes: “Eu não fui sorteada, mas
eu quero falar. A Economia Solidária promoveu muita coisa boa na minha
vida, nessa idade, da terceira idade”. (D. Raquel, 73 anos, CT2).
O narrar-se durante os encontros nos clubes, que nem sempre ocorre
de maneira formal, é perpassado pela reciprocidade que aciona uma escuta
sempre atenta e produz identificações. Ali pode-se falar de muitas coisas
que, ditas em casa, não encontrariam ressonância. Esse é, sem dúvida, um
dos principais motivadores para a permanência nos clubes. Com o par fala/
escuta, cria-se uma primeira dimensão do cuidado, o cuidar de si.
Para Michel Foucault (2010), cuidar de si passa necessariamente pelo
conhecimento de si, mas não no sentido grego do “conhece-te a ti mesmo”;
nesta acepção estão implicadas práticas do conhecimento de si interditadas
à maioria das pessoas:

Ocupar-se consigo mesmo é, evidentemente, um privilégio


de elite [...] ocupar-se consigo aparecerá como um elemento
correlato de uma noção – que será necessário abordar e elucidar
um pouco melhor: a noção de ócio (scholé ou otium). Não se pode
ocupar-se consigo sem que se tenha, diante de si, correlata a si,
uma vida em que se possa – perdoem-me a expressão – pagar o
luxo da scholé ou do otium. (FOUCAULT, 2010, p. 102).

Em Foucault, o conhecimento de si está relacionado ao autogoverno,


condição necessária para o governo de outros. Chega-se a esta condição
através do que o autor chama de tecnologias do eu (FOUCAULT, 2010), um
conjunto de práticas sobre as quais convergem saberes. É por essa via que o
indivíduo reúne as condições necessárias para tornar-se sujeito.
O autor reforça a diferença entre o cuidar de si e o ‘conhece-te e ti
mesmo’, lidando com quatro famílias de expressões que tratam do assunto. A
primeira seria o estar atento a si, como o ato de prestar atenção a si mesmo,
voltar a olhar para si, examinar-se. A segunda família de expressões consiste
nas práticas da existência, a concentração em si mesmo como um refúgio,
uma fortaleza. No terceiro conjunto de expressões relacionadas ao cuidar de
si, estão condutas e práticas a respeito de si mesmo: ir ao mais profundo
de si e a partir daí sanar-se, curar-se, reivindicar-se. (ALBANO, 2005). O
quarto grupo de expressões ligadas ao cuidado de si compreende a relação

285
permanente consigo mesmo, tornar-se senhor de si, auto satisfazer-se,
exercer soberania sobre si.
As tecnologias do eu, na experiência das mulheres nesses clubes,
passam necessariamente por um narrar-se. Falar, aprender a falar e ter sua
fala reconhecida são estágios de um processo que envolve enunciações e
posicionalidades. Há, durante os encontros, determinados procedimentos
que dão pistas de como essas tecnologias do eu são produzidas e
operacionalizadas. O primeiro é a disposição física do espaço. Dá-se grande
ênfase ao círculo e à sua função: todas as participantes têm que ser vistas
por todas. Demarca-se também, pela disposição circular das cadeiras, a
horizontalidade como indício da democratização das relações; há lideranças
instituídas e espontâneas, mas não se sentam em posição de destaque.
Outro elemento importante é o da apresentação das participantes.
Cada uma diz seu nome, há quanto tempo está no grupo e o que trouxe para
a troca. Dizer o nome, mesmo quando a voz tímida é quase inaudível, é um
primeiro exercício para o “aprender a falar”, um exercício pelo qual todas
devem passar e ninguém é dispensado de fazê-lo.
O saber falar, para estas mulheres, está comumente associado à
escolaridade, de maneira que é preciso não tolher as que não tiveram acesso
à educação formal ou a tiveram de maneira limitada. Para que percam o medo
de falar, parte-se de algo que elas sabem, de um conhecimento que dominam;
no caso da apresentação, dizer o nome é falar sobre quem são e cada uma
sabe de sua trajetória melhor que qualquer outra pessoa.
No entanto, mesmo o ato de dizer o nome pode não ser simples,
para algumas das participantes. Em um dos encontros, no momento de
arrumar os produtos para troca e colocar em cada mesa o nome de quem
os trouxe, houve um acontecimento de veras importante. Uma das pessoas
escrevia em letras grandes os nomes; para isso, seguia a ordem do círculo. Ao
chegar a vez da senhora ao meu lado, ela hesitou e disse: “ah, põe Maria”. Ao
perceber a insegurança, a pessoa que escrevia perguntou: “como as pessoas
te conhecem? – Ah, é Lurdes, né?”. Quem escrevia arrematou: “então vamos
pôr o certo, é Lurdes, né?! O nome é a coisa mais sagrada”.
O que parece um pequeno incidente revela questões importantes
sobre a ideia de tecnologias do eu. À pergunta “diga quem você é?”, seguem-se
tensões acerca do eu, que são explicitadas através da dificuldade em escolher
entre nome oficialmente atribuído ou o nome socialmente instituído. O que

286
significa que mesmo dizer apenas o nome pode não ser uma tarefa simples ou
óbvia; implica saber quem se é.
Dois outros momentos de fala são importantes: o das trocas, em que
é preciso dizer o que se levou; e o momento final da avaliação, no qual são
apontadas críticas e sugestões. Falar sobre o que levaram para trocar não
pareceu, ao longo das observações, produzir constrangimentos. A dificuldade
estava sempre na atribuição de valores aos produtos, o que também revela
muito sobre o modo pelo qual as mulheres chegam aos clubes, com visões
inferiorizantes sobre os trabalhos que produzem. Essa dificuldade é driblada
nos clubes, consultando-se as que participam há mais tempo, e, ainda assim,
se consideram que o valor está abaixo do que vale o produto, quem troca
acaba pagando a mais por ele. O mesmo ocorre se acham que o valor é alto;
o produto não é trocado. Já nas avaliações, momento em que a fala não é
obrigatória, se multiplicam falas positivas e sugestões: “foi tudo bom”, “tem
que trazer mais gente, mais produto”, “faltou produto de comer, chá...”.
Passado o período de ambientação, quando a participante novata já
se sente familiarizada com a apresentação própria e dos produtos, se inicia
outra fase daquilo que estou considerando aqui como parte das tecnologias
do eu, ou estratégias para “aprender a falar”. A convite das participantes
mais antigas, a novata é motivada a assumir alguma tarefa no encontro.
São basicamente duas as atividades propostas: a coordenação e a mística. A
coordenação concentra-se entre as mais “experientes”, cabendo, portanto, às
com menos tempo de grupo a mística do encontro. Por mística se entende,
nos clubes, um momento de reflexão sobre valores como solidariedade
e partilha; pode ser a leitura de um poema, uma oração. A distribuição de
tarefas se dá sempre ao final do encontro em curso, para que no seguinte não
haja improvisos. O ponto principal é que não se tenha medo de falar; por
isso, fica a critério de quem conduzirá esse momento o tipo de reflexão que
irá proporcionar.
A partir desse nível, que se pode considerar como intermediário no
aprendizado da fala, desdobram-se outras tarefas, como: a representação do
grupo na reunião de animadoras e a animação de outros grupos. Participar da
reunião de animadoras é responder pelo grupo, decidir pelo coletivo, contar a
história do clube. Para isso, é preciso tempo, experiência e conhecimento do
perfil do clube e suas dinâmicas. Não há eleição nesses casos; normalmente,
se chega ao nome da representante por indicação ou pela consideração da

287
disponibilidade. Além do fator tempo disponível, é preciso considerar o
dinheiro para o deslocamento de ônibus; nem todas podem dispor desse
recurso. Já a tarefa da animar outros grupos é encarada com mais leveza, por
se tratar, na maioria das vezes, de ensinar aos grupos que estejam começando
como funcionam as trocas; e isso elas aprendem bem rápido.
Viajar para outras cidades e Estados, representando o Clube de Trocas
e a Rede Pinhão, que reúnem os clubes de Curitiba e região metropolitana,
é menos recorrente, comum, mas poderia ser considerado o último estágio
nas estratégias do saber falar. Quando há grandes eventos, a exemplo da
feira de economia solidária que se realiza anualmente em Santa Maria, no
RS, os movimentos sociais se articulam e costumam participar enviando
uma delegação. Em ônibus fretado, vão representantes dos grupos, levando
produtos de todos eles.
Nem todas, certamente, seguem o mesmo caminho, especialmente
quando se trata de ausentar-se de casa ou dispor de escassos recursos
financeiros para os deslocamentos de ônibus. Mas, em comum, está a ideia
de que ter a experiência no clube resulta da combinação de elementos como
tempo de participação, ciência das dinâmicas internas e conhecimento
das colegas. Este último determinante serve para se evitar tensões e mal-
entendidos, especialmente durante as trocas. Então, ser membro significa
que esta mulher, em primeiro lugar, “aprendeu” a falar sobre si, sobre o que
produz, e aprendeu a escutar para conhecer as demais participantes.
Sob a perspectiva foucaultiana das tecnologias do eu, o narrar-se, na
experiência vivida pelas mulheres nos clubes, converte-se em mais do que um
instrumento de ajuda mútua, no plano psicológico; ele constitui processos
que envolvem prestar atenção em si, concentrar-se nas próprias necessidades,
reivindicar-se, no sentido de fazer valer seus direitos (FOUCAULT, 2010,
p. 78) e na manutenção de um tipo de relação consigo que a conduz a uma
espécie de soberania.
Essa ideia de soberania é bastante interessante para se pensar como
o cuidar de si, o voltar-se sobre si e auto-satisfazer-se é processual entre
as mulheres. Cecília relatava: “os maridos tão falando ‘você vai lá [no clube
de trocas] ouvir o que não é pra você’, só que o grupo tá valendo a pena”.
(D. Cecília, 63 anos, CT4). Neste mesmo grupo, durante os momentos que
antecediam o começo do encontro, ouvi: “ela [participante ausente] tem
pinhão pra trocar, mas ela não vem. O marido não deixa”. E nesse mesmo

288
encontro ainda se ouviu: “eu não tenho filho pequeno, tenho um marido que
me obedece; então, pra mim é mais fácil tá representando o grupo.” (Marina,
50 anos, CT4).
A fala de Marina produziu risos e um pedido: “você tem que ensinar
à gente como se faz isso”. Em conjunto, as três falas dão um panorama dos
caminhos percorridos por cada uma das participantes em direção, se não
à soberania, à mais autonomia. A que chegou a um estágio considerado
privilegiado pelas demais explicou: “minha caminhada não começou aqui;
eu venho na luta tem muito tempo já; comecei em São Paulo, envolvida nos
problemas da escola do meu filho”. (Marina, 50 anos, CT4).
Cuidar de si pela perspectiva das tecnologias do eu, como pensadas
por Foucault, exige coragem e suporte para alargar as margens. Não se trata
de auto-satisfazer-se em um plano genérico, abstrato; as que se lançam
nesse empreendimento são mulheres concretas, reais, equilibrando-se entre
contingências. O fato de serem mulheres marca de forma determinante o
modo como esse cuidado de si pode ser empreendido. Ainda que os clubes
não tenham como propósito articularem-se em torno de posicionalidades
de gênero, eles não se auto-denominam como grupos de mulheres; ao
contrário, sempre reforçam que não importa se são homens ou mulheres, o
clube está aberto a todos; e os encontros acabam se convertendo em espaço
privilegiado de escuta para as participantes. Por essa razão, pensar o cuidado
pela perspectiva das mulheres e a partir dos clubes demanda passos que se
estendam além das noções de cuidado de si e de tecnologias do eu à maneira
foucaultiana.

Cuidar de si a partir das tecnologias de gênero

Ainda que as reflexões em torno do gênero não tenham sido um problema


sobre o qual Foucault tenha se debruçado, este autor chama a atenção para o
fato de que o cuidado de si esteve historicamente atravessado por um “outro”
idealizado, normativo, na figura do diretor espiritual, do mestre, do sábio. No
contexto das mulheres nos clubes, a tutela é recorrente, não só masculina, mas
relacionada a qualquer figura de autoridade. Essa dependência em relação à
figura de um outro idealizado está profundamente marcada nas trajetórias,
exigindo das mulheres estratégias variadas para driblar as contingências:

289
Eu sofri muito nesse tempo lá da chácara, daí eu pensei: a única
coisa que vai me dar alegria é ter esse filho que eu quero. Aí
sentei e perguntei: você não quer ter mais filho? Eu queria
tanto! Pra ver se vinha uma menina. Eu peguei e disse pra ele:
o médico falou pra eu parar um pouco de tomar o remédio
[anticoncepcional]. Aí fui levando assim, até engravidar.
Quando deu certo, ele falou ‘porque você foi inventar isso
agora que os piá já tão indo pra escola, tão grande, a gente tá
sossegado...’. Sossegado ele, né, porque eu nunca tive sossegada,
que ele me enchia de compromisso pra mim não sair de casa e
daí ele dava os pulo dele. (D. Sandra, 65 anos, CT 2).

Na estratégia de Sandra, o argumento para não tomar o


anticoncepcional precisou do discurso médico, inventado por ela, para
ter legitimidade. O marido não contestou e ela conseguiu o que queria:
engravidar de uma menina. Este não é um movimento exclusivo ou inédito;
os relatos das pequenas mentiras, dos ajustes são recorrentes. Como afirmou
uma participante: “tudo vai do jeito que a gente conta a história”, sobre
como negociava com o marido, quando precisava pedir dinheiro para algo
considerado supérfluo.
As teóricas feministas vêm, portanto, não apenas preencher lacunas
da teoria, mas propor abordagens intersectadas de forma mais complexa.
Na perspectiva da análise feminista, as ordens sexual e econômica operam
juntas, as relações perpassadas por sexo e gênero estão profundamente
imbricadas com os sistemas produtivos, com a produção de representações,
com as teorias e as epistemologias. E isso nos leva a perceber como operam
os sistemas que atribuem à mulher, não um lugar separado, mas uma posição
dentro da existência social em geral. Ou seja, as hierarquizações a partir das
representações de gênero, como instâncias primárias de ideologia, perpassam
todas as esferas sociais, não se limitando a este ou aquele espaço.
As qualificações para ser sujeito, a partir disso, especialmente para
algumas mulheres dos clubes de troca, passavam pela tutela masculina:
estudar até onde o pai achasse necessário, mudar-se para onde o marido
achasse conveniente, como narra D. Márcia, ao falar sobre as mudanças,
primeiro de Francisco Beltrão para Santa Catarina, por melhores condições
de trabalho para o marido, depois de lá para Curitiba: “na verdade, a gente
se mudou pra cá, porque eu não tinha ninguém dos meus parente lá na

290
época [em Santa Catarina]; aí a gente veio pra cá [Curitiba], porque ele tem
família aqui.
A condição de tutela exercida sobre a mulher reitera o feminino,
definindo-se e sendo definido pela diferença, pelo que falta, nunca
como sujeito. O que não significa um apagamento total, sobretudo se
considerarmos as estratégias criadas pelas mulheres nos clubes. Esse tipo de
abordagem exige, inclusive e principalmente, uma vigilância epistemológica
(BOURDIEU, 2010) capaz de trazer para a análise elementos que foram
ignorados ou negligenciados em pesquisas anteriores. Um dos elementos
que carecem de um olhar mais atento é o silêncio das participantes do Clube
quanto às situações de violência contra a mulher. O silêncio sobre as situações
de violência, situação encontrada em campo, não significa que ela não existe;
ao contrário, não falar já é por si uma informação bastante relevante sobre
os silenciamentos e sobre a forma como atua a violência simbólica contra as
mulheres. Julia, assistente social que acompanha um dos grupos, comentava:

Quando a gente fala de idoso, por exemplo, esse contexto,


que elas apresentam, geralmente é sobrecarga nesse contexto
familiar até de responsabilidade tanto financeira de às vezes
ajudar o neto ou os próprios filhos e conflito mesmo de geração.
Porque ali é vó, geralmente são três gerações: vó, neto e filha.
Então elas trazem essa questão de [...] questão financeira, às
vezes do filho tomar conta ali do dinheiro que elas recebem
de aposentadoria, dessa sobrecarga da responsabilidade
que é transferida de mãe pra vó[...] isso tem bastante.
(Julia, 35, CT2).

O controle sobre o dinheiro é um dos mecanismos mais eficazes e


perversos de controle sobre elas. Seja o salário ou a aposentadoria, é o livre
manejo desses recursos que dá a essas mulheres condições mínimas para se
perceberem e se posicionarem como sujeitos. No caso dos clubes, há ainda
a ausência de equipamentos públicos como creches ou centros de educação
integral/lazer, que não deixam às mães outra alternativa senão deixar os
filhos com as avós.
O controle sobre os recursos, o controle sobre o tempo livre e sobre
a possibilidade de ir e vir acabam por sobrepor-se, dessa forma. Durante o
tempo de observação, os netos acompanhavam as avós aos clubes, mesmo

291
quando o avô estava em casa e tinha condições de saúde para atender
às crianças, como relataram informalmente as participantes. Entre as
alternativas estava o rodízio entre as mulheres: a cada encontro, uma delas
ficava com as crianças em outro espaço. Conhecido como “ciranda”, esse
recurso é o mais usual: “ah, tem que ter, né?! Cada dia vai uma, daí é bom
que a gente fica sem o atrapalho das crianças”. (Margarete, 39 anos, CT1).
Outra alternativa é manter as crianças junto das avós, durante o encontro,
e realizar entre elas um “clubinho”, no qual se troca brinquedos, material
escolar, figurinhas. Esta é menos comum, mas assegura que todas, mulheres
e crianças, participem do encontro.
Os ciclos de cuidado, primeiro dos filhos e depois dos netos, ilustra
o acúmulo de desvantagens enfrentadas pelas mulheres, apenas pelo fato
de serem mulheres. A naturalização da tarefa de “olhar as crianças” se
essencializa, cristalizando-se de maneira que se torna de difícil dissolução.
Uma das razões da difícil desconstrução de essencialismos é que
a perpetuação da desigualdade é assegurada exatamente por ser ignorada
como arbitrária. Segundo Lauretis (1994), negar gênero equivale a negar as
relações sociais de gênero que validam a opressão sexual das mulheres; além
disso, se permite permanecer dentro de uma ideologia que invariavelmente
faz a reversão em favor do sujeito do gênero masculino. Nesse sentido, o
grupo demonstra potencial enquanto instrumento para a tomada de
consciência dessa prática arbitrária. (BOURDIEU, 2010).
Os momentos de mística nos clubes são importantes, nesse processo.
Por eles se oportunizam reflexões, diálogos, que motivam as participantes a
olharem para si a partir de outras perspectivas:

A questão de vínculo mesmo, de superação de problemas, isso


acontece no grupo, acho que até pelo fato da minha própria
profissão como assistente social que a gente já tem essa escuta;
então a gente vê que acontece mesmo. Tem sábados que a gente
desenvolve a acolhida, traz um tema, teve um momento, até
há uns dois meses atrás, um momento no clube que elas se
apresentaram deprimidas, não era uma ou duas, eram cinco.
Então o perfil do clube naquele momento tava assim, de eu fazer
ou através da mística ou através da conversa mais paralela com
elas, que elas trazem todo esse contexto, a dificuldade familiar,
né; então isso acontece mesmo. Ou, as vezes, até na própria

292
acolhida, quando a gente desenvolve de elas lerem um texto,
acabarem chorando, colocarem todo esse contexto mesmo que
elas vivem, o grupo mesmo abraçar, o clube mesmo acolher...
então não tem como deixar de fora. Elas trazem, uma hora, um
momento isso aflora mesmo e a gente dá essa atenção. O grupo
mesmo, elas como colegas e a gente como profissional, que
muitas vezes tem que fazer um direcionamento, ou encaminhar
pra unidade de saúde, ou encaminhar pro próprio Cras64, que
são os centros de referência, de assistência... Então as situações
vão surgindo mesmo. (Julia, 35 anos, CT2).

Nesses momentos de acolhida, de mística, se estabelecem vínculos


relacionais e identificações, perpassadas pelo gênero. Segundo Teresa de
Lauretis, o termo gênero é a representação de uma relação, a relação de
pertencer a uma determinada classe, grupo ou categoria. Gênero, diferente
de sexo, é, portanto, “a representação de cada indivíduo a partir de uma
relação social preexistente ao próprio indivíduo e predicada sobre a oposição
“conceitual” e rígida (estrutural) dos dois sexos biológicos”. (LAURETIS,
1994, p. 211).
Nos processos de identificação, se trocam histórias de vida
semelhantes. O sentimento de pertença e de perceber que não se está
sozinha é um importante propulsor para movimentos possíveis. O choro
compartilhado no espaço do clube não se limita aos “problemas de mulher”;
todas passaram ou passam por situações similares e veem nos clubes o espaço
onde podem falar sobre isso sem serem julgadas.
O número de mulheres com depressão apontado por Julia é
alarmante; representa 25% daquele universo. Se faltam creches ou outros
espaços para deixar as crianças, faltam também sistemas mais efetivos de
saúde pública, saúde da mulher, saúde mental como estruturas de políticas de
cuidado. A insuficiência de aparatos públicos e a ausência total de condições
para subsidiar um tratamento privado reforçam o papel dos clubes e o esforço
despendido pelas participantes no cuidado de si.
O desafio de passar por um quadro depressivo, sem a devida
assistência, encontra uma possibilidade de superação por meio da

64 São unidades de execução dos serviços de Proteção Social Básica destinados à


população em situação de vulnerabilidade social, em articulação com a rede socioassistencial.
Disponível em: < http://www.fas.curitiba.pr.gov.br/conteudo.aspx?idf=198>. Acesso em:
8 jan. 2017.

293
pertença a um coletivo. Nesse espaço, o sujeito encontra condições para se
auto-constituir e o faz, não por obediência a um padrão de conduta, mas
por identificação. Em Foucault, considerando que o cuidar de si era privilégio
de uma pequena elite, quem propicia o conjunto de técnicas necessárias é a
religião:

Nas classes menos favorecidas, encontram-se práticas de


si muito fortemente ligadas à existência, geralmente, de
grupos religiosos, grupos claramente institucionalizados,
organizados em torno de cultos definidos, com procedimentos
frequentemente ritualizados. Aliás, é esse caráter cultual e ritual
que tornava menos necessárias as formas mais sofisticadas e
mais eruditas de da cultura pessoal e da investigação teórica. O
quadro religioso e cultual dispensava um pouco esse trabalho
individual ou pessoal de investigação, de análise, de elaboração
de si por si. Entretanto, a prática de si, nesses grupos, era
importante. (FOUCAULT, 2010, p. 103).

Os elementos presentes nos clubes que partem do narrar-se


cumprem junto às participantes um papel pedagógico importante. Embora o
religioso não seja a tônica dos momentos de mística, há, sem dúvida, lógicas
religiosas organizando a subjetividade e a vida cotidiana. Subjetivamente,
se estabelecem balizas para as trocas, para servir sem se envaidecer: “aquilo
que a gente faz por amor a gente não conta” (D. Regina, 66 anos, CT 1), não
conta no sentido de quantificar nem no sentido de dizer a outras pessoas.
Já na experiência cotidiana, essa maneira religiosa de ordenar o mundo dá
cadência aos encontros. Nenhuma delas tem um roteiro das etapas, embora
exista um dizendo o que se deve fazer antes ou depois das trocas; mas todas
sabem como fazê-lo, assim como sabem como proceder nos rituais religiosos.
Fazer esse tipo de associação é sempre um risco; não se pode
universalizar o religioso como sendo do universo do feminino, tampouco se
pode ignorar o peso desse componente. As discussões entre sexo e gênero, os
contornos e conteúdos desses conceitos têm ocupado teoristas e militantes
ao longo do tempo. A desconstrução de essencialismos, desnaturalizando
sexo e gênero, é uma das tarefas que continuam atuais.
De acordo com Gayle Rubin (1998), por exemplo, o sistema sexo/
gênero é um conjunto de disposições pelas quais a sociedade transforma a

294
sexualidade biológica em produtos da atividade humana. Distanciar gênero
das discussões acerca da natureza feminina e suas essencializações foi de
importância salutar para o avanço dos estudos de gênero, especialmente
sobre mulheres, e constitui neste trabalho um ponto de partida para
compreender a condição das participantes do clube de troca, partindo das
posições que ocupam, não porque sejam mulheres, mas porque a elas foram
determinados ou atribuídos lugares sociais que, segundo o caminho de
aproximação proposto, elas tentariam reinventar, a partir do grupo.
Segundo Rubin, o enfrentamento dessas questões, através do simples
revezamento entre os que ocupam a posição de dominadores, não seria
suficiente para solucionar o problema das desigualdades. Por duas razões: a
primeira, porque seria uma mera inversão da pirâmide, na qual uma categoria
de pessoas se posiciona e se constitui pela subjugação de outra; em segundo
lugar, porque o exercício do poder e da dominação só pode ser efetivamente
compreendido de maneira relacional, contextualizada. Para Rubin, através
da ação política, o sistema sexo/gênero poderia ser reorganizado.
É certo que os lugares sociais atribuídos às mulheres, a construção
histórica de sua subordinação ao sexo masculino e suas consequências
constituem marcas indeléveis; contudo, a fixidez das posições de sujeitos
sociais tocam igualmente homens e mulheres. Inverter a pirâmide, propondo
uma espécie de dominação feminina, continuaria organizando o mundo social
a partir do marco natural. A ação política atuaria, nesse caso, no sentido de
suprimir a obrigatoriedade de papeis sexuais, o sujeito e o seu lugar social
não determinados pela anatomia sexual.
Em um dos encontros, nos momentos que antecedem o início das
atividades, algumas mulheres conversavam sobre uma colega que tinha um
bebê de poucos meses em casa: “essa mãe é doida, não dá mais banho no nenê
no quarto, dá no banheiro, se pega um ventinho...”. O tom da conversa era
de crítica à mãe adolescente que não sabia cuidar da criança. Uma senhora
que ouvia comentou a respeito de uma reportagem sobre uma escola que
ensinava os meninos a cuidar de bonecas: “eles ensinam tudinho, trocar,
chacoalhar, fazer parar de chorar, achei boa ideia; assim, eles fica sabendo
que não é só fazer”.
Mesmo que a ideia de papeis pareça estar cristalizada nas práticas, há
movimentos em outras direções. A senhora que apresentou o contraponto, de
que os meninos também têm que aprender a cuidar, era, coincidentemente, a

295
mais velha do grupo. Não é apenas um comentário sobre uma notícia; a fala
traz uma espécie de convite à ação: “assim, eles fica sabendo”; se os homens
não percebem que precisam se responsabilizar pelo cuidado da casa ou dos
filhos, é preciso avisá-los.
Os passos são lentos; a noção de ajuda é muito presente; o trabalho
do homem em casa é ainda um trabalho complementar, marcado pelo não
saber como desempenhar as tarefas:

Em casa, meu marido ajuda, ele pica lenha, às vezes quando


tá apurado, o pátio ele limpa também. Já lavar roupa, limpar a
casa, toda vida sou eu; nunca paguei nada, ninguém pra ajudar;
[...] já o Márcio [filho] fazia até pão pra mim; ele não sabia,
mas ele sovava o pão, ponhava no forno, assava. Um dia eu fui
no médico, ele disse ‘mãe, eu vou lavar roupa pra senhora’. Eu
disse que não precisava que eu lavava; quando a gente voltou,
ele tinha lavado a roupa... tava tudo aquelas roupa ‘de pezinho’,
dura de sabão. Daí eu comecei a dá risada e falei ‘não faz mal’,
que se a gente caçoar dele, ele não faz mais. (D. Sara, 54 anos,
CT4).

Embora a ideia de ajuda apareça para as mulheres, de maneira


positiva, e o é de fato na experiência delas, no plano teórico, defender a
complementaridade entre os sexos ou os papeis não altera assimetrias; apenas
confere um verniz de equidade às relações, corroborando a perpetuação da
lógica binária, na medida em que mantém inalteradas concepções como as de
natureza e cultura, por exemplo.
As críticas em relação à dicotomia natureza/cultura se recolocam com
atualizações discursivas, mas sobre o mesmo substrato. Os problemas se dão,
à medida que a diferença da cultura é seu potencial de transcendência em
relação à natureza, o que a coloca hierarquicamente em posição privilegiada.
É na capacidade de transformação da cultura que se assentaria sua
superioridade em relação à natureza, como o polo ativo, portanto masculino,
retomando as representações aristotélicas.
Além disso, essa aproximação com a natureza estaria em paralelo
com a associação das mulheres ao contexto doméstico, motivada pelas
funções de lactação, ao reafirmar a proximidade das mulheres com grupos
considerados infrassociais, como as crianças. Não obstante sua capacidade
de socializar e cozinhar, consideradas parte do processo cultural, as situe na

296
fronteira entre os dois domínios. A limitação da participação feminina nas
práticas culturais está fortemente ancorada em dados biológicos que tomam
o sexo como determinante do comportamento, da personalidade, de suas
potencialidades, mas, sobretudo, de seus limites.
Essa noção de fronteira, trazida por Ortner (1979), também precisa
ser problematizada. Ainda que tenha cumprido uma importante função
analítica, atualmente ela contribui pouco para uma compreensão mais precisa
da experiência das mulheres. Entendo que não se trata de relegar a mulher
ao doméstico e o homem ao público. No caso das participantes, “ir para a
rua” em busca de trabalho não é uma conquista de gênero, é um imperativo
de sobrevivência. O que nem de longe significa melhores condições de vida
ou indício de autonomia. Trata-se, efetivamente, de voltar o olhar para as
posições ocupadas nos múltiplos espaços, por homens e mulheres, como bem
nos lembra uma das entrevistadas:

As filhas não conseguem vir pro troca, os homens não


conseguem manter a casa sozinhos [...] as mulheres não tão
aceitando qualquer coisa, qualquer trabalho e dizem ‘arroz e
feijão’ eu tenho em casa. Então tá ficando pesado pros rapazes;
elas têm que se virar também. Ficar parado não dá, não é só
o arroz, o feijão; a depressão agora dá em homem, dá até em
criança, em bicho [...]. (Margarete, 39 anos, CT 1)

A fala de Margarete é mais integradora do que os recursos analíticos


que somos capazes de acionar. Dela não escapa ninguém: mulher, homem,
criança, bicho. Daí a necessidade de pensar gênero como a representação de
uma relação (LAURETIS, 1994), dando às abordagens mais fôlego analítico.
Entre os desafios de delimitar as fronteiras entre sexo e gênero, está
o de perscrutar o caminho das diferenças na estrutura corporal de homens e
mulheres, se perguntando sobre as implicações dessa configuração. É preciso
dizer quais são essas diferenças; mas, ao fazê-lo, incorreríamos no risco
do determinismo, em que um fenômeno específico é atribuído totalmente
à biologia. (NICHOLSON, 2000). O segundo problema relaciona-se com
a consolidação das dicotomias, em especial a natureza e a cultura, que
estruturam historicamente políticas públicas, práticas sociais institucionais
e individuais. Os pares antagônicos seriam, para Harding (1993),
empiricamente falsos, mas não podem ser descartados como irrelevantes,

297
enquanto continuam estruturando práticas. Enquanto essas práticas
dualistas não forem repensadas, somos obrigadas a “pensar em existir no
interior da própria dicotomização que criticamos”. (HARDING, 1993, p. 26).

Do cuidar de si ao cuidar do (s) outro (s)

Ainda que em Foucault o gênero não seja um elemento de análise, ele


lançou luzes sobre a importância do cuidar de si e de como apreender esses
processos exige captar os nexos explicativos com base em perspectivas
menos dicotômicas. Nesse sentido, o sujeito se constitui, não por práticas
de dominação (poder) ou técnicas discursivas (saber), mas pelo conjunto
dos procedimentos necessários para que o indivíduo fixe, mantenha ou
transforme sua identidade. Isso é possível, graças a “relações de domínio de
si sobre si ou de conhecimento de si sobre si’. (FOUCAULT, 2010, p. 462).
A análise e a compreensão das identidades como móveis, fragmentadas
ou ainda posicionais, nos permite “apreciar um novo tipo de sujeito, não
predeterminado, que esteja sendo produzido e em constante processo de
transformação.” (HITA, 2002, p. 341). Os processos de reconfiguração das
trajetórias e das identidades a partir das experiências, no contexto dos
clubes de troca, são ao mesmo tempo produtos e produtores de práticas e
representações acerca do trabalho, da cidadania e da igualdade.
Autoras como Miriam Nobre (2016) e Lena Lavinas (2016)
argumentam que a tradução da igualdade legal em igualdade substantiva
requer a integração da economia, cultura e política, tendo em vista que
a superação das desigualdades de gênero requer não apenas emprego
remunerado, mas expansão da proteção social e provisão pública de serviços
sociais. Os programas de transferência de renda, nesse sentido, ainda que
logrem atenuar déficits monetários, não revertem de forma duradoura
desigualdades e assimetrias de gênero.
Crítica similar é feita por Bila Sorj (2016), em relação às políticas
sociais que não rompem as barreiras estruturais e as normas discriminatórias
de gênero, ao manterem a distância entre igualdade substantiva e igualdade
formal. Operacionalizadas dessa forma e como amortecedoras de políticas
macroeconômicas, as políticas sociais, em especial as que são voltadas
à distribuição de renda, reiteram a lógica essencializante do trabalho
reprodutivo como da esfera do feminino.

298
Ao se enfatizar o econômico e seus resultados quantificáveis,
nos processos de institucionalização da economia solidária, reproduz-se
essa mesma lógica, uma vez que a emancipação econômica via trabalho
remunerado, se desacompanhada de igualdade no compartilhamento das
atividades domésticas e do cuidado, segue subtraindo às mulheres o tempo e
as condições necessárias a seu pleno desenvolvimento.
Renda suficiente, compartilhamento do cuidado e demais afazeres,
no âmbito doméstico, e o tratamento digno no trabalho comporiam, para
a autora, parte de uma reengenharia social que, somada à expansão de
serviços públicos condizentes com as demandas da população, propiciariam
a diminuição da distância entre a igualdade meramente nominal em relação
à igualdade substantiva.
Contudo, as contingências não impedem que as mulheres construam
suas próprias tecnologias do eu. A noção de posicionalidade reforça esse
argumento. As mudanças promovidas no cotidiano das entrevistadas podem
não corresponder às mudanças estruturais necessárias e esperadas, mas
certamente produzem outros sujeitos.
Há alterações no conhecimento de si que informam os lugares que
essas mulheres passam a ocupar. Não se trata, necessariamente, de rupturas;
nenhuma delas separou-se do marido, por exemplo, mesmo as que se
achavam em relações explicitamente abusivas. No entanto, permanecem no
casamento a partir de outro lugar, conquistado aos poucos e a muito custo; o
relato de Sandra é um dos casos mais emblemáticos nesse sentido:

Em 43 anos de casada, a primeira vez que eu fui viajar sozinha


foi com o troca, pra representar o grupo. Eu agradeço a Deus
que agora eu to feliz, eu to vivendo, eu to feliz. Depois que eu
tive o derrame, ele soltou a rédea, quer dizer, eu arrebentei o
nó. Porque quando eu tava melhorando, começando a falar, ele
chorava de soluçar. [...] eu dizia ‘eu não quero riqueza, eu não
quero nada, eu quero viver, deixa eu viver. (D. Sandra, CT 2).

Arrebentar o nó é assumir que se pode ir a muitos lugares e conquistar


essa possibilidade. Não é pacífico, não significa que, de uma conquista como
viajar sozinha, todas as demais virão de maneira automática. Ao contrário,
há micro batalhas cotidianas que seguem sendo enfrentadas: “agora eu não
digo ‘posso ir lá, você deixa eu ir lá?’. Eu vou. Eu me arrumo e vou. Às vezes,

299
ele diz: ‘larga eu sozinho e sai’; eu falo pra ele vim comigo no grupo; ele de
birra almoça e não tira nem o prato da mesa.” (D. Sandra, 65 anos, CT2).
Sandra fez da doença o ponto de reinvenção que precisava. Passou, a
partir daí, a arrebentar vários nós para tecer outros. Com exceção do clube,
cuja participação é relativamente recente, ela segue ocupando os mesmos
espaços, agora em outra posição. Por essa razão, já não faz sentido apegar-se
à ideia de uma fronteira real e efetiva entre os espaços públicos e privados.
Os processos que nos constituem sujeitos concretos não se dão de forma
separada: mulheres se constituem no plano doméstico e homens na esfera
pública. Trata-se efetivamente de engendramentos que se dão a partir de
conjuntos inter-relacionados de relações sociais. Ou seja, o “lugar de mulher”
não é uma esfera separada; é, sim, uma posição dentro da existência social
em geral. (LAURETIS, 1994, p. 216).
De modo que pensar níveis de emancipação das mulheres, a partir
dos clubes, significa apreender como elas passam a ocupar os lugares que
sempre ocuparam. Não mudam os lugares, muda a maneira de estar neles.
Para Sandra, a mudança posicional se deu a partir de um conjunto de
movimentos, ou de tecnologias sociais:
Quando a gente passou a trabalhar na cidade e conviver com
pessoas mais experientes, as coisas foram mudando. Ele [o
marido] mudou o jeito dele, não saiu mais atrás de mulher; aqui
ele ficou firme, porque o patrão nosso dizia ‘eu acho absurdo o
homem que larga a família por causa de outra’; ele tinha medo
do patrão, morria de medo. E eu também fui convivendo com as
pessoas; a gente vai se informando; tem a delegacia da mulher,
tem isso, tem aquilo[...] ele não vai te bater[...] então aqui eu
tive mais força. (D. Sandra, 65 anos, CT2).

Novamente, o cuidar de si remete ao falar e ouvir, conviver com os


outros, olhar a experiência das pessoas com quem se convive. Esse relato,
especificamente, chama à atenção ainda para as tecnologias de gênero. Do
ponto de vista prático, a “força” para fazer os enfrentamentos necessários
vem tanto do convívio social quanto da ciência das políticas de atendimento
às mulheres que estão em situação de violência, formando um conjunto de
tecnologias sociais.
A noção de experiência, que se explica a partir dos modos como o
sujeito compreende a própria trajetória, impede que se caia na armadilha

300
teórica da polarização entre sujeito e agência. Para Teresa de Lauretis, o
gênero enquanto representação de uma relação e enquanto tal é um locus
potencial, tanto para a mudança quanto para a reprodução. Olhar para a
experiência das mulheres no cuidado de si, a partir do gênero, é procurar
apreender nas narrativas e nas práticas os elementos capazes de persuadir as
participantes dos clubes a investirem em outros posicionamentos.
Para Sandra, a angústia de viver sob o ciúme do marido foi
determinante:
A cabeça dele era assim: que eu ia na mãe pra deixar os filhos e
ia sair com alguém. Na cabeça dele era assim, que eu ia traindo
ele a vida inteira. Por que que eu tive o derrame? Tudo por causa
disso[...] ele abriu uma gaveta e achou o telefone da casa da
patroa; ele ligou pra esse número e quem atendeu foi o irmão
dela, da patroa, aí eu chego o homem tava que tava tremendo,
daí ele falou: deixe, você já vai saber, espera, vai chegar a hora.
Quando foi de noite que as crianças dormiam e a gente deitou,
de repente, num piscar de olho, ele virou pro meu lado, pôs a
mão em cima de mim aqui [mostrando o pescoço] e dizia: agora
você vai me dizer quem é esse Francisco. Eu dizia que não sabia,
que nunca vi [...]; esse homem me deixou quase louca; ele não
me bateu, mas me deixou quase louca. (D. Sandra, 65 anos,
CT 2).

Frente a uma situação limítrofe, Sandra se viu impelida a “arrebentar


o nó”, quando, a partir do contato com outras tecnologias sociais, pôde
perceber que o lugar até então atribuído a ela poderia ser revisto. Sem acesso
à própria renda, que era apropriada pelo marido, e dentro de um modelo
de relação comum a muitas mulheres de sua geração, Sandra se viu dentro
de um vínculo que afetava sua construção subjetiva. Para Lauretis (1994),
é exatamente no fato de que a representação social de gênero afeta sua
construção subjetiva, e vice versa, que se abre a possibilidade de agenciamento
e autodeterminação.
Assim como a outras mulheres, o acesso à informação e a convivência
com pessoas de fora do círculo familiar possibilitou à Sandra olhar-se,
debruçar-se sobre a própria trajetória. Ver-se dentro e fora do gênero. Estar
dentro, nesse contexto, porque estava engendrada por uma representação
de mulher que estabelecia parâmetros do aceitável e do reprovável. E fora

301
do gênero, porque gradativamente percebeu que ser esposa e mulher não
precisa ser um destino fixo e inevitável.
Esse cuidado de si, que tem nos clubes de troca um vértice de
possibilidades, levanta suspeitas. Nas instâncias institucionais, há o receio
de que a ênfase nos laços de amizade e convivência converta os clubes
em grupos de autoajuda. Não se trata disso, e, ainda que os clubes se
restringissem apenas a serem espaços de autoajuda, estariam cumprindo
um importante papel, considerando-se a ausência de serviços públicos que
pudessem atender a essa demanda.
As suspeitas sobre o que se faz nos grupos e a relevância disso
aparecem de muitas formas. Um homem que participa esporadicamente
de um dos clubes e é tido como pessoa de referência na economia solidária
desabafava:

A economia solidária é como um barco no mar; a gente nota que


a onda vem; se a gente não tiver um daqueles coletes, a onda
vem e a gente se afoga. Eu fico com medo da gente afundar.
No começo, eu tinha aquela, desculpe eu falar isso pra você, eu
tinha aquele gás, eu pegava uma coisa pra fazer e via acontecer.
Mas agora eu vejo pouco grupo, eu não conheço grupo vivendo
daquilo mesmo. A gente fundou um monte de grupo, a gente
tinha vontade de trabalhar, [...] mas eu não vejo nada disso; a
gente tem muito que aprender, tá muito difícil. Eu tenho medo
que os poucos grupos que têm acabem virando grupo só de
lazer. (João, 66 anos, animador, membro CT1).

A angústia por resultados quantificáveis não está ausente do


interesse das mulheres. Todas elas aguardam as trocas como o momento
mais importante. O que muda é que para elas não há problema algum em
que o grupo se converta em um espaço de lazer: “eu sinto falta de um espaço
pra conversar” (D. Paula, 65 anos, CT 3). O lazer para elas é uma economia
restitutiva, que devolve o que foi tirado pelos vários mecanismos de
esmagamento dos sujeitos, contemporaneamente; devolve o tempo.
Os clubes, ao cultivarem uma mística, uma ordem sequencial
de tarefas, ao mesmo tempo ritualizada e informal, uma vez que não é
engessada, oferece previsibilidade, uma ideia de ordem que permite pensar
um futuro, mesmo que próximo. Frente ao conjunto de coisas sobre as quais

302
elas não têm poder decisório, frente às incertezas econômicas, à instabilidade
emocional, estar nos encontros representa um espaço de fuga e encontro:
fuga do cotidiano sem largos horizontes, e encontro de si e do coletivo.
Richard Sennett (2005) chama a atenção para a importância do
senso de comunidade sequestrado pelo capitalismo flexível. A flexibilização
dos processos produtivos teria nos conduzido para um modelo de sociedade
que tem como marcas a ausência de longo prazo e a quebra dos laços de
confiança. Confiar e estabelecer lealdades do tipo que desembocam em
compromisso mútuo exige tempo. Contudo, neste cenário não há tempo a
perder. Para o autor, é exatamente essa dimensão temporal a que mais afeta
a vida emocional das pessoas, dentro e fora do ambiente de trabalho.
Dentro dessa lógica, em que se tem a perene sensação de encurtamento
ou de aceleração do tempo, desenvolver uma narrativa de vida assemelha-se
ao trabalho de um artista de mosaicos: é preciso criar algo coerente, a partir
de fragmentos episódicos. O caráter corrosivo deste tipo de capitalismo de
curto prazo está exatamente no fato de ele retirar do horizonte a noção de
longo prazo, a ideia de carreira e a possibilidade de segurança na velhice.
A permanência em um estado contínuo de vulnerabilidade, afirma
Sennett, ofusca o olhar de quem está nessa posição. Não se consegue
enxergar o caráter estrutural da condição de instabilidade e o movimento
naturalizado é de que se responsabiliza o indivíduo, no caso as mulheres, por
não possuírem os códigos exigidos para o sucesso.
Algumas abordagens feministas, como a de Rosi Braidotti (2000),
têm procurado ler esses sujeitos, não apenas como fragmentos, mas como
agentes que se movimentam e buscam novas posicionalidades. Os sujeitos
passam a ser processos, em constante nomadismo, e a apreensão desses
processos é sempre a partir das condições concretas, situadas. (BRAIDOTTI,
2000, p. 114 [M1). As técnicas de si, por essa perspectiva, colocam o gênero
como uma política de subjetividade. É a partir do modo pelo qual mulheres
concretas e situadas se veem e interpretam o mundo que elas se posicionam
nele. Ser mulher, nesse caso, longe de um essencialismo ou de uma reificação
da diferença, marca o lugar da própria enunciação:

La idea del sujeto como proceso significa que ya no es posible


suponer que él/ella coincide con su propia consciencia, sino
que ha de pensarse como una identidad compleja y múltiple,

303
como el sitio de interacción dinámica del deseo con la voluntad,
de la subjetividad con el inconsciente: no sólo el deseo libidinal
sino, más bien, el deseo ontológico, el deseo de ser, la tendencia
del sujeto hacia el ser, la predisposición del sujeto a ser.
(BRAIDOTTI, 2004, p. 40)65.

O que os clubes estão proporcionando é devolver às pessoas o


tempo. Para estar junto, para bater papo, jogar conversa fora, para produzir
identificações e articulações. Um tempo que não se converte apenas em
conhecimento de si para cuidado de si, mas oportuniza recursos para
reinterpretar o mundo.
A maneira como fazem uso desse tempo cria identificações e
especificidades. Os clubes de troca, com o tempo, converteram-se em grupos
de mulheres. Contudo, os essencialismos acerca do feminino também
precisam ser contextualizados. De acordo com Cláudia de Lima Costa (2002),
“mulher” é uma categoria histórica, construída de maneira heterogênea, a
partir de um conjunto amplo de práticas e de discursos que fundamentam
o movimento das mulheres. Abrir mão disso traria mais prejuízos do que
contribuições, em algumas situações. Não é possível reivindicar políticas
públicas para mulheres, se não existe “mulher”; nesse caso, não se trataria
de essencializar, mas de tomar a noção de mulher como uma estratégia de
ação política, mobilizadora e capaz de amenizar desigualdades, ainda que
reconheçamos sua temporalidade.
Quando se elencou, entre os objetivos, apreender e analisar a
reinvenção das identidades de mulheres participantes dos clubes de
troca, não havia como apriori a ideia de que antes do grupo não existisse
identidade, ou ainda, que não houvesse uma identidade enquanto mulheres.
As mulheres, certamente, chegaram ao grupo com representações de si
bastante consistentes, construídas a partir das posições que ocupavam até
então e das relações que estabeleceram. Claudia Lima Costa contribui para
essa análise, evidenciando a possibilidade de produção de identidades “nas

65 “A ideia do sujeito como processo significa que já não se pode supor que ele/ela
coincide com sua própria consciência, mas que deve se pensar como uma identidade complexa
e múltipla, como o lugar da interação dinâmica do desejo com a vontade, da subjetividade com
o inconsciente: não só o desejo libidinal, mas também o desejo ontológico, o desejo de ser, a
tendência do sujeito para o ser, a predisposição do sujeito a ser”. (Tradução de Maria Izabel
Machado)

304
margens, nos space-offs e nos interstícios das estruturas e dos discursos
dominantes”. (COSTA, 2002, p. 78).
É imperativo, pois, nos reportarmos às especificidades históricas
desse sujeito, a fim de captar, da maneira mais aproximada possível, as
relações entre ele e seu contexto; suas diferentes localizações proporcionaram
diferentes leituras dos textos sociais e diferentes práticas narrativas. Nesse
sentido, a leitura das trajetórias das participantes dos Clubes, a partir de
suas enunciações e contextos, amplia as possibilidades analíticas:

A fim de evitar a indiferença em relação à diferença


[...], pensar sobre o lugar do sujeito na teoria se
torna premente, já que tal reflexão poderá revelar
os modos pelos quais esse sujeito (do feminismo)
constrói novos loci de enunciação, proporcionando-
lhe outras formas de ver e saber e, o que é mais
importante, de aprender a partir da experiência
daquelas que vivem em outros lugares. (COSTA,
2002, p. 90).

As reinvenções se dão de variadas formas, subvertendo a lógica


de mercado e consumindo sem ter dinheiro, ou confrontando os limites
impostos pela maternidade; se for preciso, leva-se os filhos e netos, mas não
se deixa de sair de casa, dando pouca ou nenhuma importância aos critérios
de relevância institucionalizados.
Nas brechas, reinventam-se também formas de interpretar o mundo.
Durante um dos encontros, a mística procurou reproduzir, com um vaso de
terra e algo enterrado nele, a parábola bíblica sobre os talentos:

Pois será como um homem que, viajando para


o estrangeiro, chamou seus servos e entregou-
lhes seus bens. A um deu cinco talentos, a outro
dois, a outro um. A cada um de acordo com a
sua capacidade. E partiu. Imediatamente, o que
recebera cinco talentos saiu a trabalhar com eles
e ganhou outros cinco. Da mesma maneira, o que
recebera dois ganhou outros dois. Mas aquele que

305
recebera um só, tomou-o e foi abrir uma cova no
chão. E enterrou o dinheiro de seu senhor. Depois
de muito tempo, o senhor daqueles servos voltou
e pôs-se a ajustar contas com eles. Chegando
aquele que recebera cinco talentos, entregou-lhe
outros cinco, dizendo: ‘Senhor, tu me confiaste
cinco talentos. Aqui estão outros cinco que ganhei.
Disse-lhe o senhor: ‘muito bem, servo bom e fiel!
Sobre o pouco foste fiel, sobre o muito te colocarei.
Vem, alegra-te com teu senhor!’ Chegando também
o dos dois talentos, disse: ‘Senhor, tu me confiaste
dois talentos. Aqui estão outros dois talentos que
ganhei’. Disse-lhe o senhor: ‘muito bem, servo
bom e fiel! Sobre o pouco foste fiel, sobre o muito
te colocarei. Vem alegrar-te com teu senhor!’ Por
fim, chegando o que recebera um talento, disse:
‘Senhor, eu sabia que és homem severo, que colhes
onde não semeaste e ajuntas onde não espalhaste.
Assim amedrontado, fui enterrar o teu talento no
chão. Aqui tens o que é teu’. A isto respondeu-lhe o
senhor: ‘servo mau e preguiçoso, sabias que colho
onde não semeei e que ajunto onde não espalhei?
Pois então devias ter depositado o meu dinheiro
com os banqueiros e, ao voltar, receberia com juros
o que é meu. Tirai-lhe o talento que tem e dai-o
àquele que tem dez, porque a todo aquele que tem
será dado e terá em abundância, mas daquele que
não tem, até o que tem lhe será tirado. Quanto ao
servo inútil, lançai-o fora, nas trevas. Ali haverá
choro e ranger de dentes! (BÍBLIA, 2002, p. 1749).

O texto é bastante conhecido e as interpretações usuais dizem


respeito a aproveitar o que se recebe e fazer multiplicar, render, sejam bens,
vocações, talentos. Ao final da leitura, quem conduzia a mística perguntou que
coisas cada um dos servos tinha feito com os talentos recebidos: “o primeiro
usou pra dar de comer pros cachorros, pros gatos, cuidou da criação”; “o

306
segundo deve ter feito alguma coisa com o dinheiro, produziu algo e vendeu”.
Na explicação sobre o terceiro, surgiu um diálogo interessante: “ele enterrou
e ficou parado”. “Mas o talento é só dinheiro? Porque, se for uma semente,
ele fez certo!”.
Todas as tarefas listadas são familiares às mulheres. Cuidar da
criação, porcos, galinha, cachorro, cuidar do que vive. Ou fazer algo, produzir
com o que se tem e transformar isso em dinheiro. Nas explicações para o
terceiro servo, são as posicionalidades que informam o certo ou o errado,
mesmo quando o “senhor” manda punir o servo por ele não ter seguido as
recomendações.
Há enunciados novos sendo produzidos. Na medida em que é possível
enunciar-me, a partir de outra posição, o mundo pode ser lido por outra
perspectiva, a linha que conduz o que as mulheres enunciam está perpassada
pelo cuidado, de si e do outro.

Considerações finais

Para enfatizar o ponto central dos encontros e a importância da produção


própria, há que dizer que as trocas se mostraram catalizadoras de múltiplos
significados. A materialidade do que se troca ganha relevância para as mulheres
que têm acesso limitado à renda e ao consumo. Se não produz autonomia
financeira, a troca sem dinheiro, apenas utilizando moeda social, possibilita
acessar comida, roupas, utensílios domésticos, bijuterias, artesanatos,
coisas que não poderiam ser obtidos de outra forma. Em contextos em que
é necessário pedir ao marido dinheiro para qualquer aquisição, do pão ao
uniforme dos filhos e netos, o poder de acessar um circuito de consumo de
modo autônomo restabelece para essas mulheres elementos para que se
leiam como sujeitos, e não assujeitadas.
Saber falar, que, ao fim e ao cabo, é perder o medo de falar, não são
exercícios de retórica ou técnicas para vencer a timidez. São enunciados que,
como tais, dizem respeito a posições de sujeito. Empoderar-se pela fala é
deslocar-se de posições de apagamento e sujeição para lugares de afirmação,
reinvenção e produção de novas posicionalidades e identificações. É também
por aí que passa a solidariedade entre as mulheres: ouvir e ser ouvida.
O falar, como uma tecnologia do eu, possibilita conhecimento de si
sobre si e dos códigos necessários para estar no mundo sem ser esmagado

307
por ele. Os passos que cada nova participante dá, até se considerar membro
dos clubes, incluem começar a falar sobre o que ela mais conhece: o próprio
nome, a própria trajetória. A estes, se seguem motivar uma oração, uma
dinâmica de grupo, um momento de mística.
Conquistada a posição, em que é possível se reconhecer como um
sujeito cujos desejos, medos e anseios merecem e devem ser escutados, é
hora de ajudar outras colegas a também percorrer esse caminho, assumindo a
tarefa de coordenar encontros ou de representar o grupo em outros espaços.
O pretexto é ensinar a trocar; o que se alcança é ensinar que nenhuma posição
é ou deve ser fixa. Ser mulher não é uma condenação.
As tecnologias do eu estão encharcadas, portanto, de tecnologias
de gênero. Ser mulher, para além dos essencialismos, engendra cada uma
das participantes e todas elas. Enunciadoras de uma “economia que toda
mulher sabe fazer”, elas se colocam o tempo todo dentro e fora do gênero.
Reproduzem lugares sociais e cavam outros. Cuidar, nesse contexto, é cuidar
de si, não só para cuidar de outros, embora também seja para isso, mas cuidar
de si, porque este é um empreendimento dos mais relevantes.
Reivindicar para si o status de sujeito, como uma tomada de
consciência do próprio valor e das próprias necessidades de cuidado, fez com
que elas retirassem os interditos sobre o belo, o saboroso, tudo o que antes
era considerado supérfluo, como a roupa bonita para ir à igreja no domingo,
o doce para a sobremesa, as bijuterias; tudo está perpassado pela ética do
cuidado, de si e dos outros.

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310
PRÁTICAS DE CUIDADO NO TRATAMENTO DA
TUBERCULOSE NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE
NA ROCINHA/RJ: A VISÃO DOS PROFISSIONAIS
DE SAÚDE, DOS USUÁRIOS E DE SEUS FAMILIARES
Raquel Barros de Almeida Araújo (SMS-RJ)66
Marly Marques da Cruz (DENSP/Fiocruz)67
Eliane Portes Vargas (IOC/Fiocruz)68

Tuberculose: uma doença multifacetada para se pensar o cuidado

No presente estudo nos propomos a descrever as práticas de cuidado no


Tratamento Diretamente Observado (TDO) da Tuberculose (TB), no âmbito
da Estratégia Saúde da Família (ESF), no bairro da Rocinha, Município do Rio
de Janeiro, dando voz aos sujeitos da ação. Para poder situar o leitor, buscou-
se nessa descrição valorizar as particularidades das práticas de cuidado e do
contexto em que essas se realizam, por meio dos depoimentos coletados nas
entrevistas que retrataram a visão dos três sujeitos do estudo: o profissional
de saúde, o usuário portador de TB e seus familiares.

66 Mestre e especialista em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública


(ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), enfermeira da Secretaria Municipal de Saúde
do Rio de Janeiro/Divisão de Ações e Programas de Saúde (DAPS) da Coordenadoria Geral
de Atenção Primária da AP 4.0/RJ, atuando junto às equipes Nasf e Linhas de Cuidado nas
Unidades de Atenção Primária desta AP. raquelbarros.smsrio@gmail.com
67 Doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Pesquisadora titular em saúde pública do Departamento de
Endemias Samuel Pessoa (DENSP/Fiocruz). Docente de Pós-Graduação no Programa de Saúde
Pública da ENSP/Fiocruz nas modalidades acadêmica e profissional. Integra o Laboratório
de Avaliação de Situações Endêmicas Regionais (LASER/DENSP/Fiocruz), cuja atuação
enfatiza a pesquisa, o ensino e a cooperação técnica em monitoramento e avaliação em saúde,
com ênfase em HIV/AIDS, tuberculose, vigilância nutricional e redes de atenção à saúde.
marly@ensp.fiocruz.br
68 Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ), área
de concentração em Ciências Sociais e Humanas e Saúde (2006). Pesquisadora do Instituto
Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz e Docente da Pós-Graduação de Ensino em
Biociências e Saúde (IOC/FIOCRUZ), Brasil, atuando em pesquisas sobre, principalmente,
os seguintes temas: Corpo, Sexualidade, Reprodução, Tecnologias Reprodutivas e Relações
Familiares e de Gênero, Alimentação e Cultura. epvargas@ioc.fiocruz.br

311
A tuberculose é uma doença infecto-parasitária, causada pelo bacilo de
Koch ou Mycobacterium tuberculosis, cuja localização mais frequente são os
pulmões. Sua transmissão é feita por via aerógena, através da eliminação dos
bacilos no ar. Após a infecção, entre 5% e 10% destes indivíduos apresentam
formas evolutivas da TB e os demais permanecem assintomáticos (KRITSKI;
SOUZA, 1998). A tuberculose, uma das doenças infecciosas mais antigas,
ainda se apresenta como grave problema de saúde pública, sendo a segunda
causa de morte por doenças infecciosas no mundo, mantendo-se como um
dos agravos com múltiplas determinações relevantes, não só em âmbito
nacional, bem como internacional. (BARREIRA; GRANGEIRO, 2007; SAN
PEDRO; et al., 2017).
O Brasil é um dos 22 países priorizados pela OMS onde se concentram
80% de todos os casos de TB no mundo. A taxa de incidência da TB no Brasil,
em 2011, foi de 36,0/100.000 habitantes. (BRASIL, 2012). A capital do Estado
do Rio (região metropolitana I, conforme divisão político-administrativa),
em 2011, apresentou 50% dos casos registrados no Estado, com uma taxa de
incidência de 89,0/100.000 habitantes, o que atribuiu ao município do Rio
de Janeiro a 6ª posição entre as capitais do país e a 3ª entre os municípios do
Estado. Neste município, estão concentradas comunidades cujas condições
de vida da população são precárias e com grandes aglomerações, entre
elas o Complexo do Alemão e a Maré, Jacarezinho e a Rocinha, em cujas
comunidades a incidência é de 386/100.000 habitantes. (RIO DE JANEIRO,
2013).
A TB apresenta determinados mecanismos de transmissão e a sua
transmissão está relacionada ao contato entre uma pessoa infectada e uma
suscetível. Este momento, da produção das novas infecções, corresponde
diretamente à taxa de contato social, que é elevada pela densidade
populacional, pela aglomeração dos espaços confinados e pela circulação
nos espaços urbanos. Entre os indivíduos infectados, apenas uma parcela
desenvolverá a doença, e assim poderá ser uma fonte de transmissão.
Entretanto, em virtude da complexa relação entre o bacilo e o hospedeiro
humano, o bacilo pode ficar latente por anos ou até décadas. (SABROZA,
2001). Os doentes, cuja baciloscopia do escarro é positiva, são a principal
fonte de infecção da doença. Para interromper a cadeia de transmissão da TB,
há duas medidas importantes: a descoberta precoce, através da busca ativa
do sintoma respiratório, e o tratamento correto dos indivíduos infectados.
(BRASIL, 2011a).

312
Com o advento da AIDS ou SIDA (Síndrome da Imunodeficiência
Adquirida), a TB é a doença que mais mata no mundo entre os portadores
de HIV/AIDS, com 4.500 mortes por dia ou 1,6 milhões de mortes por ano,
o que vem contribuindo negativamente para o controle da tuberculose em
todo o mundo (WHO, 2009). Estimava-se que 10% das pessoas que viviam
com TB fossem HIV-positivas e que aproximadamente 20% das pessoas
portadoras de HIV e AIDS desenvolviam tuberculose pulmonar. A existência
de ambas as doenças aumenta consideravelmente o risco de morte desses
portadores. Para Sabroza (2001), a tuberculose possui uma perspectiva de
dupla polaridade, onde a co-infecção com os vírus da AIDS alcança diferentes
grupos integrados, além de esta doença se encontrar vinculada à miséria e ser
mais prevalente entre os excluídos. Esta questão é apontada também por San
Pedro et al. (2017), que reconhecem que as iniquidades sociais e as condições
de vida são as condições que colaboram para a aquisição, adoecimento e
disseminação da tuberculose. Esse é um dos aspectos da vulnerabilidade
que exerce influência durante todo o processo de tratamento do portador
de tuberculose, o que indica que apenas o cuidado clínico não é suficiente
para o êxito do tratamento. Nesta mesma perspectiva, Neto (2011) ressalta,
a partir da experiência de Vila do Rosário, que a tuberculose não pode ser
combatida somente por meio do tratamento da doença, mas que a estratégia
de controle também deve englobar o combate à miséria. Desta forma, este
autor (2011, p.15) sugere que a “tuberculose da miséria” é a “categoria social
da tuberculose”, um elemento relevante a ser considerado para a eliminação
do agravo.
Apesar de a TB ser uma doença tratável e curável, sua produção
depende de diversos fatores que estão associados a questões biológicas e a
questões socioambientais e de condições de vida. Neste sentido, Fasca (2008),
refere que nos centros urbanos os grupos mais vulneráveis e os excluídos
são os que estão mais propensos a contrair a infecção e a desenvolver a
tuberculose, o que está intimamente relacionado às condições de vida a que
estão submetidos. A partir desta visão da produção da TB e da sua relação
com as condições de vida dos indivíduos e seus contextos sociais, este agravo
deve ser valorizado pelos profissionais de saúde, principalmente os que
trabalham na ESF, entendendo a ESF como um modelo de reorientação da
Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil69. A APS deve ser a porta de entrada
69 A implantação da Estratégia Saúde na Família se deu a partir de 1991 com a

313
ao Sistema de Saúde, onde a maior parte dos problemas de saúde é resolvida.
É nesse primeiro nível de cuidado que outros cuidados mais abrangentes
são coordenados, ao longo do tempo, e cujo foco e base do planejamento
são as famílias e a comunidade em que estão inseridas (OPAS, 2007). Na
organização das práticas de atenção primária à saúde, no Brasil, as propostas
de humanização e integralidade no cuidado à saúde apresentam-se como
uma alternativa de ação pública e têm sido apontadas como estratégias de
enfrentamento para a crise na assistência à saúde.

O Cuidado no contexto do Tratamento da Tuberculose

A TB tem sido considerada um agravo emergente, ou reemergente, em alguns


países europeus e até nos Estados Unidos da América; no Brasil, entretanto,
é caracterizada por Ruffino-Netto (2002, p.51) como “um problema presente
e ficante há longo tempo”. A partir do aumento considerável do número de
casos de TB no mundo, em 1993 a Organização Mundial de Saúde (OMS)
declarou este agravo como uma urgência e propôs a estratégia DOTS (Directly
Observed Treatment Short-course) para seu controle, cujas metas eram
alcançar 85% de casos tratados e 70% de detecção de casos. (WHO, 2012).
Essa estratégia é compreendida pelos seguintes componentes: compromisso
político com fortalecimento de recursos humanos e garantia de recursos
financeiros e elaboração de planos de ação e mobilização social; diagnóstico
de casos, por meio de exames bacteriológicos de qualidade; tratamento
padronizado, com a supervisão da tomada de medicação e apoio ao paciente;

criação das Equipes de Agente Comunitário de Saúde (ACS) e ampliou-se em 1994 com as
equipes de saúde da família no Brasil pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Os profissionais
de saúde que compõem estas equipes, principalmente o ACS, têm a possibilidade de atuar
diretamente nos espaços comunitários e nos domicílios onde se encontram os doentes com TB
e suas famílias. A discussão da Atenção Primária à Saúde (APS) é reforçada pela Organização
Pan-Americana de Saúde – OPAS/OMS, no documento “Renovação da Atenção Primária em
Saúde nas Américas”. (OPAS, 2007, p. 8). Nesta publicação é apresentada uma nova visão
no desenvolvimento dos sistemas de saúde cuja base estaria na Atenção Primária à Saúde,
pois um sistema de saúde com base na APS deve ser capaz de responder às necessidades de
saúde da população e fomentar a “qualidade, a responsabilidade governamental, a justiça
social, a sustentabilidade, a participação e a intersetorialidade. Este sistema precisa garantir
a cobertura universal, garantir a equidade e o acesso aos serviços, além da oferta de amplos
cuidados, priorizando a prevenção e a promoção da saúde. As famílias e as comunidades se
apresentam como as bases deste planejamento e das ações em prol da saúde.

314
fornecimento e gestão eficaz de medicamentos e sistema de monitoramento e
avaliação ágil que possibilite o monitoramento dos casos, desde a notificação
até o encerramento. (BRASIL, 2011b).
No entanto, no Brasil, o componente “tratamento padronizado com
a supervisão da tomada de medicação e apoio ao paciente” passou a ser
denominado Tratamento Diretamente Observado (TDO), que tem como
foco a observação direta da tomada da medicação anti-TB. O TDO apresenta
quatro modalidades de supervisão: a domiciliar, na qual a observação
realizada ocorre na residência do usuário ou em local por ele solicitado; na
unidade de saúde, onde a observação é realizada em unidades de Estratégia
de Saúde da Família, unidades básicas de saúde, serviço de atendimento de
HIV/AIDS ou hospitais; na unidade prisional, onde a observação ocorre no
sistema prisional; e a compartilhada, quando o doente recebe a consulta
médica em uma unidade de saúde e faz o TDO em outra unidade de saúde,
mais próxima a seu domicílio ou trabalho. (BRASIL, 2011).
O Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT), em 2004,
incluiu o controle da TB na ESF, com o intuito de consolidar suas ações
na APS e, desta forma, propôs algumas ações, dentre elas o tratamento
da tuberculose e a ampliação do TDO a todas as Unidades de Saúde dos
municípios prioritários do PNCT. Na ESF, as equipes de saúde da família
realizam ações de prevenção, promoção, recuperação, reabilitação e cuidados
paliativos, na concepção da integralidade da assistência à saúde. Estas ações
são direcionadas à unidade familiar, quando são considerados o contexto
socioeconômico, cultural e epidemiológico da comunidade onde a família
está inserida. (ANDRADE; BARRETO; BEZERRA, 2009). A realização do
TDO possibilita, para o profissional de saúde, a ampliação do seu contato
com o usuário portador de TB e sua família. São nestes encontros diários
que surgem a oportunidade de uma construção compartilhada dos “atos
de cuidar”. Esta prática, dentro do tratamento da TB, pode ser reduzida à
observação da tomada da medicação ou pode ser ampliada para além dos
cuidados em TB.
Nesta perspectiva, é preciso compreender a observação da tomada
da medicação como uma ação importante a ser valorizada pelos momentos
de encontro diário, como um momento de encontro humanizado, oportuno
para o fortalecimento do vínculo entre o profissional de saúde e o usuário, e
não apenas para a confirmação da tomada da medicação. Essa concepção nos
reporta a uma visão do TDO que rompe com uma lógica de trabalho em saúde

315
que ainda privilegia a produção de procedimentos e a reprodução do modelo
tecnicista e biologicista. (BRASIL, 2012). O TDO, dessa forma, é valorizado,
não apenas por seu aspecto “fiscalizador”, mas também pela ampliação do
contato entre o profissional de saúde/equipe de saúde e o usuário/família, o
que, de fato, pode contribuir para uma mudança de paradigma na atenção e
no cuidado de quem vive com tuberculose. A realização do TDO, sem dúvida,
deve estar inserida em um conjunto de práticas incorporadas aos processos
de trabalho pertinentes à ESF, sendo que estas últimas devem se configurar
como facilitadoras do cuidado integral. Merhy (2002) aponta que a produção
dos atos de cuidar é para onde o encontro entre o trabalhador da saúde e o
usuário converge. No processo de trabalho em saúde, o trabalhador traz suas
ferramentas, que são seus conhecimentos e tecnologias, e o usuário ou agente
consumidor apresenta suas intencionalidades e representações, que são
expressas em como eles elaboram suas necessidades de saúde. Mattos (2004,
p.1415) ainda traz uma concepção mais ampliada do cuidado em saúde, em
que ele assegura que, “na perspectiva da integralidade, não devemos reduzir
um sujeito à doença que lhe causa sofrimento”; é preciso manter o sentido da
intersubjetividade, levando em consideração, além dos conhecimentos dos
profissionais de saúde sobre as doenças, também o conhecimento sobre os
“modos de andar a vida” dos sujeitos com quem se mantém uma interação
nos serviços de saúde.
A partir do diálogo que se mantém nesses espaços, é necessário
buscar construir os projetos terapêuticos individualizados, que emergem
da capacidade de compreender cada contexto nos diferentes momentos.
Numa mesma perspectiva, mas com o foco no tratamento da TB, Muniz et al.
(1999, p.39) destacam que a proposta do TDO deve ser compreendida como
“um modo diferente de agir na saúde”, em que são ampliados os espaços e
as maneiras de intervenção no processo saúde-doença, tanto ao nível do
indivíduo quanto ao da coletividade.

O cuidado integral à saúde: os aspectos técnicos e seus limites

Autores do campo da saúde coletiva no Brasil assumem concepções


convergentes sobre o conceito de integralidade do cuidado, ou cuidado
integral, à saúde. A apresentação destas proposições apoia-se na reflexão
sobre o cuidado ao usuário portador de tuberculose em TDO, a partir de uma
perspectiva crítica. Tal reflexão se faz necessária, uma vez que as práticas

316
de saúde contemporâneas vêm se deparando com limitações, na busca de
respostas efetivas às complexas necessidades de saúde dos indivíduos e das
populações (AYRES, 2004), porquanto se centram em uma racionalidade
técnica que se mostra insuficiente como resposta aos problemas deste campo.
Dentre os alinhados com esta perspectiva crítica, Ayres (2006)
se apresenta como um dos autores que afirma que, para se transformar as
práticas de saúde, faz-se necessário que os critérios biomédicos utilizados
na avaliação e validação das ações de saúde sejam entendidos de forma mais
crítica, pois estes se revelam insuficientes diante de condições de saúde tão
complexas. Assim, o autor ressalta a importância do ‘cuidar’ nas práticas de
saúde, em que ocorre “o desenvolvimento de atitudes e espaços de genuíno
encontro intersubjetivo e de exercício da sabedoria para a prática da saúde”.
(AYRES, 2006, p 56). Estas práticas, embora tenham as dimensões técnicas
como base, não podem se limitar a nelas, pois precisam estar interligadas
a outras dimensões do adoecer. Assim, uma condição básica das ações de
saúde, no sentido do cuidado, é a capacidade de diálogo, que deve estar
presente no momento do encontro entre os sujeitos que ocupam lugares
diferenciados neste cenário: os profissionais da saúde e os usuários. Esta
capacidade de escuta e diálogo está relacionada, segundo Ayres (2006, p.
70), a um dispositivo presente nas propostas de humanização da saúde: o
acolhimento. Este deveria estar presente em todos os momentos em que
usuários interagem com profissionais de saúde/serviço de saúde.
O acolhimento é um dispositivo de atenção humanizada que se
caracteriza por aproveitar todos os momentos de encontro para que ocorra
a escuta do usuário, nos espaços de interação entre ele e os profissionais de
saúde. Durante estes encontros entre os usuários e os profissionais, devem
ocorrer a valorização da dimensão dialógica e estar presente “um autêntico
interesse em ouvir o outro”, para que as ações de saúde sigam na direção
do cuidado. Para a efetivação deste cuidado, é preciso que haja, além do
interesse, a decisão de escutar o outro, atitude que é compreendida a partir
da responsabilidade assumida por um cuidador no momento do cuidado e
a partir da própria construção do vínculo “usuário-serviço”. (AYRES, 2006,
p.70). Segundo assinala Ayres (2006), além do acolhimento, outra questão
necessária à efetivação do cuidado e intimamente relacionada à “decisão
de escutar” é a responsabilidade para com o outro. Esta se torna relevante
para o cuidado em vários níveis, desde a construção do vínculo profissional/

317
serviço–usuário até a gestão dos serviços. Ao tomar a decisão de escutar o
outro, o profissional de saúde assume a responsabilidade de um cuidador, o
que permite a ele fazer algo além do que é preconizado tecnicamente.
Alguns destes aspectos da integralidade do cuidado também são
abordados por Merhy (2002), quando este se refere ao trabalho em saúde
que não pode ser apreendido pela lógica dos equipamentos e dos “saberes
tecnológicos estruturados”, pois suas tecnologias de ação operam como
tecnologias de relações, de encontros e subjetividades. Estas tecnologias são
classificadas como leves, pois podem ser exemplificadas pelas “tecnologias
de relações do tipo de produção de vínculo, autonomização, acolhimento...”;
como leves-duras, “no caso de saberes bem estruturados que operam no
processo de trabalho em saúde”; e como duras, que seriam os “equipamentos
tecnológicos, as normas e estruturas organizacionais”.
Para o mesmo Mehry (2002), a tecnologia leve do trabalho vivo em
ato na saúde é efetivado através do

processo de produção de relações intercessoras em uma das


suas dimensões-chave, que é o seu encontro com o usuário
final, que representa, em última instância, necessidades de
saúde como sua intencionalidade [...]. É neste encontro do
trabalho vivo em ato, com o usuário final, que se expressam
alguns componentes vitais da tecnologia leve do trabalho em
saúde: as tecnologias articuladas à produção dos processos
intercessores, as das relações que se configuram, p.ex., por
meio das práticas de acolhimento, vínculo, autonomização,
entre outros”. (MEHRY, 2002, p.50).

Outro autor dedicado ao aspecto conceitual da temática da


integralidade, Mattos (2006) apresenta três conjuntos de sentidos: a
integralidade como princípio orientador das práticas dos profissionais de
saúde, o sentido da integralidade relacionado à organização do trabalho
nos serviços de saúde e, por último, o sentido que se relaciona às respostas
governamentais a determinados problemas de saúde e/ou a necessidades
de grupos populacionais específicos. Para este autor, a integralidade se
apresenta como um “valor a ser sustentado e defendido nas práticas dos
profissionais de saúde” (MATTOS, 2009, p. 52) e que se expressa na forma
como estes profissionais respondem aos usuários que os procuram. No

318
sentido da percepção mais abrangente destas necessidades, o autor sugere
que a integralidade pode ser concebida como uma das dimensões das
práticas de saúde. Esta assume a forma de encontro entre o profissional de
saúde e o usuário, indicando ser a integralidade, em sua quase totalidade,
de responsabilidade do profissional e, por consequência, de suas posturas.
Nesta mesma direção, Cecilio (2009, p.119) sugere que a integralidade da
atenção (do cuidado) necessita ser percebida a partir de duas dimensões,
em que a primeira é denominada integralidade focalizada, que resulta dos
diversos saberes da equipe multiprofissional de saúde, no encontro com o
usuário, nos espaços “concretos e singulares dos serviços de saúde”.
Tomando em consideração as concepções de integralidade em
saúde assinaladas, principalmente no que se refere ao usuário portador de
tuberculose em Tratamento Diretamente Observado, a realização do cuidado
integral ao usuário na Estratégia Saúde da Família pode se efetivar de
várias maneiras. Muniz, Villa e Pedersoli (1999) salientam a valorização do
comparecimento do profissional ao domicílio do usuário, pois os encontros
com o usuário possibilitam o conhecimento de sua realidade e condição de
vida, além da realização de outras atividades com sua família, em termos
de necessidades de saúde. Muniz, Villa e Pedersoli (1999, p.38) destacam
que “estar presente” e “participar do cotidiano” é parte de uma tentativa de
construção de uma nova forma de contato dos profissionais com os usuários
em que aqueles são responsabilizados por aquele cuidado, estabelecem vínculo
e os acolhem. Neste momento e espaço, as relações com os usuários e suas
famílias se “tornam menos desiguais, exigindo que o profissional adote uma
nova postura em relação ao paciente, tais como ouvir, conhecer, estar aberto
ao diálogo”. Neste sentido, as propostas de humanização e integralidade no
cuidado à saúde, referidas por Ayres (2005, p. 107), apontam, em tese, a
Estratégia de Saúde da Família como uma nova estrutura que possibilita as
articulações intersetoriais e assim promove a entrada de novos elementos
no âmbito da assistência, de forma que haja “sensibilidade para os aspectos
socioculturais do processo saúde-doença”. O cuidado a que Ayres (2004;
2006) se refere e que deveria estar presente nas ações da saúde pública, no
entanto, ainda são incipientes, quando se trata das questões relativas ao
controle da TB.
A mera valorização das questões técnicas no cuidado ao usuário
portador de TB pode dar um aspecto reducionista à realização do Tratamento

319
Diretamente Observado, quando se entende que apenas a supervisão da
tomada da medicação é relevante para o controle da TB. Considerando
este aspecto, Silva et al. (2007) afirmam que, mesmo entendendo que este
tratamento é uma ação pontual, ele faz parte do processo de descentralização
das ações de controle da tuberculose e, neste sentido, espera-se que as
equipes de saúde da família incorporem, em seus territórios, além da
supervisão medicamentosa, as ações de diagnóstico, o acompanhamento ao
usuário e a avaliação dos comunicantes e das ações educativas. Entretanto,
não são apenas os profissionais de saúde os implicados na construção
reducionista do Tratamento Diretamente Observado na Atenção Primária à
Saúde. Segundo indicam Barreto et al. (2012), há também um reducionismo
por parte dos gestores que conduz a uma fragilização do cuidado integral
à pessoa com tuberculose, reforçando a exclusão social e um modelo de
atenção baseado nos aspectos biomédicos. A gestão tem papel importante na
construção e ordenação de estratégias que incentivem o comprometimento
dos profissionais de saúde na produção do cuidado aos usuários que se
encontram sob sua responsabilidade.

Rocinha: o campo da pesquisa e a violência cotidiana no


território

Trata-se de estudo qualitativo, de caso único, realizado entre out/2014 a


fev/2015, no CMS Dr. Albert Sabin, no Rio de Janeiro70. Na concepção de
Flick (2009), a abordagem qualitativa visa a captar o mundo que se encontra
fora dos contextos especializados, para melhor compreender, descrever
e explicá-los. A pesquisa qualitativa no trabalho de campo se mostra
importante, ao possibilitar não só uma aproximação com o objeto do estudo,
mas um diálogo com a realidade dos atores sociais. (NETO, 1994). Esta
Unidade foi selecionada por ser a unidade mais antiga da Rocinha a realizar
o Tratamento Diretamente Observado da TB, tanto em domicílio como
na própria unidade de saúde, possuindo seis equipes de saúde da família.
70 Como amplamente difundido no campo da saúde prevalece a exigência de submissão
dos projetos de pesquisa aos Comitês de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, parecer nº.
610.621. Os participantes do TDO (profissionais de saúde, usuários portadores de TB e seus
familiares) foram informados sobre as questões éticas envolvidas, por meio do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido e sua identidade preservada.

320
Diferentes estratégias metodológicas foram utilizadas: análise documental
(de documentos oficiais e gerenciais) do PCT, no Centro Municipal de
Saúde (CMS), e documentos usados na ESF para os portadores de TB em
TDO; observação direta de TDO (nos domicílios e na USF); entrevistas
semiestruturadas e gravadas (11 profissionais de saúde, 10 usuários e cinco
familiares) e, em termos complementares, um diário de campo para registro
de informações relevantes. Os dados produzidos permitiram identificar as
concepções predominantes sobre cuidado na TB, conjugadas aos referenciais
teóricos sobre integralidade do cuidado, partindo-se das categorias temáticas
do acolhimento, vínculo e da relação dialógica entre os sujeitos da ação do
cuidar. Três núcleos temáticos foram identificados: 1) a relação de vínculo
usuário-profissional de saúde; 2) o TDO enquanto prática de cuidado; e 3) o
lugar da família no cuidado aos portadores de TB.
Em áreas de favela, comumente ocorrem situações de violência
armada no território, mudando a rotina e a forma com que o TDO é realizado.
Os tiroteios regulares impedem a realização do TDO e nele interferem
de forma negativa. Os profissionais de saúde não conseguem chegar às
residências dos usuários, o que pode prejudicar, além do tratamento da
TB, outras atividades pertinentes à ESF. Nesse contexto, o usuário também
não consegue sair de seu domicílio e chegar até a uma unidade de saúde,
como Soares et al. (2013) observaram, por exemplo, em relação aos anos
2000-01, quando questões sociais e violência urbana foram identificadas
como fatores limitantes na execução do TDO. Por causa da recorrência dos
momentos de violência armada no território adscrito à unidade de saúde, os
Agentes Comunitários de Saúde (ACS) se valem de uma certa estratégia para
realizar o TDO, de modo que o usuário não fique sem a medicação. Os ACSs,
ao mesmo tempo em que moram no território de uma unidade de saúde,
também são profissionais de saúde que realizam seu trabalho no território
em que residem. Este conhecimento do território dá ao ACS elementos para
que tome decisões voltadas a garantir o cuidado ao usuário, como referem
abaixo uma Agente Comunitária de Saúde e uma usuária:

eu deixo sempre uma reserva, um comprimido de emergência,


para caso não dê para subir, eu ligo para ela e ela toma. Caso
quando a área estiver impossibilitada de subir, aí ela toma. Aí
não tendo isso, eu vou todo dia. (ACS 3)

321
no meio do tiroteio ninguém vinha trazer, e eu é que ia ter que
ir, eu “bala de aço” (queria dizer peito de aço) [...] a diretora
manda vocês ficarem presos aí dentro e o povinho tem que ir
no meio da bala [...]. (Usuária 8, de 25 anos)

As estratégias e o grupo de estudo

Foram realizadas 26 (vinte e seis) entrevistas, que corresponderam a 5


(cinco) familiares dos usuários portadores de TB que se encontravam em
TDO, 10 (dez) usuários portadores de TB em TDO domiciliar ou na unidade
de saúde e 11 (onze) profissionais de saúde (ACSs e enfermeiros). Entre os
familiares, 4 (quatro) eram do sexo feminino e 1 (um) do sexo masculino. A
idade variou entre 39 e 78 anos e, quanto ao grau de parentesco, eram duas
avós, um pai, uma irmã e uma mãe. Dos cinco familiares, apenas um referiu
já ter tido TB anteriormente e quatro moravam na mesma residência em que
moram seus familiares sob tratamento de TB. Quanto aos próprios usuários
portadores de TB e em TDO, foram entrevistados 6 (seis) do sexo masculino,
com idade entre 18 e 52 anos, e 4 (quatro) do sexo feminino, com idade entre
21 e 36 anos. Destes 10 (dez) usuários, 4 (quatro) tiveram seus familiares
participando do estudo.
No que concerne aos profissionais de saúde, dos 11 (onze)
entrevistados, 02 (duas) são enfermeiras e 9 (nove) são ACSs, ocorrendo a
participação de profissionais de todas as equipes desta unidade de saúde. Dos
9 (nove) ACSs, 5 (cinco) são do sexo feminino e 4 (quatro) do sexo masculino.
Entre todos os profissionais, o que está com menos tempo de trabalho nesta
unidade é uma das enfermeiras, que trabalha nesta unidade de saúde há
pouco mais de um ano.
A descrição das práticas de cuidado no TDO da TB baseou-se nos
elementos coletados nas três etapas da coleta de dados, a saber: na observação
direta do TDO, na análise documental e nas anotações feitas no diário de
campo. Essas técnicas permitiram entender o papel do setor da farmácia e
da farmacêutica nas práticas de cuidado, a dinâmica de gerenciamento da
direção da USF e de sua equipe administrativa, além da organização interna
das equipes de saúde da família, que tem o enfermeiro como o responsável
junto ao ACS pelo “cuidado normativo” e acompanhamento dos usuários
portadores de TB. As práticas de cuidado do TDO são exercícios que estão

322
incluídos nas ações de controle da TB na APS, que seguem as normativas
do PNCT e as normas do PCT da SMS-RJ, através das Linhas de Cuidados
da Tuberculose. No CMS Dr. Albert Sabin, além da equipe de direção da
unidade, que coordena as ações de controle da TB, uma das enfermeiras das
seis equipes de saúde da família é a responsável por conduzir, junto às demais
equipes, a Linha de Cuidados da TB.
A observação direta do TDO e o diário de campo puderam contribuir
com outras questões relevantes para a descrição das práticas de cuidado do
TDO da TB. Quando o TDO é realizado na unidade de saúde, os usuários
se apresentam no guichê da sua equipe e o ACS responsável pelo TDO é
chamado, caso esteja na unidade; ou o próprio ACS que está atendendo no
guichê realiza o TDO ali mesmo, ou no corredor, próximo ao filtro de água.
O TDO (na USF ou no domicílio) é realizado quase que exclusivamente pelos
ACSs, conforme a residência dos usuários, de acordo com a lógica da ESF e a
adscrição do território da equipe de saúde da família e da micro área do ACS.

Análise documental

A análise dos documentos também foi utilizada na identificação dos


portadores de TB, com base nos critérios de inclusão/exclusão dos sujeitos
no estudo, sendo consultados os seguintes documentos:
 Livro de Registro de pacientes e acompanhamento de tratamento
dos casos de tuberculose – Programa Nacional de Controle de Tuberculose:
nome, número do SINAN, resultados da 1ª. e da 2ª. baciloscopia, resultado
do Raio X de tórax, resultado do exame Anti-HIV, forma clínica, tipo de
entrada, esquema do tratamento, data do início do tratamento, forma
de tratamento, baciloscopias de acompanhamento, número de contatos
(pessoas que coabitam com os pacientes com TB) e a quantidade daqueles
que foram examinados na unidade de saúde e a equipe de saúde e o ACS da
micro área no campo das observações.
 Livro de Registro e Investigação de Contatos de Casos de Tuberculose.
É utilizado um livro por equipe de saúde. Variáveis observadas: número do
SINAN, prontuário, nome do caso índice, data do início do tratamento, nome
do contato, idade, sexo, grau de parentesco, PPD (aplicação e resultado),

323
Raio X (aplicação e resultado), 1ª. BAAR (aplicação e resultado), 2ª. BAAR
(aplicação e resultado), Teste Anti-HIV (aplicação e resultado), destino
(TDO-tratamento TB, QUI-Quimioprofilaxia, REC-recusa e ORI- orientação)
e data final.
 Livro de Registro de Sintomáticos Respiratórios – Secretaria do
Estado de Saúde do Rio de Janeiro. É utilizado um livro por equipe de saúde.
Variáveis observadas: número de ordem, data de identificação do sintomático
respiratório, nome completo (sem abreviações), idade, sexo, endereço,
resultado do exame de escarro para diagnóstico (datas dos resultados da 1ª.e
2ª amostras) e observações (ACS e micro área).
 Ficha de Notificação/Investigação de tuberculose (Sistema de
Informação de agravos de Notificação). Neste documento específico, foi
observado o fluxo dentro da USF.
 Livro de Registro de pacientes que se encontram em Quimioprofilaxia
(documento específico do CMS Dr. Albert Sabin). É utilizado um livro
para todas as equipes. Variáveis observadas: número de ordem, nome
completo (sem abreviações), idade, data de nascimento, equipe de saúde do
usuário, contato ou não de caso índice, data de início e alta do tratamento,
peso, prescrição da dose; e, nas observações, também o nome do ACS da
micro área.
 Prontuário Eletrônico do paciente e Cartão espelho de
acompanhamento da realização do Tratamento Diretamente Observado
(TDO). Variáveis observadas: Registro da confirmação da TB, número do
SINAN, data de Início do tratamento, tipo de entrada, resultado do raio X de
tórax, form. de tratamento, esquema de solicitação do teste rápido de HIV,
resultados da 1ª. e da 2ª. amostra de baciloscopia, forma clínica, contatos
examinados e solicitação de exames, registro das consultas médicas, registro
das consultas do enfermeiro, registro de acompanhamento do ACS – ficha
B de TB, registro diário do TDO, registro dos demais membros da equipe
de saúde.
Na análise documental, foi observado como os profissionais/equipes
de saúde utilizam documentos recomendados pelo PNCT e PCT da SMS-RJ.
Conforme descrito na metodologia, os documentos e sistemas analisados
foram: Livro de Registro de pacientes e acompanhamento de tratamento dos

324
casos de tuberculose – Programa Nacional de Controle de Tuberculose; Livro
de Registro e Investigação de Contatos de Casos de Tuberculose, Livro de
Registro de Sintomáticos Respiratórios – Secretaria do Estado de Saúde do
Rio de Janeiro; Ficha de Notificação / Investigação de tuberculose (Sistema
de Informação de agravos de Notificação), Livro de Registro de pacientes
que se encontram em Quimioprofilaxia (documento específico do CMS
Dr. Albert Sabin) e Prontuário Eletrônico do paciente e Cartão espelho de
acompanhamento da realização do Tratamento Diretamente Observado
(TDO). Alguns desses documentos, todas as equipes utilizam e possuem
um exemplar por unidade de saúde do Livro de Registro de pacientes e
acompanhamento de tratamento dos casos de tuberculose (“Livro Verde da
TB”), do Livro de Registro e Investigação de Contatos de Casos de Tuberculose
e do Livro de Registro de pacientes que se encontram em Quimioprofilaxia
(documento específico do CMS Dr. Albert Sabin). Entre todos esses
documentos, o que estava mais completo e atualizado era o Livro de registro
de pacientes, mesmo faltando alguns dados que devem ser inseridos após o
início do tratamento. Os demais documentos apresentaram um déficit maior
no preenchimento.
Os outros registros, com as exceções da Ficha do SINAN, do
prontuário eletrônico e do cartão espelho, são individualizados por equipe e,
desta forma, estão em poder das mesmas, em suas salas. Nestes documentos,
os registros das informações apresentaram uma frequência menor que
nos documentos gerais e uma importante desatualização dos dados. Além
destes achados, também foi possível verificar que cada equipe se organiza
internamente de uma forma diferente para conseguir acompanhar os seus
usuários portadores de TB; uns usam pastas individualizadas por usuários,
outros ACSs tinham pastas individuais com todos os registros. Outro fato
que despertou a atenção foi o registro no cartão espelho do usuário. Este
documento deve ser atualizado diariamente, à medida que o TDO é realizado
e deve ficar ao alcance de toda a equipe para possível conferência quanto às
doses de TDO que o usuário já fez. Foi observado que não há uniformidade
na conduta dos ACSs com o cartão espelho, pois a maioria fica na sala da
equipe; mas alguns profissionais guardam seu material e muitos se achavam
desatualizados. O Prontuário Eletrônico (PE) é o sistema de registro de
todas as atividades realizadas na ESF no MRJ. Todos os procedimentos
que os profissionais realizam precisam ser registrados no PE, pois são

325
contabilizados para a produtividade do profissional, da equipe e da unidade
de saúde, além de ser a fonte de informações sobre as famílias e os usuários.
O seu preenchimento pode ser realizado nos computadores das equipes ou
nos computadores da sala dos agentes de saúde. Todos os profissionais que
participaram do estudo utilizam o PE e registram as ações pertinentes à TB,
como a visita domiciliar para o TDO, já que há um campo específico para os
registros do acompanhamento da TB.

Dimensões das Práticas de Cuidado

Construção do vínculo usuário-profissional de saúde

A ESF traz a possibilidade de aproximação entre o serviço de saúde/


profissional e o usuário e suas necessidades, em contexto de diálogo entre
ambos os sujeitos (profissional de saúde e usuário), onde são utilizadas
ferramentas e tecnologias em saúde, como o vínculo (VIEIRA et al., 2008).
No tratamento da TB, particularmente no TDO, o vínculo tem um papel
de destaque, pois é através deste contato diário e do grau deste contato, a
depender do comprometimento do profissional ou de sua responsabilização
pelo cuidado do usuário e de sua família, que as ações de controle da TB
e as ações voltadas para um cuidado integral têm a possibilidade de se
concretizarem. Neste sentido, Campos (2003) chama a atenção para o
vínculo como circulação de afeto entre as pessoas, o que resulta da disposição
de acolher de alguns e da decisão de solicitar apoio de outros. Esse vínculo é
propiciado desde o primeiro contato estabelecido, que pode ser o diagnóstico,
uma ação educativa, o início do tratamento ou busca ativa.
Tanto na visão dos profissionais de saúde quanto dos usuários, o
vínculo é tido como algo muito importante na relação. Uma das usuárias
reconhece que se sente acolhida e que pode confiar na sua equipe de saúde,
o que indica que o TDO é um indutor de fortalecimento das relações entre
os usuários e os profissionais de saúde. O vínculo é construído conforme
a disponibilidade dos profissionais, dos usuários e dos familiares e pode
ser traduzido de forma positiva para o cuidado integral, transcendendo as
questões relativas à doença da TB; ou pode ser traduzido de forma negativa,
como uma relação truncada e não receptiva. A demonstração de como o
vínculo vem se construindo com os profissionais de saúde da equipe de saúde

326
surge nos depoimentos dos usuários que expressam a ideia de que a equipe
passou ‘muita confiança’ e foi ‘super bem tratada’ e pelo fato de os usuários se
sentirem ‘à vontade’, a exemplo da Usuária 7, de 36 anos.
Esta sensação de confiança e de uma “relação de mão dupla” entre
usuário e profissionais de saúde também foi relatada no estudo de Nogueira et
al. (2012), onde a satisfação com a atenção, principalmente dos enfermeiros e
ACS, foi observada nos discursos dos usuários. Durante o trabalho de campo,
essa relação de confiança e compromisso entre profissionais e usuários foi, de
forma recorrente, atribuída sobretudo à proximidade que o profissional de
saúde tem com o contexto de vida do usuário. Um dos profissionais de saúde
relatou que também se sente valorizado quando um usuário se manifesta
positivamente, reconhecendo a importância do trabalho que ele desenvolve.
Uma das formas como o profissional percebe este vínculo com o usuário é
quando este o procura por alguma necessidade de saúde e assim ele tem a
chance de fazer a diferença positivamente. Isso não acontece somente por
causa do tratamento da TB, mas também pela possibilidade de se agir sobre
outras necessidades de saúde que o usuário possa estar apresentando. Ambas
as situações foram referidas por profissionais participantes do estudo,
conforme os discursos a seguir:

[...] e eu já tive relatos de pacientes que falaram isso para mim:


eu só estou tomando, porque você está aqui. Então eu me senti
muito importante, naquele momento. (ACS 4)

Porque o paciente chega e fala para você. Esse contato diário


te mostra milhões de problemas que a família tem e acaba te
mostrando várias coisas. E aí você acaba fazendo outras ações
realmente. (Enfermeira 6)

Ao entrar em contato com os diferentes problemas enfrentados pelo


usuário ou mesmo de sua família, os profissionais interagem com a dinâmica
de vida do usuário e com os diferentes fatores que facilitam ou dificultam
o seu tratamento. De qualquer forma, parece ser marcante para o usuário
a presença do profissional fora do espaço do serviço e mais próximo do
cotidiano de vida do usuário e com postura mais ativa de promoção de saúde.
No estudo de Nogueira et al. (2012), tanto o ACS como o enfermeiro foram os
profissionais que se destacaram pelo fato de os usuários desenvolverem uma

327
relação maior de vínculo. Nesta perspectiva, cabe ressaltar que geralmente é
o ACS quem realiza o TDO (no domicílio ou na USF); ou seja, é o profissional
que passa a maior parte do tratamento em contato com o usuário. Ele tem
a oportunidade de fortalecer o seu vínculo (e o do serviço de saúde) com o
usuário e perceber outras necessidades de saúde que precisam ser atendidas.
O trabalho de campo mostrou que a atitude passiva, durante o
tratamento, por parte de alguns usuários portadores de TB, foi mencionado
pelos profissionais de saúde como sendo um aspecto muito negativo do TDO,
pois o usuário precisa contribuir e ser mais participativo no tratamento, o
qual não se restringe à tomada da medicação. Cabe destacar que o tratamento
para a TB é longo (no mínimo seis meses) e as medicações podem causar
reações adversas bastante desagradáveis, além do aspecto da apresentação
dos comprimidos, que é um dificultador para a ingestão. Esses são fatores
que podem desestimular o usuário a dar continuidade ao tratamento, o que
faz do profissional de saúde, em especial o ACS, um aliado e parceiro no TDO.
Entretanto, esse papel do ACS pode ser confundido pelo usuário que tem
atitudes passivas e, por vezes, agressivas, quando o profissional não chega
no horário, no decorrer do tratamento, conforme o relato de um profissional
sobre como se vê realizando o TDO da TB:

se não fosse a presença do agente ali, como despertador deles,


eles não teriam essa vontade de continuar o tratamento,
principalmente porque se sentem melhores. [...] Eu não
vejo como sendo uma babá deles. Eu vejo como sendo aqui
uma força do dia a dia. Que é um tratamento muito longo e
desestimulante. (ACS 4)

desvantagem que eu vejo assim é que o paciente pode ficar um


pouco acomodado, aquele remédio em casa [...] às vezes quando
a gente não consegue ir, eles vêm com uma agressividade.
(ACS 1)

Esta postura de agressividade também é compartilhada pelo usuário


portador de TB, que se mostra insatisfeito com o fato “de ter que ir todo dia
no posto beber o remédio” na unidade de saúde, pois desagrada o usuário,
“Pô já estava enchendo o saco”, conforme se queixa a usuária 9, de 21 anos,

328
mesmo que esta modalidade de TDO (na unidade de saúde) tenha sido uma
escolha em conjunto com o ACS.
Supõe-se que o vínculo construído entre o profissional de saúde e o
usuário portador de TB traga benefícios para ambos, ou seja, deve ser positivo,
como menciona Campos (2003); mas isto nem sempre se concretiza. A
insatisfação do usuário decorre de uma relação de vínculo fragilizada por uma
tecnologia leve do trabalho em saúde que pode contribuir para a construção
da autonomização deste usuário, segundo argumenta Mehry (2002). A APS
apresenta, como uma de suas diretrizes, estimular o usuário a participar
na construção do cuidado de sua própria saúde e a da coletividade do seu
território na busca pela ampliação de sua autonomia para o enfrentamento
dos determinantes e condicionantes de saúde (BRASIL, 2012). Nesta
direção, o profissional de saúde poderia encontrar na realização do TDO uma
oportunidade para estimular o autocuidado, o ato de gestão do cuidado, o
que é facilitado pela relação do vínculo. O profissional de saúde, sem dúvida,
desempenha um papel fundamental nesse processo de construção do vínculo
em busca também da autonomização desses usuários. No entanto, para
que estas diretrizes se realizem, faz-se necessário que os usuários sejam
vistos como sujeitos do cuidado e não meros “receptores” ou espectadores
do mesmo.

O cuidado integral e a autonomia do sujeito

Alguns profissionais de saúde conseguem fazer do tratamento da TB um


momento oportuno para cuidar da saúde do usuário em tratamento e da sua
família. Estes não seguem apenas as recomendações oficiais do PCT, como a
visualização da tomada da medicação ou a investigação dos comunicantes, mas
se preocupam também com outras necessidades que eles possam apresentar
durante o tratamento. Tal acontece porque o olhar do profissional que faz o
TDO da TB diariamente na residência do usuário e da sua família se amplia
por meio de seu contato e da interação, neste contexto. Esta percepção esteve
presente na narrativa dos profissionais. Outras necessidades, para além da
TB, podem ser percebidas, o que acaba resultando nos encaminhamentos
pertinentes às demandas apresentadas, para dentro ou para fora da unidade
de saúde. Os depoimentos dos usuários apontam a satisfação de terem outras

329
demandas relacionadas à sua saúde atendidas no período de tratamento para
TB, reconhecendo-se que o acesso às outras ações de saúde foi facilitado,
conforme se ilustra a seguir:
[...] a gente consegue observar muitas coisas, principalmente
crianças, cadernetas de vacina desatualizadas. Já encontrei
casos de crianças com 1 ano sem registro, sem vacina nenhuma,
entendeu? (ACS 4)

[...] o acompanhamento é ótimo. Passa mais coisa para fazer


assim. Já tem até dentista marcado, fiz preventivo já também.
(Usuária 2 de 33 anos)

Aproveitar a visita domiciliar do TDO para modificar o olhar do


profissional de saúde, para ampliar suas ações de saúde e avaliar as condições
de saúde de toda a família, também foi apontado por Muniz et al. (1999),
quando alguns profissionais se referiram a mais esta finalidade do tratamento
supervisionado da TB. Além de seus componentes técnicos, esta prática
aproxima o profissional do usuário e de sua família, o que permite conhecer
um pouco das suas condições de vida e de saúde; permite também priorizar o
atendimento a essa família, de acordo com as vulnerabilidades apresentadas,
no acesso às ações de saúde ofertadas por aquele serviço de saúde.
Tanto os profissionais de saúde como os usuários relacionaram a
interferência do TDO na rotina dos usuários principalmente ao horário de
sua realização, pois ele ocorre de acordo com o horário de funcionamento da
unidade de saúde e não com o horário de trabalho dos usuários portadores
de TB. Em princípio, o TDO deve ser realizado em comum acordo entre os
profissionais e os usuários; entretanto, algumas normas estabelecidas pelo
PCT e pela própria SMS-RJ dificultam esse acordo, já que a medicação anti-
TB deve ser ingerida pela manhã, em jejum, e o horário de funcionamento
das unidades de saúde nem sempre são ajustadas às atividades dos
usuários. Esse possível desencontro de horários pode dificultar a adesão ao
tratamento da TB e até comprometer a relação com o usuário e a sua família.
Esta incompatibilidade de horário entre a unidade-profissional e o usuário
foi considerada pelo profissional como um ponto negativo que dificulta a
realização do TDO da TB. No relato de uma usuária, também se percebe a
indignação com o horário em que o profissional de saúde chegava à sua casa

330
para lhe entregar a medicação anti-TB, exigindo que ela ainda estivesse em
jejum. Em decorrência da rotina de acordar muito cedo, o horário em que o
TDO era realizado não era adequado às necessidades e à realidade da usuária.
Neste sentido, tanto a adesão ao tratamento como a relação construída com
o profissional de saúde poderiam ser prejudicados.

Para as pessoas que trabalham e a unidade, ela tem um horário


de funcionamento e você tem um horário de trabalho, que é de
8 da manhã às 17 horas. O que acontece, nesse horário de 8 da
manhã às 17 horas, as pessoas estão trabalhando ou estão no
caminho do trabalho, que é a questão do fluxo sair do trabalho
até a residência ou da residência até o trabalho. (ACS 9)

[...] é [...] porque eu acordo cedo, aí ficava com fome e tinha que
esperar 9 ou 10 horas, às vezes até quase meio dia pra tomar o
remédio para poder comer. (Usuária 8 de 26 anos)

Da mesma forma que identificamos as interferências do TDO na


rotina dos usuários e seus familiares, no estudo de Vendramini (2001) o
tratamento supervisionado foi descrito como um elemento que pode impedir
ou interferir na capacidade dos indivíduos, que se encontram em tratamento,
de realizar as atividades do cotidiano, trazendo assim uma mudança no ritmo
da sua vida. Esta interferência é compreendida como um aspecto negativo,
como pode ser observado no depoimento anterior. O fato de o encontro do
TDO ser diário também incomoda os usuários, já que estes precisam estar
disponíveis tanto para comparecer à unidade de saúde como para receber o
profissional de saúde em seu domicílio. Esta “obrigação diária”, pelo menos
de segunda à sexta-feira, confere ao tratamento uma conotação ruim, mesmo
que seja apenas pelo período de duração do tratamento. Este incômodo é
nítido no depoimento de um usuário:
Eu fico restrito [...] Tem que acordar todo dia a essa hora para
vir tomar o remédio. Porque as vezes eu saio[...]. Tenho que
voltar no domingo por causa do remédio na segunda.” (Usuário
6, de 25 anos)

331
Entretanto, o TDO pode ser incorporado à rotina do usuário e assim
ele consegue fazer o tratamento e manter as suas atividades, sem maiores
complicações, adaptando-se bem à nova rotina e às medicações, como
foi relatado por um familiar. Em outro caso, diferentemente do usuário
6, identificamos que não houve mudança no seu horário de acordar e o
profissional de saúde adaptou o TDO de acordo. Esta adaptação resulta em um
arranjo no qual quem vê a tomada da medicação pode não ser o profissional,
mas o familiar que está acompanhando o usuário:
Eles vêm todo dia aqui dar o remédio. Quando ele não vem
no horário certo, geralmente ele deixa aqui. Eu acordo tarde,
minha avó pega o remédio, traz. Aí, quando eu acordo, tomo.
(Usuário 10, de 18 anos)

O Pedro fez esse tratamento, foi muito ótimo. Porque o Pedro


reagiu muito bem, porque do jeito que o Pedro fazia, tinha
as atividades dele; ele tem as aulas de dança dele por aí. Eu
ficava agoniada. [...] Pedro não teve nenhuma recaída, não
teve nenhuma, graças a Deus. Continuou sempre melhorando,
melhorando, até chegar agora. (Avó 5, de 75 anos)

[...] a gente marca o melhor horário para ir na casa do paciente,


para também não atrapalhar a vida dele. (ACS 3)

Outras interferências relevantes nas rotinas dos usuários estão


relacionadas ao cuidado com a própria saúde, em que alguns hábitos como
a ingestão de bebida alcóolica e o fumo são desaconselháveis, durante o
tratamento da TB. No período do tratamento, principalmente, há necessidade
de mudança de hábito, o que muitas vezes é difícil para os usuários, como
está explícito no relato a seguir:
[...] ah, eu fiquei mal por ficar, por ficar[...] como é que se diz,
tipo preso. Não ter mais a liberdade que eu tinha de andar, de
beber cerveja, de final de semana. (Usuário 6, de 25 anos)

O profissional de saúde deve buscar o máximo de alternativas


possíveis para que o TDO seja realizado, tendo em vista que se mantenham,
depois do término do tratamento da TB, o vínculo, a relação de diálogo, a

332
responsabilização e a corresponsabilização do cuidado, que se estabelecem
nestes momentos. O TDO tem prazo para terminar, mas os “atos de cuidar”
que serão construídos farão parte desta relação entre os sujeitos, entre o
profissional e o usuário. A lógica para fazer o TDO da TB, ou para a escolha
da equipe de saúde responsável pelo acompanhamento da família, segue a
diretriz da ESF, em que uma equipe de saúde da família é responsável por
uma determinada população adstrita a um certo território. Este território é
dividido em seis micro áreas, estando cada uma delas sob a responsabilidade
de um ACS. A responsabilidade de realizar o TDO segue esta lógica de trabalho
da ESF; ou seja, não há opção de escolha da equipe de saúde, de quem será o
seu ACS ou quem fará o seu TDO da TB, como relata um usuário:
Não (não escolheu com quem eu ia tomar o remédio). Isso foi
de [...] de áreas. Cada um tem a sua área, então não tem como
escolher quem vai entregar ou não. (Usuário 1 de 19 anos)

Se houvesse a possibilidade de escolha da equipe de saúde ou do ACS,


para a realização do TDO da TB, talvez os encontros entre os sujeitos fossem
mais promissores, já que haveria o respeito pelos desejos e vontades de
ambas as partes, durante as práticas de cuidado. Cumpre ressaltar que, nas
situações em que não é valorizada a inclusão do usuário na produção do seu
próprio cuidado, nem o modelo de supervisão diária da tomada da medicação,
como no TDO da TB, poderá sair prejudicada a adesão ao tratamento, o que
reflete o aspecto da medicalização na busca da cura da TB, como se percebe
no discurso de um profissional de saúde, a seguir:
A ACS fulana pedia para abrir a boca, para ver se ela tinha
tomado mesmo. Eu não me lembro o nome da paciente, mas
quando ela faleceu foi achado na casa dela um saco de remédio.
Quer dizer, ela não tomava, ela só tomava, quando a ACS ia lá
na casa. Isso me impactou bastante. (ACS 1)

A partir deste relato podemos refletir, com base na literatura


(ALVES et al., 2012), que a participação do usuário no seu tratamento é
fundamental para a efetivação das práticas de cuidado, bem como o usuário
é assim reconhecido como sujeito do seu projeto terapêutico, o que resulta na
integralidade do seu cuidado.

333
O apoio da família ao usuário portador de TB

Segundo ressalta e valoriza o profissional de saúde, a família é fundamental


para a continuidade e o sucesso do tratamento do usuário portador de TB.
Conforme já se viu, anteriormente, os familiares se interpõem na tomada
do medicamento, em virtude das interferências do cotidiano no horário
de tratamento, apresentando-se como alternativa ao cumprimento do
mesmo. A família desempenha o papel de parceira do profissional de saúde,
para o cumprimento do TDO da TB. Desta forma, o cuidado com o usuário
é compartilhado com os membros da família. A ausência de um familiar
é relatada até como “um problema” para o ACS, pois, de acordo com sua
experiência, o usuário vai dar mais trabalho durante o seu tratamento,
se a família não estiver presente para lhe dar suporte. O papel da família
apoiadora é um consenso entre todos os sujeitos, conforme se verifica nos
seguintes depoimentos:
Porque eu acho que você tendo uma pessoa da família que se
preocupa, sempre vai estar chamando a atenção, ajudando,
supervisionando e se for uma pessoa sozinha, dependendo se
ela não tiver aquela cabeça, aquela personalidade, “eu quero me
cuidar, eu quero me curar”, o ACS vai ter mais trabalho, vai ser
mais complicado... não tinha uma estrutura familiar, que ajuda
bastante, dependendo da família, aquela família estruturada.
(ACS 1)

Os familiares também relataram que se sentem na obrigação de


apoiar o seu familiar. O período da doença é delicado e o seu parente precisa
de apoio, tanto na questão da organização da rotina para fazer o tratamento,
quanto no apoio psicológico, após a descoberta da doença.
[...] olha, filha, eu tenho dado apoio a ele como se fosse meu
filho, entendeu? Ele é um pouco rebelde, mas eu entendo, que
é da idade, mas o que eu posso fazer por ele eu faço. É como um
filho. [...]. Pra mim, adoeceu, tem que ter o apoio de alguém”.
(Avó 3, de 78 anos)

Todo mundo está dando apoio. Meu esposo, minha irmã mora
aqui em cima[...] está todo mundo junto[...] (a mãe ter vindo de

334
outro estado), ajudou mais. Engordei dois quilos[...] ah, ótimo.
Se não fosse a minha família e eles[...] acho que eu estava até
em depressão. Porque no começo eu chorava muito, não queria
aceitar que[...] eu não dormia direito, não conseguia comer,
fraca da cabeça, começava a ficar tonta, a ficar tonta. Ele me
ajudou muito. (Usuária 2, de 33 anos)

Da mesma forma que ocorreu a ênfase no papel desempenhado


pelos familiares, no tratamento de usuários portadores de TB, no presente
estudo, Yamamura et al. (2014), ao tentarem identificar, entre outras
questões, a participação das famílias na gestão do cuidado do doente de
TB, também verificaram que o envolvimento dos familiares foi reconhecido
como importante na recuperação do seu familiar, doente de TB em TDO. O
cuidado com a alimentação do seu familiar foi apontado pelos informantes da
pesquisa como uma das principais ações de apoio da família, durante o TDO.
A TB, muitas vezes antes de ser diagnosticada e tratada, traz alguns prejuízos
graves para a saúde do indivíduo, como, por exemplo, o emagrecimento e a
debilidade.
Contei até 80, sucos de laranja, até 80[...] eu ficava preocupada
com a comida dele, ficava insistindo pra ele comer, não quer
isso aqui não, Pedro, quer isso aqui? Até ele comer, até ele
conseguir comer e fazer o suco de laranja assim, pra não tomar
leite, pra não tomar leite perto do remédio. (Avó 5)

Nestas circunstâncias, para o reestabelecimento da saúde e para


suportar as medicações anti-TB, a alimentação é a principal preocupação de
seus familiares, como se nota no relato de uma avó que cuidou do seu neto,
durante o tratamento da TB. Nogueira et al. (2012) referem a importância
da suplementação alimentar aos usuários com TB, que já é recomendada na
busca de melhoria do seu estado nutricional. Na condução deste cuidado,
os familiares são apontados como os principais responsáveis. A inclusão da
família na gestão do cuidado se apresenta como potencialidade das práticas
de cuidado no TDO da TB. É importante que o profissional de saúde entenda
a dinâmica familiar e, assim, identifique o familiar que possa ser seu parceiro
e corresponsável, junto com ele e o próprio usuário, nas práticas de cuidado
da TDO da TB. Souza et al. (2010, p. 907) apontam que o desconhecimento da
realidade familiar, por parte da equipe de saúde, leva à fragilização do vínculo

335
entre os sujeitos do cuidado; mas, quando este vínculo está fortalecido, a
relação entre eles envolve “confiança, respeito e solidariedade”. A partir
destas características, é possível que haja produção do cuidado nos encontros
intersubjetivos dos sujeitos: o usuário, sua família e o profissional de saúde.

Considerações finais

Neste estudo buscou-se caracterizar as práticas de cuidado do TDO da TB em


uma unidade de saúde da família, no Bairro da Rocinha, no Rio de Janeiro,
segundo a visão dos profissionais de saúde, usuários portadores de TB e seus
familiares. Nesta descrição foram consideradas a análise documental dos
documentos oficiais do PNCT e da PCT da SMS-RJ utilizados na unidade
de saúde; os elementos obtidos no trabalho de campo, por intermédio da
observação direta do TDO; e as entrevistas e informações registradas no
diário de campo.
O ponto de partida para caracterizar as práticas de cuidado foram
as dimensões de acolhimento, de relação dialógica e de vínculo, que estão
diretamente relacionadas com o conceito de integralidade do cuidado
e os princípios da Estratégia Saúde da Família, contexto em que o TDO é
realizado. Com base nas dimensões analisadas, se coloca o dilema entre o
cuidado mais humanizado e centrado no cuidado do usuário e o cuidado
medicalizado e centrado na organização do serviço. Trata-se de uma tensão
que promove uma dicotomia a ser superada, pois ambas as dimensões do
cuidado se sobrepõem, de modo a orientarem a lógica de ação dos atores
envolvidos.
No entanto, foi através dos depoimentos dos sujeitos do estudo e da
observação direta que foi possível compreender um pouco melhor como as
práticas de cuidado do TDO da TB estão ocorrendo de fato, no dia a dia da
unidade de saúde. Ao serem questionados sobre o cuidado realizado durante
o TDO, os usuários e seus familiares enfatizaram elementos referentes à
execução do TDO como parâmetro de um “bom cuidado”, em que bastassem
a ida, diariamente, do ACS à residência, a entrega dos medicamentos e o ato
de olhar a medicação ser ingerida pelo usuário em tratamento. Em alguns
discursos, também identificamos a satisfação de usuários e familiares com o
estreitamento das relações com os profissionais/serviço de saúde, porquanto
outras necessidades de saúde estavam sendo atendidas, durante esse

336
período do tratamento da TB, como, por exemplo, o agendamento de um
exame preventivo e de uma avaliação odontológica. Estas ações refletem a
busca pelo cuidado integral nas práticas de cuidado do TDO, o que é possível
mediante uma postura acolhedora, a construção de uma relação de vínculo,
em que o profissional mantém uma relação dialógica e se dispõe a escutar
a demanda apresentada pelo usuário e sua família. Nesta perspectiva, o
profissional assume como que uma autorresponsabilização pelo cuidado
da saúde dos sujeitos em questão. Esta responsabilização de si também foi
relatada por alguns profissionais, que assumiram a necessidade de realizar o
TDO e de vigiar o usuário na tomada da medicação e, ao mesmo tempo, de se
responsabilizar pelas ações de saúde voltadas para o usuário e sua família e
até de compartilhar o cuidado com eles. No contexto das práticas de cuidado,
o apoio familiar surgiu como um elemento fundamental na realização do
TDO. Alguns profissionais até relataram o quanto é maior o seu trabalho com
os usuários que não contam com o apoio da família ou de amigos. A família é
incluída no acompanhamento do TDO e o cuidado também é compartilhado
com ela.
Ao término deste estudo, foi possível reafirmar alguns pressupostos
submetidos no início. As ações preconizadas pelo PCT para o controle da TB,
principalmente o TDO, estão centralizadas no fornecimento das medicações
e na supervisão da tomada dos mesmos; neste sentido, as práticas de cuidado
no TDO nos serviços de saúde da ESF, para o controle da TB, ainda não estão
organizadas para contemplar as reais necessidades dos usuários e familiares,
que transcendem as questões biológicas e técnicas que envolvem a TB. A ESF,
modelo de reorientação da APS, pode contribuir de forma positiva para o
cuidado integral do usuário portador de TB; entretanto, ainda prevalece a
concepção de que o TDO é a principal forma de cuidado do usuário portador
de TB.
Espera-se que o presente trabalho contribua para estudos futuros, no
que se refere à temática das práticas de cuidado, no TDO da TB na ESF. Foram
apresentados elementos relevantes, principalmente no que concerne a uma
escuta qualificada dos sujeitos no “ato de cuidar”. A qualificação das práticas
de cuidado converge para melhorar a atenção prestada aos usuários que se
encontram em tratamento para a tuberculose e estão inseridos na Estratégia
Saúde da Família, que hoje se apresenta como o modelo de reorientação da
APS e a porta de entrada ao Sistema Único de Saúde em todo o país.

337
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342
DESAFIOS PARA O CUIDADO NA ATENÇÃO AO
PARTO DAS MULHERES IMIGRANTES
Cláudia Medeiros de Castro71

Introdução

Foi como docente e pesquisadora do único Curso de Obstetrícia em


funcionamento no país72 que me aproximei da discussão sobre o cuidado
voltado para a saúde da população imigrante. Ao ouvir os relatos das alunas
sobre diversas situações envolvendo mulheres imigrantes e profissionais
de saúde, nos campos de estágio, fui estimulada a elaborar os projetos de
pesquisas sobre o tema que me levaram à discussão que apresento neste
capítulo.
A migração internacional tem ocupado agendas governamentais,
mobilizado organizações humanitárias e diversos atores sociais que buscam
lidar com o fenômeno que impacta tanto os países de destino como os países
de origem das pessoas envolvidas nos deslocamentos transnacionais. O
fenômeno ocorre por diferentes motivos: muitos saem dos países de origem
para fugir de conflitos armados ou alguma forma de perseguição, como
no caso dos refugiados73, condição que os coloca sob proteção do direito
internacional; outros saem em busca de trabalho e estudo como é o caso dos
imigrantes vindos da Bolívia e Peru, que têm como destino o Brasil, sendo
submetidos à legislação específica de cada país. Seja qual for o motivo do

71 Doutora em Ciências, Mestre em Psicologia Social, Psicóloga. Docente do


Curso de Obstetrícia e do Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação
Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades, da Universidade de São Paulo.
clau.medeiros@uol.com.br
72 O Curso de Obstetrícia foi criado em 2005 e é oferecido na Escola de Artes, Ciências
e Humanidades da Universidade de São Paulo, unidade conhecida como USP-Leste. Trata-
se do único curso no Brasil que forma profissionais universitários para a atenção obstétrica
com entrada direta, ou seja, não requer uma especialização após a graduação, como é o caso
da Medicina, que requer especialização em Ginecologia e Obstetrícia, e a Enfermagem, que
requer especialização em Enfermagem Obstétrica.
73 Informações sobre a condição dos refugiados podem ser consultadas na Agência da
ONU para Refugiados (ACNUR), disponíveis no endereço eletrônico www.acnur.org.

343
deslocamento, ao chegarem, têm necessidades de habitação, saúde, educação,
proteção trabalhista, entre outras, sendo, portanto, dirigidas para os diversos
equipamentos públicos do país que os recebe. Neste capítulo, abordaremos
as demandas para a atenção à saúde das mulheres imigrantes, com foco
no cuidado no parto e pós-parto oferecido para imigrantes bolivianas no
município de São Paulo. Discutiremos os (des)encontros que ocorrem no
cotidiano dos serviços, palco em que as diferentes perspectivas culturais
sobre cuidado em saúde se manifestam e impactam a experiência do parto
das mulheres imigrantes. À discussão sobre cuidado em saúde, somaremos
o relato de experiências de trabalho em saúde que adotam a perspectiva
intercultural e buscam oferecer um cuidado culturalmente adequado.

Aproximações da migração internacional

O aumento dos deslocamentos transnacionais, com fluxos migratórios


dirigidos prioritariamente a algumas regiões, tem mobilizado diversos
atores sociais que pressionam as agendas governamentais para que ofereçam
respostas e realizem ações voltadas para os imigrantes. Tais ações têm sido
fartamente noticiadas pela mídia, que destaca algumas respostas que se
mostram bastante restritivas e outras que apresentam caráter humanitário
e inclusivo. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), o
fluxo de imigrantes internacionais cresceu 41%, nos últimos quinze anos,
de 2000 a 2015. Estima-se a existência de 244 milhões de pessoas nesta
condição. (UNITED NATIONS, 2015). O fenômeno tem múltiplas causas,
entre elas as econômicas, pois se a globalização proporcionou o incremento
do fluxo de informações, o fluxo de mercadorias e um afrouxamento das
fronteiras financeiras e comerciais, o mesmo não se observou na redução
das desigualdades sociais, uma vez que manteve a concentração de riqueza
em alguns países e a extrema pobreza em muitos outros. Assim, a migração
torna-se uma estratégia de sobrevivência para alguns grupos populacionais.
(MARTINE, 2005). A saída do país de origem também pode ser motivada pela
fuga dos conflitos armados, das disputas étnicas, enquanto que para outros
está relacionada ao estudo, ao desejo de melhores condições de trabalho e
de melhores condições de vida, ou até mesmo à necessidade de se reunir
aos familiares. Migrante internacional é definido pela ONU como qualquer
pessoa que mude de residência de seu país habitual, independentemente

344
da motivação para o deslocamento. Quando se trata de refugiados, porém,
a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) enfatiza a importância da
diferenciação, uma vez que são pessoas que não podem voltar ao país de
origem e, ao pedirem refúgio, passam a contar com a proteção do direito
internacional.
O Brasil recebe imigrantes vindos de diferentes continentes, como
o continente asiático, africano e sul americano. Em décadas recentes,
passou a ser o local de destino de imigrantes de alguns países do Cone Sul,
especialmente da Bolívia. Algumas cidades de fronteira já recebiam migrantes
da rota Cone Sul, mas, desde os anos oitenta, observa-se um deslocamento
país adentro que tem como destino o município de São Paulo e outros que
integram a região metropolitana da Grande São Paul. (BAENINGER, 2012). O
município de São Paulo registrou aumento de 117% na imigração, conforme
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Censo 2010,
que indicam a chegada de 39.165 imigrantes, considerando-se pessoas que
residiam em outros países nos últimos cinco anos da realização do Censo.
Os imigrantes correspondem a 1,3% da população total do município. (SÃO
PAULO, 2015). Bolivianos constituem uma das três principais colônias de
imigrantes em São Paulo, sendo a Bolívia o país de origem do maior número
de imigrantes que chegaram ao município, conforme o Censo mais recente.
Não é possível afirmar com exatidão quantos são os imigrantes residentes
no município; os números oficiais diferem dos dados de organizações que
prestam apoio aos imigrantes. A diferença numérica deve-se à dificuldade
de obtenção da documentação; muitos dos homens e mulheres imigrantes
vivem no país na condição de indocumentados. A Pastoral do Imigrante
e o Consulado da Bolívia estimam, respectivamente, entre 70 e 50 mil os
imigrantes bolivianos em São Paulo. (BIS, 2011). Quando chegam, vão
trabalhar no setor têxtil, em oficinas de costura, sob condições de trabalho
análogas à escravidão: são submetidos a longas jornadas de trabalho e não
gozam dos direitos trabalhistas. Muitos moram e trabalham no mesmo
local que, em geral, é um ambiente inadequado e insalubre, onde adultos e
crianças vivem em meio aos tecidos e máquinas de costura. (SOUCHAUD,
2012; ILLES et al., 2008; WALDMAN, 2011). Os dados dos censos indicam
que, a partir dos anos 2000, além do aumento do fluxo de bolivianos, também
ocorreu incremento na chegada de sul-coreanos, chineses, argentinos e
chilenos. Publicação do município de São Paulo indica a mudança no perfil

345
dos imigrantes do continente africano, que eram majoritariamente oriundos
de Angola e Nigéria e, hoje, vêm de diferentes países. Mesmo não dispondo
de dados precisos, há também que se destacar, após 2014, a chegada ao
município de haitianos, muitos em fuga das condições miseráveis do país,
que foram agravadas após o terremoto de 2010. (SÃO PAULO, 2014).
O Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU é
afirmativo quanto aos benefícios que os imigrantes internacionais trazem,
tanto para os próprios imigrantes quanto para o país de destino, desde que o
fenômeno da migração seja adequadamente administrado. É preciso ter uma
política de migração, para que as necessidades de proteção trabalhista, de
educação e de saúde constem na pauta da agenda governamental, quando se
discute os direitos dos imigrantes. No Brasil, os imigrantes são regidos pelo
Estatuto do Estrangeiro, criado por lei em 1980, considerado autoritário e
discriminatório, fruto do período ditatorial. O Estatuto proíbe, por exemplo, a
organização política, a participação em atos, passeatas e outras manifestações.
Em abril de 2017, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei 2.516, que cria
a Lei da Migração, aguardada por ativistas e por organizações de defesa dos
direitos dos imigrantes. O texto, considerado inclusivo e humanitário, foi
sancionado, com vetos pelo Presidente da República em exercício, como a Lei
13.445/2017, em maio de 2017. (BRASIL, 2017). Em São Paulo, imigrantes
organizados conseguiram que a gestão municipal incluísse o tema na agenda:
em 2014, foi criado o Centro de Referência e Acolhida do Imigrante (CRAI),
vinculado à Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania, oportunidade em
que foi realizada uma audiência pública sobre o tema e, em 2016, foi aprovada
a Lei 16.478, que instituiu a Política Municipal para a População Imigrante. A
lei garante aos imigrantes “acesso aos direitos sociais e serviços públicos”,
enfatiza a necessidade do “respeito à diversidade e interculturalidade” e tem,
entre os princípios, o “combate à xenofobia, ao racismo, ao preconceito e a
quaisquer formas de discriminação”. (SÃO PAULO, 2016). A sanção da lei
ocorreu na mesma semana em que o município sediou o VII Fórum Social
Mundial das Migrações.

Atenção ao parto das mulheres imigrantes

No que diz respeito à atenção às necessidades da saúde, no Brasil o direito


universal à saúde é estabelecido constitucionalmente, o que garante a todos,

346
independentemente da nacionalidade ou da condição da documentação,
o acesso às ações e aos serviços que são ofertados pelo Sistema Único de
Saúde (SUS). As mulheres contam com a Política Nacional de Atenção
Integral à Saúde da Mulher (PNAISM), que é baseada nos princípios do
SUS e no respeito aos direitos sexuais e reprodutivos. A PNAISM oferece as
diretrizes para atenção à saúde das mulheres nas três esferas da gestão –
federal, estadual e municipal. É uma política pública de saúde que reconhece
a diversidade das mulheres na população feminina e considera que gênero,
raça/cor e classe social são elementos estruturantes da sociedade e como tais
devem ser considerados nas ações e no cuidado à saúde. (BRASIL, 2011).
No documento, a preocupação com as especificidades culturais está presente,
mas é voltada para as mulheres indígenas e quilombolas. Ainda que a atenção
à diversidade seja enfatizada, as mulheres imigrantes não são citadas no
documento, o que nos leva a considerar que as mulheres residentes no país
são tratadas como se todas elas fossem nacionais.
Ser imigrante não é um fator de risco para a saúde, como indicam
estudos que abordam o healthy migrant effect, baseados em dados que
evidenciam melhores indicadores de saúde entre imigrantes. Quando se
trata, porém, da migração feminina, outros estudos indicam que as mulheres
imigrantes têm mais dificuldades, no que diz respeito ao planejamento
reprodutivo, são mais vulneráveis na gravidez, parto e pós-parto e têm maior
risco de morte materna. (ALMEIDA, CALDAS, 2012; ROCHA et al., 2010;
TOPA et al., 2013). Estudo realizado no Canadá sugere impacto da migração
na saúde dos recém-nascidos de mulheres imigrantes, pois apresentaram
maior número de crianças nascidas com menor idade gestacional e baixo
peso, quando comparadas às nativas do país. É importante destacar que
a migração é tratada como um fenômeno masculino e os estudos sobre
migração feminina são recentes. Os achados sugerem a importância de se
considerar a dimensão de gênero e o impacto da desigualdade na vida e na
saúde das mulheres. (ASSIS; KOSMINSKY, 2007).
A ausência de diretrizes do Ministério da Saúde para a atenção às
mulheres imigrantes, já apontada neste texto, parece ser permeada pela idéia
de que todos e todas são nacionais e pode ser exemplificada com a Declaração
de Nascido Vivo (DNV), utilizada para a obtenção da Certidão de Nascimento
da criança e para alimentar o banco de dados do Sistema de Informação

347
sobre Nascidos Vivos (Sinasc). Apenas em 2011, a nova DNV passou a incluir
no campo 20, que é destinado à naturalidade da mãe, a informação entre
parênteses “se estrangeiro, informar País”.
Mesmo quase invisíveis, as mulheres imigrantes buscam os serviços
de saúde para o cuidado no pré-natal e os hospitais para a atenção ao parto.
Estudo realizado por Waldman (2011) abordou mulheres que frequentam
uma organização de apoio aos imigrantes, e 86% delas informaram acessar
os serviços de saúde do município. No município de São Paulo, em 2014,
75% das internações de imigrantes foram por causas obstétricas. Entre os
hospitais mais procurados pelas mulheres imigrantes, dois estão localizados
em bairros próximos às regiões conhecidas pela concentração de oficinas de
costura, confecções e lojas de roupas.
Os dados indicam que o acesso aos serviços de saúde está assegurado
para a população imigrante. Mas, acesso não é sinônimo de cuidado
adequado à saúde. Cabe-nos indagar como é realizado o cuidado à saúde das
mulheres imigrantes. Para uma aproximação, nos apoiamos em um estudo
por nós realizado em um hospital maternidade do SUS, em que foram
consultadas as Declarações de Nascidos Vivos e entrevistados profissionais
de saúde que cotidianamente atendem mulheres imigrantes, principalmente
bolivianas e que resultou no artigo Atenção ao parto de mulheres estrangeiras
em uma maternidade pública de São Paulo. (CASTRO et al., 2015). A consulta
às DNVs foi importante para caracterizar a busca da maternidade por
mulheres imigrantes; para isso, coletamos os dados de um trimestre do
ano de 2012 e obtivemos 1.248 DNVs, sendo 241 de mulheres imigrantes,
o que correspondeu a 20% dos partos de nascidos vivos naquele hospital
maternidade. Entre as nacionalidades, a boliviana respondeu por 85%, seguida
da chinesa e paraguaia. Outras nacionalidades encontradas foram a peruana,
a nigeriana, angolana, argentina, haitiana e a sul-africana. Tais dados são
relevantes, por evidenciarem o trânsito de pessoas de diferentes culturas no
cotidiano institucional. Outra importante informação diz respeito ao acesso
ao pré-natal: os dados indicam que apenas 46,7% das mulheres realizaram
sete ou mais consultas, enquanto, no mesmo ano no município de São Paulo,
74,5% das mulheres realizaram sete ou mais consultas de pré-natal. O baixo
número de consultas pode estar associado à não dispensa da mulher para
comparecer às consultas, uma vez que boa parte delas trabalha em oficinas
de costura, em longas jornadas e sem direitos trabalhistas que assegurem

348
a frequência às unidades de saúde para acompanhamento da gestação;
também pode estar relacionado ao não acolhimento, ou à discriminação
sofrida nos serviços de saúde; ou ainda à não valorização das consultas de
pré-natal pelo grupo de origem da mulher. É necessário analisar tais dados,
para identificar os fatores que dificultam o acompanhamento das mulheres
imigrantes durante a gravidez e elaborar estratégias que possam facilitar o
acesso ao cuidado no período gestacional.
Como visto acima, a presença de mulheres de diferentes nacionalidades
faz parte do cotidiano da instituição de saúde do estudo. Entrevistamos 10
profissionais de saúde, entre assistentes sociais, enfermeiras, médicas e
psicólogas, que trouxeram relatos sobre o próprio trabalho com as mulheres
imigrantes e sobre a percepção do trabalho de outros profissionais da mesma
instituição. Há nos relatos descrições de iniciativas institucionais para facilitar
a comunicação com as imigrantes, como um evento realizado em parceria
com o Consultado da Bolívia e a Pastoral dos Imigrantes e o oferecimento
de cursos de Espanhol e Aimará para os funcionários interessados. Como a
língua é um importante elemento da comunicação, adotar ou não atitudes
que facilitam a comunicação verbal parece ser um indicador da disposição dos
funcionários para o acolhimento da população imigrante. Zaíra, assistente
social, conta que “até já teve casos que eu fui chamada pra fazer a tradução;
agora tem outros [profissionais] que não, tipo, dá a orientação e entendeu,
entendeu, não entendeu, o problema é dela”.
A manutenção de barreiras de comunicação pode ser interpretada
como uma forma de expressão do preconceito em relação ao imigrante, que se
apresenta com contornos xenofóbicos, relacionados com a não aceitação do
imigrante, por considerá-lo uma ameaça aos nacionais. Tal postura contraria
a idéia de que o Brasil é um país onde todos são bem-vindos, onde não há
discriminação. Alguns estudos, como a pesquisa divulgada em 2016 sobre
a percepção em relação aos imigrantes e refugiados em 22 países, incluindo
o Brasil, mostram que por aqui a percepção positiva dos imigrantes piorou,
nos últimos cinco anos, embora, segundo o estudo em tela, o país seja um
dos mais receptivos no que concerne à expectativa de integração cultural de
pessoas vindas de outros países. (IPSOS, 2016).
Nas instituições hospitalares, a hierarquia, as rotinas e procedimentos,
que visam ao controle dos corpos, contribuem para sustentar o modelo
obstétrico que adota práticas assistenciais biomédicas e tecnocráticas,

349
marcadas pela intervenção abusiva no corpo da mulher. (LEAL et al., 2014).
O parto e o nascimento estão envoltos em dimensões emocionais, sociais e
culturais desconsideradas, ou tratadas como algo marginal, que pode até ser
incorporado nas práticas, desde que devidamente subordinado à tecnologia
biomédica. Esta redução do parto ao aspecto biológico pode ser exemplificada
com a fala de uma enfermeira entrevistada que, quando indagada sobre a
preparação da instituição para atender às mulheres de outras nacionalidades,
respondeu: “parto é parto; ela sabe que veio aqui para ter o nenê”. Mesmo
supostamente escudadas pelo modelo biomédico, no encontro face a face
entre usuárias e profissionais de saúde, as tensões se apresentam. Parece haver
uma disputa entre as práticas hospitalares impostas às usuárias e a demanda
pela adoção de práticas que são oriundas de outras culturas e diferentes das
adotadas no cotidiano do hospital. Fonseca (2010), em estudo realizado numa
maternidade francesa que atende a mulheres imigrantes, relata episódios de
estranhamento entre a equipe que preconizava condutas e as usuárias que
as recusavam, por não fazerem sentido em suas culturas. No hospital em
que realizamos o estudo, há relatos de embates com contornos dramáticos
e violentos, como o exemplificado pela descrição feita pela assistente social
Zaíra: uma imigrante boliviana desejava ter o filho de cócoras e a médica que
a assistia a pegou por trás e a deitou, contra a vontade, dizendo: “você vai ter
o bebê deitada”, numa clara demonstração de força e poder. A parturiente
então tentou em vão pegar o cesto para colocar o bebê, o que foi entendido
como uma tentativa de jogar a criança no lixo. Como resultado, a equipe
impediu que mãe e bebê fossem alojados juntos. Apenas no dia seguinte é que
foi possível conversar com a usuária e entender que era costume de seu povo
colocar o bebê num cesto após o nascimento. O episódio parece demonstrar
que houve um esforço para impedir que a usuária manifestasse as práticas
culturais relacionadas ao parto, comuns ao seu grupo de origem. Em uma
relação extremamente desigual, temos de um lado a médica e os demais
membros da equipe, que representam o poder institucional e hierarquizado,
o poder do conhecimento biomédico, e de outro a mulher pobre, usuária do
SUS, imigrante, com dificuldades de comunicação, sem domínio da língua,
que foi submetida à força às práticas assistenciais. O episódio ilustra as
considerações de Merhy, em texto sobre o cuidar em saúde, para quem o
modelo biomédico promove a subordinação dos aspectos relacionais e um

350
empobrecimento da dimensão cuidadora; o autor, a propósito, afirma que “a
‘morte’ da ação cuidadora dos vários profissionais de saúde tem construído
modelos de atenção irresponsáveis”. (MERHY, 1999, p.4).
Quando chamamos a atenção dos profissionais de saúde para que
resgatem a dimensão cuidadora, sabemos que estamos longe de encontrar
uma definição consensual sobre o cuidado. Muitas vezes utilizado como
sinônimo de assistência, em referência a um rol de procedimentos que
objetivam o sucesso terapêutico, o cuidado apresenta-se como um termo
polissêmico. As diferentes aproximações e interpretações do “Cuidado
em Saúde” possibilitaram que Cruz (2009) se interessasse por estudá-
las. Em revisão bibliográfica, a autora organizou as mais de sete centenas
de publicações encontradas na pesquisa, em três grandes eixos, que aqui
apresentamos resumidamente: o primeiro diz respeito aos agentes do
cuidado, incluindo os que o oferecem e os que o recebem; o segundo eixo
abordou os aspectos da gestão da saúde, e o terceiro abarcou as dimensões
científicas, subjetivas e teórico-políticas sobre o tema.
Entre os autores que se situam no terceiro eixo e têm contribuído para
o adensamento teórico das reflexões sobre saúde e cuidado, citamos Ayres
(2004), que, ao discorrer sobre a fábula do Cuidado74, atribuída a Higino,
destaca alguns aspectos que, segundo ele, dizem respeito à saúde, dentre
os quais três nos parecem importantes para a discussão acerca do cuidado
à saúde dos imigrantes: o movimento, a interação e a plasticidade. Sobre o
movimento, o autor destaca o aspecto processual das nossas identidades, que
se modificam, ao longo da existência; para ele, a identidade vai sendo construída
no e pelo ato de viver, de pôr-se em movimento pelo mundo. (AYRES, 2004, p.75).
Quando nos voltamos para os imigrantes, o pôr-se em movimento não se
reduz aqui aos deslocamentos geográficos, que sem dúvida são elementos
marcadores das biografias, mas é o movimentar-se por diferentes culturas
que tem o potencial de provocar mudanças significativas na construção das
identidades. O aspecto da interação nos leva a pensar no encontro entre
profissionais de saúde e os imigrantes, quando os projetos que movem um e
74 Na alegoria, Cuidado (que foi traduzido como Cura) modelou a argila, deu-lhe
forma. À criatura, que foi feita do húmus, foi dado o nome Homo. Júpiter deu-lhe o espírito;
a Terra, a matéria; e o Cuidado, a forma. Assim Saturno decidiu “Tu, Júpiter, por teres dado o
espírito, deves receber na morte o espírito e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o
corpo. Como, porém, foi o Cuidado quem primeiro o formou, ele deve pertencer ao Cuidado
enquanto viver”. (HEIDEGGER, 1995, p. 264, apud AYRES, 2004, p. 75).

351
outro são negociados, como às vezes acontece na cena do parto, resultando
na alteração dos lugares ocupados por ambos. E, por último, a plasticidade
possibilita a contínua recriação dos viventes, as alterações das práticas e
as interações que visam ao bem-estar dos agentes que recebem e de quem
oferece o cuidado.
Assim, mesmo em uma relação de poder marcadamente desigual e
por vezes esvaziada da dimensão cuidadora, é na interação na cena do parto
que agentes/atores alteram as práticas. Movidas pela potência da dimensão
cultural, usuárias e profissionais rompem com o que é preconizado pelas
condutas biomédicas, como ilustra o episódio relatado pela enfermeira Marta
sobre como uma imigrante boliviana conseguiu ter o parto de cócoras: “eu
lembro que teve uma que não queria de jeito nenhum na posição, na nossa
tradicional, e ela pulou da cama [foi para o chão]; e aí eu corri e coloquei um
campo bem rápido; era aquilo que ela queria”.
Como já afirmado no texto, as práticas obstétricas no Brasil são
marcadamente intervencionistas, e a realização abusiva de cesarianas,
que coloca o país entre os que mais realizam parto cirúrgico no mundo, é
um triste exemplo do uso inadequado das tecnologias. Contrariando as
evidências divulgadas pela OMS, de que taxas seguras de cesárea devem
manter-se em torno de 15%, chegamos a apresentar taxas de 90% de cesárea,
em alguns hospitais privados75. No país das cesáreas, chama a atenção o fato
de as mulheres bolivianas terem apresentado taxa de 84% de partos normais,
no hospital em estudo. Priscila, enfermeira, afirma que “elas [bolivianas]
preferem tá tendo o parto normal, o que as brasileiras já chegam pedindo
cesárea; as bolivianas, não”. Conseguir ter a preferência pelo parto normal
respeitada em um país como o Brasil, onde temos uma cultura da cesárea,
nos remete à plasticidade do cuidado, que possibilita a mudança das práticas
na saúde.
As mulheres imigrantes, com sua presença nos serviços de saúde,
provocam o rompimento das regularidades do modelo obstétrico utilizado
nos hospitais. Ao apresentarem diferentes perspectivas culturais na cena do
parto e nascimento, elas provocam alterações nas práticas obstétricas e o

75 Em 2012, no município de São Paulo, 46% dos partos foram normais, enquanto, no
hospital em estudo, 69% dos partos foram normais, conforme dados disponíveis no DATASUS.
Os dados sobre parto podem ser consultados no endereço www.datasus.gov.br.

352
reposicionamento dos profissionais de saúde, que têm então a oportunidade
de resgatar a dimensão cuidadora. Para Ayres (2004, p. 85), a potência
reconstrutiva das práticas nos permite considerar que:

existe uma potencialidade reconciliadora entre as práticas


assistenciais e a vida, ou seja, a possibilidade de um diálogo
aberto e produtivo entre a tecnologia médica e a construção
livre e solidária de uma vida que quer ser feliz, a que estamos
chamando Cuidado.

O cuidado na perspectiva intercultural

Aqui apresentamos algumas experiências internacionais que propõem um


cuidado à saúde atento às dimensões culturais. Inicialmente, como o nosso foco
é saúde das gestantes e parturientes imigrantes, e considerando que muitas
das imigrantes bolivianas e de outros países do Cone Sul pertencem a grupos
populacionais que têm origem nos antigos povos andinos, convém que se
discorra sobre algumas características de tais grupos. Muitas das imigrantes
que chegam ao Brasil falam dialeto próprio, como o Aimará ou Quíchua, e
partilham uma cosmovisão de mundo que é refletida na organização social.
Para alguns povos indígenas, a saúde diz respeito à harmonia entre fatores
que envolvem o mundo espiritual, os deuses, a natureza, a comunidade, e
não apenas o corpo. (RODRIGUEZ, 2008). Para as mulheres Mapuches, um
povo indígena que habita o Chile e também a Argentina, é importante contar
com os conselhos da Papay, mulher que orienta sobre a alimentação, ervas
medicinais, cuidados com o corpo e o espírito e também sobre os cuidados
no pós-parto. Para as Mapuches, a placenta é um elemento importante para
a conexão da criança com o espaço comum, e não deve ser simplesmente
descartada, mas enterrada. No Chile, uma iniciativa do Unicef e do governo
resultou na publicação Txür Txemuaiñ Creciendo Juntos, destinada às
mulheres Mapuches. É um material educativo intercultural, sobre gestação e
cuidados com o bebê, bilíngue e com ilustrações baseadas nos elementos da
cultura Mapuche. No texto, a perspectiva de cuidado, baseada na cosmovisão
daquele povo, e a perspectiva do cuidado obstétrico adotada pela OMS se
complementam. (UNICEF, 2008). Reputamos ser esta uma importante ação
governamental, que reconhece a um povo, que é parte da população do país,

353
que tenha práticas de cuidado em saúde que são diferentes das adotadas nos
serviços de saúde e que devem ser igualmente valorizadas e respeitadas. É
necessário que os profissionais de saúde reconheçam que existem diferentes
concepções de saúde e diferentes práticas culturais de parto, não para que
façam uma transposição de práticas, mas para que estas sejam consideradas
como mais um elemento do cuidado, o que possibilita negociar mudanças
e adequar as condutas para atender às necessidades das mulheres, bebês e
famílias.
Na França, uma experiência que parece ter surgido como resposta
às situações vivenciadas em serviços de saúde, que atendem a imigrantes de
várias nacionalidades, é a chamada “psicoterapia transcultural da migração”.
Para Moro (2015), sejam quais forem as motivações para a migração, o
evento tem um potencial traumático, o que por si já justifica a necessidade
de se desenvolver estratégias de acolhimento para o imigrante. Soma-se a
isso outras situações como o adoecimento, luto, nascimento de uma criança,
enfim, situações em que é necessário dar sentido ao acontecido; e isso requer
o acesso às teorias próprias de cada cultura, que oferecem os recursos que
possibilitam àquele que padece dar sentido ao não sentido. Quando se trata
de instituições de saúde, não raro as explicações ou reações do imigrante
aos eventos, que classificamos como doença, são incompreendidas ou
rapidamente diagnosticadas como algum transtorno. Conforme a autora, no
Hospital Avicenne, localizado na periferia de Paris e no Hospital Cochin, a
“terapia transcultural da migração” foi uma forma encontrada para oferecer
acolhimento aos imigrantes. As consultas são realizadas em grupo e por um
grupo de co-terapeutas, que compõem uma equipe formada por profissionais
de saúde, com iniciação em Antropologia, Linguística e História, e que têm
como formação inicial psicologia, medicina, enfermagem e serviço social. Para
ser um terapeuta transcultural, é preciso ter familiaridade com a migração e
com o descentramento cultural, e não necessariamente ser um imigrante.
No encontro terapêutico, é possível que o imigrante passe de uma língua à
outra, que use os repertórios linguísticos disponíveis, tanto na sua cultura
de origem quanto na do país onde vive, possibilitando assim o acesso ao
“conhecimento cultural compartilhado”, que o ajuda a dar sentido ao vivido.
Quando tratamos com imigrantes, a necessidade de incorporar novos
elementos ao cuidado é potencializada pela diferença da língua, ritos, práticas
e concepções de saúde e doença. As experiências citadas provavelmente foram
provocadas pelo (des)encontro entre diferentes perspectivas culturais nos

354
serviços de saúde que, ao mudar, alterar as regularidades, deram visibilidade
à insuficiência do modelo biomédico e levaram à busca de alternativas que
contribuíssem para o cuidado realizado nas diferentes instituições de saúde.
Quando tais necessidades não são ignoradas por gestores e profissionais de
saúde, o caráter processual do cuidado é resgatado e são abertas possibilidades
de modificar e rever as práticas até então cristalizadas no cotidiano dos
serviços.

Considerações finais

As duas experiências citadas ocorreram em países em que a dimensão cultural


parece ter sido incorporada na agenda da saúde. Quando nos voltamos para
o Brasil, ainda que para o senso comum o país seja considerado um lugar
acessível às diferentes culturas, onde não há discriminação e todos são
recebidos de braços abertos, a idéia de que somos todos nacionais permanece
e se manifesta no cotidiano, como pode ser visto nos sistemas de registros
de dados em saúde e nos documentos que embasam as políticas de saúde
no país. A invisibilidade da população imigrante, somada a outros fatores,
tem impedido que políticas públicas para a população imigrante resultem no
desenvolvimento de ações de acolhimento e cuidado voltados para os que
aqui chegam e passam a integrar a sociedade. Na falta de políticas públicas
e diretrizes nos diferentes níveis de gestão, resta às instituições de saúde,
que recebem um grande número de imigrantes, dar respostas que quase
sempre são frágeis, posto que reativas e sem retaguarda da rede do SUS.
Possibilidades de mudança do cenário começam a ser delineadas, como a
aprovação da Política Municipal para a População Imigrante, no município de
São Paulo, em 2016, que é um exemplo de resposta construída coletivamente
pela sociedade, e a recente aprovação da Lei da Imigração. Esperamos que as
diretrizes contidas nos novos marcos legais possam ser transformadas em
ações de saúde alicerçadas na perspectiva do cuidado intercultural.

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358
AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DA VONTADE E
A RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA: CUIDAR
DA VIDA, CUIDAR DA MORTE
Nicolle Feller76

Neste capítulo propõe-se discutir a aplicação das diretivas antecipadas de


vontade, no Brasil, contextualizando-a na relação médico-paciente e na
possível responsabilização civil do profissional frente ao direito do paciente à
manifestação antecipada a respeito de sua vida ou de sua morte. O estudo tem
uma interface com as questões que se vinculam ao cuidado da vida e da morte
e tem como objetivo principal discutir aspectos da extensão da aplicabilidade
concreta, no campo médico, das diretivas antecipadas de vontade, mediante
análise dos preceitos emanados da doutrina como também do próprio
ordenamento jurídico pátrio. A temática encontra suporte nas disposições
da Constituição Federal, no Código de Defesa do Consumidor, no Código
Civil e, ainda, nas normas preconizadas pelo Conselho Federal de Medicina,
entidade autárquica de âmbito nacional.
Contemporaneamente, as pessoas têm a necessidade primordial de
recorrer a atividades da área médica, com o fim de preservar, tratar, reduzir
riscos e potencializar sua saúde. Estes aspectos fazem parte das novas
condições tecnológicas, do acesso aos serviços e da vontade de viver com
qualidade, ao mesmo tempo em que são processos exigidos, dentro do foro
da autonomia e da vontade, relativos ao direito de viver bem. A ideia de bem-
estar, contudo, está sempre carregada de outros elementos, como os que se
referem à dignidade da vida humana e ao sentimento de viver bem.
A dignidade e o direito à vida são indissociáveis. A ausência de
condições para interagir, protagonizar a vida e atuar frente à vida já é por si
uma antecipação da morte. Portanto, a dignidade, como uma complexa teia
que envolve autonomia, capacidade biopsíquica, desejo e vontade expressos
76 Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-Graduada
em Direito Civil pela Universidade Anhanguera – UNIDERP/SP. Assessora de Gabinete
no Tribunal de Justiça de Santa Catarina entre fevereiro de 2014 e setembro de 2017.
Juiza de Direito substituta do Estado do Rio Grande do Sul, desde novembro de 2017.
nicollefeller@hotmail.com

359
em ações, gestos, formas de sentir e de se comunicar, é uma condição do
viver. Quando forem perdidas estas condições, seguramente interpõe-se
– entre a dimensão física e o gozo dos direitos – o direto à antecipação da
vontade sobre a morte para o momento em que tais condições de escolha já
não mais forem possibilidades.
Quando houver rupturas entre a manifestação biopsíquica e a
expressão corporal – do corpo que anima o ser humano – já não haverá
condições para que se fale em vida. A morte, nestas situações, segundo
Pessini (1996), já não é o inimigo a ser derrotado, porque tal posição recai na
luta para se manter a vida em qualquer que seja sua condição.
Contudo, quando se trata da autonomia – sobre o próprio direito
humano de morrer dignamente – as questões tornam-se complexas, pois o
tema da vida e da morte tem diretivas culturais e sociais diversas e esbarra,
particularmente, em questões religiosas e morais tais que, por vezes, fica
atribuído a decisões atemporais, ahistóricas ou ligadas aos grandes princípios
advindos de uma ética generalista, quando não atribuídas à vontade divina.
Desta maneira, os impactos de qualquer normativa podem ser grandes, frente
ao sofrimento e aos limites, ou à impossibilidade de continuar vivendo como
experiência concreta de um ser humano e de sua vida, ou frente aos seus
familiares e amigos. Socialmente e na prática cotidiana, tem-se sempre, em
primeiro plano, que a medicina toma para si a missão de aliviar o sofrimento
de quem está doente, por meio de usos adequados, em cada caso. Portanto,
interromper o processo de morrer lentamente e com sofrimento, por meio
do atendimento à vontade antecipada sobre a interrupção da vida, pode
gerar muitos conflitos.
Ao percebermos, sentirmos ou vivermos o sentido da morte,
ou mesmo o sentimento de que ela se aproxima, experimentam-se
ambivalências e muitos sentidos simbólicos de perdas e de significações
que precisam ser preenchidos. Nossa temporalidade e nosso saber, sobre o
que estamos vivendo, se conectam com a experiência que sentimos como
conclusiva para este viver. Esta complexa teia de conteúdos envolve vida e
envolve a morte, quando a mesma já está dada. Ela diz respeito aos valores
e aos sentidos de se manter a vida e de se manter a prorrogação da presença
de uma pessoa, quando ela já não responde, não tem autonomia alguma
e nela já se desencadeou o processo de morrer. Os custos emocionais e
psíquicos, para familiares e amigos e de quem precisa cuidar, ou a decisão por

360
um prolongamento, com acesso a tecnologias, pode ser um longo e sofrido
processo de morrer para todos. Estas situações colocam o respeito que se
tem pela vida como igualmente necessário em relação ao respeito pela morte
e, sobretudo, o respeito por quem já antecipou livremente sua vontade de
morrer, diante de certas circunstâncias.
Frente a estes parâmetros do cuidado pela vida e pela morte,
interpõe-se uma moral que se constitui como proclamação do direito de
morrer como decorrente do direito fundamental a uma vivência digna. A
possibilidade de dispor da própria vida, em determinadas circunstâncias, é
um tema clássico da ética, da bioética e dos direitos humanos. Embora haja
carências de conceituações precisas, sobretudo no caso da discussão dos
direitos humanos, existe um amplo acordo a respeito de evitar o sofrimento
desnecessário, indesejado. (CASADO, 2007). Para muitos contextos, esta
decisão já é requerida ao Estado e está posta como moralmente aceita, frente
ao fato de padecimentos irreversíveis e de condições de vida penosas.
Estes posicionamentos, que exigem mudanças nas perspectivas
culturais, também requerem a introdução de legislação específica para
envolver-se com a prática do atendimento das vontades antecipadas e
antepõem exigências de cuidados frente às fronteiras marcadoras da vida,
da morte e das autonomias, frente às práticas de distanásia, ou ortotanásia.
Estas ficam em suspeição.
Exigem que a ação médica seja dialógica com o paciente e que a
petição seja séria, com expressão inequívoca e reiterada da vontade pela
pessoa afetada e que sua autonomia e tudo o que diz respeito à sua dignidade
não seja ferido. Nas discussões internacionais, são apontados alguns pontos
a partir dos quais as normativas são constituídas. A lei fundamenta-se na
clareza a respeito de qual é o papel do médico, frente à petição de eutanásia,
que reúna os requisitos que ela mesma estabelece, e que uma vez tendo sido
posta em prática a mencionada petição, ela possa ser efetuada pelo mesmo
médico e pelo mesmo paciente, ou por pessoas que lhe são próximas, sempre
assessoradas por um médico.
Levanta-se o direito, do médico ou de outro profissional, de alegar
objeção de consciência, ainda que em qualquer caso a lei deva garantir o
direito dos doentes a dispor de sua própria vida dentro dos dispositivos
instituídos e da validez da participação ativa dos pacientes em sua decisão.

361
A validez deve ser aceita, se for apresentada por documento de vontade
antecipada ou manifestada pela pessoa designada como representante no
mesmo documento. A lei precisa respeitar a autonomia dos menores de idade,
atendendo a seu grau de maturidade e às condições específicas da escuta dos
pais, e será preciso que eles aceitem a decisão do menor. Os poderes públicos
têm o dever de favorecer as atenções especializadas específicas, a fim de que
todas as pessoas tenham acesso à expressão do direito de escolher morrer
e a morte se desenrole com dignidade. Isto implica favorecer os cuidados
paliativos e domiciliares de modo que sejam uma possibilidade real ao alcance
da população como direito a sua saúde e que toda demanda por eutanásia, ou
ortotanásia, uma vez expressa em petição, deva ser atendida.

O direito à vida e à morte digna como expressão de diretivas


antecipadas da vontade

O direito à vida e à morte digna, enquanto expressão de diretivas antecipadas


da vontade, coloca o foco das decisões na necessidade de se adotar medidas
prévias para facilitar o outorgamento das tomadas de decisão às pessoas e
aos hospitais, ou centros de tratamento, para os quais é útil que existam
modelos e disposições discutidas, bem como espaços de discussão abertos
aos diferentes tipos de pedidos que as pessoas possam vir a fazer. A expressão
da vontade sobre a morte pode se dar em circunstância muito diferente de
pessoa para pessoa e pode trazer grande dificuldade à tomada de decisão.
Está, portanto, envolta em cuidados legais e, particularmente, em princípios
que precisam ser mantidos de forma aberta aos sujeitos e ao diálogo com a
realidade empírica, para que se aperfeiçoem, na medida em que se tornem
necessários. Portanto, nesse contexto, para além da livre escolha do paciente,
acerca das medidas e tratamentos curativos (em clara ênfase ao direito à
vida), ganha relevo, na atualidade, o próprio direito de morrer dignamente.
No particular, importa registrar a tentativa, sobretudo por parte
da bioética, de uma uniformização de certos conceitos atinentes ao final
da existência humana, como as categorias inseridas dentro da denominada
“morte com intervenção”, que abrangem, entre outras, a eutanásia, a
ortotanásia e a distanásia, além de conceituações periféricas, conforme
resumem Luís Roberto Barroso e Letícia Martel (2011, p. 105-106).
De acordo com Barroso e Martel (2011, p. 107-108), o termo eutanásia,
atualmente, restringe-se a uma forma ativa, compreendendo “a ação médica

362
intencional de apressar ou provocar a morte – com a exclusiva finalidade
benevolente – de uma pessoa que se encontre em situação irreversível e
incurável, consoante os padrões médicos vigentes”, padecendo de forte
sofrimento físico e mental. Pode ser voluntária (se houver consentimento
expresso e informado), não-voluntária (sem o conhecimento da vontade) e
involuntária (contra a vontade do paciente), sendo consenso, nesta última
hipótese, seu caráter criminoso. Já a distanásia é compreendida como a
tentativa de protelar o falecimento o máximo possível, pelo emprego de
todos os meios médicos disponíveis, mesmo que possam gerar sofrimentos
à pessoa cuja morte se preveja ser inevitável e iminente. Prolonga-se, em
realidade, o processo de morrer.
Associados a ela estão a noção de obstinação terapêutica, que
compreende o comportamento de se lutar contra a morte de todas as
maneiras, sem levar em conta os padecimentos e os custos humanos
desencadeados, e a de tratamento fútil, que consiste no uso de técnicas e
métodos extraordinários e desproporcionais de tratamento, incapazes de
trazer melhora ou cura e cujos benefícios previsíveis são inferiores às lesões
causadas.
Como categoria distinta, tem-se a ortotanásia, conceituada pelos
autores Barroso e Martel (2011, p. 106-107) como a “morte em seu tempo
adequado, não combatida com os métodos extraordinários e desproporcionais
utilizados na distanásia, nem apressada por ação intencional externa, como
na eutanásia”, revelando verdadeira aceitação da morte. Esta está interligada
ao cuidado paliativo, que consiste no uso de tecnologia disponível, com o fim
de mitigar o sofrimento físico e psíquico do doente, mesmo que o emprego
de determinadas substâncias possa reduzir o tempo de vida, como efeito
previsível, mas não desejado.
Segundo Barroso e Martel, (2011, p. 108), a recusa de tratamento
médico traduz-se na negativa, por parte do paciente ou de seu responsável,
de começar ou manter um ou mais tratamentos médicos, culminando na
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Tal recusa,
esclarecem os autores, pode ser ampla ou estrita, conforme seja admitida
em quaisquer circunstâncias (inclusive por enfermos que podem recuperar-
se com o tratamento rejeitado), “ou em situações bem determinadas de
impossibilidade de recuperação da saúde com a intervenção” – hipótese

363
esta que possui afinidade com a ortotanásia, sendo também denominada de
limitação consentida de tratamento. Por derradeiro, elucidam os autores:

A retirada de suporte vital (RSV), a não-oferta de suporte vital


(NSV) e as ordens de não-ressuscitação ou de não-reanimação
(ONR) são partes integrantes da limitação consentida de
tratamento. A RSV significa a suspensão de mecanismos
artificiais de manutenção da vida, como sistemas de hidratação
e de nutrição artificiais e/ou o sistema de ventilação mecânica;
a NSV, por sua vez, significa o não emprego desses mecanismos.
A ONR é uma determinação de não iniciar procedimentos
para reanimar um paciente acometido de mal irreversível
e incurável, quando ocorre parada cardiorrespiratória.
(BARROSO; MARTEL 2011, p. 108)

Realizados os esclarecimentos conceituais, sob a ótica civil-


constitucional, especialmente a partir da cláusula geral de dignidade humana,
certo que “[...] ao direito de viver com dignidade haverá de corresponder como
espelho invertido o direito de morrer dignamente [...]”, como decorrência
natural de toda e qualquer vida digna. Trata-se, portanto, “[...] de permitir
que a natureza siga o seu rumo, fazendo o seu inexorável papel, sem que
isso atinja a dignidade da pessoa, em determinadas situações”. (CHAVES;
ROSENVALD, 2013, p. 372). E ainda:

[...] a possibilidade de escolha consciente por parte do paciente


sobre a sua terminalidade deve ser entendida como direito
fundamental que se incorpora ao direito fundamental à vida
previsto na Constituição Federal e compreendido em seu
amplo sentido – início, meio e fim – de forma que a liberdade
e autonomia de escolha, nesse momento único, devem ser
garantidas e respeitadas sem qualquer possibilidade de
violação. (ALMEIDA, 2012, p. 483).

Neste âmbito, é estreme de dúvidas que a dignidade humana, erigida


a fundamento da República (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal),
visa à preservação e proteção da vida em si, constituindo a própria acepção
positiva deste direito, elencado logo no início do título destinado aos direitos
e garantias fundamentais contemplados na Carta Cidadã.

364
A carga conceitual do princípio da dignidade humana ampara, ainda,
duas visões antagônicas, nos casos em que envolve morte com intervenção.
Segundo Luís Roberto Barroso e Letícia Martel (2011, p. 119-120), a
dignidade como autonomia (poder individual – empoderamento) é a ideia
atinente aos documentos de direitos humanos e às Constituições posteriores
à Segunda Guerra Mundial. Ela possui quatro aspectos essenciais: (1) a
capacidade de autodeterminação; (2) as condições para o seu exercício; (3) a
universalidade; e (4) a inerência da dignidade ao ser humano. Trata-se, pois,
do direito real e intrínseco do homem de decidir os rumos da própria vida,
realizando escolhas morais e assumindo responsabilidades. De acordo com os
referidos autores, a dignidade como heteronomia, por seu turno, relaciona-
se a valores compartilhados pela comunidade, e não a opções individuais.
Abarca os chamados conceitos jurídicos indeterminados, a exemplo do
“bem comum”, “interesse público”, “moralidade” e “vida boa”, funcionando
como freio externo à liberdade individual, de modo a “obstar escolhas que
possam comprometer valores sociais ou a dignidade do próprio indivíduo
cuja conduta se cerceia”. (BARROSO; MARTEL 2011, p. 122). Conforme
arrematam os doutrinadores:

Em suma, pode-se dizer que a ‘dignidade como heteronomia’


traduz uma ou algumas concepções de mundo e do ser humano
que não dependem, necessariamente, da liberdade individual.
No mais das vezes, ela atua exatamente como um freio à
liberdade individual, em nome de valores e concepções de vida
compartilhados. Por isso, a ‘dignidade como heteronomia’ é
justificada na busca do bem para o sujeito, para a preservação
da sociedade ou comunidade, para o aprimoramento moral do
ser humano, dentre outros objetivos. Entretanto, assim como
a ‘dignidade como autonomia’, a ‘dignidade como heteronomia’
também possui inconsistências teóricas e práticas. Como
críticas principais, é possível compendiar: a) o emprego da
expressão como um rótulo justificador de políticas paternalistas,
jurídico-moralistas e perfeccionistas; b) o enfraquecimento
dos direitos fundamentais mediante o discurso da dignidade,
especialmente em sociedades democrático-pluralistas; c) perda
da força jurídico-política da locução ‘dignidade humana’; d)
problemas práticos e institucionais na definição dos valores
compartilhados por uma comunidade ou sociedade política.
(BARROSO; MARTEL, 2011, p. 126-127)

365
Quanto ao ordenamento jurídico vigente, constatam os autores
que é inegável o predomínio da dignidade como autonomia na Constituição
de 1988 – marco inaugural da reconstrução da democracia no País. Tal
característica não apaga, porém, a dimensão comunitarista de seu texto,
destacando-se “os compromissos com o bem de todos, a erradicação da
pobreza e a solidariedade social”, além do reconhecimento da importância de
instituições “que são expressões coletivas do eu, como a família, os partidos
políticos e os sindicatos”. (BARROSO; MARTEL, 2011, p. 128-129).
Para os mesmos, também no âmbito infraconstitucional, é possível
vislumbrar a prevalência da face autonomista da dignidade, notadamente na
ligação entre a bioética e o Direito, a exemplo da Lei n. 9.434/1997 sobre
transplantes de órgãos inter vivos e post mortem, centrada no consentimento,
e da Lei n. 11.105/2005 (Biossegurança) que disciplina o uso de células tronco
embrionárias em pesquisa ou processo terapêutico, cuja constitucionalidade
fora chancelada pelo STF em sede de controle concentrado (ADI 3510/DF, em
29.05.2008).
Quando se interseccionam aspectos jurídicos e possibilidades
reflexivas, contudo, a realização de esclarecimentos conceituais e a
interposição do ordenamento jurídico à expressão de diretivas antecipadas
da vontade envolvem muito mais interfaces, tais como a doença, as famílias,
os cônjuges, os médicos, os juristas e todos os atores sociais ligados ou não a
religiões e a posições de decisão frente às políticas de saúde. É evidente que
não se fala a mesma coisa, quando se trata de cada termo acima exposto,
mas também nem sempre é tão evidente a confusão dos seus conteúdos,
quando estes são interpostos nos processos de tomada de decisão e de acordo
com as vozes que estejam em questão. Por exemplo, a figura do médico não
pode ser a única a metrizar decisões, inclusive porque temos a concepção
compartilhada de que um médico não tira a vida. Outras questões são de
ordem afetiva e ética relativas às pessoas envolvidas emocionalmente com
decisões sobre a manutenção da vida em grande sofrimento ou como levar
para frente vidas que já não respondem à vida?
Estas questões são inexoráveis e não passam apenas pelas definições
conceituais. Os conteúdos destas decisões nem sempre são evidentes e são
carregados de valores em choque; muitas vezes, as decisões se redefinem em
cada situação e muitas decisões precisam ser tomadas frente aos impasses
e às controvérsias. Existem, sem dúvida, espaços de silêncio e de conflitos,

366
entre as pessoas que precisam ou que sentem que precisam tomar decisões.
Seguramente, a experiência envolvendo o fim da vida surpreende o legislador,
o médico, a família e a todos nós, em níveis que não passam por conceitos
juridicamente postos. Contudo, eles podem balizar práticas e instituir formas
adequadas à moralidade do tempo em questão, para a tomada de decisões que
envolvem uma cultura paliativa frente à morte. Isso significa ir ao encontro
da experiência dos sujeitos que sofrem e que são cuidados, para colocar em
marcha o processo de morte assistido. É um acompanhamento o menos
doloroso possível e edificante para a ética do fim da vida, que envolve mais
do que a doença. Envolve a morte da vontade, da autonomia, a dignidade
frente a uma morte certa.

As diretivas antecipadas da vontade e a responsabilidade


do médico

A Resolução nº. 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina – CFM,


autarquia supervisora da ética profissional em caráter nacional, dotada de
competência para julgar e disciplinar a classe médica (art. 2º, Lei 3.268/1957),
enaltece a autonomia do paciente no contexto da relação médica.
Na sua exposição de motivos, extraem-se como justificativas à
edição do ato: (1) a dificuldade de comunicação do paciente em fim da vida;
(2) a receptividade dos médicos às diretivas antecipadas da vontade; (3) a
receptividade dos pacientes; (4) a inserção, de forma simplificada, do dever
de respeito às diretivas antecipadas, inclusive verbais, nos Códigos de Ética
Médica da Espanha, Itália e Portugal; e (5) a possibilidade de envolvimento,
embora sem caráter deliberativo, dos Comitês de Bioética, já presentes em
grandes hospitais, em muitas decisões de fim de vida.
O diploma normativo define as diretivas antecipadas nestes termos:
“o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente,
sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber, no momento em
que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”
(art. 1º).
Ato contínuo, preconiza que “nas decisões sobre cuidados e
tratamentos de pacientes, que se encontram incapazes de comunicar-se, ou
de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará
em consideração suas diretivas antecipadas” (art. 2º, caput). Prevê, ainda,

367
a possibilidade de designação, pelo enfermo, de representante para tal fim,
cujas “informações serão levadas em consideração pelo médico” (art. 2º, §1º).
Pondera, no entanto, que tal manifestação antecipada não será
considerada pelo especialista quando, em sua análise, revelarem-se “em
desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica” (art. 2º,
§2º). E explicita, por fim, que as diretivas prévias manifestadas pelo paciente
“prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os
desejos dos familiares” (art. 2º, §3º), sendo que o esculápio procederá ao
registro, no prontuário, “das diretivas antecipadas de vontade que lhes foram
diretamente comunicadas” pelo enfermo (art. 2º, §4º).

O diploma normativo da entidade autárquica explicita ainda que:

Art. 2º [...]

§3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre


qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos
dos familiares.

§ 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas


de vontade que lhe foram diretamente comunicadas pelo
paciente.

§ 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade


do paciente, nem havendo representante designado, familiares
disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá
ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta
deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho
Regional e Federal de Medicina, para fundamentar sua decisão
sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária
e conveniente.

Segundo preconiza Miguel Kfouri Neto (2013, p. 307):

Essas diretrizes prévias manifestam-se por meio do testamento


do paciente ou testamento vital (living will), nas quais se indica
que tipo de tratamento se aceita ou se recusa, em certos casos
(doentes terminais, estados vegetativos persistentes) – e pelo
estabelecimento de procuradores para cuidados de saúde

368
(durable power of attorney for health care), caso em que o paciente
nomeará uma pessoa para tomar as decisões médicas por ele,
na hipótese de o enfermo se encontrar privado da capacidade
de decidir por si.

Não obstante também chamadas de testamento vital (living will), as


diretivas antecipadas não têm natureza testamentária, nos termos do art.
1.857 do Código Civil Brasileiro de 2002. Elas consistem em declaração de
vontade de caráter extrapatrimonial e personalíssimo, cujos efeitos, em
realidade, projetam-se para momento anterior ao falecimento, embora com
este se relacionem.
Tratando-se de disposição volitiva, aplicam-se como guias os
preceitos do Código Civil de 2002 acerca da validade dos negócios jurídicos,
os quais exigem: (1) capacidade da parte; (2) licitude, possibilidade e
determinabilidade do objeto; (3) licitude de motivo; (4) observância à
forma e à solenidade essencial exigidas em lei; (5) inexistência de finalidade
fraudulenta; (6) ausência de proibição legal (art. 166). É o que preconiza o
art. 166 do Código Civil Brasileiro de 2002, nos seguintes termos:

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:

I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz;

II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;

III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for


ilícito;

IV - não revestir a forma prescrita em lei;

V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial


para a sua validade;

VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa;

VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a


prática, sem cominar sanção.

369
Estabelece ainda:

Art. 168. As nulidades dos artigos antecedentes podem ser


alegadas por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público,
quando lhe couber intervir.

Parágrafo único. As nulidades devem ser pronunciadas pelo


juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos
e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las,
ainda que a requerimento das partes.

Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de


confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo.

A par da lacuna legislativa específica acerca da temática, entende-se


que o ato regulamentar do CFM encontra-se em harmonia “[...] com o art.
15 do Estatuto Civil, que consagra a possibilidade de dispor do corpo para
depois da morte, e com a própria autonomia privada, que rege as relações do
Direito Civil”. (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 324).
No âmbito da autonomia do paciente, Luís Roberto Barroso e Letícia
Martel (2011, p. 133) assinalam que o consentimento deve ser aferido
mediante parâmetros seguros, a fim de que se tenha certeza de que as escolhas
foram eleitas com liberdade, consciência e esclarecimento. As condições para
seu exercício devem ser propícias, compreendendo a ausência de privações
materiais e o acesso a sistemas adequados de saúde. Sobre o tema, cabe a
ponderação:

Muitas vezes, o momento em que o indivíduo subscreve


este documento é de muita tensão e pressão e, por isso,
condicionada a assinar o testamento. Alguns deles talvez nem
venham a ler tal declaração. As maiores vítimas serão os idosos,
nesse momento em que os velhos são mais desvalorizados. Não
será nenhuma surpresa que amanhã alguém seja obrigado ou
pressionado a assinar um termo dessa natureza como condição
necessária para o internamento de uma doença grave, ou
até mesmo no momento em que venha a aderir a um seguro
ou plano de saúde como condição obrigatória do benefício.
(FRANÇA, 2013, p. 519)

370
Embora a resolução exija (e não poderia ser diferente) a capacidade
do agente no momento de expressar a manifestação, ela não explicita maiores
detalhes acerca da forma do ato, além da determinação de consignação no
prontuário médico. Por essa razão, há quem advogue não haver “[...] qualquer
necessidade de registro em cartório da declaração de vontade”. (FARIAS,
ROSENVALD, 2015, p. 323).
Luciana Dadalto (2013, p. 64)77 (criadora de portal eletrônico
diretamente voltado à discussão da temática, bem como à publicação de
trabalhos, à coleta de dados e à divulgação para leigos, estudantes e profissionais
do direito e da saúde), entrementes, defende a imprescindibilidade da
lavratura das diretivas por escritura pública, perante um notário, a fim de
garantir a segurança jurídica. Segundo a advogada, a criação de um registro
nacional possibilita maior efetividade na observância da vontade do
declarante, cujas disposições seriam encaminhadas pelo próprio cartório,
dando-se publicidade e uniformidade ao ato.
Especificamente, no que tange à extensão e à aplicação concreta das
diretivas, sustenta Genival Veloso de França (2013, p. 518) que elas incidem
“diante de doença grave e incurável” e quando o declarante “não estiver mais
em condições de manifestar a sua vontade”. Centram-se, pois, em “autorizar a
não utilização de tratamento fútil ou condutas desnecessárias”, assegurando-
lhe, no seu entender, uma morte digna. Alerta o doutrinador, no entanto, não
se tratar de proposta de entendimento pacificado. De acordo com Genival
(2013, p. 519), um dos itens insertos nessas diretivas é a sigla DNR-Order
(ordem para não ressuscitar), ampliada para Do Not Attempt Resuscitation
Order (ordem para não tentar ressuscitar). Em alguns testamentos encontra-
se, ainda, a vontade escrita de não alimentar os acometidos de estado
vegetativo permanente.
No mesmo sentido, parecem apontar as lições de Barroso e Martel
(2011, p. 132-133), para quem a faceta da dignidade como autonomia deve
prevalecer nos casos de “impossibilidade de cura, melhora ou reversão do
quadro clínico, importando o tratamento em extensão da agonia e do
sofrimento, sem qualquer perspectiva para o paciente”, quando houver
“certeza do diagnóstico, do prognóstico e das alternativas existentes”,
observado o consentimento livre e esclarecido.

77 Disponível em: <www.testamentovital.com.br>. Acesso em: 12 jun.2017.

371
Para Barroso e Martel (2011, p. 133-134), considerando-se que
no Brasil não se tenha feito qualquer distinção jurídica entre a obstinação
terapêutica e as condutas ativas e intencionais de abreviação da vida,
justifica-se a legitimação de um modelo intermediário, que gira em torno da
ortotanásia. Segundo eles, a limitação consentida de tratamento, o cuidado
paliativo e o controle da dor são proposições plenamente compatíveis com a
Constituição e com a legislação vigente. A respeito da limitação consentida
de tratamento, preconizam os autores:

[...] constitui uma das políticas públicas cruciais para a


dignidade da pessoa humana no final da vida. Pacientes
terminais, em estado vegetativo persistente ou portadores
de doenças incuráveis, dolorosas e debilitantes, devem
ter reconhecido o direito de decidir acerca da extensão e
intensidade dos procedimentos que lhes serão aplicados. Têm
direito de recusar a obstinação terapêutica. Nesse contexto, a
omissão de atuação do profissional de saúde, em atendimento
à vontade livre, esclarecida e razoável do paciente ou de seus
responsáveis legais, não pode ser considerada crime. Não há,
na hipótese, a intenção de provocar o evento morte, mas,
sim, de impedir a agonia e o sofrimento inútil. (BARROSO;
MARTEL, 2011, p. 134)

Os sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor, a seu


turno, baseiam-se na ideia de atenção e amparo, quando o diagnóstico e o
prognóstico apontam que “[...] os esforços de cura serão poucos frutíferos
e que haverá sofrimento no processo de morte”. O foco é elevar e manter a
qualidade de vida do doente, da família e do cuidador, mediante o controle
da dor, dos sintomas e outros problemas, “[...] sejam físicos, espirituais e
até mesmo jurídicos”, como as questões testamentárias e a regularização de
uniões. (BARROSO; MARTEL, 2011, p. 135).
Dessa forma, tomando como norte a autonomia da vontade,
centro fundamental da dignidade da pessoa humana, pode-se concluir que,
pelo menos nas hipóteses de ortotanásia, cuidado paliativo e limitação
consentida de tratamento, não há que se falar em conduta antijurídica do
profissional médico, existindo manifestação voluntária do paciente, ou de
seu representante, regularmente consignada em termo de consentimento

372
livre e esclarecido, após o adequado percurso informativo. (NOVELINO,
2014, p. 474).
Segue no mesmo rumo a lição de Dary Cesar Fabriz, explicitada por
Miguel Kfouri Neto:

A recusa de um paciente de se expor a determinado


procedimento terapêutico não significa que ele esteja
recusando viver. O enfermo, com base em sua visão de mundo,
fez uma opção, arcando com os possíveis e prováveis riscos.
Cabe ao terapeuta adotar procedimentos alternativos que
possam amenizar as manifestações deletérias da enfermidade,
possibilitando o bem-estar possível, cabível ao caso.

Sobrevindo o óbito, não há que se questionar, visto que a morte


é inexorável e faz parte do próprio processo de vida. O paciente
que assim decidiu, arcando com a possibilidade de sua própria
morte, entendeu que, assim, alcançou uma morte digna, na
medida em que esta se enquadra em seu conceito de vida digna.
No caso, a vida digna é aceitar a própria morte como um fato
inexorável da própria vida [...]. (KFOURI NETO, 2013, p. 320)

De acordo com esse cenário, pode-se afirmar que, nos casos de uma
estrita observância às diretivas antecipadas manifestadas pelo paciente, após
o devido processo informativo, nos quadros determinados em que não são
vislumbradas a cura ou a reversão do estado clínico, afigura-se inapropriado
o acionamento judicial do médico para fins de responsabilização civil pela
morte do paciente.
Parte-se, por certo, da premissa de que o dever de indenizar
resultante do atuar médico implica o acolhimento da teoria clássica da
responsabilidade civil (SANTOS, 2008, p. 160), tornando-se indispensável,
para sua configuração, a conjugação dos pressupostos de conduta humana
(intervenção médica), dano, liame de causalidade entre eles e, ainda, nexo de
imputação consubstanciado na culpa (arts. 186, 927, caput, e 951 do Código
Civil c/c art. 14, §4º, do Código de Defesa do Consumidor). Em tais situações,
para além da inexistência de um ato médico culposo, à vista do respeito à
vontade livre e esclarecida do enfermo, não se constata a ocorrência de
verdadeiro dano, porquanto a morte representará, nessas circunstâncias, o
próprio viver dignamente.

373
A temática, longe de alcançar o consenso necessário, requer
aprofundamento do conjunto dos diversos setores e atores da sociedade
organizada (bioeticistas, médicos, juristas, antropólogos, sociológicos,
filósofos), a fim de que se possa estabelecer critérios mais sólidos de aplicação
do instituído, que tem como ponto de partida a identificação do paciente,
“[...] não apenas com a doença de que é portador, mas com a dignidade
inarredável de ser humano”. (KFOURI NETO, 2013, p. 321).
Seguramente, a morte exige discussão em nossa cultura e o seu
cuidado é um tema aberto a múltiplas controvérsias. Talvez a principal
de suas dimensões diga respeito à interdependência entre as pessoas e os
profissionais frente à antecipação da vontade; a situação em cada sujeito
demanda um cuidado específico e exige diferentes formas de decisão a
respeito do exercício deste cuidado.

Considerações finais

Antecipação de vontade é um tema, de fato, revestido de importância no


âmbito jurídico, sobretudo por dois aspectos: possui relevância social e não
é dotado de posicionamento consolidado entre os membros da coletividade.
Com relação ao primeiro aspecto, fala-se que a temática é dotada de
relevância na sociedade, porque é permanente e primordial a necessidade
humana de recorrer a atividades da área médica, visando à preservação,
tratamento e potencialização da saúde. Neste ponto, consta-se que tal
tarefa, atualmente, é mais consciente e menos descrente; vale dizer, já não se
associa mais o médico a uma figura paternalista, dotada de poderes divinos
de cura, mas, sim, a um profissional capacitado pelos preceitos científicos da
medicina.
Também se pode dizer que a relevância social da questão é reforçada
pelo fato de que, para além da livre escolha do paciente acerca das medidas e
tratamentos curativos (em nítido realce ao direito à vida), ganha enfoque, na
atualidade, o próprio direito de morrer dignamente, a partir dos ditames da
autonomia de vontade. Ainda que este tema esbarre em muitas polêmicas,
a despeito de todas as razões históricas e das pressões morais a favor ou
contrárias à morte antecipada, permanece de fato grande a dificuldade para
o exercício da liberdade de decidir sobre a própria morte. E este aspecto
envolve a necessidade de reflexividade como construção coletiva, tanto da

374
medicina, quanto do direito, da bioética, das diferentes áreas humanas, da
própria sociedade e pessoas em geral, a respeito do limite de tolerabilidade
do sofrimento físico, mental e dos cuidados a se dispensar, para garantir
dignidade a cada pessoa em situação de sofrimento.
Inseridas neste âmbito, apura-se que as diretivas antecipadas
constituem inequívoca expressão da autonomia do paciente, mediante
consentimento prévio, alcançado a partir de condicionantes, materiais e
mentais favoráveis, ainda que fazê-lo não elimine as controvérsias.
À vista da inexistência de disciplina legal específica acerca da
problemática e tomando em conta a generalidade das disposições constantes
na Resolução n. 1995/2012, editada pelo Conselho Federal de Medicina,
permanecem nebulosas questões fundamentais, tanto sobre eventuais
formalidades da declaração quanto sobre as referentes à concretização do
instituto.
Atesta-se, entre outros aspectos, a possibilidade de utilização dos
preceitos do diploma civilista atinentes à validade dos negócios jurídicos
como referencial da declaração, devendo tal ser aferida mediante parâmetros
seguros e condições propícias de exercício, após regular processo de
esclarecimento.
Especificamente quanto ao seu conteúdo, verificam-se posições
convergentes no sentido da viabilidade de aplicação das diretivas, nas
hipóteses em que a enfermidade seja incurável ou irreversível, podendo
elas compreender limitações consentidas de tratamento em situações
determinadas, cuidados paliativos e de aplacamento da dor e ordem de
não reanimação – todos, aspectos relacionados, em maior ou menor grau,
à ortotanásia, categoria inserida na denominada morte com intervenção.
À luz da responsabilidade civil clássica, defende-se a impossibilidade de
responsabilização do profissional médico, ao sobrevir o falecimento, nos
casos de estrita observância às diretivas, manifestadas após o devido processo
informativo, nos quadros determinados em que não se vislumbra a cura ou a
reversão do estado clínico, diante da inexistência, em tais circunstâncias, de
ato culposo, tampouco de dano propriamente dito – requisitos indispensáveis
ao dever de indenizar.
Por derradeiro, reconhece-se, inegavelmente, a necessidade de
aprofundamento dos estudos a respeito da temática, envolvendo diversos
setores da sociedade organizada, a fim de que se possa disciplinar de forma

375
mais sólida os contornos do instituto, conferindo, em última análise,
segurança e conforto às relações humanas. É preciso valorizar positivamente
as mudanças nas relações assistenciais e levar em conta que as mesmas
têm grande envergadura, na medida em que os temas tabus começam a
integrar a reflexividade humana. A concepção do direito à vida, que implica
a manutenção da mesma e que, por vezes, está inclusa contra a vontade da
pessoa, precisa ceder lugar a concepções mais acordes com o respeito ao
direito de autodeterminação das pessoas e com o caráter laico do Estado. As
garantias sempre devem ostentar a vida como valor e não ser contrárias a ela.
Contudo, o cuidado com a vida não está ligado sempre a fazer viver contra
a vontade e em condições penosas. Trata-se de cuidar como uma prática
complexa que envolve diferentes axiologias de articulação de uns com os
outros, que sejam dialógicas e que produzam posicionamento reflexivo sobre
os valores. Igualmente, há necessidade de estruturar novas capacidades
cognitivas pessoais, jurídicas, médicas e sociais, em torno de uma análise
normativa objetiva dos fundamentos humanos que são centrais frente à
morte e que sejam compatíveis com o respeito à vida, à relatividade cultural
e à autonomia pessoal.

Referências

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a questão da culpa no direito brasileiro. Salvador: JusPodivm, 2008.

377
378
SOBRE AS ORGANIZADORAS E OS ORGANIZADORES
Marlene Tamanini
Professora no Departamento de Sociologia da Universidade Federal do
Paraná, Doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa
Catarina, Brasil. Pós doutorado na Universidade de Barcelona, com bolsa
oferecida pela Capes. Pesquisadora, Professora e Coordenadora do Núcleo de
Estudos de Gênero na UFPR/PR e Vice Coordenadora do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da UFPR. Ministra cursos nas áreas de Sociologia,
Epistemologia e Metodologia da Pesquisa. Faz pesquisa e ministra disciplinas
com foco em gênero, família, cuidado, trabalho, sexualidade e corpo. É autora
de livros no campo da Reprodução Assistida. Suas publicações em revistas e
em capítulos de livros retratam seus interesses de estudo e pesquisa no campo
da reprodução humana assistida, maternidades, cuidado, na área de gênero
e trabalho, de violência doméstica, direitos sexuais e reprodutivos, com
transversalidades em bioética, em interdisciplinaridade e em tecnologias.
tamaniniufpr@gmail.com

Francisco G. Heidemann
Professor universitário aposentado pela UFSC, obteve seu doutorado em
Administração Pública pela University of Southern California, em Los
Angeles, 1984. Iniciou a carreira profissional na área editorial, tendo passado
por casas editoras no Rio de Janeiro (Vozes, Fundação Getúlio Vargas) e, como
free lancer autônomo, em São Paulo (Banas, Atlas, Difel, E.P.U., McGraw-Hill).
Também teve experiência em empresa pública, quando trabalhou por mais de
três anos na área financeira da ELETROSUL. Mas foi a carreira de Professor
Universitário que absorveu a quase totalidade de sua carreira profissional,
tendo passado pela UFSC, FURB (Blumenau), PUC-PR (Curitiba) e a UDESC.
Seu livro Políticas públicas e desenvolvimento: Bases epistemológicas e modelos
de análise, publicado em coautoria com Jos é F. Salm, pela UnB (3ª edição,
em 2015), é o principal resultado de suas pesquisas na área da administração
e da política pública. Como aposentado, dedica-se a projetos como o livro
que o leitor tem a oportunidade de manusear no momento desta consulta.
heidex0@gmail.com

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Eliane Portes Vargas
Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social – IMS/UERJ,
com área de concentração em Ciências Sociais e Humanas e de Saúde
(2006). É pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo
Cruz, e Docente da Pós-Graduação em Ensino em Biociências e Saúde (IOC/
FIOCRUZ), Brasil. Suas pesquisas envolvem temas nas áreas de interesse
de Corpo, Sexualidade, Reprodução, Tecnologias Reprodutivas e Relações
Familiares e de Gênero, Alimentação e Cultura.
epvargas@ioc.fiocruz.br

Sandro Marcos Castro de Araujo


Membro do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Federal do Paraná.
É Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Desenvolve
pesquisas abordando as áreas do cuidado, gênero e suas interseccionalidades,
especialmente no que concerne ao desenvolvimento de políticas públicas
destinadas ao care e a suas trabalhadoras. Exerce atividades de pesquisa,
ensino e extensão no Instituto Federal do Paraná, campus de Campo Largo.
sandro.araujo@ifpr.edu.br

380
As treze autoras e dois autores de O Cuidado em Cena nos remetem aos desafios
contemporâneos para o cuidado como uma necessidade humana, social, política e pessoal.
No livro os leitores se deparam com reflexões sobre os vários contextos da prática de
cuidados e dos desafios interpostos à pesquisa e às políticas de atendimento em situações de
vulnerabilidade. Compostos sob o olhar de múltiplas perspectivas teóricas, com exigências
epistemológicas próprias, seus capítulos respondem a diversas interfaces dos processos de
feminilização do care, diante da persistente ausência de políticas públicas que lhe digam
respeito. Em seus textos estão expostos os desafios para a sociedade levar a sério as práticas
do care e tomá-las como parte do debate necessário à vida pública e da interdependência
constitutiva de uma sociedade de cuidado. Esta escolha diz respeito ao cuidar, ter solicitude,
atenção, preocupar-se com o outro, estar atento às suas necessidades como parte dos sentidos
do cuidado e das tensões que resultam da autonomia essencial às pessoas que necessitam,
querem ou não querem ser cuidadas. E a democracia do cuidado decorre da interdependência
dos envolvidos nele. Fazer da disponibilidade ao outro uma qualidade da relação de care, e
não um suplemento da alma, exige deixar-se afetar pelo outro e por sua necessidade. Esta
é uma posição necessária para se evitar a exploração de quem cuida e de quem é cuidado.
No compêndio, mostra-se igualmente como as teorias utilizadas no trato com o tema e as
práticas cotidianas não são assumidas com critérios de justiça, nos diferentes âmbitos, e como
as mesmas não contemplam as realidades sociais, familiares e econômicas, fazendo parecer,
muitas vezes, que o trabalho do cuidar está alicerçado em pressupostos de harmonia. O fato é,
porém, que esse cuidado é, frequentemente, injusto, porque constitui enormes desigualdades
de sexo, de gênero, classe, raça, nas relações pessoais, afetivas e na sua profissionalização.

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