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Prêmio Escriba

de Contos 2016
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IX PRÊMIO ESCRIBA DE CONTOS
2016
IX Prêmio Escriba de Contos – 2016

Realização
Prefeitura do Município de Piracicaba
Secretaria Municipal da Ação Cultural
Biblioteca Pública Municipal “Ricardo Ferraz de Arruda Pinto”

Prefeito Municipal
Gabriel Ferrato dos Santos

Secretária Municipal da Ação Cultural


Rosângela Rizollo Camolese

Comissão Organizadora
Adrielle Camargo dos Santos
Alexandre José Cruz
Antonio Filogenio de Paula Junior
Aparecida Rosana Bueno de Godoy Oriani
Elcio Queiroz Couto
Fausto Rodrigues Neto
Maria Aparecida de Carvalho

Comissão de Seleção e Premiação


Alessandra Cardoso
Alexandre Basso
André Telucazu Kondo
Ivana Maria França de Negri
Jonathan Semmler
Arte da Capa
Elaine Maria Lucilla Parra
Rafael Sampaio Moreira

Revisão
Adrielle Camargo dos Santos
Elcio Queiroz Couto

Edição em e-book
Elcio Queiroz Couto
Sumário
Cartas ................................................................................................................ 5
Premiados ...................................................................................................... 15
1º Lugar - Epitáfio ................................................................................... 16
2º Lugar - Carlito ..................................................................................... 37
3º Lugar – Maria, princesinha da noite ............................................ 51
Melhor de Piracicaba – A viúva do agiota ........................................ 64
Menções honrosas ....................................................................................... 70
A estrela que sonhava ser lua .............................................................. 71
A professora e o aluno ........................................................................... 88
Conta-me uma história de amor ........................................................ 101
Eterno ....................................................................................................... 116
Sobre as ondas........................................................................................ 138
Lembranças de papel de pão ............................................................... 147
O chorão .................................................................................................. 155
Selecionados ................................................................................................ 162
As nuvens brancas de Lulu ................................................................. 163
Liberdade, enfim!................................................................................... 172
Pedro Maritaca em: catetos e hipotenusas ...................................... 182
O Incrível Marvel .................................................................................. 189
O corvo .................................................................................................... 199
Invisível ................................................................................................... 208
O caos ....................................................................................................... 219
E foram passear em Buenos Aires..................................................... 243
O saber da loucura ................................................................................ 252
No velório................................................................................................ 271
Mensagem do Prefeito Municipal

Gabriel Ferrato dos Santos

É gratificante poder falar mais uma vez de uma


das ações culturais que mais dão orgulho a nós,
piracicabanos, o Prêmio Escriba. Contamos com um
cenário cultural rico, a se ver pelo Salão de Belas
Artes, o Salão de Arte Contemporânea (SAC), o Salão
Internacional de Humor, o Festival Nacional de
Teatro de Piracicaba (Fentepira) e o Festival
Internacional de Música Erudita de Piracicaba
(Feimep), e o Prêmio é mais um desses movimentos
culturais.
Destaco aqui, além da importância desse evento,
a qualidade dos textos que recebemos. Neste ano, em
meio a 774 contos, contamos com obras vindas do
Japão, Itália, Portugal, Alemanha, Espanha, Moçam-
bique e Estados Unidos; e incríveis 23 participantes
da nossa Piracicaba.
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Parabenizo a iniciativa da Secretaria Municipal


de Ação Cultural (Semac) e todos os envolvidos no
Prêmio Escriba por promoverem um estímulo aos
escritores e a essa futura geração de amantes da
escrita.
Mensagem da Secretária Municipal da Ação Cultural

Rosângela Rizzolo Camolese

Escritores e aspirantes do mundo todo


participaram de mais uma edição do Prêmio Escriba.
Este ano, na categoria de contos. Realizado pela
Prefeitura de Piracicaba, por meio da Secretaria
Municipal da Ação Cultural (Semac), o Prêmio
Escriba acontece anualmente, alternando a cada ano
as categorias poesia, conto e crônica. O evento tem
como objetivo valorizar e incentivar o trabalho dos
autores e levar aos amantes da literatura textos de
qualidade.
Neste ano de 2016, tivemos o privilégio de
receber trabalhos de 387 participantes, com dois
contos cada. Tivemos 345 inscritos do Brasil
(distribuídos em 21 estados), sendo 23 de Piracicaba,
além de 21 inscrições de sete países.
O IX Prêmio Escriba de Contos contou mais
8 | IX Prêmio Escriba de Contos – 2016

uma vez com uma equipe excelente na composição


das comissões de organização e de seleção e pre-
miação, às quais agradeço pelo empenho e dedicação
na escolha dos contos que se destacaram entre tantas
obras. Parabenizo também os funcionários da Semac
e da Biblioteca Pública Municipal “Ricardo Ferraz de
Arruda Pinto”, além da Academia Piracicabana de
Letras e a todos os inscritos, que tornaram possível o
sucesso do Prêmio Escriba por mais um ano!
Dom Quixote das letras

Rosana Oriani
Diretora da Biblioteca Pública Municipal
“Ricardo Ferraz de Arruda Pinto”

A nona edição do Prêmio Escriba, realizada em


2016, celebra mais um ano de trabalhos literários, no
qual o conto foi o gênero escolhido. Com esta
coletânea, temos mais uma vez o Dom Quixote das
letras desbravando outros universos, outras plagas,
sempre através da palavra escrita.
A Biblioteca Pública Municipal “Ricardo Ferraz
de Arruda Pinto” sente-se satisfeita em organizar e
realizar, conjuntamente com a Prefeitura do
Município de Piracicaba e Secretaria Municipal da
Ação Cultural, mais uma edição desse reconhecido
concurso que, além de valorizar escritores já con-
sagrados, também incentiva que novos escritores
adentrem o fantástico mundo da literatura.
Esperamos que o leitor possa, sem receio, des-
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bravar outros horizontes tendo as letras, os contos


como fiéis escudeiros.
Parecer da Comissão de Seleção e Premiação

Chega ao final mais uma edição do Prêmio Es-


criba de Contos.
Esta comissão recobre-se da imensa res-
ponsabilidade de eleger os premiados e selecionar os
melhores contos para a composição da antologia.
Árdua tarefa devido à qualidade dos trabalhos
enviados.
A coincidência das escolhas, após minucioso
trabalho de leitura, vai peneirando, filtrando, como
num garimpo em que as pedras preciosas vão se
destacando do cascalho.
Chegamos finalmente a um consenso, apesar
das dificuldades de optar por um ou outro texto mais
denso, ou mais criativo, bem elaborado, que
prendesse a atenção, despertasse a curiosidade
quanto ao desfecho, que nos fizesse sorrir, chorar,
12 | IX Prêmio Escriba de Contos – 2016

que nos emocionasse e, principalmente, nos encan-


tasse.
Procuramos ser justos, imparciais, seguindo as
normas do regulamento.
Parabéns mais uma vez à Prefeitura, à Biblioteca
Municipal, aos organizadores, aos participantes e aos
selecionados, e parabenizamos especialmente os que
conseguiram galgar até o topo deste certame
literário, que cada vez mais se consolida no cenário
nacional e, por que não, mundial, já que vários
trabalhos são oriundos de outros países.
Novos lugares, novas leituras!

Comissão Organizadora

Em sua nona edição, o Prêmio Escriba de Conto


cada vez mais vem consolidando o seu espaço nos
concursos literários. Este ano não foi diferente,
contando com a participação de escritores de vários
lugares do Brasil e do exterior, sempre primando pela
realização artística literária e pelo bom uso da língua
portuguesa, que, mais do que nunca, torna-se um
idioma internacionalmente reconhecido, não só para
os países lusófonos, mas em outros em que os
amantes desse idioma se fazem presentes.
O Prêmio Escriba, com a utilização das novas
ferramentas digitais, em especial a internet, rompe
definitivamente as distâncias, ao mesmo tempo em
que assegura o total sigilo dos participantes e da
Comissão de Seleção e Premiação. Os contos es-
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colhidos fazem encantar pelo seu conteúdo, pela sua


forma, por sua estética literária.
É desse modo que esperamos que os leitores
apreciem os contos apresentados nesta antologia e,
com isso, possam descobrir outros mundos, novos
lugares, sempre conduzidos pela palavra bem dita,
bem escrita em língua portuguesa.
Boa leitura!
Premiados
1º Lugar

Epitáfio

Regina Ruth Rincon Caires


Araçatuba – SP

Domitila sentou-se novamente ao lado do


minúsculo túmulo, debruçou o corpo sobre ele, como
se o abraçasse. Fechou os olhos e sentiu uma paz que
havia muito não sentia. Não tinha mais cansaço, nem
dor, não havia mais agonia. Cumprira a missão.
Tudo começou por ali, nos arredores daquela
vila. Ali viveram seus pais e ali elas nasceram.
Tempos difíceis, sem qualquer recurso. Lembrava-se
dos olhos tristonhos da mãe ao falar sobre o encanto
da filha mais velha. Da vivacidade dos seus oito
meses de vida, da alegria, da pele rosada, dos olhos
cristalinos, das coxas roliças.
E, num repente, na extensão de apenas um dia,
ela se foi. Começou com um pequeno desarranjo,
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julgado como reação pelo despontar dos dentes e no


começo da noite agravou-se com uma febre
incontrolável. Mesmo com a débil claridade da
lamparina, ficava visível nas pequenas bochechas
rubras a intensidade da febre. E a prostração do
amado corpinho evidenciava a gravidade do quadro.
Tudo muito rápido, sem tempo algum para qualquer
acudimento. Na verdade, acudimento não existia. Ali,
naquele fim de mundo, não havia nada. Ninguém
além deles...
Quanta dor quando perceberam que nada mais
poderia ser feito! A vida da filha havia partido. E,
ainda com a madrugada escura, com o fosco prateado
do início da lua crescente, a mãe e o pai seguiram em
direção à vila, carregando nos braços e na alma
aquela que seria a maior dor da vida. E tudo foi feito.
Nem sabiam como. A papelada foi providenciada, e a
filha enterrada. De início, uma pequena carneira de
ripas fora erguida, mas depois o pai providenciou
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uma lápide de tijolos com uma cruz de madeira. Tudo


caiado de branco.
Dois anos depois, nasceu Domitila. Igualmente
formosa, mas de saúde delicada. Da mesma maneira,
amada. Por ali viveram mais uns poucos anos e,
esperançosos, partiram para terras mineiras, dadas
como promissoras para os roceiros. Passaram por
duas fazendas de café e na última ficaram até a morte
do pai.
Domitila e a mãe se mudaram para Lavras,
cidade mais próxima da fazenda onde viviam.
Alugaram três cômodos. Sobreviviam com a pensão
que a mãe recebia pela morte do pai e mais uns
caraminguás que conseguiam defender com o
trabalho de lavar e passar roupas. A mãe já estava
fisicamente debilitada. Idosa e judiada pela vida,
pouco ajudava. Mas, para Domitila, era uma com-
panhia prazerosa. Sempre se deram bem. Ambas
possuíam almas nobres, eram mansas na lida com a
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vida. A rudeza e as tristezas não as endureceram...


Faziam ótima companhia uma à outra. Conversavam
demoradamente sobre todos os acontecimentos,
sobre todas as saudades. Não havia nenhum
planejamento futuro. Apenas a esperança de um dia
voltar à vila onde Virgínia estava sepultada. Por
opção, Domitila nunca se casou. De saúde frágil
durante toda a vida, padecia constantemente com
agudas crises de asma.
E assim os anos corriam mansos, simples. O
passeio semanal de mãe e filha era a missa
domingueira na capelinha próxima da casa em que
viviam. Até que um dia a mãe se cansou. Não queria
mais comer, não queria mais tomar banho, não
queria mais ir à igreja. Prostrada, definhada, não
conseguia mais sair da cama. E Domitila cuidava dela
como se cuidasse de uma criança. Com paciência,
com dedicação, com todo o amor do mundo. Mas os
seus cuidados perderam a batalha para outra força. A
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morte levou a mãe.


Sentiu a mais dura solidão. Nunca pensara em
ficar só. Não sabia como administrar a vida assim,
sem ouvir uma única voz na casa. Entristecida, idosa,
sem recursos para sobreviver, com a alimentação
minguada e a falta de cuidados, as crises de asma
intensificaram-se a ponto de os vizinhos procurarem
a assistência social. E Domitila conseguiu, além de
uma pensão vitalícia, tratamento médico dispensado
pela equipe do posto de saúde.
Recuperou-se. Passou a fazer uso diário de
muitos medicamentos que minimizavam os vários
problemas de saúde desconhecidos até então. Passava
os dias sem maiores preocupações, apenas atenta aos
horários e doses dos seus medicamentos. O único
propósito, no qual pensava e repensava ao longo do
dia e durante as noites insones, era a viagem de volta
à vila onde nascera, a visita ao túmulo da irmã. Era
um desejo, uma missão. Prometera à mãe que não
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morreria sem lá voltar. E essa era a vontade mais


velada.
Mesmo com todos os cuidados, a saúde de
Domitila ficava mais comprometida a cada dia. E
chegou um momento em que precisou deixar a casa
que alugava. Foi levada para um asilo. Lugar
aconchegante, apinhado de velhinhos amigos, cheio
de cuidadores, de comida cheirosa, de cama limpa, de
banhos refrescantes. Estava feliz. O jardim era lindo,
com todas as flores da infância. Muitas dálias, cravos,
rosas, flores de capitão...
Domitila não se lembrava mais de qualquer
tristeza. Preenchia os seus dias com as atividades de
pintura, de bordados, crochê, de jardinagem. E
conversava muito. Tantos amigos, tantas histórias.
Umas alegres, outras tristes... E nessas conversas
soube que as pessoas idosas poderiam viajar de ôni-
bus sem pagar. Não sabia! Isso lhe abriu caminhos...
A parca pensão vitalícia não chegava às suas mãos.
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Quase a totalidade ficava com a administração do


asilo, o que era muito justo, assim ela pensava. A ela
eram repassados uns trocados a cada mês, mas não
tinha nem como gastar! Tinha tudo, tinha mais do
que precisava...
O inverno chegou de forma inclemente. Frio que
doía nos ossos e que trouxe gripe a quase todos os
idosos do asilo. Domitila ficou mal. Noites e noites de
febre causticante, de tosses agudas, de falta de ar. E
sempre amorosamente cuidada. Pedia silenciosa-
mente por saúde, pedia para que fosse dada a ela a
possibilidade de viajar até a terra em que havia
nascido. Era o seu mais intrínseco e único desejo.
Nada mais queria da vida. Só isso...
Alavancada pela missão a cumprir, recuperava-
se, ainda que lentamente. A febre cedera. Apenas a
tosse a incomodava. Dava-lhe uma canseira danada
no peito, uma inapetência e atrapalhava o sono. Com
a diminuição dos remédios, passava mais horas
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acordada e tinha mais tempo para maquinar a sua


viagem. Sabia que se falasse sobre isso com alguém
seria desencorajada, e se a administração porventura
ficasse sabendo, ela seria impedida de ir de qualquer
maneira. Por isso tramava tudo silenciosamente.
Dentro da cabeça, tinha toda a trajetória a percorrer.
Em detalhes... Sairia do asilo à noitinha, no horário
em que todos se recolhem. A sua companheira de
quarto era dorminhoca. Bastava entrar nas cobertas e
já estava ressonando. Iria bem agasalhada, levaria os
remédios na bolsa, juntamente com a carteira de
documentos e o pouco dinheiro que guardara por
todo tempo. O nome da cidade ela sabia e usaria do
direito das passagens de idosos.
Tudo arquitetado, cuidadosamente planejado.
Domitila ainda se sentia fraca, mas temia adoecer
novamente e não ter a oportunidade de realizar o
desejo arraigado na alma e cumprir a missão que
combinara com a mãe. Não poderia fraquejar agora,
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talvez fosse essa a última, a única chance.


No dia escolhido, uma segunda-feira, reorga-
nizou a bolsa, conferiu tudo, separou uma troca de
roupa e a acondicionou numa pequena sacola
plástica. Colocou tudo sobre os cobertores, no seu
guarda-roupa.
Naquele dia, saboreou o café da manhã como
nunca, passou os olhos em cada um dos amigos,
conversou com muitos. Almoçou e jantou com eles,
numa alegria imensa. Já estava com saudades antes
mesmo de partir. E não pretendia demorar nessa
viagem... Logo estaria de volta e sabia que levaria
uma bronca danada! Passeou pelo jardim olhando
detalhadamente cada flor, que agora eram poucas. Ali
o frio também havia castigado.
Depois do jantar, voltou ao quarto. Pegou uma
folha de papel, uma caneta e começou a desenhar
umas letras. Mal sabia escrever, estudara muito
pouco. Como ela mesma dizia, não escrevia, apenas
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desenhava algumas letras. Acabou de escrever e


guardou a folha na bolsa. Não era um bilhete para a
amiga de quarto. Cumpriria religiosamente o que
havia esboçado em sua mente. Não diria nada a
ninguém.
Ficou sentada na cama, esperando a chegada da
parceira. Quando ela entrou, foi direto ao banheiro.
Voltou já de camisola, pronta para entrar nas
cobertas. E assim fez. Domitila fez a oração da noite
com ela e em seguida entrou no banheiro. Tomou um
banho demorado, estava imensamente feliz. Quando
saiu, a companheira já ressonava. Deixou a porta do
banheiro entreaberta para clarear um pouco o quarto.
Pegou a melhor roupa, vestiu-se calmamente.
Agasalhou-se bem, colocando até uma touca preta de
lã. Escolheu um cachecol bem longo, deu duas voltas
no pescoço. Calçou as grossas luvas, meias de lã e
confortáveis sapatos. Pronto. Estava preparada para
partir. Aguardava apenas as luzes serem apagadas e o
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silêncio envolver tudo.


Para esperar, sentou-se novamente na cama.
Com a pouca claridade que passava pela fresta da
porta do banheiro, olhou cada detalhe do quarto.
Quatro paredes que acolheram o seu sono nos
últimos oito anos. Tempo bom... Olhava a amiga que
dormia santamente. Companheira de tantas orações,
de tantas prosas, de tantas risadas, de tantos dias bem
vividos.
Finalmente tudo quieto. Tudo apagado. Domitila
pega a bolsa, o saco plástico, olha para a amiga e dá
um sorriso. Apaga a luz do banheiro, abre a porta do
quarto devagarinho, sai, e com o mesmo cuidado a
fecha. Segue passo a passo, com muito cuidado, como
se pisasse plumas. Não pode fazer qualquer barulho.
Atravessa o pátio e sai pelo portão dos fundos. O
único que é fechado com trava somente por dentro.
Imprudente, irresponsavelmente vai deixar o portão
destrancado, mas não há outro jeito.
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Quando se vê na rua, tem vontade de rir. Está


fazendo a maior peripécia de toda a sua vida! A
maior, não! A única! Olha a rua vazia, escura, um
vento frio, cortante. Ajeita os óculos, ergue a dobra
do cachecol até cobrir a boca e segue em frente. A
rodoviária não fica longe. Basta andar por mais
alguns quarteirões, e a primeira etapa estará vencida.
Chegando à rodoviária, pede informações e
dirige-se ao balcão da empresa de transporte que faz
a rota. Pede para comprar a passagem de idoso. É
avisada de que o ônibus parte às 23h, que irá até São
José do Rio Preto e que lá terá que pegar outro
ônibus para chegar ao destino. Terá de esperar pouco
mais de uma hora, mas está feliz. Muito feliz. Sente
um frio intenso. Acomoda-se em uma poltrona bem
recuada, fora da corrente de ar. Ali, quietinha,
silenciosamente põe-se a rezar. Sente a presença da
mãe. Sabe que ela está ali, a guiá-la. E sente-se ainda
mais feliz.
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No horário marcado, o ônibus parte. Que


sensação prazerosa! Domitila nem tem conta de
quantos anos faz desde a última viagem em um
ônibus de carreira. Ainda era menina, isso mesmo!
As luzes do ônibus se apagam, a poltrona ao lado está
vazia. Nenhum idoso solicitou a outra passagem.
Tem espaço para colocar a bolsa e a sacola plástica.
Sente muito frio, pensa que deveria ter trazido a
manta. Tinha pensado nisso, mas não queria fazer
volume na bagagem. Tenta pensar em outra coisa,
esquecer o frio. Em vão... Em poucas horas está
tremelicando, e o ar frio do ônibus piora tudo.
Percebe que está com febre. Tem sede, muita sede.
Quando o ônibus faz a primeira parada, já é
madrugada, Domitila pede ao motorista que lhe
compre uma garrafinha com água. Além da sede
insana, quer tomar um remédio para baixar a febre.
Sente muito frio e muito desconforto. E, para piorar,
o gentil motorista traz água gelada. Coitado, foi tão
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solícito!
Toma o remédio, bebe toda a água. Não
consegue dormir. Não sabe se pela ansiedade ou se
pelo mal-estar, mas não prega os olhos. Na segunda
parada, desce cuidadosamente, vai ao banheiro,
compra outra água, agora sem gelo e volta ao ônibus.
O dia amanhece e a encontra exausta. Sente-se
cansada e doente. A tosse começa a incomodar. Está
gelada. Os pés, quase insensíveis.
Quando o ônibus chegou a São José do Rio
Preto, Domitila perguntou ao motorista como deveria
proceder para comprar a outra passagem. Orientada,
conseguiu a passagem e precisava esperar pelo
embarque para o seu destino. Depois de um tempo,
acomodada no assento reservado, e com o ônibus a
caminho da vila da sua infância, Domitila começou a
pensar nos amigos do asilo. A essa altura eles
deveriam estar alvoroçados com a sua falta, as freiras
deveriam estar preocupadíssimas com o seu sumiço.
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Na volta ela explicaria, e a bronca seria retumbante.


Dá um sorriso. Sente saudades.
A missão está quase finalizada. Falta muito
pouco. Sente um mal-estar tremendo, muito des-
conforto, uma fraqueza sem limite. Percebe que a
febre voltou, a tosse está se intensificando, dói-lhe o
peito. Deus! Esse ônibus precisa chegar logo ao
destino. Talvez quando descer, tomar um café com
leite e comer um pão, tudo ficará bem. Quer chegar,
isso é o que deseja. Nada mais.
Quando o ônibus chega à rodoviária da vila,
Domitila começa a chorar. Não sabe definir se chora
de alegria ou de dor. Sente-se feliz, mas fragilizada.
Tem medo que as forças a abandonem. Já no saguão,
vai ao bar, toma um café reforçado e engole os
remédios do dia. Vai ao banheiro. Antes de sair, lava
o rosto e passa uma escova nos cabelos. Segue a
orientação do rapaz que a leva ao táxi. Passando
pelas ruas, tudo lhe é totalmente desconhecido, nada
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familiar. Não tem lembrança de nada, era muito


pequena quando partiu. Uma vila que agora é uma
cidade, e cheia de ladeiras. O táxi sobe e desce, vira
aqui e vira ali e em poucos minutos para diante do
cemitério.
Uma entrada acanhada. Domitila passa pelo
portão de ferro, olha adiante e vê uma imensidão de
área. Não há ninguém no atendimento. O cemitério é
enorme. Tudo muito diferente do que a mãe lhe
descrevia. Os túmulos eram gigantescos, modernos,
suntuosos. Não havia nada da singeleza descrita pela
mãe. Vai caminhando em zigue-zague, procurando
com os olhos alguma evidência, algo similar a todas
as narrativas da mãe. A tosse impiedosa não a
abandonava. Tinha calafrios sucessivos. Andou
muito, viu muitos túmulos de crianças, e procurava
avidamente por uma lápide pequena, rústica, com
uma cruz de madeira. Muito cansada, sentou-se em
um banco que ficava sob uma árvore, pediu a Deus
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que a orientasse, que abreviasse a sua busca. Estava


mal, sabia que iria precisar de cuidados médicos, mas
não agora.
Voltou à portaria, havia um homem lá. Logo ele
se apresentou como coveiro e responsável pelo
cemitério. Domitila contou a ele toda a sua história e
o que buscava. Estendeu a ele o seu documento e
disse que o nome da irmã era Virgínia e que o
sobrenome era o mesmo dela. O homem nem pegou
o documento. Declarou a ela que trabalhava ali havia
mais de 40 anos, que não existia qualquer registro
anterior a 1950. Então Domitila disse a ele que talvez
o túmulo da irmã nem existisse mais. Mas ele
garantiu a ela que todos os corpos sepultados até
1950 possuíam sepulturas perpétuas, definitivas.
Todos continuavam no mesmo lugar. Explicou que os
túmulos mais antigos ocupavam a área no entorno da
capela. E, como o cemitério fora ampliado pos-
teriormente, os sepultamentos, quanto mais re-
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centes, mais distanciados da capela ficaram.


Percebendo que Domitila não estava muito bem,
o homem ofereceu a ela uma água e um café. Ela
aceitou, agradeceu e recomeçou a sua busca. Parou
junto à calçada da capela e procurava buscar na
memória a direção que a sua mãe havia descrito.
Seguiu em linha reta, depois retornou ao mesmo
lugar. Refez a caminhada na diagonal. Muitas
crianças sepultadas, muitas fotos, o que simplificava
a busca. O túmulo da sua irmã não tinha foto.
Buscava um túmulo simples, com uma cruz de
madeira. E não conseguia encontrar. Sentia tanto
frio, tossia incessantemente, tinha vontade de deitar,
mas estava ali, pronta a realizar o seu desejo. Não
recuaria, nunca...
A tarde ia caminhando sem pena. E ela não
encontrava o túmulo da irmã. Prostrada, chorando
baixinho, sentindo a febre cada vez mais elevada,
com a tosse a castigar-lhe o peito, retornou nova-
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mente ao ponto de partida: a velha e minúscula


capela. E desta vez seguiu sem rumo, novamente
ziguezagueando entre os túmulos. Tropeçava aqui,
pisava em falso ali, já não sentia os pés. O sol estava
a descer, e ela continuava a busca. O encarregado do
cemitério tinha terminado o expediente. Pensou que
Domitila tivesse desistido, e se foi. Além dela, não
havia mais ninguém por ali.
Não tendo mais forças para continuar, Domitila
senta-se na estreita calçada de um túmulo. Começa a
chorar copiosamente. Sente-se doente, incapaz de
seguir a caminhada, e extremamente desolada. Não
encontrou o túmulo da irmã. Olha o céu, o sol quase
sumiu por completo. Pensa na mãe. Olha em frente e
depois volta os olhos para o lado. Olha a lápide
margeada pela calçada onde está sentada. Com muito
esforço, coloca-se de pé. É um túmulo pequeno,
antigo, tem uma pequena elevação na cabeceira com
um buraco no centro. Percebe que aquele buraco não
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 35

fora feito em vão. Sim, ali havia a cruz de madeira.


Certamente se desfez com o tempo. Sente que
finalmente encontrou o túmulo da irmã. E chora,
chora como nunca havia chorado na vida. Chora
gritado. Nem sabe por quantos minutos... Estava
exaurida.
Domitila sentou-se novamente ao lado do
minúsculo túmulo, debruçou o corpo sobre ele, como
se o abraçasse. Fechou os olhos e sentiu uma paz que
havia muito não sentia. Não tinha mais cansaço, nem
dor, não havia mais agonia. Cumprira a missão.
Com a cabeça recostada na fria lápide e com o
rosto em brasa, Domitila tinha no pensamento a
figura da mãe, dos amigos do asilo, do pai. De
repente o frio cessara, não havia desconforto, nem
tosse, nem dor no peito. Tudo ficara muito leve,
flutuava...
Na manhã, Domitila foi encontrada.
Sem saber o que fazer e se lembrando de toda a
36 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

história contada por ela, o coveiro conferiu a bolsa,


procurou pelos documentos e viu uma folha de papel
dobrada, toda amassada. Abriu rapidamente o papel e
nele viu desenhado: QUERO FICAR AQUI. ESTE É O
MEU LUGAR.
E assim foi feito.
2º Lugar

Carlito

Zeh Gustavo
Rio de Janeiro – RJ

à vagabundalha toda
e seus panos tronchos de vestir desnudo o mundo

Prepara-se, todo dia. Mais um salto. Dou o co-


mando e ele vai. Agora rebola, Carlito. Ele rebola. As
crianças começam a parar para ver. Só vendo mesmo,
para crer. Os adultos namorantes também param
fácil. Os obtusos, amargos e os quase-amados olham
de esguelha. Os cegos fingem que não veem. Mas
veem, ó se não! Os últimos serão os solteiros,
distraídos, todavia interessados. Agora descansa,
Carlito. E ele se refastela, na calçada dos passadoidos.
Se tivesse fome, eu juro que lhe pagaria um lanche.
38 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

Mas, deixa para mim, se fome ele está liberado de


sentir. Bom garoto o Carlito. Sua companhia é
bacana, porque boneco não fala. Só não bebe umas
comigo, ao fim do batedor.
Nada de um é dois, três é cinco. Aqui é na
contributiva pessoal, por serviço emprestado. Quer
um pulo do Carlito?! Cinco mangos na mão.
Cambalhota completa é dez. Dependendo da magreza
da féria, rola um desconto. E assim faço o caixa. Mas
pessoal muito morrinhento e sem-surpresa, esse de
hoje. Não paga pelo espetáculo. Ah, um fenômeno
como Carlito há um tempinho atrás... Estaríamos
ricos! Parece até que morreu o folclore das coisas.
Para boa leva dessa transeuntada, a vida acabou
antes mesmo de eles nascerem. Ou, durante o
expediente de seu crescedouro, foram morrendo, até
morrerem. E, sem luz, para que a lâmpada?! Carlito é
que se joga no asfalto sem medo, e olha que Carlito é
boneco, imagine se fosse gente! Seria gente de
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 39

verdade e não essa aí, ó, perambulenta. Pula, Carlito!


E o baile começa.
Carlito sempre me apronta das dele. Basta um
gestículo da minha pessoalidade e ele se dana a
mexericar, com respeito, é claro, ante o desfile
corpilíneo das donas mais rebolosas! Ou... Mesmo
sem mando, assim, no assopradito. Ele pega tudo, de
percebimento. E o show vai apinhando de curiosos.
Carlito bate no muro, finge de morto e quando param
para investigar seu coraçãozinho de pano, ele fisga o
desavisado com uma bela duma tapa nas orelhas!
Incerto dia há que apertar uns narizes – para isso
ainda requer uns ajustes. Mas Carlito chega lá, é
muito vivo.

II

Já falei que Carlito é boneco, não? Mas, pros


mancos de alma que me praguejam acerca da ami-
40 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

zade entrosada, da confiança sem depósito prévio que


tenho no meu moleque de provimento, declareio,
supimpando argumentações: só um boneco o quê!
Mais bonecos são vocês, ó! Carlito não é brinquedo
não. Carlito é fantasia da pura, ciência de magia. Ou
alguém já me viu usar com ele artificialidades como
arames, fiapos, controles de botão, aparelhinhos de
robô?! Nunquíssimo. Tecnologia nossa é mágica; o
que permite a liga para as brincadanças. Qual coelho
de cartola, só no truquejado, carta de baralho que
some e depois assoma na manga. Fantastiquice, sim,
e mais um bocado de ensaio. Da voz e da traquinação
manual parte o comando; a Carlito cabe o aguardo,
com muita obedecência. Até o então: pula, Carlito! E
ele se projeta, ao ar. Bonito, cinco mangos na mão do
papai. Quer ver ele dançar? Dez cruzeiros. Mesmo se
palmejo, inconstante, Carlito não se acomoda,
precipita no gingado; endoida, pulativo. Mais não
conto. E que deem um desconto pro meu prosear de
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 41

titereiro.
Carlito, entanto, é frágil. Como toda gente, se
explorada em suas demasias de força. Ele tonteja,
capota, desmonta. E não é sujeito objeto assim de se
consertar da noite para o dia não. Afinal, nem comer
come, o coitado. E só respira ar de brabeira. Carlito
vivencia, seu modo, o mundo, que nem é seu, quanto
menos nosso. Nas quebradas é sempre ele mais eu,
palitando estrada pela cidade-cã.
Esse anoitado que vem descendo pelos
escombros da tarde longeva encontra-se com seus
poréns acesos. Rodamos e rodopiamos e nem um
puto, que não entra, tampouco nem sai, já que não
veio. Dureza, quando não tem jeito, não tem mola
que amoleça.
Carlito ressente, aflituoso que é. Não chora, que
não sabe como que se planta aguaceiro pelas suas
vistas-riscas, que isso não lhe ensinei. Procuro
economizar nos dizeres acerca do nosso miserê, afino
42 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

no converseio, para não estressá-lo. Se Carlito fica


tenso, aí é que o trampo se estrompeia mesmo. Aliás,
andam trombando com nós. Os rapas. Pegando geral,
montados, serviçais na gana, trepidantes no angariar
do camelonato. Não que ambulemos que nem piratas
pelas esquinas, todavia, nos confundem.
– Somos artistas, amigo.
Medo, não medra. Se nos diminuem, só
curvamos o que ainda padece de ser curvado. Depois,
retificamos a coluna, para aguentar o peso da carcaça
e fazer tocar a caravana. Então amanseio no gogó e
atuo no dever de protegimento do boneco – do
contrário, cismam de me levar Carlito.
– Nota fiscal do brinquedo, cadê?!
É criação, seu guarda. Somos tudo artistalhada;
ratatuia, mas artistalhada. De rua, mas do circo.
Ainda levo Carlito num programa de tevê, quem
duvida? E o amigo vai amigando. Quando, se tenho,
libero o algum, um molhe-goela qualquer. Na
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 43

delicadeza, para não ofender o sujestimado. Me


sorriem, me erram em umas três batidas, depois
retornam. Ou não voltam os mesmos, isso é que é
pior. As turmas trocam rápido, daí embaça.
– É meu trabalho, patrão.
Trabalho: cana em pobre, cacetete no pescoço
do bolso-vago. Sina diaba de atrapalhar quem
reboleteia pelos trilhos, isso que é. A bonitada do
poderio dá suas corretivas, ordenha, arrebanha. O
touro avança e leva a vaca para o brejo. A vaca, no
caso, é a mercadoria apreendida. O preju deve ser
marcante, para roer lembrança nas jornadas dora-
vindas. Prescrição de porretante para ambulanato de
rua é que não basta o apanhar apanhado. Rotina de
ver merda toda hora, traqueja-me Carlito, que não
fala palavrão, mas quando enxerga desafortúnios,
viceja as sobrancelhas pintadas para baixo,
ponderator.
Carlito é este, que me anima de continuar
44 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

prosseguinte, mediante aquele sorriso dele,


ensofregado, oferendado de alma palhaça após
qualquer comentário meu, mais ameno, acerca de
nossos ócios e troços; cioso de um porvir menos roto,
para conosco.

III

E não é que o teto tanto avariou-se que


desabou?! Eu vinha dizendo e só aconteceu pioração.
Comer, até que engoli uns fritoleosos, pelo trajeto.
Infelizmente, não só rango dá rata. Tivemos, cedo, o
obstante forçado de pirarmos com os nossos trapos,
lá da pensão costumosa. Tudo bem, que pensávamos
costurar a bufunfa e penicarmos de retorno, já
desumilhados, pruma diária com paga prévia. Dia
passou a cem, por de cima. Inapresentou-se sequeres
um tutu que fiasse nossa deitada noturna em alguma
dessas alcovas furrecas do Centrão. Sinal fechado,
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 45

quem não tem não obtém, se por intermédio dessas


nenhumas condições. Carlito, amuado. Pouca coisa
para levar, nos carregamos, um ao outro. E de
contrapeso médio, uma tristezinha, cativagando no
peito da gente. Do lado de fora, na rua
engrandescrente, acarinho Carlito da sua friaca de
dentro. Pensa que boneco não sente disso?
A vida, ela gosta de espezinhar. Vamos
desmoronando, desembonecados de nossa casa-chão,
com a couraça afagada em maus-tratos. Carlito
mesmo, não posso negar, está velho, nada inteiro,
zoadão. Tempo age é para despolir nossa esperânsia.
Vento rasga, a poeira cobre. Hoje tá brabo, amanhã
também. Ou, nem vem. Nossa desaparecência lastro
nenhum que deixa. O rastro se apaga. Pula, Carlito! E
um dia ele dorme de vez. É tudo bem simples, nem
devia de doer, mas dói.
46 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

IV

Presidente Vargas, lotada dos andrajos do


escuro. Mijo farto, papelões, desaprumos. A lixórdia
reunida. Mas, se nem tenho mais pernas, que dirá
Carlito e seus cotocos frágelos? Combalidos, vamos
desabotoando a larguidão da avenida pela hora do
encostamento dos cansaços, à cata do nosso próprio
espaçado. Um bom tanto do terreno já tem dono seu,
ai do quem que nele se apinhar sem permissão. É
regra, ó. Carlito não chia que não é fantoche de
choramingaus, ele mantém a linha. Andarilhamos ora
então na avenideza, repisando, visitantes que somos,
nesse ficarejo.
A maioria assentada desliga, acerca de nossas
sombrenças, ali. Urubuzada, entanto, aquela do viço
de vingar preju da vida-má, desfia suas sem-
confianças, no de-longe. Atenteiam, embora não
mexam. Sossegam se anteveem logo nosso enten-
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 47

dimento de que cada um cuida do que tem por seu.


Ainda que o seu provenha do alheio, o problema
morre entre eles, que fique neste entre, assim,
clarinho-clarinho. Curtem uma butuca, desferem
seus avisos pelo sangue nos olhos e terminam nos
esquecendo. Já na relação deles com o alheio, fun-
ciona assim: o bote desatraca, firmeza na operação.
Uns trepados nalguma branca amolada, outros só
dispondo do serpenteio serelepe de pernas como
arma de persuasão. Todos sem dó tampouco de si,
que diria do próximo distante.
Monto a barraca da campanha e estico Carlito.
Bichinho sofrido, boneco insortudo, mormente se em
cotejo com seu rapsódico talento. O povo reconhece,
mas do povo, ele próprio, resta pouco senão em
desabrigo, relento de almas, alienação de ideias as
suas. O sujeito fica objetivado, correndo atrás dos
cobres da sobrevivência. Vira figurinha carimbada,
farrapo sobre pele, número de pesquisa. No seu canto
48 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

de breu, Carlito apaga. Desconsigo. Fecho os olhos e


só enxergo o dia que virá. Perto, ronca um senhor-
zinho. Pediu obséquio de acordá-lo, à hora da
satisfação da fome, em formato de caldeirada fedente.
É que dentro em breve ocorrerá o desembarque dos
voluntariosos, tropa de rezadeiros que bajula mise-
ráveis com uns ensopados e sermõezinhos de fé.
Fico matutando sobre o distinto que nos ladeia,
destinado de vez e voz ao negativo. Sem Carlito, sem
nada. Um ninguém total, farto nas faltas. Na cidade é
só mais um, entre tantos mutuários do vagar à toa
por aí.
– Ei, acorda, chegou a boia.
Acho que sonhava. Alegremente desanima, não
obstante sustenha-se leve em seu movimento de
alcançar o isopor fumegante. Durante a pregação nos
bisoiamos, de compadrio, risadiço contido. Sabemos
que aquilo não vai dar em nada. Deus? Céu? Sopa,
isso sim!
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 49

O entulho some rápido pelos esgotos da goela


afoita de calor; preenche, sacode. Engulo tudo, às
colheiradas. Carlito dorme. Me recosto e pego dum
papel e caneta. Dou uma estudada. Mexo com
Carlito, no uso de desenhos pré-fabricados na
cachola. Ele parece sonhar também. Será um sonho
parente do que faz rir o companheiro ao lado, que
voltou a dorminhocar, felizudo no seu colchonete de
jornais? Vai saber... Rabisco um movimento em que
Carlito simula um gargalhaço. Carlito criança, he he.
Ainda que testo nele um assobio, o gogozinho
pequerrucho de Carlito no ponto de pitar um som,
que nem passarada arredia.
Não parece demorar e surgem os por enquanto
contornos de um outro caldeirão: homens e mulheres
com pressa, bolsas e pastas pra lá e pra cá, salada
nascente de buzinas e apitos e desassossegos em
fornicação produtiva. É o pós-lua e a nossa luta,
reamanhecida.
50 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

– Acorda, Carlito. Eles chegaram.


Cenário montado, hora do show.
3º Lugar

Maria, princesinha da noite

Pseudônimo: João Freire


Ricardo Francisco de Camargo Chagas
Ivaiporã – PR

Maria: aos quatro anos, abandonada perto do


lixão. Encontrada pelos catadores de lixo, foi levada
ao orfanato. Nos primeiros dias, a Madre Superiora
sentenciou: “A menina tem parte com o demônio”.
Não desapontou o julgamento da freira. Expulsa
meses depois, por atear fogo no presépio de natal. O
que ninguém soube é que só o fizera para roubar a
imagem de Jesus Menino, a qual levou consigo
escondida dentro da calcinha. Sozinha e com frio,
sentada na calçada, acalentava a pequena estátua de
gesso, seu filhinho, seu brinquedo. Único sonho: ter
um bebezinho só seu para cuidar.
Uma mendiga com uma criança de colo se apro-
52 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

ximou. O nenê negro reluzente. A menina logo se


encantou. Ganhou um naco de pão velho e uns goles
de leite azedo, que devorou com voracidade. A negra
avisou que a comida não era de graça, nada era de
graça nesse mundo. Ensinou-lhe a ficar perto dos
carros no sinaleiro, de mãos estendidas a recolher as
moedas que caíam minguadas. No final do dia, a
negra recolhia o dinheiro, dava para a menina as
sobras da marmita e partia para o boteco. Maria não
reclamava; feliz em cuidar do negrinho, sozinha. Até
deixou de lado a imagem de Jesus Menino. Não
precisava de cópias, se tinha o original. A negra
voltava nas horas mortas, passos trôpegos, a fala
mole, às vezes acompanhada de um velho. Todos
deitados no chão, dividiam cobertores velhos. Maria
não pregava os olhos, os gemidos acordavam o
negrinho que chorava a noite toda.
Um dia, homens de uniforme chegaram numa
manhã fria. Arrancaram os cobertores e ordenaram
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 53

que todos se levantassem. O negrinho acordou aos


berros. A negra protestou, xingou. Tiraram-lhe o
filho dos braços, com violência a colocaram dentro
do camburão. Maria, apavorada, agarrou a imagem
de Jesus Menino e correu o mais que pôde. Em vão
tentaram agarrá-la. Ofegante, encostou-se em uma
árvore, deixou-se cair na grama, enfim salva. Outra
vez sozinha, apenas ela e a pequena estátua de gesso.
As horas passaram, a fome apertou. Saiu às ruas
a batalhar as moedinhas. Não sabia direito o valor do
dinheiro. Ia aos comércios e pedia pão e leite,
mostrava as mãos cheias de moedas e notas miúdas,
às vezes o dinheiro dava, outras não. Alguns
comerciantes tinham dó, outros a enxotavam como
fosse um cachorro de rua.
Na mercearia, ganhou pão fresco e leite
quentinho da moça do balcão. Logo virou freguesa.
Voltava todo dia. A moça perguntou sobre seus pais.
Maria não os conhecia. Perguntou onde morava,
54 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

onde dormia. Respondeu aqui, ali, onde dava, onde


podia. A moça se comoveu. Levou Maria para casa. A
primeira lição: “Ao tomar banho, lavar bem as
partes”.
O marido da moça não gostou da novidade. Que
criança não era bicho de estimação. Que com o
dinheiro que ganhavam mal dava para os dois, ainda
mais sustentar filho dos outros. A moça respondeu
que era o filho que tanto queriam, tentaram e não
conseguiram. Por que não criar a pobre menina? O
homem aceitou, com a cara amarrada. Mas com uma
condição: “Que ajudasse nos serviços, que em sua
casa ninguém era vagabundo”. Maria, muito
prendada, logo aprendeu a lavar, passar, cozinhar.
Nas horas vagas, brincava com a imagem de Jesus
Menino, seu nenê, seu brinquedo.
O tempo passou. A crise chegou. A moça perdeu
o emprego na mercearia. A gravidez tão desejada
veio justo quando menos podiam. Para piorar, o
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 55

marido começou a beber. O médico alertou que a


gestação era de risco. Que guardasse repouso
absoluto. Todos os serviços da casa sobraram para
Maria. Muito pequena, deixou a comida queimar,
manchou a camisa do homem. Apanhou várias vezes
do marido da moça. Maria não se importava,
deslumbrada ao saber que daquele barrigão sairia um
lindo bebezinho.
Quando pegou pela primeira vez o nenê no colo,
Maria ficou eufórica. A crise continuava. A moça
arranjou outro serviço. O marido cada vez bebendo
mais. Tanto fez que perdeu o emprego, agora vivia de
bicos. Maria cuidava do bebê, cuidava da casa. O
neném deu o primeiro sorriso, as primeiras palavras,
os primeiros passos. Maria ficava extasiada. Por onde
andava a imagem de Jesus Menino? Esquecida no
fundo da gaveta.
O marido da moça chegou à tardezinha.
Esbarrou nos móveis, derrubou os porta-retratos.
56 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

Que Maria catasse tudo, que trouxesse gelo para sua


bebida. Maria disse que sua mulher ainda não havia
chegado do serviço e o nenê dormia. O homem
sorriu. Disse que ela estava virando moça, tinha até
peitinho. Que se sentasse no seu colo para receber
um carinho. Maria, assustada, obedecia. O coração
batia na garganta. O homem esfregava a boca
gosmenta no pescoço da menina. Cheiro de cigarro e
bebida. Uma mão peluda dentro da blusa, a outra
bulia dentro da calcinha. A menina, paralisada, não
reagia. O homem deitou-se sobre ela, imobilizou-a;
abriu-lhe as pernas, rasgou-a. Dor e lágrimas. Que se
contasse para alguém iria apanhar; o nenê também.
O homem deixou o copo cair no chão, enfaixou o
dedo, diria para sua mulher que se cortou para
justificar a mancha de sangue sobre o sofá. No
quarto, o bebê chorava; a imagem de Jesus Menino
também.
No outro dia, Maria mancava. A moça quis
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 57

saber o porquê. Mentiu que bateu o joelho na quina


da mesa. Maria choramingava pelos cantos. A moça
quis saber o motivo. O marido mandou parar de
aporrinhar a menina, que era coisa da idade.
Todos os dias, ao entardecer, era chegada a hora
do calvário de Maria. O homem se fartava. A menina
se sacrificava pelo nenê. Um dia, a moça chegou mais
cedo do serviço, a sacola cheia de verduras e frutas.
Viu seu marido sobre Maria. Deixou a sacola cair, os
tomates rolaram pelo chão. Gritos e mais gritos.
Maria expulsa de casa. Sua trouxinha de roupas voou
pela janela. Apanhou suas tralhas e correu. As
lágrimas caíam fartas. Tropeçou na calçada, sua
trouxinha voou longe. Em prantos, correu para
apanhá-la. Abriu-a, lá dentro a imagem de Jesus
Menino toda esfarelada.
Sentada na calçada, chorou até as lágrimas
secarem. Queria morrer. Uma mulher se aproximou;
o rosto muito pintado, cheia de penduricalhos, no
58 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

braço dezenas de pulseiras tilintavam. Fez várias


perguntas para Maria, que respondia com
monossílabas. Que não ficasse assim tão triste, não
era feia, morena clara de cabelo ruim, nada que um
bom creme não resolvesse. Maria era um achado, seu
pequeno baú de ouro.
Levou a menina para casa, logo na entrada, um
salão, um globo de luz desligado, um balcão, estante
repleta de bebidas. Um corredor grande cheio de
quartinhos; em cada quarto, uma moça. De início,
receberam Maria com desconfiança, mas logo ela
virou a bonequinha da casa. Pintavam-lhe de todas as
cores, arrumavam seu cabelo, paparicavam. Maria,
aos poucos, voltava a sorrir. A casa sempre muito
animada. Homens entrando e saindo, bebiam,
dançavam com as moças, namoravam.
Maria vestia, bebia e comia do bom e do melhor.
Um dia, a dona do salão chamou-a no canto, disse
que acabou a mordomia, que se quisesse continuar ali
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 59

teria que trabalhar, como todas as outras. Perguntou


se ela já havia feito coisas com os meninos na rua.
Maria, de olhos baixos, disse que não. A dona da casa
disse como a menina deveria proceder com um
homem na cama. Que, se não quisesse, a porta estava
aberta, o olho da rua era serventia da casa.
Na sexta-feira era a grande noite de Maria.
Pintaram seu cabelo de dourado. Um vestidinho novo
estampado. O rosto coberto de maquiagem, a boca
tingida de vermelho. A menina dançava em cima do
balcão. Os fregueses batiam palmas, saudavam:
Maria, princesinha da noite. Leiloavam: quem daria
mais pela primeira noite com a pequena virgenzinha?
O homem gordo de chapéu deu a maior oferta.
Seguiu para o quarto sobre os olhares invejosos de
seus concorrentes. O quarto decorado com dezenas
de ursos de pelúcia. Maria tremia. O homem saciou-
se com avidez. A menina mal reagia, choramingava
baixinho. O homem gordo protestou: que não era
60 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

virgem, nada; além do mais, muito fria; iria pedir seu


dinheiro de volta. A dona do salão ficou indignada,
disse que Maria agora teria que trabalhar até criar
rugas, para recompensar o prejuízo.
Maria trabalhou muito. Recebia três homens por
noite. Um dia, quando tomava banho, um fio de
sangue escorreu pela sua perna até o chão.
Sobressaltada, enrolou-se na toalha, correu para o
salão. Disse que o homem da última noite a
machucou mais do que os outros, pois estava
sangrando por entre as pernas. Todas as moças do
salão riram. Disseram que agora era uma mulher. De
presente, ganhou uma caixinha de absorventes e uma
cartela de comprimidos. Instruíram: “O absorvente
tem que colocar dentro da calcinha, o comprimido,
depois que parar de sangrar, tomar um por dia”.
Uma noite, um coronel veio com o seu filho
caçula. O garoto, muito tímido, precisava se iniciar. O
rapazinho olhava para o chão. O coronel escolheu
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 61

Maria para o seu filho, porque os dois tinham quase a


mesma idade. Os dois no quarto não sabiam o que
fazer. Até que as mãos trêmulas do jovem tocaram as
da menina. Beijaram-se. O coração da menina bateu
acelerado, nunca fora beijada na boca. O rapazinho
suava frio, não parava de tremer. Maria pediu para
ele ter calma. As roupas caíram devagar. O garoto
tocava o corpo da menina com delicadeza, beijava a
pele nua com devoção. Maria toda arrepiada. Puxou o
rapaz sobre ela. Dessa vez, nada de dor. Contorcia-se;
algo novo acontecia. Como se milhões de borboletas
batessem as asinhas dentro dela. Depois se
abraçaram ofegantes, caíram no sono. Acordaram
com batidas na porta. O coronel ordenava: “Que
terminassem logo, não tinha a noite toda”.
O outro dia amanheceu mais bonito para Maria.
Sorria para tudo e para todos. O rapazinho voltava
quase todas as noites. Trazia presentes, bicho de
pelúcia, vestido novo, um par de brincos. Gastava
62 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

todas as suas economias. Os dois cada vez mais


íntimos, tão felizes juntos. Até que o coronel chegou
na noite mais escura, bradou alto: “Que vadiazinha
nenhuma iria virar a cabeça do seu filho, que se
pegasse o filho outra vez ali, iria fechar aquela
espelunca”. Maria chorou muito, borrou a ma-
quiagem, uma lágrima mais negra que a outra.
Maria ficou doente. Os olhos fundos, a pele
lívida. Emagreceu, o cabelo loiro escureceu. Passava
o dia todo no banheiro expelindo a pouca comida que
ingeria. A dona do salão desconfiou, perguntou se ela
havia tomado os comprimidos. Maria mentiu que
sim. Esperou todos se deitarem, pulou a janela e
correu para a cidade, queria ver o seu rapazinho.
Ficou sentada em frente à escola em que ele disse que
estudava. O sinal bateu, muitos jovens saíram. Ficou
atônita ao ver o seu rapazinho de mãos dadas com
outra garota. Ele passou por ela, fez que não a viu.
Maria sentou no meio-fio, abraçou os joelhos e
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 63

chorou.
Levantou-se com dificuldade, sentia vertigens. A
barriga doía muito. Entrou em um boteco. Pediu para
usar o banheiro. O balconista ofereceu a chave,
sorriu com malícia. Maria entrou no banheiro
imundo. Baratas corriam pelas paredes. Sentou-se no
vaso. Desceu muito sangue. Levantou-se meio tonta.
Olhou para trás. Um feto ensanguentado boiava no
sanitário.
Não sabia o que fazer. Pensou em puxar a
descarga, segurou a cordinha. Hesitou. Agachou-se
para contemplar o dejeto mais de perto. Enfiou a
mão no vaso para apanhá-lo. Com as mãos em
concha, meladas de sangue... Maria sorriu ao
reconhecer Jesus Menino.
Melhor de Piracicaba
(Homenagem a Leo Vaz)
A viúva do agiota

Carla Ceres Oliveira Capeleti


Piracicaba – SP

Parecia desrespeito ir ao asilo, importunar a


viúva do agiota, mas Fernando precisava do
empréstimo por um motivo nobre. Não tinha
cabimento um jovem belo, forte e de futuro (sim,
alguém como ele) não ter futuro nenhum por falta de
dinheiro. Precisava aparentar o sucesso almejado
antes de obtê-lo. Dinheiro atrai dinheiro. Negócios da
China só aparecem para quem tem ou parece ter
posses, não é?
Dona Rosália chegou sorridente. Usava um
vestido discreto, mas caro. De seu braço pendia uma
bolsa de verniz preto, combinando com os sapatos.
Estava pronta para ir à missa. Escutou Fernando
atentamente. Por fim, estabeleceu as condições para
conceder-lhe o empréstimo. O rapaz ficou pensativo.
66 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

– Fechamos negócio, então? – perguntou a


velhinha, bebericando seu chá.
– A senhora não me leve a mal, por favor... Eu
sei que seu falecido marido era um grande... Um
grande...
– Banqueiro informal.
– Isso! Banqueiro informal. Seu marido foi um
grande banqueiro informal, mas nem ele cobraria
esses 10% a mais.
– De fato. Com a morte do meu marido, os
custos operacionais no ramo de empréstimos
subiram um pouco. O senhor veja: meu marido era
um homem forte, que podia resolver certas
pendências pessoalmente. Quanto a mim, mesmo
sabendo atirar, prefiro confiar em profissionais.
Minha vista anda fraca e eu poderia, sem querer,
alvejar alguém de sua família. Seria uma pena. Aceita
um biscoitinho de gengibre?
– Não, obrigado. Quer dizer que esses 10% são
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 67

para algum sujeito atirar em mim?


– De jeito nenhum! Eu só contrato especialistas
em artes marciais e armas brancas. Para algum reles
sujeito atirar no senhor, bastaria muito menos.
– Entendo. Então acho que prefiro um não-
especialista.
– Um não-especialista?! Prefere um amador?! O
senhor é quem sabe. Admiro sua coragem, sua
confiança de que poderá me pagar toda a quantia no
dia combinado, impreterivelmente.
– Eu vou pagar.
– Claro que vai. Qualquer um pagaria se
soubesse que tem um psicopata sádico no seu
encalço. É pagar e rezar.
– Rezar pra quê?
– Pra que o amador não pegue seu dinheiro e,
ainda assim, resolva fazer picadinho com o senhor,
por diversão.
– A senhora está me assustando.
68 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

– Estou sendo honesta. Pense nos 10% como um


seguro de vida. O senhor será visitado em domicílio,
por um profissional bem vestido, dirigindo um
veículo de porta-malas confortável.
– Por mim ele poderia vir de ônibus.
– Imagina! Aos melhores, o melhor. Um
profissional estressado, com baixa autoestima
poderia quebrar mais que seus dedos. Além disso,
ônibus urbanos não têm porta-malas. O senhor não
iria querer ser levado pro cativeiro amarrado no
para-choque, não é?
– Cativeiro?
– Apenas até sua família quitar a dívida. Seu chá
esfriou.
– A senhora acaba de me dar uma ideia. Parece
que seria mais fácil eu sequestrar a senhora.
– Parece, é?
– Seus filhos pagariam o que eu pedisse.
– Então vamos – disse a viúva, levantando-se e
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 69

ajeitando o vestido.
– Pra onde? – perguntou Fernando, estupefato.
– Para o cativeiro.
Dona Rosália pegou a bolsa e se virou para o
espelho como quem verifica o penteado. Quando
voltou a encarar Fernando, a agiota segurava uma
pequena pistola negra, fosca e elegante, combinando
perfeitamente com a bolsa de ir à missa.
Fernando saltou, derrubando a cadeira e fugiu.
Dona Rosália, fiel aos ensinamentos do marido, foi
até a janela e atirou. “Nunca saque uma arma se não
estiver pronta pra usá-la”, dizia o falecido.
O tiro pegou de raspão. Dona Rosália desistiu da
missa. Mandou a secretária marcar consulta urgente
com o oftalmologista.
Menções honrosas
A estrela que sonhava ser lua

Pseudônimo: Aura
Tatiana Alves Soares Caldas
Rio de Janeiro – RJ

Stella nascera no circo. A mãe, uma antiga


bailarina, mais bonita do que propriamente talentosa,
apaixonara-se pelo pai da menina numa das
temporadas do circo na cidade. Fugira com ele aos
quinze anos para uma união que já durava quase
vinte. O marido ensinara-lhe tudo o que ela sabia.
Um ano depois, nascia Luna. Três anos depois,
chegava Stella, herdando involuntariamente o
destino nômade e o estigma de ser a filha caçula num
lugar onde o estrelato estava reservado à primeira.
Os nomes das moças deixavam entrever o gosto da
mãe pelo misticismo. No fundo, Carmen queria ser
cartomante, mas o marido enxergara em sua beleza o
potencial para que ela virasse a grande atração
daquele circo. Luna tinha a graça e o talento natos a
72 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

uma bailarina. Seguindo os passos da mãe, ela logo se


revelou uma das maiores atrações do Grande Circo
Royal, atraindo aplausos de admiração em todos os
lugares por onde o circo passava.
A pequena Stella, frágil e tímida, fora treinada
para ser apenas ajudante em atrações em que
houvesse a necessidade de um auxiliar. Nos números
de mágica e na maquiagem dos bailarinos, ela era
sempre requisitada. Mas sentia que lhe faltava algo.
O brilho dos holofotes a atraía de forma quase
hipnótica, sendo esse fascínio contido apenas pela
sua timidez.
Depois de uma temporada ruim, em que o pai
teve de dispensar alguns funcionários, a situação da
menina piorou. Agora ela era também encarregada
de vender balas e pipocas durante o espetáculo,
função que odiava. Apesar de tímida, ela era
belíssima, e as gracinhas dos clientes a agrediam. No
íntimo, preferia ser uma das aberrações, que atraíam
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 73

a atenção por causa de sua deformidade, a ficar à


sombra da irmã, cuja semelhança com a mãe
rendera-lhe também o posto de favorita junto ao pai.
E ela, a desastrada que derrubava as pipocas que
deveria vender, sentia-se, no alto de seus quinze
anos, a mais desengonçada das criaturas.
Uma vez, pensara em fugir. A irmã rira da
imaturidade de sua ideia, argumentando que o circo
já representava a fuga. Como evadir-se de algo que já
contém em si o simulacro, o palco, a ilusão? A ilusão
mora dentro de nós. Está no nosso sangue, dissera ela,
na ocasião.
A cada mudança de cidade, a cada novo
acampamento, Stella sentia-se definhar. Alguns têm
asas, dizia a mãe; outros, raízes. E o sonho da mãe,
realizado em um arroubo juvenil, era o pesadelo de
Stella.
Apenas uma coisa a prendia àquele circo:
Rodolfo, um acrobata, mais arredio do que os ani-
74 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

mais, mais destemido do que qualquer outro


integrante daquela trupe. Seu coração, tão livre
quanto o dono, sempre estivera vazio, e talvez nesse
pormenor residisse a sua liberdade. Colecionava
aventuras nos lugarejos onde o circo passava, mas o
fazia justamente porque contava com a efemeridade
da situação. Uma vez, Stella perguntara-lhe se ele não
tinha vontade de se casar. A resposta foi uma sonora
gargalhada, com um leve afago em sua cabeça: meu
coração é pirata, Stellinha. Nem o atirador de facas
seria capaz de feri-lo – disse ele, afastando-se após lhe
dar um beijo fraternal na testa.
Todas as tardes, Stella observava o árduo treino
da irmã, absorvendo cada movimento, cada detalhe
de uma arte que misturava graça e precisão. Uma
falha, numa fração de segundo, poderia ser fatal.
Após o fim do ensaio, num momento em que o
picadeiro ficava vazio e os artistas descansavam até a
hora do espetáculo, Stella reproduzia graciosamente
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 75

os movimentos da irmã. Nesses momentos, ela nada


tinha de tímida ou de desastrada. E o fazia com mais
leveza e com mais paixão. Não possuía a beleza da
irmã, o que a fazia se encolher, envergonhada,
quando alguém a surpreendia em seus momentos de
devaneio. Faltava-lhe a consciência de que talvez se
tornasse uma bailarina melhor do que a irmã jamais
fora, se lhe fosse dada uma oportunidade.
A temporada naquela cidade vinha sendo uma
das melhores que o circo já havia conhecido. Todas
as noites, os ingressos eram integralmente vendidos,
levando-os a respirar, aliviados. Se dependesse
daquela temporada, poderiam pagar os artistas, que
estavam sem receber havia três meses e comprar um
novo veículo para o grupo.
Stella aproveitou a tranquilidade do horário
após o almoço e foi conversar com madame Soraya.
A cartomante do circo tinha a fama de embusteira,
mas conhecia bem a alma humana e sempre dizia
76 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

aquilo que seus consulentes queriam ouvir, o que lhe


assegurava o emprego no circo e polpudas gorjetas a
cada noite.
O ruído das cortinas de contas fê-la erguer os
olhos.
– Olá, criança. Perdida por aqui, na tenda de
Madame Soraya? – o tom da cigana era tão
benevolente quanto o dos demais e isso irritava
Stella. Mas ela ouvira uma história de que a
cartomante havia sido namorada de seu pai antes de
ele conhecer Carmen e se apaixonar por ela, e, ainda
segundo os rumores, a mãe só não exigira a demissão
da cartomante, descendente de ciganos, porque temia
que ela a amaldiçoasse. O pai, de resto um coração
mole que não queria deixar a antiga namorada à
míngua, resolveu a situação mantendo-a no circo.
Seu trailer era o mais modesto e o mais afastado, mas
ele a via mais como vítima do que como ameaça, e,
de mais a mais, ela fazia sucesso com os clientes e
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 77

com sua gorjeta, era uma das que menos reclamavam


do salário atrasado.
– Sente aqui, meu anjo. Você quer fazer uma
consulta? Quer saber o que o futuro lhe reserva? – seu
tom continha um leve sarcasmo, como se a insólita
visita estabelecesse uma cumplicidade entre si e a
menina, de resto, filha de seu maior desafeto. O amor
pelo pai da menina havia desaparecido; a mágoa, não.
Salivou, no gosto amargo do rancor que alimentava
havia vinte anos.
Stella sentou-se defronte à mulher. O lenço
vermelho, saia florida, a maquiagem carregada, nada
daquilo era encenação. O olhar misterioso, pers-
crutador daquela mulher era real. Todos a tomavam
por enganadora, mas Stella sentiu um arrepio
percorrer-lhe o corpo quando a vidente pegou em
sua mão, puxando-a para perto de si.
– Deixe ver... Você vive um grande dilema,
criança. Essa aventura não é para você. Seu mundo é o
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dos castelos, não o das tendas. Você precisa de paz, algo


que o mundo do circo não lhe oferece. Alguns precisam
de aventura; outros, de sossego. Mas eu também vejo
que você tem uma âncora aqui. Mas ele sempre está
longe de você, não é? – as palavras da mulher foram
acompanhadas de um olhar que parecia enxergar a
alma da menina.
Stella recuou, instintivamente.
– Não, não é nada disso – desconversou, fin-
gindo naturalidade. – Só queria saber se as coisas vão
melhorar. Se esta cidade vai ser boa para nós.
– Esta cidade vai mudar a sua vida, criança – a
mulher jogava um baralho de cartas gastas, falando
antes mesmo de desvirá-las por completo. O cigarro
pendia de um canto da boca, dando-lhe um ar meio
vulgar.
– Como assim? Eu vou conseguir mudar de vida?
Ou estou destinada a morrer neste circo?
Nesse momento, a cartomante assumiu um ar
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 79

solene. Largando as cartas, começou a acariciar uma


bola de cristal nebulosa. Parecia de fato absorta em
algo que vira. Sua atuação era impecável, embora a
falta de caráter não excluísse algum talento real para
o ocultismo.
– É verdade que você e meu pai eram namorados
antes de ele conhecer minha mãe? – perguntou a
menina, arrependendo-se em seguida, ao ver a
expressão da cigana.
– Esta consulta é sobre você, não sobre mim,
criança. Não me distraia com tolices – o tom da
mulher continha uma indisfarçável amargura que até
a menina, apesar de sua pouca idade, foi capaz de
perceber. – Isso foi há muito, muito tempo. Quase
outra vida. Venha. Dê-me novamente sua mão
– continuou ela, secamente.
A contragosto, Stella levantou-se e aproximou-
se da mulher, estendendo a mão direita.
– A outra, criança – enquanto dizia isso, pegou a
80 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

outra mão da menina, recuando, horrorizada.


– Cuidado, criança. Muito cuidado – Stella
detestava quando a vidente a chamava assim, mas
não esboçou qualquer reação. O tom da mulher
trouxe-lhe novo arrepio.
– Por que você demorou tanto a me procurar?
Medo de Madame Soraya? – a cigana jogou a cabeça
para trás, em um ar de desafio.
– Não... É que eu me sinto meio perdida. Nunca
saí daqui.
– E nunca esteve aqui de todo, não é? Não posso
lhe dizer muita coisa. Só que a sua vida mudará em
breve. Seu brilho é diferente. Você é como uma
borboleta, mas todos só enxergam a lagarta. Mas isso
irá mudar. A hora de seu voo está próxima – disse ela,
encerrando a conversa.
Em silêncio, um tanto arrependida por ter ido
até ali sem obter qualquer informação precisa, Stella
voltou ao seu trailer, com o cuidado de não ser vista.
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 81

Não sabia do que a mãe seria capaz se soubesse que


ela havia cruzado os limites permitidos. Numa
mistura de medo e respeito, a mãe não admitia que as
filhas tivessem contato com a cigana, e a última coisa
de que Stella precisava era que a mãe se aborrecesse
com ela.
Luna treinava para o espetáculo da noite. Sua
beleza fazia com que qualquer imperfeição nos
movimentos passasse despercebida. Stella, contudo,
possuía um olhar quase técnico e detectava algumas
falhas nos movimentos da irmã, mas jamais diria
nada. Quem era ela para criticar algo em Luna? Uma
vendedora de pipocas?
E foi justamente um movimento errado, que
Stella sempre observava no mesmo ponto da
coreografia, o que fez a irmã cair de mau jeito tor-
cendo o pé. Não parecia nada grave, mas que
provavelmente a deixaria fora do espetáculo por duas
semanas.
82 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

– Logo agora, que estamos com a casa cheia, per-


demos nosso melhor número! – o pai passava a mão
pela cabeça, transtornado.
– Nossa filha se machuca e você se preocupa com
o espetáculo? – gritou a mãe.
– Não é nada demais. Não é, filha? – disse o pai,
agora preocupado.
Luna sacudiu a cabeça e olhou o pé apreensiva.
– Acho melhor levá-la a um médico. Somos
treinados para cair, mas pode haver algum dano
maior. É melhor não arriscar – a voz de Rodolfo se fez
ouvir.
– Não... É... Sim. Você pode fazer isso, Rodolfo?
Tenho de pensar como vamos fazer esta noite. E nas
outras...
– Eu faço o número dela! – a voz de Stella
assumiu um tom que fez com que todos se virassem.
– Você, filha? – o pai deu uma gargalhada. – Mas
você...
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 83

– Tenho tudo para ser mais do que uma ven-


dedora de balas, pai. E sempre treino o número da
Luna. Conheço cada passo da coreografia. Só até ela
ficar boa...
– Não sei, não sei... – o tom do pai mesclava
prudência e desconfiança. – Por que você não nos
mostra o que sabe fazer?
Stella ligou o som e começou a dançar. Aos
poucos, os integrantes do circo aproximavam-se,
surpresos. A menina havia crescido e sabia fazer um
bom trabalho.
– Acho que já posso me aposentar – Luna parecia
de fato animada com o talento da irmã.
– Vamos fazer assim, então: enquanto a Luna não
puder atuar, você a substitui – disse o pai, aliviado.
– Depois... Volto a vender bala, né? – o tom de
Stella não disfarçava a amargura.
– Depois vemos como fica, Stellinha – disse Ro-
dolfo, tentando contemporizar. – O importante é que
84 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

agora o problema está resolvido. E Luna poderá


descansar até ficar bem.
A cartomante ouvia, temerosa. O casulo
começava a se romper.
Stella passou o resto do dia ensaiando. Por mais
que conhecesse a coreografia de olhos fechados, não
podia se dar ao luxo de errar. Os olhares estariam
centrados nela e qualquer descuido confirmaria o seu
destino de coadjuvante. O brilho naquele circo era
destinado a Luna. E ela, embora não quisesse
competir com a irmã, também desejava seu momento
de estrelato. Isso poderia ser decisivo para que
Rodolfo a notasse.
Chegou, enfim, o momento da estreia. A mãe
parecia emocionada, e até o pai, apesar de sua
indisfarçável predileção por Luna, sorria, orgulhoso.
O picadeiro estava todo iluminado e o calor das
luzes aquecia a alma da moça. Seu nervosismo, aliado
ao calor, fazia com que a maquiagem começasse a
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 85

derreter. Nada que comprometesse o brilho daquela


noite. Lembrou-se, por um momento, das palavras da
cartomante: você é uma borboleta. Os outros só veem a
lagarta.
Hoje seria diferente. A primeira parte da
coreografia foi executada de forma magistral e os
aplausos a ela destinados pareceram ainda mais
efusivos do que os que a irmã estava habituada a
receber.
A segunda parte da coreografia era um pouco
mais elaborada e envolvia um plano um pouco mais
alto e foi justamente nesse ponto que a irmã se
machucara. Teria de ser cautelosa. Os tambores
começaram a rufar.
Respirando fundo, preparou-se para subir ao
trecho de onde a irmã costumava realizar aquela
parte. Procurando Rodolfo com os olhos, encontrou-o
ao lado da irmã. Atencioso, ajudava-a a se sentar em
um lugar que permitia a visão do espetáculo.
86 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

Stella subiu até o ponto desejado. Buscando


novamente Rodolfo com o olhar, encontrou-o
cochichando algo no ouvido da irmã, que ria. Tolos,
pensou. Nem prestavam atenção nela. Ela lhes
mostraria.
Continuou a subir, para executar o movimento
de um ponto ainda mais alto. Provaria a todos que
era melhor do que Luna. Que poderia ser a estrela
daquele espetáculo. Que fora subestimada a vida
inteira.
Alguns integrantes da equipe cochichavam
apreensivos. Fazer o número daquela altura era uma
loucura, pois o risco era muito maior. Nem Luna,
com seus anos de experiência, jamais tentara aquilo.
Os tambores continuavam a rufar.
Seus pensamentos foram interrompidos pela
visão do beijo que Luna e Rodolfo trocavam naquele
momento. Nada mais fazia sentido. Muito mais do
que a preferência dos pais, Luna roubara-lhe também
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 87

o amor de Rodolfo. O amor que ela nunca teria a


chance de conquistar.
De repente, as palavras cifradas da cigana
ganharam outro sentido: sua vida irá mudar... A hora
de seu voo está próxima. O rufar de tambores cessou.
Mirando o público, respirou fundo antes de se atirar,
em seu primeiro e único voo solo, como a borboleta-
estrela daquela noite.
A professora e o aluno

Gislaine de Souza Godoy


Paulínia – SP

Em um vilarejo muito distante, onde a sim-


plicidade reinava feliz e descompromissada, morava
Tomás. Um menino de onze anos, filho de trabalha-
dores rurais. Viviam em uma casa muito singela, com
os pais e os três irmãos.
A felicidade da mãe nunca fora completa.
Quando dera à luz Tomás, pouco tempo depois na
maternidade da cidade para onde fora levada pelo
marido, recebeu dos médicos a notícia mais triste de
sua vida. Descobriu que seu pequeno rebento havia
nascido cego.
Sem nenhuma possibilidade de cura no futuro,
pois o caso era irreversível, a mãe acalentou o pe-
queno menino nos braços e suas lágrimas rolaram
molhando a manta azul de tricô, que havia feito com
todo amor durante a gestação. Ela sabia que seria um
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 89

caminho muito árduo o dele. Mas seu amor de mãe


seria maior do que qualquer desafio. Levou o
pequeno cego para casa e os anos foram se passando.
Dona Isaura tentou criar o filho de maneira que ele
se tornasse o mais independente possível. Alguns
vizinhos não entendiam e até criticavam a forma
como a mãe educava o filho. Ele sempre era visto
com sua bengala tateando o caminho para escola,
algumas vezes chorando e a mãe seguia logo atrás
com passos leves para que o menino não percebesse
sua presença.
No começo, a professora assustou-se ao receber
um aluno cego. Mas a vontade de aprender de Tomás
era tão grande que a professora achou que também
deveria aprender com aquele bravo guerreiro e
matriculou-se com ele em um curso de braile na
cidade vizinha. E assim duas vezes na semana
passavam a tarde estudando juntos, professora e
aluno. Tomás tornara-se um menino muito esperto,
90 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

muito mais do que qualquer menino com a mesma


idade. Ele andava pelas ruas do vilarejo, ia para o
campo colher flores para dona Isaura enfeitar a casa
com seus vasos de argila, brincava com seus amigos
ao cair da tarde e sonhava... Não em enxergar, sabia
que isso era impossível. Mas em nunca deixar de
sentir a vida pulsar ao seu lado. Sonhava em superar
todos os seus desafios e os que a vida lhe ofertasse
como aprendizado.
Um dia na escola a professora colocou um vídeo
para os alunos e sentou-se ao lado de Tomás.
Durante tantos anos juntos, tornaram-se mais que
professora e aluno. Tornaram-se amigos. O vídeo
apresentava aos seus alunos um belo concerto. Entre
todos os instrumentos, Tomás identificou um. Um
que parecia inundar sua alma com todas as cores que
ele jamais fora capaz de enxergar. Com toda luz, que
nunca houvera ofuscado seus olhos.
– Que instrumento é esse, professora Lia?
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 91

– indagou o menino encantado.


– Tomás, é uma orquestra! São muitos
instrumentos – respondeu a professora. – Mas o
instrumento que sobressai é o piano. Trata-se de
Moonlight Sonata, uma composição de Beethoven.
Um dos grandes compositores da música clássica.
Então a professora silenciou e Tomás deixou-se levar
pelas notas, suaves, relaxantes e apaziguadoras; a
própria divindade fazendo-se presente, acariciando-
lhe os cabelos encaracolados e penetrando em seus
ouvidos como prece repetida a cada toque na tecla do
piano...
E foram assim todas as tardes do pequeno cego.
Quando todos iam embora, ele ficava um pouco mais
a ouvir a mesma melodia, que a professora
carinhosamente se prontificava a colocar.
Lia aproveitava aquele momento para corrigir
os cadernos, mas, na maioria das vezes, parava e
ficava a observar o aluno. Sempre compenetrado,
92 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

como se ouvisse as notas pela primeira vez. Aquilo


havia se tornado um ritual. Uma religião. Era como
tomar um copo de água fresca enquanto o corpo
sedento caminhava pelo deserto.
Um dia, dentre os muitos em que eram
finalizados ao som do piano, a professora perguntou
delicadamente:
– Por que gosta tanto, Tomás, ao ponto de ouvir
todos os dias a mesma melodia?
– A senhorita não entende, não é? – falou
sorrindo. – Ela me faz enxergar com os olhos da
alma. Eu visualizo o que quiser, por que imagino
todas as coisas que nunca fui capaz de enxergar.
Imagino as minhas próprias cores, o céu, o mar.
Imagino os pássaros, as flores e imagino até o seu
rosto.
A professora sorriu, contrariando os olhos que
queriam chorar.
– Tenho certeza que, se eu enxergasse, não seria
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 93

tão feliz. Não carregaria em mim essa ânsia em olhar


para a vida. Em olhar para a chuva, para os bichos
soltos no campo. Em olhar para as pessoas que amo.
E olhar para esse aparelho que toca essa melodia e
imaginar: como será tocar um piano? Vejo-me todas
as tardes tocando o piano como um grande
compositor...
A professora comovida tentava disfarçar as
lágrimas. Sabia que ser cego em um pequeno vilarejo
era algo que limitava Tomás ao extremo. E ele tinha
algo dentro dele, algo que ela ainda não conseguira
identificar. Mas era uma força sobre-humana que
pulsava em seu pequeno coração. Uma força que o
movia para realizar, mesmo diante de suas
limitações.
Ela vitoriosamente o alfabetizara, porém estava
prestes a ir embora para França e sabia que o
pequeno Tomás queria mais, ele queria muito mais...
Como se lesse a sua alma, a professora per-
94 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

guntou:
– Você gostaria de aprender a tocar esse
instrumento?
– A senhora acha que eu seria capaz?
– perguntou o menino baixando a cabeça.
– Você pode tudo, Tomás! Tudo o que você
realmente quiser!
– Eu quero, professora Lia. Eu quero muito!
– Tomás, eu vou embarcar para França ainda
este mês, se seus pais permitirem, gostaria muito que
você fosse comigo. Lá você estudará nas melhores
escolas de música. Será um grande instrumentista!
No mesmo instante, o sorriso do menino sumiu
dando lugar a uma tristeza aparente.
– Não, dona Lia, não vou abandonar meus pais.
Não posso!
– Não, meu querido, você não irá abandoná-los,
será apenas por um tempo. Muito em breve você
voltará e poderá até ajudar sua família.
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 95

– Não, professora, eu lhe sou muito grato por


tudo que a senhora fez por mim. Mas não posso
deixá-los. Eles são tudo o que tenho.
A professora então abraçou aquele pequeno
anjo. Tomás sentiu o perfume doce da professora Lia
acalentar sua tristeza. Era a tristeza da partida, mas
sabia em seu coração que jamais esqueceria aquela
mulher.

20 Anos se passaram

Inacreditavelmente, o bucólico vilarejo con-


tinuava o mesmo. As mesmas casinhas de telhados
envelhecidos, com seus bancos de madeira feitos
debaixo de sombrosas árvores. Ainda se viam
charretes e o som do sino da pequena capela
anunciava a hora do terço. A simplicidade do lugar
sobrevivera há tantos anos. Existem coisas na vida
que não mudam. O correr das águas de um rio, o
96 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

cantar de pássaros ao amanhecer... A saudade dos


amigos.
A senhorita Lia agora já era uma senhora.
Desceu do ônibus apoiada por uma bengala, ajeitou
os cabelos brancos e andou com cuidado para não
tropeçar nas pedras. À medida que caminhava, a
poeira do chão sujava seus sapatos pretos e
envernizados. Mas ela parecia não se importar. Sentia
o coração acelerar cada vez que identificava algo. A
quitanda do seu Nelson, a pracinha da igreja. Sentou-
se durante algum tempo e visualizava tudo,
imaginando como estaria o menino Tomás, ela
jamais o esquecera. Como ele estaria?
Levantou-se e voltou a caminhar, passando em
frente à papelaria onde tantas vezes comprara lápis e
borrachas para seus alunos.
Entrou, olhando cada detalhe do pequeno
comércio. Algumas coisas tinham mudado, agora
tinha máquina de Xerox e um computador, era
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 97

engraçado ver a tecnologia num lugar que parecia ter


parado no tempo.
– Bom dia, posso ajudá-la? – disse a simpática
atendente.
Lia olhou para a atendente, provavelmente
quando saíra do vilarejo a mocinha nem ainda havia
nascido.
– Bom dia, meu bem – respondeu devolvendo-
lhe o sorriso. – Sabe me dizer se a escola rural ainda
existe?
– Existe sim, senhora. Continua no mesmo
endereço, inclusive meu irmão está saindo agora
mesmo para levar alguns materiais encomendados.
Se a senhora quiser uma carona.
– Ah, eu agradeço, confesso que estou muito
cansada da viagem.
Depois de alguns minutos, entrou na
caminhonete com a ajuda do jovem entregador e
caminharam por longa estrada de chão batido. O
98 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

jovem entusiasmado ia contando as novidades do


vilarejo.
Mas Lia só conseguia pensar em como estaria o
menino Tomás.
Depois de algum tempo, a caminhonete parou
em frente ao grande portão que agora não era mais
branco, fora pintado de um azul claro e o letreiro
logo acima do portão fez o coração de Lia bater mais
forte:

“Escola Rural Professora Lia Lamartine”

Era seu nome. A escola agora carregava seu


nome.
O jovem abriu o grande portão, e, enquanto
entregava a encomenda para o porteiro, Lia foi a
passos lentos em direção ao grande salão que
abrigava as salas de aula. Tudo estava muito bem
arrumado, limpo e organizado. Grandes vasos com
flores da região enfeitavam o corredor. Ao longe,
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 99

ouvia-se um som, uma melodia. À medida que se


aproximava, identificou o que jamais esqueceria. Era
Moonlight Sonata. Olhou no relógio de pulso, que
marcava a hora exata em que todas as tardes o aluno
entusiasmado ouvia Beethoven. Sentiu o peito
oprimido, a saudade daquelas tardes. Caminhou mais
um pouco... E deparou-se com uma sala cheia de
alunos. Meninos e meninas simples que
provavelmente contavam seus doze anos. Apenas a
melodia, agora, do piano, preenchia o silêncio da
sala. Lia entrou sem se incomodar com os olhares
assustados dos alunos. Com as mãos unidas, como se
fosse elevar uma prece, um agradecimento, caminhou
até o piano.
O homem então parou de tocar:
O silêncio se fez. Somente a respiração e as
batidas dos corações.
– Professora Lia?
– Sim, Tomás, sou eu. Como me reconhece
100 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

depois de tanto tempo?


– Jamais esqueceria seu perfume, querida
professora.
E, levantando-se, abraçou a amiga que tanto o
havia ensinado, cochichando em seu ouvido: – E
como soube que era eu, professora?
A professora passou as mãos naquele rosto que
os anos transformaram. Seus olhos fitavam os óculos
escuros que agora ele usava, e, pegando em suas
mãos, respondeu ela entre grossas lágrimas:
– Em meu coração tinha a certeza de que um dia
o veria tocando um piano.
– Você me ensinou algo que também jamais
esquecerei. Todo aquele que não enxergar
verdadeiramente com o coração tudo que está ao seu
redor, viverá sempre na escuridão.
E a tarde seguiu ao som do piano, lágrimas, risos
e as muitas perguntas daqueles que agora eram
alunos do “professor Tomás”.
Conta-me uma história de amor

Valentina Silva Ferreira


Ilha da Madeira – Portugal

– Conta-me uma história de amor. Vou-me


embora se não o fizeres… – deitou-se nas margens da
cama e fingiu despreocupação.
– Mas queres que leia? O quê? – levantou-se,
ameaçando uma fadiga nos olhos profundos e no
semblante pesado. – Não sei se tenho histórias de
amor… – suspirou.
– Não entendes – amuou a rapariga. – Para ler,
leio eu. Não quero que leias, quero que contes. Custa-
te muito?
Tinha os cabelos negros e uma malícia pas-
sageira nos lábios. Conseguia ser espontaneamente
bela, mesmo quando as mãos se erguiam diante do
rosto e as camisolas de mangas largas permitiam ver
os desenhos de tentativas de suicídio antigas.
102 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

– Pedes-me demasiado… – bufou, virando costas


à mesinha com alguns livros. – Nunca fui escritor ou
contador de histórias. Era péssimo em português na
escola.
– Bom ator és certamente. Ou não terias
conseguido enganar-me – piscou um olho, arrepen-
dendo-se em seguida.
Norberto aparentava uns quarenta anos, embora
os cabelos já fossem quase todos cinzentos. Tinha
pouca barba e um nariz determinado. Seria bonito se
Carmo apreciasse homens mais velhos e de expressão
urgente. O mar estendia-se pelo calhau rolado e
parecia agitado, rebentando às costas dos rochedos.
Carmo aproximou-se da janela e deitou os olhos ao
muro que se prolongava pelo passeio. Vários homens
sentados conversavam taciturnamente como se o
hábito já tivesse esgotado os assuntos.
– Aposto que qualquer um deles saberia contar-
me uma história de amor – estalou os lábios e en-
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 103

rolou-se na cortina – às vezes, era tão infantil.


– Não me admiraria nada. Fariam qualquer coisa
por ti… – olhou-a com demora.
– Menos tu – admirou-se. – Ou deverei tratá-lo
por senhor?
Norberto baixou a cabeça. Se haveria pessoa que
traduzia os sentimentos na face era ele. Quanta
angústia parecia abraçá-lo. Carmo foi invadida por
um trovão de pena, mas logo pestanejou e afastou-o
para longe.
– Não suportaria que me chamasses de senhor.
– Deverei esperar pela história de amor ou vou
embora? – perguntou ansiosa.
Ele abandonou a cadeira e o aspeto amargurado.
O sorriso era, agora, de loucura; quase desvario,
insensatez: paixão. Amava-a tanto que não se
permitia a imaginar uma vida longe dos seus olhos
âmbar, da boca em forma de biquinho provocante,
das bochechas bolachudas e da pele morena. Mesmo
104 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

que nunca a tivesse realmente, preferia aquela vida


próxima que o nada.
– Não! – praticamente gritou. – Pede-me o que
quiseres. Joias, viagens, livros, roupas, qualquer
presente que imaginas. Eu dou-te.
Carmo desapontou-se. Alisou a blusa e calçou as
sandálias. Em pé, quase deu uma voltinha como se o
quisesse prevenir do que acabara de perder. O
sotaque madeirense adivinhou-se no som que
antecedeu a sentença.
– Não preciso de dinheiro, muito menos de
joias, livros ou viagens. Quero que me contes uma
história de amor. Não poderia fazer-te um pedido
mais fácil. Prometeste-me um conto de fadas no dia
que me foste buscar a casa dos meus pais. Pois, então,
onde está ele?
– Vou dar em louco. Apaixonei-me pela
rapariga mais complicada de Santa Maria Maior.
Quiçá do Funchal… – levou as mãos ao ar.
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 105

– Ou da Madeira – riu-se, traquinas. – Mas tens


bom remédio. Levas-me de volta ao número 21 do
Canto do Muro e apanhas uma que seja menos
complicada. Para além disso, não estás apaixonado.
Desejas-me.
– Entendes pouco sobre o amor, rapariga
– abriu a porta do quarto e saiu para a pequena sala.
– Se te desejasse, apenas, teria insistido para que
dormisses comigo. Mas amo-te, simplesmente, e o
amor não obriga.
O verão já deveria ter dado lugar às folhas
amarelas. No entanto, ao longe, ouvia-se o chapinhar
das braçadas no mar e, ali mais próximo, na piscina
do hotel, algumas pessoas apanhavam o sol da tarde.
As cabines do teleférico acariciavam as nuvens,
lentamente. Carmo seguiu Norberto e abeirou-se da
varanda. Gostava de se sentir mais alta que todos os
outros. Ela, que sempre servira, bandeja na mão,
pano na outra, olhinhos de comedimento, poucas
106 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

falas e muitas renúncias. Sentia-se feliz, embora


receosa. Não amava Norberto, mas poderia vir a
senti-lo se ele lhe contasse uma história de amor.
Adorava-as. Passava as folgas dentro dos lençóis a
ver filmes ou a ler livros românticos. Não havia
poupança que resistisse aos livros que encontrava na
feira que faziam na Rua D. Carlos I. Conhecia-as de
cor. Sabia, até, alguns excertos ou falas na ponta da
língua. E precisava de mais: da derradeira história de
amor, aquela que a libertaria dos grilhões da
necessidade de se sentir amada. A mãe chamava-a de
babosa; o pai, de carente. Na escola, era a menina
mimada, embora pobre e sem complexos de
superioridade, sabia que os olhos eram de vaidade.
Não tinha culpa de se sentir tão cheia de
sentimentos, de palavras escolhidas, de poesia, de
uma magia que incendiava o seu corpo de uma forma
que mais ninguém compreendia. Talvez Norberto a
compreendesse. Talvez. Mas precisava prová-lo com
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 107

uma história de amor.


– Apetece-me nadar – disse, como se nenhuma
conversa tivesse ficado inacabada, recolhendo o
biquíni que secava desde a noite anterior.
Ele sacudiu os ombros e encostou-se ao sofá.
Encarava-a com um pesar misantropo. Carmo,
apercebendo-se da sua dor, sorriu e, com os dedos
sorrateiros, desapertou os calções, escorrendo-os
pelas pernas. As cuequinhas lisas seguiram o mesmo
caminho. Carmo deu alguns passos para o lado,
deixando apenas à vista a longa perna morena.
– Que estás a fazer, rapariga? – gaguejava e
tremia.
Aquela jovem acabaria por matá-lo: de desgosto,
do coração ou de provocação, sabia lá. E queria ela
uma história de amor quando ele era mais que isso?
Limpou o suor que escorria pela testa, com a mão,
enquanto esperou pela resposta. Entretanto, Carmo
vestira a parte de baixo do fato de banho e
108 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

desabotoava a blusinha vermelha.


– Disse-te que queria nadar. Ora, não queres
que vá de roupa interior, pois não?
Norberto coçou a cabeça e engoliu uma massa
de insatisfação ao relembrar a primeira vez que a viu,
numa açoteia branca do Lazareto, dominada pela luz
da manhã e rodeada de sons. Um anjo que estendia a
roupa com tanta dedicação, tão diferente da mulher
diabólica que se despia à sua frente. Sentiu-se
envergonhado no momento em que ela desapertou o
sutiã, mas não conseguiu desviar os olhos daqueles
montinhos jovens.
– Que idade tens, Carminho? – surpreendeu-se
com a própria pergunta, mas deixou-a responder.
– Talvez mais do que imaginas – enlaçou os fios
por debaixo do peito e rodou até cobrir a nudez.
– Dezenove.
Não lhe daria menos. Não fora a sua juventude
que despertara o interesse de Norberto. Era aquele
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 109

fascínio pela vida, uma ânsia de admirar os dias como


se o seguinte pudesse deixar de vir. Havia um brilho
de encantamento quase infantil naqueles olhos
alambre. Quanta fome de viver cabia dentro dela. E,
no entanto, as marcas da morte roçavam cada
esquina do seu corpo. Tantas vezes imaginara-se a
arrastar os lábios nas cicatrizes e dizer-lhe que já
passou, que a dor nas costuras da alma não
precisaria, nunca mais, ser transformada em
realidade, na carne; que os monstros que a
dominavam nessas alturas não se atreveriam a
enfrentar a sua felicidade. Queria cuidá-la, enfim.
– Vou à piscina – colocou os óculos de sol e
jogou-lhe um beijo. – Jantamos fora?
– Como quiseres, querida… – ciciou.
– Não te esqueças da minha história de amor
– os olhos eram de quase aflição.
– A tua beleza sai-me cara… – resmungou.
– Cara não. Desejo, apenas, a presença de um
110 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

sonho, de palavras bem escolhidas, de um amor


incalculado. Uma história que mais ninguém
conheça.
– Serei capaz disso? – queria chorar, mas,
mesmo amando frenética e intensamente, não lhe
daria o privilégio da sua dor.
– Se tivesse certezas, não insistiria tanto
– desapareceu.
Norberto deixou cair uma lágrima. Ia perdê-la,
mais cedo ou mais tarde. Andavam naquele
compasso há quase uma semana. Achou que a
conquistaria com a promessa de bem-querer eterno,
com cuidados exagerados, com exaltações à sua
beleza exterior, mas principalmente interior. E ela
queria uma história de amor. Onde arranjaria isso?
Ouviu um gritinho, que sabia ser o dela, seguido
de um splash alegre. Apressou-se a sair até à varanda
para vê-la à distância: linda e livre. Não havia nada
de mais bonito que a liberdade no rosto de uma
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 111

rapariguinha que começava a viver a sério, sem a


preocupação das dívidas nos ombros. Um barco
invadiu a paisagem, ao mesmo tempo em que Carmo
subiu as escadas, esticou-se ao sol e sorriu. Ah!
Aquele sorriso carregado de prepotência, nu como
um animal que se esconde nos arbustos da savana.
Um jovem aproximou-se dela e colocou-se de
cócoras. Parecia entusiasmado e disse-lhe qualquer
coisa. Riu ainda mais, com a boca aberta e a cabeça
ligeiramente tombada. Aquele sorriso acossador e
malvado. Norberto andou de um lado para o outro,
na tentativa de acalmar os ciúmes que o perseguiam
como um rumor daninho. Fechou a porta e escondeu
a cabeça no vidro: uma certa efervescência
dominava-o. Queria respirar com calma, mas sentia-
se febril. Rapidamente, despiu-se e colocou os calções
de banho. Agarrou a toalha e deixou o quarto para
trás. Percorreu o hotel mais depressa do que
pretendia. Não queria transpirar ainda mais nem
112 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

chegar perto de Carmo com aquele ar tresloucado de


quem corria para dominar. Ela era livre: e como era
linda assim. E Norberto insistia em amá-la de corpo e
alma, ciúmes rasgados no coração e impaciência.
Deveria ser paciente: a idade, certamente, traria essa
pacificidade e, mesmo assim, sentia-se desvairado.
Empurrou a porta de acesso à piscina e procurou-a.
Querida Carminho, tão bela. Deitada de barriga para
baixo, as nádegas que escondiam o fato de banho, os
seios espremidos pelos braços, a pele dourada e
apetecível. Estava em posição relaxada, atenta ao que
aquele atrevido lhe dizia. Uma história de amor?
Aproximou-se, afogado em dúvidas.
– E, então, ela decidiu que não ia esperar mais
tempo e foi embora ter com ele. Fixe, não achas?
– dizia.
Ela riu e concordou com a cabeça. Puxou os
óculos para trás, arrastando as madeixas negras e
espantou-se com a presença de Norberto. O jovem
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 113

também percebeu que alguém se aproximara e, logo,


levantou-se.
– Ah, olá – esticou o braço. – Alberto, muito
gosto. Deve ser o pai da Carminho.
Pai. Carminho. Aquela familiaridade que deveria
ser só dele. Ninguém a chamava de Carminho:
arriscara-se a esse compromisso na primeira noite
que a levou a jantar e explicou que a amava. Pediu-a
em casamento. Disse-lhe que não queria amor em
troca, apenas a sua presença. Mostrou-lhe que era
riquíssimo, que viajava muito e que ela não teria que
sair de Santa Maria Maior, se não quisesse, que seria
livre e feliz, com todas as mordomias.
Carmo deu uma gargalhada explosiva. Alberto
desviou o olhar para ela e derreteu-se. Norberto foi
testemunha disso. Não aguentou ver o seu amor
espelhado no rosto de outro homem. Era
miseravelmente apaixonado e não toleraria que outra
pessoa sentisse o mesmo. Uma cegueira domava-o
114 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

– deixou de ver. Jogou-se para cima do rival e, sem


saber como, empurrou a cabeça dele, duas vezes,
contra o chão. Do branco cego passou a ver
vermelho. Alberto sangrava, sem vida. Carmo
levantava-se, muda. Surda. Cega, também? Não dizia
nada. Respirava, apenas: uma respiração crua e
pausada. Aproximou-se de Norberto e levantou-o. Ele
não conseguia encará-la, tamanha a vergonha, o
ciúme, a realidade do fim. Perdeu-a por sua própria
culpa.
– Meu querido… – os olhos ambre molhados.
– Meu querido… – chorava, abraçada a ele. Depois,
por segundos, olhou-o tão profundamente que o
comoveu. – Vês como sabes contar histórias de
amor?
Sentiu-se confuso, mas sorriu. Ao longe, as
sirenes estalavam a cidade. Puxou-a para si e
contornou a cintura com mãos apressadas. Beijou-a
pela primeira vez e guardou na memória aquele
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 115

momento de tanta felicidade. Sabia a sal e liberdade


de ilhéu. Cheirou-a por entre os cabelos: pó talco e
lavanda. Alguém gritava para dar sinal de que estaria
ali. Assassino, ouviu. Apertou-se ao corpo nervoso de
Carmo e ofereceu-lhe um beijo na testa.
– E foram felizes para sempre – sussurrou ela
antes de ser puxada por um polícia.
Eterno

Clélia Jane Conceição Dutra


Contagem – MG

A casa da fazenda Esperança era imponente.


Embaixo, o porão. Uma escada com degraus de
pedras chegava à porta principal. Oito janelões azuis
em cada uma das quatro paredes brancas. As portas
enormes, dois metros e meio de altura, com duas
abas e um ferrolho no meio. As chaves de cobre
envelhecido ficavam dependuradas ao lado da
cristaleira na sala de jantar. Em um dos lados da
construção, uma carreira de seis palmeiras imperiais
protegia o casarão dos ventos fortes. No outro lado,
um caminho de seixos redondos, cheio de margaridas
nos cantos, ia dar no Ribeirão Floresta.
Magdalena não se cansava de andar por ali.
Tirava os sapatos, massageava os pés nas pedrinhas
redondas. Um calor subia pela espinha e uma alegria
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 117

percorria seu corpo quando, lá de cima, ela via a água


espumando, na represa que seu pai havia construído.
O Ribeirão descia entre os dois conjuntos de serra
verde escuro, juntava-se a outros córregos e olhos
d’água até sofrer um desvio e cair no açude
represado. Seu pai, o grande fazendeiro Tonico
Algarves, usava a água represada para tocar as rodas
d’água, que faziam os moinhos de cana, farinha e
fubá funcionarem. À noite, o desvio era fechado e as
rodas d’água descansavam tristes, porém, durante o
dia, faziam um som gostoso com o incentivo da água.
Magdalena era muito, muito feliz. Tonico fazia
tudo por ela, a filha mais velha, com quinze anos,
quase na idade de se casar. Também fazia tudo pelas
outras cinco filhas. Não teve nenhum filho para tocar
a fazenda, continuar o seu trabalho quando ele não
aguentasse mais o rojão. Mas as filhas se casariam.
Somente pedia a Deus que fossem genros
trabalhadores e que as fizessem felizes, para levarem
118 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

a fazenda adiante. Enquanto esse dia não chegasse,


teria que arrumar alguém para ajudar na lida.
A Esperança produzia rapadura, cachaça, fubá e
farinha de mandioca, além do café e do feijão que
eram transportados em sacas, nos lombos das mulas,
até a cidade de Pará de Minas. De lá, saíam em
vagões do trem e eram distribuídos pelo Brasil. O ano
era 1939, a II Guerra Mundial estava em andamento.
Porém, naquele paraíso, somente tinha-se alguma
notícia à noite, no rádio da sala, uma chiadeira
entrecortada pela voz rouca do repórter, falando das
tropas invadindo a Europa.
Magdalena não gostava de ouvir essas notícias.
Imaginava os caminhões altos, escuros, cobertos com
lonas, transportando soldados e armamentos,
explodindo cidades, matando e destruindo. Entrava
no quarto, enrolava-se nos grossos cobertores e
pegava um romance para ler e sonhar. Graças ao pai,
sabia ler e escrever. Dessa forma, ela poderia ajudar
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 119

nas escritas da fazenda. Preferia sonhar com os


romances ao invés de sofrer com as notícias da
guerra. Ela estava longe, não iria amedrontá-la.
Magdalena lia todos os dias, parava somente
quando ajudava o pai a organizar os papéis da
Esperança ou quando estava passeando pela
propriedade.
Em uma manhã, estava no caminho de pedras,
quando ao longe viu um moço em um cavalo,
diferente daqueles que andavam por ali. Sentou-se
debaixo das palmeiras e esperou. Um vento forte
jogava seus cabelos negros e anelados para frente e
para trás, encobrindo a imagem do moço, que lhe
parecia cada vez mais bonita. Ao se aproximar, o
cavaleiro cumprimentou-a batendo de leve no
chapéu:
– Moça, estou procurando a Fazenda Esperança.
É aqui?
Magdalena, diante de tanta beleza, se emba-
120 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

ralhou, mas conseguiu responder mirando os olhos


azuis:
– Sim, você está no lugar certo.
– Folgo em saber, sou Galdino Queiróz. Procuro
o Sr. Tonico Algarves, venho com recomendações do
compadre dele, Manuel Espanhol, à procura de
trabalho.
– Venha, amarre o cavalo. Meu pai está no
engenho.
Magdalena nem podia acreditar que um homem
bonito daquele jeito era real. Chegou a pensar que
estivesse sonhando de tanto ler romances.
Galdino passou a viver na fazenda. Começou a
ajudar o pai em pequenas coisas. O tempo foi
passando e as funções dele aumentando, tornando-se
imprescindível, virou peça fundamental, braço direito
de Tonico. Tonico dispensava a ele cuidados de tio,
até que virou amor de pai, para o filho que nunca
teve.
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 121

Enquanto crescia o apreço de Tonico por


Galdino, crescia o amor de Magdalena pelo homem.
Queria tocar seus cabelos claros, abraçar seu corpo
forte, sentir sua boca carnuda. Porém Galdino não
dava nenhuma demonstração de partilhar os mesmos
sentimentos. Até que, numa tarde chuvosa, tudo
mudou.
Galdino estava no celeiro, conferindo as sacas
de café que seriam enviadas a Pará de Minas no dia
seguinte, quando Magdalena entrou com os papéis da
escrita. Antes de vê-la, Galdino sentiu seu perfume
fresco de lavanda. Esbarraram-se sem querer. Lá fora,
a água descia como uma cortina cinzenta.
Encostaram-se rapidamente, porém parecia que
fagulhas saíram deles. Os olhos castanhos e azuis se
encontraram. E, antes que pudessem entender,
juntaram-se num beijo desajeitado no princípio.
Depois outro, outro e outro. Magdalena sabia, desde
aquele momento, que seria amor por toda eternidade.
122 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

Ficaram no celeiro sem se importar com os


trovões ou com o vento frio e úmido que passava
pelas portas abertas. Nem perceberam a chegada de
Tonico. Este fingiu surpresa, mas sabia que mais dia,
menos dia, isso iria acontecer. Na verdade, sonhou
com a possibilidade de unir os dois. Pronto, deveriam
se casar para manter a honra da filha.
Tonico mandou a filha escolher um lugar na
fazenda para construírem uma casa para os dois.
Magdalena sentia-se como em um sonho. Teria o
marido que amava e uma casa só deles.
Escolheu o lado oposto ao casarão, do outro lado
da represa. De lá, avistavam-se os janelões azuis e as
palmeiras e, embaixo, a água fazia um barulhão e se
enrolava em redemoinhos cheios de espuma.
Fizeram planos, levantaram a casa, colocaram as
telhas, os assoalhos de jacarandá, as paredes brancas,
as janelas azuis, quase espelho do grande casarão.
Magdalena bordou o enxoval. O vestido de
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 123

noiva, feito da mais pura renda, brilhava com os


vidrilhos de madrepérola. Os laços entre ela e
Galdino ficavam mais fortes. Não viam a hora de
selarem seu amor.
Magdalena foi à cidade para comprar mais
linhas, precisava acabar os bordados. A moça
irradiava alegria por onde passava e sentia que os
outros também estavam felizes, exceto Francisca.
Francisca era a única funcionária da Agência de
Correios local. Uma mulher que há anos vivia entre
as cartas. Sabia tudo e contava tudo. As pessoas
desconfiavam que ela tivesse um método de saber as
mensagens das cartas. Ninguém sabia como. Talvez
ela tivesse uma forma de abri-las sem rasgar os
envelopes. Lia-as e depois as recolocava dobradas do
mesmo jeito e colava novamente o envelope.
No Correio, Francisca não estava com a cara boa
e, entre dentes, falou com Magdalena que tinha uma
carta para ser entregue a Galdino. Magdalena ficou
124 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

apreensiva, pois provavelmente Francisca já sabia o


conteúdo da mensagem. Francisca estendeu, então,
um envelope com o brasão do Exército Brasileiro. O
que poderia ser? Ao pegar a carta, Magdalena sentiu
uma coisa esquisita, um peso puxando seu coração,
um gelo na barriga. Voltou à Esperança e entregou a
carta ao noivo.
Galdino leu a carta em voz alta. Ele fora
convocado pelo Exército Brasileiro, aos vinte e dois
anos, para lutar na II Guerra Mundial. Deveria se
apresentar dentro de vinte dias. Passaria por um
treinamento de três meses em Barra Mansa, no Rio
de Janeiro, e seria enviado para as frentes de batalha
na Itália.
Magdalena perdeu o chão. O que os dois tinham
a ver com aquela maldita guerra? Por que uma coisa
que, para ela, parecia tão distante, agora era tão
crucial na vida dos dois? Porém, apesar de tanta dor e
poucas respostas, Galdino partiu para o Rio de
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 125

Janeiro.
Foi o início do martírio de Magdalena. Bem que
sua mãe dizia que a mãe dela não queria que a
batizassem de Magdalena. Para a avó, o nome era
carregado de sofrimento, trazia toda a dor de Maria
de Magdalena, a da Bíblia, conhecida por Maria
Magdalena. Agora ela provava da dor que o nome
carregava.
Galdino sofria, porém tentava, em vão, passar
força à noiva. Dizia que o casamento fora apenas
adiado. Em pouco tempo retornaria e viveriam felizes
na casa acima da represa.
Outros rapazes da redondeza também foram
convocados, inclusive um sobrinho de Tonico, o
Antônio Dutra, filho da sua irmã Aurora.
Galdino passou os três meses no Rio de Janeiro.
Depois embarcou como soldado, em um grande
Transatlântico, juntamente com cabos, capitães, e
outros tantos tripulantes. Antes, ele tirou uma
126 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

fotografia, uniformizado. Sobre o preto e branco da


foto, a caneta azul destacava-se: “Magdalena, amor
eterno, voltarei para você”.
Francisca fez questão de ir até a fazenda, de
bicicleta “camelo”, entregar a carta com a foto.
Os dias se arrastavam pesados, como se
tivessem correntes de chumbo. À noite, Magdalena se
juntava a Tonico para ouvirem as notícias da guerra.
As ocupações de territórios, o avanço das tropas, o
racionamento de alimentos. Os romances não tinham
mais sabor, esquecidos sobre os pesados cobertores.
Os dias juntaram em anos. Três anos sem
Galdino. Magdalena já com dezoito anos, em 1942 era
a casca do que já fora. Quando não estava nas
escritas da fazenda, entrava na futura casa e, de lá,
apoiada no batente da janela, ficava horas olhando o
borbulhar das águas na represa. Parecia um
redemoinho. Um frescor, uma névoa úmida, subia até
o seu rosto.
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 127

A comunicação com Galdino era muito escassa.


Ela sempre lhe escrevia, porém as respostas
demoravam meses. Em uma carta, ficou sabendo que
seu primo Antônio Dutra servia como enfermeiro da
Cruz Vermelha e que Galdino era responsável por
dirigir caminhões com as armas e munições para as
frentes de batalha. Aqueles mesmos caminhões, altos,
escuros, cobertos de lonas, que a faziam arrepiar.
Quando fazia quatro anos que Galdino estava
fora, em uma tarde ensolarada, Francisca apontou lá
no pé da serra, com sua bicicleta. Ela estava
apressada. Com certeza trazia notícias quentes que
não podiam esperar até que um portador fosse à
cidade. Ao se aproximar, Magdalena sentiu uma coisa
ruim dentro do peito, igual àquela do dia da
convocação do noivo. Francisca, com os olhos turvos
e os lábios brancos, entregou-lhe uma carta. Disse
que chamasse Tonico, para lerem juntos. Sobre o
envelope, o emblema do Exército Brasileiro
128 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

intimidava, com as cores verde e amarela.


Claro que a notícia era a que Magdalena
antecipara. O Exército Brasileiro comunicava que um
dos seus caminhões sofrera um ataque dos inimigos,
na fronteira da França, e explodiu. Lamentavelmente
todos os ocupantes morreram carbonizados, dentre
eles, o soldado Galdino Queiróz. Ele seria, em ocasião
oportuna, homenageado com honras de estado, por
ter servido tão bravamente ao seu país.
Magdalena sentiu-se secar por dentro. Seu
sangue vitrificou-se nas veias. Que raiva ficou de
Galdino. Cadê o “amor eterno, voltarei para você”?
Agora não tem mais volta. A vontade era de explodir
também a casa que eles sonharam como “nosso
ninho de amor”. Lágrimas? Sequer derramou uma
gota.
Tonico preocupava-se com a filha. Ele mesmo
era um poço de sofrimento. Que diria a filha? Porém
ela não dizia nada. As escritas se acumulavam por
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 129

fazer. A moça queria apenas ficar na casa que seria


dela. Os olhos perdidos na janela, parados no
redemoinho de água.
Três semanas se passaram desde a fatídica
notícia. Magdalena parecia um zumbi com os olhos
opacos e os cabelos oleosos. Por essa ocasião,
Francisca já ia fechar a Agência dos Correios, quando
chegou uma remessa de cartas. Ela, meio a
contragosto, passou os olhos nos envelopes e viu
outra carta do Exército Brasileiro. A funcionária
baixou as portas da Agência e lá dentro abriu a carta
do jeito que somente ela sabia fazer. Leu, estarrecida,
o pedido de desculpas do exército, por ter dado uma
notícia de baixa antes de ter a certeza do fato
ocorrido. O soldado Galdino, por obra da sorte, foi
lançado barranco abaixo, antes da explosão do
veículo. O mesmo se encontrava convalescendo nas
instalações da Cruz Vermelha.
Francisca foi inundada de uma alegria imensa e
130 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

nem se deu ao trabalho de lacrar novamente o


envelope. Pegou a bicicleta, mesmo sabendo que a
noite começaria a cair antes dos dois quilômetros que
a separavam de Magdalena. Pedalou rapidamente, o
tempo começava a esfriar e o vento batia forte em
seu rosto. Dentro da bolsa de lona, a notícia
maravilhosa pulsava.
Francisca chegou à Esperança com um resto de
claridade. Viu a casa nova e em frente, uma figura de
branco. O que seria? Sentiu um arrepio.
Assombração? Ao chegar mais perto, viu que era
Magdalena e, notou surpresa, que a moça estava com
o vestido de noiva. Encostou a bicicleta na árvore.
Gritou.
– Magdalena! Magdalena!
A moça nem olhou. Para alcançá-la teria que dar
uma volta grande, contornar a represa.
Magdalena andou em direção à represa. O
vestido arrastando nos pedregulhos, esbarrando nas
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 131

margaridas. Olhou para a água em redemoinho,


chegou à beirada.
Francisca, no outro lado, também se aproximou
da beirada. Ficou apreensiva. Sentiu o que Magdalena
estava prestes a fazer. Gritou com todas as suas
forças, porém o barulho da água encobria a sua voz
ou talvez a moça estivesse tão absorta que nem havia
percebido a presença dela.
Francisca ficou frente a frente com Magdalena.
Entre elas o turbilhão de água. A noiva ergueu a
cabeça, estava linda e sem dúvida percebeu Francisca.
Francisca aproveitou e gritou.
– Galdino está vivo! Está vivo!
Magdalena com os olhos vazios olhou para ela
como se não tivesse entendido. Os vidrilhos do
vestido refletiram o resto de luz. Francisca gritou
novamente. Aí, ela entendeu. Um sorriso a iluminou
e seus olhos ganharam vida. Erguendo um pouco a
barra do vestido, fez um movimento brusco, e, sem
132 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

querer, enrolou-se no vestido, desequilibrou-se. Foi


uma sequência de fatos da qual Francisca prefere
nunca mais se lembrar. Magdalena escorregou, caiu.
Foi envolvida pelo turbilhão de água, engolida.
Surgiu algumas vezes no nível da água e desapareceu
depois. Francisca correu em busca de socorro. Tonico
veio correndo, junto com alguns apanhadores de
café, porém não houve tempo suficiente.
Magdalena deixou essa vida sabendo que não
encontraria Galdino, conforme planejara.
A fazenda afundou em sofrimento. A casa nova
foi fechada. Lá dentro, os móveis rústicos, o assoalho
de jacarandá, os quadros, os lençóis de linho
guardavam a tristeza de um sonho que se fora. Porém
a casa continuaria lá, vigiando a represa, solitária.
Cinco meses depois, Galdino foi dispensado do
exército. Ficou sabendo do ocorrido, ainda na cama,
na Cruz Vermelha. Lamentou ter sobrevivido ao
ataque para ter que viver essa dor. Voltou à fazenda.
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 133

Mais magro, arrastando uma perna, apoiado em uma


bengala. Apesar dos olhos encovados, a beleza que
encantou Magdalena, ainda estava lá.
Tonico recebeu Galdino como a um filho. Fez
questão que ele continuasse na fazenda, apesar de
não conseguir mais fazer o trabalho de antes.
Poderia, quem sabe, colocar as escritas em dia?
Poderia morar na casa nova, caso quisesse, tirar o
peso daquele lugar.
De forma surpreendente, Galdino quis o lugar.
Não sentia um peso ali, sentia a presença dela.
Mudou-se para lá. Abriu as janelas azuis, limpou
o assoalho, descobriu os móveis, colocou ramos de
alfazema nos cantos para dar um cheiro suave. À
noite, ficou muito tempo na janela, olhando os
pontinhos brilhantes no céu, não tinha coragem para
ir para a cama. Quando seus olhos começaram a
pesar, arrastou-se até o quarto. Nesse momento,
sentiu um frescor de lavanda. Não, não poderia ser.
134 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

Ou poderia? Talvez ela tivesse deixado um pouco do


perfume em algum lugar.
Foi dormir. Enrolou-se no cobertor de algodão
cru. Estava entre o sono e a vigília, quando sentiu
passos suaves, quase imperceptíveis, no assoalho de
jacarandá. Um arrepio percorreu sua espinha, o
cabelo da nuca eriçou. Dormiu entre as preces e o
medo.
Pela manhã, não tinha certeza do acontecido.
Estava impressionado e sofrido, por isso achou que
ela estivera ali. O sol entrava pela janela, um vento
suave balançava as cortinas quadriculadas. Galdino
saiu e foi ajudar Tonico com as escritas. Trabalhou
até o cair da noite. Apreensivo, voltou para casa.
Novamente, fez tudo para não dormir e novamente o
cansaço o levou à cama. Voltou à cozinha para um
copo de leite morno. Um cheiro de lavanda entrou
pelo corredor, as cortinas balançaram suavemente.
Galdino sentiu o mesmo arrepio e teve a certeza de
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 135

que Magdalena estava naquele lugar. Meu Deus!


pensava, nunca fora impressionável, nunca
acreditara em fantasmas. Então, o que seria aquilo?
Os dias foram passando, transformando-se em
meses, um ano, dois... Galdino acostumara-se à
presença dela. Nunca a vira, mas o perfume era o
dela. Os movimentos suaves nas cortinas, os passos
miúdos no assoalho. Uma noite sentiu um leve
movimento na porta, uma “batidinha” no ferrolho.
Não se assustou, gostava... Achou a fotografia dele
uniformizado, no baú, entre os cobertores. Leu:
“Magdalena, amor eterno, voltarei para você”. Amor
eterno... Talvez fosse isso. Não seriam separados
nunca.
Era uma rotina. Durante o dia trabalhava muito.
À noite, olhava as estrelas, ouvia a música das águas
e depois dormia com o cheiro de Magdalena. Estava
feliz, não sentia falta de nada, até que um dia...
Durante a vistoria das sacas de café e fubá, no
136 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

celeiro, lembrava-se do primeiro beijo que deu em


Magdalena e, então, sentiu o cheiro de lavanda.
Assustou-se, olhou devagar para a porta. Não era
hora de ela aparecer! Desequilibrou-se, caiu quando
viu Magdalena entrar. A moça sorriu. Um sorriso
encantador. Mas, não era o sorriso dela, apenas era
parecido.
– Oi! Não se lembra de mim? Sou Clara, sua
quase cunhada.
Deus meu, aquela menininha, agora uma
mulher?
Galdino apaixonou-se como da primeira vez. E
como da primeira vez, os dois sentiram-se num amor
eterno. Pouco tempo se passou, até que eles, com as
bênçãos de Tonico subiram ao altar.
Galdino estava muito feliz, mas também
temeroso. Sentia-se como se estivesse traindo Mag-
dalena. Não queria que Clara soubesse ou visse as
aparições e o pior, não queria que Magdalena
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 137

deixasse a casa. Acostumou-se ao amor velado nos


movimentos suaves. Por outro lado, desejava o amor
concreto que Clara lhe dava. Ele sentia falta de
Magdalena. Queria as duas, a real e a ilusória. Ela não
se manifestava mais. Talvez pensasse que fora traída,
trocada, esquecida. Meses se passaram e nada. Até
que uma noite...
Dormiam abraçados. Galdino ouviu suaves
passos. Afastou, com cuidado, os braços de Clara. Ela
ressonou. Ele recostou-se no catre da cama. Esperou.
Percebeu um leve ruído no ferrolho, um pequeno
farfalhar na cortina e um perfume... de lavanda,
encheu o quarto.
Galdino sorriu, ficou muito feliz, sentiu-se
pleno. Naquele instante teve a certeza de que não
seria abandonado, nunca, por um amor eterno.
Sobre as ondas

Wanda Viana de Mendonça


Niterói – RJ

– Vai chutar uma bola, seu otário!


Pelézinho ouvia isso todas as vezes que, prancha
de surf nos ombros, descia as vielas do Morro da
Rocinha. Alguns moradores não perdoavam que o
moleque quisesse imitar os rapazes dos condomínios
e mansões lá debaixo, cuja única coisa em comum
com os vizinhos favelados era a magnífica vista para
o mar. Mas a intenção de Pelézinho não era imitar
ninguém. Surfava porque gostava. Por isso não ligava
quando diziam que esporte, para meninos como ele,
tinha de ser futebol ou que surf, para pobre, só o
ferroviário. Pelézinho mal conhecia o subúrbio e
nunca havia andado de trem, muito menos se
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 139

equilibrado sobre o teto dos vagões como quem


cavalga ondas. Ele surfava de verdade! E quanto à
sua condição social, achava que, para ser surfista, não
precisava ter dinheiro.
Embora a maioria dos garotos da praia tivesse.
Inclusive o bacana de quem ganhara a prancha
“detonada”, que ficou como nova depois que
Pelézinho consertou-lhe as rachaduras. Fez isso
sozinho e não teve dificuldades, graças à prática em
trabalhar com todo tipo de resina sintética,
habilidade adquirida no serviço diário como ajudante
numa firma de reparos e instalação de piscinas em
terraços de apartamentos grã-finos. Piscinas e
pranchas são feitas de materiais parecidos e, para
consertar, também não há grande diferença. Depois
de disfarçar os remendos com uma camada nova de
tinta, Pelézinho finalizou a obra desenhando no
dorso de sua prancha o logotipo de uma grife famosa.
Ficou uma perfeição!
140 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

O mesmo não se poderia dizer das roupas. Os


trajes emborrachados que os playboys usavam nos
dias de frio eram caros demais para serem comprados
e, por outro lado, impossíveis de serem copiados pela
mãe de Pelézinho, costureira de mão cheia, mas com
limitações – tanto técnicas como financeiras. Bem
mais fáceis de confeccionar eram as bermudas
estampadas que, de longe, até passavam por
autêntico surfwear, mas, de perto, não enganavam
ninguém: eram feitas com tecido barato, comprado
em lojas populares na Rua da Alfândega.
Outra dificuldade era a linguagem. Os brothers
usavam muitos termos em inglês, dificílimos de
serem reproduzidos por quem ainda não passara da
oitava série do 1º grau de colégio público. Pelézinho
levou muito tempo para entender que o ráuai deles
não era nada mais que o seu velho e familiar Havaí,
escrito com um w no meio e dois ii no fim. Tinha
ouvido, no princípio de sua convivência com os surf
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 141

boys, muitas gozações por causa dos erros do seu


inglês ruim. Cometia, também, barbaridades em por-
tuguês, mas essas costumavam passar despercebidas.
Talvez porque, nessa matéria, fossem todos, guar-
dadas as devidas proporções, democraticamente
ignorantes.
Jamais compreenderia aquela mania de falar
inglês. Nisso, a turma do surf e a galera dos bailes
funk, que aconteciam todo sábado na quadra da
escola de samba de sua favela, se pareciam bastante.
Mas só nisso. De resto, viviam como seres de
planetas diferentes. Era preciso muito jogo de
cintura para circular à vontade entre as duas tribos.
Mas isso o menino tinha de sobra.
Pelézinho ia menos aos bailes que às ondas.
Aliás, ele só era “Pelézinho” para a turma do surf, na
qual era o único a guardar alguma semelhança
– embora apenas cromática – com o rei do futebol.
Devia-se a isto o apelido e não às habilidades do
142 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

moleque com a bola (a bem da verdade, nesse


particular, este envergonharia o outro). Para a
comunidade de sua querida Rocinha, onde nascera e
se criara, ele sempre foi o Pedro, Pedrinho, Pedroca,
filho do seu Tião e da dona Rita, um amor de menino.
Mas, para alguns vizinhos inconformados com a sua
mania de surf, ele não passava mesmo era de um
“neguinho metido a besta”.

II

– Larga essa tábua e pega numa pelota, ô,


babaca!
A sugestão deseducada que lhe gritaram alguns
cachaceiros de plantão na porta da birosca não
chegou a abalar o bom humor de Pelézinho, que
descia o morro com sua inseparável prancha debaixo
do braço. Do alto de seus 14 anos de idade, estava
todo feliz. Aquele seria um dia especial. Ia participar
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 143

de um campeonato na praia logo ali embaixo. O seu


primeiro campeonato importante. Era demais!
A turma estava toda lá. Sua chegada foi feste-
jada com espalhafato. E não podia ser diferente:
Pelézinho era um concorrente de respeito. Além do
mais, uma vitória sua causaria mais sensação do que
a de qualquer outro participante. Uma má colocação
não chegaria a desacreditá-lo, mas o primeiro lugar
poria a seus pés – e sobre sua prancha – o cobiçado
reino das ondas, que se estendia do início do Arpo-
ador ao final de Grumari, talvez até mais além. O Rio
de Janeiro seria seu, afinal.
Apesar da expectativa, o menino não estava
nervoso. Considerava-se preparado o suficiente para
não dar vexame e, por isso, não via motivos para se
preocupar.
Foi com toda esta tranquilidade que viu a com-
petição começar. A primeira bateria entrou no mar.
Eram dez baterias e a de Pelézinho seria a última.
144 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

Aproveitando-se disso, o moleque, com zelos de


autodidata, pôs-se a observar o desempenho dos
competidores que o antecediam. Mas não conseguiu
fazer isso por muito tempo.
Decorridos cerca de trinta minutos em que seus
olhos não se despregaram das ondas e das pranchas,
de repente algo fora da área da competição o fez
estremecer. A “coisa” estava um pouco distante,
alguns metros além da arrebentação, mas da areia
dava para ver muito bem. Um objeto mágico, que
cortava as águas com a velocidade dos deuses,
ruidosa e magnificamente; ora voando reto e rasteiro
como uma flecha, ora riscando incessantes círculos
sobre a superfície de um mar inteiramente submisso,
rendido, domado; fazendo as águas ao redor
sangrarem rolos e mais rolos de espuma
borbulhante... E, sobre aquela máquina fantástica, um
ser humano que parecia o mais feliz dos mortais!
Mas o que seria aquilo?
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 145

Uma prancha motorizada? Uma lancha, um


foguete, um míssil?
Não, não era nada disso. Aquela novidade
– saberia mais tarde – tinha nome e sobrenome: era
uma Motocicleta Aquática! Uma moto que anda na
água? Melhor ainda: uma moto que voa sobre o mar!
Quando o alto-falante chamou seu nome para
integrar a bateria seguinte, Pelézinho já não estava
mais ali para ouvir. Largara na areia aquela tábua
lisa, sem graça e sem vida, que, a partir daquele
momento, não significava mais nada para ele. Só
tinha olhos para o que acabara de descobrir. Saíra da
praia correndo, direto para a loja náutica mais
próxima. Lá certamente haveria algum modelo de
segunda-mão, que ele poderia reformar, como fizera
com a sua velha prancha. Compraria o objeto de seu
desejo à prestação com o dinheiro de trabalhos que
poderia fazer para a própria loja, mais o seu salário
de consertador de piscinas, mais as economias de sua
146 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

caderneta de poupança, mais a grana que poderia


juntar vendendo picolé na praia, lavando carros,
engraxando sapatos, esmolando...

III

Pouco depois, um Pelézinho diferente subia a


Rocinha. Vinha entre triste e revoltado. Na loja,
tinham rido dele. O Morro inteiro também riria se
soubesse. Só para a mãe, que jamais zombaria do seu
pequeno Pedroca, ele contou, entre soluços doídos de
engolir, o deslumbramento e a humilhação pelos
quais acabara de passar. Depois, para se justificar ou
se consolar, disse, mais para si mesmo que para a
mãe, que o pusera no colo:
– Eu não sabia que era tão caro!
Chorou baixinho até adormecer. Sonhou com
bolas de futebol.
Lembranças de papel de pão

Maya Falks
Caxias do Sul – RS

Se eu tivesse que escrever sobre minhas memó-


rias, escolheria uma caneta tinteiro e um papel de
pão. Uma mesa de madeira maciça daquele tipo que
não se encontra mais e uma chaleira de ferro no
fogão à lenha não cairiam mal como cenário de uma
história que nem tem tanto a dizer, mas muito a
sentir.
Vejo-me de pé sobre a baixa colina observando
o céu tempestuoso se aproximando de mim com a
mesma velocidade que os meninos pés-de-vento
corriam ao redor das meninas na esperança de que
nossos vestidos subissem e eles pudessem ver nossas
calçolas de renda feitas pelas mãos habilidosas de
nossas avós. Nesses tempos de menina, tudo aqui
parecia tão gigante, enquanto hoje vejo ao longe a
148 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

chaminé na estância vizinha sem dificuldade


nenhuma sobre o salto alto e o tamanho de mulher
feita.
Naqueles tempos de remota infância, fazíamos
fogueira no quintal e queimávamos pinhão na chapa
naqueles dias em que o minuano nos gelava os
corpos franzinos pelo excesso de correria nos dias de
verão. Não tinha tempo ruim para aquelas crianças
cuja uma delas era eu, de tempos tão remotos que
hoje, com rugas no rosto e costas cansadas, parecem
lembranças de outra vida.
Por essas terras que pareciam sem fim, éramos
reis e rainhas, príncipes e princesas, guerreiros de
uma batalha para salvar o pé de bergamota da fome
do dragão, o Gigante, que na vida real era um cusco
de 30 centímetros que resgatamos ainda filhote na
beira da estrada de chão. Gigante não cresceu, mas
era um ótimo dragão quando roubávamos as
vassouras de vovó para correr como cavalos no
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 149

campo de batalha. Júnior, o garoto mais forte, vestia


um colete feito de saco de batata como sua armadura
e usava um cano de plástico como espada. Eu nunca
era a princesa, porque meus vestidos não eram rosa
como os de Lúcia, a menina que tinha um batom
roubado de sua mãe.
Mas quem sempre roubava a cena era Pagú, o
filho do capataz. Ele mal tinha o que vestir, mas
sempre tornava tudo fantasia e contava suas
aventuras mundo afora sem jamais sequer ter
atravessado o portão. Sonhava em aprender a ler,
mas a vida lhe privou de tanta coisa que morrer
analfabeto nem lhe foi o mais grave. Era criativo
como poucos, contador de histórias, capaz de nos
deixar submersos em suas peripécias imaginárias por
horas e horas, até que o cheirinho de bolo de cenoura
nos tirasse a atenção.
Pagú tinha olhos grandes e sorriso largo,
transformava estalos na madeira em histórias de
150 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

terror dos fantasmas que ele jurava ver entre os pés


de laranja quando o frio ainda fazia a criançada se
esconder no porão da casa grande de meus avós.
Sofreria se visse hoje que os laranjais não existem
mais, que a casa grande virou ruína e a estradinha de
chão ganhou asfalto e cheiro de cidade grande.
Sofreu calado quando a safra foi fraca e teve que
juntar os poucos pertences numa sacola de pano para
ir com os pais tentar a sorte na capital, vivendo como
outro qualquer numa vila pobre e abandonada por
Deus, sem chances e sem o futuro que eu desejava
tanto que aquele magrela tivesse com toda sua
imaginação.
De provável escritor virou bandido e sucumbiu
às mazelas de uma vida de risco entre a
sobrevivência e a dor de ser o que não queria. Meu
avô, arrasado, bancou o funeral com poucas
presenças, porque bandido bom é bandido morto,
como dizem os populares, sem jamais saber que o
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 151

bandido em questão era um menino de bom coração


que tinha fome e havia perdido a dignidade ao
atravessar o portão da estância, deixando para trás as
melhores recordações da minha infância. Dizem que
ele nunca sorriu outra vez. Dizem que parou de
contar histórias e passou a viver outras, mas sem ser
mais o herói. Ele não gostava de ser o bandido.
Por vezes, quando a minha vida real permite, me
curvo em seu túmulo sem luxos e relembro suas
histórias, aquelas tantas que fizeram de minha
infância um lugar bonito de se voltar. Todos ainda se
lembram de Pagú, que nos fez uma falta danada
quando a adolescência foi chegando. Todos perdemos
a inocência, mas conseguimos ter algum contato
ainda para saber que aqueles tempos deixaram lindas
marcas.
Júnior e Lúcia, como todos esperavam, aca-
baram por se casar e deram ao seu único filho,
nascido anos depois da despedida de Pagú, o mesmo
152 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

nome engraçado que tinha o menino, Patrício


Gustavo. Eu, que sempre fora uma das guerreiras,
pouco ligando para os roxos nas canelas que as
espadas de canos de plástico do Júnior me deixavam,
dediquei a vida ao trabalho, aos valores que tive de
meus avós e meus pais. Empresária de vida corrida,
acabei por deixar no passado os sonhos de fazendeira
cuidando das terras da família, divididas em várias
partes e transformadas em condomínios para os ricos
da cidade virem aproveitar os açudes que aliviavam
nosso calor no verão que pouco durava nas terras de
cá.
Nunca esqueci Pagú. Às vezes, penso que o
amava e que descrevê-lo como um garoto é pouco
demais para se falar de um pequeno anjo de asas
cortadas que caiu sobre nossas vidas com a mesma
força de um meteorito, o mesmo que dizíamos achar
toda semana entre as rochas perto da cachoeira e
vendíamos na porta da igreja o cascalho como rocha
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 153

vinda do céu para comprar picolés de uva e limão na


vendinha da vila mais próxima.
Éramos inocentes. Bons tempos aqueles em que
chorei porque a flor do meu vestido azul se
desprendeu no arame farpado e em que Júnior
montou no bode do vizinho e deixou-lhe com
problemas de coluna. Bons tempos em que Gigante, o
cusco, se enrolava em meus pés na frente da lareira
quando o frio era muito e quando até Pagú se calava
para ouvir as histórias de guerra que meu avô
contava com doses de humor que nos faziam crer que
as guerras nem podiam ser assim tão ruins.
Éramos inocentes. Éramos felizes. E até me
satisfaço em saber que Pagú não viu o quanto tudo
isso se perdeu. Mas eu jamais me esqueceria do jeito
que seus olhos me olharam quando me viu de susto
trocando o vestido num momento em que meu corpo
entregava o quanto eu ia deixando de ser menina
para me tornar mulher.
154 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

O tempo que passa e não apaga as lembranças.


Por isso o papel de pão, um papel que embalava
sabores de infância, hoje registra os dissabores da
solidão.
O chorão

Aparecida Gianello dos Santos


Martinópolis – SP

Assim que nossa casa ficou pronta, a mãe


cismou de comprar uma árvore para ornamentar a
fachada. Mas ela não pensava em qualquer uma, a
que a faria feliz era nada mais nada menos que uma
salix babylonica, espécie pendente, mais conhecida
como salgueiro-chorão, ou, simplesmente, chorão. O
grande problema foi encontrar uma dessa, já que nos
viveiros locais só vendiam árvores comuns. Não
havia nem mesmo quem a conhecesse nos arredores.
Lembro-me que muitos tentaram vender à mãe
espécies parecidas, o que não a convenceu, pois
estava mesmo obstinada a plantar um chorão. Saben-
do que, possivelmente, encontraria da tal árvore
noutra cidade, distante uns quinhentos quilômetros
156 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

da nossa, jogou um verde... O pai, para agradá-la,


partiu atrás de conseguir uma muda.
Naquele mesmo dia, quando chegou com a
novidade, nos juntamos em roda do buraco feito na
calçada que dava para a rua. Foi quando a mãe disse
que aquela árvore era mística, que ter uma daquela
em casa nos traria muita sorte, além de proteção
contra todos os males. Eu, em minha natureza ainda
infante, acreditei de imediato, o pai não. Sempre foi,
assim, meio desconfiado, diferente da mãe. Com
meias palavras, meio que completando o discurso da
mãe, disse apenas que talvez não fosse bom plantar
árvores à noite, não obstante continuasse nos
olhando com ares de incredulidade. Devoto, não
liguei e fui logo metendo minhas delicadas
mãozinhas na terra adubada de estrumes. Queria
apoiar a mãe naquele tão nobre ato seu de plantar o
que seria nossa fonte de bênçãos e proteção.
Sua paixão por aquele chorão crescia com ele.
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 157

Tanto que o pai deu de implicar. Passou a resmungar


com seus galhos pendentes, com as folhas que caíam,
com a pouca sombra que dava... Nada havia nele que
agradasse o pai. Acho que ele via no chorão um rival,
caprichosa e literalmente plantado entre os dois, ele e
a mãe. Talvez tivesse ciúmes pela atenção que ela
dava à planta. E reclamava: “Árvore boba...” A mãe
relevava, no fundo sabia que todo aquele seu drama
daria em nada. Passava horas e horas contemplando
o balançar lacrimoso de seus galhos. Dizia que dava
uma tristeza gostosa de ficar em paz... Certo dia,
durante uma tempestade, eu a vi espiando pela
janela, e estava com os olhos rasos d’água. Tudo por
causa do que o pai havia dito em sobreaviso, que,
num vento mais forte, os longos galhos do chorão se
enroscariam nos fios de alta tensão causando um
grande curto-circuito. Dito e ocorrido. E suas
palavras agora não foram outras: “Tem que cortar,
antes que aconteça o pior e queime tudo aqui em
158 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

casa...” Assim ela o fez, cortou o chorão, enquanto


lhe sangrava o coração.
Resignadamente, embora ainda não convencida
de que aquele era o seu fim, a mãe separou alguns
pequenos galhos do que restou do chorão e os fincou
em saquinhos com terra. Para sua surpresa, sucedeu
que destes, em poucos dias, esparziram brotos.
Viraram mudinhas. Maravilhada com a novidade,
passou a cuidá-las como se fossem bebês. Tão logo
atingiram porte, escolheu uma muda e distribuiu as
demais entre os vizinhos. Deste modo, dedicava-se a
partilhar da mesma sensação de paz e tranquilidade
que lhe abonava o chorão. E foi com este desejo, por
ver renascer seu sonho, que a mãe transplantou seu
mais novo projeto ao lado da casa, lugar que
estimava o mais acertado.
O pai só descobriu o lance da mãe depois que o
chorão já estava com seus galhos quase tocando o
gramado. Todo o nosso quintal era assim, gramado e
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 159

com muito verde. Na primavera, era tanto colorido


que enjoava. Cultivava de tudo um pouco. Ela amava
plantas. Dizia que era terapia... Em pouco tempo, e
exigindo poucos cuidados, o segundo chorão já exibia
extraordinária beleza. Era agora tão lindo quanto o
primeiro. Passou-se um tempo, quando o pai veio
com a notícia: “Tem que cortar... Pra fazer a
garagem”. Nem é preciso dizer que isso soou como
morte para a mãe. Nem é preciso dizer também que
ela não desistiu, mesmo que suas palavras mais uma
vez ultimassem por lhe cortar o coração. Fez novas
mudas. Distribuiu bastantes. Ficou com uma. No dia
de transplantá-la, porém, chamou o pai. Fez questão
que ele estivesse presente e, antes, demarcasse o
lugar. E o terceiro chorão agora ocupava o canto
direito da frente, do lado de dentro do alto muro que
dava para a rua. Mero detalhe. Ela sabia que logo ele
lançaria seus longos galhos por cima. E não demorou
muito para que a beleza do novo salgueiro atraísse
160 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

olhares das gentes que por ali passavam. Ficou ainda


mais charmoso por detrás do muro. A mãe,
orgulhosa, fotografava... Tudo ia bem até que veio
uma tempestade brava, exatamente como a que levou
ao fim o primeiro chorão. Foi quando a cerca elétrica
do vizinho – que nem estava lá quando eu e a mãe
plantamos o último – se escangalhou por causa dos
galhos. E mais uma vez, o pai...
Depois dessa, achei que ela fosse desistir. A
coitada ficou muito triste. Contudo, restavam-lhe
ainda resquícios de um antigo desejo abrolhando em
sua alma. Reagiu. Fez mudas. Separou a sua. Ofereceu
as outras... Os vizinhos, àquelas alturas, já se
negavam a aceitá-las. O fato é que nunca ninguém
conseguia cultivar aquela árvore, excetuando a mãe.
Não era estranho que isso acontecesse, porque eu
duvido que algum desses lhe tivesse igual zelo. Era
amor arraigado, laço forte. E nada o cortaria, nem a
maior nem a pior das tempestades, penso até que
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 161

nem a própria morte. No fim, coube à mãe e ao seu


último chorão nada mais nada menos que os fundos
da nossa casa. Lá o espaço era amplo, portanto, sem
riscos. O que não lhe agradava muito era o fato de
que ele ficaria escondido, sob o risco de jamais ser
apreciado, a menos que as gentes adentrassem o
quintal. Ainda assim, meio descontente, ela fez sua
mágica...
O tempo passou e o chorão finalmente pôde
ascender seguro. Tornou-se adulto, magnificamente
lindo. Admito que aquela era a árvore mais
fascinante e misteriosa que já vi. Não sei se pela
veleidade da mãe por mantê-la, se pela sua crença
nos tais poderes que guardava, ou ainda, se por eu ter
crescido no entorno desta história, não sei... Logo
passei também a admirar o chorão. O pai, não. Ele
não sabe, mas vejo que chora toda vez que o encara...
Não tem mais a mãe por perto para cortar sua dor.
Selecionados
As nuvens brancas de Lulu

Giordana Maria Bonifácio Medeiros


Brasília – DF

Saudade é amar um passado que ainda não passou.


É recusar o presente que nos magoa.
É não ver o futuro que nos convida…
Pablo Neruda

“Hoje faz 10 anos que ela se foi”. Pensou a


mulher ao se ver no espelho. Uma lágrima escapou-
lhe, mas foi rapidamente aprisionada por uma mão
delicada. “Não há como esquecer… A lembrança é
pesada demais”. Pensou. Não lhe era dado o
privilégio de não recordar. Ainda via uma menininha
linda com cabelinhos cacheados a correr pelo quintal,
trazendo uma lagartixa sem rabo para lhe mostrar. A
mulher sorriu, ao rever o rostinho da menininha
fazendo careta ao descobrir que lagartixas comiam
insetos: “moscas, baratas…” “Eca!” Disse a menininha
antes de soltar a sua prisioneira. Ainda poderia ver
164 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

os olhinhos meio vesgos. Essa menininha tinha uma


imensa imaginação. Contava histórias sobre piratas,
interpretava o bandido e o mocinho, mas, no fim, o
bem sempre ganhava. Contudo, a menininha
descobriria que, na vida, nem sempre o mal era
derrotado. E as batalhas produziam vítimas. E
também desfaziam famílias para todo o sempre.
“A grama é verde. O céu é azul. As nuvens são
brancas… Manhêeee, por que as nuvens são
brancas?” Ela não soube como explicar. “Não sei,
Lulu, vamos procurar na internet?” A pesquisa
resultante foi que “as nuvens são brancas porque as
gotas de água, ou seus cristais de gelo, são
suficientemente grandes para espalhar os sete
comprimentos de onda (vermelho, laranja, amarelo,
verde, azul, índigo e violeta) da luz, que se combinam
para produzir luz branca”. “Num entendi nada”.
Como era lindo aquele rostinho confuso. “Lulu, a luz
é formada por sete comprimentos de ondas ou cores,
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 165

quando todos estes se juntam na nuvem que combina


todos devido a seus cristais de gelo, formam a cor
branca, entendeu?” “Ah, agora sim!” Mas logo a
atenção da menininha era voltada para mais uma
descoberta: uma lagarta no jardim.
Lulu era curiosa e esperta, tinha olhos castanhos
e o seu sorrisinho já apresentava duas janelinhas. “A
fada do dente vai vir pegar meus dentinhos?” “Sim, e
vai colocar uma moeda por cada dentinho sob seu
travesseiro”. “Por que ela quer dentes?” Mais uma
vez, tomada de surpresa, a mulher teve de inventar
uma utilidade para os dentes de leite que a fada do
dente recolhia. “Sabe, Lulu, dizem que elas fazem
suas casas, lá no país das fadas, com os dentinhos das
crianças”. “Essas fadinhas são burras, mais fácil é
usar tijolo e cimento”. Lulu não tinha ficado
convencida. Muito difícil ludibriar a esperta meni-
ninha. A mulher chorou. A memória trazia de volta o
passado, como ondas que vagueiam de cá para lá, de
166 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

lá para cá. Levando e trazendo tristes recordações.


A menininha ainda estava ali, naquela casa,
naquele jardim, entre o balanço de pneu e o muro em
que juntas gravaram o nome de Lulu com ajuda de
um prego enferrujado. Poderia vê-la correndo pelos
cantos, cantando a musiquinha que aprendera na
escola. “Fui morar numa casinha enfeitada de capim,
saiu de lá um indiozinho, que olhou para mim, olhou
para mim e fez assim”. E a pequenininha interpretava
um índio com a mão sobre a boca. A mulher sentiu
um aperto no coração. Doía muito não ter mais a
Lulu para fazer-lhe perguntas difíceis. Para
aprenderem juntas sobre o mundo. Aliás, o que
aconteceu com o mundo que de repente ficou tão
sem graça?
Foi ao antigo quarto da menina e abriu uma
caixa com fotos que mantinha, apesar dos apelos de
seu psicólogo, que lhe dizia para não alimentar a
tristeza. Ocorre que ela não poderia simplesmente
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 167

deixar de se lembrar da menininha que se foi de


forma tão súbita quanto chegou. Foi uma surpresa a
gravidez. Ninguém esperava, teoricamente, ela não
deveria ter filhos. Mas um milagre deve ter
acontecido. Veio a Lulu, que lhe arrebatou o coração
para sempre. Depois dela, não lhe foi mais possível
engravidar. Era para sua história terminar com
“felizes para sempre”. Foi que havia prometido à
filha, quando lhe contou a história da Bela Ador-
mecida. “Mas, mãe, o que é ‘para sempre’? “É muito,
muito tempo. Até você ficar bem velhinha”. Foi o que
respondeu, sem saber que uma semana depois, per-
deria sua menininha num assalto. O ladrão, por
acidente, disparou contra Lulu. Lembrava-se de
tentar aparar sua garotinha, desfalecida e ensan-
guentada. O bandido, amedrontado, fugiu. A polícia
não conseguiu sequer identificar o assassino. E Lulu
entrou para as estatísticas dos crimes não resolvidos
e impunes.
168 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

A mulher pensou na infinidade de sonhos que


Lulu jamais realizaria. Curiosa como era, só poderia
ser cientista no futuro. Mas isto ninguém nunca
saberia. Porque o faz de conta terminou e o corpinho
hirto dentro caixão branco era real demais para uma
fantasia. Era um esquife tão pequeno que só poderia
caber a sua menininha. E ela parecia dormir um sono
relaxado e profundo. Lembrava-se de tentar acordá-
la, mas seus apelos foram em vão. Lulu nunca mais
despertou. Quando o féretro desceu, a certeza do fim
fez a mãe cair de joelhos.
A garotinha foi para o céu azul, viver sobre uma
nuvenzinha fofa e branca. Da filha, só restaram, para
a mãe, saudades e fotografias. E fotografias são
instantes de felicidade de um passado bonito demais
para se eternizar. O anjinho que lhe foi dado se foi de
forma tão abrupta quanto como lhe foi presenteado.
Sua Lulu, que lhe encheu o coração de alegria no
passado, agora o fazia transbordar de tristeza. Fica-
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 169

ram as fotos, os brinquedos e os dois dentinhos de


leite que a fada do dente não usou para construir sua
casinha. Também os vestidinhos rosas que jamais
chegaram a ser usados e que foram comprados para a
festa de aniversário. Porque Lulu queria uma festa de
fadas. Mas a varinha de condão nunca chegou a ser
usada para fazer fantásticas magias.
E o mundo ficou mais cinza sem a Lulu. O
cachorrinho que pediu de presente de aniversário
jamais conheceria sua dona. Nem mesmo chegou a
lamber-lhe a mãozinha gordinha. A mulher sorria e
chorava a cada foto, entre saudades e lembranças.
Entre a dor e longínquas alegrias. A filha não pôde
sequer se despedir. Foi-se de repente de forma
deveras amarga e violenta. Mesmo que o bandido lhe
tenha tomado o seu bem mais precioso, não tinha
ódio. Não se deve alimentar um sentimento tão ruim.
Preferia nutrir a saudade da sua filhinha. Assim, de
alguma maneira, acreditava que poderia tê-la sempre
170 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

consigo.
Lúcia, a menina de seis anos, corria para sempre
na memória da mãe. Ela adorava sorvete de chocolate
e balinhas dadinho de amendoim. Não gostava de
balinhas de goma e queria um mágico na sua festa de
aniversário. Porque numa festa de fada tem de ter
magia. E os olhos úmidos transbordaram em lágrimas
quando a mulher viu um dos derradeiros desenhos de
Lulu. Nele, estava escrito com letras tortas de uma
criança em alfabetização: “a grama é verde, o céu é
azul e a nuvem é branca. A internet disse que ela tem
muita cor junta. Não entendi!”
E todas as cores juntas não produzem branco, na
verdade, mas o negro. A cor do luto de uma família
que se desfez porque o mundo é injusto demais. E as
histórias de fadas, na realidade, não têm magia. E os
anjos não podem proteger os bons e também não
existe “felizes para sempre”. Pois o único sentimento
eterno é a saudade que os anos fazem crescer mais e
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 171

mais, no coração dos que a vida ainda pulsa. Não


sabem os que partem a falta que fazem na vida dos
que aqui ficam. Lulu nunca vai entender por que as
nuvens são brancas, como a mulher nunca vai
entender por que, afinal, um menino, cuja idade não
superava os treze anos, num assalto desajeitado,
matou Lulu. Assassinou, esse menino, também toda
alegria e esperança que a mulher poderia ainda
possuir. Desde então, a grama não é mais tão verde, o
céu não é mais azul e as nuvens são cinzas sempre a
chorar a morte de Lulu.
Liberdade, enfim!

Edweine Loureiro da Silva


Saitama – Japão

Rio de Janeiro – Segunda-feira, 14 de Maio de 1888.


Gazeta de Notícias
Extinção da Escravidão

Tomando um gole do café produzido em sua fa-


zenda, o Coronel Pitágoras dá início à leitura das
novas que, para ele, não tinham mais o sabor da
surpresa:

“A Princesa Imperial Regente, em nome de Sua Majestade, o


Imperador o Sr. D. Pedro II:
Faz saber a todos os súditos do Império que a Assembleia
decretou e Ela sancionou a lei seguinte:
Art. 1º – É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão
no Brasil.
Art. 2º – Revogam-se as disposições em contrário.”

E o Coronel, virando a página, faz um


comentário, em tom de ironia:
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 173

– Pois sim, quem comemorará doravante serão


outros súditos, os da Rainha Vitória.
A mulher, a seu lado, porém, não o compreende:
– Rainha Vitória? A da Inglaterra? O que ela
tem a ver com a libertação dos escravos no Brasil? Às
vezes, você diz cada coisa, Pitágoras…
O coronel não lhe respondeu. Para quê? Tentar,
durante o café da manhã, explicar à esposa que os
comerciantes ingleses precisavam de trabalhadores
assalariados no Brasil, e que a Escravidão lhes tirava
potenciais consumidores? Não tinha tempo para isso.
Precisava era cumprir a lei o mais rápido possível,
independentemente dos verdadeiros motivos da
abolição. De tal modo que, dirigindo-se ao escravo
– ainda podia chamá-lo dessa forma, pelo menos até
o anúncio oficial da alforria –, disse-lhe:
– Tião, reúna os escravos em frente à Casa
Grande.
– Todos, sinhô? – perguntou-lhe um atônito
174 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

Tião: – Mas eles tão colhendo café...


E o Coronel Pitágoras, olhando-o friamente:
– Quer discutir minhas ordens, Tião?
– Não, sinhô... – E o escravo, trêmulo, sai ime-
diatamente do recinto para cumprir o que lhe foi
ordenado.

– A partir desta data, todos vocês estão livres!


Não mais terão de obedecer a ninguém e, hoje
mesmo, poderão deixar esta fazenda! – E
acrescentou, diante dos olhares desconfiados: – Não
se preocupem, pois, dessa vez, nem mesmo o capitão
do mato irá persegui-los. Dou minha palavra!
Contrário, porém, ao esperado pelo coronel, não
houve gritos de celebração pela liberdade adquirida.
Os agora ex-escravos apenas se entreolharam, pa-
recendo nada entender. Então, um deles, Cosme,
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 175

ainda que de modo tímido, resolveu fazer a pergunta


que estava na cabeça de muitos de seus com-
panheiros:
– Mas, Sinhô, ir pra onde? Passamos a vida toda
trabalhando aqui. Não conhecemos nada lá fora...
O Coronel Pitágoras, por sua vez, tentou
tranquilizá-lo:
– Todos vocês receberão algumas moedas, além
de roupa e comida, para recomeçar a vida. – E frisou:
– E lembrem-se de que lhes dou esse dinheiro em
condições muito difíceis; pois sequer à indenização
nós, proprietários, teremos direito!
– Mas, Sinhô, quando o dinheiro acabar... o que
faremos? – Cosme ainda tentou contra-argumentar.
O Coronel, porém, dessa vez, vendo aonde o
outro queria chegar, e não gostando do que
considerava palavras de ingratidão, gritou-lhe, firme:
– Basta! Já lhes disse: aqui não podem ficar.
Tenho outros planos para os cafezais. E agradeçam a
176 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

Deus por minha generosidade, pois em outras


fazendas, nem roupa é dada! – E olhando para o
capataz: – Robério, chame o doutor Camacho para
tratar da papelada da alforria. – E para os ex-
escravos: – Boa sorte a todos.
E foi isso. Virou as costas e retornou à Casa
Grande. Tião, ainda esperançoso, tentou segui-lo.

– Mas eu fico, não é, Sinhô? Eu não tenho de


sair da fazenda, não é mesmo?
O coronel, voltando-se, viu a figura curvada de
Tião. O olhar suplicante fez com que Pitágoras
parasse por um momento e relembrasse o passado
– quando Tião, criança ainda, fora trazido de outra
fazenda para fazer companhia ao coronel; ambos
então com a mesma idade. Já adulto, e tornando-se o
escravo de confiança de toda a família, Tião
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 177

testemunhara o casamento do coronel e vira nascer a


única filha deste.
As ternas lembranças, no entanto, partiram tão
rápido quanto vieram, e o coronel, homem de ne-
gócios, logo se recompôs e disse:
– Lamento, Tião, mas você também terá de
partir.
E, em um ato de desespero, a voz embargada,
Tião ainda propôs:
– Mas, Sinhô, deixa eu ficar pelo amor de Deus.
Não carece de me pagar. Fico de gosto. Deixa eu
ficar, por tudo o que é mais sagrado.
Estas palavras, no entanto, irritaram o Coronel
Pitágoras:
– Será que você não entendeu, Tião?! Mantê-lo
aqui sem pagamento seria mantê-lo como escravo!
Eu estaria violando uma Lei Imperial! Eu iria para a
cadeia, Tião! – E colocando a mão sobre o ombro do
velho: – E você não quer me ver na prisão por sua
178 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

culpa, não é mesmo?


– Não, Sinhô, Deus me livre e guarde fazer mal
pra ninguém... Muito menos pro sinhô, que sempre
foi tão bom comigo...
E, Pitágoras, aproveitando o momento, concluiu:
– Pois então, Tião. Agora vá, meu bom amigo.
Junte-se aos outros para ver a papelada e receber seu
dinheirinho. Vá e não se preocupe; pois quando
precisar de alguma coisa é só nos visitar na fazenda.
Mas conosco, infelizmente, você não pode mais
ficar...
E, dando palmadas no ombro de Tião, o Coronel
entrou e fechou a porta do escritório.

– Vinte mil réis, Sinhô Robério? O que vamos


fazer com esse dinheiro?
Robério, acostumado a repreender imediata-
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 179

mente qualquer ato de ousadia, ainda levou as mãos


ao chicote; mas, lembrando-se das ordens do coronel
– Eles não são mais escravos, Robério! Não deve
castigá-los: apenas garanta que todos saiam da
fazenda! –, conteve-se e, olhando firme para o
homem a sua frente, limitou-se a repreendê-lo:
– Quer criar problema, Cosme? Pegue o
dinheiro e se dê por agradecido. Lembre que o
coronel disse que, em outras fazendas, os escravos
libertados sequer roupa estão levando!
E os demais, na fila, antes que Cosme lhe
respondesse com palavras desafiadoras:
– Fique quieto, Cosme!
– Isso, homem de Deus! Não vá criar mais
problema pra nós!
– O Coronel sempre foi bom com a gente,
Cosme. Não seja mal-agradecido!
E Cosme, olhando para os irmãos de sofrimento,
resolveu calar-se. Ainda que, no fundo, soubesse que
180 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

todos ali estavam sendo vítimas de mais um ato de


injustiça por parte dos homens brancos.

Quando as porteiras da fazenda do Coronel


Pitágoras se abriram, os ex-escravos começaram a
caminhar, os pés descalços, pela terra vermelha que
formava a enigmática estrada de seus futuros. Terra
vermelha que tantas vezes haviam semeado – e
depois regado com suor, lágrimas e sangue – para
que seus senhores enriquecessem. Senhores estes
que, agora, abandonavam tantos homens, mulheres e
crianças à própria sorte.
Tião, quando a porteira se fechou, ainda ficou
parado, esperando não sabia exatamente o quê –
talvez um milagre, uma mudança de pensamento por
parte do Coronel. Até que foi despertado pela voz de
Cosme:
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 181

– Anda, Tião! Não tem mais nada pra esperar,


não! Hora de olhar pra frente, irmão! Mesmo não
tendo a menor ideia aonde essa estrada vai levar a
gente…
E Tião, conformando-se, começou, cabisbaixo, a
seguir os demais, que, castigados pelo sol,
caminhavam apenas. Sem rumo e sem forças para
buscarem uma felicidade que, temiam, jamais
viessem a encontrar.
Pedro Maritaca em: catetos e hipotenusas

Alberto Dias Pedroso do Carmo


Piracicaba – SP

Nos idos dos anos 80, antes da nova ortografia,


num Sol a pino que só na Noiva da Colina, Pedro
Maritaca carpia a roça de feijão. O suor insistente
obrigou-o a ir até a bica molhar a cara um pouco.
Estava lá, refrescando-se antes de continuar a lida,
quando umas palmas vieram da porteira.
– Ó de casa! Alguém em casa? – uma voz sem
sotaque chamou.
– Vá se chegando. Pedro Maritaca, um servo ao
seu dispor! – respondeu prolongando erres.
O visitante, engenheiro da cidade que, vítima da
crise, deu-se por bem embrenhar-se nas perspectivas
do serviço público, abriu a porteira e se aproximou.
– Muito prazer, seu Pedro. Meu nome é Tales.
Eu queria ter uma conversinha com o senhor.
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 183

– Vamos entrando, seu... seu... cumé mesmo?


– Tales! Engenheiro Tales!
– Ah! Assim como se diz “tales quais”, né
mesmo?
– Bem, pode ser.
Os dois entraram na paioça de Pedro, que logo
foi servindo um cafezinho, mantido quente na beira
do fogão a lenha.
– Muito obrigado, seu Pedro.
– Se assente, seu Talesquais, a casa é sua. Tá
meio em desorde. A muié tá pra casa da mãe com os
fio.
– Não se importune por isso, seu Pedro.
O café fraco, ao jeito da roça, foi sendo bebido
em canecas esmaltadas, de verde batido. Tales abriu
uma pasta e foi retirando resmas de papelada. Pedro,
enquanto bebia o café, só olhava de soslaio,
desconfiado que só porco do mato. Afinal, toda vez
que algum “armofadinha” da cidade aparecia lá no
184 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

terreiro, coisa boa não era. Mas aguardou paciente, já


alisando uma palha e preparando o canivete pro pito.
– Mas me diga, seu Talesquais, veio aqui pra
mode quê?
– Seu Pedro, deixe-me mostrar minhas
credenciais e...
– Ara, deixe disso! Aqui a gente não percisa
mostrá nada não. Num fica bem um home mostrá as
roupa de baixo.
Pedro já ia se levantando, ajeitando o cinto nas
calças, bufando o pito, e pegando a velha pica-pau. O
asséptico cidadão, ciente de que falara algum absurdo
no dialeto local, foi logo se explicando.
– Não é nada disso, seu Pedro. Eu trabalho para
o governo e estamos fazendo um levantamento da
população deste arraial. O censo, o senhor conhece?
– E não? Meu pai me ensinô a ter senso na base
da cintada. Falava: – Meu fio, bão senso na vida!
– Que ótimo, seu Pedro. Seu pai é uma pessoa
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 185

sábia.
– É não, era. Deus o tenha!
– Meus sentimentos, eu não sabia.
– Mas vamu deixá de cunversa fiada e o senhor
me diga logo o que tá querendo, que eu inda perciso
trabaiá.
– Certo. Seu Pedro, preciso lhe fazer umas
perguntinhas rápidas. É pra sabermos quantas
pessoas moram na região, o que fazem, etc.
– Ara, isso é fácir! Aqui tem eu, o Zeca Bigode,
a dona Cotinha, a ...
– Não, não, seu Pedro! Só preciso que o senhor
me responda. Depois eu vou visitar seus amigos
também.
– Pois pregunte!
Tales se ajeitou como pôde, entre formulários e
canetas, e o interrogatório teve início.
– Qual sua idade, seu Pedro?
– Uns quarenta e pouco.
186 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

– Pouco quanto?
– Ara, e esses detalhe interessa? Eu num tô aqui
na sua frente? E nem sei dereito. É uns pouco. Afinar,
a idade da gente tá nos calo da mão, nas roça que a
gente faz, nos fio que bota no mundo.
– Interessante. O senhor lê filosofia?
– Óia, seu Talesquais, eu num entendo esse
palavreado todo. O senhor seja mais craro.
– Desculpe, foi um lapso momentâneo.
– O senhor quer um apontador? Tem os das
criança.
– Não é necessário. Vamos continuar. Qual é a
sua profissão?
– Nóis aqui planta, cria, e despois colhe e come.
E o senhor, faz o quê?
– Bem, eu? Eu sou engenheiro. Quer dizer, eu
era. Isto é, eu sou, mas não exerço.
– Mas que compricação de profissão é essa?
– Desculpe, seu Pedro. Foi outro lapso.
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 187

– O senhor é cheio de lápis! Deve de ser


estudado.
– Nem tanto, seu Pedro. Vamos continuar.
Questionário respondido, foram os dois dar uma
volta na pequena propriedade. Roças de feijão, milho,
mandioca. Pedro arrancava uma e Tales se espantava.
Pedro separou uns cinco quilos e embrulhou em
jornal.
– Seu Pedro, hoje eu lavei a alma!
– Ara, pois venha quando quisé!
– E lá embaixo, o que o senhor tem lá?
– Ah, lá eu tenho uns cateto guardado no
cercado.
– Catetos? Onde?
– Lá embaixo, seu Talesquais.
– Onde?
– Lá, óia! Tá vendo uns cercadinho tudo
quadrado? É os quadrado dos cateto!
– Quadrado dos catetos?
188 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

– É. A gente cria. Uns nóis vende, outros a gente


mata em ocasião especiar. Natar, essas coisa.
– O senhor conhece Pitágoras?
– Deixa ver... de que bandas é a família dele?
– E hipotenusa? Conhece?
– Ah, essa eu já ouvi falá! Num era uma dona
que morava lá no barranco fundo, que ficô viúva e
despois deu no que falá?
– Desculpe, seu Pedro. Eu nem sei o que estou
dizendo. Foi...
– Já sei. Foi outro lápis, né? Eita home estudado!
A tarde caiu, o sol se pôs. Tales voltou ao seu
destino. Quando chegou, derrubou montanhas de
livros da estante e chorou.
Pedro passou o cadeado na porteira, recolheu as
galinhas e passou o ferrolho na porta. Tomou um
gole de boa caninha e deitou a sonhar.
O Incrível Marvel

David William de Araújo Plassa


São Paulo – SP

Marvel, nome dado pelo pai por causa das


revistinhas. Marvel da Silva Santos. Sobreviveu com
certo heroísmo aos anos escolares e acostumou-se
pacientemente em atender também por “Marvin”.
Trabalha como atendente em um café na zona sul da
capital paulista para ajudar a mãe, doméstica. O pai
já não faz parte da família. Acerto de contas, dizem:
dezesseis tiros em frente ao mercadinho. Por engano,
comentam. Enganada só se for a família, afirmam.
Mais do que nunca, Marvel sonha com poderes
sobre-humanos: o homem que não precisava dormir,
o homem que controlava a vontade da xícara sobre o
pires, o homem que sabia sorrir em qualquer
circunstância, o homem invisível que não precisava
atender quem não desejasse. Marvel tem dificuldade
em servir pessoas que misturam arrogância com
190 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

desatenção: não veem como gentileza a xícara de café


levada até à mesa ou extinguiram o “por favor” e o
“muito obrigado” do vocabulário. Como se ele fosse
uma polia que, sem a possibilidade de atuar fora
daquela engrenagem, estivesse obrigado a suportar
uma carga aplicada aleatoriamente. Uma polia de 20
anos, parda, com ensino médio incompleto e que leva
uma hora e quarenta minutos para chegar ao local de
trabalho. Caso não chova.
A bem da verdade, o que realmente incomoda
Marvel é o hálito dos clientes. As pessoas têm mau
hálito muito mais do que percebem. E, ao que parece,
a maioria que se aproxima dele, além do limite
desejado, não passa uma escova na boca há tempos.
No entanto, estão bem vestidos, pagam impostos e
levam os cachorros para passear na praça enquanto
as crianças assistem a séries no Netflix ou constroem
um futuro no Minecraft.
No ônibus, Marvel gostaria de se miniaturalizar.
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 191

Encolher sem que ninguém notasse, próximo a um


local seguro, no vão de uma janela talvez, e passar
sua hora e quarenta minutos ali, de olhos fechados
para o gigantismo e a complexidade mundanos,
sentindo cada célula do corpo tremelicar diante das
manifestações sonoras da urbe. É assim que ele
adormece em seus retornos para casa.

*****

“We can be heroes, just for one day”, David


Bowie. Marvel nunca escutou essa música, e Bowie é
apenas o gringo-E.T. que ele viu no noticiário
quando este faleceu. Mas a frase, em português,
também rodopiava sua mente. Apenas um dia. Um
dia em que ele poderia faltar do trabalho para voar
acima dos prédios, apagar um ou outro incêndio,
impedir um assalto, ser admirado por quem lhe vê.
Seria visto! Sobraria até um tempo para ajudar o
192 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

patrão na louça, quem sabe, água e sabão em


supervelocidade. Nome de herói ele já tem em bom
tamanho, Marvel. O Incrível Marvel, gostava de
pensar e só parava quando a senhora a sua frente
pedia para fazer um novo macchiato, pois o café
estava frio. Como se as palavras agarrassem à
garganta e os sons exteriorizados fossem apenas
vibrações forçosas e vazias, Marvel diz que vai
preparar outro. A senhora insiste que é a terceira vez
que isso acontece em menos de duas semanas, uma
vergonha para um café que se intitula “gourmet”.
Marvel pede desculpas. A senhora diz que é sempre
assim, que tem que engolir as desculpas junto do café
frio, depois de ter perdido um tempo que não tem e
pagado uma fortuna por uma experiência irrelevante.
Marvel pede mais desculpas e entrega uma nova
xícara. A senhora nega e pede para falar com o
gerente sobre esse absurdo. Marvel então desfoca o
olhar do que o cerca e cria um campo de força para
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 193

que se auto dilua dentro dele. Campo de força sem


resistência o bastante para suportar uma mãe que
ajuda o filho no trabalho escolar:
– Você pode abaixar a música e não fazer
barulho enquanto gravo o meu filho para um
trabalho do colégio?
Eram 17h de uma sexta-feira, um dos picos da
cafeteria. Marvel tinha sucos por fazer, que
precisavam do liquidificador. Tinha expressos para
tirar, que precisavam do moedor, coisas para picar,
louça para lavar.
– Só cinco minutos, por favor, poxa! Eu venho
aqui há anos – insistia.
– É esse rapaz, sempre ele. Toda vez o café frio!
– contava a senhora ao gerente.
– A senhora tem total razão. Vou escalar outro
funcionário para preparar as suas bebidas daqui pra
frente. Queira nos desculpar – responde o gerente.
Marvel pede desculpas, licença e que abaixem o
194 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

volume da música ambiente. Também pede que o


companheiro de café segure as pontas por um
instante. Vai até o banheiro, tranca a porta, apaga a
luz, deita no chão, um tanto encolhido. Concentra-se,
o campo de força. Sente-o chegar por trás da nuca,
espalhando-se pelo corpo. Ali ninguém poderia
impedi-lo, ali poderia viver. Ali também poderia
morrer.
Ao final do expediente, Marvel tem a sensação
de que nenhuma sexta tem ares de sexta quando se
trabalha obrigatoriamente aos sábados. Mergulhava
nesse pensamento enquanto voltava para casa numa
sexta-feira noturna e fervilhante: bares cheios,
música alta. Era como se as semanas nunca tivessem
fim e dessem voltas no próprio eixo tentando
mordiscar o próprio rabo. Como os cachorros
entediados que os donos amarravam aos pés das
mesas na cafeteria.
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 195

*****

Já no sábado, o estabelecimento está apinhado


de gente. Pessoas ensebando xícaras com a ponta dos
dedos a cada gole. Pessoas rindo ferozmente sob
conversas banais. Pessoas querendo atenção. Pessoas
sendo pessoas.
Um dos clientes explicava para Marvel que ele
vivia num regime de semiescravidão, que não existia
possibilidade na vida que levava de se tornar “senhor
do próprio tempo” e que o que ele recebia era pouco
para desistir de sonhos realmente relevantes.
– Isso tudo você consegue investindo em
marketing de relacionamento. Marketing de
relacionamento é a chave do milênio! Está tudo no
meu livro... Marvin, né?
Em determinado momento, sem que qualquer
pessoa notasse, Marvel fixa o olhar bem no meio da
testa do falastrão e deseja com a força ensinada num
196 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

livro de autoajuda que ele suma. E pluft, o tagarela


desaparece. Marvel esfrega os olhos, balança a
cabeça, deixa o queixo cair e fica com a sensação de
que tem uma imaginação muito aguçada. Então vai
ao banheiro.
Retorna zombando de si mesmo e se encaminha
até o mezanino para evitar o alvoroço no térreo. Fixa
em um jovem casal incomodado com algum dos
barulhos da cafeteria. Pluft, adeus casal. Marvel
arregala os olhos. Não pode ter sido coincidência ou
o efeito retardado do baseado acendido na noite
anterior.
Marvel desce as escadas e olha para a mesa com
a senhora do macchiato gelado, com a mesma
expressão de horror do dia anterior: pluft! Para pais
que levariam filhos ali para fazer trabalhos escolares
ou quebrar alguma louça que lhe seria descontada no
final do mês: pluft e pluft. Para o gerente que saía
apressado e confuso do administrativo. Para o
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 197

manobrista que voltava de estacionar o carro de


clientes que não estavam mais ali. Pluft. Pluft.
Teria Marvel, depois de tantos anos, descoberto
o seu poder secreto?
Até que cada ser ao seu redor desaparecesse.
Até que Marvel olhasse para as próprias mãos e...
Pluft!

*****

SURTO PSICÓTICO DE FUNCIONÁRIO MATA


SETE E FERE TRÊS EM CAFETERIA DA CAPITAL
PAULISTA. ASSASSINO SE SUICIDA APÓS
ATENTADO

DE SÃO PAULO

Por volta das 14h deste sábado, o atendente


Marvel Santos, 20, promoveu um atentado à mão
armada na cafeteria onde trabalhava há mais de um
ano e meio, na zona sul da capital paulista.
198 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

Em posse de uma pistola Glock 380, Santos


efetuou diversos disparos contra clientes e funcionários
do estabelecimento e em seguida contra ele mesmo,
com um tiro na têmpora. Não houve tempo de as
autoridades chegarem ao local durante o ocorrido.
Testemunhas contam que, após o primeiro disparo
no andar térreo do local, Santos caminhou
tranquilamente até o banheiro, de onde saiu para se
dirigir até ao mezanino e concluir o atentado. “Não deu
tempo nem de saber o que estava acontecendo depois
do primeiro tiro. A bagunça no térreo distraiu quem
estava no andar de cima, e foi aí que ele pegou todo
mundo de surpresa”, relata Lucas Leite, um dos
sobreviventes.
“Trabalhamos com a hipótese de crime
premeditado”, conta Fábio Faccoli, delegado à frente do
caso. Desolada, a mãe de Santos disse à reportagem que
ele nunca apresentou comportamento violento.
O corvo

Carlos Alves
São Vicente – SP

Ele era filho de família extremamente religiosa e


fora criado como tal. Entretanto, algo mais palpitava
no peito franzino daquele garoto em permanente
confronto com o que lhe era imposto.
O menino cresceu, virou homem, queria casar-
se e ter um filho, levando à risca o clichê do velho
pai: “Não deves passar pela terra sem que tenhas
plantado uma árvore, feito um filho e escrito um
livro”.
Ele já tinha plantado uma porção de árvores,
mas sabia da dificuldade de escrever um livro, dada a
sua inaptidão com as letras. Contudo, fazer um filho
era possível, ele estava na flor da idade e, mais que
nunca, em plena condição reprodutiva.
Para tanto, o moço se preparara como um atleta
200 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

em véspera de olimpíada, pois não poderia arriscar


sua prole à imperfeição. Assim, combateu o
sedentarismo, o fumo, o álcool, o excesso de peso, o
estresse, e escolheu a dedo uma companheira, uma
mulher de dentes fortes, ancas largas, envergadura de
boa parideira, e passou a viver em torno daquele
objetivo.
O tempo passava rápido. Os anos avançavam e o
sonho parecia cada vez mais distante. Sua mulher
entregou-se a uma verdadeira peregrinação para
engravidar. Passou por uma infinidade de infusões de
plantas domésticas e selvagens. Tratou-se com cer-
veja preta e gemas de ovos crus. Engordou sob um
intenso consumo de geleia de mocotó. Mas quê! Esta-
va mais propensa a adquirir uma moléstia do que
emprenhar.
As crendices a abarcaram como nunca, insuflada
pelo insistente marido, é claro! Benzia-se com arruda
e cinzas. Fazia promessas e rezava novenas. Até mes-
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 201

mo dedicou-se a uma inútil e estranha acrobacia por


algum tempo. As comadres lhe diziam que após o
coito era preciso manter a pélvis levantada por algum
tempo, para que, por força da gravidade não se lhe
escapassem os espermatozoides. E a pobre, como um
Santo Antônio teimoso, passava horas de cabeça para
baixo.
Um dia, inconformada e na iminência de perder
o marido, cogitando coisas mais perigosas ainda para
reverter o seu fracasso, percebeu que a menstruação
lhe faltara; e a constatação óbvia os promoveu aos
mais felizes dos casais.
Contudo, por conta das estripulias, o moço
meteu-se sob um fardo que não podia carregar e, a
confrontar a felicidade na contemplação do bendito
fruto, crescia-lhe dentro do peito o aguilhão da
dúvida e do medo.
Na contramão da certeza anterior, ele temia que
a criança nascesse aleijada, torta, cega. Disse que se
202 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

mataria, pois não podia confrontar a idealização da


perfeição cultivada.
Depois de longos meses de mesclados e tortu-
rantes sentimentos, o rapaz levou a esposa para o
hospital. Largou trabalho, obrigações, e fincou-se
num banco de pedra no corredor esverdeado roendo
as unhas, dispondo-se numa preventiva proteção ao
bem-vindo filho. A blindá-lo, se pudesse.
O primeiro choro do recém-nascido chegou-lhe
como música aos preocupados ouvidos. Como uma
orquestra sinfônica, alternava momentos de explo-
sivas alegrias e profunda melancolia.
Após noticias de que tivera um varão com
perfeita saúde, ele distribuiu charutos para os
amigos. Afinal, ele era pai de um belo garoto, a
despeito da sua besta apreensão. Contudo, como
alegria de pobre tem logo fim – e ele era pobre de
espírito por excelência –, no outro dia bem cedo,
numa conversa ao pé do ouvido com o obstetra,
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 203

voltou ao fundo do poço em que constantemente


mergulhava.
– Ele é diferente – disse-lhe o médico. – Tem
características inconfundíveis.
– Que quer dizer? – perguntou-lhe, apreensivo.
– Bem, ele tem o perfil achatado, as orelhas
pequenas, a língua... Ele é portador da Síndrome de
Down! – sussurrou ao ver a cara pálida do rapaz.
O céu caiu-lhe sobre a cabeça. Por que com ele?
Ele não merecia! Aquilo certamente não passava de
um crasso erro da natureza, pois ele não fizera por
onde, e... Era-lhe penoso cogitar a respeito, mas ele se
livraria daquele fardo. O mundo lhe agradeceria, e
era bem possível que Deus não se importasse, pois
não podia crer que dele se originasse tal criança.
Entretanto, bem lá no fundo ele sabia que nada
daquilo era verdade, mas precisava fomentar tal
pensamento para se convencer e arrazoar o coração.
Não seria difícil – matutava –, um travesseiro
204 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

sobre o nariz, uma pressãozinha, e lá se ia para de


onde veio sem nenhum sofrimento.
Assim, na primeira chance que teve, adentrou o
berçário para o infanticídio e, não fosse por uma
enorme mancha preta em forma da figura de um
corvo empoleirado, impressa na nádega direita do
bebê, por um instante frear-lhe o desespero e fazer
com que o observasse por outro prisma – o paterno,
talvez –, teria tomado um caminho sem volta.
Lembranças claras entre torvelinhos escuros
trouxeram-lhe a visão das matronas gregas e
romanas, grávidas, olhando por horas para estátuas
de deuses e ídolos, certas de que a contemplação
produziria efeitos semelhantes nos seus nascituros. O
moço, também um crente de tal fenômeno, lamentou
não ter feito a mulher contemplar uma estátua de
Apolo durante a gestação.
Tal interrupção o levou a cunhar pensamento
ainda mais cruel... Talvez aquele sinal fosse um
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 205

carimbo do destino, como algo que sai da forma e,


defeituoso, deva ser descartado.
Com os olhos fechados e o coração disparado,
apertou o travesseiro contra a cara do bebê e
aguardou... Um segundo; dois; três; e um gemido
profundo, acompanhado de espasmos do minúsculo
corpinho, emergiu do peitinho arfante. O erro crasso
da natureza, ou a falha de Deus, avivou o macam-
búzio coração recuando o braço assassino, e a vida
voltou célere ao corpinho arroxeado.
Aterrorizado, arrependido, mas não
conformado, o rapaz deixou o berçário num convul-
sivo choro. À distância, como cão que foge da luta
para avaliar a situação e voltar prevenido, ele voltou
com gosto de morte na boca amarga para outro
desfecho. Providencialmente, havia outro neném
naquela sala, e ele fez uma troca.
Ele não pôde matá-lo. Não teve coragem, ou
então foi mesmo Deus que não quis, mas certamente
206 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

não se importaria com uma simples barganha. Talvez


até mesmo se agradasse, visto que o outro bebê ali
parecia ser coisa propositada – pensou.
Entretanto, como não há crime perfeito, aquele
também não foi. Não pelo ato em si, que nisto ele era
esperto, mas por uma questão de consciência, pois a
sua padecia sob a batuta do atormentado espírito.
O rapaz meteu-se sob uma cruz pesada demais,
pois nunca conseguiu, de fato, convencer-se da sua
razão.
Desolado, depois de alguns anos ele resolveu
pagar em vida o seu pecado, em que pesasse o des-
mantelamento de sua família. Comunicou o fato à
polícia, e mexeu céus e terra em busca do verdadeiro
filho, o que levava na nádega direita a figura de um
corvo. Por isso perdeu a mulher, o emprego, os ami-
gos e a igreja que aprendera a amar como seu susten-
táculo.
De hospital a cartórios, ele percorreu terras,
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 207

cidades, diluindo sua saúde e a pequena fortuna no


horror que o consumia. Mas, ao encontrar a criança,
nada pôde fazer. Nenhum argumento poderia
confrontar a mãe, cuja visceral certeza se afiançava
no inabalável coração e na figura do corvo que
também estava impressa na sua nádega direita.
Invisível

Anderson Henrique Gonçalves


Rio de Janeiro – RJ

Bruce levanta. São seis horas e meia da manhã.


Ele toma banho, escova os dentes e se reúne com a
família para o café. O pai, a mãe, a irmã e uma
empregada. Tulio, Soraya, Aurora e a empregada.
Uma garrafa sobre a mesa despeja um caldo
amarelado no copo de Bruce. Ele bebe, o líquido
tocando seus lábios. Era uma garrafa de suco, mas
poderia ser de veneno. Ninguém notaria. O pai de
Bruce olha os indicadores do mercado em um tablet:
Bovespa 43.350, PTAX BC 3.9042, Euro BC-R$
4.2482/4.2504, TR 0.2250, TJLP 0.58. O suco encontra
a ponta da língua de Bruce e se espalha pela boca
enquanto sua mãe verifica a agenda do dia: um café
às nove com fornecedoras, terapia às onze e almoço
ao meio dia. O resto da tarde no coiffeur. O líquido
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 209

alcança a garganta do rapaz. A faringe se fecha


enquanto contrações peristálticas conduzem a bebida
pelo esôfago. Aurora tem nome de princesa, mas seus
conflitos não caberiam em um desenho da Disney.
Ela tem aula durante a manhã e curso de inglês à
tarde. Não planeja comparecer a nenhum dos dois. O
suco de Bruce atinge o estômago. A válvula cárdia se
fecha. Glândulas sintetizam e secretam enzimas
digestivas. Cheiro de pão fresco se mistura ao aroma
do café que está na máquina. A fusão dos odores
invade as narinas da empregada. Seu nome é
Ivaneide, mas isso não importa. Fome sem nome. Seu
hipotálamo recebe um SMS da grelina enquanto
Aurora envia um e-mail para um rapaz da escola. Os
músculos do estômago de Ivaneide se movimentam,
empurrando o ar para dentro da válvula pilórica. A
barriga ronca levemente, mas ninguém ouve porque
um celular toca. Tulio atende e dá instruções a seu
subordinado. O estômago de Bruce começa a digerir
210 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

o suco. Aumentam os níveis de insulina e ácido


fosfórico em seu organismo. Ivaneide quer comer,
mas ela precisa esperar que a casa esteja vazia e em
silêncio. Há ordem para tudo.
Depois de beber o suco e desferir duas mordidas
em uma torrada, Bruce percebe que a pele de seu
antebraço está um pouco mais clara. Ele investiga de
perto, passando os dedos pelo local e constata que
suas veias estão mais aparentes. Tem a impressão de
ver o sangue circulando pelos vasos sanguíneos.
Talvez seja hora de pegar um pouco de sol, ele pensa.
Próximo ao local há uma tatuagem, feita há dois
anos, quando ainda tinha 14, após assistir pela
terceira vez ao filme O senhor dos anéis. Falsificou a
assinatura do pai, juntou com uma xerox da
identidade e tatuou em élfico: Um Anel para a todos
governar, Um Anel para encontrá-los. Um Anel para a
todos trazer e na escuridão aprisioná-los. A ousadia lhe
trouxe problemas na época. Seu pai ainda se abor-
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 211

recia ao ver a inscrição no antebraço do filho, era


nítido o olhar de reprovação, mas não se tocava mais
no assunto.
O motorista deixou Bruce e Aurora na porta da
escola. Dividiram-se ao chegar: bloco A para ele,
bloco C para ela. Bruce passou por um grupo de
meninas no corredor, mas nenhuma delas notou sua
presença. Durante a aula, a correção da prova de
matemática, um sete em cor azul. Sentiu um
formigamento em um dos antebraços enquanto
conferia o gabarito. Levantou a manga do casaco e
pôde ver com clareza os caminhos que as artérias
faziam pelo braço. A pele branca havia se convertido
em um tecido avermelhado de textura fibrosa.
Assustado, desceu a manga do casaco enquanto
olhava ao redor. Ninguém parecia ter reparado.
Ligou para sua mãe no intervalo entre a
primeira e a segunda aula. Tentou, ao menos. Tocou
sete ou oito vezes e ligação foi desviada para a caixa
212 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

postal. Pensou em seu pai, mas a possibilidade de ser


atendido era remota. Lembrou-se, então, de sua irmã.
Entre hesitar e tomar uma decisão, foi para o
corredor. Desceu dois lances de escadas, caminhou
até o outro bloco e procurou a sala em que Aurora
estudava. Colocou o pescoço pela passagem na porta
vasculhando cada carteira ocupada, mas não a
encontrou. Uma amiga de Aurora pediu licença para
passar, a cabeça de Bruce no caminho. Cê viu minha
irmã? A menina apontou para o corredor: acabou de
sair.
Bruce encontrou Aurora no hall. Ela conversava
com um cara do terceiro ano. Tentou chamar sua
atenção de longe com um aceno. Podia jurar que sua
irmã tinha visto os sinais, mas ela virou o corpo na
direção contrária. Bruce se aproximou e cutucou seu
ombro. Aurora se virou. A cara era um painel de
desprezo. Quié? Preciso falar com você. Tô ocupada.
Bruce insistiu. Arrastou-a para um canto, levantou a
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 213

manga do casaco e mostrou o braço. Aurora deu um


passo atrás, o assombro falando por si. Me ajuda, ele
suplicou. Ela disse que não podia fazer nada, que não
era médica e que tinha umas coisas para fazer. Para
livrar-se do irmão, mandou que procurasse a
enfermaria. Bruce insistiu, tentando convencê-la,
mas ela se esquivou. Nada era mais importante
naquele momento que o rapaz próximo às escadas.
Bruce subiu os dois lances do bloco A e parou
diante da sala. A porta fechada indicava que a aula já
havia começado. Um gracejo pelo atraso era certo.
Empurrou a maçaneta lentamente e viu que a cadeira
da professora estava vazia. Esticou o pescoço até que
o ângulo lhe permitisse alcançar a lousa e viu que a
professora escrevia no quadro branco. Entrou
devagar, esgueirando-se até o local onde sua mochila
repousava. Não foi notado.
Tentou copiar a matéria do quadro, ignorar a
comichão no braço, mas não foi tarefa fácil. Levan-
214 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

tava a manga e ficava observando as veias e artérias


sob a pele transparente. Moveu o braço como quem
faz um alongamento, assistindo aos músculos
retesarem. Esticava-o e as articulações se moviam, os
tendões a acompanharem o gesto vagaroso. Repetiu o
gesto algumas vezes, impressionado com o que via.
Mais à frente, a professora surgiu entre as cadeiras.
Olhava para a mesa de cada aluno, inspecionando os
cadernos. Bruce cobriu o braço e começou a anotar
apressadamente para ganhar tempo. A professora
passou por ele e não fez qualquer comentário sobre
seu desempenho.
O intervalo seguinte levou Bruce ao banheiro.
Tirou o casaco, pendurando-o sobre o suporte atrás
da porta da cabine e esticou ambos os braços. O
esquerdo já estava praticamente desaparecido, toda a
matéria sob a pele absolutamente invisível. O direito
também começava a perder a cor. As mãos
mantinham a normalidade, com exceção das unhas,
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 215

que já avançavam no processo de desaparecimento.


Desceu a calça até os joelhos e viu as coxas trans-
lúcidas. Bruce não se desesperou. Precisava pensar
em alguma coisa.
Aproveitou o final da segunda aula para escapar
da escola. Deu a desculpa de que compraria um doce
na barraca em frente e fugiu para o ponto do ônibus.
Viu a irmã entrando em um carro com o rapaz do
terceiro ano. Fato corriqueiro: ela sempre escapava.
No coletivo, acomodou-se ao lado de um senhor de
cabelos brancos e barba hirsuta que ocupava o
assento próximo à janela. O homem viu que ele
examinava os pulsos transparentes. Entreolharam-se.
Também acontece comigo, o velho disse com a voz
estremecida. Às vezes, não consigo um único lugar
para me sentar. Bruce encarou o homem com a
admiração de uma mariposa diante da luz. Pensou em
algo para dizer, mas limitou-se a observar a
paisagem. Duas ruas depois o velho pediu licença
216 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

para descer. Bruce girou o corpo, colocando as


pernas de lado. O velhote passou por ele apoiando
uma das mãos sobre a cabeça do rapaz. Afagou os
cabelos do menino e lhe desejou boa sorte.
Bruce desceu no centro da cidade. Ofereceram-
lhe chocolate, bala Halls, uma concorrente da bala
Halls e uma imitação de bala Halls. Tudo a preços
módicos. Massageadores portáteis, CDs piratas e
pendrives com capacidade de uma vida. Panfletos de
empréstimo consignado, leitura da sorte e um
restaurante a quilo. Um homem-placa anunciava a
compra de ouro. Carimbos e cartões, dizia um
cavalete com uma seta apontada para o interior da
loja. Um jovem carregava um cartaz de um lado a
outro da avenida sempre que o sinal fechava. Nada
pode nos separar do amor de Deus, estava escrito.

Bruce atravessou duas ruas até chegar à porta


do edifício. Identificou-se na recepção, dizendo que
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 217

subiria até o sétimo andar. Bateram uma foto sua e


lhe deram um cartão. Entrou no elevador. Pelo
espelho, viu que uma de suas sobrancelhas havia
desaparecido. Ajeitou o cabelo para baixo, cobrindo
parte do rosto. No sétimo andar, nova recepção.
Disse que precisava falar com Tulio, seu pai. A
secretária pegou o telefone do gancho e trocou
algumas palavras com a pessoa do outro lado. Última
sala do corredor, à direita, ela disse. Apertou um
botão debaixo da mesa e destravou a porta.
O escritório parecia um labirinto. Os cubículos
se amontoavam e pequenas ratazanas passavam de
um lado para o outro sem saber aonde iam. Mais
ratoeiras que queijo. Um jovem apressado carregava
uma pilha de papel e quase tropeçou em Bruce. Seu
pai já vem, avisou a secretária no final do corredor.
Apontou a poltrona e pediu que ele aguardasse.
Bruce se acomodou, encostando a cabeça no apoio,
enquanto observava a mulher atender às ligações
218 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

com um entusiasmo fabricado. A noite anterior em


frente ao videogame mandou um recado: sono. Bruce
adormeceu pouco depois. Reconheceu o escritório
quando despertou. As luzes estavam apagadas e ele
só, completamente invisível.
O caos

Leonardo Siviotti de Alcantara


Maricá – RJ

Mesmo parando durante o trajeto para raspar


seu tênis no meio-fio e se livrar do cocô de cachorro
que chutara acidentalmente, Eduardo Leone chegou
antes da hora marcada e encontrou o portão da vila
fechado. O prêmio por essa rapidez foi ter que
aguardar seu tio embaixo do incômodo sol de onze da
manhã.
Tirou o boné da cabeça. Fedia a suor na parte de
dentro. Não era lavado havia semanas. Usou-o como
um leque, abanando-o repetidas vezes próximo ao
rosto. Inquieto, conferiu em mais de uma opor-
tunidade o endereço no papelzinho que recebera.
Acalmou-se somente ao notar a chegada do tio.
Carregava sacolas plásticas nas mãos.
– Tá louco, moleque? – protestou o homem.
220 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

– Não acredito que está vestido assim. Calça jeans?


Camisa polo? Sério? E esses sovacos todos suados?
Não tem medo de assaduras?
O adolescente se aproximou e ajudou o homem
com as sacolas. Levaram-nas pelo corredor. Dentro
delas havia, entre outras coisas, uma lata de tinta. O
tio a retirou e a examinou brevemente.
– Se cagar sua roupa com isso a culpa não é
minha – advertiu.
Abriram a porta e entraram. Era um lugar
pequeno. Uma residência simples de uma vila
modesta. Estava desmobiliada, mas com uma
aparência limpa. Num dos cantos da sala havia outra
lata de tinta, além de uma escada e alguns
instrumentos usados para pintar.
– Que tal? – perguntou o tio. – Comecei a
arrumar esse lugar há poucos dias. Tá ficando legal.
Só falta terminar a pintura dessa sala e do quarto.
Eduardo olhou de um canto a outro. Não parecia
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 221

empolgado. Fez uma pergunta qualquer para fingir


interesse. O tio respondeu:
– Não sei. Isso não é comigo. Meu trabalho é
apenas reformá-la.
Ao notar que não causou nenhuma repercussão
com a resposta, começou a forrar o chão com jornal.
Depois pegou um rolo e deu outro para o sobrinho.
– Você fica com essa parte aqui de baixo, que é a
mais fácil – apontou para a parede. – Não quer tirar
o boné?
Eduardo usava o boné enfiado na cabeça com a
aba a mais abaixada possível, ocultando boa parte do
rosto. Não por uma questão estética. Sua intenção
era, sobretudo, esconder-se do olhar dos outros.
Detestava quando alguém o encarava. Decidiu
mantê-lo na cabeça.
Começaram a trabalhar. O adolescente seguia as
ordens do tio. Tentava executá-las da melhor forma
possível, embora sua falta de habilidade fosse evi-
222 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

dente. Fazia tudo com lentidão. O mais velho


demonstrava paciência. Compreendia as limitações
do garoto. Inclusive as limitações de interesse
naquela atividade.
– Isso aqui vai ser bom para você – disse ele,
tentando entusiasmar o outro. – Passar horas jogan-
do videogame pode ser divertido, mas não te traz
nenhuma exigência física. Por isso está gordinho.
Eduardo ignorou o comentário sobre o seu peso.
Sabia que a intenção do homem não era ofendê-lo.
Estava mais preocupado em não deixar a tinta cair
em sua roupa. Seu tio percebeu a cautela.
– Faz como eu: tira a camisa.
O jovem mais uma vez recusou a sugestão.
Tinha vergonha do próprio corpo. Evitava mostrá-lo
em público. Bastava o constrangimento semanal de
tomar banho com outros garotos no vestiário após a
aula de educação física. Sempre fazia questão de ser
um dos últimos a entrar, quando o local estava
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 223

menos povoado. Claro que não expôs nada disso ao


tio. Tinha medo de ser mal interpretado. Sabia que
sua fama de esquisito corria pelos ouvidos de toda a
família. Considerava-se um incompreendido. Con-
sideravam-no um perturbado.
Quinze minutos se passaram em completo
silêncio. A tarefa estava bem adiantada. Até que
Eduardo fazia bem a sua parte. Seu tio reconheceu
isso à sua maneira:
– Você tá indo bem, embora qualquer mané
consiga pintar o que está pintando.
Seu assistente bufou. Gostaria de estar bem
longe dali. Estavam começando os Jogos Olímpicos
de Atlanta. Queria estar diante da televisão
acompanhando o evento. Ou mesmo jogando
videogame. Não ligava se ele o tornava mais gordo.
Deixava esse tipo de preocupação para os atletas. A
única competição da qual almejava participar era um
imaginário campeonato de quem comia mais sorvete.
224 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

O tio notou a contrariedade.


– O que foi, Dudu? – indagou.
Não obteve resposta. Parou de pintar sua
parede. Voltou-se inteiramente ao sobrinho.
– Fala. O que está te incomodando?
Eduardo também parou.
– Eu não queria estar aqui – admitiu, sem
encarar o tio.
O homem balançou a cabeça negativamente.
Tinha um olhar sisudo.
– Quer moleza? – perguntou. – Ir para casa e
ficar grudado na tevê?
O adolescente não respondeu. Sequer olhou
para o adulto. Dividia-se entre o temor e a frustração.
Mirava a parede quando ouviu o tio falar:
– Sua mãe mandou você aqui para ver se
aprende algo. Não estou falando de instruções sobre
como pintar uma parede ou a maneira correta de
manejar um rolo ou pincel. Falo de aprender a dar
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 225

valor ao esforço. Ao trabalho. Você precisa de bons


exemplos. Posso não ser um gênio, desconhecer
todos esses filmes e músicas estrangeiras que gosta,
mas sou um sujeito trabalhador, honesto e esforçado.
Sou um bom exemplo para ti.
Foi cruzar os braços e se sujou com a tinta do
rolo, fundamentando sua declaração sobre não ser
um gênio. Esperou por uma resposta do até então
quieto sobrinho. E ela veio:
– Não foi por isso que ela me mandou vir aqui
– afirmou Eduardo. – Isso pode ter sido o que ela
disse para você, mas não é a verdade. Estou aqui
porque, na opinião dela, fiz algo errado.
– E por isso precisa de um bom exemplo.
– Por isso preciso ser punido, na opinião dela.
– Está dizendo que não sou um bom exemplo
para você?
– Estou dizendo que estar contigo é minha
punição, na opinião dela.
226 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

Embora carregasse a fama de ser tímido e


calado, o garoto sabia debater quando necessário.
Defendia habilmente seus pontos de vista. O im-
provável era vê-lo expor suas opiniões a alguém de
fora do seu círculo de intimidade.
O homem deixou a vaidade de lado e desistiu de
se colocar como o bom exemplo da história. Mas
também não aceitaria ser “a punição” tão facilmente:
– Vai dizer que não está aprendendo nada aqui?
– Aprendi a não cruzar os braços com um rolo
sujo na mão – declarou Eduardo, apontando a tinta
no corpo do tio.
Este perdeu a paciência. Aceitara receber o
garoto a pedido da irmã. Ansiava tornar a trabalhar.
Descruzou os braços e voltou sua atenção para a pa-
rede.
– Por que está aqui? – questionou – O que você
fez, afinal?
– O que fiz ou o que fiz na opinião de minha
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 227

mãe?
O homem mergulhou o rolo no balde de tinta.
Continuaria o trabalho de onde o havia interrompido.
– Tanto faz, Dudu. Tanto faz. Conte o que
quiser.
Progressivamente diminuía seu interesse pelos
dramas do sobrinho de quatorze anos. Estava can-
sado das histórias de rebeldias contadas pela mãe. Os
desabafos da irmã que fatigavam seus ouvidos. Sem-
pre a mesma ladainha culpando o divórcio e a
ausência do pai. A falta de um modelo masculino na
criação do garoto, que se tornava a cada dia um
adolescente mais estranho e antissocial.
Decidiu que o serviço teria prioridade sobre a
mais nova crise juvenil familiar. Iria parar de
conversar. Fizera o mesmo mais cedo e a tarefa
avançara para ambos.
Mas Eduardo abriu o bico e arruinou o plano:
– Tentei esfaquear alguém – declarou.
228 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

O tio permaneceu congelado de susto por alguns


segundos, com o rolo encostado na parede.
– Como assim, Dudu? Você brigou? Feriu
alguém? – perguntou, tentando aparentar calma.
– Tentei esfaquear alguém, mas só o ninguém se
machucou.
– Pare de besteira e explique direito.
– Ele gritou bastante. Foi engraçado. Saí do
prédio com a faca na mão, berrando que iria matá-lo.
Primeiro só gritou, mas logo viu que eu não iria
parar e aí saiu correndo. Fui atrás, até onde aguentei
correr. Não fui muito longe. Ele sim. Correu até
sumir da minha vista, virando na esquina. Foi lindo!
– Quem era ele? E por que diabos você fez isso?
– Um moleque irritante. Dois ou três anos mais
velho que eu. Aparecia lá na rua de vez em quando e
ficava me ofendendo sem mais nem menos. Ficava
me empurrando e me desafiando a enfrentá-lo. Acho
que é praticante de alguma arte marcial. Se acha o
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 229

bonzão, mas é um babaca.


– E por causa disso tentou enfiar uma faca nele?
Esse motivo? Não acha que foi exagerado?
– Foi lindo! – exclamou Eduardo, esbanjando
satisfação.
– Não tem medo que ele volte para te pegar? Ou
chame alguém para fazer isso?
– Ele nunca mais voltou. Sabe que estava
errado. Que eu tinha razão. Foi legítima defesa da
honra.
– Pare de falar bobagem. Isso não funciona
desse jeito. E você não sabe se ele vai voltar ou não.
– Vai nada. Impus respeito. Funciona assim nos
filmes de faroeste. Só que ao invés de faca usam arma
de fogo.
– A vida não é um filme, moleque. Nem tente
imitá-los.
Eduardo começou a assobiar o tema principal de
“Três Homens em Conflito”, um de seus filmes
230 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

favoritos. Depois simulou uma arma com a mão e


“disparou” contra o tio. Com direito a usar o dedão
como massa de mira e “Pow! Pow! Pow!” saindo de
sua boca.
– Está achando isso tudo engraçado? Seu
maluco! Vai criando problemas. Uma hora eles
estouram em você. Algo sério poderia ter acontecido
com ele ou contigo.
O homem resmungou algo incompreensível e
possivelmente nada elogioso. Depois mergulhou o
rolo na lata de tinta e recomeçou a pintar. Contudo,
parou menos de um minuto depois. Estava in-
comodado. Voltou-se novamente para o sobrinho:
– Por que sua mãe não me contou isso? Achou
que era um fato sem importância? Que eu não
deveria saber? Que não poderia ajudar?
O adolescente, que interrompera sua parte do
serviço havia muito tempo, abriu os braços.
– Deve ter vergonha – sugeriu. – Claro que de-
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 231

testou saber o que aconteceu. Até chorou na minha


frente quando brigou comigo. Foi o vizinho quem
contou pra ela. Tinha assistido ao meu ataque
sentadinho na sua varanda. Fez questão de relatar
que voltei andando pela rua sorridente com a faca na
mão. Foi bem detalhista. Deveria ser pintor de
paisagens. Faria reproduções perfeitas da natureza.
Mas é só um velho fofoqueiro. Disse que meu
comportamento lembrava o de um assassino psi-
copata. É mole?
O mais velho não sabia muito bem o que dizer.
Olhava fixamente o rosto de Eduardo, a ponto de
deixá-lo desconfortável.
– Dudu, prometa que nunca mais fará algo tão
estúpido.
– Acha errado eu reagir?
– Dessa forma desmedida? Sim.
– E como eu deveria fazer?
O homem matutou por um bom tempo. Atra-
232 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

saria o trabalho se refletisse assim depois de cada


pergunta feita pelo sobrinho. Precisava entregar a
casa toda pintada até o final da tarde daquele dia.
– Você mesmo tem que saber o limite – acon-
selhou. – Precisa ser inteligente.
– Essa instrução não é muito específica, tio.
– Eu sei – murmurou o homem, decepcionado
consigo mesmo. – É difícil explicar. Tente fazer com
ele, no máximo, o que ele fez contigo. Nem mais nem
menos.
– Então você apoia a reação no estilo olho por
olho?
– Não!
O tio, sentindo o peso da responsabilidade,
largou o rolo sobre o jornal e andou na direção do
sobrinho. Queria dar bons conselhos. Falar as
palavras certas. Fazer a diferença no comportamento
do adolescente.
– Não existe uma regra. Mas não esfaqueie al-
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 233

guém só porque ele fica te sacaneando.


– É fácil para você falar assim. O problema não
é contigo.
– Posso garantir que nenhum adulto sensato
apoiaria a sua ideia, moleque – irritou-se o homem.
– Quem apoiar é um irresponsável.
– Mas você concorda que ele estava errado?
– Estava errado por te provocar, mas você
também agiu incorretamente. Seu comportamento foi
perigoso e irresponsável. Muito além de uma
briguinha juvenil.
– E o que deveria fazer?
– Não há uma maneira certa de agir. Depende
da situação e de quem são os envolvidos.
– Você não me dá uma resposta precisa, tio.
– Porque isso é caso a caso. Não existe uma
única resposta.
– Então me dê todas. Eu escolho algumas e as
ponho em prática.
234 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

– Está tirando onda com a minha cara? – o


homem perguntou, elevando o tom de voz.
Eduardo abaixou a cabeça e inclinou a aba do
boné ainda mais para baixo, tornando-se im-
penetrável aos olhos do outro. Como um jogador de
pôquer escondendo do adversário suas reações faciais
após uma jogada.
– Se eu não fizesse nada ele continuaria
enchendo meu saco – argumentou.
– Eu sei. Também acho errado não reagir e
deixá-lo se sentir o rei do pedaço, te humilhando.
Pareço incoerente?
O garoto deu de ombros.
– Normal – avaliou. – Você não é o primeiro
adulto tentando me aconselhar.
– E o que os outros disseram?
– Coisas parecidas. Criticam, criticam, criticam,
mas não me dão uma solução precisa. Às vezes,
sugerem coisas estúpidas como me tornar amiguinho
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 235

do peito dos idiotas que me sacaneiam. Em alguns


casos nos fizeram até apertar as mãos na frente de
todo mundo. Coisa ridícula.
– Mas fazer as pazes é sempre uma boa saída.
– E quase sempre irreal. E falsa – completou o
garoto. – Boa para quem não está envolvido, mas
precisa manter as aparências com uma resolução
superficial. Principalmente se o salário que a escola
te paga depende disso. Ou o silêncio dos vizinhos
sobre o ocorrido.
O tio, admirado pela maneira franca e sóbria
como o sobrinho comentava o assunto, apoiou seu
braço numa parte ainda não pintada da parede. Pes-
cava algo da memória.
– Você falou no plural: “idiotas que me
provocam”. São muitos?
– Alguns. Principalmente quando estão em
turminha. E quase todos, inclusive adultos, se metem
na minha vida de uma forma ou de outra, ao invés de
236 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

cuidar da própria. Sempre reagindo com cara de


descontentamento para mim. Só minha cachorra
nunca me olhou com reprovação.
– Quando as pessoas fazem essas caras?
– Quando estou sendo diferente deles.
– Diferente como? Sendo autêntico?
– É, por aí. Ou fazendo alguma maluquice
incompreensível. Reconheço que faço muitas.
O tio sorriu.
– E por que não deixa de fazê-las?
Eduardo pensou por alguns segundos antes de
responder:
– Não sei. Simplesmente as faço.
– O episódio da faca, por exemplo. Como surgiu
na sua mente?
– Sei lá, tio.
– Fala! Você premeditou dias antes? Ou viu o
moleque passando na rua, sentiu uma fúria
inexplicável, pegou a faca e correu atrás dele?
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 237

Eduardo cerrou os olhos. Depois balançou a


cabeça de um lado para o outro enquanto olhava a
parte já pintada da parede.
– É estranho! – exclamou.
– O quê?
– Agora, pensando no assunto, tentando me
lembrar, não parece que peguei a faca com a intenção
de atacá-lo. Na minha memória sinto um
divertimento, como se quisesse apenas dar um susto.
Desço as escadas do prédio com essa sensação. Vejo
ele gritando assustado e faço uma cara de mau, mas
sem sentir a raiva que aparento. Depois corro atrás
dele e em nenhum momento estou decidido a
esfaqueá-lo.
– Então não queria feri-lo?
– Não posso afirmar. É confuso. Sabe quando
ouve uma música que achava chata no passado, mas
agora acha legal? Ou o contrário? Novos signifi-
cados? – acrescentou. – Esquece. Não sei explicar.
238 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

Nem tenho certeza do que estou falando.


– Acho que entendi. Então não está mais
disposto a repetir o que fez? Nunca mais vai
esfaquear alguém?
– E por acaso esfaqueei alguém? Tem algum
sujeito andando por aí com uma faca minha enfiada
nas costas? – ironizou Eduardo.
– Claro que não. Nem a comida você esfaqueia.
Sei que é a mamãe que corta o seu bifinho no almoço
– zombou o tio, embarcando na brincadeira.
Viu o sobrinho rir. Pensou ter encontrado no
humor a porta de entrada, a chance de cativá-lo.
– Estou falando sério. Prometa que nunca fará
uma tolice dessas.
– Essa não! Vai começar com o discurso chato
de novo? – reclamou Eduardo. – Não posso prometer
isso. E se um dia minha vida depender de esfaquear
alguém?
– Você diz em caso de legítima defesa?
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 239

– Não necessariamente. Posso me tornar um


assassino profissional. Meus rendimentos depende-
riam das facadas que daria...
– Pare de se fazer de idiota – interrompeu o
homem. – Nossa! Como é difícil conversar sério
contigo. Você entendeu. Prometa que não irá mais
reagir dessa maneira. Mesmo se for com a intenção
de apenas dar um susto em alguém. É uma irrespon-
sabilidade.
O garoto juntou as mãos como se fosse rezar e
olhou para cima, num claro sinal de impaciência.
– Por quê? Por quê? – clamou. – Por que fica
tão preocupado em exigir uma resposta precisa de
mim se não é capaz de fazer o mesmo?
Conformando-se com a falta de resultados da
conversa, o tio deu as costas ao sobrinho.
– Moleque, você é chato pra caralho!
– desabafou, rumando na direção da lata de tinta.
Eduardo assustou-se num primeiro momento.
240 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

Fez careta e franziu a testa. Logo depois, no entanto,


começou a rir, surpreso com a atitude extremamente
imatura, mas totalmente espontânea do homem. Cem
por cento fora dos manuais de conduta da relação en-
tre um adulto e um adolescente e, por isso mesmo, do
seu apreço.
– Ei, tio, não se sinta mal – disse o adolescente.
– Sei qual é sua intenção com esses conselhos e ser-
mões. Tenho consciência de que faz para me ajudar.
Eu agradeço. De verdade. Ouço tudo o que me diz.
O homem voltou-se novamente para ele.
– E surte algum efeito em você? – inquiriu.
Eduardo abriu os braços, sinalizando dúvida.
– Sei lá. Talvez. É difícil saber.
– É isso? Essa é a sua resposta oficial? A
derradeira? A definitiva? – insistiu o tio.
– Por quê? O que há de errado com ela?
– preocupou-se o garoto.
– Ela não é precisa.
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 241

Eduardo abriu um sorriso. Até levantou um


pouco a aba do boné. Era perfeitamente possível en-
xergar seus olhos agora. E eles brilhavam.
– E quem disse que busco ser preciso? – per-
guntou. – Ser exato? Correto? Perfeitinho? Deter-
minado? Previsível? Não quero isso para mim, tio.
Não quero mesmo. Por mais que tentem me empur-
rar que devo ser assim.
– E o que você quer ser então?
– Exatamente o que já sou.
– E o que é?
O garoto caminhou empolgado na direção do
adulto. Quando estava próximo e ele virou-se para a
esquerda, abaixou-se, apanhou a lata de tinta num rá-
pido movimento e, sem nenhuma hesitação, arremes-
sou o seu conteúdo sobre o tio.
– Eu sou o caos! – gritou Eduardo Leone. – O
Caos!
Naquele sábado o brasileiro Gustavo Borges
242 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

conquistou a medalha de prata nos 200 metros estilo


livre da natação. O chinês Wang Yifu quebrou o
recorde olímpico na fase de classificação da prova de
tiro com pistola de ar 10 metros, mas perdeu o ouro
na final para o italiano Roberto Di Donna. Aleksandr
Beketov, da Rússia, ganhou a primeira de suas duas
medalhas na esgrima com espada. No entanto, para
muitos que estavam nas redondezas daquela pacata
vila, o grande atleta do dia foi o esforçado adoles-
cente gordinho, correndo pelas ruas, fugindo de seu
perseguidor furioso coberto de tinta azul.
E foram passear em Buenos Aires

Pseudônimo: João Renato Marino


João Ronaldo dos Santos Matheus
São Paulo – SP

Quando a dona Fátima chegou do mercado, foi


direto cuidar das roupas do marido. Homem de
origem humilde, o seu Manuel herdara dos pais o
hábito de devolver ao armário as camisas pouco sujas
para economizar a lavagem, a lavanda e o tecido.
Então, como ela sempre fazia, avaliou cada uma:
“Esta aqui, o Manolo já vestiu, esta não”. Reconhecia
as usadas pelo amassado e o cheiro. O odor não a
incomodava porque em cinquenta e oito anos juntos
se habituara tanto ao marido que mesmo o seu hálito
matinal e o alcoólico após o vinho lhe despertavam
afeto. Daí, separou as sujas sem ele perceber e saiu
do quarto.
Antes, colocava todas na máquina de lavar, mas
ultimamente preferia lavá-las à mão: esfregou os
244 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

colarinhos e a região das axilas, tirou os resíduos


acumulados no bolso e deixou-as de molho. Quando
enxaguou, sentiu vontade de chorar ao ver a água
descer pelo ralo do tanque levando embora o cheiro
do marido. Torceu-as e pendurou no varal, voltando
ao quarto antes de ele acordar.
De um tempo para cá, o Manolo passara a
dormir muito e quase não falava. Logo ele que
costumava cantar no chuveiro, não parava quieto e,
ao se aposentar, foi dirigir um táxi, por não conseguir
sossegar em casa. Naquela época, com os filhos
crescidos e morando em outras cidades, passaram a
viver folgados ao somar a renda do táxi às
aposentadorias de ambos. Assim, fizeram pequenas
viagens e depois foram conhecer Buenos Aires, numa
nova lua de mel (desta vez sem sexo).
Em frente ao Teatro Colón, beijaram-se como
nos filmes. Tiraram fotos, adoraram a carne e o vinho
das cantinas, compraram cachecóis e se sentaram nas
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 245

praças comendo alfajores. Após assistirem a um show


de tango, tão encantada estava a dona Fátima que a
sua meia ascendência italiana achou a cidade pare-
cida com Roma (embora não conhecesse a Europa). O
seu Manoel olhava a mulher feliz, esquecia-se do frio
e sorria feliz também.
O problema começou no dia em que notaram o
caroço no pescoço dele. Foram ao hospital, e os
exames confirmaram o temor de todo velho: câncer.
Câncer na garganta, e o calombo era apenas a parte
externa. Por dentro, a faringe e parte da laringe já
estavam tomadas pelo tumor. “Infelizmente, alguns
cânceres de garganta só apresentam sintomas ao
atingirem um estágio muito avançado”, disse o jovem
médico metido a professor, enquanto apontava na
radiografia e no ultrassom as “infiltrações tumorais”,
como se eles entendessem alguma coisa daquilo.
No caminho de volta para casa, embora calas-
sem sobre o assunto, temiam que no próximo Natal
246 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

não estariam juntos na ceia ao lado da família e do


presépio sob a árvore iluminada.
Foi nesta noite que ela começou a se irritar com
os vizinhos. Primeiro, o da frente, que, ao encontrá-
los, cabisbaixos sob o peso do diagnóstico, cum-
primentou-os sorridente na porta: “Tudo bem?”, falou
umas bobagens e se despediu alegre: “Até logo”. Mas
como estaria tudo bem com o Manolo condenado à
morte? E por que tanta felicidade?
Depois, foi o da casa ao lado que, justo naquela
noite em que ambos evitavam se olhar de tão
acabrunhados, deu uma festa. Então, o ruído de
música e risadas atravessando as paredes espancava
o silencio no quarto, parecendo debochar da apre-
ensão deles. “Como as pessoas são egoístas”, ela
pensou.
Quando o médico disse ter esperança de
reverter o tumor com radioterapia, a dona Fátima
rezou e acendeu velas para ajudar a radiação, mas a
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 247

cada sessão o caroço crescia e o marido piorava.


Depois, iniciaram a quimioterapia e ela manteve as
rezas e velas, mas os efeitos colaterais derrubaram o
seu Manuel na cama o dia inteiro, só se levantando
para tomar os comprimidos que a mulher lhe dava. E
o caroço crescia desprezando velas, rezas, raios e
remédios.
Os vizinhos primeiro estranharam não verem
mais o táxi parado em frente à casa na hora do
almoço. Quando perguntaram, a dona Fátima deu
uma desculpa. Passado um tempo, vendo-a voltar do
mercado sempre sozinha e carregando pesadas
sacolas de compras nas mãos, desconfiaram. Mas ela
alegou que o marido estava gripado. Depois, os
amigos do boteco, ao darem falta do parceiro,
bateram na casa, indagaram com “a patroa” e
duvidaram da resposta. E, enfim, uma fofoqueira viu
pela porta entreaberta o seu Manuel desabado no
sofá da sala, muito magro, abatido e cheio de ata-
248 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

duras no pescoço, e os comentários tomaram a rua, o


bairro, a cidade, o estado e o país: tiro, abscesso,
caxumba, fratura do pescoço, câncer, bactéria car-
nívora, fístula...
E começaram as perguntas: “Como está o seu
Manuel, dona Fátima?” Ao que ela respondia sempre
sorrindo: “Está melhorzinho, a gripe já passou, a
garganta é que continua inflamada”. Mas, por dentro,
pensava: “Corja de urubus, vão agourar a avó de vocês,
abelhudos”. E assim procedia por sentir o sadismo na
pergunta, a curiosidade mórbida, a ânsia de ouvi-la
dizer que o marido estava mal. Parecia que abririam
um champanhe se ela confirmasse o estado grave do
Manolo.
Era como se a quadrilha de corvos tivesse pressa
de encerrar tantos anos de convívio numa conversa
banal de esquina:
– “Lembra do seu Manuel?”
– “Lembro, por quê?”
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 249

– “Morreu!”
– “É? Puxa vida, ele estava meio sumido mesmo”.
E logo falariam de mulher, futebol, crime ou
celular como se cinquenta e oito anos juntos não
importassem, como se ela devesse aceitar que a
morte de um velho fosse previsível, ou como se o
Manolo nem mesmo precisasse ter existido.
Então, decidiu realmente mentir sobre os fatos e
o desfecho. E a todos que fizessem perguntas
enxeridas sobre a saúde do marido, desde já e mesmo
após a sua morte, responderia sempre que ele estava
bem melhor, enquanto que, intimamente, se vingaria
rindo de raiva deles. Este seria o seu revide à funérea
pressa dos vizinhos coveiros.
Assim fez, e, quando o levou para o hospital já
nas últimas, providenciou que fosse num táxi de
noite, a fim de que ninguém visse ambulância na por-
ta da casa.
Não contou da internação, da morte, do velório,
250 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

do enterro nem da missa e ficou morando sozinha.


Aos domingos, comprava o jornal e espalhava no
sofá da sala, deixando o caderno de esportes no
banheiro, como o marido fazia. E continuou a
cozinhar para os dois, jogando fora o prato dele
(aliás, o Manolo sempre comeu pouco). Passava
lavanda e desodorante nas camisas lavadas só para
lavá-las novamente, pois assim sentia até o cheiro de
suor do marido nelas. Lavava também cuecas e meias
limpas, e a cada quinzena levava uma calça social à
tinturaria e engraxava um par de sapatos. Comprou-
lhe cinto e chinelos novos, sabão de barba e escova
de dentes, e também continuou a levar para casa o
cigarro dele. Então, após jantarem juntos, toda noite
acendia um só para vê-lo queimar no cinzeiro,
enquanto olhavam as fotos desde o casamento e riam
muito ao se lembrar dele tentando falar espanhol em
Buenos Aires.
E disse a todos que o marido estava tão melhor
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 251

que voltara a tomar vinho no almoço.


Quando os vizinhos descobriram a verdade,
passaram a olhá-la como se fosse louca. Ela percebeu,
mas pensou: “Danem-se todos, eu já sou bem velha e
isto não vai durar muito”.
Assim o seu Manuel permaneceu ainda alguns
anos morando com a dona Fátima na casinha do
bairro, até que, numa noite de lua nova, cheia de
sonhos e saudades, ele a levou a passear para sempre
em Buenos Aires.
O saber da loucura

Edy Alyson Aparecido Ribeiro


Maracaí – SP

Um casal de loucos, por ironia do destino ou


instinto animal, teve uma filha; e talvez sem saber o
porquê deram-lhe o nome de Cleópatra. Apesar
disso, a criança foi bem cuidada por sua mãe débil,
não se sabe como, mas todos os dias aquele pequeno
ser era alimentado corretamente por sua progenitora.
Os outros loucos que ali viviam ficaram espantados
com o que viam, alguns pegavam troncos de árvores
e personificavam uma criança e delas se tornavam
pais, outros fingiam ser um bebê. O local onde essa
comunidade de loucos vivia era a floresta, próximo às
fazendas de soja no norte do país.
Mesmo assim, aquela criança cresceu e por sua
inocência se divertia com os demais loucos, afinal,
para ela todos eram os seus amigos de infância. Os
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 253

loucos, de forma misteriosa, a tratavam como rainha,


como deusa. De fato, aquela pequena Cleópatra
gostava do modo como era reverenciada. Na verdade,
para eles, a menina era o ser mais rígido e forte
daquele local e tinham nela a esperança de proteção.
O pastor Marcos Miranda, em um dos seus
trabalhos missionários, conheceu aquele povo e
sempre levava comida aos loucos. E, enquanto
distribuía o alimento, também lia a Bíblia e falava
sobre Jesus Cristo; apesar disso, nunca tentou tirar
ninguém dali, pois sabia que eles se sentiam felizes
naquele lugar. A menina, contudo, nunca revelou ao
pastor que era normal, sempre fingia, pois ainda
tinha medo de ser separada de seus pais. Cleópatra
possuía os seus 16 anos quando Miranda apareceu.
Mesmo não tendo contado com o mundo, o
pecado de Adão e Eva a fez ter consciência para tapar
o seu belo e curvilíneo corpo moreno. Um vestido
longo que ganhara de presente do reverendo Miran-
254 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

da era usado por ela como proteção, antes, porém,


usava cascas de frutas ou folhas para tampar suas
partes íntimas. Sendo assim, seus cabelos eram
negros e lisos, porém, pela falta da vaidade, possuía-
os desarrumados. Seu cheiro era natural do mato,
contudo, quando se banhava no rio, era possível
sentir o frescor da água nascente. A rainha dos
loucos achava normal o mundo de seus pais, ali a
imaginação era mais importante do que a sabedoria.
Não era necessário haver nenhuma universidade ou
livros ali, notar-se-ia a presença de pessoas que se
autodenominavam pilotos de avião, médico, advo-
gado, Napoleão Bonaparte, Pedro Álvares Cabral,
Emílio Garrastazu Médici, Joana D’Arc e, de modo
curioso, o nome do homem que descobriu as
primeiras jazidas de ouro em Minas Gerais no ano de
1693, Antônio Rodrigues Arzão.
Um dia, aquele local foi atacado por pessoas que
se afirmavam normais. Os intrusos habitavam ali ao
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 255

lado, na fazenda de Moacyr Abba, um homem com 60


anos de idade, pele clara e descendência judaica, de
estatura alta e proprietário da maior produção de
soja daquela região. Vários homens e mulheres com
seus intelectos apurados e visão de mundo baseada
no lucro queriam derrubar as árvores dali e usar o
terreno como pastagem de animais. Os loucos, ao se
verem em perigo devido ao ataque, ficaram medro-
sos, correram e se esconderam no meio da floresta.
Apenas o débil Napoleão e a jovem Cleópatra ficaram
esperando pelos invasores. O fazendeiro, que liderava
o ataque montado sobre o seu cavalo da raça Quarto
de Milha, cuja pelagem era marrom, vendo que
restaram duas pessoas ali, pediu aos seus subor-
dinados que voltassem e o deixasse sozinho com
eles. A jovem mulher, portanto, quando viu que
Moacyr se aproximava, logo tentou dialogar:
– Bom dia!
– Como você sabe se é dia ou não? Sua loucura
256 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

não lhe permite isso! – replicou, em tom provocador,


Moacyr.
– Quem disse que sou louca? Quem lhe falou
que aqui só existem pessoas com defeito cerebral?
O fazendeiro ficou confuso, pois uma pessoa
louca não iniciaria um diálogo e o indagaria daquela
maneira, por isso, perguntou:
– Quem é você e qual o motivo de estar aqui?
Para quem você trabalha? Quem lhe enviou aqui?
– Sou Cleópatra...
Moacyr a interrompeu e começou a rir, afirmou
que se ela era Cleópatra ele seria Júlio César e
olhando para a mulher disse:
– Vocês são loucos! Saiam da minha frente!
– Posso ter esse nome engraçado, mas sei que
não sou a Cleópatra. Minha mãe foi quem me
intitulou com esse nome, você pode não acreditar,
mas nasci aqui. Sei que sou diferente deles, contudo,
não posso abandoná-los.
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 257

O fazendeiro teve outro espanto “Como?!”


pensava incessantemente. Ficou com desejo de levar
aquela jovem dali de lhe dar a oportunidade que ali
ela nunca teria. Ele sabia que seria difícil, mas tentou:
– Cleópatra, posso lhe presentear com as
oportunidades do mundo, você pode estudar, casar-se
e formar a sua família longe daqui. Veja! – Abba
desceu do seu cavalo e se aproximou da jovem,
pegou os jornais que estavam em sua mochila e, na
tentativa de mostrar as maravilhas do mundo sem
notar qual era a matéria que estava na capa, disse:
– Repare a primeira página...
– Por que aquele homem está chorando?
– perguntou Cleópatra quando viu a imagem de um
homem sobre o caixão do filho que fora morto por
seu tio, irmão do próprio pai.
– Bem... Sabe como é, né?! O mundo lá fora
também tem as suas iniquidades. Nesta foto o
homem chora pela morte do seu filho – e, perce-
258 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

bendo o espanto da jovem, tentou mudar o foco:


– Mas aqui...
– Por que a criança morreu? – a líder dos loucos
o interrompeu.
– O tio da criança a matou, devido ela ter
quebrado o som do carro dele. Ela morreu por tanto
apanhar.
– Nossa! – Cleópatra se espantou e em seus
olhos surgiram as lágrimas.
– Calma, não é para tanto! Não precisa chorar!
– disse Moacyr tentando apaziguar a situação.
– Como você consegue ficar tranquilo sabendo
que uma criança acabou de morrer? – perguntou a
moça de modo desesperado.
– Isso ocorre todos os dias! É normal! – disse o
fazendeiro de forma natural.
– Normal é morrer, saber da morte é crueldade!
– afirmou a jovem.
– Então o mundo ficará pior mais um pouqui-
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 259

nho – afirmou Abba de forma bem humorada quando


previa qual seria a notícia da página seguinte.
– Quem são esses homens vestidos iguais e com
o rosto peludo, claro que alguns menos, outros mais?
– indagou a filha dos loucos.
– São os administradores do país. Eles deveriam
zelar por nós e procuram a melhor forma de nos con-
duzir ao bem-estar maior.
– Que bom que existem pessoas assim no
mundo!
– Contudo, essa imagem mostra pessoas que
desviaram o dinheiro público que era destinado à
construção de creches, escolas, quadras esportivas,
enfim, locais para as crianças brincarem e estudarem.
Por isso, temos lugares em nosso país em que as
mulheres não têm onde deixar o filho e, por isso... As
ruas cuidam deles. Em alguns casos, tornando-os
bandidos e responsáveis por várias mortes. Desculpe-
me por mais uma notícia trágica, vou virar a página.
260 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

A imagem que apareceu foi o efeito da explosão


das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, a
matéria do Jornal apresentava um especial dos 68
anos em que a bomba fora lançada. A jovem ficou
atônita com a foto, achou linda, ficou encantada com
as nuvens em forma de círculo e o caminho de fogo
ao centro dele. De fato, era imagem mais linda que os
seus olhos presenciaram e, após degustar cada
detalhe daquela obra de arte, suspirou:
– Que coisa mais linda! – e, olhando para
Moacyr, continuou: – Essa imagem... Como?! O que é
isso? Na verdade, como se chama? Seria a aparição
de Deus a Moisés? – Cleópatra sabia sobre a história
de Moisés devido um dia ter prestado atenção em
uma das leituras do reverendo Marcos Miranda.
Moacyr, contudo, mudou o seu semblante, ficou
triste e meio sem jeito com as palavras, queria men-
tir, mas sua consciência não permitia, não encontrou
formas diretas de dizer a verdade e, por isso, come-
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 261

çou a falar aquilo que lhe vinha à mente:


– O mundo estava doente! O expansionismo
territorial virou obrigação à Alemanha de Hitler, à
Itália de Mussolini e ao Japão do imperador Hiroíto.
Ninguém respeitava a Liga das Nações, órgão criado
com a finalidade de conter conflitos. Uma grande
crise econômica emergiu naquele período devido aos
efeitos causados em guerras anteriores. Em 1931, o
Japão invadiu a Manchúria pertencente à China. A
Itália, desse modo, ocupou a Etiópia em 1935 e, em
1939, a Albânia. Na Espanha, ocorreu a Guerra Civil
Espanhola. Governos ditatoriais surgem – Moacyr
fez uma pausa e olhou para o céu, em seguida
segurou nas mãos de Cleópatra e prosseguiu ao vê-la
atenta às suas descrições. – Hitler tomou várias
medidas que iam contra o Tratado de Versalhes.
Talvez você não saiba, mas Tratado é um acordo
entre países. Sendo assim, o Führer, modo como os
alemães o chamavam, em 1939 invadiu a
262 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

Tchecoslováquia e, nesse mesmo ano, assinou o


Pacto Germânico-Soviético de “não agressão” com a
URSS, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E
agora eu chego onde eu queria ter chegado, em 01 de
setembro de 1939, os alemães invadem a Polônia. O
estopim da guerra, pois Inglaterra e França
declararam guerra à Alemanha.
– Meu Deus, quanta guerra! Que mundo é esse
em que você vive? – perguntou apavorada a jovem
mulher.
– Você ainda não terminou de ouvir tudo. Uma
atitude mudou o rumo de tudo. Vou lhe poupar tanta
história, entretanto, saiba que um dia o Japão atacou
a base estadunidense de Pearl Harbor em 1941, isso
promoveu a entrada dos Estados Unidos da América,
EUA, na guerra – e dando um sorriso melancólico
Moacyr prosseguiu: – Ironia ou não, mesmo com a
derrota da Alemanha e a morte de Hitler, os EUA, no
dia 6 de agosto de 1945, jogaram uma bomba nuclear
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 263

nas cidades de Hiroshima e, no dia 9 de agosto do


mesmo ano, em Nagasaki, ambas japonesas – o
fazendeiro olhou para Cleópatra e, com um
sentimento agudo, disse ao pegar o jornal e lhe
apontar a foto: – Isso aqui é imagem da explosão da
bomba que matou mais de 140 mil pessoas e, ainda,
causou várias doenças devido ao efeito da radiação
liberada.
A jovem não se conteve e começou a chorar
como nunca, afinal, nunca ouvira tantas histórias
sobre a morte em um dia. O louco Napoleão, que
estava ao seu lado a todo tempo, correu amedrontado
para dentro da floresta. Moacyr preferiu manter o
silêncio, afinal ele estava transtornado, parecia ter
tomado um choque emocional, uma epifania. A líder
dos loucos tomou o jornal do fazendeiro e se sentou.
Ficou olhando por vários minutos a imagem que
parecia vir do céu, contudo, que teve maldade ex-
pressa do mesmo modo que o inferno. Cleópatra
264 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

sempre sonhou em sair dali, queria conhecer os lu-


gares que o reverendo Miranda lera na Bíblia.
Contudo, sua pupila retraiu, ficou com raiva, olhou
para Moacyr e disse:
– Por que você veio aqui?
O fazendeiro se assustou com a pergunta, mas,
como não conseguia mentir àquela jovem, respondeu
de forma calma e pausada:
– Vim, primeiramente, para assustá-los e, caso
tivessem alguma reação, chamaria o meu pessoal
para... – fez uma pausa e, ao perceber o que ele
estava prestes a fazer, caiu em si e automaticamente
as suas mãos começaram a tremer, seus olhos deram
boas-vindas às lágrimas, seu coração palpitava de
forma extrema.
A musa da loucura sentiu a sua cólera se
acalmar, logo, levantou-se rapidamente e foi acudir
Abba. De fato, ela sabia o que ele tinha em mente,
mas preferiu ser anônima ao conhecimento.
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 265

– Por favor! – disse o fazendeiro à moça com


um tom melancólico, porém desesperado.
– Desculpe-me... – pediu, enquanto colocava as suas
mãos sobre o rosto delicado de Cleópatra. – Estava
querendo invadir as suas terras e tomá-las de vocês
e...
A jovem o interrompeu perguntando:
– Você queria fazer o mesmo que esse tal Hitler
fez? Do mesmo modo como esse Japão filho de não
sei quem aí, o qual possuía como objetivo invadir as
terras da... Mulher chamada Chin... Ou sei lá como se
diz... Talvez, China? Você queria nos fazer sofrer?
Moacyr ficou ainda mais triste com essas
perguntas. Pois, mesmo Cleópatra não sabendo ao
certo qual eram os países que estiveram em conflito
na Segunda Grande Guerra Mundial, sua descrição
foi profunda, pois os povos chineses, assim como
todos os cidadãos que foram obrigados a lutar pelo
seu país, sofreram humilhações, mortes, estupros. E
266 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

quando a rainha da loucura apresentou a China como


mulher o fez sofrer ainda mais, pois o homem
possuía uma filha com traços faciais semelhantes aos
chineses. Não se sabe o motivo, mas ele a viu como
um milagre, como uma sobrevivente da guerra. Suas
lágrimas aumentaram e seu choro era ouvido à longa
distância. Aos poucos, os loucos que correram para
dentro daquela floresta começaram a sair.
O fazendeiro precisou se sentar, contudo, sentiu
que alguém o abraçava e ao olhar viu o débil
Napoleão, em seguida os mais de quarenta membros
daquela comunidade envolveram Abba num caloroso
abraço coletivo. Tal atitude o deixou sem nenhuma
reação, naqueles instantes ele se sentiu amado, na
verdade, pensou estar no céu. Dessa forma,
conseguiu visualizar Cleópatra e em seus olhos ele
percebeu o sabor da piedade. O fazendeiro se dirigiu
até a jovem e, com a voz rouca de tanto chorar, disse:
– Confesso que eu teria uma péssima atitude e
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 267

que queria roubar as suas terras e fazê-las minhas. E


os expulsaria daqui e os deixaria sem lugar para ficar.
Entretanto, hoje percebi que não é você quem habita
num mundo recheado de loucuras, mas sim eu. Você
é um milagre tanto quanto qualquer um que aqui
está. Vocês vivem e eu, contudo, existo. Cada dia
aqui é único, cada pessoa tem um mundo diferente e
faz dele o seu paraíso – Moacyr fez uma pausa, deu
uma risada irônica e prosseguiu: – Mas no mundo em
que eu sou apenas um ser existente as pessoas
sofrem, cada um quer ser mais rico do que o outro.
Crianças pedem comida, empresários pedem
petróleo. Sabe, Cleópatra, muitos achariam graça
desse jovem Napoleão – e apontou para o louco.
– Mas eu o admiro, pois de suas mãos nunca saíram
uma só gota de sangue. Assim também admiro aquele
presidente Médici – e apenas moveu os seus olhos na
direção do débil. – Pois nunca precisou torturar
ninguém para poder governar o seu país.
268 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

A jovem estava atenta às palavras do fazendeiro,


apesar de nunca ter conhecido as verdadeiras
personalidades dos donos dos nomes que Moacyr
dizia, ficava ainda mais contente com os membros da
sua comunidade, pois via neles a inocência descrita.
Para ela, os verdadeiros donos dos nomes habitavam
ali, junto dela. Seu pensamento foi interrompido
quando o fazendeiro perguntou:
– Quero lhe fazer um pedido, posso?
– Claro! – respondeu a jovem mulher.
– Quero ser louco como vocês, pois hoje eu
percebi que a maior loucura está em se achar normal.
Por isso, quero vir morar aqui. Quero ser membro
desse grupo de loucos e não continuar fazendo parte
dos males da loucura humana. Você me aceita no
grupo? Posso vir morar aqui, ou melhor, querem
morar em minha casa? Lá vocês terão comida, roupa
lavada e...
Cleópatra o interrompeu novamente e disse:
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– Nós somos felizes aqui. Cada um possui na


floresta parte do seu mundo. Comemos o que a
natureza nos manda ou o que o pastor Miranda nos
traz. Tirar-nos daqui é nos colocar nesse mundo em
que você me mostrou. Por acaso, você não disse que
está farto desse mundo tão desigual em que vive? – e,
estendendo a mão ao fazendeiro, continuou: – Aceito
você aqui, mas não irei contigo. Quer ter a paz, o
sossego, a tranquilidade que segundo você nós
temos? Então venha viver como vivemos e saia dos
seus valores, deixe sua casa, sua roupa lavada e
venha!
Moacyr titubeou, apesar da experiência que
viveu ali, não desejava abandonar os seus valores,
sua fazenda, sua riqueza. Mesmo sentindo a melhor
sensação do mundo, mesmo se sentindo amado,
apesar de ter percebido que o mundo está doente, o
fazendeiro preferiu voltar para sua existência
humana. Era difícil para ele perder seus bens, o amor
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ao dinheiro era grande. Desse modo, selou o seu


cavalo, se despediu de todos que ali habitavam e
prometeu que compraria aquelas terras para que
ninguém pudesse perturbá-los, disse ainda que
sempre que tivesse tempo, isto é, quando não fosse
trabalhar voltaria para passar bons momentos e
sentir a paz que ele sentiu. Contudo, nunca mais
voltou do mundo dos normais.
No velório

Pseudônimo: Luís Fernando


Mauro Martiniano de Oliveira
São Paulo – SP

As duas comadres vestiram-se com os trajes


tradicionais de dias de lutos, a fim de irem ao funeral
do compadre Dito, que estava sendo velado no
velório municipal. Colocaram aquelas roupas pretas
típicas desses dias; maquiaram-se; apossaram-se de
suas inseparáveis bolsas contendo em seus interiores
aqueles kits diversos; deram risadas de algumas
passagens na vida do falecido compadre..., mas
quando se lembravam do “evento” para o qual se
preparavam para ir, ensaiavam um ar de tristeza e até
mesmo disfarçavam um pequeno chorinho.
Pelo caminho, as comadres iam tecendo alguns
comentários sobre o finado compadre:
– Éééé... comadre Rosinha,... compadre Dito foi-
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se. Homem bom toda vida, não é mesmo?... – dizia


Luzia.
– É verdade. Homem igual não se vê mais por aí
não! – respondeu Rosinha. – Tantos anos casados
com a comadre Lázara. Sabe, Luzia, não sou de fazer
fofoca, e você sabe muito bem disso, mas acho que o
compadre agora vai poder descansar. Coitado, deve
ter sofrido muito com o gênio da Lázara.
– É mesmo, né...?! – concordou Luzia. – Apesar
de que não via o compadre há vários meses.
Ultimamente estava procurando evitar ir até lá.
Parece que a comadre Lázara não fazia muita questão
de receber visitas em sua casa. Cada vez que ia visitá-
los... hum!... Ela fazia uma cara...
– Eu também! – falou Rosinha. – Você acredita
que um dia desses fui fazer uma visitinha pra eles, e a
comadre Lázara sequer saiu do quarto pra me
cumprimentar...?
– Não acredito! Mas que falta de consideração!
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– disse Luzia numa expressão de grande surpresa.


– Pois pode acreditar! Nesse dia, o compadre é
que ficou me fazendo “sala”. Até perguntei pela
comadre, e ele me falou, sem muito convencimento,
que a comadre não estava muito boa e por isso estava
deitada. Mas não me deixou vê-la. Disse que ela
estava com muita dor de cabeça e em razão disso
encontrava-se cochilando um bocadinho. Aí o Dito
me serviu um cafezinho, e eu meio que sem graça,
tomei e, mais do que depressa, me despedi desejando
melhoras à Lázara e fui embora. Situação chata
aquela. Também... não voltei mais lá!
– Deus me livre, comadre, me acontecer uma
coisa dessas! – falou Luzia. – Que situação
desagradável... hum!... Agora é que não vou mais lá
mesmo!
E assim, entre umas e outras lembrancinhas e
considerações sobre a vida do compadre Dito e sua
mulher Lázara, as duas comadres chegam ao velório.
274 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

O velório municipal nesse dia estava repleto de


pessoas, tendo em vista as salas destinadas a velar os
mortos estarem todas ocupadas por algum féretro,
fazendo com que fosse muito grande o número de
parentes e amigos enlutados que ali estavam para
prestarem as últimas homenagens aos seus entes
queridos.
Assim que adentraram naquele velório, Luzia e
Rosinha, em sinal de reverência às pessoas enlutadas
e à própria memória do falecido, inclinaram suas
frontes e dirigiram-se a uma daquelas salas
reservadas para o cortejo fúnebre.
Ao se aproximarem do ataúde que se encon-
trava centralizado no interior da sala, foram logo
fazendo o sinal da Cruz e rezaram baixinho uma
Ave-Maria e um Padre-Nosso para a alma do finado,
e, ainda com as cabeças abaixadas, após, é claro, de
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 275

algumas gotas de lágrimas teatrais, começaram a


cochichar entre elas:
– Olha só, comadre... – cochichou Luzia.
– Como estava acabado o compadre Dito. Se eu o
visse pelas ruas, não o reconheceria.
– É mesmo, comadre! – respondeu Rosinha.
– Tão vaidoso que era o compadre..., e agora..., triste
vê-lo nesse estado. Que pena... Pelo jeito, devia ter
perdido até o gosto de viver. Os cabelos dele estavam
sempre muito bem aparados e pintados... É bem
verdade que as tintas que usava nos cabelos não
eram das melhores, mas estavam sempre com uma
cor moderna e bonita..., mas agora..., puxa! Estão tão
branquinhos...
E Luzia, indignada, comentou:
– Éééé... Rosinha, não queria falar, e você
também sabe que não gosto dessas coisas, mas acho
que o compadre deve ter sofrido um bocado nesses
últimos tempos..., pra não falar a vida toda, e
276 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

ninguém me tira da cabeça que foi em virtude do


gênio da comadre Lázara. Só pode ter morrido de
desgosto!
– É mesmo, coitadinho. Mas agora ele vai poder
descansar em paz. – respondeu Rosinha.
E assim, entre uns e outros cochichos, Luzia
continuou:
– Que estranho! Compadre Dito nunca gostou
de usar bigode. E engraçado, ele também não tinha
estas “entradas” tão salientes na testa. Ele sempre se
orgulhou de sua cabeleira, apesar da idade. Olha só
que dó..., estava ficando bem calvo.
Aí Rosinha respondeu:
– O Dito devia estar perdendo os cabelos de
tanto ouvir a comadre Lázara falar e reclamar dos
outros.
– Você tem razão, Rosinha! – esbravejou baixi-
nho Luzia. – Eu não queria crer nisso. Mas agora
tenho certeza que a comadre Lázara não gostava
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 277

mesmo dele. Tanto é que não veio nem se despedir


do finado. Não a vejo neste velório!
– É mesmo, comadre! – pasmou Rosinha. – Que
coisa!... Que desfeita e falta de respeito para com o
compadre Dito. Também não estou vendo nenhum
de seus filhos!... Pobre coitado... Quanto esse homem
não deve ter sofrido em sua vida? Imagina isto..., nem
seus filhos vieram se despedir!...
E o cochicho continuava, só que dessa vez até
choraram um pouquinho de verdade pelo triste fim
do compadre. E Rosinha, com a voz parcialmente
embargada pela comoção do momento, disse:
– Aliás, não estou vendo nem mesmo a Lori...,
nem o compadre Tião..., nem a tia Sofia... A verdade é
que não estou vendo ninguém conhecido!... Que
esquisito!...
Nesse instante, favorecida com o silêncio
peculiar do velório, Luzia ouviu uma fala de voz
feminina bem atrás dela, perguntando em tom baixi-
278 | IX Prêmio Escriba de Contos 2016

nho:
“– Tia, quem são essas duas aí que não saem mais
do lado do caixão do tio Chico?”
“– Não sei não!...” – respondeu também em tom
baixo outra voz feminina: “– Já perguntei pra todo
mundo e ninguém as conhece e nem as viram tão mais
gordas. Devem ser mais umas das tantas vagabundas
que o seu tio Chico tinha pela cidade. Safado!...”
Ouvindo isso, Luzia discretamente ergueu a
cabeça e olhou para os lados e os cantos daquela sala
para ver se realmente não via ninguém conhecido da
família. Olhou para os rostos de cada pessoa ali
presente – nessa hora já sem as lágrimas nos olhos –,
não vendo ninguém com rosto familiar ou qualquer
outro conhecido.
Continuou então a correr os olhos em volta
daquela sala, quando viu entre os castiçais e as velas
que ornamentavam aquele funeral uma coroa de
flores com uma faixa em seu centro com os seguintes
IX Prêmio Escriba de Contos 2016 | 279

dizeres:
“Francisco Theodoro – Saudades de Esposa, Filhos
e Netos”.
Visto isso, Luzia deu um leve toque com o
cotovelo em Rosinha para mostrar-lhe que haviam
entrado em sala errada daquele velório, e ainda por
cima chorado por outro defunto. E assim, deva-
garzinho foram afastando-se de próximo do caixão
do “Francisco Theodoro”, procurando sair de “fininho”
daquela sala, pedindo licença às pessoas – parentes e
amigos daquele finado, e foram em direção à outra
sala, onde de fato devia estar sendo velado o corpo
do compadre Dito.
No momento em que saiam daquela sala e
passavam entre as pessoas, ainda ouviram baixinho
novamente uma voz de mulher – provavelmente a
viúva de Francisco –, dizer a seguinte insinuação:
“– Sem-vergonhas, vai ver que eram também
amantes do finado Benedito!”
Ação Cultural

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