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Reflexões comportamentalistas
Carolina Laurenti
Carlos Eduardo Lopes (orgs.)
LAURENTI, C., and LOPES, CE., orgs. Cultura, democracia e ética: reflexões
comportamentalistas [online]. Maringá: Eduem, 2015.
ISBN 978-85-7628-692-9. Available from SciELO Books
<http://books.scielo.org/>.
Cultura, democracia e ética:
reflexões comportamentalistas
EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
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Prefácio
Maura Alves Nunes Gongora
C968
Cultura, democracia e ética [livro eletrônico]: reflexões
comportamentalistas / Carolina Laurenti, Carlos Eduardo
Lopes(organizadores). – Maringá: Eduem, 2015.
329 Kb; ePUB
ISBN 978-85-7628-692-9
1. Psicologia. 2. Cultura. 3. Política. 4. Ética. 5.
Behaviorismo radical. I. Laurenti, Carolina, org. II. Lopes,
Carlos Eduardo, org. III. Título.
CDD 21.ed. 150.1943
Editora filiada à
Apresentação
Capítulo 1
Reflexões comportamentalistas sobre a maldade contemporânea
Capítulo 2
O conceito de sobrevivência das culturas e suas implicações para
uma ética skinneriana
Capítulo 3
Skinner, democracia e anarquia
Capítulo 4
Seleção pelas consequências como norte funcional para políticas
públicas
Sobre os autores
Prefácio
Antes de apresentar meus comentários a respeito do livro preciso
dizer algo sobre os autores. Fiquei feliz em ver aqui reunidos incansáveis
estudiosos do comportamentalismo radical e da análise do
comportamento que muito contribuem para manter vivo o debate nesses
dois domínios. Sinto-me honrada em poder comentar aqui os seus
textos. Quanto ao livro, antes de dizer qualquer outra coisa sobre seus
méritos, já posso adiantar que recomendo a leitura de todos os seus
capítulos para aquelas pessoas que se interessam pelos problemas atuais
de nossa sociedade e queiram entender em que medida o
comportamentalismo radical, como sistema filosófico, pode fundamentar
a compreensão de tais problemas e, ainda, indicar possibilidades de
intervenções que possam solucioná-los.
São quatro capítulos distintos, que podem ser lidos em qualquer
ordem, mas que se apresentam completamente integrados por relatarem
análises de questões relativas à cultura. O resultado é um belo conjunto
de textos que compartilham diferentes qualidades entre as quais gostaria
de destacar ao menos quatro.
Em primeiro lugar, todos os capítulos apresentam exames da obra de
Skinner com destaques para seus pontos mais consistentes e também
para suas inconsistências, ou seja, são análises ponderadas e nada
dogmáticas.
Em segundo, ao longo do livro, os autores retomam diversas questões
conceituais a respeito do modelo de seleção por consequências. Isto
confere ao livro mais um mérito: permite ao leitor aprofundar a
compreensão e a reflexão sobre aspectos conceituais desse modelo. A
análise do nível cultural, conduzida em diferentes dimensões pelos
diversos autores, certamente contribui para diminuir a carência que
temos de estudos e de bibliografia relativa a esse nível seletivo. Além
disso, a linguagem bastante acessível de todos os capítulos permite que
sejam consultados tanto por alunos de graduação quanto por estudiosos
de áreas afins.
Em terceiro lugar, além de aprofundar na análise dos processos
culturais, mencionados acima, o livro tem o mérito de enfrentar, com
competência, dois dos temas mais difíceis da obra skinneriana (e,
naturalmente, do comportamentalismo radical): a ética e a política.
Em quarto, as reflexões apresentadas são extremamente atuais e
urgentes. Aplicam-se a problemas não só do futuro, mas a questões
atuais que nos afetam diretamente, como o governo por oligarquias, o
esgotamento de recursos naturais, a criminalidade, o imediatismo, a
impessoalidade das relações mediadas por burocracia e tecnologia, a
dificuldade em mudar práticas culturais indesejáveis, e assim por diante.
Gostaria, ainda, de mencionar ao menos um ponto, entre tantos que
apreciei, em cada um dos capítulos.
No primeiro capítulo, Lopes e Laurenti surpreenderam-me ao tratar
de um tema que está praticamente todo dia na pauta da mídia: a maldade.
Aqui, meu destaque é para a tese corajosa e totalmente pertinente que
defendem: não há uma essência humana, boa ou má. O ser humano só é
(bom ou mau) em contexto. Embora o foco de análise desse capítulo
seja a maldade, essa tese permite discutir possibilidades de se promover a
bondade, por meio de condições favoráveis à ocorrência do bem ou de
comportamentos bons. Entre as reflexões desse capítulo gostaria, ainda,
de indicar aos leitores especial atenção à discussão da importância do
desenvolvimento da ‘sensibilidade ao outro’.
O capítulo seguinte, de Melo e Castro, é extremamente esclarecedor
de posicionamentos éticos de Skinner. Uma contribuição especial dessas
autoras está na elucidação e análise da ‘ética aplicada’ defendida por esse
autor e que sempre foi o centro de seus interesses. Nessa análise pode-se
destacar uma crítica contundente das autoras aos posicionamentos de
Skinner no campo da ética: sua tentativa de manter-se apenas no
domínio da ética descritiva sem assumir, ostensivamente, que também
defendia uma ética prescritiva.
No terceiro capítulo, Abib trata de um tema raramente abordado com
propriedade em nossas fontes bibliográficas: um exame fundamentado
das posições políticas de Skinner. Entre outros esclarecimentos
destacam-se aqueles relativos à guinada de Skinner que, ao analisar a
democracia, passou a tratar de cultura. O autor esclarece como Skinner
relaciona democracia com cultura e como passa a criticar as ‘mediações’
que dão errado no mundo (cultura) ocidental. A elucidação de um tipo
de anarquismo defendido por Skinner, no meu entender, representa mais
uma contribuição inédita de Abib às reflexões deste livro relativas à obra
skinneriana.
No último capítulo, Carrara escreve como quem tem experiência
prática em pesquisa com intervenção cultural. Aborda as dificuldades de
se planejar, bem como as dificuldades de se conseguir adesão nos
planejamentos culturais e nas políticas públicas. Mas também aponta
algumas saídas e até sugere uma ferramenta de apoio construída por seu
grupo de pesquisa. Neste capítulo, chamou-me especial atenção a
argumentação de Carrara no sentido de defender as possibilidades da
análise do comportamento contribuir para mudar o mundo. Sua
argumentação apresenta-se criteriosa e cuidadosa, mas, mantendo-se
otimista e contrapondo-se a uma declaração pessimista do próprio
Skinner que, em uma de suas palestras, chegou a duvidar dessa
possibilidade.
Gostaria de encerrar cumprimentando os autores pela maneira
elucidativa e não dogmática com que trataram cada tema e por
compartilharem com Carrara a defesa de possibilidades das intervenções
comportamentais fazerem diferença nas soluções de nossos graves
problemas sociais. Foi muito bom verificar que, ainda que ponderado, o
que predomina ao longo do livro é um tom otimista. E, para encerrar,
gostaria de reforçar algo já pontuado pelos organizadores Lopes e
Laurenti na apresentação: espero que este livro seja um convite para que
seus leitores, sejam eles planejadores culturais ou não, coloquem na
pauta das suas
reflexões a análise dos valores subjacentes às nossas práticas culturais
atuais.
Considerações iniciais
Desde a modernidade, a maldade humana é pensada a partir de uma
contraposição entre natureza e cultura, o que deu origem a dois
posicionamentos antagônicos em relação ao assunto. De um lado, a
vertente hobbesiana1 viu na natureza a fonte dos problemas humanos e,
por isso, justificou sua exploração científico-tecnológica,
apostando no desenvolvimento da racionalidade e da civilidade como
modos de solucionar a maldade. De outro lado, a vertente rousseauniana
culpou a civilização pelas mazelas da humanidade, defendendo que em
tempos pré-modernos a simplicidade e o contato direto com a natureza
caracterizavam uma humanidade completamente livre do mal (cf.
ROUSSEAU, 1978).
Estudos atuais têm criado dificuldades para a manutenção dessa visão
dicotômica, ao mesmo tempo em que abrem espaço para se pensar o mal
em outras bases. Investigações sobre a história da espécie humana têm
questionado a visão estritamente hobbesiana de natureza. Evolucionistas
contemporâneos têm mostrado que comportamentos de empatia,
gentileza e cooperação estão presentes entre os animais gregários,
incluindo os grandes primatas, questionando, assim, a visão de que a
natureza é necessariamente egoísta, competitiva e violenta (cf. WAAL,
2010). Além disso, estatísticas atuais sobre a história da cultura moderna
mostram que a vida social pré-moderna estava longe de ser pacífica e
isenta de maldade, como defendeu a visão rousseauniana.
Pautando-se nesses dados, alguns autores argumentam que a civilidade
ajudou a diminuir drasticamente certos tipos de violência comuns em
séculos passados, como perseguições religiosas, torturas, execuções
públicas, entre outros (cf. PINKER, 2013).
Tomados em conjunto, os dados apresentados por esses estudos sobre
a história da espécie e a história da cultura, ao invés de resolverem o
problema, parecem criar um novo desafio. A história da cultura contada
com base nas estatísticas mais atuais mostra que o processo civilizador
ajudou na redução da maldade, o que nos faz pender a favor da visão
hobbesiana. No entanto, os dados evolutivos impedem que adotemos
essa visão, na medida em que nos mostra uma abundância de exemplos
de bondade em diferentes espécies, incluindo os grandes primatas. Além
disso, se hobbesianos estivessem corretos, e o processo civilizador fosse
capaz de eliminar a maldade humana, os exemplos de maldade na
atualidade seriam escassos, o que não é confirmado pela história do
século XX, com suas duas guerras mundiais, e pelas ocorrências de
maldade que temos presenciado nesse início do século XXI. Mesmo os
autores que destacam a presença da cooperação e da empatia nos
grandes primatas não humanos recusam a conclusão de que isso é uma
evidência a favor da visão rousseauniana de natureza.
Isso porque a presença do que poderíamos considerar atos de maldade
nos grandes primatas é um dado bastante conhecido (WAAL, 2010). Os
chimpanzés, por exemplo, muitas vezes formam bandos que invadem o
território de outros clãs, atacando e matando indivíduos que encontram
pelo caminho, sem qualquer justificativa ligada à sobrevivência
(WRANGHAM; PETERSON, 1998).
Uma interpretação analítico-comportamental do assunto talvez possa
encaminhar uma solução para esse impasse, ajudando na compreensão
da maldade humana fora das visões hobbesiana e rousseauniana. De um
ponto de vista analítico-comportamental, o comportamento individual
situa-se no entrelaçamento da história da espécie humana com a história
da cultura, de modo que natureza e cultura contribuem para a
constituição do indivíduo, embora nenhuma dessas histórias tenha,
necessariamente, um caráter
preponderante sobre a outra. Isso quer dizer que natureza e cultura são
campos de possibilidades e, como tais, não determinam
unidirecionalmente os rumos da vida individual. Encontramos na
natureza um conjunto de predisposições, não só egoístas e violentas, mas
também empáticas e cooperativas. Nesse sentido, a natureza não é a
fonte de nossos problemas e, consequentemente, as práticas culturais
não são um antídoto à natureza. Por outro lado, a cultura não evolui
sempre para melhor. Na história das culturas, determinadas práticas,
adotadas e transmitidas para outras gerações, podem melhorar a vida dos
membros do grupo, mas também podem colocar em risco a existência da
cultura e dos próprios indivíduos. Uma cultura que institucionaliza
torturas e execuções públicas, por exemplo, acaba criando um
sentimento de insegurança pública, bem como legitimando o uso
desmedido da força.
A interpretação comportamentalista, proposta aqui, sugere que a
solução para os problemas humanos consiste em aproveitar o que há de
melhor na natureza e na cultura, ao mesmo tempo em que é preciso
abandonar as contribuições perniciosas e destrutivas dessas histórias. No
que diz respeito à história da nossa espécie, como mencionado alhures,
encontramos não só uma tendência à competição e agressividade, mas
também à empatia e cooperação. No entanto, a presença de uma
tendência inata originada por nossa história evolutiva, seja uma tendência
à maldade ou à bondade, não pode ser considerada como determinante
dos fenômenos culturais. A biologia evolutiva esclarece esse ponto
fazendo uma distinção entre causa última e causa próxima do
comportamento individual. A causa última é “[...] a razão por que um
comportamento se desenvolveu numa espécie ao longo do processo
evolutivo [...]” (WAAL, 2010, p. 323); já a causa próxima é “[...] o modo
como esse comportamento é produzido pelos indivíduos no aqui e
agora” (WAAL, 2010, p. 323, grifo do autor). A confusão entre causa
última e causa próxima parece estar na base de algumas interpretações
reducionistas difundidas pela sociobiologia, considerando, por exemplo,
a guerra entre países como uma expressão de tendências filogenéticas de
defesa de território (cf. SKINNER, 1981, p. 503).
Waal (2010) argumenta a favor de uma ‘autonomia motivacional’ para
o comportamento individual, o que quer dizer que os motivos para a
ocorrência de um comportamento atual devem ser buscados em causas
próximas, o que muitas vezes contraria os motivos evolutivos que
explicam a origem filogenética desse tipo de comportamento. Nas
palavras desse autor:
A ideia por trás da autonomia motivacional é de que as
motivações que levam a um comportamento não são limitadas pela
causa última da existência desse comportamento. Ainda que
determinado comportamento tenha evoluído por razões egoístas,
estas não precisam fazer parte daquilo que motiva um indivíduo a
colocá-lo em prática, do mesmo modo como uma aranha não
precisa estar determinada a apanhar moscas no momento em que
está tecendo sua teia (WAAL, 2010, p. 324, grifo do autor).
De um ponto de vista analítico-comportamental isso equivale dizer
que a compreensão de um comportamento atual depende da descrição
das contingências atuais que promovem e mantêm esse comportamento,
e que, por mais que esse comportamento possa ter raízes filogenéticas,
os motivos da seleção na história da espécie e na história de vida do
indivíduo não precisam ser, e geralmente não são, os mesmos. Dessa
forma, se quisermos entender a maldade cometida pelos indivíduos
precisamos nos voltar para as condições atuais responsáveis por atos
maus. Partindo dessa conclusão, temos que nos voltar para o
esclarecimento dessas condições; temos que explicitar o contexto em que
a maldade ocorre, para, em seguida, pensar como mudar esse contexto
de modo a promover a bondade. Em relação à primeira tarefa, não é
difícil constatar que os problemas relacionados à maldade humana, que
reclamam uma solução premente, ocorrem no âmbito cultural. São
fenômenos como guerras, genocídios, e violência urbana em geral, que
claramente pertencem ao terceiro nível de variação e seleção do
comportamento humano. Isso quer dizer que o contexto para a
compreensão da maldade humana é a cultura, ou, mais especificamente,
o comportamento que ocorre no grupo. Além
disso, os exemplos mais emblemáticos e intrigantes de maldade,
sobretudo os ocorridos no século XX, parecem, de modo geral, terem
sido perpetrados por grupos de pessoas. Isso não significa que a maldade
só é cometida por grupos, ou que um indivíduo isoladamente não pode
ser cruel; mas não podemos questionar o fato de que a maldade coletiva
é um fenômeno contemporâneo que tem produzido resultados
assustadores. Como exemplo desse tipo de maldade, basta lembrar da
Segunda Guerra Mundial e do papel do nazismo nesse episódio sombrio
da história recente da humanidade.
A primeira parte deste ensaio consiste em uma tentativa de explicitar
contingências que podem estar operando no contexto desses grupos que
perpetram o mal. Para tanto, iniciaremos com alguns exemplos de
maldades cometidas por grupos nas últimas décadas, buscando avaliar
explicações tradicionais para esses atos. Na segunda parte,
apresentaremos uma explicação alternativa do mal, proposta pelo
sociólogo Zygmunt Bauman (1925-). Isso se justifica pelo fato de suas
análises ajudarem na construção de uma interpretação
comportamentalista do assunto, na medida em que permitem a
identificação de algumas das condições sociais para a maldade,
considerando o papel das consequências das ações nesse contexto – uma
perspectiva que coaduna com uma teoria consequencialista do
comportamento. Por fim, apontaremos algumas práticas culturais que
parecem ainda manter o risco da maldade coletiva nos dias de hoje, o
que nos coloca o desafio de como substituir a maldade pela bondade na
sociedade contemporânea.
1. Sobre o mal
O mal é um assunto tratado por muitos autores em diferentes
contextos. A presença do mal no mundo e sua compatibilidade com a
existência de Deus era tema recorrente em tratados filosóficos medievais
(FERRATER MORA, 2001); as ricas descrições do inferno – um lugar
em que as mais variadas formas de maldade são
castigadas com maldades ainda piores – são uma marca indelével de
obras renascentistas (DANTE ALIGHIERI, 2001). Nas artes plásticas, a
representação do mal cruzou os séculos caminhando lado a lado com a
beleza e a bondade (ECO, 2007). Dada a extensão do assunto, parece
pouco plausível admitir que o mal tenha uma definição unívoca
compartilhada em todos esses contextos. Mesmo a concepção religiosa
abriga diversas possibilidades, que vão desde explicações do mal
recorrendo a demônios ou espíritos que desviariam o ser humano de
suas virtudes, até uma culpabilização inata, e de certa forma irremediável,
do homem, marcado pelo pecado original.
Assim, é necessário esclarecer o que estamos denominando de mal
neste ensaio. Como mencionado alhures, nosso interesse é discutir o mal
em uma perspectiva comportamentalista, o que nos leva a delimitar a
maldade como uma característica humana, mais especificamente, como
uma propriedade de alguns comportamentos humanos. Mantendo-se
nessa perspectiva, para definir ‘mal’ precisamos, inicialmente, delimitar as
características de uma ação má. Definiremos ‘mal’ como um conjunto de
ações, que se caracterizam por agressão, abuso, humilhação, exploração,
desprezo, acarretando o sofrimento de outras pessoas e, em situações
limite, a sua morte. Em linhas gerais, o mal está nos comportamentos
que promovem o dano e o sofrimento ao outro (ZIMBARDO, 2012).
Na medida em que os comportamentos individuais têm explicações
idiossincráticas, a explicação da maldade centrada em um indivíduo
particular não nos ajuda na compreensão da maldade como fenômenos
humano. Em outras palavras, contingências de reforçamento e punição
que explicam um comportamento mau de uma pessoa, isoladamente,
não podem ser transpostas como regra para todo comportamento mau.
Isso nos obriga a outro refinamento em relação à análise da maldade
pretendida por este ensaio. Examinaremos, aqui, a maldade cometida por
grupos de pessoas, levantando de antemão a hipótese de que, nesses
casos, deve haver contingências compartilhadas pelos membros do
grupo que poderiam explicar a maldade em larga
escala, que ocorreu e continua ocorrendo na sociedade contemporânea.
Exemplos de maldade de grupos marcaram o século XX, desafiando
psicólogos e sociólogos a explicar a ocorrência de massacres que
pareciam improváveis para uma sociedade moderna. Provavelmente o
primeiro e mais discutido caso de maldade extrema do século XX tenha
sido o Holocausto ocorrido na Alemanha nazista. As primeiras
execuções conduzidas oficialmente pelo regime nazista ocorreram a
partir de 1939, com a adoção da política de eutanásia dirigida a pessoas
portadoras de deficiência consideradas incuráveis. Embora a política de
eutanásia tenha sido abandonada em 1941, as execuções continuaram em
número crescente em campos de extermínio criados para judeus, eslavos,
polacos, ciganos e outras pessoas consideradas racialmente inferiores. Os
números de mortes são impressionantes. No campo de extermínio de
Auschwitz, na Polônia, estima-se que até 6.000 pessoas eram
assassinadas por dia no auge das deportações de judeus (UNITED
STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM, s.d.). Além da
crueldade, ricamente descrita na maioria dos relatos de sobreviventes, o
que causa perplexidade no caso do Holocausto é que a maioria dos
executores eram pessoas comuns, pais de família, agricultores e jovens
que, por ocasião da guerra, foram obrigados a se alistar no exército
(BAUMAN, 1998). Esse dado é impressionante porque sugere que a
maldade está mais próxima do que podemos pensar e, como veremos,
ela não é exclusiva do contexto do Holocausto.
Outro exemplo de maldade bem mais atual e igualmente assustador é
o genocídio de Ruanda. Dados das Nações Unidas estimam que, em
1994, num período de apenas três meses, em torno de 800 mil a 1 milhão
de ruandeses foram exterminados. Na época, Ruanda era composta
predominantemente por dois grupos étnicos: os hutus, os tutsi2. A
separação hierárquica desses grupos, que estaria na raiz do conflito, foi
promovida pelos colonizadores europeus, inicialmente alemães e
posteriormente belgas (RWANDA..., s.d.). Os tutsi foram considerados
superiores na hierarquia social, até a introdução do cristianismo em
Ruanda, na década de 1940, quando os hutus
assumiram sua posição. Com o apoio dos colonizadores belgas, os hutus
passaram a ocupar a maioria dos cargos administrativos, elegendo um
presidente de sua etnia. Com a independência, em 1962, os hutus,
maioria em Ruanda, mantiveram-se no poder, mesmo com o golpe
militar que depôs o presidente eleito e instituiu um regime militar, em
1973. Nesse período, a perseguição e a morte de cidadãos tutsi fizeram
com que essa etnia se exilasse em países vizinhos. A partir de 1990,
Ruanda sofreu uma guerra civil e, com o apoio de países vizinhos, os
refugiados tutsi puderam voltar a Ruanda em 1993, quando foram
assinados acordos que previam a partilha de poder entre as etnias. Em
1994, um acidente de avião que matou o presidente, de etnia hutu,
funcionou como estopim para o que se tornou um genocídio. Os
extremistas da etnia hutu interpretaram a morte do presidente como uma
conspiração tutsi e convocaram, por meio de programas de rádio e
outros meios de comunicação, os hutus ao extermínio de todos os tutsi
(OLIVEIRA; GROSSMANN, 2012).
O resultado do conflito entre essas etnias foi o aniquilamento de cerca
de três quartos de toda a população tutsi. Além dos números, o que
impressiona são as armas utilizadas pelos hutus no ataque aos tutsis, que
vão desde armas de fogo até facões, porretes com pregos e pedras. Outra
arma usada nesse massacre, com a justificativa até de poupar munição,
foi o estupro de mulheres e crianças (ZIMBARDO, 2012). A prática do
estupro no genocídio de Ruanda, além dos danos psicológicos, foi
responsável pela proliferação de doenças sexualmente transmissíveis às
outras gerações tutsis.
Mas talvez o aspecto que mais chame a atenção no episódio de
Ruanda seja o fato de que, na maioria das vezes, esses atos cruéis contra
os tutsis foram perpetrados por pessoas conhecidas. Muitos hutus, a
mando, mataram antigos amigos, vizinhos de rua, e colegas de trabalho.
Em uma entrevista, dada algumas décadas depois, alguns hutus
descreveram que:
“a pior coisa do massacre foi matar o meu vizinho; costumávamos
beber juntos e seu gado pastava na minha grama. Ele era como um
parente”. Uma mãe hutu descreveu como espancou até a morte as
crianças da vizinha, que olhavam-na com olhos arregalados de
assombro, pois tinham sido amigos e vizinhos durante toda a vida.
Ela relatou que alguém do governo lhe dissera que os tutsis eram
seus inimigos, e lhe deram um porrete e a seu marido um facão,
para que usassem contra a ameaça. A mulher justificou o massacre
dizendo estar fazendo um “favor” àquelas crianças, que se
tornariam órfãs indefesas, visto que os pais já haviam sido
assassinados (ZIMBARDO, 2012, p. 34).
Não é preciso continuar descrevendo detalhes horripilantes de como
os vizinhos hutus estupraram suas colegas, as filhas delas, e de como
forçavam os filhos dos tutsis a estuprar suas próprias mães e irmãs (cf.
ZIMBARDO, 2012). O que merece ser destacado é que esse massacre
foi executado por colegas e vizinhos, e as justificativas dadas pelos
assassinos é que eles estavam simplesmente seguindo ordens.
O terceiro exemplo de maldade é ainda mais recente. Veio a público
mundialmente em maio de 2004, com a divulgação das cenas de abusos e
diversas formas de tortura cometidas por jovens norte- americanos,
homens e mulheres, contra detentos da prisão de Abu Ghraib, no
Iraque. Os soldados norte-americanos, responsáveis pelos prisioneiros,
tiraram fotos das perversidades que cometiam contra eles e as exibiam
como troféus. Uma das torturadoras, uma militar de 21 anos, relatou que
esses atos eram apenas ‘curtição’ (ZIMBARDO, 2012). Essas curtições
consistiam em:
[...] socos, tapas, chutes em detentos; pulos sobre seus pés; detentos
desnudos à força, encapuzados, enfileirados uns sobre os outros
formando uma pirâmide; homens nus forçados a usar roupas
íntimas femininas sobre as cabeças; homens obrigados a se
masturbarem ou a simularem sexo oral enquanto eram fotografados
ou filmados ao lado de militares do
sexo feminino sorrindo ou encorajando tais ações; prisioneiros
presos nos caibros das celas durantes longos períodos; arrastados
para lá e para cá com coleiras amarradas aos seus pescoços; sendo
assustados por cachorros de ataque sem mordaça (ZIMBARDO,
2012, p. 42).
Uma das cenas mais perturbadoras, e que ganhou o mundo
rapidamente pela internet e outros meios de comunicação, foi a do
“homem triângulo” (cf. ZIMBARDO, 2012, p. 42). Esse prisioneiro foi
colocado em uma posição bastante desconfortável – encapuzado, de pé
em cima de uma pequena caixa com os braços abertos – e induzido a
acreditar que poderia ser eletrocutado se saísse dessa posição por
qualquer motivo. Como argumenta Zimbardo (2012, p. 42), “[...] não
importa que os fios terminassem em lugar algum; importa que ele [o
prisioneiro] acreditava na mentira, e deve ter experimentado uma tensão
considerável”.
Novamente, os protagonistas dos atos de maldade não apresentavam
nenhum indício anterior que permitisse prever esse tipo de
comportamento. Pelo contrário, eram jovens considerados corretos,
saudáveis e bem treinados pelas forças armadas; jovens que poderiam ser
nossos vizinhos, amigos ou parentes, e que, provavelmente, nesses
contextos, seriam considerados acima de qualquer suspeita3.
Isso nos conduz a uma questão fundamental em uma análise
comportamentalista da maldade: o que explica a ocorrência de ações
desse tipo? Será que essa explicação deve ser buscada na constituição dos
indivíduos que cometeram esses atos? O Holocausto, por exemplo,
poderia ser pensado como uma conjunção infeliz de pessoas
desajustadas, de psicopatas, que tomaram o poder. Ou talvez o nazismo
seja um desdobramento quase inevitável do espírito alemão, mais
especificamente, de sua herança romântica irracionalista. Tanto em um
caso como no outro, tendemos a nos sentir aliviados, uma vez que esse
tipo de maldade pertenceria a indivíduos específicos ou a determinada
cultura, distante de nós. Mas se esse fosse o caso, como
explicar os outros
exemplos, em que os protagonistas de atos cruéis eram, até então,
considerados pessoas comuns, pais de família, comerciantes, vizinhos
que conviviam sem grandes problemas? Parece pouco sensato apelarmos
para uma coincidência que aproximou desajustados nesses casos,
tampouco podemos encontrar traços culturais específicos que
aproximem jovens norte-americanos de hutus. Assim, retomamos nossa
questão inicial: como explicar a ocorrência da maldade?
Considerações finais
Depois de todo esse percurso podemos finalmente levantar a seguinte
questão: é possível fazer o bem? As análises apresentadas anteriormente
vão na direção de uma resposta positiva, desde que nos empenhemos em
promover algumas mudanças. Em primeiro lugar, precisamos romper
com a lógica medieval de que o ser humano tende naturalmente ao mal,
de que ele é manchado pelo pecado original, de que sem uma regulação
externa, sem uma padronização as relações interpessoais serão
necessariamente violentas. É justamente essa imagem de um ser humano
‘decaído’ que povoa os argumentos a favor da manutenção do poder das
agências controladoras. Precisamos combater esse argumento mostrando
o que corre nos bastidores dessas agências, a função reacionária dos
regulamentos, das normas e da burocracia em geral. Enfim, precisamos
aprender a desobedecer quando necessário.
Além disso, é preciso insistir que o bem e o mal são inerentes ao
comportamento, e que não somos vítimas do mundo, mas somos,
sobretudo, responsáveis, já que construímos (ou destruímos) o mundo
com nossas ações. Isso quer dizer que a chave para a bondade está em
como agimos, como nos relacionamos com o outro, quanto lutamos
pelo contato face a face, e quanto resistimos à mediação das nossas
ações.
É possível, portanto, fazer o bem, mas isso exige, antes de tudo, uma
maior atenção às condições responsáveis pelo mal, que continuam mais
presentes do que nunca em nossa sociedade atual.
Referências
ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. 3. ed. São Paulo: Geração
Editorial, 2013.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Tradução M.
Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
BAUMAN, Zygmunt. Vida em fragmentos: sobre a ética pós- moderna.
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Considerações iniciais
O selecionismo consolida-se na obra de B. F. Skinner em 1981 com a
publicação de Selection by consequences. Inspirado no modo causal
darwiniano de seleção natural, Skinner atribuiu aos processos de variação
e seleção a origem e a manutenção de comportamentos e de práticas
culturais. De acordo com essa perspectiva, os comportamentos humanos
são produtos de inter- relações de contingências filogenéticas (história da
espécie), contingências ontogenéticas (história do tempo de vida de um
indivíduo) e contingências culturais (história cultural). Os processos de
variação e seleção nesses três níveis são descritos pelo ‘modelo de
seleção pelas consequências’.
Esse modelo não pressupõe causas finais ou teleológicas – “[...] apenas
consequências passadas figuram na seleção [...]” – e não recorre à
explicação por meio de essências como a mente ou o Zeitgeist. A seleção
por consequências é encontrada apenas em seres vivos e define o viver
(SKINNER, 1981, p. 503).
Ao fazer um paralelo entre a seleção natural e a evolução das culturas,
Skinner (1981, 2002) defendeu que, como as espécies, as culturas podem
perpetuar-se por muitos anos, com extensas modificações em suas
práticas ou não e podem também colapsar e se extinguir. Como no caso
da seleção natural, o fato de uma cultura sobreviver durante longos
períodos não nos habilita a estabelecer a sua soberania em relação a
outras culturas que pereceram. Uma cultura pode ser considerada
extremamente forte em suas relações sociais e econômicas, mas não ser
efetiva na resolução de problemas gerados por uma catástrofe ambiental,
por exemplo, e, como decorrência, pode perecer. Ou seja, a força das
culturas depende de um conjunto de variáveis complexas que nem
sempre podem ser previstas e controladas pelos métodos e técnicas
vigentes.
Nesse contexto, Skinner (1987, 2002) defendeu que há práticas
culturais, como variações, que podem contribuir para o fortalecimento e
consequente sobrevivência de uma cultura (práticas que apresentam um
valor de sobrevivência positivo) e há práticas culturais que não
contribuem para o fortalecimento e sobrevivência de uma cultura
(práticas que apresentam um valor de sobrevivência negativo)
(DITTRICH, 2004). De acordo com Skinner (2002), as práticas que
fortalecem uma cultura são aquelas que produzem o ‘bem da cultura’.
Entretanto, o valor de uma prática é variável – depende das
contingências vigentes em determinado local e em um momento
histórico específico.
Práticas culturais são as unidades sujeitas à seleção no terceiro nível.
São unidades que se originam do comportamento operante de indivíduos
e tornam-se práticas quando reforçadas por uma cultura, transmitidas
como parte de um ambiente social entre membros de uma mesma
cultura, entre gerações ou entre culturas (MELO; DE ROSE, 2012;
SKINNER, 2002). Nesse sentido, ao tratar da seleção no terceiro nível,
o que está em questão é que “[...] é o efeito sobre o grupo e não as
consequências reforçadoras para seus membros, o responsável pela
evolução da cultura” (SKINNER, 1981, p. 502).
Nessa explanação, Skinner (1981) sugeriu que a sobrevivência das
culturas é o que determina a manutenção e a transmissão de suas
práticas. Como ele mesmo apontou: “[...] e quer gostemos disto ou não,
a sobrevivência é o critério final” (ROGERS; SKINNER, 1956, p. 1065).
Entretanto, algumas críticas foram direcionadas sobre tais asserções,
entre elas, por exemplo: como práticas extremamente complexas, nas
quais seu valor de sobrevivência não pode ser facilmente aferido,
perpetuam-se entre gerações de uma cultura? (MELO; DE ROSE, 2012).
A resposta skinneriana é simples: práticas que não fortalecem uma
cultura podem coexistir com práticas que a fortalecem.
De acordo com o modelo de seleção pelas consequências, o
comportamento humano, ao participar na formação e manutenção de
práticas culturais, é primeiramente selecionado ou modelado em
contingências de reforçamento. Sendo assim, contingências de
reforçamento poderiam explicar a manutenção de práticas culturais por
meio de consequências mais imediatas (consequências comportamentais)
para o comportamento individual.
O autor também salienta que características ‘não adaptativas’ podem
ser selecionadas quando os organismos se tornam cada vez mais
sensíveis às consequências. Neste sentido, o paralelo da seleção natural
com a evolução da cultura possibilita argumentar que práticas culturais
‘não adaptativas’ podem sobreviver juntamente com práticas
‘adaptativas’. Segundo Skinner (1969, p.177), “[...] todas as características
atuais de um organismo não contribuem necessariamente para a sua
sobrevivência e procriação, todavia são ‘selecionadas’”.
Práticas culturais que não apresentam valor de sobrevivência positivo
podem ser preservadas simplesmente porque foram selecionadas em
conjunto com práticas que fortalecem uma cultura. Isso porque o que
determina o fortalecimento e a sobrevivência de uma cultura é a relação
entre diversas práticas culturais e a própria
relação entre culturas. A análise não pode restringir-se apenas às práticas
culturais isoladas de seus contextos mais amplos.
Por fim, como dito anteriormente, o modelo de seleção pelas
consequências não estabelece a soberania de uma cultura em detrimento
de outras culturas (embora a competição entre culturas não seja
necessariamente um fator secundário, ao contrário do que pressupôs
Skinner em 2002). Sendo assim, ao tratar a sobrevivência da cultura
como um valor a ser considerado no planejamento de práticas culturais,
coloca-se em evidência a sobrevivência da humanidade. A preocupação
de Skinner é, em última análise, com a sobrevivência da espécie humana.
Estabelecido o contexto de discussão em que a sobrevivência da
espécie humana é o resultado de processos de variação e seleção, temos
que a sobrevivência é um dos resultados possíveis da relação entre
variações (que não precisam ser necessariamente planejadas) e
contingências seletivas, ou melhor: “[...] as variações são randômicas e as
contingências de seleção são acidentais [...]” (SKINNER, 1990, p. 1207).
Então, Skinner (1987, p. 1) faz a pergunta: “[...] por que não estamos
agindo para salvar o mundo?”. Deixaremos a sobrevivência da
humanidade, da cultura humana, destinada ao encontro fortuito desses
dois polos – variações randômicas e contingências seletivas acidentais?
Como mesmo salientou o autor, a sobrevivência da humanidade seria
resultado de ‘felizes acidentes’.
É nesse contexto que Skinner, já em 1948, defendeu o planejamento
cultural em favor da sobrevivência da cultura, que emerge como um
valor especial para quem esteja na posição de planejar práticas culturais
(SKINNER, 2005). Dessa forma, o bem da cultura, que é sua
sobrevivência, passa de critério a posteriori e inexorável de juízo da cultura
no processo natural de variação e seleção no terceiro nível para um
critério a priori de julgamento. Ou seja, deve se tornar o principal valor a
controlar o comportamento de quem se ponha a planejar práticas
culturais.
Com essa manobra teórica, Skinner parece tentar vincular o uso da
tecnologia do comportamento, a qual ele julgava muito poderosa, a esse
valor, o que preveniria seu mau uso. Ao mesmo tempo, com essa
passagem, o autor parece buscar argumentos científicos para justificar
seus próprios valores, pois, como veremos mais à frente, apenas os
pressupostos do comportamentalismo radical skinneriano não são
suficientes para que se estabeleçam prescrições (CASTRO; DE ROSE,
2008).
Para que um planejamento cultural ocorra, decisões a respeito do que
é melhor para uma cultura precisam ser realizadas. Indaga-se se o
conhecimento científico proveria os melhores critérios de decisão. Ao
fazer isso, ao se voltar para prescrições, ao invés de descrições, estaria a
ciência perdendo seu status científico? Além disso: o cientista, que
também está inserido no emaranhado causal das contingências, seria
capaz de avaliar de forma neutra e indicar ao grupo de indivíduos o que é
o melhor a ser feito? Enfim: o conhecimento científico pode legitimar
prescrições?
Aí se estabelece o campo da discussão ética nos textos de Skinner. A
partir da defesa skinneriana de uma intervenção deliberada do cientista
no nível cultural em prol da sobrevivência da cultura é inaugurada e
motivada a abordagem de questões éticas na obra do autor. Pode-se
considerar que o primeiro texto ético de Skinner é Walden two, publicado
em 1948 (CASTRO, 2013).
Posteriormente, ao longo de seus escritos, ao buscar explicações para
o que são os valores e ao tentar estabelecer possíveis critérios para
intervenções, pode-se afirmar que o autor está a discutir questões
pertencentes ao campo da ética, embora ele próprio se recusasse a
assumir isso. Essa recusa parece ter atrapalhado a própria discussão, na
medida em que Skinner deixou de analisar os determinantes de seu
próprio comportamento de prescrever e buscou justificá-lo ou explicá-lo
por meio de argumentos descritivos impessoais. Gerou-se, dessa forma,
uma ‘tensão’ na ética skinneriana (CASTRO; DE ROSE, 2008). O
resultado é que os textos éticos de Skinner são confusos e heterogêneos.
Isso se observa, por exemplo, no âmbito da ética aplicada, na qual o
autor sempre defendeu a sobrevivência da humanidade, em um
planejamento que levasse em consideração o equilíbrio entre o
bem-estar dos indivíduos e o bem da cultura (CASTRO, 2013;
MELO, 2008). Contudo, buscou justificar apenas a eleição do bem da
cultura como necessária pautando-se no modelo de variação e seleção
nos três níveis.
Em meio à referida heterogeneidade nos textos éticos do autor, é
possível separar e caracterizar alguns dos aspectos da ética skinneriana
(CASTRO, 2013). No âmbito descritivo, é claramente identificável, e não
tanto polêmica, uma ciência dos valores, que visa explicar o que são
‘valores’ e como o sujeito aprende a agir de acordo com eles. Ainda no
plano descritivo, ocorre a derivação de um sistema ético com base no
modelo de seleção pelas consequências nos três níveis. Já no que se pode
caracterizar como sendo o âmbito prescritivo da ética de Skinner,
identifica-se a eleição de um valor primordial calcado naquele sistema
ético; como vimos, o bem da cultura. Também no plano prescritivo
encontra-se a ética aplicada, a qual surgiu primeiro – com Walden two – e
motivou todo o restante da ética skinneriana.
Vejamos mais detalhadamente alguns desses aspectos, de modo a
entender as implicações do conceito de sobrevivência das culturas para a
ética.
2. Um sistema ético
Este aspecto da ética skinneriana também se refere ao âmbito
descritivo, isto é, à tentativa de responder a questões do tipo ‘o que é?’.
No que se denomina aqui de sistema ético, o autor categoriza três tipos
de bens pautando-se no modelo de variação e seleção.
Embora não haja correspondência ponto a ponto, esse sistema ético
se fundamenta nos três níveis seletivos.
As proposições de Skinner enfatizam que os indivíduos, ao se
comportarem, podem produzir três tipos de bem ou valor: o bem do
indivíduo, o bem dos outros e o bem da cultura (SKINNER, 2002). Tais
bens constituem o sistema de valores skinneriano e estão relacionados
com as consequências do comportamento (DITTRICH, 2004; MELO,
2008): um valor pode ser classificado como bem pessoal, bem dos outros
ou bem da cultura, de acordo com o beneficiado, o indivíduo, o grupo
ou a cultura como um todo, respectivamente. Nas palavras do autor:
O que é bom para a espécie é o que leva à sua sobrevivência. O que
é bom para o indivíduo é o que promove seu bem-estar. O que é
bom para uma cultura é o que a permite resolver seus problemas.
Há, como vimos, outros tipos de valores, mas eles acabam
assumindo segundo lugar (SKINNER, 1976, p. 226).
Os reforçadores de origem filogenética, incondicionados, são bens
pessoais, alguns reforçadores condicionados na ontogênese também são
bens pessoais, ou seja, reforçam positivamente o
comportamento de quem os produz; neste sentido, reforçadores
negativos seriam o oposto de bens pessoais, seriam ‘coisas ruins’. Assim,
o comportamento que produz o bem do indivíduo não apenas promove
o que é bom, mas evita o que é ruim (DITTRICH, 2004).
Os bens dos outros podem ser considerados ‘bens individuais da
segunda pessoa’. O indivíduo, ao se comportar, pode produzir o seu
próprio bem, mas pode produzir também o bem dos outros. Esse
comportamento produz consequências reforçadoras para as outras
pessoas, ou remove reforçadores negativos em relação ao
comportamento de outras pessoas.
O comportamento que produz o bem dos outros emerge e é mantido
por relações de reforçamento recíproco (mesmo em ações não
deliberadas nas quais poderíamos discutir uma espécie de altruísmo): ao
se comportar, o indivíduo produz consequências reforçadoras para as
outras pessoas, mas também produz consequências reforçadoras para o
seu comportamento (ou evita a perda de reforçadores, ou evita que seu
comportamento produza consequências aversivas). Segundo Dittrich
(2004), bens dos outros são produzidos apenas em circunstâncias
especiais de seleção do comportamento no segundo nível. Bens dos
outros apontam para o controle do comportamento operante pelo grupo
social.
As contingências ambientais, incluindo-se as sociais, estariam na
origem dos comportamentos e sentimentos correlatos. O autor enfatiza:
Não consideramos que os reforços biológicos sejam eficazes devido
a um amor próprio, e não deveríamos atribuir o comportamento
pelo bem dos outros a um amor pelos outros. Ao trabalhar para o
bem dos outros, uma pessoa pode sentir amor ou medo, lealdade ou
obrigação, ou qualquer outra condição proveniente das
contingências responsáveis pelo comportamento. Uma pessoa não
age pelo bem do outro por causa de um sentimento de posse, ou se
recusa a fazê-lo por
causa de um sentimento de alienação. Seu comportamento depende
do controle do ambiente social (SKINNER, 2002, p. 110).
Por fim, o terceiro bem ao qual o comportamento humano pode estar
relacionado é o bem da cultura. As ações que têm como consequência o
bem da cultura estão produzindo o “[...] bem das pessoas do futuro”
(ABIB, 2001, p. 114, grifo do autor). Pode-se argumentar que tais
comportamentos são aqueles que compõem práticas culturais que
apresentam valor de sobrevivência positivo, como indicado no início
deste texto. O bem da cultura é, portanto, um valor (MELO, 2008).
Note-se o importante papel conferido à sobrevivência no sistema ético
skinneriano. Ela está no início e no fim. Está na origem de todos os
bens, pois, em última instância, é na sobrevivência da espécie que surgem
os valores de primeiro nível, os bens pessoais mais fundamentais dos
quais se originam os outros. Ao mesmo tempo, o valor final, o bem da
cultura, é a sua sobrevivência, a qual garantirá, por seu turno, a
sobrevivência dos indivíduos que a compõem.
Assim, para o primeiro nível seletivo, temos que tudo o que é bom
para a espécie é o que promove a sobrevivência de seus membros, até
que sua descendência tenha nascido e sido cuidada. Entre as coisas
consideradas boas está a suscetibilidade dos organismos ao reforço por
certos tipos de estimulação. A suscetibilidade da espécie humana ao
açúcar, por exemplo, é uma característica filogeneticamente selecionada
provavelmente porque favoreceu a sobrevivência da espécie. Sendo
assim, dizemos que alguns sabores doces têm ‘gosto bom’ (MELO,
2008), ou que a própria suscetibilidade e a estimulação (o açúcar) foram
‘boas’ para a espécie.
O comportamento de uma pessoa é considerado bom se for efetivo
em contingências predominantes de reforçamento. Valorizamos esse tipo
de comportamento e reforçamos com reforçadores generalizados
dizendo ser um bom comportamento, um
comportamento justo, certo, ético etc. Diz-se que uma pessoa é boa
provavelmente porque essa pessoa propicia, direta ou indiretamente,
reforçadores para o comportamento do indivíduo que faz essa
classificação. Nesse sentido, a comunidade verbal ensina o indivíduo a
agir pelo bem dos outros.
Na terceira categoria ética está o bem da cultura. O que é bom para
uma cultura é o que promove sua sobrevivência. Alguns exemplos
podem ser descritos, como: manter um grupo unido, práticas que
favorecem a produção e o não desperdício de recursos, práticas que
promovam medidas eficazes para a aquisição da saúde de seus membros
(SKINNER, 2002).
Para o autor, porém, o que é considerado bom em um nível de seleção
poderá não ser em um dos outros níveis. Isso não implica contradição,
desde que os níveis sejam especificados. Exemplos dessa análise são as
suscetibilidades humanas ao reforço pelo açúcar e sal, contato sexual e
sinais de danos agressivos a outros. Essas suscetibilidades devem ter sido
importantes para a evolução da espécie, ou seja, foram ‘boas’ para a
espécie, fundamentais para sua sobrevivência. Entretanto, nas sociedades
atuais, essas suscetibilidades podem ser letais.
Considerações finais
Com base no que foi exposto, pode-se argumentar que Skinner
defendeu a ciência do comportamento (no caso a análise do
comportamento) como a ciência que nos daria a resposta do que
‘deveríamos’ fazer além do ‘como’ fazer. Poderia responder a questões
dos dois tipos: ‘o que é?’ e ‘o que deve ser?’. Ou seja, nos ofereceria
respostas científicas, tecnológicas e éticas.
Segundo Leigland (2005), Skinner seria contrário à visão tradicional de
que a ciência trata apenas das declarações de fato; além disso, os valores
dos cientistas podem ser agentes potenciais de mudanças sociais. Nessa
perspectiva, a ciência nos diria como, quando, onde devemos intervir e
por que, com suas análises, suas previsões e suas explicações. Isto é, a
ética skinneriana, além de nos brindar com uma ciência dos valores e um
sistema ético, apresenta, também, um viés normativo e aplicado. Skinner
nos prescreve o bem da cultura como o valor a ser ‘perseguido’, um
valor ‘inspirado’ na ciência do comportamento humano que indica que a
sobrevivência ‘é’ o critério final.
Além disso, caberia à tecnologia (e a tecnologia do comportamento
apresenta um papel fundamental na promoção de mudanças, uma vez
que grande parte de nossos problemas são ‘problemas de
comportamento’) o estabelecimento de um planejamento de práticas
culturais com valor de sobrevivência positivo. Para Skinner, a tecnologia
do comportamento, desde sua construção até sua aplicação, nos fornece
os meios para a produção do comportamento que, ao participar de
práticas culturais, fortalece uma cultura. A tecnologia – entendida como
a produção deliberada de certas consequências no mundo utilizando-se
do conhecimento científico – também apresenta implícita ou
explicitamente um valor, ela não é despida de valores.
É sobre esses âmbitos que o analista do comportamento deveria se
pautar, pois todo projeto científico implica compromissos filosóficos.
Isso porque o comportamentalismo radical de Skinner, como filosofia,
apresenta a defesa do bem da cultura como valor fundamental de sua
filosofia moral.
Cabe ressaltar que o bem da cultura dá relevo à sobrevivência da
humanidade, da espécie humana. Além disso, a proposição de um
planejamento cultural que favoreça a sobrevivência ‘deve’ também
estabelecer um equilíbrio com o benefício individual. Ou seja, o
equilíbrio entre a produção de bens individuais e o bem da cultura
possivelmente apenas será alcançado com planejamento efetivo e não
como produto de ‘felizes acidentes’.
Tendo em vista a breve apresentação da ética de Skinner feita até aqui,
evidencia-se que a passagem de uma ciência dos valores e de seu sistema
ético para uma ética prescritiva –normativa e aplicada – é problemática.
E nosso compromisso filosófico com o comportamentalismo radical não
precisa ser cego. Importante que a comunidade dos analistas do
comportamento também pense criticamente sobre os problemas
internos, de modo a garantir que a análise do comportamento seja
mesmo científica, e não dogmática.
Os fundamentos apresentados por Skinner em sua ética descritiva, ao
contrário do que ele procura argumentar, não são necessários nem
suficientes para a elaboração de imperativos éticos. Ademais, apontam
para o risco de uma tecnocracia3 (CASTRO, 2013). Seria possível, por
exemplo, defender coerentemente – isto é, sem
contradição com os pressupostos da teoria científica, da ciência dos
valores – um planejamento cultural fundamentado nos bens individuais,
em que, por exemplo, os membros da cultura usufruíssem de todos os
recursos naturais, fizessem sexo sem proteção e não tivessem nenhuma
preocupação em relação ao futuro da própria humanidade (CASTRO,
2013; DITTRICH, 2008).
Mas essa talvez não fosse a inspiração mais interessante produzida
pelo modelo de seleção pelas consequências.
Conforme argumenta Chiesa (2003, p. 296), a sobrevivência da espécie
pode ser um valor importante para Skinner, cujas tendências humanistas
são bem conhecidas, porém, “[...] a filosofia e a prática científica do
comportamentalismo não conduzem inevitavelmente a promover a
sobrevivência como um valor. [...] Sem dúvida os valores não emergem
da metaética”.
De acordo com Zuriff (1980), a ciência só pode dizer ‘A deve fazer X’
se X já for um reforçador. Kendler (1993) aponta que a sobrevivência
em si não é uma propriedade universal do mundo biológico. Também há
morte. Sobrevivência e morte fazem parte de um único fenômeno: a
evolução. Segundo Kendler, a linha de raciocínio de acordo com a qual
os princípios evolutivos são interpretados de modo a sugerir que a
sobrevivência é o imperativo moral último é rejeitada por Dawkins, pois
ele afirma que a evolução é cega, sem propósito, inconsciente, não
havendo implicações éticas na teoria da evolução.
Mas a questão aqui é: e quando é possível torná-la consciente e agir
sobre ela ‘intencionalmente’, corrigindo alguns de seus ‘erros’?
Ironicamente, reaparece o telos; não como um futuro que controla o
presente, mas como uma previsão do futuro que controla o presente.
Daí a defesa de Skinner pelo planejamento e intervenção,
sendo esses mesmos incoerentes com uma ciência determinista. Neste
caso, então, seria necessário um modelo diferente de ciência no qual
coubesse o telos?
À guisa de conclusão, entendemos que o comportamentalismo radical,
como filosofia de uma ciência do comportamento, fundamenta essa
ciência e guarda em si uma ética, em seus vários aspectos. Longe da
defesa por uma distinção ontológica entre fato e valor, o
comportamentalismo radical de Skinner apoia e defende um princípio
ético, inspirado na análise do comportamento. O bem da cultura é,
portanto, o principal valor que, segundo Skinner, ‘deve’ nortear nossas
práticas e a tecnologia do comportamento teria papel fundamental na
intervenção social para um mundo melhor. A defesa de uma intervenção
para uma cultura melhor, que sobreviva e enfrente seus problemas – ou
seja, a defesa do delineamento cultural em prol do bem da cultura – é o
pilar da ética skinneriana.
Neste capítulo, tentamos apresentar brevemente as propostas éticas de
Skinner, seus fundamentos e alguns dos riscos e problemas inerentes a
elas.
Referências
Considerações iniciais
Em seu ensaio Comportamento humano e democracia, publicado em 1987,
Skinner critica o Estado de bem-estar social. Poderíamos, então, pensar
que ele é solidário com o Estado mínimo (pois um alvo, o preferido
quiçá, dos defensores desse Estado é o Estado de bem-estar social), com
o liberalismo e com o partido republicano.
Porém, esse cenário muda de figura quando consultamos sua novela,
Walden two, publicada originalmente em 1948, e verificamos que os
dirigentes dessa pequena comunidade utópica não são eleitos, o que,
certamente, viola o princípio básico da democracia.
Poderíamos, então, pensar que Skinner não é um adepto da
democracia, uma ilação que não teria sido feita pela primeira vez. Com
efeito, Newman (1993, p. 171) menciona que Sir Karl Popper não
somente acusou Skinner de ser “[...] um inimigo da liberdade e da
democracia”, como também se recusou a assinar o Manifesto humanista
dois porque Skinner já o fizera.
Dado esse panorama de crítica ao Estado de bem-estar social, de
dirigentes não eleitos em Walden two, de ser acusado, por um filósofo
liberal1, de ser inimigo da democracia, é, aparentemente, inevitável
concluir que Skinner, efetivamente, não comunga com a forma
democrática de governo. Parece-nos, então, perfeitamente
pertinente perguntar se Walden two seria, por exemplo, uma tirania,
haja vista que sociedades que não elegem seus dirigentes são acusadas de
autoritarismo e qualificadas como ditaduras, tiranias, e por aí afora.
1. Formas de governo
Em sua teoria das formas de governo, Aristóteles (1997, p. 91)
distingue entre formas corretas e formas incorretas de governo. As
formas corretas visam o bem comum e as formas incorretas visam o
próprio interesse. As formas corretas são a monarquia (o governo de
um), a aristocracia (o governo de poucos), o governo
constitucional (o governo da maioria)2. As formas incorretas são
desvios das formas corretas, são elas, a tirania (desvio da monarquia), a
oligarquia (desvio da aristocracia), a democracia (desvio do governo
constitucional). Das três formas incorretas de governo, a pior é a tirania,
sendo seguida pela oligarquia e pela democracia. O interesse próprio
refere-se ao interesse de uma única pessoa (tirania), de poucas pessoas
(oligarquia), e da maioria das pessoas (democracia). Nas palavras de
Aristóteles: “[...] tirania é a monarquia governando no interesse do
monarca, a oligarquia é o governo no interesse dos ricos, e a democracia
é o governo no interesse dos pobres, e nenhuma destas formas governa
para o bem de toda a comunidade”.
Portanto, da perspectiva de Aristóteles, a democracia não é uma forma
correta de governo, embora seja a menos incorreta das formas
incorretas. O critério fundamental para avaliar a correção de uma forma
de governo é verificar se ela é exercida em defesa do bem para toda a
comunidade e, segundo o filósofo, a democracia
defende o interesse da maioria3.
Se há uma coisa que é verdadeira em Walden two é a defesa do bem
comum: Walden two não é uma democracia, mas visa o bem de toda a
comunidade. Entretanto, Walden two não pode ser caracterizada como
governo constitucional porque não se caracteriza pelo governo da
maioria em defesa do bem para toda a comunidade. Se nos lembrarmos
da presença hegemônica de Frazier, planejador de Walden two, em suas
discussões com Castle, filósofo que faz o papel de ‘advogado do diabo’
no debate com Frazier, podemos concluir, equivocadamente,
que ele é uma espécie
de monarca legítimo, e não um tirano, visto que almeja o bem para toda
a comunidade. Porém, Frazier é apenas um dos planejadores de Walden
two, que conta, também, com uma equipe de administradores. No
conjunto, eles podem ser caracterizados como uma aristocracia
tecnocientífica que se norteia pela ciência do comportamento para
planejar e administrar uma pequena comunidade utópica. Na novela de
Skinner, diríamos que, seguindo Aristóteles (1997, p. 91), “[...] governam
os melhores homens [...]
com vistas ao que é melhor para a cidade4 e seus habitantes”,
orientados pelos procedimentos seguros da tecnociência. E, note- se, en
passant, que não há qualquer possibilidade dessa aristocracia
tecnocientífica desviar-se para a oligarquia porque não há ricos em
Walden two: nem Frazier, nem os planejadores, nem os administradores
são ricos.
2. Governo
Porém, a aristocracia é uma forma de governo, e Skinner (1966, 1978)
é um crítico ácido da ideia de governo, que ele pretende substituir pela
ideia de controle. E é precisamente nesse sentido que, ao citar Abraham
Lincoln, “[...] que esta nação, sob Deus, terá um novo nascimento de
liberdade; e que o controle de pessoas por pessoas para as pessoas não
pereça sobre a terra” (SKINNER, 1978, p. 3), afirma que o presidente
norte-americano disse ‘governo’ e não ‘controle’. Skinner (1978) critica a
ideia de governo porque, embora inicialmente signifique guiar, terminou
por significar obediência à autoridade, que é obtida por meio de controle
aversivo, o que dá margem ao contracontrole (principalmente quando o
governo extrapola os limites de sua legitimidade), como se verifica nos
protestos, greves, boicotes, revolução, terrorismo etc. E convém ressaltar
que Skinner (1978) critica não só a autoridade, mas também o
contracontrole, pois ambos se valem do controle aversivo.
Skinner (1966) é terminantemente contra o uso do controle aversivo
por razões as mais diversas, que, no entanto, não estão no foco deste
texto. O que nos interessa, aqui, é destacar o seu
reconhecimento de que a democracia tem um grande mérito que consiste
em governar o povo fazendo uso restrito de medidas aversivas. Isso
significa dizer que teria sido o abrandamento do controle aversivo e do
contracontrole a fonte dos grandes triunfos da democracia, como a
conquista do direito à liberdade e à vida. Esses triunfos teriam dado
margem à busca pela felicidade, pelo reforço positivo, que é a sua fonte.
E estes dois triunfos, a liberdade e a felicidade, seriam os principais
objetivos de qualquer governo do povo pelo povo para o povo5.
Esse reconhecimento do valor da democracia não deveria, contudo,
ofuscar-nos ao ponto de não percebermos ou de ignorarmos os seus
problemas. Assim, Skinner (1978) critica a democracia, seja porque,
apesar de amainados, o controle aversivo e o contracontrole persistem,
seja porque os representantes do povo usurpam o poder que lhes é
outorgado.
Após essas observações, Skinner (1978) imprime uma surpreendente
guinada em seu ensaio e passa a discutir o conceito de cultura. Ele
declara que ‘cultura’ se diz em dois sentidos: um antigo e outro
moderno. No sentido antigo, ‘cultura’ inclui não só as práticas familiares,
ritualísticas e religiosas, como também o artesanato, as artes etc., e exclui
o Estado e a economia. E, no sentido moderno, ‘cultura’ inclui tudo isso,
inclui ‘cultura’ no sentido antigo, bem como o Estado e a economia.
Esses dois sentidos do conceito de cultura têm profundas raízes
históricas e filosóficas que passamos a examinar brevemente.
3. Conceito de cultura
Santos (2012, p. 24) também se refere a dois sentidos do conceito de
cultura, um antigo e outro moderno. No sentido antigo, cultura refere-se
“[...] ao conhecimento, às ideias e crenças, assim como às maneiras como
eles existem na vida social”. No sentido moderno, cultura refere-se “[...]
a todos os aspectos de uma realidade social” (SANTOS, 2012, p. 23).
No sentido moderno, referimo-nos, por
exemplo, à totalidade da cultura francesa ou da cultura xavante ou da
cultura camponesa ou da cultura dos astecas. No sentido antigo,
referimo-nos à língua, literatura, conhecimento filosófico e científico,
por exemplo, da cultura francesa. É também nesse sentido que nos
referimos a culturas alternativas, como, por exemplo, a cultura ecológica,
a cultura do corpo, a cultura alimentar etc.
Elias, o sociólogo alemão, abre seu clássico O processo civilizador,
publicado em 1939, fazendo um duplo contraponto no qual discute a
tensão não só entre os conceitos de civilização nos ambientes alemão,
francês e inglês; como também entre os conceitos de civilização e cultura
no ambiente alemão. No contexto francês e inglês, ‘civilização’ refere-se
a fatos políticos, econômicos, sociais, técnicos, morais, religiosos etc.
Elias (1990, p. 23) diz que, ao se referir e ao agrupar em torno de si toda
essa diversidade de fatos, o conceito de civilização tem a função geral de
expressar “[...] a consciência que o Ocidente tem de si mesmo”. E
prossegue observando que essa consciência “[...] resume tudo em que a
sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a
sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas mais
primitivas” (ELIAS, 1990, p. 23, grifo do autor). No ambiente alemão,
‘civilização’ não tem esse sentido. Com efeito, de acordo com Elias,
embora a palavra Zivilisation se refira a algo útil, ela não passa de um
valor de segunda classe: reconhece- se a utilidade das esferas política,
econômica, social, tecnológica, que, porém, só tratam com a superfície
da existência humana.
Kultur, e não Zivilisation, é a palavra com a qual os alemães se
identificam. De acordo com o sociólogo alemão, “[...] o conceito alemão
de Kultur alude basicamente a fatos intelectuais, artísticos e religiosos”
(ELIAS, 1990, p. 24). Ou ainda, “[...] reporta-se a produtos humanos que
são semelhantes a flores do campo6, a obras de arte, livros, sistemas
religiosos ou filosóficos, nos quais se expressa a individualidade de um
povo” (ELIAS, 1990, p. 24-25). O conceito de cultura no sentido alemão
adquire seu contorno mais nítido com o adjetivo ‘cultural’ (kulturell). A
pessoa culta é uma pessoa produtiva, nas antípodas, todavia, do sentido
neoliberal atual. Uma pessoa produtiva no sentido alemão é aquela que
produz obras que expressam a individualidade de um povo, ‘flores do
campo’, livros, obras de arte, obras filosóficas, obras religiosas. Uma
pessoa culta não quer dizer uma pessoa cultivada. Elias comenta que a
palavra ‘cultivado’ (kultiviert) aproxima-se do conceito ocidental de
civilização e que “[...] pessoas e famílias que nada realizaram de kulturell
podem ser kultiviert” (ELIAS, 1990, p. 24). Em suas palavras:
Tal como a palavra civilizado, kultiviert refere-se primariamente à
forma da conduta ou comportamento da pessoa. Descreve a
qualidade social das pessoas, suas habitações, suas maneiras, sua
fala, suas roupas, ao contrário de kulturell, que não alude
diretamente às próprias pessoas, mas exclusivamente a realizações
humanas peculiares (ELIAS, 1990, p. 24, grifo do autor)7.
O sociólogo alemão afirma, enfim, que o conceito de civilização no
sentido francês e inglês enfatiza a identidade entre os povos,
minimizando suas diferenças. E que, ao contrário, o conceito de Kultur
enfatiza a diferença entre os povos, a identidade particular de grupos. E
que, por essa razão, o conceito de Kultur “[...] adquiriu em campos como
a pesquisa etnológica e antropológica uma significação muito além da
área lingüística alemã e da situação em que se originou o conceito”
(ELIAS, 1990, p. 25).
Do que foi exposto, podemos, aparentemente, deduzir que o conceito
de civilização no ambiente francês e inglês aproxima-se do conceito de
cultura no sentido moderno e que o conceito de cultura no ambiente
alemão aproxima-se do conceito de cultura no sentido antigo. Essa
dedução ganha evidência adicional se observarmos que o conceito de
cultura no sentido moderno ganhou expressão inconteste na primeira
orientação que estabeleceu os fundamentos da ciência antropológica: o
evolucionismo cultural. Tanto é assim que em seu artigo A ciência da
cultura, publicado em 1871, Tylor (2009, p. 69) escreve que:
Cultura ou Civilização, tomada em seu mais amplo sentido
etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento,
crença, arte, moral, lei, costumes, e quaisquer outras capacidades e
hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da
sociedade.
As iniciais maiúsculas dos termos ‘cultura’ e ‘civilização’ não são
casuais. Significam que cultura ou civilização são pronunciáveis no
singular: existe somente uma cultura ou civilização. No evolucionismo
cultural, a cultura evolui no sentido do progresso, segundo estágios
definidos, de tal modo que as ‘culturas atrasadas’ deverão passar
obrigatoriamente pelos mesmos estágios pelos quais já passou a ‘cultura
evoluída’: a cultura ocidental. Castro (2009, p. 17) diz que a definição de
Tylor, que toma as palavras ‘cultura’ e ‘civilização’ como sinônimas,
“distingue-se do uso ‘moderno’ do termo cultura (em seu sentido
relativista, pluralista e não-hierárquico)8, que só seria popularizado com a
obra de Franz Boas, já no início do século XX”. Castro diz ainda que a
prática dos autores evolucionistas de se referirem à cultura no singular
teria sido modificada por Franz Boas, que passou a se reportar à ‘cultura’
no plural. De fato, em seu ensaio As limitações do método comparativo em
antropologia, publicado em 1896, Boas (2004, p. 34) escreve, “similaridades
superficiais entre culturas”, ou ainda, “[...] história das culturas de
diversas tribos” (BOAS, 2004, p. 36). Enfim, Castro (2004, p. 35)
comenta que, desse ponto de vista, o objetivo da antropologia, “[...]
passava a ser não a reconstituição do grande caminho da evolução
cultural humana, mas sim a compreensão de culturas particulares, em
suas especificidades”.
‘Cultura’ no sentido antigo e ‘cultura’ no sentido moderno parecem,
então, ter trocado de sinal. O que é moderno teria ficado antigo e o que
é antigo teria ficado moderno. A Kultur e o pluralismo (o antigo) parecem
ter ficado modernos. E a civilização e o evolucionismo cultural (o
moderno) parecem ter ficado antigos. Essa aparente troca de sinais
encontra apoio no comentário que Berlin (1991) faz em seu livro, Limites
da utopia, sobre o filósofo italiano Giambattista Vico (1668-1744), autor
de um livro clássico sobre filosofia da
história: Ciência nova (BERLIN, 1991; BOSI, 1979; BURKE, 1997;
FERRATER MORA, 1984). Berlin (1991, p. 60, grifo nosso) escreve
que: “Vico é o verdadeiro pai tanto do moderno conceito de cultura
quanto daquilo que poderíamos chamar de pluralismo cultural,
segundo o qual toda cultura autêntica possui seu próprio e singular
ponto de vista”. De acordo com Burke, por diversos motivos, entre os
quais figurava a própria obscuridade da Ciência nova, foi tardia sua
recepção, até mesmo entre autores alemães, como Goethe e Herder, que
sequer “[...] notaram as semelhanças entre as ideias dele e as suas
próprias” (BURKE, 1997, p. 16). Entretanto, apesar desse atraso, é o
pluralismo cultural de Vico que está no horizonte do conceito moderno
de cultura. De acordo com Berlin (1991, p. 61, grifo nosso), isso se deve
ao método de Vico que é:
Basicamente, similar àquele empregado pela maioria dos
antropólogos modernos que buscam entender o comportamento e
a imaginação das tribos primitivas (ou o que restou delas), cujos
mitos, relatos, metáforas, símiles e alegorias não são por eles
descartados como criações confusas ou desprovidas de sentido de
bárbaros irracionais e infantis (como fez o século XVIII): em vez
disso, procuram a chave que lhes permita penetrar no mundo dessas
tribos, bem como ver através de seus olhos.
Segundo Berlin, esse método, que visa penetrar na mente do outro, é
denominado por Vico de fantasia, chamado mais tarde pelos alemães de
verstehen, “[...] em oposição a wissen, a espécie de conhecimento
encontrada nas ciências naturais, onde o penetrar não está em questão,
pois não podemos penetrar nas esperanças e temores das abelhas ou dos
castores” (BERLIN, 1991, p. 62, grifo do autor). Bosi (1979, p. XI)
também diz que a metodologia de Vico consiste na fantasia poética e que
“[...] por essa razão, somente no século XIX, com a ascensão do
Romantismo alemão, criou-se um clima intelectual favorável ao seu
pensamento”.
Talvez possamos esclarecer essa reversão dos sinais no conceito de
cultura em termos dos conceitos de moderno e de pós-moderno.
Lyotard (1987, p. 24) diz que o pós-moderno faz parte do moderno;
comenta, por exemplo, que Cézanne rompeu com os impressionistas e
que Picasso e Braque romperam com Cézanne, e pergunta, “[...] com que
pressuposto rompeu Duchamp em 1912?”. À primeira vista, não é,
portanto, a ruptura com o passado que caracteriza o pós-moderno, e que
o diferencia do moderno, pela simples razão de que a ruptura com o
passado é a marca do moderno. Com efeito, de acordo com Paz (1984,
p. 24), o moderno, de modo aparentemente paradoxal, inaugurou uma
tradição: a tradição de ruptura. Contudo, Lyotard escreve que “[...] uma
obra só se torna moderna se primeiro for pós-moderna”. Logo, o pós-
moderno não significa o que vem cronologicamente depois do moderno,
significa, isto sim, uma agonística, uma crítica incessante das
acomodações, fracassos e envelhecimentos modernos.
Significa uma busca incansável por rupturas, mesmo que isso nos leve
de volta ao passado, uma volta, nas palavras de Peixoto e Olalquiaga
(1987), ao ‘futuro do passado’, diante da crise contemporânea das
utopias9. O pós-moderno chama a nossa atenção para possibilidades,
tendências, e até mesmo realidades paralelas, que se organizam segundo
visibilidades distintas. Assim, cultura no sentido antigo (SANTOS, 2012;
SKINNER, 1978), Kultur (ELIAS, 1990), a antropologia cultural de Boas
e o pluralismo cultural de Vico, conquistam maior visibilidade, apontam
para possibilidades, tendências e realidades que podemos denominar
‘pós-modernas’. Já cultura no sentido moderno (SANTOS, 2012;
SKINNER, 1978), o conceito de civilização nos ambientes francês e
inglês, o evolucionismo cultural de Tylor e outros, como Morgan (2009)
e Frazer (2009), perdem visibilidade, apontam para possibilidades,
tendências e realidades que podemos denominar ‘modernas’. É tentador
seguir os passos de Vico (1979) e dizer que há um corso e um ricorso: uma
sequência e uma retomada. No entanto, não podemos afirmar que o
conceito de cultura no sentido antigo desapareceu com o advento do
conceito de cultura no sentido moderno, e que, então, retornou10. Se for
verdade que o que temos agora é cultura no sentido moderno e pós-
moderno, somos tentados a perguntar: e, então, o que seria cultura no
sentido antigo? Uma boa resposta talvez seja esta: a obra de Vico, a
Ciência nova. Pois a Ciência nova contém uma concepção antiga de
cultura. Com efeito, Ferrater Mora (1984) diz que a filosofia da história
de Vico expressa uma visão renascentista da história, e Bosi (1979) e
Burke (1997) observam que Vico não era um pensador iluminista. Sendo
assim, se tomarmos Vico como ponto de referência, cultura no sentido
pós-moderno, resgata uma imagem renascentista da história.
4. Democracia
Skinner (1978) discute o conceito de cultura nos sentidos antigo e
moderno porque, ao fim e ao cabo, pretende relacionar o conceito de
democracia ao conceito de cultura. E, sendo assim, já podemos deduzir
que se há dois conceitos de cultura então deve haver dois conceitos de
democracia. Inicialmente, ele expressa sua preferência pelo conceito de
cultura no sentido antigo. Do ponto de vista de nossa análise, Skinner
aproxima-se do conceito pós-moderno de cultura. Não pretendemos,
porém, dizer, com isso, que o que ele entende por cultura no sentido
antigo emule completamente o sentido pós-moderno, nem tampouco
que ele não teria nada a acrescentar a esse último sentido. Ao contrário,
cabe mencionar que uma de suas principais contribuições ao sentido pós-
moderno de cultura consiste em mostrar que, no sentido antigo, cultura
demarca um espaço para contingências sociais que escapam ao controle
das instituições, que Skinner (1966) batiza com o nome de agências de
controle: expressão notável, porque, na medida em que a noção de
agência aproxima-se da noção de autoria, ele insere a autoria do controle
do comportamento humano nos lugares certos: no governo, na
economia, na religião, na educação, na psicoterapia, na mídia11. E critica
essas agências, seja porque, mesmo quando ficam caducas, mesmo
quando perdem a capacidade de acompanhar as transformações sociais,
elas continuam a controlar o comportamento humano, seja porque elas
justificam suas práticas de controle apelando ao bem comum, mas o que
fazem, na realidade, é agir em interesse próprio.
O comportamento humano está sob o controle de mediações
realizadas pelas agências de controle, o que significa dizer que as relações
de nosso comportamento com a realidade são mediadas por terceiros,
por intermediários, velando-se, desse modo, as possibilidades de nossas
relações diretas com a realidade. O controle exercido pelas agências é
uma forma de poder assimétrico que pode tudo ou quase tudo sobre nós
e que pouco ou nada podemos sobre ele. O ‘quarto estado’, a mídia,
ilustra bem a assimetria do poder exercido pelas agências de controle.
Skinner (1978, p. 28) menciona que, no final do século XIX, surgiu o
‘quarto estado’, isento, aparentemente, de mediações, como as que
operavam (e continuam a operar) nos ‘três estados’, o governo, a igreja, o
sistema econômico, que exerciam (e continuam a exercer) seus poderes
por meio, respectivamente, da polícia e dos militares, das sanções
sobrenaturais, e do dinheiro. Skinner prossegue dizendo que o ‘quarto
estado’ criticava os ‘três estados’, expressando, desse modo, seu interesse
pelo futuro da sociedade humana. Porém, escreve que “uma imprensa
que se torna instrumento do governo, da igreja, ou do sistema
econômico pode, contudo, não desempenhar mais esse papel”. As
palavras de Skinner estão no mesmo sentido desta observação de
Kapuscinski (citado por MORAES, 2006, p. 5):
Estamos vivendo duas histórias distintas: a de verdade e a criada
pelos meios de comunicação. O paradoxo, o drama e o perigo estão
no fato de que conhecemos cada vez mais a história criada pelos
meios de comunicação e não a de verdade.
Skinner (1986) discute cinco mediações que substituem as relações
diretas de nosso comportamento com a realidade. Elas parecem-lhe tão
importantes que ele as apresenta como um diagnóstico sobre O que há de
errado com a vida diária no mundo ocidental. Duas dessas mediações que nos
interessam, aqui, são: o comportamento governado por regras e o
reforço planejado. O comportamento governado por regras substitui o
comportamento modelado por contingências, ou seja, o comportamento
que nos coloca em relação
indireta com as coisas substitui o comportamento que nos coloca em
relação direta com as coisas. O comportamento governado por regras
domina a vida cotidiana do mundo Ocidental, transformando- a em uma
vida comandada pelos poderes assimétricos das agências de controle.
Como decorrência do comportamento governado por regras, o reforço
planejado, o reforço artificial, passa a substituir o reforço natural, o
reforço que vigora no comportamento modelado por contingências.
Vivemos, então, dois mundos: o mundo das relações mediadas e o
mundo das relações não mediadas, e conhecemos cada vez mais a vida
mediada e cada vez menos a vida não mediada. A experiência deixa de
modelar o comportamento, que passa a ser controlado pelas agências de
controle.
Nesse contexto que envolve tensões entre mediações e não
mediações, relações indiretas e diretas, Skinner (1978) aponta para dois
sentidos de democracia, um que envolve e outro que não envolve
mediações. Ele diz que o termo ‘democracia’ tem um sentido especial se
for aplicado à cultura no sentido antigo, às contingências sociais que não
são mantidas por agências de controle; bem como um sentido mais
usual, em que se refere à cultura no sentido moderno, ao controle
realizado pelas agências de controle, especialmente pelo Estado e pela
economia. Há, assim, uma microdemocracia: uma democracia em
pequena escala. E uma macrodemocracia: uma democracia em larga
escala. É nesse contexto de discussão que, para Skinner, a palavra
‘governo’ significa agências de controle, vinculando-se,
consequentemente, à democracia no sentido moderno. Ou seja,
‘governo’ envolve uma concepção de controle ligada às agências de
controle. Mas há outra concepção de controle que remete à revelação do
rosto humano: o controle face a face. Nessa revelação não há mediações
ou, se houver, são mitigadas, são mais fáceis de serem identificadas e
controladas. Governo e controle face a face são, portanto, duas coisas
bem diferentes. E é exatamente por isso que Skinner (1978,
p. 3) sugere que se diga “[...] controle de pessoas por pessoas para
pessoas [...]”, e não, como disse Lincoln, “[...] governo de pessoas por
pessoas para pessoas” (SKINNER, 1978, p. 3). Essa distinção
entre dois conceitos de democracia coloca na ordem da discussão o tema
do anarquismo.
5. Anarquismo
Skinner (1978) refere-se à anarquia como exemplo de uma filosofia
política que defende algo parecido com o controle face a face; uma
relação que faz sentido, porque, dito de chofre, a filosofia política do
anarquismo é um ódio à autoridade, é negação da autoridade, é combate
à autoridade; e o ódio mais mortal dos anarquistas é ao Estado. Nas
palavras de Costa (2011, p. 17):
O ódio visceral de todos os anarquistas é contra este leviatã da
sociedade moderna, este organismo imenso e todo-poderoso, a
síntese da autoridade e da centralização, a espada de Dâmocles que,
pendida sobre a cabeça de cada cidadão, foi paulatinamente
conquistando o poder político, econômico e social: o Estado.
Todos o fulminam com invectivas e adjetivos.
Consideram-no seu inimigo12.
Certamente, Skinner não só não teria dificuldades em concordar com
essa descrição, como também a estenderia, provavelmente, às outras
agências de controle, uma generalização que encontraria ressonância na
filosofia do anarquismo, de ontem e de hoje, que combate não só o
Estado, mas também o capitalismo e a religião (COSTA, 2011; UNIÃO
REGIONAL RHÔNE-ALPES DA FEDERAÇÃO ANARQUISTA
FRANCÓFONA, 2005).
No entanto, fazendo referência à opinião pública sobre o anarquista, a
de que se trata de um homem com uma bomba, vale-se dessa imagem
para dizer que a filosofia anarquista falhou nos meios para alcançar seus
objetivos. Referindo-se ao controle face a face, Skinner (1978, p. 9-10)
escreve que:
Alguma coisa desse tipo tem sido proposta ocasionalmente – por
exemplo, na filosofia política do anarquismo – mas nada poderia
ilustrar melhor a falha para encontrar os meios
apropriados do que o estereótipo público do anarquista como um
homem com uma bomba.
Cabe ressaltar, porém, que essa imagem do anarquista não faz jus nem
à tese central do anarquismo nem à sua história. Com efeito, o
anarquismo é uma filosofia política que defende apaixonadamente o
indivíduo e a sociedade contra o Estado, o governo e a autoridade, e que
viu surgir no curso de sua história uma notável diversidade de
movimentos libertários, tais como, o mutualismo de Proudhon, o
coletivismo de Bakunin, o anarco- comunismo de Kropotkin, o
anarco-sindicalismo13 que surgiu na França e que se propagou pela
Europa e América, o anarquismo individualista de Stirner, e o
anarquismo cristão de Tolstoi. O anarquismo pode assumir formas
violentas, como no anarquismo individualista de Stirner, que defende o
interesse egoísta do indivíduo (a raiz nuclear da violência). Mas nem por
isso pode-se reduzir o anarquista à imagem de um homem com uma
bomba, pois, como observa Woodcock (1983, p. 62), embora Stirner seja
um filósofo libertário, não é possível incluí-lo no rol dos filósofos
anarquistas. Por outro lado, pode-se, ao contrário, pensar em reduzir o
anarquista à imagem de um homem com uma Bíblia. Pois, é o que diz
Costa, o anarquismo cristão de Tolstoi “[...] influenciou também os
anarquistas pacifistas holandeses, ingleses e norte-americanos. Seu maior
discípulo foi Mahatma Ghandi”.
Contudo, como observa Woodcock, embora Tolstoi, como Stirner,
seja um filósofo libertário, também não é possível incluí-lo no rol dos
filósofos anarquistas. É o que Woodcock (1983, p. 51) escreve, ao
referir-se a outro filósofo libertário:
Tal como Tolstoi e Stirner, Wiliam Godwin é um dos grandes
filósofos libertários que permaneceram fora do movimento
anarquista histórico do século XIX e que, entretanto, pelo seu
próprio isolamento, demonstram até que ponto esse movimento
teve origem no espírito da época.
Costa (2011) comenta, ainda, que Tolstoi definia-se apenas como um
cristão e que são os estudiosos que o classificam como anarquista cristão.
Entre essas ‘duas radicalizações’, violência, de
um lado, pacifismo, de outro, encontram-se as outras versões de
anarquismo que não podem ser reduzidas à imagem de um homem com
uma bomba; Proudhon e o anarco-sindicalismo, por exemplo,
defenderam a transformação da sociedade por meio, respectivamente, de
organizações cooperativas e de uma confederação geral de sindicatos.
O controle face a face é uma forma pacífica de anarquismo e é
análogo à ação direta defendida pelos anarquistas, que, nas palavras de
Costa (2011, p. 20-21),
quer dizer simplesmente aceitar a responsabilidade com todas as
consequências, sem delegá-la a um terceiro [...] é um conceito de
maturidade frente a um conceito de infantilismo, pelo qual o
homem desiste de suas responsabilidades e as delega a outros, a seus
representantes, abstendo-se de fazer e pensar por sua conta e
risco14.
E o controle face a face é feito, nas palavras de Skinner (1978, p. 10),
por professores que descobrem meios melhores para trabalhar com
os estudantes na sala de aula [...] por psicoterapeutas na consulta
face a face com aqueles que necessitam ajuda, por parentes que
descobrem como tornar a família uma instituição mais calorosa e
salutar.
A democracia como cultura no sentido antigo assemelha-se à
democracia anarquista, ao controle face a face; e a democracia como
cultura no sentido moderno assemelha-se à democracia não anarquista,
ao controle exercido pelas agências de controle. A noção de democracia
anarquista é, na verdade, paradoxal, porque a democracia, como
Aristóteles disse, é uma forma de governo, e o anarquismo não é,
evidentemente, uma forma de governo, é ódio ao Estado, é ódio ao
governo. Há, então, um paradoxo, uma tensão no conceito de
democracia anarquista, pois governo é poder, autoridade, tudo, enfim,
que o anarquismo rejeita. É possível mitigar essa tensão se aceitarmos
que no controle face a face e na ação
direta vigoram relações de poder sobre as quais temos mais controle do
que sobre as relações de poder que vigoram nas agências de controle,
uma diferença que, naturalmente, não deveria obscurecer o fato de que
se trata de relações de poder em ambos os casos. É possível, ainda,
mitigar essa tensão se observarmos que a democracia é uma forma de
governo que, se quiser preservar sua legitimidade, não pode ignorar a
sociedade, os movimentos sociais, a voz das ruas; não pode, por
exemplo, ignorar os movimentos Occupy (HARVEY; SADER; TELLES,
2012) ou os recentes movimentos sociais no Brasil; não pode ignorar os
notáveis sinais anarquistas desses movimentos; não pode, enfim,
alimentar sua cumplicidade com as oligarquias econômicas e políticas15.
No campo da ficção, em Walden two, por exemplo, o anarquismo
mistura-se com a aristocracia tecnocientífica. Realmente, há elementos
anárquicos em Walden two, uma vez que se trata de uma pequena
comunidade na qual os planejadores, os administradores e os membros
dessa comunidade podem exercer o controle face a face. Realmente, no
Código de Walden two está previsto que qualquer pessoa pode no
controle face a face com os administradores e planejadores apresentar
suas discordâncias em relação às regras do código dessa pequena
comunidade experimental. Até aí temos os elementos anarquistas
presentes nessa comunidade e, por essa razão, poderíamos dizer: Walden
two é anarquista. E convém ressaltar que nem mesmo o fato de que não
haja eleições em Walden two, seria uma objeção ao seu caráter anárquico,
pois, sendo contra o Estado e o governo, o anarquismo é avesso a
eleições. Todavia, seria mais adequado fazer uma observação paradoxal e
dizer que Walden two é e não é anarquista. Com efeito, Walden two não é
anarquista, seja porque é uma aristocracia tecnocientífica, ou por causa
do trecho final deste texto de Skinner (2005, p. 152, grifo nosso):
Com relação a desacordo, qualquer um pode examinar a evidência
sobre a qual uma regra foi introduzida no Código. Ele pode
argumentar contra a inclusão e pode apresentar sua própria
evidência. Se os Administradores recusam alterar a
regra, ele pode apelar aos Planejadores. Mas em nenhum caso ele
deve argumentar acerca do Código com os membros em geral. Há
uma regra contra isso.
Provavelmente nenhum anarquista subscreveria um código que
incluísse uma regra que proibisse as pessoas de argumentarem entre si
quando discordassem de suas regras, especialmente das regras de um
código às quais estariam submetidas.
6. Considerações finais
A democracia pode ser mediada pelas agências de controle e não
mediadas por tais agências. A democracia mediada enraíza-se no
conceito de cultura no sentido moderno e a democracia não mediada
enraíza-se no conceito de cultura no sentido antigo. No contexto do
debate que envolve os conceitos de moderno e pós- moderno, a
democracia mediada é solidária com o conceito de moderno e a
democracia não mediada é solidária com o conceito de pós-moderno.
Dito brevemente: a democracia mediada é moderna e a democracia não
mediada é pós-moderna.
A democracia não mediada é uma volta ‘às coisas elas mesmas’, é uma
volta à experiência singular das pessoas, é uma volta à experiência
compartilhada das pessoas, é uma versão anarquista pacifista, benigna e
inofensiva das relações interpessoais. Trata-se, na verdade, de um
governo, e se optarmos por falar em governo, e não em controle,
diremos que se trata de um governo em que os personagens principais
são o indivíduo e a sociedade, não o Estado.
Sendo um anarquismo, a democracia não mediada pertence à tradição
libertária, sempre irrealizada, sempre uma esperança, sempre uma
decepção, sempre um fascínio. Pois se trata sempre disto: liberdade.
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5 A certa altura de seu debate com Castle, Frazier diz que a “[...] felicidade
é nosso primeiro objetivo” (SKINNER, 2005, p. 194).
6 Elias (1990, p. 252) esclarece essa expressão introduzindo uma nota na qual
se refere a Spengler: “Oswald Spengler, The Decline of the West (LONDRES,
1926), p. 21: A todas as culturas se abrem possibilidades novas de expressão
que surgem, amadurecem, declinam, e nunca mais voltam [...]. Essas culturas,
essências vitais sublimadas, crescem com a mesma soberba falta de propósito
das flores do campo. Pertencem, como as plantas e os animais, à Natureza
viva de Goethe, e não à Natureza morta de Newton”.
7 Santos (2012, p. 28) diz que a palavra ‘cultura’ é de origem latina e que vem
do verbo colere, que significa cultivar e que está ligada originalmente a
atividades agrícolas, e que “pensadores romanos antigos ampliaram esse
significado para se referir ao refinamento pessoal, e isso está presente na
expressão cultura da alma. Como sinônimo de refinamento, sofisticação
pessoal, educação elaborada de uma pessoa, cultura foi usada desde então e é
até hoje”.
8O pluralismo não deve ser confundido com o relativismo. Como escreve
Berlin (1991, p. 60), referindo-se a Vico, não se trata de defender “[...] que os
homens vivam enclausurados em sua própria época ou cultura, isolados em
uma câmara sem janelas e,
consequentemente, incapazes de compreender outras sociedades e
períodos cujos valores podem ser muito diferentes dos seus, e que eles
podem considerar estranhos ou repugnantes”.
9 É como se diante da crise atual das utopias disséssemos sem perceber que
reacionários são os nossos pais; e que revolucionários são os nossos avôs; e
que nós mesmos só vislumbramos distopias. Talvez, então, seja interessante
perguntar aos nossos avôs como é que eles imaginavam o futuro, e já que não
somos capazes de imaginar um futuro do presente, talvez possamos aprender
com o futuro do passado.
10 Para Vico (1979), o tempo é cíclico e as três idades da história, a idade dos
deuses, dos heróis (ou dos bárbaros) e a idade humana, vão e vêm, são
cíclicas. Assim, uma idade que na sequência vem antes, na retomada, vem
depois, é ‘pós’, mas é ‘pós’ na retomada, e não na sequência. Burke (1997, p.
68) diz que depois do declínio do Império Romano, a idade heróica ou
bárbara retornou à Europa, mas que “Vico não diz se a idade dos deuses
alguma vez retornou”. Além disso, de acordo com Burke, a recepção tardia da
Ciência nova começou 40 anos após a morte de Vico, quando floresceu um
culto ao filósofo, em Nápoles, e quando a Ciência nova foi traduzida para o
francês e o alemão. Portanto, se houve ‘desaparecimento’ da Ciência nova, ele
durou 40 anos: foi somente um cochilo.
12 A crítica dos anarquistas ao Estado não deve ser confundida com a crítica
ao Estado liberal: o Estado mínimo (mínimo com respeito à
realização do bem para toda a comunidade e máximo com respeito à
realização dos interesses próprios das oligarquias e corporações). O que
os anarquistas querem é uma sociedade sem Estado, e não uma
sociedade com um Estado mínimo. O ataque dos anarquistas ao Estado
foi tão virulento no século XIX, que, segundo Costa (2011, p. 30), “[...]
sem os anarquistas singelos e aventureiros Marx não teria preconizado o
fim do Estado depois da ditadura do proletariado”. Cabe observar,
todavia, que, de acordo com Bravo (1986), é necessário distinguir o
antigo anarquismo, que vigorou no final do século XIX, início do século
XX, e no período da Guerra Civil Espanhola, do novo anarquismo, que,
nos anos sessenta, assumiu um tom mais moderado em relação a
entidades hierárquicas organizadas: o Estado, o governo, a lei.
Kester Carrara
Considerações iniciais
A leitura dos textos skinnerianos sugere que o autor, na qualidade de
criador do comportamentalismo radical e da análise experimental do
comportamento – e provavelmente respondendo a panoramas sociais de
diferentes momentos históricos pelos quais passou – ora revela um
otimismo precoce, ora um pessimismo contido, ora um parcimonioso
realismo quanto às chances de que os avanços tecnológicos de sua
ciência pudessem contribuir para um mundo melhor.
Já em Walden two, obra de ficção assinada por Skinner (1978b), o autor
retrata uma comunidade concebida sob a lógica da programação de
contingências. No prefácio para a edição de 1969, observemos excertos
da avaliação que realiza:
[...] o crescimento de uma tecnologia do comportamento pode
ajudar o interesse renovado em Walden II. Na época em que escrevi
o livro, alguns avanços dramáticos no método experimental
possibilitavam predizer e controlar comportamentos bastante
complexos com uma precisão considerável. Mas tratava-se apenas
de comportamentos de ratos e pombos. Embora suspeitasse que os
mesmos métodos fossem aplicáveis aos homens, não estava certo
disso [...]. A “engenharia comportamental” de Walden II era ainda
um sonho. Mas o sonho deveria realizar-se [...].
Naturalmente, o livro seria
diferente se eu o escrevesse hoje. As práticas educacionais seriam
muito alteradas, os materiais de instrução programada estariam
disponíveis e contingências de reforço bem planejadas forneceriam
aos estudantes bons motivos para estudar [...]. Eu aceitaria sem
crítica o princípio marxista de que o cidadão trabalhará
naturalmente para o bem comum; são, porém, necessárias
contingências mais explícitas de reforço para se conseguir “de cada
um segundo suas capacidades [...]” (SKINNER, 1978b, p. 2).
Nesse prefácio, Skinner também revela que, ao terminar o livro, estava
seguro da exequibilidade de uma comunidade como Walden II, o que
considerava exigir uma vigorosa rejeição aos padrões culturais então
vigentes, requisito para ele claramente satisfeito. No entanto, assinalava:
“Mas o otimismo deve sobreviver à rejeição e necessita de confiança em
certas capacidades técnicas que não estão ainda amplamente divulgadas”
(SKINNER, 1978b, p. 3, grifo nosso).
Seja em Ciência e comportamento humano (1967, Seção IV), seja em The
design of cultures (1961), Skinner deixa clara a convicção de que um
planejamento cultural é preferível a uma sociedade baseada no acaso, do
mesmo modo que assegura a consolidação gradativa, mas rápida, dos
princípios de uma análise comportamental. Os sinais de sua confiança
estão presentes em discussões propositivas acerca das questões do
controle e contracontrole em sociedades planejadas, da defesa da
diversificação do controle como forma de prevenção ao despotismo, da
proposta do (polêmico) critério de sobrevivência da cultura, da análise
contundente sobre as várias dimensões ético-morais inerentes à
proposição de objetivos nas intervenções culturais, além, naturalmente,
da exposição dos avanços tecnológicos de sua ciência comportamental.
Skinner (1967, p. 12-13) escreve: “[...] os métodos da ciência têm tido um
enorme sucesso onde quer que tenham sido experimentados.
Apliquemo-los, então, aos assuntos humanos. [...] Na verdade, esta é a
nossa única esperança”.
O otimismo do autor se confirma em O mito da liberdade (1983, p. 160):
“[...] uma visão científica do homem oferece possibilidades estimulantes.
Ainda não vimos o que o homem pode fazer do homem”. Mais adiante,
por ocasião de uma conferência proferida em 10 de maio de 1968, cujo
conteúdo se converteu em publicação apenas em 2004 (em
comemoração ao centenário de Skinner), o otimismo do autor é visível.
Quando está analisando os problemas sociais de então, comparando sua
análise naquele momento e as perspectivas para o futuro (ano 2000),
esclarece que o delineamento cultural passará das soluções intuitivas para
as soluções baseadas na identificação de relações entre variáveis
independentes e dependentes. Pontua:
[...] Essa forma de ação vai se desenvolver muito rapidamente
durante o último terço do século 20. Até o ano 2000 teremos de
deixar muito menos a solução de nossos problemas à experiência
pessoal e às analogias históricas. Possivelmente, hoje isso é ficção
científica, mas que pode, contudo, tornar-se realidade – a análise
científica do comportamento humano está gerando uma tecnologia
que pode ter consequências extraordinárias (SKINNER, 2004, p.
213).
O período subsequente, principalmente depois dos anos 1980, parece
revelar um Skinner redimensionando as possibilidades de a análise do
comportamento viabilizar soluções para uma nova sociedade com a
celeridade que antes imaginara. Seus textos e comunicações orais,
embora continuem registrando os avanços tecnológicos, passam a um
tom considerado pelos seus comentadores como pessimista (CHANCE,
2007). Esse autor relata que, em entrevista pessoal, Skinner o deixou
atônito com uma revelação:
No final dos anos 80, entretanto, o otimismo de Skinner parecia ter
desaparecido. Eu descobri isso quando falei com ele sobre uma
antologia que estava editando [...] A entrevista dele, de 1967, iria
aparecer nesse livro e eu perguntei a ele se sua visão havia mudado
desde essa época. Isso havia acontecido, ele
contou: “Eu acreditava que a ciência do comportamento poderia
nos mostrar como resolver problemas com os quais nos
confrontamos – como a poluição, superpopulação, pobreza e
ameaça de guerra nuclear. Mas eu sou forçado a concluir que o que
a ciência do comportamento nos mostra é que não podemos
resolver esses problemas” (CHANCE, 2007, p. 154).
Para Chance (2007), a se considerar a aparência pessoal de Skinner
durante a entrevista, não havia razão alguma para supor que seu
pessimismo estivesse vinculado a uma depressão, à idade avançada ou à
leucemia que já o acometia; Skinner se apresentara ‘disposto e
sorridente’, o que teria deixado seu entrevistador ainda mais surpreso e
sem ação. O que se segue, no texto de Chance (2007), é a descrição
rápida de uma série de condições, variáveis ou situações que, no seu
entendimento, provavelmente contribuíram para o suposto pessimismo
de Skinner, que, como vimos, na conferência de 1968 estimara que até o
ano 2000 já se pudesse constatar na prática as contribuições de uma
ciência do comportamento para a construção de uma sociedade justa e
feliz.
Chance (2007, p. 154) considera, ainda, que “[...] infelizmente, é muito
fácil listar a espécie de constatações da ciência comportamental que
podem ter levado Skinner ao pessimismo”. E segue citando as principais
dificuldades, aqui resumidas: (1) consequências imediatas são mais
eficientes que consequências atrasadas; (2) consequências para o
indivíduo podem competir com as consequências para o grupo, o que
dificulta a manutenção de comportamento altruísta; (3) eventos que não
têm relação ‘causal’ com o comportamento (adventícios) podem manter
comportamentos de funcionalidade equivocada (por exemplo, uso de
preparados populares versus medicamentos resultantes de pesquisa
controlada); (4) alguns compostos químicos (sal ou açúcar, por exemplo)
induzem a consequências imediatas prejudiciais à saúde, em detrimento
do consumo de alimentos saudáveis; (5) embora a maior parte do
comportamento possa ser explicada em termos de biologia, história de
aprendizagem e contexto corrente, não apenas leigos, mas muitos
psicólogos preferem explicações baseadas em
uma mente misteriosa e teleológica; (6) a suscetibilidade a reforçadores
sociais, levada ao extremo, pode desencadear comportamentos
incompatíveis com as situações pacíficas (11 de setembro, por exemplo);
(7) na ausência de contracontrole o uso de estratégias aversivas tende a
se tornar reforçador para quem usa punição (regimes autoritários e várias
agências de controle); (8) crenças persistentes na ‘causalidade’
sobrenatural de muitos eventos induzem a comportamento
supersticioso, por vezes sofisticado, associados a práticas culturais
deletérias ao bem estar social. Chance (2007) referencia sua lista com a
citação de diversas pesquisas consideradas variações sobre os temas
apontados. Ele pondera ainda (CHANCE, 2007) que se fosse o próprio
Skinner a compor esse rol, não resta dúvida de que poderia ser
razoavelmente diferente, mas que a maioria dos itens constituiria desafios
concretos para a resolução dos problemas complexos da sociedade. Com
isso, o autor assegura-se de que Skinner tinha boas razões para estar, na
entrevista, um tanto pessimista sobre o futuro da humanidade.
Chance conclui (2007) que, a um Skinner pessimista, os otimistas
poderiam responder que se não podemos lidar efetivamente com nossos
maiores problemas sociais como desejaríamos, isso acontece por conta
de que é preciso tempo para novas ideias se consolidarem, tais como as
da análise do comportamento (notemos que Skinner esperava, quem
sabe ‘ansiosamente’, que sua conferência otimista sobre o mundo no ano
2000 se concretizasse no tempo previsto). Chance argumenta que, para
manter o otimismo, precisamos ser pacientes, como aconteceu em
relação às ideias de Darwin, que levaram muitas décadas para serem
razoavelmente aceitas. Convoca: “dê-nos tempo, o otimista diz, dê-nos
tempo” (CHANCE, 2007, p. 156, tradução nossa)1. E finaliza:
Entretanto, nas atuais circunstâncias, mesmo os otimistas precisam
admitir que nosso futuro é uma dúvida. Na minha conversa com
Skinner, a única esperança que ele explicita como razoável está em
um número substancial de pessoas influentes – educadores,
escritores, jornalistas, cientistas e
estudantes – que podem pressionar os elaboradores de políticas
públicas para ações efetivas de mudança. O fato de que nós estamos
fazendo pouco para obter sua contribuição talvez justifique a visão
skinneriana. Assim, nosso último desafio é este: provar que a
evolução não nos deu apenas impulsos para minar nossa saúde; para
impelir-nos à violência; para nos transformar em trapaceiros,
mentirosos ou bandidos que ameaçam tornar nosso mundo
inabitável, mas também nos deu a habilidade para superar todas
essas falhas. Ironicamente, o último desafio para a Análise do
Comportamento é provar que B. F. Skinner estava errado [em seu
pessimismo] (CHANCE, 2007, p. 158).
De qualquer modo, ainda restava um ano para o derradeiro
pronunciamento público de B. F. Skinner. Em 10 de agosto de 1990, a
American Psychological Association (APA) resolveu conceder, pela primeira
vez, por ocasião de sua 98ª Convenção Anual, o Award for lifetime
contributions to psychology, maior prêmio da academia americana para
psicólogos. Skinner foi o escolhido. No seu discurso de agradecimento,
embora a leucemia viesse a retirá- lo de cena oito dias depois, falou de
improviso por 15 minutos e foi veemente nas explicações sobre
obstáculos e avanços da análise do comportamento. Considerou
impertinente a lógica explicativa cognitivista para as ações humanas,
incluindo a conhecida afirmação: “Até onde concerne a mim, as ciências
cognitivas são o criacionismo da Psicologia” (B. F. SKINNER..., 1990).
Entretanto, seu vigoroso discurso não parece representativo de qualquer
desânimo ou pessimismo em relação à possibilidade de que uma ciência
do comportamento pudesse contribuir para melhorar a vida humana no
planeta. Skinner revela-se muito realista e relembra sutilmente à sua
audiência a gravidade dos problemas com que a civilização se defronta.
Assim finaliza sua manifestação:
Recordando minha vida – 62 anos como psicólogo –, eu diria que o
que tentei fazer, o que estive fazendo, foi deixar claro este ponto,
mostrar como a seleção pelas consequências no indivíduo pode ser
demonstrada no laboratório, com animais e
com sujeitos humanos e mostrar as implicações disso para o mundo
como um todo, não apenas para a Psicologia profissional, mas
considerando o que vai acontecer ao mundo a menos que algumas
mudanças muito vitais sejam feitas.
Gostaria de ser lembrado por qualquer evidência de ter sido bem
sucedido nisso. Mais uma vez, obrigado por esta homenagem e por
sua atenção (B. F. SKINNER..., 1990).
Não seria a única vez em que Skinner alertava para a necessidade de
planejar consequências capazes de estabelecer e manter ações concretas
para mudanças sociais de amplo alcance. Já o fizera em diversas ocasiões,
destacando o fato de que, consistentemente e por longo período, no
nível filogenético, foram selecionados padrões comportamentais
importantes para a sobrevivência da espécie mediante reforçadores que
seguem imediatamente nossos comportamentos. Isso se exemplifica,
num contexto em que a população era muito menor no planeta, pelo
padrão extrativista adotado, uma vez que havia abundância e, mesmo,
sobra de suprimentos para alimentação de todos. Apenas muito mais
tarde no processo evolutivo, a formação de comunidades, a ampliação da
densidade demográfica e, como consequência, a necessidade de provisão
de mantimentos levou à produção de bens de sobrevivência, como, por
exemplo, aqueles derivados da agricultura. Plantar para o futuro
exemplificava, na agricultura familiar, a forma mais rudimentar e
eficiente de assegurar atendimento seguro às ‘necessidades básicas’.
Desse modo, passaram a ser selecionados (não sem que fosse mantida
maior eficiência dos comportamentos controlados por consequências
imediatas) outros comportamentos, cujas consequências principais
ocorriam em médio prazo2, o que significava, neste caso particular, o
período necessário entre plantio e colheita.
Na história da humanidade – a considerar os inúmeros exemplos
apontados pela antropologia, pela sociologia, pela biologia evolutiva
– podem ser encontradas ‘marcas’ culturais que revelam claramente, quanto
mais remotas as épocas às quais retrocedemos, em que medida a espécie
humana teve sua sensibilidade às
consequências de longo prazo relegadas ao pensamento utópico. O fato
é que, com o desenvolvimento do processo educacional, seja no âmbito
da família ou das instituições, o conhecimento a respeito dos efeitos
deletérios sobre bens de sobrevivência da nossa e de outras espécies
avançou significativamente. Somos, hoje, capazes de projetar com
razoável precisão os futuros efeitos devastadores da poluição, do uso
não sustentável de recursos naturais (água, petróleo, energia elétrica e
assim por diante), da ampliação descontrolada do número de veículos
automotores, dos conflitos armados, do desmatamento e da
monocultura, para exemplificar.
Há, em todas essas áreas, informação bem estabelecida sobre a
dimensão dos prejuízos que causamos e causaremos aos nossos pares
atuais, assim como aos nossos descendentes, se o prosseguimento dos
padrões comportamentais mobilizados (apenas) por consequências de
curto prazo para as nossas particulares demandas continuar ocorrendo
sem qualquer preocupação com o planejamento cultural.
Desafortunadamente, embora esse conhecimento dos efeitos futuros
de atuais práticas não sustentáveis se tenha desenvolvido e seja hoje
compartilhado por grande parte da população mundial, o fato é que as
pesquisas já mostraram que ‘saber que’ não implica ‘agir’ coerentemente
com a espécie de conhecimento que temos a respeito desses efeitos
sobre o comportamento das pessoas.
Embora nem sempre, ‘dizer’ e ‘fazer’ guardam entre si incoerências
visíveis quando se trata, especialmente, da emissão de comportamentos
operantes, particularmente no contexto de práticas culturais, onde é
marcante a predominância da nossa sensibilidade às consequências
imediatas. Ou seja, se não somos (ou se somos apenas limitadamente)
controlados por consequências de futuros distantes (30, 50, 100 anos),
temos à frente um grande problema e um grande enigma para resolver.
A solução implica, necessariamente, a proposição de consequências que
efetivamente controlem nosso comportamento atual, reduzindo quanto
possível e cabível o controle por consequências imediatas e ampliando o
repertório de padrões altruístas de comportamento. Mas, ainda: como
instalar comportamentos individuais altruístas e,
especialmente, práticas comportamentais altruístas se a finalidade
(original) delas está no futuro e se, quanto mais distantes da ocorrência
de tais práticas estão as consequências, menos provável é que elas
controlem o nosso comportamento corrente? É exatamente à
(persistente) resistência da humanidade em aderir aos padrões
comportamentais altruístas que respondera de maneira relativamente
pessimista B. F. Skinner, embora tivesse ele todas as razões experimentais
e teóricas para continuar, até o fim da vida, acreditando que a seleção
pelas consequências é a lógica do processo evolutivo. Por um lado – na
dimensão filogenética – nossos padrões biofisiológicos garantem
estarmos prontos para o primeiro passo no processo de sobrevivência ao
nos depararmos, já no nascimento, com as exigências ambientais mais
agrestes. Por outro – nas dimensões ontogenética e cultural – ainda
somos incipientes no desenvolvimento de padrões comportamentais que
garantam, respectivamente, as consequências para nosso estilo operante
de responder cotidianamente ao nosso ambiente individual tanto quanto
garantam a transmissão às novas gerações de padrões de práticas
comportamentais sustentáveis.
O desenvolvimento tecnológico não parece causar dúvida a Skinner e
aos demais analistas do comportamento. O problema está em outros
aspectos: por um lado, em como viabilizar a escolha de ‘bons valores
morais’ e, por outro, como garantir, no delineamento, a sustentabilidade,
ou seja, o fato de que as gerações futuras (e, por conseguinte, o ‘mundo’
do futuro) sejam beneficiadas por um bom planejamento cultural?
Parece bastante compreensível, nessa perspectiva, que Skinner não
fosse demovido de seu ‘sonho com um mundo melhor’ por conta de
qualquer desconfiança em relação ao que seus próprios dados, tão
cuidadosamente coletados e analisados, disseram-lhe em todos os seus
mais de 60 anos como psicólogo e muitos como analista do
comportamento. De fato, o que parece incomodar Skinner,
paralelamente à interpretação de seus comentadores como ‘pessimismo’,
parece ser bem mais uma decepção aguda ao se defrontar, no fim dos
anos 1980, com a frustração de não vislumbrar
(como previra para o ano 2000 na conferência proferida em 1968)
praticamente nenhuma mudança positiva no panorama social mais
amplo da humanidade que pudesse ser pelas contribuições diretas da
análise do comportamento. Naquela conferência, Skinner revelara, de
fato, bastante esperança de que até 2000 a ciência do comportamento
pudesse estar presente no planejamento cultural de maneira mais
incisiva, o que não ocorreu de fato até sua morte, em 18 de agosto de
1990, apesar dos grandes avanços tecnológicos alcançados.
Se fizer sentido a análise desenvolvida até aqui – e considerando o fato
de que a Skinner pouco tempo restou para poder interagir com os novos
analistas que, a partir de Glenn (1986), passaram a dar novo impulso às
pesquisas na análise comportamental da cultura (algumas das quais
Skinner talvez considerasse auspiciosas para um projeto mais amplo) – é
de se considerar possível uma resposta positiva ao desafio metafórico
estampado no título e na conclusão do artigo de Chance (2007): The
ultimate challenge: prove B. F. Skinner wrong. Ou seja, se o pessimismo
skinneriano não for considerado uma descrença na possibilidade de a
tecnologia comportamentalista radical haver-se bem com os grandes
problemas da humanidade, mas apenas uma decepção momentânea com
a morosidade ocasionada pela complexidade desse processo, resta ainda
uma real possibilidade de concretização da análise comportamental da
cultura. Nessa perspectiva, sob que condições teóricas e instrumentais
seria possível delinear, na atualidade, um novo cenário para
consubstanciar eventuais contribuições da ciência comportamental para
as mudanças culturais? Alguns conceitos, impasses e obstáculos teórico-
tecnológicos precisam ser analisados.
Considerações finais
Como já discutimos, não apenas a ideia de sobrevivência da cultura
como critério final deve ser considerada com cautela, como,
paralelamente à instância assessora da dimensão comportamental das
políticas públicas, deveria emergir um sistema de consultoria ético-
jurídica, talvez pautada nos valores soberanos, nacionais e internacionais,
da boa convivência e da superação de conflitos de interesse. Essa
instância também poderia levar em consideração que o valor dos
comportamentos a serem emitidos deveria ser
analisado em termos dos benefícios que resultam para a comunidade,
embora o alto risco de uma avaliação contaminada por excessivo
relativismo. Nesse sentido, a maximização do benefício para o grupo
deveria orientar (embora a inviabilidade de que esse possa constituir um
valor absoluto) benefício para o indivíduo e vice- versa.
Uma consultoria comportamental de políticas públicas, na prática,
poderia disponibilizar assessoria, especificamente, para adequações na
dimensão comportamental das políticas de governo, na elaboração de
leis, regras, normas e campanhas que visem a instalar ou mudar
repertórios de práticas culturais, tendo como objetivo mais geral a
convivência social plena de cidadania e justiça social. Esse organismo
desenvolveria estratégias de sensibilização dos dirigentes e agentes
públicos mediante produção de documentos educativos a respeito das
estratégias de intervenção apoiadas na lógica natural da seleção pelas
consequências, ofereceria cursos de capacitação e gestaria políticas
comportamentais baseadas na seleção pelas consequências. Na mesma
direção, viabilizaria reivindicações às agências de fomento sobre editais
frequentes para apoiar a produção científica de novos instrumentos,
procedimentos e elaborações teóricas, filosóficas e éticas orientadas para
a consecução de medidas viabilizadoras de iniciativas apoiadas numa
perspectiva de seleção pelas consequências como norte funcional para
políticas públicas. A implantação de políticas experimentais, com
abrangência populacional reduzida, para testes de viabilidade, análise de
desdobramentos ético-morais dos objetivos, caracterizando a já discutida
modulação experimental, constitui parcela imprescindível do
empreendimento. Para todos nós, cidadãos, talvez isto seja um projeto
pouco abrangente, dada a amplitude dos problemas sociais vigentes,
imensa e incalculável. No entanto, para alguns de nós, que estudamos o
tema dos delineamentos culturais, será justificável nos esquivarmos do
compromisso profissional com a justiça social, dando-nos ao luxo de
desconsiderar uma nova alternativa ao nosso alcance? Nova utopia?
Talvez, apenas projeto utópico se, no mesmo clima que decepcionou
Skinner, não se conseguir mudar o
comportamento de sequer alguns poucos dirigentes públicos para,
democraticamente, assegurar que se experimente.
Mas há o que possa ser melhor, sem dúvida alguma: um grande
projeto para aprendermos e ensinarmos comportamento altruísta. Este,
sem dúvida, é, no mínimo, sonho de muitos: instalar e consolidar
práticas culturais sustentáveis, que mesmo que não nos beneficiem
diretamente, garantirão, em gesto altruísta, a vida das pessoas e do
planeta em boas condições por muito mais tempo do que as nossas
existências pessoais. Por um lado, a ideia do altruísmo desinteressado e
‘genuíno’ parece inconsistente com a seleção pelas consequências, uma
vez que implica um padrão comportamental inato ou instalado sem ter
sido consequenciado. Já um altruísmo ‘interessado’, ou seja, um padrão
comportamental que poderia se instalar mediante consequências seletivas
de operantes que geram o bem de outros e o bem da espécie, parece ser
um comportamento como outros quanto à sua natureza e
funcionalidade. Nada temos contra o fato de que aprender a cuidar do
futuro dos nossos descendentes seja suscetível de seleção pelas
consequências. Nesse sentido, planejar melhores condições de vida,
ouvindo parcimoniosamente os mais variados segmentos sociais,
respeitando minorias e instrumentalizando a partir de reivindicações
populares as mais legítimas políticas públicas, parece constituir uma
prática da democracia orientada constitucionalmente. Essa forma de
planejamento se encontra longe e em posição exatamente oposta à de
pensar uma autocrática e danosa ‘engenharia social’ subsidiada por
interesses particulares, eivada de nuances deletérias à equidade de
oportunidades e à justiça social.
Talvez consequências simples, como o reconhecimento social,
constituam uma retribuição mais palpável do que aparenta para
comportamentos efetivamente cidadãos. Talvez possam fazer parte de
uma abrangente educação para a sensibilidade, como nos ensina Abib
(2007, p. 78, grifo nosso):
A cultura da identidade, ou seja, a reprodução do passado, das
tradições, do mesmo, do similar, deve ser deslocada para um
segundo plano ou pode ser até mesmo abandonada. Com essa
estratégia, a cultura da alteridade, a cultura que estabelece as
condições para o afloramento da pluralidade e diversidade, que são
necessárias para a compreensão de mundos diferentes, toma a
frente do processo de educação da sensibilidade.
Uma educação da alteridade ressalta exatamente os aspectos que
uma cultura da identidade passa por alto ou até mesmo desestimula,
como, por exemplo, os desvios, os erros, os acidentes, o imprevisto
e o novo.
Referências