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o> Cernleaton pete Histoua » Desefior - Gauime kexke PinsiKy a Cadttemy (orgs) | Alex Degan & professor Departament de Historia e coordenador do Laboratsrio de Estudos das Historias Asiaticas (LEFIAS) da idade Federal de Santa Catarina (UFSC) Doutorem Historias u Unive pela versidade de Paulo (USP), Trabalha com stbes ligadas & Asia, a Historia das religioes e a0 de Historia A Grande Asia eo ensino de Historia s primeiras décadas do século XXI ressaltaram, de modo incontesta- vel, a relevancia da Asia. Seis em cada dez pessoas no mundo contemporaneo sao asidticas. Trés das cinco primeiras econo- mias também sao do continente (China, Japao e India), e a criacdéo da Parceria Econémica Regional Abrangente (Regional Comprehensive Economic Partnership ~ RCEP), em 2020, inau- gurou um bloco econémico fortissimo na re- giao do Pacifico. Politicamente, India e China emergiram como poténcias importantes, in- fluenciando assuntos geopoliticos para além de seus tradicionais abarcamentos regionais. wsrona Nos noticidrios e jornais cotidianos tal relevancia 6 evi- dente: a guerra comercial entre chineses e estaduniden- ses capturou a atengo de mercados e corpos diplomé- ticos mundialmente, e a pandemia de covid-19, que evidenciou novas questées abertas pela globalizacao, reafirmou a Asia como o centro dos debates entre poli- ticos, epidemiologistas, historiadores e economistas em torno de assuntos tanto logisticos (a maioria dos centros produtores de equipamentos médicos e de vacinas se lo- caliza na Asia) quanto ideol 1S (as acusaces envene- nadas acerca da origem geogréfica do virus). No Brasil, existem grandes colonia de imigrantes japoneses, libaneses e sfrios, com relevantes ondas de Tecentes imigragdes de chineses e coreanos. Na tiltima década, a China consolidou-se como 0 nosso maior par- ceiro econémico, com um saldo superavitério para os brasileiros que encontraram no pais asiatico o principal destino para as exportacdes de commodities como a ‘© minério de ferro, a celulose e a proteina animal. Dos celulares ultratecnolégicos aos simples cordoes com lu- zinhas de decoragdes natalinas, os brasileiros seguem comprando efusivamente produtos made in Asia. No campo cultural, grupos musicais de K-POP causam fris- son entre os adolescentes brasileiros, assim como man- gis, animés e games japoneses sao extensamente consu- midos. Os conflitos entre israelenses e palestinos ainda capturam a atencao da midia e das agendas politicas de partidos de esquerda e direita, assim como o “perigo do comunismo chinés” encontrou formulagdes na te- torica de liderangas nacionalistas, Em resumo, o Brasil encontra-se profundamente entrelacado por interesses e historias do continente asiético. 228 AGRANDE ASIA £0 ENSINO DE HISTORIA Curiosamente, o crescimento da importancia politica, econdmica e cultural da Asia ainda nao encontrou um lugar adequado dentro da educacao brasileira, seja no ensino basico, seja no superior. Escassos so os materiais, didéticos, os cursos de formagio e 0s especialistas nas diversas histérias asiticas, situac4o preocupante diante dos desafios que o Brasil enfrenta neste comeco de sécu- lo. Desse modo, nos colocamos a seguinte indagacao: é possivel ou desejavel que os estudantes brasileiros conti- nuem ignorando a Historia da Asia? Se nos valermos da documentacao oficial, a respos- ta é sim. A Base Nacional Comum Curricular (BNC), ‘um importante documento normative homologado em 2018 e que estabelece direitos de aprendizagem rela tivos a todos os cidadaos brasileiros, ¢ taxativa. Logo no primeiro procedimento basico que orienta todo o ensino fundamental de Histéria, observamos que seus componentes curriculares devem primar “pela identi- ficaco dos eventos considerados importantes na toria do Ocidente (Africa, Europa e América, espe mente o Brasil), ordenando-os de forma cronol6; \do-os no espaco geografico”. Todas as hist6- rias asidticas sio, portanto, marginalizadas, figurando, quando muito, enquanto acessérios exéticos e luxuosos da evolugao hist6rica do Ocidente, ‘Tradicionalmente, 0 ensino da Historia Escolar no Brasil foi pensado dentro de uma logica que supervalori- zou uma trajetéria ocidental na narrativa. Iniciada com a colonizacéo portuguesa na Aniérica, a Hist6ria Brasileira teria sentido atrelada aos eventos da expansio mariti- ma lusitana e aos avancos do capitalismo europeu. Esses movimentos tornariam, pela primeira vez, encadeadas as historias africanas, americanas ¢ asiaticas sob a batuta 229 NOVOS COMBATES PELA MIStORIA europeia, ativa e dominadora, Essa compreensio do pro- cesso histérico, reconhecida como eurocéntrica, € coerente eracional dentro de sua légica einocéntrica. Dessa forma, Brasil, Angola, Filipinas e {india entrariam na narrativa histérica apenas quando institufdes pelas ades ociden- tais com suas “descobertas” e “missdes civilizatorias”. EUROCENTRISMO Exrocentrismo € um conceito contempordneo extensa- mente debatido dentro dos chamacios Estudos Pés- coloniais. Em linhas gerais, deve ser entendido como uma espécie de emocentrismo, ou seja, uma visto de mundo que faz com que diferentes grupos humanos compreendam o “seu estar no mundo” baseados ex- clusivamente em seus proprios juizos e valores cultt- rais. Assim, ndo apenas os tragos internos de um gru- po sio lidos através dos elementos fornecidos por sua identidade, como também as realizacdes culturais e historicas de outros povos. Entretanto, ao contr de outros etnocentrismos, 0 eurocentrismo se con: dou, desde o século XIX, como um grande paradigma que organizou, explicou e legitimou to: hist6rias dentro de uma narrativa expl realizagdes dos povos europeus ocidentais. O euro- centrismo, portanto, pode ser identificado em diver- sos discursos (na literatura, na ciéncia, na inddstria cultural, nos mecanismos de governanga) como uma forma de produzir imagens e conhecimentos a partir de valores éticos, religiosos e padres cientificos eu- ropeus que servem para justificar a posicéo destacada do Ocidente dentro da Histéria humana. Intimeros 40 0s limites dessa interpretagfo. Os indi genas, por exemplo, viram suas agéncias historicas ex- cluidas ou esvaziadas, quando muito reduzidas ao papel de figurantes na construgio da Histéria do Brasil. O mes- ‘mo ce verifica com as miiltiplas hist6rias africanes, redu- zidas em quadros uniformes e complementares do avan- co europeu. Apesar de algumas conquistas importantes, como a obrigatoriedade do ensino das Hist6rias e culturas africanas, afro-brasileiras e indigenas (Lei n. 11,645/08), muito ainda necessita ser debatido e construido no cam- po de politicas educacionais mais inclusivas e honestas que promovam uma alteracéo critica dessa posicéo subalterna, alimentada pela subordinagao da Hist6ria ao impeto cons- trutor de uma ideia do “ser nacional” atrelada ao Ocidente. ‘Como proposta de superacdo, um exercicio peda- g6gico possivel encontra-se no reconhecimento dessas potenciais “outras Histérias”, fomentando conexdes e comparagdes que podem ensinar pelos contrastes, pe- las tensbes e pelas safdas imaginativas provocadas. Por exemplo, a chegada dos navegadores Cristévo Colombo na América, em 1492, e de Vasco da Gama em Calicute, em 1498, sao acontecimentos importantes e seguidamen- te estudados por todos os alunos brasileiros. © sonho de Colombo era recolher riquezas inimaginéveis no reino do Grande Khan para promover exércitos que pos: tassem a vitoria do cristianismo, principalmente nas dades santas” da Palestina. Vasco da Gama, mais prag- matico, almejava abarrotar 03 pordes de seus navios com especiarias, circunavegando a Africa e cruzando 0 oceano_ ‘Indico até atingir a Costa de Malabar, na india. Ambos os experientes navegadores desejavam chegar a Asia, dese- nhada como uma terra de maravilhas e tesouros colossais Novos COMBATES PELA HISTORIA por uma tradigao narrativa alimentada por Herédoto e Marco Polo. Entretanto, se nos valermos dos estudos so- bre as sociedades indianas do perfodo, compreendemos que o subcontinente indiano era o centro nervoso de uma rede de trocas comerciais incomparavel, concatenando regides da Africa Oriental, do golfo Pérsico, do mar da Arabia, da Asia Central, da China e do sudeste asiatico. colossal feito portugués foi, aos olhos dos locais, mais ‘uma empreitada comercial estabelecida com novos nave- gantes vindos do Oeste. Assim, conhecer um pouco das historias asiaticas enriquece muito nossos horizontes de interpretacao historica. A ASIA EO ENSINO DE HISTORIA NO BRASIL Mas do que estamos falando exatamente quando pen- samos em Asia? Em linhas gerais, as diversas historias asidticas aparecem na cultura histérica brasileira relaciona- das a ideia de Oriente. Em conjunto com seu par conceitual, 0 Ocidente, essa ideia relaciona compreenstes geogréficas ‘com acepsées politicas e culturais em quadros sempre mu- taveis. Foram os assirios que durante o segundo milénio a.C. criaram uma distingao meramente espacial, apontando uma regido nomeada como Asu ("terra do Sol nascente”), e outra chamada Ereb ou Irib (“terra do Sol poente”). Nao existia uma fronteira natural entre as duas nem caracteris- ticas fisicas proprias de suas ecologias e sociedades. Foram 6s antigos gregos que, desde os escritos de Herddoto, tor naram essa distingao profundamente antagonica. Os povos orientais foram percebidos como miiltiplos e riquissimos, portadores de tradicdes respeitaveis e antigas; entretanto, ‘0s espetaculares tesouros e sabedorias asiaticas eram con- tzolacios por poucos déspotas, reis absolutos que oprimiam. as liberdades de seus siditos, retratados pelos gregos como servos acovardadlos. O protétipo perfeito se encontrava na descrigao do persa, um grande “outro” mobilizado em um império forte e conquistador. Em contraste, as terras gregas eram mais humildes economicamente, mas vistas como ‘muito superiores em suas corajosas ages pela manutencéo da liberdade. Grosseiramente, essas formulates seriam herdadas pelos romanos e pelos cristéos ocidentais, auxi- liando na construcao de identidades fluidas e maledveis que atravessariam a Idade Média. ‘Um primeiro exercicio didatico bastante interessan- te € explorar tanto a inexatidao das fronteiras geogréfi- cas quanto as solugdes culturais subjetivas encontradas ‘nas tentativas de defini-las. E bom deixar claro para os alunos que as definigées de Oriente e Ocidente sao ar- bitrarias, pois como a Terra ¢ uma esfera rotativa as de- marcagoes de leste e este necessitam de uma conven¢io de referencia. Também vale destacar que a Geografia en- frenta problemas em apontar as claras fronteiras da Asia Com a Oceania 0s limites s40 confusos, permanecendo uma compreensao de “regido do Pacifico” como safda integradora. Jé a linha diviséria com a Europa revela-se também problematica. Se, no Mediterraneo, o estreito de Bosforo surge como limite imediato entre os dois conti- nentes, mais ao nortea situagao se complica, com prolon- gamentos que cruzam a Riissia entre 0s rios Don e Volga € os Montes Urais. Em outros termos, 0 proprio conti- nente europeu apresenta-se como um prolongamento da Asia, langando-se como uma peninsula no Atlantico. Se a solugdo geogrifica manifesta algumas zonas cinzentas, as limitagdes histéricas e politicas sao ainda mais‘confusas. Por exemplo, a distingao entre Oriente ¢ Ocidente foi cunhada para ser imprecisa, guardando uma plasticidade que deve ser reconstitufda em seus contextos hist6ricos. Inicialmente, as atividades imperialistas brité- nicas no subcontinente indiano, entre os séculos XIX e XX, fixaram na {ndia e na Inglaterra seus pontos de referén- cia. Oriente Proximo, Médio e Extremo eram mensurados nessa geopolitica pela régua que marcava sua proximida- de ou distancia com relacao a Londres. Ao mesmo tempo, algumas nagdes formadoras do antigo Império Otomano foram percebidas pelos europeus como partes de uma re- ¢gido cultural delineada pelo islamisme: 0 Oriente Médio. ‘Aqui, a religiéo muculmana seria a fonte do entrelaca- mento entre o norte da Africa e a Asia mediterranica. Objetivamente, enquanto a Asia foi desenhada como um. continente com fronteiras geogréticas plasticas, 0 Oriente foi instituido através de formulas culturais imprecisas. A perspectiva criadora de ambos nasceu da Europa e do seu desejo de construir para si um sentimento de excepciona- lidade, demarcando uma linha orientalista til para segre- gar a “civilizacdo ocidental” de partes da Africa e da Asia. ORIENTALISMO Polémico conceito criado pelo critico literdrio pales- © tino-americano Edward W. Said que defende que a ideia de Oriente foi uma criagao do Ocidente euro- peu, formando um “outro ontol6gico”. Essa concep- cio ~ fruto de longos processos historicos e expressa em formulagoes intelectuais, mecanismos de gover- ‘de pensamento - ali- mentaria um discurso fundamental para a construcao 234 AGRANDE ASIA £0 EXSINO DE HISTORIA {de uma identidade ocidental (em oposicio & orien- | tal), para a sustentacdo de assimetrias que informam ¢ legitimam as intervensdes imperialistas na Asia e para 0 reforco de esteredtipos que afirmam que “o misticismo”, “aluxtiria”, “ariqueza”,“acorrupesoea obediéncia pueril” seriam caracteristicas inerentes 0s povos orientais. Tal compreensio - explica Seid - acabou por ser interiorizada por alguns pensado- res asiaticos e naturalizada em estudos académicos que fundaram as areas da Sinologia, do Arabismo e da Indologia em universidades ocidentais. Recomendamos aos professores que explorem es- sas tensdes em suas aulas, aproveitando as confu- sdes presentes nos documentos normativos (como a BNCC) e nos materiais didaticos. Geograficamente, 0 Reino Unido esté mais ao leste do que o Marrocos e a Mauritania, paises africanos relacionados com 0 islé- mico Oriente Médio, Culturalmente, grupos de artistas, intelectuais e politicos do Japao, Israel e Rassia traba- tham suas modernas identidades nacionais, discutindo formulagoes, disputas e impasses que flutuam entre 0 Oriente e 0 Ocidente. Historicamente, as regides mais urbanizadas e cosmopolitas do Império Romano se lo- calizavam na antiga provincia da Asia, correspondente hoje ao litoral da Turquia, e ndo nos territérios longin- {quos e pouco conhecidos da Escandinavia e do norte da Alemanha. Em outras palavras, na Antiguidade os cen- tros da “boa vida urbana e civilizada” estavam fincados nos litorais do que hoje compreendemos como Oriente Médio, e ndo no coracao da atual Europa do Norte. Em 235 [NOVOS COMBATES PELA HISTORIA diversidade histérica, cultural e ecolégica, a India e a China so comparveis aos outros continentes, e nao a paises como Uruguai e Suécia. Entao, por qual moti- vo delineamos a Europa como um continente e a India como parte de um subcontinente? Ao levantarmos tais questionamentos podemos evidenciar a historicida- de das escolhas feitas, assim como as posigées p\ cas presentes em assuntos percebidos como “neutros”, como a Cartografia. £ impossivel refletir sobre as ideias de Asia ou de Oriente sem relaciond-las aos mecanismos de hist6rias maiores, mundiais, que nos conectam aos horizontes europeus, africanos e americanos. Por exemplo, para pensadores importantes da modernidade europeia, a Asia foi “o grande contraponto” na edificagao da iden- tidade da Europa. Adam Smith, Hegel e Marx desenha- ram uma regido geografica (Asia) e cultural (Oriente) como “o ponto de partida da historia da humanidade”, mas também como 0 espaco do “atraso econdmico” e do “despotism. imagens perfeitas para con- trastar com 0“ ” stado-nacao e 0 “avancado” capitalismo liberal. Dessa maneira, a Asia figurou por muito tempo como um territ6rio fisico e cultural estra- nhho, cuja unidade seria custeada pela sua compreensio enquanto “nao Europa”. |AGRANDE ASA E EXSINO DE HISTORIA Mapa da Asiae de suas sub-regioes O PAN-ASIANISMO No século XIX, com as expansdes imperialistas de europeus ¢ estadunidenses, a experiéncia de alter provocou em diversos pensadores e politicos asisiticos uma necessidade de refletir sobre 0 continente. Antes, esse tema no estava presente nas mais diversificadas tradicdes intelectuais, das arabes as chinesas. Nem mes- ‘mo havia uma palavra similar nas linguas nativas para “Asia”. Imperava uma multiplicidade de definicdes: Zhongguo aparece em textos chineses jé no periodo dos Reinos Combatentes (475-221 a.C.) e Madiyadesa surge no épico indiano Mahabharata (c. 600 d.C.). Ambas as pa- lavras demarcavam um espaco culturalmente elevado ou “Reino do Meio” convencido Novos COMBATIS PELA HISTORIA de suas grandes qualificagdes. Para além de suas esfe- ras de influéncia, existiriam milhares de outros povos, diversos e interessantes, mas considerados “inferiores”. Até mesmo a colossal expansdo islamica, que partiu da peninsula arabica no século VII e chegou a Indonésia no XIV, nunca recorreu ao termo “Asia”. Enfim, a regido era plural, multicultural e impossivel de ser reduzida em uma formula homogénea. Nos séculos XIX e XX, contudo, pensadores de diver- sas regides da Asia foram provocados pela experiéncia da colonizacao ocidental e iniciaram reflexes em torno do pan-asianismo, O intelectual japonés Fukuzawa Yukichi (1835-1901) defendeu no célebre ensaio Datsuua Nyii6 (1885) que o Japao deveria “deixar a Asia” para inaugurar um. Estado-nacao modemo inspirado nos modelos europeus. Sua compreensao aceitava a dicotomia “ocidental-civili- zado/oriental-barbaro” e imprimia uma critica ao centra- lismo da cultura chinesa, ao império dos mandarins bu- rocraticos e ao confucionismo atuante na regio. Yukichi argumentou: ou 0s japoneses promoviam uma radical ocidentalizacao do pafs, assumindo 0 protagonismo asi- 4tico, ou acabariam colonizados pelas grandes poténcias do Ocidente. Posteriormente, suas ideias seriam adotadas como desculpa ideolégica para as invasbes ¢ as violéncias extremas protagonizadas por japoneses como “agbes ne- cessérias para retirar a Asia da influéncia europei [A GRANDE ASIA #0 ENSINO DE HISTORIA PAN-ASIANISMO © pan-asianismo ou asianismo ¢ uma ideologia polissé- mica desenvolvida por varios intelectuais e politicos asiaticos entre os séculos XIX e XX. Em termos gerais, cla se expressa em sentimentos e ages de solidarie- dade entre os povos asiaticos, alimentados por rea- es ao imperialismo ocidental e pela crenga na exis- tencia de valores especificos das sociedades da Asia, Em meados do século XIX, pensadores japoneses, | como Fukuzawa Yukichi (1835-1901) ¢ Okakura Kakuz6 (1862-1913), defenderam ideias reativas 20 /colonialismo europeu denunciando as humilhacdes a que as nagées asiaticas estavam sujeitas: 0 Japao de- vveria se modernizar e assumir a lideranca e defesa no | continente. Essas ideias serviriam para legitimar o im- perialismo nipénico, que atuaria como um mantene- dor da seguranca na Asia através de suas agressivas invasdes e brutais ocupagoes de diversos paises da Asia Oriental durante a primeira metade lo século XX. [Nas tiltimas dlécadas do século XX, com 0 admirével crescimento econdmico na Asia Oriental, reflexdes em torno de uma identidade asiatica (asianess) e de valo- res asiaticos ganharam forca. Politicos conservadores, como o cingapuriano Lee Kuan Yew (1923-2015), 0 malaio Mahathir bin Mohamad (n. 1925) € é Shintaro Ishihara (n. 1932), defenderam a is ao trabalho e ace estudos”, “0 reepeto a0 co- ",“o amor € a fidelidade familiar”, “ como elementos caract 239 Novos COMBATES FELA HISTORIA Ein contraste, apontaram os vicios de um Ocidente “decadente”, mergulhado no “hedonismo, materia- egoismo e individualismo extremado”. Em acabaria sendo evocada para j democraticas, regimes autoritérios e relativizacoes aos, | direitos humanos presentes na regido. Kim Daefung, | (1924-2009), politico sul-coreano e prémio Nobel da ( ), argumentou, por sua vez, que a existén- s culturais préprios dos povos asiaticos | tas, como as elaboradas por Méncio (c. 372-289 a.C,), como filosofias justas, tolerantes e democrat No comego do século XI, com o crescimento econd- mico e geopolitico da China e da {ndia, o debate foi recolocado. Inclusive intelectuais europeus e estadu- nidenses, sob os temores de um “asiocentrismo”, fundiram a ideia de um “Século Asiético” que redefi- niria as relagdes mundiais e os rumos da globalizagio. | O grande escritor indiano Rabindranath Tagore (1861- 11941), prémio Nobel de Literatura em 1913, também com- preendia ser necesséria uma reagio dos povos asiéticos frente ao colonialismo europeu, mas apontava que o cami- nho a ser seguido deveria ser outro, distante do naciona- lismo moderno. Tagore, que visitou varios paises asiaticos e escreveu assustado com os horrores do imperialismo e do chauvinismo da Primeira Guerra Mundial, propunha © exercicio de uma compaixio mais inclusiva na observando como exemplo as antigas contribuigées do budismo enquanto “experiéncia pan-asiatica de respeito e 240 A GRANDE ASIA £0 ENSINO DE HISTORIA integracao cultural”. Suas ideias muito contribuiriam para a militancia pacifista de Mahatma Gandhi (1869-1948) e para o movimento dos “pafses nao alinhados” liderados por Jawaharlal Nehru (1889-1964). No campo dos movimentos de esquerda, o impacto da Revolucao Russa foi grande, produzindo contornos singulares nas ponderacées acerca dos povos asisticos. Rapidamente, os movimentos de inspiracao marxista focaram nas lutas de libertagao nacional e anti-impe- rialistas, inspirando as resistencias contra as ocupacdes ocidentais e japonesas, Ao contrério do modelo russo e do marxismo ocidental que argumentavam que as agbes, de vanguarda revolucionéria deveriam partir das mas- sas de proletérios industriais urbanos, pensadores e li- deres asidticos, como o chinés Mao Tsé-tung (1893-1976) ¢0 vietnamita Ho Chi Minh (1890-1969), acreditavam na fora dos levantes de camponeses, na autossuficiéncia ¢ nas atividades de guerrilha como rastilho da luta. O epicentro das vanguardas revolucionérias se localizava nos embates anticoloniais, configurando a Asia como ‘um importante motor de um marxismo asiatico alterna- tivo a experiéncia soviética. O maoismo chinés, o KInmer Krahom cambojano e o socialismo Zuche norte-coreano so exemplos de tentativas de reformulacoes tebricas € praticas dos ideais de um marxismo revolucionario pr6- ptias da regiao. Aqui, a Asia era, antes de tudo, 0 caldei- rao € 0 farol das lutas pela independéncia e autonomia nacional contra o dominio imperialista. Outravivencia fundamental parareflexdosobreasiden- tidades asidticas ocorreu no contexto das experiéncias de didspora de muitos intelectuais asidticos. A lista de nomes 6 gigantesca, relacionando personalidades importantes 241 NOvOS COMBATES FELA WistORiA como, Kavalam Madhava Panikkar (1895-1963), Edward W. Said (1935-2003), Gayatri Chakravorty Spivak (n. 1942) ¢'Homi K. Bhabha (n. 1949), Em linhas gerais, todos esses pensadlores foram tocadlos pela experiencia da diéspora e, provocados por ela, refletiram sobre modelos de identi- dade cultural. Viver nos Estados Unidos ou em pafses da Europa Ocidental apresentou problemas inéditos, como 0 “perigo amarelo” ou o “terrorismo islamico”, a comuni- dades diasporicas que se enxergavam antes como plurais e divididas em suas origens regionais. O proprio Gandhi 86 veio a desenvolver uma aguda preocupacio sobre a unidade da fndia durante seus longos anos de trabalho na Africa do Sul, advogando para as méiltiplas comuni- dades de conterrineos imigrados. L4, ele se deu conta de que os imigrantes eram conscientes da profunda di- versidade étnica e linguistica que os marcava, mas, aos olhos das autoridades coloni lificados com 0 termo “coo! locais, todos eram qua- piteto racista atribuido aos imigrantes de tez escura oriundos do Raj britanico. Em 2020, a eleigéo da democrata Kamala Harris como vice-presidente dos Estados Unidos recolocou a questo da “identidade asiatica” no centro dos debates politicos norte-americanos, pois, além de ser a primeira mulher eleita, foi também a primeira “African American” e” Asian American” a ocupar 0 cargo em Washington. Por fim, a partir da década de 1980, consolidou-se uma nova e forte ideia sobre a Asia como “a terra da pujanca € do crescimento econdmico”. Atualmente, essa é a inter- Pretagdo quase hegemdnica da regiao, compartilhada tan- to pela imprensa quanto por analistas de Business School. Desde a década de 1970, com a consolidacio da economia japonesa, a Asia Oriental encontra-se em célere mutagio. 242 Empresas nipnicas iniciaram investimentos pesados ar- ticulando setores industriais de Taiwan, da Coreia do Sul, de Cingapura e de Hong Kong, os chamados “Tigres Asidticos”. Esses patses ofereceram campo para a consti- tuigaio de economias de apoio, regionalizando a producéo industrial japonesa. A nova configuracdo das relagées entre co Japao e os Tigres Asiéticos também transformou profun- damente as redes de demandas, produgdes e de organiza- ‘cao do trabalho por todo 0 sudeste asiatico e subcontinente indiano, consolidando novas éreas de fornecedores de com- modities, insumos e servigos primarios por toda a regido. ‘Ao mesmo tempo, empresas estadunidenses e euro- peias operaram uma terceirizacao radical da producéo manufatureira, exportando plantas industriais e capi- tais financeiros para pafses asi mais frégeis do ponto de vista da articulagio sindical e do valor dos salérios. Assim, progressivamente, a Asia Oriental foi integrando suas economias nacionais em um rearranjo sélido. Esse processo foi reforgado pela criagto de muitos blocos de cooperacao econdmica e gionais, como a Asean (Association of Southeast Asian Nation, de 1967), a Saarc (South Asian Association for Regional Cooperation, de 1985) e a IOR-ARC (Indian Ocean Rim Association for Regional Cooperation, de 11995). Em 2020, com a concepgdo da RCEP (Regional ‘Comprehensive Economic Partnership), temos a criagao da maior alianca econdmica do mundo integrando 15 paises da regiio Asia-Pacifico (Austrélia, Brunei, Camboja, China, Coreia do Sul, Filipinas, Indor Japao, Laos, Maldsia, Mianmar, Nova Zelandia, Cingapura, Tailandia e Viena) que respondem por um tergo da populagio mundial e cerca de 29% do PIB 243 NOvOS COMBATES FELA HISTORIA global. Todo esse contexto deve se somar a vertiginosa ascensdo econémica e politica da China, fato que recon- figurou toda a geopolitica no comeco do século XXI. Sugerimos que os professores explorem todas es- sas sutilezas e ambiguidades no significado de Asia, problematizando as ricas indefinicbes formuladas pela Geografia, pela Economia e pela Histéria. Nao existe uma ideia de Asia acabada, mas uma continua reelabo- Taco, Suas interpretagdes devem ser contextualizadas, relativizadas e compreendidas como relacionadas aos seus entornos dialégicos e sincronicos. Por exemplo, a determinacao de uma “Asia do Pacifico” se relaciona mais com os interesses dos Estados Unidos na regiao. O “Oriente Médio” esteve historicamente articulado como Mediterraneo e em seus entrelagamentos coma Europa e a Africa. O “Leste” apresenta-se intimamente integrado aos processos da histéria russa, assim como a “Asia do {ndico” pronunciou os elos multisseculares entre 0 sub- continente indiano, o golfo Pérsico, a peninsula arabica ea Africa Oriental. No comeco do século XXI, o paciente esforco chinés na edificacao de uma “Nova Rota da Seda” Tancou as bases para um ambicioso cinturao econémico que marcha do leste para o oeste, reeditando caminhos narra 0 Périplo do mar Eritreu, do século Ml d.C.) e por aventureiros inspirados pelos escritos de Marco Polo. Se a ideia de Asia deve seu inicio aos engenhos cria- tivos dos europeus, ela também foi elaborada por ge- rages de pensadores asiéticos, como o fundador da Repitblica da China, Sun Yat-sen (1866-1925), cujo pan- asianismo reconhece a enorme diversidade de nacdes e culturas que caracteriza a regido. Acreditamos que esse 244 AGRANDE ASIA £0 ENSINO DE HISTORIA deva ser 0 motor inspirador das atividades pedagogi- cas no campo do ensino de Historia. Introduzir a Asia nos auxilia na critica necesséria ao eurocentrismo e ao estreito limite de uma Hist6ria preocupada apenas com o “ser nacional”. Reconsideré-la em nossos curriculos € estratégias didaticas implica pensar em novos termos, exigindo narrativas historicas feitas em escalas globais e assentadas em Hist6rias comparadas, complementa- res e conectadas. Essa Asia pulsante e viva, repleta de contradigées e ambiguidades, esta além do conceito de “civilizacdo em contraste com o Ocidente”. © convite é la de forma integrada, ao mesmo tempo colonial a, nacionalista e internacionalista, rea- ciondria e revolucionéria. Assim, por exemplo, proces- sos importantes como a lenta constituigao das socieda- des agricolas eo dominio da metalurgia do ferro deixam de ser “a conquista singular de um povo ou civilizacéo” para figurarem no que realmente sao: esforgos coletivos da humanidade. A propria modernidade deixa de ser uma caracteristica exclusiva e definidora da Europa e passa a ser o resultado de complexas interacdes entre civiliza- ‘cbes diferentes localizadas nas Africas, Américas e Asias. O DESAFIO PROPOSTO PELO DRAGAO CHINES Neste exercicio, a China representa um interessan- te desafio didatico para o ensino de Historia no Brasil. Diariamente presente nos noticidrios de diversas midias, © protagonismo chinés emerge em acdes econdmicas, po- liticas, cientificas e culturais. Sua influéncia determinan- te para as historias das Coreias, do Japao, de Cingapura, 245 NOVOS COMBATES FELA 1ISTORIA do Vietnd, do Tibete e de outras regides da Asia esteve e permanece entrelacada a hist6ria global. Foram os desejos de alcancar as riquezas chinesas que impulsionaram as trés caravelas comandadas por Crist6vao Colombo, que chegaram ao Caribe em 1492, e os engenhosos sonhos de conquista do boticario e diplomata portugués Tomé Pires (1468-c. 1540), enviado para Canto em 1516. Autor de ‘Swina Oriental (1515), um impressionante tratado acerca das riquezas do sudeste asiatico e do sul chinés e indiano, Pires acalentava a ilusao de que um punhado de embarca- es lusitanas bastariam para invadir a China, Tais exemplos apresentam um caminho pedagégi- co interessantissimo. Ensinar Historia da China oferece possibilidades frutiferas para a observacio das conexSes ‘entre processos hist6ricos desenvolvidos nas quatro par- tes do mundo em profundidades temporais variadas. Infelizmente, uma répida pesquisa nos curriculos, documentos normativos e livros didéticos revela ain- da uma China marginal e monolitica. Conficio e Mao ‘Tsé-tung sao os personagens quase exclusivos de uma contrastando com “o dinamismo politico” das Historias sobre atenienses, romanos, ingleses e franceses. A ideia de despotismo orier observacao da hist teares de sedana dade e aos galpdes das fébricas de quinquilharias baratas no mundo contemporaneo. O ensino deve apostar na incorporacéio da China, tao {intima e ao mesmo tempo to desconhecida dos brasilei- ros, Por exemplo, podemos comecar refletindo sobre a 246 .cdo chinesa em um exercicio similar a0 que operamos na problematizagio dos Estados-nacées cocidentais. Com essa acdo conseguimos criticar a ideia de ‘uma China “estacionada na historia’, lenta em suas trans- formacdes sociais, econémicas e politicas, sufocada pelo peso de suas tradicdes e opressdes imperiais. Novamente, © jogo de alteridade com o Ocidente foi essencial nessa construcéo, € € operacio muito eficaz observarmos isso nasala de aula. Assim, professores e professoras devem, a partir desse exemplo, discutir as eificagoes de identidades no Ocidente quanto no Oriente. E langar a final, quao antiga 6 a China? Por volta de 1200 a.C,, inscrigdes em ossos oraculares (omoplatas de bovinos e plastrdes de tartarugas) surgiram no nordeste do atual territério chinés, seguindo o curso dorio Amarelo. Esses artefatos revelaram o aparecimento de um estilo antigo da escrita chinesa, apresentando uma estrutura que, em linhas gerais, permanece até os tempos atuais. Sua criacdo foi essencial para o desenvolvimen- to da ideia de“ j& que sua crescente ito da conta de uma hist6ria muito antiga. Entretanto, os processos cle expansdo das ideias chinesas nunca ocorreram sem contestagdes ou transformacées, sendo a China contemporanea o resultado de milénios de ‘choques e hibridismos culturais. Os atuais 56 grupos étni- ‘cos que animam 0 mosaico chinés testemunham essa com- plexa historia, expressa em dezenas de linguas e dialetos distintos. Assim, ¢ importante ressaltar que o desenho da Historia chinesa como uniforme também representa um desafio para os préprios chineses. 247 ESCRITA CHINESA A escrita chinesa, muito sofisticada e bela, é um dos sistemas de escrita mais antigos ainda em utilizacao. Ela néo é formada por um alfabeto, mas centrada em caracteres morfossilabograficos, ou seja, em silabas que reproduzem morfemas proprios das linguas chi- nesas. Na escrita chinesa nao existem letras (grafemas abstratos que significam exclusivamente fonemas em. redugées radicais), mas caracteres que normalmente correspondem a uma sflaba e um sentido, Uma vez.co- nhecidos, os milhares de caracteres reproduzem mor- femas que podem ser utilizados em outras linguas, como © mandarim e 0 cantonés. Assim, um chinés Cientificas e éticas expressas em variadas esc nnesas, como 0 confucionismo. Em grande medida, a escrita chinesa goza de um prestigio similar ao latim | na Europa Ocidental e ao grego na Europa Oriental O nome do pais também traduz essa profusio de his- torias. A palavra China em si nao € chinesa, mas uma de- rivagao do sanscrito Cina, provavelmente uma referéncia primeira dinastia imperial Qin (221-206 a.C.). Com 03 248 AGRANDE ASA ENSINO DE HISTORIA persas,a palavra Cirt chegou ao Ocidente, originandoovo- cabulo China expresso em portugues e inglés. Tomé Pires chamou 0 pais de Chyna e o jesufta italiano Matteo Ricci (1552-1610) identificou a fabulosa Catai (Cataio) de Marco Polo como sendo a Cina. Para os chineses da Antiguidade até 0 século XVII, a questo se colocava como algo muito mais complexo. Primeiramente, permaneciam as identi- dades locais e regionais, com 0 governo central sendo no- meado pelos reinos ou dinastias imperiais do momento. Nao existia, portanto, China, mas o Império dos Han (206 a.C-220 d.C.) ou 0 dos Song (960-1279) ‘Conhecemos cerca de 80 dinastias documentadas em quase 3000 anos de Historia. Destas, uma diizia aleangou extrema relevancia, regendo por séculos e estendendo suas esferas de governanca por amplos territérios. A primei- a unificacao feita por Qin Shi Huangdi (259-210 a.C) foi cruel e sangrenta, mas concretizou um forte ideal de unio revisitado e reatualizado em varios momentos da histéria chinesa, Esse desejo pela unificacao politica se valeu da es- ‘trutura da escrita para se expressar, fomentando uma incrf- receberam comentarios, e aos comentérios foram agrega- dos outros comentarios. Tais agées em curso ao longo de séculos produziram verdadeiros arquivos de saberes sele- cionados, consolidando uma tradigao literdria compardvel com a greco-latina, a judaica (Tanach e Talmudimn) e a in- diana (Veda). O fato é que a impressao da unidade politica mesclada com essa tradicdo literdria moldou um forte e or- gAnico sentimento de pertencimentoa uma cultura: Huaria Huaxia progressivamente foi ganhando um signifi- cado identitario forte como um campo cultural amplo que comportava todos os povos, independentemente de 249 etnia, que compartilhavam atributos como a escrita chi- nesa.e sua tradicao literéria autorreferente. Lentamente, a ideia de Huaxia alimentou um signo cultural potente para dissociar seus tributérios, os povos dos intimeros “bérbaros” que a desconheciam. Outro termo, Zhongguo, apareceu inicialmente para demarcar a capital do poder real, expandindo-se para outras areas monérquicas que comunicavam a ideia de Huaxia. Igualmente etnocéntrica, a palavra Zhongguo significa Hoje, tanto a Repdiblica Popular da China quanto Taiwan reproduzem em seus nomes oficiais a palavra Zhonghud, unindo Zhongguo com Huaxia. A reflexao etimol6gica em torno da palavra China revela © quanto sua histéria esta relacionada ao desenvolvimen- to de outras historias, Nao s6 seu nome ocidental foi uma identificacéo sanscrita da dinastia Qin, como sua reconfi- guracio enquanto um Estado-nagio, que objetivamente se deu apenas na passagem entre os séculos XIX e XX, foi im- pulsionada pelo relacionamento com paises europeus. ‘Com os desafios impostos pelas violéncias imperia- listas, 0 Estado chinés se transformou, emulando insti- tuigdes ocidentais. A palavra minzu (povo), por exemplo, progressivamente passou a se confundir com a ideia de “nage”, produzindo 0 termo Zhonghua minzu (a nagio chinesa). $6 em 1911 0 Império foi abolido, com a depo- sido da dinastia Qing (1644-1911). Em 1912, a Repablica foi proclamada e, em 1949, a China continental se viu A GRANDE ASIA £0 ENSINO DE HISTORIA reunificada pela aco dos comunistas. Trata-se, entéo, também de uma hist6ria pulsante e contemporanea. A partir disso, podemos trabalhar varias temporalida- des conectadas no ensino de Hist6ria da China. Comoacon- tece com a Hist6ria da Grécia ou do México, a China pode ser identificada com uma antiquissima civilizacao, gragas aos vividos testemunhos de sua escrita e de sua tradicio literdria classica. Ao mesmo tempo, a China € produto de ‘uma histéria eminentemente contemporanea, criadora de ‘um Estado nacional moderno. Ambas as temporalidades conversam, provocando tensbes e criagdes surpreendentes que nos demonstram uma complexidade imposstvel de ser resumida em f6rmulas a-histéricas baseadas no “des- potismo asiatico” ou no “cantraponto do Ocidente”. Itlia, Egito, Peru, Ira e india também enfrentaram e enfrentam desafios similares aos da China, equacionando processos hist6ricos antigos com preocupagies e recortes dados por anseios das identidades nacionais contemporaneas. Desse modo, podemos dizer que a ancestral histéria da China também é muito recente, ambigua e em continua mutacdo. Outro objeto pedagégico especifico da Histéria que ganha com a incorporagdo da China nas tematicas e nadas encontra-se nas conexées operadas no e pelo tem- Po. Por exemplo, hoje muito se fala acerca da ascensac politica e econdmica da China, ressaltada pela guerre comercial com os Estados Unidos. Assim, € importante trabalhar nas aulas que o crescimento do protagonisme chines nao foi o resultado apenas de seus esforcos isola dos e de transformagbes confemporaneas, mas tambért 0 fruto de articulagbes regionais antigas que movimenta ram ativos hist6ricos importantes. © temor do crescimento chinés ¢ proporcional ao de sejo em se vincular economicamente a ele. Um debatt acalorado em curso na Hist6ria Econdmica reinterpreta lugar da Asia Oriental, e da China em particular, nas transformagées comerciais, financeiras e industriais da Modernidade. André Gunder Frank (1929-2005) demons- trou que, até a passagem entre os séculos XVIII e XIX, a China era a economia mais sofisticada do mundo. Dessa forma, o incrivel desenvolvimento chinés verificado no comeco do século XXI pode ser entendido como um re- torno aos eixos asiaticos, encerrando um curto ciclo de he- gemonia ocidental. O desenvolvimento chines lido nestes quadros é muito mais coerente, pois esté lastreado em vin- culos econémicos antigos desenvolvidos na Asia Oriental eno mundo. Os atuais produtos “made in China” possuem componentes fabricados por toda regio, o que testemu- nha economias bem integradas em uma rede que nao é apenas fruto de uma hegemonia sinocéntrica recente. Por exemplo, a regitio de Guangdong (Cantao), loca- lizada no extremo sul oriental, é atualmente a provin- cia mais rica do pais, concentrando 0 grosso das indtis- trias, dos portos, das grandes cidades, como Shenzhen e Dongguan, e da rica fronteira com Hong Kong Guangdong, com seu “Grande Delta” do rio das Pérolas, foi escolhida por Deng Xiaoping (1904-1997) como a pri- meira drea da China a ser aberta via Zonas Econémicas Especiais (ZEEs) a partir da década de 1980. Essa foi uma escolha estratégica que considerou as relacdes hist6ricas que os chineses haviam tecido com os seus:vizinhos e com o mundo. Na regio, muitas redes de intercambio com 0 sudeste asiaitico e o subcontinente indiano jé es- tavam estabelecidas ha séculos, com importantes colé- nias de comerciantes chineses instalados na Malési no Vietna e em Cingapura. Trocas de produtos, regiées Pesqueiras, aventuras colonizadoras e acdes de pirataria Ona pontilhavam o mar do Sul da China, formatando uma espécie de “Mediterraneo” conectando povos e culturas. ‘Nao por acaso, portugueses se esforcaram para controlar © espaco através do estreito de Malaca em 1511 e ingle- ses tomaram a ilha de Hong Kong em 1898. Nesse longo processo, portos, casas comerciais e comunidades cos- mopolitas se estabeleceram. As reformas empreendidas por Xiaoping se valeram destas caracteristicas, reposi- cionando uma regiao jé conectada ao sistema do capital global e atraindo os investimentos externos, principal- mente de chineses expatriados em Hong Kong e Taiwan. Trabalhar com esse deslocamento de perspe um exercicio muito enriquecedor, pois ele possil incorporagao de outros horizontes de referéncias cas e uma saudavel relativizacdo de tematicas classicas. Com a China e a India na sala de aula, podemos api- mentar questdes como “a primazia grega na constitui- do da Filosofi protagonismo exclusivo da Europa Ocidlental na edificacao do Mundo Moderno” e “a sobre- valorizacao do cristianismo no oferecimento di 233 a.C) e 0 indiano Kautilya (c. 370-283 a.C.) manifes- taram uma visio muito s6bria e psicolégica da politica séculos antes de Maquiavel, assim como as diversas es- colas budistas produziram reflexdes incomparaveis so- bre a ética e a compaixao séculos antes de Jesus nascer. As redes comerciais atlanticas, téo caracteristicas de nos- 0s estudos sobre a colonizacao da América, devem ser dilatadas com atencao para os percursos que atravessam 0 Indico e 0 Pacifico, formatando a Asia como um dos importantes vetores na sua construcéo. NOVOS COMBATES PELA HISTORIA Em sintese, tal modificagao de perspectiva nao sera facil, exigindo esforgos hercileos nos campos do ensi- no e da pesquisa, transformando significativamente a forma como periodizamos ¢ lecionamos Historia. Ainda assim, apenas dessa maneira, teremos condicées de pro- duzir conhecimentos histéricos menos preconceituosos e mais interessados ¢ libertadores. A Asia, plural e vivida, continua a nos desafiar. Repensé-la nos quadros de uma Historia conectada é urgente. Nota * BRASIL. Ministério da Educagio. Base Nacional Comum Curricular Brasilia, 018, p. 16. Referéncias FRANK, Andre Gunder. ReOrient: Global Economy in the Asian Age. Los Angeles: University of California, 1998, (GOODY, Jack. O roubo da Histiria: como os europeus se apropriaram das ideas einvengbes do Oriente. Sa HOLCOMBE, Charles. Una Historia de Asia Oriental: de los origenes de la ivilizaccn der. S30 Paulo: Edipro, 2013, ‘SAKURAI, Célia. Os japoneses. 20 Paulo: Contexto, 2019 TTREVISAN, Cliuaia. Os chineses, S80 Paulo: Contexto, 2009,

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