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REALIZAÇÃO:
m U E M S
Universidade Estadual de Moto Grosso do Sul
PROFHISTÓRIA
MESTRADO PROFISSIONAL
EM ENSINO DE HISTÓRIA
FICHA TÉCNICA
2
XVI ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ANPUH-MS
XX SEMANA DE HISTÓRIA DA UEMS
V SEMINÁRIO DO PROFHISTÓRIA DA UEMS
ANAIS ELETRÔNICOS
DIRETORIA
CONSELHO FISCAL
Membros Efetivos:
Ana Paula Squinelo (UFMS/Aquidauana)
Leandro Hecko (UFMS/Três Lagoas)
Maria Lima Santos (UFMS/Campo Grande)
Membros Suplentes:
Fernando de Castro Além (UEMS)
José Carlos Ziliani (UFGD)
Marinete Rodrigues (UEMS)
CONSELHO CONSULTIVO
Carlos Eduardo Campos (UFMS/Campo Grande)
Éder Novak (UFGD)
Eudes Fernando Leite (UFGD)
Fabiano Coelho (UFGD)
Mariana Esteves (UFMS/Três Lagoas)
Jaqueline Zarbato (UFMS/Campo Grande)
COMISSÃO ORGANIZADORA
COMISSÃO CIENTÍFICA
5
SUMÁRIO
Alessandro Fe r n a n d e s ................................. .. 26
Amanda M a m e d e ............................................. .. 49
7
J OSEANNE Z INGLEARA SOARES M ARINHO....................................................................................618
8
Textos Completos
ESTAS TRADIÇÕES CONSTITUEM AS NOSSAS ORIGENS : O CURURU
E O SIRIRI EM MATO GROSSO FRENTE À MARGINALIZAÇÃO E A
RESSIGNIFICAÇÃO
A L É C IO G O N Ç A L V E S D A S IL V A 1*
M ato G rosso, especialm ente no decorrer da segunda m etade do século XIX, deixaram
im portantes registros acerca da sociedade da época, para além de docum entações relativas ao
relevo, a flo ra e fau n a da região. R elatos sobre costum es, m úsicas, danças e dem ais práticas
culturais, que segundo F erreira (2017, p. 183), sob a ótica dos colonizadores, etnólogos,
folcloristas e viajantes estrangeiros, tem os acesso a certa docum entação, senão farta, ao m enos
nos sugere um vasto universo sim bólico associado às danças em terras brasileiras.
A ssim sendo, exploradores com o, Joaquim F erreira M outinho (1833-1914), K arl von
den Steinen (1855-1929) e M ax Schm idt (1874-1950) nos legaram significativas descrições
O português Joaquim M outinho em sua obra Notícia sobre a província de Matto Grosso
publicado em 1869, observa entre outras coisas as práticas dançantes e de lazer da província, e
não obstante relata ter presenciado o canto e dança do Cururu 2, deixando expresso seu
estranham ento e reprovação, pois era praticado pela população pobre e m estiça, classificando-
o de:
10
O cururu dos cuiabanos, conform e M outinho (1869, p. 19), era um a dança do gosto de
“ classes baixas e da gente do cam po” . C onclui o relato dizendo que acha originais estes
folguedos, que sem pre se dão quando festejam algum santo, e não deixa de registar o batuque,
cuja descrição aponta com o u m a dança tão exageradam ente ruidosa e que “ desperta certo
É im portante frisar que neste p eríodo relatado po r Joaquim M o u tinho e outros, práticas
das culturas populares, das classes baixas e das raças consideradas inferiores com o a dos negros
proibidas e m arginalizadas po r força de lei, principalm ente nas áreas urbanas. P rova disso são
os C ódigos de P o stu ra das vilas e cidades de M ato G rosso, que desde o século X V III
estabeleciam punições para os participes dessas práticas, que em grande m edida se davam com o
das elites dirigentes contra o que cham avam genericam ente de “ folguedos” , entre eles o cururu,
C uiabá e São Luiz de C áceres, de 1831 e 1888, respectivam ente, estabeleciam m ultas e prisões
para aqueles pegos nesses folguedos, em dias e horários não perm itidos, e no caso dos
K arl von den Steinen, cuja presença na região se deu po r volta de 1884, é outro
explorador a tec e r com entários sobre a m usicalidade dos cuiabanos, e assim com o M outinho,
dança, com o os chás e saraus das elites e os batuques dos m enos abastados. “A noite to d a a
cidade dançava” , relata K arl Steinen (1886, p. 92). Segundo F erreira (2017, p. 186), suas
descrições sobre o cururu, seguem a linha dos relatos de seus contem porâneos no que diz
respeito ao estranham ento. A ponta o cururu com o u m a dança p referida entre os habitantes do
M ato G rosso e a descreve com o um a dança de roda, na qual to d o s fazem parte da festa.
Schm idt, observa e descreve as p ráticas de cantos e danças em M ato G rosso, seja entre as
populações indígenas ou no entrem eio da sociedade local. A o estudar etnologicam ente índios
B ororos da baix ad a cuiabana, e G uatós, próxim o a fronteira bo liv ian a com C orum bá, n arra o
acom panhados po r instrum entos rudim entares (SC H M ID T , 1942). O etnólogo, do m esm o
m odo, presencia u m a festa em louvor à Im aculada C onceição na cidade de C uiabá nos idos do
11
[...] pouco depois fez-se um intervalo em que foi servida aguardente e, então,
agrupou-se em torno de altar certo número de dançantes, formando semicírculo para
começar a dança do “cmuru”, tão conhecida em Mato Grosso. Parte dos que
dançavam acompanhava na “viola” os versos ali mesmo improvisados pelos cantores.
Outra parte dos presentes seguia o ritmo por meio de um pau que roçava numa ripa
de bambu, instrumento que denominavam “caracaxá”. Os dançarinos dispuseram-se
em duas filas e, depois, em círculo fechado. Assim foi indo, cada vez mais
animadamente, até a madrugada, sendo apenas interrompido o movimento, de vez em
quando, para se afinar os instrumentos de corda e dar aguardente aos cantores, o que
lhes emprestava novas forças (SCHMIDT, 1942, p. 14).
C onform e o registro de M ax Schm idt (1942), o cururu, e o siriri3 eram m uito apreciados
em M ato G rosso, e eram dançados não só pela “ população escura” , m as por “ pessoas de todas
N o entanto, m esm o Schm idt descrevendo que essas m usicalidades e danças, faziam
parte das práticas sociais, não necessariam ente, exclusiva de negros e indígenas, nota-se que
principalm ente no que diz respeito às elites, os governantes e os visitantes estrangeiros. P ois as
regulações, repressões e perseguições. E ssas m anifestações com fins religiosos ou de sim ples
lazer raram ente foram espaço de consenso, sendo objetos de críticas internas e externas. A
ú n ica expressão artística/corporal perm itida e leg ítim a era a branca, de origem europeia e cristã.
M outinho, Steinen e Schm idt, com partilham em seus relatos a perspectiva etnocêntrica,
cientificista e evolucionista que dom inava a cultura ocidental nesse período. D e acordo com a
autora:
m ato-grossense. E sses viajantes, que se veem com o representantes do estágio m ais avançado
3 Max Schimidt (1942, p. 14) é um dos primeiros exploradores a fazer menção direta ao “Cirirí” (Siriri).
Provavelmente porque registros anteriores viam a dança apenas como uma modalidade do próprio Cururu.
Segundo Câmara Cascudo (2001, p. 639), o Siriri é uma dança circunscrita à região mato-grossense, e é dançada
aos pares, homens e mulheres em rodas e fileiras, ao som de Ganzá, Viola de Cocho e uma espécie de tambor,
conhecido popularmente como Mocho.
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da evolução, dificilm ente podem escapar do sentim ento de superioridade, m isturado, às vezes,
m enção às danças nas páginas do jo rn a l O Matto Grosso, em cuja nota, o editor escreve
contundentes críticas ao então governador, po r te r perm itido que ínfimas camadas do povo
ocupassem os ja rd in s do palácio na noite de um baile oficial. Segundo a nota: [sic] o que nos
parece impróprio do logar, do promoter e aié mesmo altamente ridículo, foram as dansas da
arraya miuda, cururú, samba, siriri e não sabemos que mais, havidas no jardim, na noite do
baile e na seguinte 4 O tex to segue afirm ando: [sic] Aquillo não ficou bem ao sr. marechal
governador. S. Ex. parece procurar uma falsa popularidade, [...]. Quiz ser agradavel áquella
classe de gente que se diverte com taes folguedos, mas faltou ao decoro da sua posição, que
não lhe permitia tão exagerada democracia.45
É de se n o tar que apesar das críticas, da im posição p roibitiva da lei através da repressão
policial e risco de prisão dos b rincantes do cururu, isso não os im pedia de se insubordinarem
contra esses m ecanism os de controle do poder, e m esm o de ser u m a prática p o p u lar arraigada
na sociedade. E sses indivíduos davam v azão aos seus anseios e sentim entos, ao m esm o tem po
em que se constituíam com o sujeitos culturais ao prom overem o cururu e outras festas à revelia
foi diferente, pois os festeiros, prom otores de cururus, siriris e dem ais folguedos precisavam
de autorização, seja das autoridades policiais, ou dos senhores no caso do período escravagista,
para realizar suas festas e celebrações, m esm o que em épocas determ inadas com o nos m eses
dos santos de devoção, com o São João, São B enedito, Santo A ntônio, Im aculada C onceição e
com olhar de exotism o e perseguidas po r força de lei, no decorrer do século XX, essas práticas
4 O Matto Grosso, Anno XII, n. 585, Cuyabá, 13 de abril de 1890, p. 03. Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=716189&pesq=%22siriri%22&pasta=ano%20189&pagfi
s=51> acesso jul. 2021.
5 Ibidem
13
instituições ou pelo p o d er público, que viram nessas m anifestações populares a chance de dotá-
territórios e as elites aí constituídas passaram a p ensar o espaço regional com o local da própria
brasilidade; daí se apresentarem com o paulistas, m ineiros, m ato-grossenses e etc., para o autor,
então os papéis a serem desem penhados pelos diversos segm entos sociais de cada região.
N o que diz respeito a M ato G rosso, a historiografia local se encarregou de construir não
apenas u m a representação desejada de sua origem , m as tam bém o papel histórico do que
considerou a b rasilidade m ato-grossense. D essa form a, a identidade alm ejada foi alinhavada a
p artir da seleção de m em órias pré-definidas que serviriam enquanto suporte para tal projeto,
pois a construção de u m a identidade é sem pre pautada na diferença, há sem pre o outro que fica
à m argem do ideal, que deve ser distinguido do que é, e do que não quer ser (SILV A ; H A LL;
W O O W A R D , 2015).
construir não apenas narrativas e representações desejadas de sua origem , m as tam bém o papel
h istórico do que considerou expressivo e singular socialm ente. N esse sentido, para Z orzato
(2000), houve m últiplos objetos, no entanto, destes se destacam inicialm ente três eixos
tem áticos em torn o dos quais se constituiu, no âm bito da historiografia regional, a estrutura
identitária de M ato G rosso, sendo: a “ estruturação social e étnica” , que buscou resgatar um a
civilizadora” , destacando a b iografia de hom ens ilustres que ajudaram a “ civilizar os sertões” ,
M ato G rosso, centrada a p artir da capital C uiabá, passaria, nas prim eiras décadas do século
X X , prim eiram ente pela exaltação a terra e ao hom em m ato-grossense, sendo este hom em
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do lugar e os heróis do passado, bandeirantes, m ilitares e políticos pioneiros constituir-se-iam ,
deste m odo, no m ote encabeçado pelo Instituto H istórico e G eográfico de M ato G rosso
com o o cururu e o siriri, ficam praticam ente interditadas nos discursos do Instituto H istó rico e
G eográfico de M ato G rosso (IH G M T ) nas p rim eiras décadas de sua fundação. S egundo a
autora,
[...] até porque eram manifestações tidas como coisa da ralé, identificadas com a
‘falta’ de civilização do mato-grossenses e, algumas delas, como o Cururu e o
batuque, eram proibidas na zona urbana e criminalizadas. Nos aos 30, observa-se um
apelo, ainda tímido, a estas manifestações como reveladora da “alma” mato-
grossense, correspondendo ao movimento de valorização das “raízes” culturais
brasileiras, que teve em Gilberto Freyre um de seus mentores. Na leitura regional,
esta valorização é favorecida pelo impacto das transformações urbanas que Cuiabá
sofreu após 1930 e pela tendência ao insulamento destas manifestações na área rural
e na periferia de Cuiabá. Por outro lado, deve-se considerar também que nos anos
1930 o discurso divisionista formulado pelos sulistas ganha maior densidade política
com a formação de uma liga sul-mato-grossense pró-divisão do Estado. (GALETTI,
2012, p. 368).
vinham de fora e tinham o p o d er de definir, para eles e p ara o m undo, sua terra natal e sua gente
(G A L E T T I, 2012, p. 24). D esse m odo, p ara O svaldo Z orzato (2000, p. 419), o ano de 1904
p arece ter sido o ponto inicial de um a produção historiográfica local, pois é nesse ano que se
cujos autores de destaque do período serão E stevão de M endonça, José B arnabé de M esq u ita e
V írgilio C orrea Filho, intelectuais que em 1919 e 1921 figurariam entre os fundadores do
6 O Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT) foi criado em 1919 enquanto parte das
comemorações do bicentenário de Cuiabá. Conforme palavras de D. Aquino Corrêa, à época presidente do Estado,
e presidente de honra do IHGMT, a história “[...] já não será mais em nosso Estado, uma deusa sem altares”.
Para Galetti (2012, p. 355), isso evidencia a “nobre missão” do Instituto de tornar bem conhecidas a “grandeza e
a raça mato-grossense”, “[...] imortalizar os feitos dos que se foram [...], imortalizar heróis [...] escolher modelos
para o futuro”.
7 Originalmente Centro Mato-grossense de Letras, foi fundado em 1921. Reunindo grande parte do mesmo grupo
de intelectuais que havia fundado o IHGMT, o principal objetivo do Centro, segundo seus estatutos era “promover
e incentivar a cultura literária no Estado de Mato Grosso”. De acordo com Galetti (2012, p. 359), o Centro Mato -
grossense de Letras nasce enquanto expressão significativa do mesmo desejo que havia criado o IHGMT, produzir
uma memória coletiva capaz de gerar o sentimento de unidade nos habitantes do vasto Mato Grosso, que
especialmente neste período atravessava conturbadas crises políticas e de cunho divisionista. Em 1932, o Centro
passaria a ser denominado de Academia Mato-grossense de Letras.
15
Instituto H istórico e G eográfico de M ato G rosso (IH G M T ), e a A cadem ia M ato-grossense de
identidade que os unisse diante da am eaça que a chegada de m igrantes representava, e tam bém
no que diz respeito ao fato de que era preciso reagir às im agens negativas que circulavam sobre
M ato G rosso, enquanto “ estigm a da barb árie” 8. A exem plo de São P aulo e outros E stados do
sul do país, M ato G rosso no início do século X X , se propagava afirm ando a existência de
condições especiais com o intuito de atrair colonos e, sobretudo, investidores para o E stado.
C ontudo, ao m esm o tem p o que era desejável, a possibilidade da chegada destes investidores
era tem ida. Pois, em visto disso, som ente a u n ião dos naturais da terra poderia g arantir-lhes a
continuidade da “ prim azia do m ando” (ZO R ZA TO , 2000, p. 521). A lém de que, tão som ente,
com esta unidade se conseguiria reagir aos enunciados divulgados sobre M ato G rosso desde o
instrução, sendo m uitos de nível superior e, de algum a m aneira pertencentes à classe dom inante
regional. C om o nos diz G aletti (2012, p. 282), a relação de pertencim ento destes para com
M ato G rosso se estabelece p ara além da naturalidade, m as principalm ente por u m a densa teia
de interesses econôm icos e políticos. A ssim , esses in telectu ais se apresentaram enquanto
produtores de bens sim bólicos, direta ou indiretam ente envolvidos nas relações políticas e de
8 Ver: GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Sertão, Fronteira, Brasil: Imagens de Mato Grosso no mapa da
civilização. Cuiabá: EdUFMT/Entrelinhas, 2012.
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PRÁTICAS POPULARES: REGIONALIZAÇÃO E FOLCLORIZAÇÃO9
regionalism os vão se instituindo, paulatinam ente, por m eio de práticas e discursos, im agens e
textos. V ários discursos regionalistas j á haviam surgido no país desde pelo m enos m eados do
século XIX, à m edida que se dava a construção da nação e que a centralização política do
Im pério ia conseguindo se im por. Segundo A lbuquerque Júnior (2011, p. 53), esse antigo
entre os espaços do país com o um reflexo im ediato da natureza, do m eio e da raça. A s variações
costum es, hábitos, práticas sociais, culturais e políticas. E xplicavam a psicologia, enfim , dos
“R eg ião ” , é, com o enfatiza B ourdieu (1989, p. 108), um a realidade que, em prim eiro
lugar, é representação, assim , lutas a respeito da identidade étnica ou regional são “um caso
particu lar das lutas das classificações, lutas pelo m onopólio de im p o r a definição legítim a das
1989, p. 113).
origem , tradições, heróis, fatos históricos singulares passam a ser rem em orados tendo com o
referência ju stam en te as regiões rem otas da nação, fosse porque a sua co n q u ista podia fornecer
elem entos im portantes para u m a narrativa nacional, ou pelo fato de serem m antidas
2012, p. 29).
[...] não mais aquele difuso e provinciano do século XIX e início do século XX, mas
um regionalismo que reflete as diferentes formas de se perceber e representar o
9 Segundo Rocha (2009, p. 219), o termo “folk-lore” (folclore) surgiu em 1848 a partir de estudos do etnólogo
inglês William John Thoms. O termo folk-lore que quer dizer “saber tradicional do povo” foi usado para designar
os estudos das então chamadas “antiguidades populares”, práticas rurais, saberes, histórias, contos e performances
que incorporavam aspectos pagãos e cristãos, considerados antiquíssimos. Desde então, folclore tornou-se
sinônimo de “cultura popular”, embora nem toda cultura popular seja folclórica. Conforme Albuquerque Júnior
(2011, p. 91-92), a partir do século XX, o folclore vai ser entendido, especialmente pelos folcloristas, como a
expressão da mentalidade popular, uma estrutura ancestral e espectral da cultura de um povo. Sua utilização
enquanto parte das narrativas de identidade, nacionais ou regionais, facilitaria a absorção e integração das camadas
sociais na medida em que fizesse parte na defesa de autenticidade de um grupo.
17
espaço nas diversas áreas do país. Com mudanças substanciais no campo econômico
e técnico, como a industrialização, a urbanização, a imigração em massa, o fim da
escravidão, [...]. Somem-se a isso as novas formas de sensibilidade artística e cultural
trazidos pelo modernismo; os novos códigos de sociabilidade que aí se desenvolvem
mais intensamente; as novas concepções acerca da sociedade, da modernização e da
modernidade. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 52).
T ratando dos com ponentes dessa identidade regionalista em M ato G rosso, Z orzato
(1998, p. 8), destaca inicialm ente a elaboração de u m a “ m em ória de consenso” , onde todos são
apresentados com o pertencendo a um a m esm a fam ília, filhos do m esm o solo, com vistas a
forjar, fo rtalecer e dissem inar um sentim ento de pertencim ento ao grupo, sentim ento esse útil
não só para escam otear as desigualdades sociais existentes na sociedade local, m as tam bém
em inentem ente político, podem os, assim , defini-lo com o a construção de u m a identidade
coletiva, que nos dizeres de P ollak (1992, p. 207), n ad a m ais é que todos os investim entos que
um grupo faz ao longo do tem p o para dar a cada m em bro, q u er se trate de fam ília ou de nação,
o cururu e o siriri, um p rim eiro aceno para que essas p ráticas integrassem o rol dos sím bolos
cujo estatuto de 1921, em seu sétim o e oitavo itens de doze diligências de finalidade, já
estabelecia:
pioneira b asead a nessas ideias, tom ando as expressões populares com o folclóricas, p arece ter
10 Estatutos do Centro Matto-Grossense de Letras. In: Revista do Centro Matto-Grossense de Letras, Cuiabá, ano
I, n. 01, jan. de 1922. pp. 71-86.
18
sido a publicação em 1928 de O Cururu, p oesia de C arlos V andoni de B arros, corum baense
m em bro da instituição. A poesia p u blicada na revista da A cadem ia, fazendo referências a viola
de ximbuva (viola de cocho) e a trechos de toadas de cururu, faria V andoni de B arros alcançar
notoriedade no m eio letrado, sendo considerado e difundido com o um expoente do p ré-
m odernism o11 em M ato G rosso. N o entanto, esse tip o de objeto explorado pelo poeta, ainda
nesse contexto se configuraria enquanto tem ática vista com certa ap reen são pelos letrados,
sendo o cururu um a p rática p rópria dos espaços e das classes m arginalizadas. M esm o
classificando a poesia com o interessante, Jo sé de M esquita não deixa de assinalar que V andoni
regionalista no N ordeste, o m ovim ento m odernista, com o o que inspirou V andoni de Barros,
diferente do que se propaga, não tin h a com o tarefa o rom pim ento com a tradição, m as sim ,
segm entada entre um espaço tradicional e um m oderno, m as não com o se isso significasse a
inibição de vir a nos constituir em civilização autônom a, construída a partir de elem entos
culturais populares. “ O que o m odernism o fez foi incorporar o elem ento regional a um a
da década de 1930, é possível notar o desenvolvim ento de políticas que visavam o estudo e o
registro etnográfico das m anifestações folclóricas e culturais do B rasil, a exem plo das
folclóricas, m oderadam ente com eçam a g an h ar destaque nacional com a criação da C om issão
início dos anos 1940. N os anos seguintes, as atividades dessa com issão se ram ificaram em
11 Ver: MENDONÇA, Rubens de. História da Literatura Mato-grossense. 3a. Ed. Especial. Cáceres-MT: Ed.
Unemat, 2015, pp. 152-153.
12 MESQUITA, José de. Conferência realizada no Congresso das Academias, Rio de Janeiro, 1936. Transcrita no
jornal “A Cruz”. Cuiabá, ano XXVII, n. 1238, 1936, p. 02. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=765880&pesq=%22cururu%22&pasta=ano%20193&pa
gfis=5034> acesso jul. 2021.
13 Ver Chuva (2011), p. 147-165.
14 Conforme Márcia Chuva (2011, p. 153), no primeiro número da revista do então SPHAN, a apresentação escrita
por Rodrigo Melo Franco de Andrade (1937) lamentava que a edição já tinha falhas, pois tratava exclusivamente
de obras arquitetônicas, como se o patrimônio cultural, histórico e artístico se reduzisse somente a isso.
19
diversos E stados, viabilizando em 1958, a criação da C am panha de D efesa do Folclore
alçadas à condição de integrantes do folclore regional e brasileiro. P ara T hom pson (et al, 2011,
traço s tid o s com o autenticam ente nacionais” . Isto posto, intelectuais no cerne do IH G M T e
A M L, paulatinam ente m udam os olhares acerca das culturas populares, que passam a ganhar
m ais espaço em suas produções. Se em 1936, José de M esq u ita definiu a poesia de C arlos
V andoni de B arros com o inspirada apenas no interno ruralism o do estado, quatro anos m ais
com o um dos autores que “rebuscando por entre as cam adas populares urbanas, e rurais,
ribeirinhas ou dos cerradões [...]” , lançam obras que “ se agigantam , com am or pelas cousas
regionalistas” .15 N esta m esm a edição da revista, José de M esquita, publicou um a poesia,
esteticam ente assem elhada a O Cururu de V andoni de B arros, cham ada de O Siriri16. C om o
B arros, M esquita p arece ten tar superar nos versos o aspecto pejorativam ente exótico e
F olclore representaria nos anos posteriores a referên cia intelectual incentivadora de registros e
C ontudo, m esm o que desde o E stado N ovo, em M ato G rosso se ten h a progressivam ente
afirm ado as questões e m anifestações regionais enquanto folclore e parte da cultura do estado,
ten d o o cururu, o siriri e dem ais m anifestações populares m arcado presença, po r exem plo, nas
15 CUIABANO, Ulisses. Folc-Lore Matogrossense, In: Revista da Academia Mato-grossense de Letras. Cuiabá,
ano VIII, tomo XV-XVI, 1940. p. 28.
16 MESQUITA, José de. O Siriri. In: Revista da Academia Mato-grossense de Letras. Cuiabá, ano VIII, tomo XV-
XVI, 1940. p. 18.
17 Em Mato Grosso, a Sociedade Mato-grossense de Folclore foi oficialmente fundada 1942, presidida por Ulisses
Cuiabano (1891-1951), então membro do IHGMT e AML.
20
com em orações oficiais dos 250 anos de C uiabá em 1969, conform e Siqueira (2002, p. 250),
até m eados da década de 197018, o estado ainda não tin h a conseguido efetivam ente estabelecer
um planejam ento estratégico de atuação no âm bito cultural, isso porque as questões culturais,
m esm o já possuindo certo reconhecim ento, ainda eram tratad as de form a secundária pelos
da identidade se dá no plano cultural e intelectual, m ais do que no político, m esm o que os dois
estejam quase que intim am ente interligados. A elaboração e ressignificação das p ráticas é
A ssim sendo, som ente em 1974 é definida um a p o lítica estadual de turism o, criando o
depois, em 1975, é criada a F undação C ultural do E stado de M ato G rosso20, que daria origem
à atual Secretaria de E stad o de Cultura. É de se salien tar que essas políticas na esfera estadual,
aliadas a dem ais agentes, desem penharam um papel im portante no processo de ressignificação
do lugar ocupado pelas m anifestações populares com o o cururu e o siriri em M ato Grosso.
provocaram dinâm icas nessas m anifestações populares. Tais ações políticas a partir desse
período de segunda m etade do século X X , procuravam resultados para as dem andas culturais
aproxim ando a cultura do viés do desenvolvim entism o econôm ico (FO N SE C A , 1997 A pud
C H U V A , 2011, p. 159).
18 É de se frisar que a década de 1970 integra o período “auge” da ditadura militar (1964-1985), que por meio das
perspectivas ufanistas e de integração nacional, perpetrou substanciais mudanças e investidas na política cultural
do país como um todo, assunto este que não iremos adentrar significativamente neste artigo. Assim sendo,
conforme Chuva (2011, p. 156), nos anos 1970, novas divisões em relação não tanto ao desenvolvimento das
ciências sociais, mas principalmente pela tomada de decisões pelos agentes de poder da ditadura, sob a égide da
“integração nacional”, buscaram reavivar o mito da fundação do Brasil a partir dos três grupos formadores (o
branco europeu, o negro e o índio), assim buscavam-se objetos, práticas e bens que teoricamente sintetizassem
essas três matrizes, ao mesmo tempo em que empreendiam estudos da cultura e do folclore, cujos temas
privilegiados variavam a depender das regiões do país.
19 Ver: Lei Estadual n° 3.564 de 1974.
20 Ver: Lei Estadual n° 3.632 de 1975.
21
CONSIDERAÇÕES FINAIS
iniciam , no B rasil, os estudos que problem atizam a produção histórica e cultural de u m a região
P ara refletir sobre essas construções identitárias, assim , é necessário p ensar a região
com o um grupo de enunciados e im agens que se repetem , com certa regularidade, em diferentes
épocas, com diferentes estilos e não pensá-la com o u m a hom ogeneidade, um a identidade de
de suporte para a identidade alm ejada em M ato G rosso, o estudo de alguns eixos tem áticos que
foram utilizados para tal, perm item -nos com preender não apenas o contexto histórico em que
surgiram , m as tam bém o sentido a eles atribuídos po r seus criadores e a finalidade a que
serviam . Pois, segundo W oodw ard (apud SILVA ; H A LL; W O O D W A R D , 2015, p. 11), “um a
das form as pelas quais as identidades estabelecem suas reivindicações é por m eio do apelo a
antecedentes históricos” . A ssim sendo, a p artir das prim eiras décadas do século X X em M ato
G rosso, buscava-se consolidar um a m em ória social po r m eio das narrativas históricas, e dessa
procurando no passado referências que lhes serviriam com o fios da m em ória sobre os quais
regionalism o é m uito m ais do que um a ideologia da classe dom inante de um a dada região. “E le
que são levadas a efeito e incorporadas po r várias cam adas da população e surge com o
22
A construção de u m a identidade m ato-grossense tendo po r centro a capital, Cuiabá,
século XX, inclusive as p ráticas e m anifestações da cultura popular, buscando po r m eio delas
originalidade e autenticidade. D essa m aneira, som ente a p artir das décadas de 1920 e 1930,
com a crise dos paradigm as naturalistas, com a em ergência de novos olhares em relação ao
espaço social, com sensibilidades em relação ao que seria verdadeiram ente nacional, vai ser
lentam ente j á as registravam dentro do espaço regional m ato-grossense, seja por v iajantes e
fundam entais p ara a ressignificação dessas p ráticas populares, com o: a criação de instituições
intelectuais de caráter regional, a exem plo do Instituto H istórico e G eográfico de M ato G rosso
prom ovida pelo E stado N ovo (1937-1945); e tam bém os conchavos políticos das elites
m estiça, ligadas a grupos e um a região que era vista com o o espaço atrasado do país,
incivilizado, selvagem , “ estigm a da barb árie” . Progressivam ente, com o advento de novas
perspectivas essas m esm as m anifestações seriam tom adas com o a síntese da adaptação à
natureza regional, e da personalidade do hom em m estiço deste m eio, autenticam ente nacional.
E ssa vo lta para dentro de si de M ato G rosso, para b u scar e construir a sua identidade, o seu
caráter, dar-se-ia à m edida que o dispositivo da nacionalidade e a form ação discursiva nacio n al-
p o p u lar colocaram com o necessidade o apagam ento das diferenças regionais e a sua integração
no nacional.
23
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25
GUERRA AO TERROR E LAVAGEM DE DINHEIRO: EVOLUÇÃO DA
LEGISLAÇÃO BRASILEIRA APÓS ATENTADOS DE 11 DE
SETEMBRO
A L E S S A N D R O F E R N A N D E S 21*
INTRODUÇÃO
vilão em um m undo que recentem ente tinha superado a divisão E U A x U R SS que existia desde
A o contrário de um confronto entre E stados, onde fronteiras determ inam o início e final
do território inim igo, as organizações terroristas não respeitam as dem arcações dos lim ites
entre as nações, operando principalm ente em regiões de fronteiras, tanto que as forças
am ericanas que varreram o A feganistão em busca de O sam a B in L aden som ente encontraram
D e sta form a um a das principais form as de com bate a estas organizações deu-se por
m eio ao com bate e prevenção do ilícito de lavagem de dinheiro, estrangulando-as sem acesso
Porém , da m esm a form a que as organizações terroristas não respeitam fronteiras, este
com bate deverá tam bém dar-se de form a transnacional, unificando as form as de com bate,
im pedindo que existam paraísos financeiros em que os terro ristas po d eriam m ovim entar seus
lavagem de dinheiro dentro desta nova realidade m undial, reforçando o papel de nova unidade
novo panoram a m undial, principalm ente em função de com prom issos assum idos pelo país em
organizações transnacionais.
26
O trab alh o utilizou para tanto de um a pesquisa bibliográfica, acom panhada por um a
pesquisa docum ental focada na consulta dos tex to s legais relacionados ao te m a 22, bem com o
consulta dos com prom issos internacionais assum idos pelo Brasil.
GUERRA AO TERROR
O final da G uerra Fria, com a dissolução da U n ião das R epúblicas Socialistas Soviéticas
segurança e defesa dos E stados U nidos e de seus aliados, um a vez que a ordem global b ipolar
entre as esferas de influência das superpotências capitalista e com unista, ruiu junto com a
ser o inim igo estatal e subversivo representado pela superpotência soviética (PY T H IA N , 2009),
entretanto esta posição não v iria a ser autom aticam ente to m ad a por outros E stados, m as sim
por um tipo diferente de adversário, levando os E stad o s U nidos a um a G uerra A ssim étrica.
E ste m ovim ento retirou o com bate do com unism o do centro da agenda am ericana,
deixando espaço para um a agenda focada em u m a nova obsessão g lobal: a adoção de políticas
22 Em função da extensão proposta para o trabalho optamos por não analisar as circulares e resoluções expedidas
pelo Banco Central do Brasil, que regulamentam obrigações decorrentes dos compromissos assumidos em
decorrência da legislação nacional.
23
A expressão Cortina de Ferro foi imortalizada por Churchill no seu discurso de Fulton em Março de 1946, porém
tinha já sido usada anteriormente por Goebbels quando o Exército Vermelho chegou a Viena, ao avisar os alemães
para não deixarem de combater porque uma Cortina de Ferro cairia sobre este enorme território controlado pela
União Soviética (FENBY, 2008).
27
estudada diretamente; ela não precisa de indicadores. A maneira de estudar a
securitização é estudar o discurso e as constelações políticas (BUZAN et al,
pp. 23-25).
E fetivam ente os E stados U nidos seriam , p e la prim eira vez, atacados pela organização
terro rista que v iria a atingir seu territó rio ainda antes da virad a do século: a A l-Q aed a de O sam a
N airóbi, no Q uênia, foram alvos de ataques sim ultâneos e coordenados pela A l-Q aeda. D ois
anos m ais tarde, em 2000, o U SS Cole, destroier da M arinha dos E U A ancorado no porto de
Á den, no Iêm en, foi tam bém atingido po r um ataque orquestrado pela al-Q aeda, elevando o
cham ada “perigo v e rd e ” , identificado com o fundam entalism o islâm ico, ao posto antes
m aio r ataque terrorista até então executado24. D ezenove terroristas da A l-Q aeda interceptaram
quatro aeronaves com erciais e as lançaram , em ataques suicidas, contra seus alvos: as duas
na m esm a cidade, ten d o sido este ú ltim o ataque frustrado pelos passageiros e tripulantes da
aeronave interceptada. Q uase três m il pessoas m orreram com o resultado dos quatro atentados
base m arítim a de Pearl H arbor25 (A LLE N , 2013; W R IG H T , 2006), dem onstrando que “nenhum
U tilizando de todos os m eios disponíveis sob seu com ando, o então presidente norte
am ericano G eorge W . B ush declarou, em 20 de setem bro de 2001, o início da G uerra G lobal
ao T error buscando derrotar a al-Q aeda e to d as as form as de terrorism o na esfera dom éstica e
internacional. R essaltando que não som ente a liberdade estadunidense estava em risco e que
esta não era um a guerra som ente dos E stados U nidos, m as sim da “ civilização” que acredita no
24 Os atentados terroristas ocorridos no dia 11 de setembro de 2001 contra a sede do Pentágono (Washington) e as
Torres Gêmeas do World Trade Center (Nova York) são considerados por muitos autores como o mais importante
marco histórico do início do século XXI (CHOMSKY, 2002).
25
O Ataque a Pearl Harbor foi uma operação militar surpresa do Serviço Aéreo Imperial da Marinha Japonesa contra
os Estados Unidos, na base naval de Pearl Harbor em Honolulu, no Território do Havaí, pouco antes das 08h00,
no domingo de manhã, 7 de dezembro de 1941 e que foi determinante para o ingresso americano na Segunda
Guerra Mundial (VILLALOBOS, 2019).
28
planeta para ju n ta rem -se a este em preendim ento26 (B U SH , 2001; L A M M E R H IR T : M E R O L A ,
2017).
C ertam ente nenhum outro evento ten h a tido repercussões tão am plas e decisivas sobre
F ria dez anos antes, im pondo um m om ento de inflexão tanto na h istória dos E U A quanto da
sim ultâneos de 11 de m arço de 2004 contra o sistem a de trens suburbanos em M adrid, que
resultaram em 193 m ortos e m ais de 2000 feridos (R E IN A R E S, 2004), dem onstrou que
qualquer país pod eria ser alvo de novos ataques, reforçando a u rgência de adoção de m edidas
transnacionais.
P o r este m odo a com unidade internacional não dem orou a atender à convocação
O rganização das N açõ es U nidas em 28 de setem bro de 2001, apenas 17 dias após os A tentados
terrorism o internacional:
O próprio governo Suíço, conhecido pelo apreço e v alor ao sigilo bancário, alterou sua
legislação para g arantir a confidencialidade das transações financeiras som ente em casos que
versassem sobre sucessão patrim onial, divórcio e sonegação fiscal, reco n h ecid a com o m era
26 Uma expressão utilizada pelo presidente americano durante este discurso acabou se tornando fonte de
controvérsia: a criação de uma classe de países que seriam conhecidos como eixo do mal: Coreia do Norte, Irã e
Iraque (BERTONHA, 2005).
27 Desde 2009 as autoridades suíças estenderam a colaboração de intercâmbio de informações inclusive para os casos
de “mera” evasão fiscal (SILVA SÁNCHEZ, 2009). Já em 2018 a Suíça transmitiu às autoridades fiscais de
dezenas de países dados de cerca de dois milhões de contas nos bancos do país, pondo assim fim a quase um
século de sigilo bancário (NASCIMENTO; OLIVEIRA, 2021).
29
A exposição de m otivos da proposta de diretiva do P arlam ento E uropeu de com bate a
anotou C elso Lafer, M inistro de E stad o das R elações E xteriores do governo b rasileiro à época
dos atentados, adotando iniciativas de precaução ao terro r no âm bito nacional, tais com o: “ o
controle m uito m ais rigoroso dos aeroportos, a fiscalização de operações financeiras que
vinculadas a atividades terroristas no B rasil” (LA FE R , 2003, p. 112). F ica claro ainda na visão
tráfico de drogas, para depois se estenderem ao com bate à corrupção, a guerra ao terro r levou
o B rasil e outros países a em penhassem em regulam entar as possíveis conexões entre lavagem
A globalização dos grupos terro ristas fez com que encontre enorm es facilidades para
dentro e fora das fronteiras estadunidenses, buscando u m a nova receita de ação, diferente do
m étodo vigente na política externa am ericana durante a guerra fria: repressão m ovida por
golpes m ilitares, tortu ra e desrespeito aos direitos hum anos (PR O C Ó P IO , 2001).
30
La lucha contra la criminalidad inter-nacional no se puede llevar a cabo con eficacia
mediante iniciativas estatales aisladas e internas, sino únicamente a través de la más
estrecha colaboración a escala internacional. La verdadera batalla contra el blanqueo,
pues, debe plantearse, principalmente, en sede internacional, puesto que el lavado de
dinero se orienta hacia países que no disponen de normas apropriadas para prevenir
y reprimir el reciclaje, e incluso han de contemplarse sancio-nes graves frente a los
estados que no se adecuen al estándar de efectividad establecido dentro del marco de
la concertación internacional en la lucha contra el blanqueo (SOUTO, 2001).
D esta fo rm a o com bate a lavagem de dinheiro surge com o ferram enta para asfixiar a
organização dos grupos terroristas, dificultando (quando não im pedindo) o fluxo de recursos
definir padrões e p rom over a efetiva im plem entação de m edidas legais, regulatórias e
trab alh ar para identificar vulnerabilidades nacionais com o objetivo de p roteger o sistem a
para p o d er tratar tam bém da questão do financiam ento dos atos e organizações terroristas, e
deu o im portante passo ao criar as O ito (posteriorm ente expandidas para N ove)
R ecom endações E speciais sobre F inanciam ento do T errorism o28 (FA TF, 2019). E stas
recom endações serviram de base para o tex to final da Lei A ntiterrorism o, prom ulgada um
pouco antes da realização das O lim píadas do R io de Janeiro, quando o m edo de ocorrência de
A recom endação G A FI de núm ero 5 estabelece as bases para n ecessidade harm onização
28 As Recomendações do GAFI foram revisadas pela segunda vez em 2003, e essas, juntamente com as
Recomendações Especiais, foram adotadas por mais de 180 países, sendo reconhecidas universalmente como o
padrão internacional antilavagem de dinheiro e de combate ao financiamento do terrorismo .
31
E m 08 de dezem bro de 2000, na cidade colom biana de C artagena foi criada o G rupo de
agregando 10 m em bros (A rgentina, B olívia, B rasil, C hile, C olôm bia, E quador, M éxico,
P araguai, P eru e E quador) além de França, A lem anha, Portugal, E spanha e E stados U nidos na
LAVAGEM DE DINHEIRO
O ilícito de lavagem de dinheiro in clui-se no rol dos cham ados crim es do colarinho
branco, definidos po r Sutherland (2015) com o crim es sem violência, com etidos em situações
com erciais e que buscam ganho financeiro. C aracterizam -se com o crim es de difícil percepção,
u m a vez que utilizam um a série de operações com plexas para esconder sua origem crim inosa.
O prejuízo destes crim es extrapola os danos financeiros, gerando im pactos sobre a m oral social
ilícita dos recursos recebidos em suas atividades ilegais, principalm ente do contrabando de
bebidas alcoólicas, ilegais aquele tem po. (TO N D IN I, 2006). A pesar de a denom inação adotada
te r u m a origem recente, sua prática parece ser bem m ais antiga. E xistem relatos de piratas que,
durante a Idade M édia, j á buscavam desvincular os valores derivados dos ilícitos atos de sua
procedência (C A L L E G A R I; W E B E R , 2017).
recursos advindos de atividades ilegais e crim inosas, por m eio de artifícios que escondem e
dissim ulam sua origem , afastando-os de seu passado ilícito. E sse é um processo com efeitos
conjunto de operações com erciais ou financeiras que visam dar aparência lícita a estes valores,
iniciando-se na ocultação sim ples de sua origem e encerrando com seu retorno ao sistem a
SILVA ; M A R Q U E S; T E IX E IR A , 2011).
O delito da lavagem de dinheiro parte da ideia de que o agente que busca proveito
econôm ico na prática crim inosa precisa confundir a origem dos valores, buscando assim
32
U m a das m ais eficientes estratégias de com bate ao crim e organizado é Follow the
money, ou seja, seguir o dinheiro e identificar os seus cam inhos, blo q u ear bens, e fazer com
que a entidade delitiva m orra de inanição, sem dinheiro para pagar seus m em bros ou
u m a vez que o dinheiro não denota sua origem , valendo a m áx im a pecunia non olet (RIOS,
2010).
P ara controlar todos os atos financeiros e com erciais usados para m ascarar diversos
bens, o B rasil adotou um sistem a de colaboração com pulsória entre o setor público e o
p rivado29, em que profissionais e entidades que trabalham em setores m ais usados por
crim inosos para ocultação de recursos devem no tificar autoridades públicas sem pre que
tom arem conhecim ento de operações suspeitas, com o transações com altos valores em espécie
instituições financeiras, são caracterizados com gatekeepers (torres de vigias), u m a vez que
atuam em setores econôm icos que servem de trilh a para o capital oriundo dos delitos
alcançou grande destaque na agenda internacional, despertando preocupações que rem ontam à
dezem bro de 1988. C om este docum ento, o B rasil com prom eteu-se, ju n ta m e n te com outros
dinheiro. C om o intuito de efetivar o acordo, diversas leis foram criadas pelo m undo
(A N S E L M O , 2010; M O T T IS , 2010).
prevenção da utilização do sistem a financeiro para dar aparência de lícita para recursos
provenientes das atividades ilícitas, em consonância com m ovim ento m undial que inclusive
antecederam o ataque de 11 de setem bro. Influenciado pelo direito norte-am ericano e alem ão,
optou-se pela adoção do vocábulo “lavagem de dinheiro” , em detrim ento a denom inação
“b ranqueam ento” , adotada pela B élgica, França, P ortugal e E spanha, po r sua conotação racista
e por não estar presente na linguagem form al de nosso país (JO B IM ; 2010; R IO S , 2010).
in cidência de algum dos cham ados crim es antecedentes arrolados pelo A rtigo 1° da Lei 9.613,
29 Mesmo modelo adotado na União Europeia, conforme Diretiva 91/308/CEE. (CORDERO, 2001).
33
em u m a relação exaustiva, aplicando o p rincípio da taxatividade, conform e percebe-se pela
A existência deste rol taxativo de tipos penais que deveriam preceder os atos de
lavagem de dinheiro já dem onstrava um a evolução das legislações de com bate ao ilícito de
prim eira geração, quando som ente estaria tip ificad a a ocorrência do crim e se fosse p reced id o
de tráfico de drogas, porém apresentavam ainda alguns inconvenientes com o ferram enta efetiva
na G uerra ao T erro r. E m que pese a legislação tratar o terrorism o com o um crim e precedente,
som ente em 2016 a Lei 13.260 regulam entou o inciso X L III do artigo 5° da C onstituição
F ederal e criou um m arco legal para delim itar o entendim ento do term o T errorism o (S A A D -
D IN IZ , 2014). A lém do m ais caso os atos terroristas fossem financiados por recursos derivados
da sonegação fiscal, po r exem plo, não estaria enquadrado com o lavagem de dinheiro.
endurecim ento da legislação sobre o tem a nos dias posteriores aos atentados de 11 de setem bro,
de dinheiro em seu A rtigo 1°, in verbis, j á com as alterações im postas pela Lei 12.683/2012:
34
CONSELHO DE CONTROLE DE ATIVIDADES FINANCEIRAS (COAF)
O C O A F, órgão principalm ente de prevenção (e não de repressão), foi criado pela Lei
A regulam entação, m onitoram ento e supervisão das instituições autorizadas para que
im plem entem políticas, procedim entos e regras de controle para detecção e prevenção a
lavagem de dinheiro e a com unicação das situações e operações suspeitas que envolvam seus
C lie n te s
Fonte: B A C E N , 2019.
assum idos pelo B rasil nas convenções de V iena, P alerm o e especialm ente na de M érida,
ratificada pela O N U em 2003, que dedicou dispositivo específico ao com bate ao crim e de
adm inistrativos sobre setores que estão no cerne dessa espécie de delito, assim com o a adoção
35
a) Estabelecerá um amplo regimento interno de regulamentação e supervisão
dos bancos e das instituições financeiras não-bancárias, incluídas as pessoas
físicas ou jurídicas que prestem serviços oficiais ou oficiosos de transferência
de dinheiro ou valores e, quando proceder, outros órgãos situados dentro de
sua jurisdição que sejam particularmente suspeitos de utilização para a
lavagem de dinheiro, a fim de prevenir e detectar todas as formas de lavagem
de dinheiro, e em tal regimento há de se apoiar fortemente nos requisitos
relativos à identificação do cliente e, quando proceder, do beneficiário final,
ao estabelecimento de registros e à denúncia das transações suspeitas;
(...)
5. Os Estados Partes se esforçarão por estabelecer e promover a cooperação
em escala mundial, regional, sub-regional e bilateral entre as autoridades
judiciais, de cumprimento da lei e de regulame
ntação financeira a fim de combater a lavagem de dinheiro (BRASIL, 2006).
Porém esta alteração de nom enclatura foi rejeitada pelo C ongresso N acional, no
m om ento da conversão da M ed id a P rovisória em lei, bem com o tam bém foi sua alocação no
âm b ito do M inistério da Ju stiça e S eg u ran ça P ú blica. A m aioria dos deputados decidiu po r sua
CONCLUSÃO
b rasileira de com bate e prevenção a lavagem de dinheiro as m edidas externas, com andadas
claram ente pelos E stados U nidos da A m érica, num m o v im en to de harm onização das
legislações estrangeiras sobre o tem a, m esm o que a Lei 9613 anteceda aos atentados de 1 1 de
dem onstra a necessidade de seu com bate através de instrum entos de cooperação internacional.
Porém não percebe-se que este m ovim ento decorra de u m a perda de soberania nacional
globalização, onde transações financeiras internacionais são facilitadas com o crescente uso de
36
aparelhos celulares (smartphones) com o canais de transações financeiras, im pondo ao m ercado
financeiro um grande im pacto do crescim ento da m obilidade, principalm ente pelo crescim ento
com um .
B anco C entral as Instituições Financeiras, um dos m ais im portantes gatekeepers no com bate a
este crim e, onde percebe-se de form a m ais clara a evolução do regram ento preventivo,
aplicando um ganho de m aturidade do sistem a, que m igrou de regram entos de conform idade
técn ica para um processo centrado na aferição de sua efetividade, determ inando que as
instituições financeiras avaliem a eficácia de sua política, dos procedim entos e dos controles
adotados e requer a elaboração de plano de ação que vise solucionar as lacunas identificadas
na avaliação de efetividade, restando este tem a com o sugestão para estudos posteriores.
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40
COLONIALISMO E CONSTRUÇÕES IMAGINÁRIAS DO FEMININO
NO BRASIL DO SÉCULO XVI: UMA LEITURA FEMINISTA E
DECOLONIAL
A M A N D A C O U T IN H O D E S O U Z A 30
T Â N IA R E G IN A Z IM M E R M A N N 31*
INTRODUÇÃO
epistem ologias que consideravam a existência de um sujeito universal m asculino. Saberes até
então consolidados na academ ia com o de L evi-S trauss, F reud e L acan são questionados pela
epistem ologia fem inista (H A R D IN G , 1997). U m regim e de verdade fora posto por alguns
2001) se in stitucionaliza a p artir do século X V III, ditando os padrões da norm alid ad e com
vistas a m an ter a hierarquia e subordinação das m ulheres e dem ais gêneros que não se
encaixavam . N essa biologia, as diferenças são traçadas e o binôm io m ulher natureza e hom em
estavam espalhados na religião, no E stado, na fam ília e nas instituições de ensino até o
hodierno.
sexualidade fem inina. A liado da m etodologia, estão os conceitos basilares com o gênero em
entre civilizações nos trópicos revelou u m a dupla natureza a dom inar em solo brasileiro. A
natureza virgem igualava-se a virgem dos lábios de m el. T am bém se via a paisagem colonial
com o fem inina. P elos atributos da sexualidade, raça e classe inventadas pelos europeus
41
assegurava-sea dom inação da população nos trópicos, elim inando signos de resistên cia com o
DESENVOLVIMENTO
eurocêntrica que acabou (pós) ou ainda nem com eçou (pré), subm etendo-as à linha do tem po
de poder entre as m ulheres, assim com o a categoria “pós-co lo n ial” pode ten d e r a ver o globo
m ulheres, tendo em vista que elas realizam dois terço s do trabalham e recebem 10% da renda,
preocupou em garantir que hom ens e m ulheres tivessem o m esm o acesso aos direitos e recursos
intensam ente voltadas para aspirações m asculinas, posto que a própria representação do poder
nacional se alicerça em construções prévias do poder do gênero, assegurando que hom ens e
eurocêntrica que acabou (pós) ou ainda nem com eçou (pré), subm etendo-as à linha do tem po
de poder entre as m ulheres, assim com o a categoria “pós-co lo n ial” pode ten d e r a ver o globo
R aça, gênero e classe não são fatores distantes ou isolados entre si. (C U R IE L, 2007)
E les existem em relação entre si e através dessa relação. N o m apa de H aggard, sobre a Á frica,
as m inas de diam ante correspondem especificam ente ao lugar da sexualidade fem inina -
42
reprodução po r gênero - , a fonte do teso u ro - produção econôm ica - e o lugar da disputa
de um outro, responsável por levar três ingleses brancos às m inas de diam ante de K ukuanaland,
em algum lugar localizado no sul da Á frica. A versão original foi produzida em 1590, por um
m o ntanha cham ada Seios de Sheba. P o r m eio de u m a “ lasca de osso” alim entada do próprio
sangue do m ercad o r e restos de um linho am arelo arrancado de sua roupa, riscou o m apa
O m apa de H aggard se distingue dos dem ais m apas das narrativas coloniais po r ser
evidentem ente sexual, u m a vez que nele a terra é fêm ea e m apeada em fluídos corporais
patrim ônio do capital excedente a seus herdeiros brancos, oferecendo-lhes autoridade e poder.
D entro da h erança colonial m asculina, há u m a tro ca fundam ental: a h erança patrilinear branca
33 O uso mais intensivo deste texto deve-se as suas interlocuções entre psicanálise e o materialismo histórico e
suas abordagens permitem uma leitura feminista no continente ocidental africano e no Brasil colonial.
43
é garantida apenas com a m orte de G agool - "mãe, v elh a m ãe" e "gênio do m al da terra" - ,
17) O ra o que essa representação tem a ver com o B rasil? E sse im aginário de d o m inação é
b rancos devem atravessar até as riquezas das m inas de diam antes, e po r outro lado, se o m apa
incom pleto - as únicas partes desenhadas rem etem à sexualidade fem inina. N a narrativa, os
viajantes cruzarão o corpo a partir do sul, iniciando perto da cabeça, que é rep resen tad a pela
intelectualidade b rasileira no século X X com o P aulo P rado e G ilberto Freyre. (SW A IN , 1996)
N o centro do m apa, estão os dois picos de m ontanhas, os Seios de Sheba - dos quais as
cordilheiras se am pliam para am bos os lados com o braços sem m ãos. O com prim ento do corpo
rem ete ao cam inho real da E strad a de Salom ão, levando dos seios congelados até o um bigo
koppie direto com o um a seta ao m onte público, cham ado na narrativa de “ Três B ruxas” e
figurado po r um triângulo de colinas cobertas de “ escuras u rze s” , que aponta, sim ultaneam ente,
entrada vaginal, à qual os hom ens são levados pela m ãe negra, G agool - e atrás dela, a fossa
anal, pela qual eventualm ente os hom ens passarão com os diam antes, num ritual de nascim ento
Os genitais fem ininos no m ap a são cham ados de Três B ruxas. E n q u an to as Três B ruxas
apontam a presença de forças fem ininas alternativas e noções africanas alternativas de tem po
e conhecim ento, H aggard se defende da am eaça de u m a força fem inina e africana resistente,
cardeais ao lado das Três B ruxas no m apa: ícone da “ razão” ocidental, da agressão técnica do
O logo da b ú sso la sim boliza a figura espalhada da m ulher, m arcada pelos eixos da
contenção global. N a escalada da m ina, carregando diam antes, os b rancos ingleses originam
três ordens: a ordem reprodutiva m asculina da m onogam ia patriarcal; a ordem econôm ica
b ran ca do capital m inerador; e a ordem política global do im pério. T anto o m apa quanto a
narrativa, revelam que essas três ordens estão relacionadas, posto que a aventura do capital
44
m in erad o r reinventa o patriarcado branco - especificam ente na form a de classe inglesa do
gentil hom em de alta classe m édia - com o herdeiro do "Progresso" im perial na chefia da
"Fam ília do H om em "- u m a fam ília que não adm ite a m ãe. (M C C L IN T O C K , 2010, p. 18)
capturada sob a tecnologia da fo rm a im perial. N o entanto, tam bém m ostra que nenhum a leitura
do m apa está com pleta em si m esm a, pois cada um a evidencia a inversão representada por seu
outro lado reprim ido. S e olharm os com a autoridade m asculina da página im pressa, com os
pontos da bússola colonial e com os rótulos sangrentos, o m apa pode ser lido e o tesouro
fato a aventura colonial com o um to d o - se tornam incoerentes. D esse m odo, um a versão não
A “fálica lasca de osso” de Silvestre, além de um a ferram enta da insem inação m asculina
e do poder patriarcal, sim boliza a despossessão racial. Portanto, gênero aqui é u m a questão de
p. 19-20)
D e fato, os hom ens europeus foram os agentes m ais diretos do im pério, tendo em vista
que lideravam os navios, m anuseavam os rifles dos exércitos coloniais, eram donos e
supervisores das m inas e plantações com escravos, com andavam os fluxos globais de capitais,
gerenciavam 85% da superfície da Terra. A inda assim , a relação entre gênero e im perialism o
foi desconhecida e desprezada até m uito recentem ente p elos teóricos do im perialism o e do p ó s-
seu trab alh o sexual e econôm ico - escravas, trabalhadoras agrícolas, serventes dom ésticas,
m ães, prostitutas e concubinas. E las tinham que negociar a instabilidade das relações com seus
próprios hom ens e as severas regras e restrições hierárquicas que com punham suas novas
contradições sociais do im p erialism o de form a distinta dos hom ens coloniais. T ivessem elas
em barcado com o condenadas ou recrutadas - para a servidão dom éstica ou sexual - , casado
com oficiais coloniais - dirigindo as fronteiras do im pério e gerando seus filhos e filhas - ,
adm inistrado escolas m issionárias ou enferm arias de hospitais em postos rem otos, trabalhado
45
para seus m aridos - lojas ou lavouras - , as m ulheres coloniais não puderam to m ar decisões
econôm icas ou m ilitares no im pério, e poucas delas tiveram participação em seus in ten so s
L eis da propriedade, leis do casam ento, leis da terra, e todas as dem ais violentas
frustração, um a vez que os hom ens brancos elaboravam e executavam as leis e políticas
atendendo aos seus próprios interesses. A pesar disso, os privilégios da raça colocavam as
o que as tornavam cúm plices, tanto com o colonizadoras, quanto com o colonizadoras. (M C
C L IN T O C K , 2010, p. 22).
eivadas de representações sobre o fem inino e sua sexualidade e estas serão usadas para
construir o dom ínio im perial português em suas colônias na A m érica, Á frica e Ásia.
E m 1493, navegando em b u sca das Índias, C ristóvão C olom bo escreveu para casa sobre
os antigos m arinheiros errarem ao acreditar que a Terra fosse redonda, pois a form a dela
cósm ico, não rem ete a b ravura m asculina do explorador na sua m issão de conquistar, m as ao
seu incôm odo, consequência da ansiedade m asculina, da infantilização e do desejo pelo corpo
fem inino. E ste últim o é retratado com o m arcando a fronteira entre os cosm os e os lim ites do
vista de B acon sobre um conhecim ento m undial produzido pela E uropa envolvia u m a geografia
im perial do poder e um erotism o: "eu venho na verdade", proclam ou, "trazer a vós a natureza
com todos os seus descendentes para p ô-la a vosso serviço e to rn á-la vossa escrava"
(FA R R IN G T O N , 1966)
N essas fantasias, o m undo ganhava u m a conotação fem inina e aberta espacialm ente
equivalia a um arranjo violento de propriedades que tornava os hom ens “ senhores e possuidores
da natureza” , e os fazia acreditar que a conquista im perial do globo encontrava sua figura e
(D E SC A R T E S, 1968)
A o cruzar os perigos de seus m undos conhecidos, os hom ens europeus ritualisticam ente
tornavam fem ininas as fronteiras e os lim ites. F iguras fem ininas eram incorporadas com o
fetiches nos pontos am bíguos de contato, nas fronteiras e nos orifícios da zona de disputa. Os
46
m arinheiros fixavam im agens fem ininas de m adeira nas proas de seus barcos e b atizavam -n os
com nom es fem ininos, os exploradores cham avam terras desconhecidas de áreas “virgens” , os
filósofos figuravam a “verd ad e” com o “ fêm ea” e fantasiavam sobre retirar o véu. D e inúm eras
form as, as m ulheres serviam com o figuras m ediadoras e lim inares po r m eio das quais os
pp. 47-48).
P ara Sw ain (1996) e C uriel (2007), a apropriação im aginária dos corpos fem ininos
atravessados pelo gênero, raça e classe era a garantia de dom inação dos colonizados. Esses
dom inação colonial, pois a terra e o corpo fem inino são um a co isa só. N as m ulheres coloniais,
o corpo enquanto m ulher é um território sem direito ao próprio corpo e ao próprio território.
M as as p ráticas nativas revelavam tam bém u m a anticolonialidade, por isso, Sw ain entende que
“ Os estudos fem inistas têm a tarefa de rever o lugar das m ulheres e a partilha do poder entre
os gêneros em sua historicidade, logo, em sua pluralidade, na infinita re-criação do hum ano”
(1996, p. 24).
Os projetos de dom inação im perial portuguesa articulavam três categorias (gênero, raça
e classe) m esm o que as vezes de m odo contraditório e em conflito, m as tam bém recíprocas. O
as suas próprias dinâm icas de gênero im pondo um novo conjunto de regras e restrições
h ierárquicas do im pério.
diferentes dinâm icas, com o po r exem plo m ulheres brancas estavam em m elhor posição de
p o d er do que os hom ens colonizados.A s m ulheres coloniais tam bém foram am biguam ente
situadas nesse processo, pois não tom avam nenhum a decisão nem colheram os lucros do
im pério.
corpo, antes percebido com o espaço/território da autonom ia dos sujeitos, naquele período é
b ranco) na qual o universal se traduz no colonizador proprietário branco do norte com o natural
47
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A cesso em: 09 fev. 2021
48
O ENSINO DE ARTES VISUAIS DE CAMPO GRANDE-MS SOB UMA
PERSPECTIVA DECOLONIAL
A M A N D A M A M E D E 34
Resumo: O presente trab alh o propõe reflexões acerca do conhecim ento em artes visuais
corporificado no ensino da rede m unicipal de C am po G rande-M S, através um a análise de
conteúdo no R eferencial C u rricu lar da R ede M unicipal de E nsino (R em e) e na coleção didática
“P o r to d a pA R T E ” , da editora FTD , adotada pelas escolas da rede para o quadriênio 2020 -
2023. E ssa análise é realizada sob a perspectiva decolonial, p artir do m étodo h ip o tético -
dedutivo, com um a abordagem qualitativa e v isa com preender com o a lógica m oderna/colonial
estabelece hierarquias entre os referenciais europeus e estadunidenses, em detrim ento dos
latino-am ericanos. T ais hierarquias inscritas nas narrativas apresentadas pelos docum entos são
evidenciadas, nestas análises, a partir do diálogo entre as teo rias do currículo, os estudos
culturais em educação e a decolonialidade. N este cenário, destaca-se o papel da desobediência
docente com o alternativa possível ao enfrentam ento das estruturas opressivas de poder da
m odernidade/colonialidade, cujo reflexo no ensino de arte é a invisibilização dos referenciais
artísticos/culturais latino-am ericanos, ao passo que os euro-estadunidenses são privilegiados.
Introdução
foi adotada pelas escolas da rede m unicipal de ensino para o quadriêniio 2020-2023.
E stas reflexões são alicerçadas teórica e conceitualm ente na fortuna intelectual dos
estudos decoloniais e dos estudos culturais em educação, sob u m a perspectiva crítica aos
foco desta pesquisa são os conteúdos em artes visuais inscritos nesses instrum entos e a análise
49
A m érica L atina é representada na narrativa da história da arte que os m esm os adotam . D este
m odo, objetiva-se, com estas análises, dem onstrar quais são os conhecim entos em artes visuais
E ssa pergunta abre m argens de interpretação acerca de qual narrativ a da h istória da arte o
com preender suas possíveis contradições e seus prováveis lim ites. C onform e o autor, a grafia
do conceito, separando o prefixo “ des” com u m a barra, é devido ao fato de que form ação e,
epistêm ica” , cunhado por W alter M ignolo (2007), ao referir-se ao que A níbal Q uijano (1992)
aponta com o o cam inho para a crítica ao paradigm a da m o d ern idade/colonialidade35, que é
ser, a colonialidade do ver, a colonialidade do fazer e do p ensar [...]” (2014, p. 17) E o autor
argum enta a favor da opção decolonial com o desobediência epistêm ica (M IG N O L O , 2007, p.
12).
D este m odo, a decolonialidade designa a assunção de um a postura crítica e
35 Conforme Mignolo, a colonialidade “abre uma porta analítica e crítica que revela o lado obscuro da
modernidade e o facto de nunca ter havido, nem poder haver, modernidade sem colonialidade.” (2004, p. 670) O
período considerado moderno, pós-colonização europeia no território americano, não aconteceria sem as invasões,
sem a exploração, sem a escravização, sem o genocídio e o sem roubo desenfreado dos recursos naturais das
Américas durante o período colonial. Foram os recursos humanos traficados e escravizados que construíram a
modernidade, enriquecendo a metrópole e, simultaneamente, arruinando as terras, a natureza e toda vida que aqui
habitava. E ainda, além da ruína dos recursos naturais e humanos, a colonização fabricou fissuras que por vezes
parecem irreparáveis no imaginário da população latino-americana até a contemporaneidade.
50
subalternização e negação dos m odos de ser, conhecer, saber, fazer, sentir e produzir das
sujeitas e sujeitos habitantes de territó rios que, com o fim do colonialism o, encontram -se sob
racism o, o patriarcado, a intolerância contra religiões[...]” (N ETO , 2016, p. 18) e essas form as
de opressão operam através de diversos m ecanism os de v io lência m aterial e sim bólica, que
diz respeito ao estabelecim ento de um reconhecim ento enquanto habitantes do Sul global e isso
conform e M arisa Costa, R o sa Silveira e Luis H enrique Som m er, os estudos culturais
cena pedagógica.” (2003, p. 54) E tais questões, ocupando o prim eiro plano da cena pedagógia
sob u m a p erspectiva decolonial, fornecem ferram entas para a prom oção de u m a subversão da
organização do sistem a-m undo m oderno/colonial, que desum aniza das sujeitas e os sujeitos
T ais questões dialogam , tam bém , com as teorias críticas do currículo. C onform e T om áz
T adeu da Silva, “fazer perguntas sobre representação é, pois, um a das form as centrais de um a
conhecim ento corporificado no currículo? [...]” (2013, p. 194). T ais representações são
m undo em centro (N orte) e periferias (Sul) reflete na problem ática, quando m irada sob u m a
perspectiva crítica, do conhecim ento legítim o corporificado nos currículos ser pautado em
epistem ológicas que subjugam m odos de conhecer, ser, saber e p roduzir não europeus, com o
51
Corpus documental: Referencial Curricular da Rede Municipal de Ensino (Reme) e
coleção didática “Por toda pARTE”
artes visuais para os anos finais do ensino fundam ental apresentadas pelo caderno de
selecionadas cuja U nidade T em ática é A rtes Integradas, o que se justifica em razão das
P o rtaria n° 62, de agosto de 2017, com põe o P rogram a N acional do L ivro e do M aterial
D id ático (PN L D ) durante o p eríodo de 2020 a 2023 e foi adotada pelas escolas da R ede
M unicipal de E nsino de C am po G rande-M S para o com ponente curricular A rte para os anos
finais do ensino fundam ental. D este m odo, am bos os instrum entos pedagógicos podem
cada ano do ensino fundam ental em form a de quadros, contendo três colunas, sendo: 1.
de R ecom endações que possui um a parte com um aos quatro anos e u m a parte específica para
com preendem :
P ara o 6° ano: P ovos Pretéritos: A rte Paleolítica, A rte N eolítica, A rte R upestre, A rte
R upestre no B rasil e em M S, Idade A ntiga: A rte no E gito A ntigo, A rte M esopotâm ica e “A rte
G reco-R om ana” ; para o 7° ano: Idade M édia: A rte C ristã Prim itiva, A rte B izantina, A rte
G ótica, Idade M oderna: R en ascim en to (Itália, A lem anha e P aíses B aixos), M aneirism o,
A m érica P ré-C olom biana (M aias, A stecas, Incas e Povos Indígenas do B rasil) e R ococó; para
52
R om antism o no B rasil, R ealism o, Im pressionism o, P ós-Im pressionism o, P ontilhism o,
S urrealism o e M odernism o no B rasil e para o 9° ano: A rte C ontem porânea: Op-Art, Pop-Art,
C ontem porâneas e N ovas M ídias: G rafite, A rte Povera, Land Art, A rte C onceitual,
M inim alism o, Performances, Happenings, Média Art e Body Art e ao final, A rte
C ontem porânea: A rte C ontem porânea B rasileira e A rte C ontem porânea L atino-am ericana.
dezenove subitens de países europeus, dezenove dos E U A , seis do B rasil e cinco de outras
O docum ento tam bém orienta, na seção de R ecom endações, o estudo da história da
arte a partir da divisão cronológica da h istória “b asead a nos acontecim entos ocorridos na
problem ática, do ponto de vista do ensino de arte de viés decolonial. D este m odo, é bastante
desde a E uropa e tal questão torna-se ainda m ais acentuada com a disposição dos itens e
estadunidenses sem pre após os m esm os. P ara todos os anos, os subitens que abarcam a
produção brasileira, sul-m ato-grossense e latino-am ericana são apresentados apenas ao final,
por últim o.
e pelo Sul global tam bém é encontrado na seleção de referenciais da coleção didática “P o r toda
analisados, as produções artísticas/culturais de outros países do territó rio latino-am ericano são
36 Cabe destacar que os subitens que compreendem a Arte Paleolítica, Arte Neolítica e Arte Rupestre não foram
tabulados neste levantamento quantitativo devido à dificuldade de poder afirmar uma “origem” precisa, no sentido
da possibilidade de poder se apontar de qual lócus geográfico e/ou geopolítico estas manifestações advém. No
entanto, não é incomum observarmos conteúdos de arte rupestre envolvendo as pinturas das cavernas de Lascaux,
na França, ou Altamira, na Espanha. Ademais, etimologicamente, ‘rupestre’ advém do francês rupestre, que se
refere à rocha/rochedo.
53
A m érica L atina (C uba e M éxico) e nove da E uropa (E spanha, H olanda, A lem anha, Portugal e
França); para o sétim o ano é exposto apenas um artista da A m érica L atina (A rgentina) e
dezessete coletivos do continente europeu (E spanha, A lem anha, França, R om ênia, Inglaterra,
S uíça, Á ustria, G récia, Itália, Irlanda e B élgica); para o oitavo ano, são três artístas/coletivos
França, B élgica, Inglaterra, D inam arca, S uécia e B élgica) e, po r fim , para o nono ano não existe
P ara estas análises, endende-se o livro didático com o um instrum ento com plexo que
o livro pode ser considerado um documento e, deste m odo, “ele p assa a ser analisado dentro de
m om ento e sujeito de um a h istória da vida escolar ou da editora.” (2002, p. 86) É potente pensar
no livro didático com o objeto e tam bém com o sujeito, pois ele é um produto cultural, produzido
sob determ inados prism as do que é considerado o conhecim ento legítim o a ser apreendido
pelas/os estudantes, de acordo com determ inado tem po histórico e lócus geográfico; e tam bém
porque o livro didático é p ro d u to r (e/ou m antenedor) desse tem po h istórico e desse lócus
geográfico, que condicionam quais conhecim entos serão os legítim os, portanto, representados
em suas edições.
D este m odo, n esta pesquisa o livro didático é entendido com o fonte docum ental e de
tam bém com o agente, no interm édio das relações didático-pedagógicas, m etodológicas e
políticas. D ito de outro m odo, é com o o “fazer diferentes coisas e coisas dissidentes” com o
conhecim ento, a cultura e o currículo do qual Silva (2013, p. 188) discorre sobre. N essa
que possibilite leitura e interpretação que despertem o sentido histó rico nas relações triviais da
agencia docente diante da m anipulação dos instrum entos didáticos curriculares, destacam -se
as potencialidades de se p ensar a form ação docente não apenas em sua dim ensão acadêm ica,
m as tam bém em um a dim ensão política e cultural. Isso ocorre devido ao fato de que a utilização
de m etodologias progressistas, po r exem plo, não é suficiente para o enfrentam ento das
decolonial, precisa ser versada em u m a postura crítica e com bativa aos cruéis m ecanism os sob
54
os quais as estruturas opressivas m odernas/coloniais subalternizam os conhecim entos em
T om az T adeu da Silva afirm a que apesar das narrativas serem atravessadas pelas linhas
estudos culturais em educação, frente ao terreno do significado que Silva m enciona acim a.
políticos diante do terreno da luta e da contestação acerca das relações de dom inação-
subordinação que se traduzem no estabelecim ento de hierarquias epistêm icas e epistem ológicas
R efletir sobre as teo rias do currículo é bastante com plexo, pois seu saber específico,
conform e Silva, “não lida apenas com um conhecim ento sobre o indivíduo (com o a Psicologia),
m as com um conhecim ento sobre os nexos entre conhecim ento e indivíduo.” (2013, p. 187) Os
instrum entos curriculares, n essa perspectiva, não podem ser separados de seu caráter político
e histórico, ou seja, de sua construção sob determ inadas narrativas, pois essas narrativas, de
Elas dizem qual conhecimento é legítimo e qual é ilegítimo, quais formas de conhecer
são válidas e quais não o são, o que é certo e o que é errado, o que é moral e o que é
imoral, o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio, quais vozes são
autorizadas e quais não o são. As narrativas contidas no currículo trazem embutidas
noções sobre quais grupos sociais podem representar a si e aos outros e quais grupos
sociais podem apenas ser representados ou até mesmo serem totalmente excluídos
55
de qualquer representação. [...] Assim, as narrativas do currículo contam histórias
que fixam noções particulares sobre gênero, raça, classe - noções que acabam
também nos fixando em posições muito particulares ao longo desses eixos. (SILVA,
2013, p. 190, grifos da autora)
conform e Sim one R ocha de A breu, são traduzidas em “relações de poder que fizeram e
parcialm ente ainda fazem com que se repitam as definições de arte herdadas ou im postas pelos
países hegem ônicos com o se esses fossem im utáveis e universais” (2019, p. 951). C onceber
definições de arte com o im utáveis e universais, consequentem ente, dificu lta a busca pelo
p rópria produção desses conhecim entos. E m contrapartida, problem atizar essas definições
viabilizam cam inhos para o descortinam ento de um a agência p articu lar e situada diante das
convenções e definições no cam po da arte que vêm sendo perpetuadas com o universais,
P ortanto, com preendendo a construção social e política acerca dos conhecim entos
possível para “fazer diferentes coisas e coisas dissidentes com eles [...]” (SILV A , 2013, p. 188).
universal sobre os m odos de ser, saber, fazer, entender, conhecer, sentir, produzir e existir não
europeus. T ais m ovim entos dentro da educação são urgentes e fundam entais visto que,
consoante ao que afirm a Silva, “ a distribuição desigual do conhecim ento, através do currículo
distribuição desigual do conhecim ento, através do currículo e da escola, encontram -se no seio
e de fu n d am en tar outros projetos de sociedades, de cam po, de um viver m ais digno e m ais
“ através das narrativas, identidades hegem ônicas são fixadas, form adas e m oldadas, m as
tam bém questionadas e disputadas” (2013, p. 199). A prática desobediente está inscrita no
âm b ito destes questionam entos e disputas e para M oura, o grande desafio de se pensar o ensino
56
como dimensão interrelacional dialógica, na perspectiva decolonial, está em
construir, desde a escola, como primeiro espaço democrático de produção do
conhecimento, olhares outros e, pela via antropofágica, deglutir o que não reflete a
imagem do que é a América Latina e seus povos, na busca da legitimação das imagens
que representam o que sempre foram. (MOURA, 2018, p. 26)
O autor evidencia, conform e enunciado acim a, que apesar de ser um desafio, o ensino
de arte em u m a p erspectiva decolonial possibilita o entendim ento da escola com o o prim eiro
espaço dem ocrático para a produção de conhecim ento versado em olhares outros e cita o
desobedeçam à lógica colonial/m oderna em que os conhecim entos ditos “v erdadeiros” são
u m a vez que há um a estreita relação entre currículo e trab alh o docente. A rroyo levanta a
h ipótese de que o peso norm atizante atribuído aos currículos pode ser visto com o norm as e
território do currículo” (2011, p. 15). Isso ocorre, pois, conform e o autor, a form ação
pedagógica e docente gira em torn o da conform idade do profissional aos currículos, seus
A rtes V isuais (e parte selecionada de A rtes Integradas) pela coleção didática “P o r toda
exatam ente ao que A rroyo critica na citação acim a. A adoção de tais conteúdos, de form a
acrítica, sem o exercício da deglutição pela via antropofágica a qual O sw ald de A ndrade propôs
37 Para melhor compreensão do conceito utilizado, ver: “Manifesto Antropófago” em ANDRADE, Oswald de.
Obras Completas: do pau-brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. p. 11
20. Disponível em <https://monoskop.org/images/9/94/Oswald-de-andrade-Obras_Completas-vol6.pdf> Acesso
em 30 out 2022
57
há quase cem anos e E duardo M o u ra referiu-se exatos noventa anos depois, reflete um a prática
do Sul global.
Portanto, levando em consideração a/o docente com o agente fundam ental para o
os conhecim entos inscritos nos docum entos curriculares, é preciso cham ar atenção para a sua
form ação, não apenas acadêm ica, m as tam bém política e cultural. C onform e M oura, um a
prática docente política e cultural que busque rom per com a lógica m oderna/colonial associa-
decolonial ancorado aos estudos culturais em educação, através da p rática docente m ediadora
tran sfo rm a “ o palco da escola em palco de negociações entre diversos saberes e variadas
im portante no sentido de concebê-los com o ferram entas potentes para conhecer e reconhecer
a(s) realidade(s) latino-am ericana(s), que é contrastante; e tam bém para desenvolver estratégias
e tra ç ar cam inhos possíveis p ara tran sfo rm ar essa realidade, rum o a subversão e ao
enfrentam ento da m atriz colonial, que é racista, classista, patriarcal e desum anizadora.
colonizados não aceitem a perm anência das relações de dom inação e controle e “ no solo
trab ajan para desprenderse de la colonialidad, sino tam bién para construir organizaciones
Perspectivas metodológicas
partindo da hipótese de que as vozes que ecoam a p artir do Sul são subalternizadas e
58
invisibilizadas nos currículos e processos de form ação docente em artes visuais, e som ente se
com o objetivo de aprofundar a com preensão e a discussão acerca dos m ecanism os sob os quais
o discurso construído com o dom inante, que com preende o sistem a m oderno/colonial, se
m antém hegem ônico e excludente nestes docum entos e práticas e se é realm ente possível, ou
até que ponto seria possível adotar um com portam ento desobediente frente à ordem de estru tu ra
social a qual tais docum entos produzem e tam bém são produto.
A análise de conteúdo visa aten d er aos objetivos que proprõem dem onstrar quais são
“P o r to d a pA R T E ” para os anos finais do ensino fundam ental e, tam bém , apontar com o tais
m odernidade/colonialidade.
Considerações finais
A p artir da análise de conteúdo realizada nos referidos recortes dos intrum entos
possível concluir que am bos apresentam um viés obediente às estruturas opressivas de poder
produções de países latino-am ericanos. Isso ocorre, principalm ente, através do aspecto
am ericanos (com exceção do B rasil), que são m uito m enores quando com parados aos oriundos
de países europeus.
tam bém recom enda o ensino de artes visuais a p artir dos acontecim entos históricos ocorridos
59
E ntretanto, o estabelecim ento do diálogo entre as teorias críticas do currículo, os
longo das discussões deste trabalho, a construção de um cenário de contestação das narrativas
que se pretendem hegem ônicas e universais inscritas nos instrum entos curriculares
AGRADECIMENTOS
O presente trab alh o foi realizado com apoio da F undação de A poio ao D esenvolvim ento
Referências
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certezas e reinventar seu cotidiano. In: Inquietações e mudanças no ensino da arte. 2a ed.
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o ensino decolonial. In: U R Q U ID I, V. et al. Atores, fazeres e políticas culturais na
américa latina: com unicação e cultura. PR O L A M -U S P ; São Paulo, 2019.
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60
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67. 2009.
61
CONFLUINDO TEMPORALIDADES: A MOBILIZAÇÃO CULTURAL DO
UNIVERSO RURAL ARGENTINO COMO ESTRATÉGIA DE
MANUTENÇÃO DO CONSENSO POPULISTA NO PRIMEIRO
PERONISMO (1946-1955)38
A N A L A U R A G A L V Ã O B A T IS T A *
Quem são os meus contemporâneos? — pergunta-se Juan Gelman. Juan diz que às
vezes encontra homens que têm cheiro de medo, em Buenos Aires, em Paris ou em
qualquer lugar, e sente que estes homens não são seus contemporâneos. Mas existe
um chinês que há milhares de anos escreveu um poema, sobre um pastor de cabras
que está longe, muito longe da mulher amada e mesmo assim pode escutar, no meio
da noite, no meio da neve, o rumor do pente em seus cabelos; e lendo esse poema
remoto, Juan comprova que sim, que eles sim: que esse poeta, esse pastor e essa
mulher são seus contemporâneos (GALEANO, 2002 - grifos do autor).
O trech o em destaque foi retirado da obra “ O livro dos abraços” do escritor u ruguaio
tom am a figura do po eta e ativista argentino Juan G elm an com o personagem principal. M em bro
ativo dos m ovim entos de resistência de esquerda no decorrer da década de 60, sendo perseguido
por grupos de extrem a direita e obrigado a se exilar do país em 1975, G elm an lu tou contra o
regim e m ilitar ditatorial que se instaura na A rgentina com um golpe de E stado em 1976 e que
p erduraria até 1983. D entre as feridas que a ditadura deixa no argentino, as sessões de tortu ra
pelas quais sua filha h av ia passado e o assassinato de seu filho e de sua nora, que estava grávida,
alim entam os questionam entos que G aleano, em sua obra, atribui ao poeta.
relação entre essas duas dim ensões através da subjetividade do argentino, o qual, em seu
presente de dor e sofrim ento, identifica-se m ais com personagens de um outro tem po que
encontra em um poem a de um passado rem oto e que considera com o seus contem porâneos. A
arte, m ais especificam ente a poesia, parece possib ilitar o estabelecim ento de vínculos entre
duas experiências localizadas em dim ensões espaço-tem porais distintas e que, devido a
diversos fatores que perm eiam o presente do leitor, no caso G elm an, expressam a
38Trabalho elaborado como parte dos requisitos necessários para a avaliação da disciplina “Tempo Histórico,
Modernidade e Modernismo” vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História da UNESP-Franca/SP.
*Graduação em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP/Franca. O
presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
62
intitulada “P rofissão de fé” , afirm ando em nom e do argentino, que apesar dos m achucados da
vida “ [...] sem pre é possível encontrar contem porâneos em qualquer lugar do tem p o e
com patriotas em qualquer lugar do m undo” o que traria u m a espécie de alívio para continuar,
pois teria o hom em “ a sorte de sentir que é algo na in finita solidão do universo: algum a coisa
a m ais que um a ridícula partícula de pó, algum a coisa além de um m om entinho fugaz” .
(G A L E A N O , 2002).
A pesar do lirism o através do qual G aleano se refere à condição do poeta G elm an, a
escolha por iniciar este trabalho a partir das palavras do u ruguaio justifica-se pela concepção
de tem p o que nelas aparece. M ais especificam ente, pela im pressão transm itida de que esse
tem p o não é fixo, único ou linear, m as perm itiria conversões e deslocam entos, contatos entre
questão que se coloca é a que envolve o tem p o e o seu aparente caráter m últiplo.
A T eoria da H istória reserva u m a subárea específica para os estudos tem porais, o cam po
a relação entre o presente, o passado e o futuro podem assum ir em um determ inado m om ento.
D entre as suas principais tendências, destaca-se a teo ria das “M últiplas T em poralidades” ,
convivem superpostas um as às outras. N esse sentido, qualquer presente sem pre é atravessado
por outros sedim entos do tem po que se m ovem em ritm os diferentes e se interferem
m utuam ente, o que denom ina de “ contem poraneidade do não-co n tem p o rân eo ” (K O S E L L E C K ,
2006, p. 196, 317). U m a noção de tem po m últiplo, a qual podem os relacio n ar com aquela que
G aleano (2002) nos apresenta tom ando G elm an com o seu eu-lírico e que possibilitaria
A teo ria tem poral de K oselleck abrange tam bém o tratam ento do cam po dos “regim es
de tem poralidade” , os quais se referem à v ivência tem poral hum ana da articulação entre o seu
apresentaria dois im portantes balizadores tem porais por ele denom inados de “ espaço de
39A discussão teórica envolvendo os trabalhos de Reinhart Koselleck e Stefan Helgesson aqui apresentada
constitui uma versão sintetizada da desenvolvida pela autora em Batista (no prelo).
63
(Ibid., p. 324). São esses m ovim entos em relação ao presente analisado que vão organizar em
O final do século X V III, com o aponta K oselleck (2006), m ais especificam ente a partir
do desenrolar dos m ovim entos revolucionários na E uropa, teria inaugurado gradativam ente um
p. 316-317). N esse sentido, diante dos progressos técn ico -in d u striais e da consequente
aceleração dos prazos e ritm os cotidianos, a era m oderna seria m arcada pelo distanciam ento
contínuo entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativa. C onform a-se, desse m odo,
passado determ inado pela palavra cristã, constituindo-se, assim , um regim e de tem poralidade
centrado no futuro, o qual deveria ser diferente tanto do passado com o do presente para se
buscam v erificar em piricam ente esses aspectos teóricos no âm bito da experiência histórica.
bin ária a p artir da qual m uitos pesquisadores identificados com a p erspectiva historiográfica
pós-colonial com preenderíam a ideia de tem poralidade. É visando superar essas interpretações
hom ogeneizadora da m odernidade, que H elgesson (2014) realiza a sua atualização crítica da
teo ria koselleckiana. A pesar de responsabilizar negativam ente K oselleck por im posição da
encontra um a possível solução ao rad icalizar a noção das m últiplas tem poralidades e as
categorias que a acom panham . D essa form a, elabora u m a concepção de tem po constituído
64
através de m ediações de diversas naturezas, o qual nunca seria exclusivam ente m oldado por
u m a tem poralidade hegem ônica, m as acom odaria diferentes ritm os conflituosos entre si.
tem p o capitalista centrado no futuro e aos ritm os da m odernidade, existiriam tem pos locais
divergentes que conviveriam sim ultaneam ente com a tem poralidade hegem ônica do progresso,
constituindo, assim , versões alternativas desse tem po m oderno linear e hom ogêneo
coloniais ou pós-coloniais os conflitos entre essas distintas cam adas de tem po. N esse sentido,
narrativa, utilizando-se, para isso, de form as reconhecidas no in terio r das redes discursivas
1955), conjuntura que, apesar do deslocam ento espaço-tem poral, perm ite pensá-la com o um
exem plo de m odernidade alternativa nos term os de H elgesson. D esse m odo, p arte-se de
docum entos ligados ao projeto cultural do regim e que evidenciam o discurso populista do
tem poralidades, conversões que possibilitariam que o ím peto pelo progresso industrial e
técn ico da nação - para que esta se tornasse cada vez m ais u rb an a e m oderna - pudesse conviver
sim ultaneam ente com um universo rural e folclórico extensam ente veiculado pelas políticas e
65
populism o. P ara L aclau (2013) o fenôm eno político em questão constitui um a form a específica
de articulação discursiva que perm ite constituir e organizar as relações sociais a p artir da
prom oção de determ inados sentidos com uns em sociedades fragm entadas em decorrência de
u m a crise de legitim idade. P ara que isso ocorra, o populism o operaria com o um conjunto de
ferram entas retóricas voltadas à articulação e à unificação sim bólicas das dem andas
(L A C L A U , 2013, p.97-103).
A prom oção de um a hom ogeneização ilusória dos valores, dos interesses e dos sím bolos
de um determ inado grupo social perm itiria resg atar u m a suposta unidade do corpo social, o que
essa totalidade, alim entando um sentim ento de coesão social e de pertencim ento sim ultâneo a
determ inado país, o que envolveria a decom posição de um sistem a social anterior. Tais
com o coloca a historiadora M aristella Svam pa, o populism o não pode ser pensado com o um
industrialização de B uenos A ires, som ado ao aum ento da im igração para a capital de habitantes
legitim idade entre o sistem a institucional vigente e os grupos recém -chegados que se sentiam
excluídos da vida política e sim bólica da nação ao não terem atendidas as suas dem andas. Em
66
4 de Junho de 1943 um golpe sobre o governo argentino de R am ón C astillo dá início a um a
criada em 1943, im plem entando um a política aproxim ada do cam po social, de abertura aos
trabalhadores. A aproxim ação com esses grupos recém -chegados e o atendim ento de algum as
de suas principais dem andas seria fundam ental para a conform ação da principal base eleitoral
que legitim aria a aliança nacio n al-p o p u lar proposta pelo peronism o e que apoiaria a sua eleição
P eró n procurou p rom over um a m aio r p articipação social e política desses setores, ao m esm o
tem p o em que em preendia diretrizes que visavam organizar e un ificar essa classe trabalhadora
de m odo a alim entar os discursos que tentavam aproxim á-la de sua figura e caracterizá-la com o
em seus alicerces fundam entais e o próprio P erón apresenta o seu governo com o u m a etapa
evolutiva rum o à “N o v a A rgentina” , a qual seria m arcada pela unidade, pelo bem -estar com um
P erón realizaria a apresentação geral do P rim eiro Plano Q uinquenal (PPQ ), planificação que
orientaria a ação governam ental durante o prim eiro m andato. N o evento, em discurso proferido
T écnico da P residência da N ação, principal responsável pela elaboração do plano, afirm a que,
“ na atual etapa de nossa evolução econôm ica, a prom oção do b em -estar geral exige a propulsão,
A rgentina de Perón, as quais aparecem frequentem ente interligadas nos discursos oficiais. N o
C apacitação com o um dos direitos fundam entais dos trabalhadores, a qual, v isan d o “ o
m elhoram ento da condição hum ana e a proem inência dos valores do espírito” , reclam ava “ a
p. 52). A ssim , caberia à sociedade civil “ estim ular o esforço individual de m odo a proporcionar
os m eios para que, em igualdade de oportunidades, todo indivíduo possa exercitar o direito de
A s ações do M inistério da E ducação tinham com o alvo principal o ensino prim ário,
elaborando cartilhas que fom entavam u m a form ação predom inantem ente técn ica que
67
sistem a educacional com o espaço de propaganda política e com o instrum ento para in cu lcar os
nas áreas da cultura e da educação visavam p rep arar o trab alh ad o r para o processo de
M as as políticas culturais prom ovidas pelo governo peronista durante os seus dois
prim eiros m andatos, as quais ganhariam suporte através das iniciativas no âm bito educacional,
tam bém buscariam atender a um a outra dem anda que atingia a realidade do país e que pode ser
considerada de caráter tem poral, para além da n ecessidade de preparar e ordenar as m assas
rum o ao futuro da N o v a A rgentina. A análise dessas iniciativas culturais nos perm ite identificar
o contato e a convivênia entre distintos m odos tem porais que podem ser concebidas com o
intensificação dos fluxos m igratórios internos de habitantes que, sobretudo devido à adoção de
saldo im igratório interno, que até 1936 se m antinha em 8.000 (pessoas) anuais, salta
b ruscam ente para 72.000 po r ano entre 1936 e 1943, para chegar aos 117.000 anuais entre 1943
predom inava na cidade, sobretudo nas regiões m ais centrais e distantes das periferias onde se
estabeleceu a grande p arcela dos trabalhadores recém -chegados tan to do in terio r com o do
com o u m a sociedade estabelecida, educada e ilustrada, a qual se orgulhava de ser cosm opolita,
vida da classe trabalhadora, passando esta a ter um m aior acesso a espaços públicos que até
68
então se restringiam a setores m ais abastados da sociedade argentina, com o salas de cinem a e
teatros. E ssa m aior convivência entre distintos segm entos é concebida pelas classes m édia e
alta com o um a v erd ad eira “invasão” provinciana das cidades, u m a am eaça ao estilo de vida
urbano e ao seu status social, recorrendo, assim , a processos de esteriotipização com o estratégia
pelos anti-peronistas de term os pejorativos com o “ d escam isados” ou “ cabecitas negras” para
se referir aos m ilitantes peronistas, sobretudo no decorrer da cam panha para as eleições de
1946.
N esse m om ento, percebem -se os rastros deixados p ela histórica oposição entre
civilização e barbárie, frequentem ente evocada pelas elites liberais no século X IX para
defender a vitória daquela sobre esta, ou seja, o triunfo do m oderno sobre a tradição, do urbano
sobre o rural, do progresso sobre o atraso. N a urgente necessidade de se nom ear e classificar
aqueles “estranhos” apoiadores de Perón, criam -se term o s extrem am ente depreciativos que
com binavam em si referências ao debate político vigente no m om ento com noções classistas e
racistas. D esconsiderando-se a heterogeneidade dos tipos hum anos, os seus com portam entos e
os seus traços fenotípicos predom inantem ente m estiços eram utilizados tendenciosam ente para
capital e o interior, experiências e ritm os tem porais convivendo sim ultaneam ente, em conflito
entre si, e interferindo diretam ente no destino político da A rgentina. E sse cenário de disputas
conform a o m om ento da eleição de Perón, o que acaba refletindo em divisões sociais de caráter
classista, étnico e identitário que não eram interessantes à articulação discursiva do populism o,
p o p u lar unificado. P ara lidar com essa conjuntura, seria necessário construir e prom over um a
cultura cotidiana considerada legitim am ente nacional que pudesse, no plano sim bólico,
É nesse sentido que o projeto cultural do peronism o tam bém prom overia a recuperação
e a difusão m assiva de elem entos característicos do folclore e das tradições cam pesinas ligados
aos setores populares recém -chegados à capital com o cam po estratégico para suas negociações
2015). N o docum ento oficial do PPQ , d efende-se que, a fim de se desenvolver u m a cultura
69
considerada em inentem ente nacional, “ o estudo das expressões folclóricas, da m úsica e das
danças populares, essência dos sentim entos de um povo, deve ser cuidado pelo E stado com o
expoente da cultura íntim a e p opular e com o base p a ra o desenvolvim ento de form as próprias
elevar a m oral e o “ espírito” dos argentinos através de um a cultura considerada em inentem ente
argentina e peronista. Para construí-la, o olhar é direcionado para o passado, obviam ente não o
concebidos com o a verd ad eira essência da N ação argentina, cujas referências estéticas e m orais
que tom am o universo rural e o folclore com o foco com um , destacam os o planejam ento e a
T radição a ele vinculado, o qual visava a identificação, o registro e a classificação das tradições
populares e dos elem entos folclóricos “ sobreviventes” encontrados nas regiões interioranas da
província de B uenos A ires a p artir do trabalho facultativo de professores do ensino prim ário
(B L A C H E , 1991, p. 56-66).
O recurso a essa iniciativa pelo peronism o em 1951 dem onstra o interesse do projeto
cultural do regim e em reu n ir to d a um a base de dados a respeito desse universo rural a fim de
com por um possível arsenal para suas propagandas e program as culturais baseados na
efeitos culturais do im perialism o, principalm ente na capital. Para tal em preitada, B runo C.
para os organism os responsáveis, o qual deveria orientar o trabalho a ser realizado pelos
gerais a serem seguidas pelos colaboradores, encontram os a definição dos tipos de elem entos
70
professores.41 A dotando-se um a posição alinhada às tendências da folclorística de países
sociedade. O u seja, deveriam ser recopilados apenas produtos, técnicas e tradições culturais
encontrados em grupos hum anos que necessariam ente estariam vinculados à organização da
O s prim eiros critérios de seleção e delim itação do m aterial a ser recopilado pelos
progressiva ocidental. D entro dessa perspectiva de análise, a prim eira sessão do folheto reserva
u m a parte específica para classificar os tipos de patrim ônio que conviveriam sim ultaneam ente
na A rgentina:
[..]
III) Patrimônio popular: Fugaz e comum a toda a sociedade, com centro de irradição
nas grandes cidades (modas);
IV) Patrimônio folclórico: Duradouro e próprio dos grupos regionais e do substrato
rural e aldeão no geral (MANUAL-GUÍA, 1951, p. 4).
espacialm ente cada tipo de patrim ônio, o próprio folheto reconhece que os elem entos que
com põem cada um deles poderiam circular pela sociedade argentina, apontando-se, por
exem plo, que m esm o nas cidades m ais m odernas e distantes do cam po e ra possível encontrar
diferentes segm entos sociais, com destaque para as pessoas rústicas e aldeãs que integravam
b o a parte da classe trab alh ad o ra e do serviço dom éstico (M A N U A L -G U ÍA , 1951, p. 4). N esses
casos, o folclore se encontraria “ em grande parte latente, reprim ido ou sufocado por falta de
am biente com unitário e por um relativo isolam ento cultural” diante de um a sociedade
E m m eio às lutas por representação que se instauram no espaço cultural argentino nesse
m om ento e de acordo com os objetivos do presente trabalho, cham a a atenção a distinção que
41A análise do documento em questão aqui apresentada constitui uma versão modificada de outra já publicada no
artigo Política cultural, folklore y tradición: las directrices oficiales de la Encuesta Folklórica peronista de 1951
(BATISTA, 2022, p. 184-207).
71
apresentada no m anual oficial com o referência, o discurso populista prom ovido por P erón
p arece se esforçar em deslocar os elem entos característicos do p atrim ônio folclórico argentino,
diretam ente vinculado à tem poralidade rural, para o âm bito do patrim ônio popular, com centro
ser definida com o “heterocrônica” nos term os de H elgesson, visando a conform ação de um a
identidade nacional com um . T odavia, essa transform ação do patrim ônio folclórico argentino
em “ patrim ônio p o p u lar nacional” deveria ser acom panhada de procedim entos de adaptação:
Da mesma forma, deve-se observar que as formações do grupo III (modas), nas
grandes cidades cosmopolitas modernas, para serem admitidas por todo o
conglomerado social, até mesmo pelo substrato urbano [...], muitas vezes precisam
tingir-se de vulgaridade (MANu Al -GUÍA, 1946, p. 4-5).
para que o P atrim ônio p opular pudesse ser adm itido pelo conjunto da sociedade com o um todo,
não devendo ser entendida necessariam ente com o um procedim ento depreciativo. Logo, para
que os elem entos ligados a u m a tem poralidade rural pudessem ser introduzidos no cam po do
P atrim ônio popular, gerando identificações e sendo consum idos por outros estratos sociais das
zonas urbanas, eles deveriam ser form atados e adaptados ao am biente m oderno da cidade.
todo desem penham um papel fundam ental para a configuração de um a h egem onia política
1997, p. 220-228). N o caso do peronism o, esses m eios de com unicação, para além de
representarem em si o avanço tecnológico pelo qual o país estaria passando, eram essenciais
sociais, técnicos e trabalhistas que o governo teria alcançado, m as, sobretudo, constituíam
identidade nacional com um a todo o povo argentino, confluindo tem poralidades distintas.
im prensa, dentre outros canais, que se em preendiam estratégias fundam entais para o
rom pim ento das resistências da cidade aos elem entos hum anos e sim bólicos provenientes do
representações folclóricas de acordo com o ritm o acelerado dos m eios de com unicação, em
72
outras palavras, as operações de aproxim ação entre distintas tem poralidades - a m odernidade
p o ssibilitando que outros grupos tam bém se identificassem positivam ente com elas e fossem ,
desem penhou um papel essencial para a m anutenção da coesão política e sim bólica do governo
reform ulação da C onstituição em 1949, estabelecendo-se, sob a direção de R aul A pold, toda
com unicação privados. E xem plo disso é a criação do grupo A L E A no m esm o ano, m onopólio
estatal que exerceu o controle sobre os m ais destacados jornais, em issoras de rádio e
publicações do país a partir da direção de C arlos Aloé. Sob o com ando do grupo, destaca-se a
editora Haynes, responsável pela publicação de um a série de periódicos com am pla circulação
O prim eiro núm ero publicado pelo periódico sem anal Mundo Radial data de ju n h o de
1949, configurando-se com o um a das típicas revistas de rádio que circulavam na A rgentina
desse m om ento. D e alcance nacional, a revista trazia em suas páginas notícias sobre o rádio, o
cinem a e o teatro, além dos últim os lançam entos da indústria fonográfica, publicidades e outros
tó picos m ais gerais, frequentem ente acom panhados de ilustrações ou fotografias (Ibid., p.103).
A p artir de seu sexto núm ero, Mundo Radial especifica u m a seção de seus conteúdos para o
universo de tem áticas folclóricas, denom inada Nuestro Folklore, a qual apresentaria u m a série
de artigos que, em tom claram ente doutrinário, saíam em defesa do folclore e da figura do
D esse m odo, pode-se in ferir que a revista Mundo Radial constitui um conjunto
docum ental interessante p ara se p ensar as possíveis estratégias de form atação, atualização e
ativam ente com a política peronista de inclusão da cultura provinciana no am biente urbano
cosm opolita, ten d o o universo do entretenim ento e as artes de espetáculo com o a m úsica, o
E m respeito aos lim ites propostos a presente explanação, não será possível apresentar
os resultados p arciais das investigações em andam ento a respeito do referente docum ento, os
quais ficarão para um próxim o trabalho. T odavia, é possível perceber tan to no âm bito da revista
73
com o em um projeto cultural m ais am plo que, no processo de construção e m obilização do
“ povo” do peronism o, destaca-se com o principal referência a figura do gaucho, o típico hom em
do cam po a qual passa, no im aginário que alim enta as políticas culturais peronistas, a constituir
o m odelo síntese do típico cidadão argentino. A p artir desse processo de ressignificação, o qual
tam bém é perceptível nos tópicos apresentados na seção Nuestro Folklore da revista, o gaucho
é aproxim ado do m undo do trabalho, referência fundam ental para os discursos do presidente,
representando, assim , aquele hom em com um , até então excluído da vida da nação e que, a partir
do ju sticia lism o e dos avanços conquistados pelo peronism o, teria sido integrado política,
CONSIDERAÇÕES FINAIS
p o pulista do governo de Juan D om ingo P erón na A rgentina (1946-1955) a p artir da dim ensão
palavras, as dissonâncias e as conversões tem p o rais que perm item que nos arrisquem os a
relações sociais na A rgentina a p artir da m o bilização de pertencim entos com uns com o objetivo
D essa form a, reco rrer a políticas que buscavam fo rm atar e difundir as referências culturais das
essa im agem historicam ente dicotôm ica, buscando, de certa form a, superá-la, o discurso
74
estrangeiro. A presentando-se com o um tem po de evolução, o peronism o não b u sca se opor aos
buscaram aproxim ar distintas tem poralidades que já conviviam sim ultaneam ente, apresentando
com o principal base de seu projeto os m eios de com unicação de m assa. Esses, p o r sua vez,
a essas referências interioranas cada vez m ais presentes no m eio urbano, procurando-se, assim ,
superar a fragm entação social e conform ar u m a cultura nacional e peronista que pudesse
abarcar todo povo argentino. C om um a B uenos A ires heterogênea, m arcada pela presença de
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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76
AS PRÁTICAS SOCIOEDUCATIVAS E RESISTÊNCIAS
DESENVOLVIDAS NA ALDEIA POÇO DANTAS DE UMARI, CRATO -
CE, QUE CONTRIBUEM PARA CONSTRUÇÃO DE UM MOVIMENTO
EDUCACIONAL INDÍGENA
A N A R O B E R T A D U A R T E P IA N C Ó (U R C A /U F R N ) *
povos negros e indígenas42. D esde o passado escravista, o projeto colonizador foi incom patível
com as aspirações das populações negras e indígenas. T ais características foram herdadas pela
A ssim , a história desses sujeitos sociais é m arcada por lutas e resistências ininterruptas
contra to d as as form as de am bição e exploração que o capitalism o produziu nas m ais diversas
partes do território brasileiro. A região sul do E stado do C eará não fugiu a essa lógica e, na
virada do século X X para o século X X I esse processo passou po r recrudescim entos que
indígenas C ariris da A ldeia P oço D antas - U m ari, localizado no m unicípio de C rato - CE, pelo
reconhecim ento da etnia K ariri, após 147 anos da expulsão dos seus ancestrais do territó rio
caririense.
A dem ais, os indígenas que perm aneceram nos seus territórios de origem , foram
literalm ente coagidos a esconder suas identidades e adaptarem -se ao m odo de vida im posto
pelos grandes proprietários de terra das regiões m ais próxim as para conseguirem se proteger,
sendo m uitas vezes h eteroidentificados com o cam poneses, caboclos e/ou pequenos produtores
42*Professora efetiva do curso de Geografia da Universidade Regional do Cariri URCA, Mestre em Geografia
(UFPE) Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade Federal de Rio
Grande do Norte-UFRN.
Utilizamos as expressões: povos indígenas, indígenas ou povos originários nesse trabalho para nos referir aos
nativos, indivíduos de vários grupos étnicos brasileiros, conhecedora das ambiguidades desta denominação, uma
vez que o termo índio foi criado pelos colonizadores europeus e se perpetuou ao longo do tempo. Balizada em
Oliveira (2003) “substitui-la nesse momento implicaria uma outra invenção”.
77
C ertam ente, a ocultação das suas ancestralidades e o m edo da identificação é um a
realidade às quais m uitos povos originários ainda estão sujeitos, com o é o caso do povo Cariri
da A ldeia Poço D antas - U m ari. A ssim , os “Indígenas C ariris” que perm aneceram na região do
não serem identificados, tem endo represálias ou associação pejorativa sobre o “ ser ín dio” ,
A credito que foi a p artir daí a sociedade não índia foi forjando um a ideia de que era
u m a questão de tem po o fim da nação K ariri. T odavia, assim com o outras nações indígenas, os
K ariri não foram passivos aos obstáculos colocados pela sociedade de não ín d io s e nunca
pararam de resistir e (re) existir. O sentim ento de pertença a seus territórios e ou de querer
A exem plo que pude observar na A ldeia Poço D antas - U m ari, aonde m esm o diante da
negação da não existência de povos da N ação K ariri no C eará e na R egião do C ariri, eles
criaram m ecanism os de resistência, cujo elem ento m ais im portante foi a luta pela preservação
da m em ória individual e coletiva, que resultou no tem po presente no M ovim ento de R etom ada
C ariri.
autoafirm ação, aconteceu no ano de 2007, a p artir da visita de R osi K ariri que esteve no S ítio
P oço D antas U m ari a procura de parentes da etnia K ariri/C ariri no m unicípio de Crato.
D esta feita, o presente artigo tem po r objetivo analisar com o a retom ada das práticas
de alcançar tal m eta, delineei com o objetivos específicos: Id en tificar a história do tem po
presente dos povos indígenas da etnia no C ariri cearense e investigar o protagonism o fem inino
no processo de etnogênese em desenvolvim ento na A ldeia poço D antas U m ari tem colaborado
78
AS ESCOLHAS DE DIÁLOGO SOBRE A HISTÓRIA DA IDENTIDADE DE UM
POVO INDÍGENA
O desejo de escrever a histó ria de um povo que b uscou recu p erar sua identidade após
no C ariri cearense, assim com o, pelas tentativas sistem áticas de etn o cíd io s43 m e levou a
defender com o argum ento de tese que a retom ada de práticas socioeducativas desenvolvidas
pelo povo C ariri da com unidade Sítio Poço D antas - U m ari devidam ente registradas em vídeos
e docum entários por eles e disponíveis em rede, contribuem para a construção de um projeto
de vida coletivo e o p ensar educacional indígena, especialm ente na criação da escola indígena
na com unidade.
P ara tanto, com o recorte espacial, elegeu-se p ara essa análise a A ld eia P oço D antas -
U m ari, que se encontra em processo de auto identificação com o indígena da etnia C ariri,
localizada no D istrito de M onte A lverne, no m unicípio de C rato - CE, po r apresentar elem entos
Já no que diz respeito ao recorte tem poral, optei po r in iciar a partir do ano de 2007,
ten d o em vista, ter sido o ano no qual receberam a visita de um a indígena C ariri que, na procura
por sua ancestralidade, despertou nos m oradores do Sítio P oço D antas o intuito de se auto
identificarem na etnia C ariri e 2020, para fin d ar essa pesquisa, po r te r sido o m om ento
F aço inicialm ente u m a breve apresentação da A ldeia, a partir da escuta e da fala das m ulheres
A A ldeia P oço D antas - U m ari está situada no Sul do E stad o do C eará, no m unicípio
de Crato, m ais especificam ente no distrito de M onte A lverne, aproxim adam ente a 27
quilôm etros da zona urbana da cidade. F oco a apresentação da aldeia balizado no trabalho de
43 Utilizamos, Etnocídios como significando o extermínio sistemático de um estilo de vida dos povos originários
no Brasil, Ceará e Cariri, ARRUTI, Mauricio. Etnogêneses Indígenas. Povos Indígenas do Brasil.
79
Joedson N ascim ento (2021) ten d o em vista que, m elhor representa a com preensão do território
do povo C ariri de P oço D antas - U m ari, levando em conta que, P atrício M elo (2017) na sua
tese de doutoram ento, ao apresentar a com unidade, restringe a área onde residem algum as
lideranças da aldeia com o D o n a R osa, D o n a N ilza, D o n a A na, o C acique Pau, V ania Cariri,
dentre outras fam ílias que denom inam esse núcleo de M o rro . C om o caracterizou Joedson
N ascim en to (2021, p. 48): “ [...] P oço D antas é um conjunto form ado po r P oço D antas, M onte
A lverne, A reinha, T abocas, Toca do Índio e áreas do entorno do A çude U m ari - são habitadas
Imagem I - Distrito de Monte Alverne e os lugares e ocupação dos Cariris de Poço Dantas
- Umari.
C rato, destaco o relato de V anda Cariri (25 de jan e iro de 2022) que diz que o território indígena
[...] A ocupação territorial indígena há milhões de anos atrás, onde nós não tínhamos
divisão territorial nós ocupávamos esse território transitavam íamos e víamos nessa
chapada do Araripe sem definição e sem delimitação, né? Nós só vivíamos dessa
forma é tanto que hoje dizem assim: “aí nós temos sítio arqueológico em tal local,
mas não tá no território”. Sim, todos esses territórios são território Cariri.
80
Im portante destacar que, nesse artigo reflito com o povo Cariri de P oço D antas - U m ari
a partir dos seus relatos, o desejo de se auto afirm ar indígena e investigo a m otivação e o
(A R A U JO , 2018).
Sobre identidade, nos apoiarem os em Stuart H all (2020) quando diz que:
O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se
tornando fragmentado: composto não de uma única, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias ou não resolvidas.. .o próprio processo de identificação,
través do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais
provisório, variável e problemático. (Stuart Hall 2020, p. 11)
N essa perspectiva, esse processo produz o sujeito pós-m oderno, entendido com o não
form ada e transform ada continuam ente em relação as form as pelas quais som os representados
ou interpelados nos sistem as culturais que nos ro d eiam ” (H A LL, 2020, p. 11-12).
D o ponto de vista de Stuart H all (2014), as histórias são realm ente contestadas e isso
ocorre, sobrem aneira, na luta política pelo reconhecim ento das identidades. N essa perspectiva,
o autor nos diz que há duas form as diferentes de se p ensar a identidade cultural:
A credito que a segunda concepção apresentada pode ser u tilizada por m im nesse
trabalho, um a vez que a A ldeia P oço D antas U m ari, tem buscado fortalecer o processo de
autoidentificação através das p ráticas cotidianas, m em órias e troca de saberes entre os anciões
81
C ertam ente, im pulsionando o início do M ovim ento Social de R etom ada Cariri através
m uito delicado de se tratar, devido a to d a um a construção social que nega, oprim e e desfalca
É em virtude dessa realidade que a luta pelo território é tam bém um a luta contra o
racism o, perpassada pela ressignificação e valo rização da cultura tan to indígena, quanto afro-
brasileira.
C om certeza, o m ovim ento de retom ada indígena representa um sím bolo de resistência
e de luta pelo direito à autonom ia desses povos originários, o que im p lica na apropriação do
C oncordo com B eatriz Silva e C láudio G onçalves (2017) quando sustentam que a
retom ada de territórios é um a das principais form as de resistência indígena, não se restringindo
apenas ao processo de reconhecim ento da terra com o sendo indígena, m as abrangendo tam bém
os lim ites estipulados para cada povo. A cultura e as r-existências das práticas tradicionais são
B usco apoio em M ichel F oucault (1998) p a ra falar sobre resistência, quando ele afirm a
que as lutas surgem com o força dentro da p rópria relação de poder. D a m esm a form a que o
p o d er é um a relação com o tal, as lutas contra seu exercício ocorrem no interior de tal relação
(e não de fora).
para o em prego de m ecanism os de poder. P recisam os com preender que, na visão de M ichel
O p o d er não é algo que se possui, nem um lugar que ocupa. D ecerto que o poder não
está concentrado no E stado, m as espalhado pela sociedade. E m outras palavras, o poder não
A pesquisa visa, tam bém , problem atizar o conceito de território balizado em P o rto -
G onçalves (2006), entendendo que não é algo anterior ou exterior à sociedade. “ O território é
o espaço apropriado, instituído po r sujeitos sociais e ou grupos que se afirm am por m eio dele”
territorialidades.
82
P ortanto, penso que, as práticas educativas to rn aram -se um a categoria fundam ental para
p erceber com o a educação servirá com o pilar para a reestruturação da tradição e cultura desse
povo.
P arto do princípio de que, os processos educativos tam bém podem ser identificadas
através das p ráticas tradicionais e cotidianas no qual os m ais velhos são detentores por
excelência, onde a socialização desses saberes e educação das novas gerações é feita através
e visitas, onde a b o a prosa corre solta, os m ais velhos falam sobre o passado e o presente dos
P ovos C ariri.
estão sendo rem em oradas, ressignificadas e registradas em vídeos, especialm ente, atividades
receitas tradicionais, artesanato com o cipó, barro, v aran d a de redes, crochê, danças, rezas, ritos
e m itos que no tem po presente têm sido socializadas com as crianças, jo v en s e adultos da
autoidentificação dos m oradores do Sitio P oço D antas - U m ari e o debate sobre a necessidade
de (re) conquista do território, principalm ente para práticas agrícolas e extrativistas, po r ser
T hiago Silva (2021), destaca os sérios desafios que os povos indígenas enfrentam para
sua reprodução m aterial e sim bólica. D aí afirm ar a im portância do m ovim ento de retom ada: “ é
onde se estabelecem razões de ordem m aterial e cultural sobre o porquê lutar” (p. 233).
h istória do tem po presente dos povos originários da etnia K ariri no C ariri cearense
relações sociais nelas desenvolvidas, no intuito de construir conhecim entos que visem
fo rtalecer as subjetividades dos sujeitos sociais envolvidos na pesquisa, um a vez que esse
trab alh o é coletivo, construído com o P ovo C ariri de P oço D antas U m ari.
P ara tanto, faço u m a escrita da história do Povo C ariri de Poço D antas - U m ari voltada
ao tem p o presente, conform e explicita seus pressupostos R einaldo L ohn (2019) quando reflete
sobre a im portância de um a h istória com prom etida e questionada pelo presente, envolvendo
83
SOBRE AS FORMAS DE PERCEBER UMA CULTURA E ESCREVER A HISTÓRIA
DE UM POVO
desenvolvim ento. A ssim , proponho para esse trab alh o um a abordagem qualitativa a p artir da
h istória oral, com o m etodologia e m étodo principal do trabalho. P osteriorm ente faço o
cruzam ento de diferentes fontes que utilizo na pesquisa com a intenção de prom over um a
aproxim ação entre o pesquisador e a realidade a ser investigada, assim com o refletir sobre
Seguram ente, que ao trab alh ar com a abordagem qualitativa para o objeto de
investigação social, o pesq u isad o r deve considerar que as pessoas envolvidas no processo da
pesquisa são “ [...] sujeitos do estudo, pessoas em determ inadas condições sociais, pertencentes
a um determ inado grupo social ou classe, com suas crenças e valores e significados”
(M IN A Y O , 1993, p. 22).
P o r certo, a história oral é constituída com o instrum ento bastante relevante na área de
ciências hum anas, o que possibilitará a coleta de inform ações estratégicas, de lideranças d a
tradicional com unidade indígena pesquisada, quando do relato através da oralidade de suas
N essa perspectiva, a partir da escuta dos relatos e de leituras de trabalhos sobre A ldeia
P oço D antas U m ari m e detenho na história oral tem ática, um a vez que m e debruço no recorte
m uito p articular na vida dos entrevistados, especificam ente entre os anos 2007 - 2020.
tem poralidade m ais distante p assada de g eração a geração. Portanto, o tem a bem delim itado e
o recorte tem poral definido m e im pulsionaram a esta escolha. N essa perspectiva, a história oral
b aliza-se na m em ó ria hum ana e na sua capacidade de revisitar o passado enquanto testem unha
do vivido.
Ao contrário da maioria dos documentos históricos, as fontes orais não são encontradas,
mas cocriadas pelo historiador. Elas não existiríam sob a forma em que existem sem a
presença, o estimulo e o papel ativo do historiador na entrevista feita no campo. Fontes
orais são geradas em uma troca dialógica, a entrevista: literalmente, uma troca de
olhares. Nessa troca, perguntas e respostas não vão necessariamente em uma única
direção. (PORTELLI,2016; p.10)
84
A propósito, n essa troca, a agenda do historiador/pesquisador deve adequar-se à agenda
do narrador, m as m uitas vezes o que o pesquisador quer saber pode não coincidir com que o
n arrador quer contar. C om o resultado, toda a agenda da pesquisa pode ser drasticam ente
revisada.
A ssim , ao utilizar a história oral com o fonte e m étodo, assum o o com prom isso de
socializar a sistem atização das transcrições das entrevistas e posteriorm ente do docum ento final
com a A ldeia P oço D antas U m ari, em conform idade com a orientação de M eihy & H olanda
Diz respeito aos compromissos comunitários requeridos pela história oral que,
sempre, deve prever o retorno ao grupo que a fez gerar. Seja em forma de livro,
exposição ou mesmo de doação dos documentos confeccionados, a devolução é
capital” (MEIHY; HOLANDA 2017, p. 31).
M ichael F risch (2016) que ao u tilizar o exem plo da m etodologia da h istó ria oral pondera que
os pesquisadores não são os únicos intérpretes da história que investigam , nesse sentido, não
M ichael F risch (2016) afirm a que o narrador (fonte entrevistado) estar m ediado por
RESULTADOS E DISCUSSÕES
invisibilidade engendrada nos séculos passados para o protagonism o duram ente conquistado
nos séculos X X e X X I a partir dos m ovim entos sociais, especialm ente, organizados pelos
indígenas, com apoio de outros setores da sociedade civil e O rganizações N ão G overnam entais
(O N G ’s), ao m ostrar a valorização dos sujeitos nos processos históricos experim entados pelos
D aí concordar com P acheco O liveira (1998) quando diz que o processo de etnogênese
que vem ocorrendo no N ordeste nos últim os v in te anos, vem abrangendo tanto a em ergência
85
P ara tanto, nesse trabalho, defendo o conceito de protagonism o indígena resultante das
lutas e resistência no qual configurou-se os m ovim entos sociais, especialm ente o m ovim ento
A presento nesse artigo fragm entos dos resultados alcançados explicitado no prim eiro
C ariri de P oço D antas - U m ari, a partir da escuta e da fala das m ulheres indígenas, na qual a
de autoidentidade indígena.
de m ovim entos sociais, na política, na m ídia, diante do e nfrentam ento nas lutas e reivindicações
P ercebo o protagonism o das lideranças fem ininas na defesa de pautas que lhe dizem
respeito. E ntretanto, conform e Joselaine da Silva (2021) a m aioria não se declara com o
fem inistas, tal qual, percebo nas falas e posicionam ento de m ulheres indígenas da A ld eia Poço
D antas U m ari. N esse sentido, nesse trabalho em v ez do conceito de fem inism o indígena, utilizo
O papel da m u lh er indígena na luta po r direitos, auto identidade e pela dem arcação dos
seus territórios originários já vem sendo travada há m uito tem po ju n ta m e n te com os hom ens.
U m a vez que, elas têm protagonizado m uitas ações em suas aldeias, sendo, portanto, um pilar
A ssim , ao ocupar os espaços institucionais as indígenas têm representado seu povo com
voz ativa, defendendo os interesses de todos. A driana Souza, Juvana Santos e E dileia O liveira
resistência” afirm am que, os pensam entos coloniais que adentraram nas com unidade indígenas
de form a v io len ta estão sendo aos poucos desconstruídos onde as m ulheres indígenas estão
organizações próprias, com o tem sido o caso das m ulheres indígenas de P oço D antas - U m ari,
que têm atuado desde 2007 com a chegada de R osi K ariri no m unicípio de Crato, se dirigindo
R osi K ariri, filha de pais K ariri do Ceará, natural e residente em São Paulo, passa a
estabelecer contato com os povos indígenas da refe rid a etnia em C rateús, especialm ente com
86
T ereza K ariri a p artir do ano de 2005. A ssim , “ [...] essa relação possibilitou a identificação de
outras com unidades K ariri no C eará, até então articuladas ao m ovim ento indígena, os da A ldeia
C onform e Francisco N ascim ento (2021) no ano de 2005, R osi K ariri funda a
v isitar lideranças no ano de 2006 e na ocasião convidou T ereza K ariri para participar de um
evento que ela estava organizando através da A IK A : o I Encontro do Povo Kariri em Jundiaí.
L uiz F erreira (2016) afirm ou que devido a sua relação com A ssociação Indígena K ariri
política, cultural e identitária da com unidade P oço D antas - U m ari no período que corresponde
V anda C ariri ao falar sobre a chegada de R osi K ariri no M u n icípio de C rato e ao Sítio
P oço D antas - U m ari, afirm ou que ela chegou po r interm édio de T ereza K a riri44, parente de
C rateús e que liderou o M ovim ento de retom ada Cariri nas cidades de C rateús e Independência.
C onform e M iscilane Silva (2021) ao chegar em P oço D antas, R osi K ariri despertou o
sentim ento de pertencim ento que estava adorm ecido no povo C ariri, dem onstrado nas falas dos
m ais velhos da com unidade, fortalecido devido a m aioria dos indígenas de P oço D antas
E m outro m om ento da sua análise M iscilane Silva (2021) enfatizou que ao chegar em
P oço D antas, R osi “ [...] passa a ser vista po r eles prim eiro com o expressão de existência real
de que estes sujeitos sejam de fato indígenas e, segundo, com o possibilidade concreta que estes
44 De acordo com Francisco Joedson Nascimento (2021, p. 40) Tereza Kariri é natural do Crato. Migrou aos
dezessete (17) anos para Crateús. Após contato com Maria Amélia (coordenadora da Associação Missão
Tremembé - AMIT) e com povos indígenas da Região Metropolitana de Fortaleza, Tereza Kariri protagonizou o
processo de identificação e organização de povos
87
passem a ser reconhecidos com o tais para conseguirem alcançar determ inadas dem andas”
E m consonância com M iscilane Silva (2021) que foi devido a interlocução de Rosi
K ariri ju n to aos Cariris, no m unicípio de C rato e em São B enedito no período de 2007 a 2010
L uiz F erreira (2016) explicita argum entos sobre o protagonism o de R osi K ariri no
processo de organização e etnogênese dos povos de etnia K ariri no C eará, Luiz F erreira (2016,
p. 36) alega que, “ [...] o ápice de organização política e identitária dos K ariri residentes em
P oço D antas no período de 2007 a 2010, o qual foram desenvolvidas inúm eras estratégias que
visavam fo rtalecer a ideia de auto reconhecim ento do povo K ariri h abitantes do P oço D antas.”
denom inada po r eles de “M ovim ento de R eto m ad a C ariri” , am parado na tradição oral e
transm issão de conhecim entos e saberes ancestrais por m eio dos quais estão sendo retom ados
e valorizados, especialm ente pelo protagonism o fem in in o indígena visando o fortalecim ento
fortalecim ento da r-existência a perm anência do povo de etnia K ariri na região do C ariri e no
REFERÊNCIAS
88
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G raduação em D ireitos H um anos, U niversidade Federal de G oiás, 2016.
90
TRABALHADORES E TRABALHADORAS DAS FRENTES DE
EMERGÊNCIAS: AS FONTES DO DEPARTAMENTO NACIONAL DE
OBRAS CONTRA AS SECAS (DNOCS) E A CONTRIBUIÇÃO PARA UMA
HISTÓRIA SOCIAL DO TRABALHO (CAMPO GRANDE-RN, 1983 A 1984)
A N A SA R A C O R D E IR O D E A L M E ID A 45
JU C IE N E B A T IS T A F E L IX A N D R A D E 46
Resumo : A com unicação tem com o objetivo fazer u m a análise das fontes docum entais do
D epartam ento N acional de O bras C ontra as Secas (D N O C S), com sede regional na cidade de
A ssú, no R io G rande do N orte, e suas contribuições para pesquisas relacionadas a períodos de
estiagens e com o a referida docum entação ajuda a pensar a dim ensão do trabalho ou dos
trabalhadores. Justifica-se está com unicação po r colaborações aos estudos am plos sobre
trabalho. E m um p eríodo considerado de “ seca v erd e” , com preendido entre os anos 1983 a
1984, o D N O C S no vale do A çu, foi o órgão responsável pela contratação de hom ens e
m ulheres para trabalhos estruturais na região. O s docum entos aqui citados estão no arquivo da
sede regional do D N O C S. E specificam ente no arquivo encontram -se fichas de contratações de
trabalhadores em funções de operários e sistem atizam inform ações com o: lu g ar de residência,
profissão, se eram alfabetizados ou não, estado civil etc. O potencial dessa docum entação
relaciona-se a tem as com o: trabalho, h istória institucional e estiagens. M etodologicam ente,
seguirem os os seguintes cam inhos para análise docum ental: catalogação, digitalização e análise
das fichas de inscritos do período de 1983 a 1984. P ara tanto, irem os seguir os
encam inham entos colocados pelo autor C arlos B acellar (2008), sobre os usos e m anuseios de
arquivos, e o aporte teórico de E dw ard P alm er T hom pson (1981). Salientam os, que a pesquisa
se encontra em passos iniciais e com resultados prelim inares.
Palavras-chave
E stiagens, trabalhadores, A ssú, C am po G rande, D N O C S, fichas de inscrições.
INTRODUÇÃO
N os anos de 1983 a 1984 u m a seca atingiu grande parte dos m unicípios do R io G rande
do N orte, bem com o a m esm a estiagem abrangeu b o a parte dos E stados do N ordeste. N esse
contexto a população da Z ona R ural e das cidades interioranas, iniciavam suas in scriçõ es nas
obra dos trab alh ad o res e trabalhadoras, construir e ou reparar açudes, estradas e poços. U m a
91
construções hidráulicas neste período foi o D epartam ento N acional de O bras C ontra as Secas-
tantas m udanças internas, na sua própria nom enclatura pode ser percebido essas
transform ações. E m 1909, ainda com o Inspetoria de O bras C ontra as S ecas-IO C S , essa
m eio a viagens aos sertões do norte, com os relatos dos engenheiros, técn ico s e topógrafos,
foram se arm azenando fontes essenciais para pesquisas historiográficas tanto da atuação da
p rópria instituição quanto da região N orte. K leiton M o raes (2018) em seu trab alh o O progresso
descobre o sertão: a inspetoria de obras contra as secas (1909-1918) pôde ev id en ciar com o
os engenheiros em m eio a tantas viagens técn icas m apearam as áreas localizadas com o sertão,
objetivo com as construções de açudes, que essa política fosse perene, independente de
governos. D e 1919 até 1923, houve u m a injeção de recursos para a Inspetoria em virtude da
criação da Lei do decreto Lei n° 3.965 de 25 de dezem bro de 1919 que autorizava: “ a construção
foram se avolum ando relatórios de obras, de m apas e im agens do que ocorria aos arredores de
suas obras. O s docum entos, que foram resultados das obras do IFO C S de 1919 a 1945,
possibilitam debates para u m a H istó ria Social dos sertões do N ordeste. N o R io G rande do N orte
a autora Juciene A ndrade (2020) em seus estudos sobre instituições, a p artir das análises dos
relatórios do IFO C S nos proporcionou um m elhor entendim ento do funcionam ento, por
instalavam nas frentes. O D epartam ento N acional de O bras C ontra as Secas - D N O C S no V ale
47https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1910-1919/decreto-3965-25-dezembro-1919-571967-
publicacaooriginal-95102-pl.htmI
92
do A çú48, no R io G rande do N orte, foi responsável pelo desenvolvim ento de O bras em cidades
para além da região do V ale do Açu, atendendo algum as cidades do m édio-oeste potiguar. U m
desses casos é o m unicípio de C am po G rande-R N , que teve em suas com unidades rurais a
arquivo da sede regional na cidade de A ssú, grande parte das fontes ajudam a analisar um
período de trabalho não costum eiro pelos agricultores, e evidenciam u m a h istória do trabalho
As fontes do DNOCS da cidade de Assú: por uma história social do trabalho na Campo
Grande-RN
A H istória Social nos últim os anos está passando por m udanças em suas estruturas,
favorecendo novas tem áticas para a área no século X X I. C om o nos esclarece B eatriz M oreyra
(2014) no trabalho E l revival de la historia social en laprimeira década del siglo XXI: iretorno
o reconfiguración?:
tem ática do trabalho e trabalhadores ganharam novos capítulos na H istória Social. O leque de
fontes para esses novos debates é m útuo, a fonte oral contribui para se p ensar os sujeitos que
trabalharam em espaços coletivos de construções, m as para o que alm ejam os neste trabalho,
não irem os nos aprofundar nas potencialidades das fontes orais. Sidney C halhoub e P aulo
Fontes (2009) citam que este debate de m udanças em tem áticas está presente desde a década
de 1970 no B rasil:
48Microrregião do interior do Rio Grande do Norte, composta pelas cidades: Assú, Alto do Rodrigues, Carnaubais,
Jucurutu, Ipanguaçu, Itajá, Pendências, Porto do Mangue e São Rafael.
93
[...] a emergência da história social do trabalho como área especifica de investigação
acadêmica ocorreu no contexto das lutas pela redemocratização do país a partir de
1970. Como é sabido, a forte presença do movimento dos trabalhadores nesse
processo marcou decisivamente a nova história social do trabalho. (p. 220).
E ssas m udanças e am pliação da área contribuíram para novas tem áticas, a exem plo de
leque de novos objetos ocorreu devido a am pliação de fontes, é por isso, que buscarem os em
potencialidade para o trabalho historiográfico com tem ática sobre o trabalho e trabalhadores.
adentrarm os em um debate acerca deste conceito, está espacialidade sertão pode ser entendida
com o um a categoria elaborada e delim itada pelos colonizadores portugueses para as terras
indígenas brasileiras, que neste m om ento o oposto ao litoral seria delim itado com o sertão,
pequenas do interior, com o tam bém relegou à área rural o estereótipo de “atrasada” . N a cidade
de C am po G rande-R N , pode ser percebido os distanciam entos existentes entre o espaço rural
sujeitos, representam os habitantes dos espaços rurais com o sertanejos tradicionais, é caso do
tab elião da cidade de C araúbas-R N , po r nom e de H ugolino D ’O liveira, que escreveu alguns
Não obstante o uso, o abuso que a maioria da população vem fazendo do automóvel
e do caminhão para transportar, ainda se usa no município o carro de boi do tempo
colonial para transportar material de construção, viveres etc. Sertanejos há que não
esqueceram, ainda, os arreios de metal brusido (lustroso) com que enfeitam os
animais de sua montaria; e o transporte de mercadorias nas costas de animais é
também adotado. (OLIVEIRA, 1994, p. 21-22).
94
N esse sentido, a palavra sertanejos tom a sentido na análise do H ogolino D ’O liveira de
antigos, no sentido de que ainda não adaptaram -se às novas m odernidades do tran sp o rte com o
o autom óvel. A o frisar que os sertanejos não “esqueceram os arreios de m etal” e o “boi do
tem p o colonial” , os anim ais de m ontaria com o transporte, o autor aponta a separação entre o
urbano e rural/interior. C avaleiros, os vaqueiros, que definitivam ente estão ligados aos espaços
rurais, das fazendas e com unidades rurais, os escritos da cidade C am po G rande-R N distinguem
os espaços de seu m unicípio, com o tam bém seus habitantes. Portanto, questões sociais
relacionadas aos sujeitos rurais e trabalhos rurais foram deixadas de lado por um período de
tem po, m as as m udanças durante o século X X I nos m ostram que os graduandos da área de
H istória do m unicípio estão dando passos largos sobre questões sindicais e raciais a p artir dos
trabalhos p ro duzidos50.
T om ando com o base essas m udanças, nos debruçam os sobre as potencialidades das
fichas do D epartam ento N acional de O bras C ontra as Secas, regional da cidade de A ssú-R N ,
no arquivo evidenciam a força de trabalho presente nas frentes de em ergências, com o ressalta
L ara de C astro (2020, p. 2), foi a p artir de 1 9 1 5 que o governo Federal juntam ente com o IO C S
articulou um am plo program a de em ergências, que desde esse m om ento se tornou o principal
program a p ara fix ar e ocupar os flagelados das secas, pois a preocupação com as m igrações
M as a questão de ocupar e fix ar já era algo recorrente tam bém no século X IX , quando
levas de retirantes ocupavam os grandes centros urbanos, e os pobres “ atrapalhava” o lazer das
Pensar em seca, portanto, não é mais pensar apenas na ausência de chuvas que causa
destruição das colheitas, mas é, prioritariamente, pensar na massa de retirantes
famintos e esfarrapados a invadir as cidades na busca de alimentos e trabalho (p. 50).
D iante deste contexto, foram se iniciando políticas públicas do governo, desta vez, com
a construção de obras que fossem no próprio território em que os trabalhadores residiam , para
evitar as levas de flagelados aos grandes centros urbanos. N a década de 1980, os trabalhos das
50 Questões essas percebidas em trabalhos como: MOURA, Rivelino. “Muita Terra Sem Gente e Muita Gente
Sem Terra”: Padre Pedro Neefs, a Teologia da Libertação e a Criação de Assentamentos Rurais em Campo
Grande (1980-1999). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História). UERN, 2017. BEZERRA, Maria
Daniele. Além dos Altares: A atuação de Padre Pedro Neefs em Campo Grande/RN (1979-1999). Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em História). UERN, 2013.
95
em ergências se davam em terras privadas e açudes públicos, os próprios em pregados e parentes
E sses trabalhadores e trabalhadoras assum iam variadas obras, ou as obras com uns das
atividades m enos qualificadas das obras” (C Â N D ID O , 2011, p. 177). A s fichas nos m ostram
endereço, local designado, número de dependentes, se sabe ler e escrever, data de alistamento,
local designado e função. N o s cham a atenção a idade dos trabalhadores, local designado e as
funções que os trabalhadores e trabalhadoras iriam assum ir. E m um m unicípio de 12.228
habitantes, as obras poderiam ser distantes de suas residências, ou na m esm a localidade, o caso
acim a, evidencia que a obra seria na m esm a com unidade que o trab alh ad o r residia, m as
notam os que alguns iriam para obras em outras com unidades rurais, há tam bém casos de
m oradores pobres das cidades que se inscreviam e tinham que se deslocar até as áreas rurais.
S ão inform ações que possibilitam com preender o deslocam ento de trabalhadores em grupos
96
A função dos trabalhadores e trabalhadoras tam bém dependiam de um a certa hierarquia
entre os m esm os, é o caso do feito r de obra, que seria escolhido para visto riar os pares, m as na
análise tam bém percebem os a presença de m ulheres feitoras, que iriam inspecionar as turm as
de m ulheres. Isso aponta para as questões de gênero nas frentes de trab alh o . C om o salienta
F rederico N eves (2000) havia u m a questão entre os pares nas turm as, um seria escolhido para
m o n ito rar o trabalho dos dem ais, averiguar se os sujeitos estavam executando com êx ito os
trabalhos, se os m esm os estavam com parecendo nos horários corretos, se haviam em bates ou
V oltando a análise das fichas das m ulheres, notam os outras funções presentes nas fichas
averiguadas, casos que nos cham a a atenção são as dom ésticas e as serventes, a prim eira está
C om o notam os acim a, a função dessa m ulher é a de dom éstica, provavelm ente fazendo
refeições p ara suas colegas de turm as, ou m esm o exercendo a função de lim peza, o que nos
m ostra outras funções presentes nas frentes de em ergências e debates relacionados a m ulheres
trab alh o e instituições. O utra inform ação im portante na ficha é que a inscrita possuía 13 filhos
dependentes.
O utra questão encontrada nas fichas, são observações que os funcionários colocavam
para um a diferenciação dos sujeitos que estavam fazendo suas inscrições. P odem ser
97
que em seu texto nos proporciona entender usos dos arquivos para pesquisas, pois as fontes
que irem os analisar carregam u m a finalidade para sua época, fichas que trazem em sua escrita
do D N O C S apesar de contribuírem para tem as historiográficos, elas tam bém contém em sua
form ulação a opinião de quem a redigiu, e não devem os deixar isso de lado, enxergar que
haviam um a finalidade para aquelas fichas, m as com o fontes elas nos perm item um a história
sobre a m u lh er nos cam pos de trabalho em inentem ente m asculinos. E ssas fichas possibilitam
que levantem os questões sobre a vid a dessas tantas m ulheres que aparecem inscritas. N ós
sabem os seus nom es, suas m oradias, a quantidade de dependentes e o desafio de enfrentar um
CONSIDERAÇÕES FINAIS
perm item v isualizar u m a H istória do T rabalho p ara os m unicípios vizinhos da sede, pois além
de se terem fontes da cidade de C am po G rande/A ugusto Severo-R N , tam bém são encontradas
fichas da própria A ssú, São R afael, C arnaubais e Ipanguaçu, todas cidades que estão
A s fichas são fontes docum entais que esclarecem os perfis dos trabalhadores e
trabalhadoras, dos adolescentes que se inscreviam , do núm ero de fam ílias no período de 1983
a 1984 inscritas nas frentes, u m a h istória que se contrapõem a própria escrita das cidades, e
aqui elencam os o caso de C am po G rande, que a partir das fichas pôde ser percebida um a
A creditam os que neste breve texto, podem os co lo car pontos essenciais das fichas, que
serão im portantes p ara pesquisadores que desejem lev an tar questões sobre gênero, sobre carga
h orária de trabalho, sobre a ideia de infância e adolescência, sobre as leis trabalhistas e sobre
98
REFERÊNCIAS
99
“TEMOS COMPROMISSO COM O PROGRESSO”: IMPRENSA E OS
USOS NA PESQUISA SOBRE O SETOR ENERGÉTICO
A N D R E Y MI NI N M A R T IN 510
esta são cada vez m ais presentes em debates cotidianos e m esm o acadêm icos em nossa
sociedade, principalm ente em tem pos em que a busca p ela “notícia rápida” encontra em
espaços virtuais novas form a de difusão e consum o. E m tem po em que grandes conglom erados
en tender historicam ente o pode e força dos periódicos na sociedade podem contribuir para um
M esm o com tais m udanças, o cam po de estudos sobre as im plicações dos im pressos na
e tem áticas. P o r m eio dos “hom ens de im prensa” e seus conglom erados jo rn alístico s
51 Docente na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Doutor em História pela UNESP.
andrey.martin@ufms.br
100
se ideias e necessidades, incluem -se e excluem -se fatos, anunciando hábitos, conceitos e
valores. Isso ocorre principalm ente porque, com o salienta M arcondes Filho:
O jornalismo, via de regra, atua junto com grandes forças econômicas e sociais: um
conglomerado jornalístico raramente fala sozinho. Ele é ao mesmo tempo a voz de
outros conglomerados econômicos ou grupos políticos que querem dar à suas
opiniões subjetivas e particularistas o foro de objetividade (1989, p. 11)
principalm ente neste período em m eados do século passado, estabeleceram um duplo papel
entre inform ar, narrar os acontecim entos ocorridos e ab arcar as cam panhas e transform ações
diretam ente novas form as de p en sar e projetando seus valores e interesses durante este
processo.
E sta estreita relação, qual seja, entre o periodism o e suas relações históricas na
encontradas em distintos períodos de sua própria trajetória, m as que viriam a ser am pliada
principalm ente a partir de m eados do século XX. Isso po r que o contexto entre as décadas de
1940 e 1960 colocaria o B rasil em um novo ritm o de desenvolvim ento industrial e de relações
novo m odelo de desenvolvim ento, atrelado eixo econôm ico norte-am ericano, C onjuntam ente,
em m eio a acordos políticos, com issões e agências com o Office o f the Coordinator o f
do rádio, televisão e cinem a, que atuaram diretam ente nos desdobram entos de nossa indústria
cultural.
E tais atividades foram acom panhadas pelo p eriodism o nacional e regional com o se nos
anos 50, estivéssem os assistindo ao nascim ento de u m a nova civilização nos trópicos, que
com binava a incorporação das conquistas m ateriais do capitalism o com a persistência dos
traço s de caráter que nos singularizavam com o povo, dos vários ritm os de transform ação que
101
É im portante ressaltar que este m ovim ento tam bém fora acom panhado pelo recorrente
uso e produção de vídeos e docum entários po r parte de governos e em presas, a fim de divulgar
suas m arcas, produzir suas m em órias ou m esm o difundir determ inadas ideais e fom entar
cam panhas. S obre os m ais variados tem as e form as celebravam m arcas e em presas,
engendravam opções políticas, revelavam disputas e acirram entos, prom oviam golpes.
C o ntando com novas técn icas e linguagens cinem atográficas alcançaram rapidam ente o
público, sendo exibido pelas salas de cinem a ou m esm o pela televisão, em am pla ascensão
E claram ente tal p ercepção abarca as relações políticas com a m íd ia em distintas form as.
Isso porque pode ser observado em todo este período com o o crescim ento da publicidade e da
m ídia im pressa acom panhou as necessidades de grupos e regim es políticos em am pliar seu
reconhecim ento social para fortalecim ento do capital político. Logo, u m a das p rincipais form as
de alçar tal conexão foi a prom oção e divulgação de grandes projetos. E o desenvolvim ento
energético logo seria v islum brado com o a apoteose para estas possibilidades.
correntes em todo país, a am pliação ou m esm o criação de um parque energético nacional foi
apreendida pelos setores da im prensa com o um dos principais cam pos de prom oção de
nascia nos trópicos. M esm o esta abordagem ainda estando longe das potencialidades possíveis
adentraram os periódicos com o um dos principais elem entos da m odernidade técnica. Peças
publicitárias podem ser encontradas desde o início do século X X , com um ente encom endadas
por em presas estrangeiras que atuavam em grandes centros, com o a Light e Amforp. D e form a
geral, com punham anúncios de divulgação da p rópria em presa, sobre a expansão e benefícios
progresso” (2012, p.8) carregando consigo o signo de m ovim entos, com o a Belle Époque e o
narrar de um B rasil que “ civiliza-se” p o r m eio da instrum entalização técnica. Seja nos grandes
in terio r do país, a chegada da energia elétrica estaria estam pada com o prom otora do progresso:
102
G ildo M ag alh ães em seu trabalho “Força e L uz” (2000), ao discorrer sobre eletricidade
apreendida po r nossa elite a p artir de fins do século X IX to m o u conta das novas relações que
B rasil, perpassaria diretam ente pelo setor elétrico, fundado no aproveitam ento dos recursos
naturais, neste caso o hidráulico, proporcionando o crescim ento industrial e de outros bens
sociais.
energético iriam encontrar, nas próprias transform ações e b ases do periodism o nas décadas de
1950 e 1960, o trasb o rd ar de novos valores, m odelos e padrões de consum o que necessitariam
diretam ente de disponibilidade energética para sua am pliação. Logo, este novo m om ento
organizativo, tan to p ara expansão do setor energético, que encontraria no in terio r do B rasil um
terreno fértil para novos projetos, coadunaria com um im p o rtan te m om ento de reestruturação
circulação, assistiríam os ao surgim ento e, ao m esm o tem po, o fortalecim ento de grandes
conglom erados jo rn alístico s, m arcados por suas relações com projetos políticos, cam panhas
estratégicos para o crescim ento nacional, com o o setor petrolífero, projetos hidrelétricos e
E este conjunto de transform ações em curso coadunaram para um novo olhar, dentre
outros possíveis, para projeção e, porque não, prom oção das potencialidades de espaços com o
o M ato G rosso do Sul. R egião fro n teiriça e historicam ente perm eada po r im portantes
transform ações que m odificaram suas paisagens, representações e conexões políticas com
regiões com o o estado de São Paulo, da passagem de telégrafos e trilhos no início do século
X X a frem ente M archa para o O este o Sul de M ato G rosso foi p rojetado por grandes m udanças
para o in terio r do país, ligadas principalm ente ao discurso progressista das elites locais, que
além de alterarem as relações político- econôm icas daquele contexto, trataram de conduzir de
distintas form a este controle e construção narrativa. Isto porque a chegada destes novos
elem entos técnicos e tecnológicos, com o a ferrovia e a energia elétrica, não significavam
apenas um a nova ordem espacial, m as tam bém a possibilidade de um a m elhoria m aterial para
população, gestando novas relações sociais e do próprio m odo de vida. A lém disto, tencionando
algum as relações deste discurso e o produzindo a partir de um grande com plexo hidrelétrico
ali instalado entre as décadas de 1960 e 1970, p ercebem os que estes projetos escondiam
interesses que vão além de saberes locais (LEITE, 2003; Q U E IR O Z ,2004; A R R U D A , 2000).
103
E assim , entendem os que o período de profundas transform ações que atravessariam esta
desenvolvim ento, centralizados na criação de um grande com plexo hidrelétrico, cham ado de
im portante fonte de análise, não som ente para o acom panham ento factual das notícias, com o
m uitos ainda projetam para esta tipologia de fonte, m as ju stam en te para apreender posições,
estratégias e grupos intim am ente organizados para atuar ju n to aos periódicos com o um dos
processo de expansão energética que ocorria entre as décadas de 1950 e 1970 po r m eio do
integração da região por m eio daquele novo em preendim ento, de form a a gerir ganhos para
energética e integração econôm ica nacional. A o m esm o tem po, esta leitura de desenvolvim ento
tam bém está ligada a um sentido de dom inação e apropriação de um potencial que ainda estava
esquecido, pois a sua construção, com o dito, contribuiria para integração do país por m eio de
novas vias que seriam a “ solução única para os enorm es problem as de colonização do O este
brasileiro ” , com o pontuado pelo jo rn a l O Estado de São Paulo54, um sentido que, por vezes,
atrelava interesses, posicionam entos e disputas entre os sujeitos em aranhados em tal projeto.
E sta “ soldagem ” pensada pelo autor torn a-se elem ento condutor de valores,
principalm ente de um “ centro” articulador, a região Sudeste, a p artir do E stado de São Paulo,
para as áreas “ lim ítrofes” do país, de form a a fazer com que a ferrovia, assim com o a
h idrelétrica se tornem estes elem entos articuladores e desbravadores, com o fica evidente pelas
52 Este projeto foi executado entre os anos de 1961 e 1978 na região fronteiriça entre os estados de São Paulo e
Mato Grosso do Sul no rio Paraná, originando duas hidrelétricas Jupiá e Ilha Solteira, que em seu período
correspondiam ao maior projeto hidrelétrico do mundo. Sua origem remonta uma seríe de reuniões interestaduas
iniciadads em 1951 por meio da criação da CIBPU.
53 Durante a pesquisa de doutoramento, concluída em 2016 pela UNESP, apresentamos alguns possibilidades de
análise da temática por meio de quatro periódicos de amostra: O jornal O Estado de São Paulo; a revista Visão,
ambos de origem paulista e o jornal Correio do Estado e a revista Brasil Oeste, pertencentes ao sul de Mato Grosso
(antes divisão). Neste momento este trabalho se encontra ligado a um novo projeto de pesquisa que busca dar
continuidade a este debate que não foi anteriormente aprofundado.
54 OESP, 30 maio 1958, p. 14. Nesta matéria fica evidente como o conjunto hidrelétrico encontra-se articulado
com outras necessidades governamentais.
104
da ocupação do “ sertão” nacional, com o era tid o estas regiões interiores, de form a a “incorporar
à nação novas áreas ricas, férteis e salubres” , que “ contribuirão p ara o progresso industrial e
análise j á nos dem onstram um elem ento im portante: os periódicos não estavam intim am ente
articulados com determ inados interesses na expansão da m atriz energética durante a realização
com o um “cam po de preparação” para o que estava po r vir. E m pelo m enos 67 edições entre
1957 e 1960, m om ento anterior ao início física das obras, as notícias p ublicadas sobre a
desenvolvim ento produzido pelo projeto, am pliando as áreas condutoras do desenvolvim ento
econôm ico, m as tam bém am pliando as zonas de influência destes centros. A o m esm o tem po,
p ercebem os que estes lim ites, tam bém geográficos, antes não ultrapassavam alguns m arcos,
que iam do in terio r de São Paulo ao norte de M ato G rosso, m as que posteriorm ente seriam
expandidos pelos próprios periódicos. Segundo A rruda (2000), j á na década de 1940 a antiga
representação territorial em relação ao sul de M ato G rosso e O este do E stado de São Paulo, de
“ pouco explorado” , passam po r um novo processo de ocupação, que desde a política da M archa
para O este, estabelecida po r V argas, estabelece novos contornos com a consolidação da via
férrea, rodovias e que a partir da década de 1960 irá ser novam ente destacada com a
L ogo, os fios que conectariam diretam ente os grupos donos dos conglom erados
possibilidade de projetar a ideia de um novo m om ento econôm ico para o país, por m eio da
m odernizador, que com o vim os, agregasse todas as regiões em um novo ritm o de
desenvolvim ento, que se ligava a um a transform ação territorial dos investim entos ju n ta m e n te
O utros aspectos podem ser diretam ente analisados pelas narrativas e representações
construídas pelos periódicos para este cam po de análise, que vão m uita além deste trabalho em
desenvolvim ento. U m deles, para tecerm os um exem plo, são as im agens sobre o m eio
que tam bém perm eia própria existência dos periódicos nacionais. D os prim eiros cadernos
105
com periódicos com o a revista O C ruzeiro, a natureza sem pre esteve presente ante a estes
projetos de desenvolvim ento, ressignificando não som ente suas necessidades, m as tam bém a
m eados do século X X um casam ento idealizado entre projetos de ocupação técn ica e
desenvolvim ento. D a expansão férrea a nova capital federal, dos projetos para A m azônia, com o
governos m ilitares a m ídia im pressa teria se tornado, parafraseando F rancisco F oot H ardm an,
p, 35).
N o caso da produção energética, a exploração das potencialidades da
denom inada B acia do P araná-U ruguai tornara-se, antes da criação dos projetos energéticos, o
im perativo a ser vendido. P ortadora de grande potencial, a cham ada B acia do P araná
corresponde a am pla região que perpassa os E stados de M inas G erais, G oiás, de São Paulo,
M ato G rosso do Sul e Paraná, tendo com o afluente principal o rio Paraná, form ado pela ju n çã o
dos rios P aran aíb a e G rande, sendo considerada a segunda m aio r b acia de aproveitam ento
hidrelétrico do país. Tais ações para este desenvolvim ento energético rem ontam a um contexto
em que novas experiências de planejam ento regional surgiam no país, visando realizar o
principalm ente a partir da instrum entalização de técnicas e procedim entos nos quais se buscaria
“ ocupar” estes espaços denom inados “vazios” , se to rn ará cada vez m ais presen te a p artir da
década de 1950, com a consolidação do “P lano de M etas” e as transform ações que decorriam
desenvolvim ento de setores que poderiam crescer e colaborar diretam ente com a criação de
das ações e investim ento do período, segundo Faro e Silva (2002), vam os observar que 43 %
106
Assim, a vitória sobre as condições naturais e o “efetivo domínio” daquelas plagas
reforçavam a vitória do Brasil sobre ele mesmo. Rememorando imagens da Marcha
para o Oeste, tratava-se do imperialismo brasileiro conquistando a si próprio. A
Marcha, programa de colonização criado por Cassiano Ricardo durante o Estado
Novo, foi pródiga em ressaltar o “espírito bandeirante” e a “conquista” das terras
brasileiras. Pouco efetivo, o programa criou ideias-forças que foram apropriadas
pelos presidentes tanto do período democrático quanto do período ditatorial pós-
1964, em especial na construção da rodovia Transamazônica. Dessa forma, as
imagens aqui apresentadas representam também a concepção construída por esses
agentes políticos e culturais sobre a região amazônica e seu processo de
desenvolvimento (p. 11)
o Jornal O Estado de São Paulo e a Revista Visão, apresentava densa publicação de m atérias
dirigidas ao estabelecim ento do projeto hidrelétrico e seus eventuais ganhos futuros. Som adas
assegurar que o em preendim ento logo se concretizasse, para evitar o déficit energético no
E stado, questão que era prevista para os próxim os anos, por problem as que já vinham
A o m esm o tem po, esta leitura de desenvolvim ento tam bém está ligada a um sentido de
dom inação, pois a sua construção, com o dito, contribuiria para integração do país por m eio de
novas vias que seriam a “ solução única para os enorm es problem as de colonização do O este
brasileiro ” . U m sentido que, po r vezes, estava atrelado principalm ente aos interesses paulistas
na região, ou tam bém , com o destacou o v ice-presidente João G oulart “ a hidrelétrica dava aos
paulistas a oportunidade de criar o im pério econôm ico, após no bandeirantism o, ter criado o
A o longo das m atérias, tam bém pode se observar que o p esado investim ento o qual era
anunciado pela im prensa buscava leg itim ar u m a nova im agem para o Sul de M ato G rosso,
com o região atrativa para novos investim entos, centros industriais, calcados principalm ente em
atrair capital estrangeiro, assegurando que o em presário “ dificilm ente encontrará no m undo de
hoje onde com prar terras tão vastas, a preço tão acessíveis, sem o risco de conflitos políticos
subsequentes, com o resultantes das práticas e ações dos grupos que assum iriam o poder a partir
do golpe de 1964. Junto ao divulgar do andam ento do projeto, estariam presentes id eia s e
aspirações do regim e m ilitar, que com o “m arcas de um a m em ória construída” , com o assevera
107
A quino (1999) atrelaria os cam inhos do setor energético e desse em preendim ento a seus
interesses e necessidades, parte de sua estratégia de controle e dom inação, ligado à lógica de
exaltar o “B rasil-P o tên cia” que estava nascendo sob sua condução. E m outros m om entos, o
p eriodism o contribuiria p ara revelar determ inadas tensões e contradições entre os cam inhos do
construídas sobre o antigo Sul de M ato G rosso, especificam ente ante os projetos hidrelétricos
frem entes a partir da década de 1960 contribuem diretam ente para com preensão da im p o rtân cia
dada ao novo governo para criação de um aparato de propaganda que cuidasse da im agem
desarticulada. E diretam ente as transform ações que ocorriam e outras que estavam em curso
nesta região do país, adentrariam o aparato governam ental de propaganda, assim com o
continuariam a alim entar toda u m a “teia de fatos” que eram replicados em jo rn a is e revistas de
CONSIDERAÇÕES FINAIS
m uito não são um a novidade para as ciências hum anas. N em m esm o análises aqui apresentadas
m ostram -se com o u m a novidade, podendo ser observadas em distintos espaços do país ao longo
ten tativa de observar que ainda são poucas as pesquisas que exploram as p o tencialidades destas
fontes para o setor energético, principalm ente se tratando de pesquisas em territó rio sul-m ato-
grossense. A s p roblem áticas e possibilidades que este conjunto de fontes possibilitam estão
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109
AS POTENCIALIDADES DO RPG NO ENSINO DE HISTÓRIA:
ALTERIDADE E EMPATIA
C A IO C O B IA N C H I D A S IL V A *55
R P G é a sigla u tilizad a com o abreviação para o term o role-playing game, que pode ser
tram a, o personagem vai sendo desenvolvido pelo jo g ad o r, sendo-lhe perm itido refinar suas
características m orais, equipá-lo com diferentes arm as e arm aduras, aprim orar seus atributos
dizem algum a coisa a respeito de sua identidade, afinal, eles escolhem um a raça entre outras
para interpretar, escolhem um a classe (guerreiro, clérigo, etc.), elaboram um a história de vida,
atribuem -lhes traços físicos e m orais e fazem outras tantas escolhas de acordo com suas
referências e preferências. A o m esm o tem po, ao terem contato com as experiências históricas
com as dem ais, possua um m ínim o de continuidade no processo tem poral de sua v id a cotidiana.
E ssa continuidade é a natural do próprio corpo (entre o nascim ento e a m orte), m as precisa ser
em oldurada num a duração cultural. O hom em precisa interpretar o m undo e a si m esm o para
110
viab ilizar a vida. A resposta a essa carência de sentido é form ulada geralm ente na fo rm a de
u m a história. N ão se pode resp o n d er à pergunta sobre “ quem sou eu” , sem se contar um a
h istória sobre a própria vida. N essa história, a representação do fluxo tem poral inclui “ a
experiência de tudo o que se é ou foi, assim com o a expectativa de tudo o que se poderia ou
desejaria ser ou ainda se há de ser. A m bas, experiência e expectativa, fundem -se na unidade de
um direcionam ento tem poral de sentido da vida hu m an a” (R Ü SE N , 2015, p. 116). D essa form a,
o ato de narrar um a história sobre a própria vida aparece para o sujeito com o form a de expressar
suas carências de orientação ao m esm o tem po em que busca preenchê-las com sentido
H á que se n o tar que a unidade entre o que se foi, se é e se há de ser não é constituída
apenas por um a relação autointerpretativa consigo m esm o, m as tam bém pelo que os dem ais o
deixam ser ou pelo que se quer ser na relação com os dem ais. O s sujeitos procuram conciliar
as aspirações pessoais de v alo r próprio com as atribuições de outros, de tal m aneira que possam
m anejar-se no âm bito social. N esse sentido, a identidade, pessoal ou social, é sem pre a
diferença para com os outros. P o d er dizer “ eu” ou “ nós” pressupõe necessariam ente um “ não
eu” ou “não nós” . P ara R üsen (2014), a form ação da identidade se efetiva não só na som a das
pode narrar histórias que lhe perm itam delim itar-se, integrando-se ao grupo ao m esm o tem po
em que exclui os outros. P o r outro lado, ele pode encontrar dificuldade em narrar histórias que
perm itam -lhe haver-se consigo m esm o, na m ed id a em que estas possam acarretar em exclusão
D ito isso, acredito que por m eio do pensam ento histórico o sujeito possa narrar histórias
hum anisticam ente, de m odo a reconhecer a diferença cultural, fazendo v aler a dignidade de
diferentes form as de vida. A lém disso, essa form a de pensam ento lhe perm ite olhar para a
alteridade reconhecendo tam bém a sua própria singularidade, legitim ando a sua autoestim a. D e
acordo com R üsen (2007), ao intern alizar a alteridade das experiências do passado antes
desconhecida, os sujeitos passam a se situar na m ultiplicidade dos m odos de ser, sentir e viver
dos hom ens no espaço e no tem po. E xpandem seu horizonte de autocom preensão para a
acom panhada de um processo de em patia histórica, caso contrário a alteridade pode ser
111
Segundo P eter Lee, a em patia histórica não pode ser alcançada quando um estudante
m antém u m a rejeição relativa às pessoas no passado e não as vê com o seres hum anos com
direito ao m esm o respeito que exigim os para nós. “ A consequência directa de os alunos não
com preenderem o passado é que este se torna num a espécie de casa de gente desconhecida a
fazer coisas ininteligíveis, ou então num a casa com pessoas exactam ente com o nós m as
A inda para Lee (2003), essa com preensão não pressupõe u m a faculdade especial em
que os indivíduos parecem particularm ente sensíveis aos sentim entos dos outros. A
com preensão histórica não é ela própria um sentim ento, um a partilh a de sentim entos ou
sim patia. N ão podem os sentir orgulho de u m a v itória m ilitar quando não possuím os os valores
daqueles que a ganharam . M as, podem os com preender os sentim entos que eles carregaram
consigo sem os sentir, aceitar ou partilhar. A co m p reen são histórica vem da m aneira com o
sabem os de que form a as pessoas viram as coisas, o que tentaram fazer e que sentim entos eram
Por forma a compreender acções e práticas sociais os alunos devem ser capazes de
considerar (não necessariamente aceitar ou partilhar) as ligações entre intenções,
circunstâncias e ações. Não se trata somente dos alunos saberem que os agentes ou
grupos históricos tinham uma determinada perspectiva acerca do seu mundo; eles
devem ser capazes de ver como é que essa perspectiva terá afetado determinadas
acções em circunstâncias específicas (LEE, 2003, p. 20).
A ssim , ao olharm os para as pessoas do passado, passam os a com preender que elas não
agiram de determ inada m aneira porque foram bobas ou m alvadas, m as porque a p artir de
determ inados valores e determ inadas situações aquelas ações faziam sentido. A lém do m ais, é
a m udança de valores e o surgim ento de novas situações que nos levam a estranhar, partilhar
Segundo M artins (2011), com o o ser hum ano sem pre atribui sentido àquilo que faz e àquilo
que padece, im porta reconstruir as influências presentes no plano intencional do a g ir: valores,
ideias ou interesses que o fundam entam e o orientam . O rigem cultural, estratificação social,
linguagem , religião e tantos outros elem entos consagrados nesse processo são definidos,
delim itados, interpretados e articulados em seu papel de influências, fatores e causas. E m certos
casos vêm a ser tam bém rejeitados ou recalcados, em função da experiência vivida no cam po
social.
112
B odo von B orries tam bém se dedica a entender a em patia histórica, considerando-a um a
tarefa cognitiva (causa das ações), m as tam bém com o aquilo que nos afeta. P ara o historiador,
olhar m etodologicam ente a história requer duas pernas para se sustentar: em patia histórica e
ju lg a m e n to histórico.
A em patia histórica seria o conhecim ento sobre o m undo exterior investigado através
da explicação via contextualização, o que exige m uita inform ação ou conhecim ento. P orém , a
em patia envolve tam bém com ponentes estéticos, m orais e afetivos. D aí que é preciso se atentar
à outra perna do m étodo histórico. O historiador não está interessado apenas na reconstrução
dos processos históricos, m as na situação de hoje. E le vive, escolhe, interpreta e escreve a partir
de percepções atuais. H istória é, pois, v inculação entre passado, presente e futuro. Para B orries
N esse sentido, acredito que a prática de R P G com tem a histórico pode auxiliar os
alteridade dos sujeitos históricos. C om o lem brado por V asques (2008), os jo g ad o re s precisam
dispor de um a visão histórica que lhes possibilite reconhecer elem entos de alteridade, com o
ocorre, por exem plo, quando o R P G apresenta as vantagens e desvantagens sociais que os
personagens podem possuir. O livro-jogo O Desafio dos Bandeirantes, por exem plo, descreve
o estigm a sofrido pelos negros na sociedade colonial brasileira, fator que deve ser levado em
Os negros eram escravizados até fins do século XIX; os índios foram explorados e
perderam muito de sua cultura; e os brancos se sentiam superiores e donos da verdade.
Tudo isso faz parte de nossa História, e desprezar qualquer um desses fatos seria
descaracterizar a proposta deste RPG, que é, basicamente, a sua ambientação
inteiramente nacional (PEREIRA; ANDRADE; FREITAS, 1992, p. 5).
A inda que possa apresentar determ inados elem entos históricos de m aneira um tanto
correspondentes com a raça e a profissão (ou classe) escolhidas para o seu personagem . Então,
diante da am bientação (cenário, tem ática, história) apresentada pelo livro -jo g o e, m ais
especificam ente, de determ inadas situações elaboradas pelo m estre de jo g o (por exem plo,
113
jo g ad o re s se indaguem : com o, po r exem plo, um guerreiro indígena ou um je s u íta reagiria a
essa situação?
C onjecturo que, ao terem contato com a alteridade dos personagens para exercer sua
reconhecer seus próprios valores, questionar as suas próprias referências, localizar-se no tem po
rebelião de escravos m e toca? S egundo Fronza, são os valores presentes nas narrativas
históricas - seus elem entos m orais, políticos, estéticos, cognitivos e ideológicos - que
possibilitam o envolvim ento dos jo v en s com o passado. N ão u m a linha tem poral abstrata, m as
sim o “ reconhecim ento ético da diferença entre os valores dos outros hom ens do passado com
os valores que os jo v e n s enfrentam na alteridade presente na vida p rática contem porân ea”
(2012, p. 63).
durante a narrativa de R PG , podendo inclusive gerar pro d u ção de sentido. D e qualquer form a,
o conhecim ento histórico pode servir com o b aliza para a produção de sentido. Segundo Fronza,
a em patia possibilita o controle da fantasia e estética, sem contudo perder sua potencialidade
históricas que com unicam valores hum anos que fundam entam a m em ória social dos sujeitos
para afirm ar, im itar, criticar ou transform ar a trad ição cultural a que estão subm etidos” (2012,
p. 94).
A qui, posso ser indagado se os elem entos ficcionais do R P G não podem levar a um
futuro) no tem po. O ra, pois, assum o esse risco. A ssim com o q uaisquer outros artefatos da
desequilíbrio entre intenções estéticas e elem entos cognitivos, o R P G tam bém pode. O objetivo
é ju sta m e n te entender com o os estudantes desenvolvem sua consciência histórica a partir desse
suposto desequilíbrio. Som ente conhecendo com o os jo v en s articulam suas operações m entais
em contato com os artefatos culturais é que podem os p rom over instrum entos para que as
Se a narrativa rpgística não dispõe de elem entos m etódicos com o aqueles próprios à
114
dos hom ens no tem po, no m ínim o leva os jo g ad o re s à avaliação das ações de seus personagens
históricos não com o vazias de sentido, m as com o respostas a situações específicas, com o um a
pode perder, em princípio, sua ligação com fatos reais, m as não com conceitos reais, sejam eles
históricos, científicos, econôm icos, políticos, etc. M esm o quando a ambientação é totalm ente
criada sem utilizar algum m om ento histórico real com o referência, os jo g ad o re s assim ilam a
n ecessidade de pensar de fo rm a racional sobre a histó ria explorada pelo RPG . N a criação de
personagens levando em conta as lim itações culturais, científicas, m ateriais e econôm icas da
N esse sentido, ainda que seja por m eio de um contexto im buído de elem entos ficcionais,
(escravidão, bandeirantism o, colonização) sem p erd er a conexão com questões epistem ológicas
resposta a situações concretas e não com o abstrações. Segundo Schm idt e C ainelli, os
com preensão orgânica da realidade social. “E n sin ar conceitos históricos não é im por o uso
B raga observou que, ao se sentir responsável por outro alguém , no caso seu
E nquanto os jo g ad o re s m ais inexperientes costum am descrever h istórias m ais curtas e sim ples,
os m ais velhos se expressam m ais detalhadam ente. A lguns jo g ad o res tom am o personagem
com o um ente tão im portante que são capazes de passar dias e dias pesquisando para com por
um h istórico bem próxim o de elem entos reais. A p artir da tem ática abordada, os rpgistas vão
ao encontro dos “ livros que podem lhes ajudar a entender e in terpretar a época em que vivem
G ostaria de frisar que o R P G não pode ser confundido com um a narrativa histórica
científica ou m esm o com um a ferram enta didática através da qual o conhecim ento histórico
seria transposto para um a outra form a de linguagem . O R P G não segue, e não pretende, os
históricos, o que pode lim itar a expansão qualitativa da percepção das experiências históricas.
115
O que se coloca aqui são os potenciais que o R PG , to m ad o com o artefato cultural ligado à
esta que é desenvolvida nas diversas esferas da vida dos indivíduos e que deve ser aperfeiçoada
jo v en s a p artir do RPG: ao interp retar personagens históricos e terem contato com outros m ais
se perante os diferentes m odos de ser e de agir; nesse m esm o processo, precisam reconstituir
os valores e intenções e reconhecer as condições por m eio das quais atuavam esses sujeitos
(am bientação), o que pode levá-los a se sensibilizar perante eles e desenvolverem a em patia
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117
O ESTADO NA DITADURA CIVIL MILITAR COMO
MOBILIZADOR DO MEDO: ANÁLISE DO MUNICÍPIO DE SÃO
BORJA, FRONTEIRA OESTE DO RIO GRANDE DO SUL
C A M IL A D E A L M E ID A S IL V A 56
INTRODUÇÃO
A concepção de que a D itadura Civil M ilita r B rasileira fom entou o m edo é bastante
aqueles que contestavam o golpe e a D itad u ra que se estabeleceu. C onhecem os m uito dessas
estratégias repressivas, contudo, ainda tem os um largo cam inho a percorrer, principalm ente
para que possam os com preender o interior do B rasil, os locais afastados dos grandes centros
É nesse sentido que essa com unicação se coloca, b u sca evidenciar as particularidades e
as dinâm icas locais da cidade de São B orja, fronteira com a Santo T om é na A rgentina, oeste
56 Mestra em História, pela Universidade Federal de Pelotas - UFPel. Doutoranda pela Universidade Federal de
Santa Maria - UFSM, bolsista CAPES-DS. E-mail: casilva2015 @gmail. co m
118
do R io G rande do Sul. D e m odo geral, o conhecim ento sobre a ditadura nesse m u n icíp io foi
E stadual da V erdade. E ssa últim a, em seu relatório, apontou grandes lacunas, tanto no
O relató rio da C N V apontou que no R io G rande do Sul haviam trin ta e nove centros de
prisão e tortura em dezesseis m unicípios: T rês Passos, F rederico W estphalen, P alm eira das
M issões, São B orja, A legrete, Santa M aria, São G abriel, Santa do L ivram ento, R io G rande,
G uaíba, P orto A legre, C harqueadas, C anoas, C axias do Sul, São L eopoldo e V iam ão, listando
m aioria, agentes atuantes nos grandes centros, possibilitando perguntar, quem foram os agentes
V erdade, explicitou em reportagem ao Sul 21, que no R io G rande do Sul ocorreram cerca de
2.800 casos de torturas, m uitas delas, não esclarecidas. E sse era o caso de D ino A ldir do
representou o prim eiro fio para conhecer sua h istória e de dezenas de outros perseguidos pela
ditadura.
inform ações de outros, u m a vez que a suspeição era a prem issa, e com isso, espalhar o m edo
fronteiras “ separadas” po r rios. A ú n ica ligação rodoviária que une B rasil e A rgentina, entre as
cidades de São B orja-S anto T om é é feita desde o dia 7 de dezem bro de 1997, através da Ponte
da Integração. Já nas cidades de U ruguaiana-P asso de Los Libre, a ponte internacional foi
construída em 12 de outubro de 1945. N a região, a cidade de Itaqui é a ú n ica que até o presente
não possui ponte que a conecte com a cidade de A lvear, distante apenas 7 km , necessário que
A s diferentes características das cidades que faziam fronteira com a A rgentina exigiram
atuações diferenciadas p ara a região, que foi to rn ad a área de interesse da segurança nacional
pela lei 5.449 de 1968, que fortaleceu um cuidado j á destacado pelo A to Institucional n° 3, de
5 de fevereiro de 1966, com propósito de estabelecer eleições indiretas para as capitais dos
119
estados e que os prefeitos seriam nom eados pelos governadores. A lei 5.446 incluis diversas
1968, 24 estavam localizados em solo gaúcho, de m odo que, a B acia do P rata foi central para
g arantir prim ordialm ente condições de segurança, essas cidades foram : A lecrim ; Bagé;
C rissium al; D om Pedrito; E rval; H orizontina; Itaqui; Jaguarão; P ô rto L ucena; P ô rto X avier;
Q uaraí; R io G rande; Santa V itória do Palm ar; Santana do L ivram ento, São B orja; São N icolau;
T enente Portela; T rês Passos; T ucunduva; T uparendi e U ruguaiana. P osteriorm ente, em 1969
foram incluídas as cidades de C anoas, O sório e T ram andaí e em 1971 a cidade R oque G onzales.
O s P refeitos eram nom eados pelo G overnador do E stado, m ediante aprovação prévia do
P resid en te/D itad o r da R epública, além disso, o respaldo para essa intervenção nas cidades e
estados está presente na C onstituição de 1967, que possibilitou a intervenção federal nos
estados e m unicípios.
experiência de vid a na fronteira, onde sujeitos tem a capacidade, adquirida com o tem po e ao
longo de suas histórias de “m an ejar as fro n teiras” , conceito elaborado por A driana D orfm an,
2009).
fortes relações com os países vizinhos, o trânsito m ais facilitado e as experiencias dem ocráticas
e revolucionárias desses países fom entaram a p reocupação dos ditadores. Q uando pensam os
São B orja, que experenciou no seu passado as disputas territoriais entre portugueses e
espanhóis, foi tam bém palco da Farroupilha. T ais eventos projetaram u m a m aior preocupação
das autoridades. Sob a perspectiva da longa duração, é necessário olhar para essa região e
com preender sua constituição e sua história. Suas conexões tam bém estão na outra m argem do
R io U ruguai, incluindo o fato de que São B orja, Itaqui e U ruguaiana consolidaram -se enquanto
cidades m ediante o estabelecim ento de batalhões m ilitares, em função das estratégias políticas
Os sujeitos que com põem esse período, de nossa h istória recente, são frutos dessa longa
historicidade, dessa relação com suas fronteiras, apoiados na capacidade de tran sitar pelo
espaço. São expressões da repressão perpetrada pelo E stad o brasileiro, contudo, envolto em
suas particularidades.
120
A DITADURA CIVIL MILITAR EM SÃO BORJA: ALBERTO ROCHA
BENEVENUTO E DINO LOPES EM FOCO
A lberto R o ch a B enevenuto foi um m édico, político, vereador, pai e m arido, que viveu
gaúcho, próxim o da capital P orto A legre onde estava vivendo ju n to após reto rn ar do exílio. A
fam ília, representada po r M arilia B enevenuto C hidichino, filha de A lberto, em depoim ento à
C om issão N acional da V erdade, destacou, que na época, o pedido de autopsia foi negado, com
a desculpe de que “ m édico não faz autópsia em outro m éd ico ” (CV N , 2014).
A desconfiança veio tam bém porque A lberto foi bastante perseguido pela repressão,
além disso, a notícia de sua m orte chegou à São B orja a prim eira vez a p artir de u m a m entira,
segundo M arília, não há dúvidas de que foi assassinado, p o r duas vezes sua m orte havia sido
recebida em São B orja, sem pre relacionada a um acidente de trânsito, tal com o m ais tarde
ocorreu de fato.
Sua morte materializou-se em janeiro, 1978. Mas, meses antes já havia sido
anunciada, por duas vezes correu a notícia que havia morrido em acidente de trânsito.
O MDB São Borjense reuniu-se, aguardando o corpo, era, no entanto, rebate falso,
até que, na terceira vez, o anúncio da destruição da vida de Alberto, infelizmente era
verdadeiro e morreu exatamente na forma como vinha sido noticiado: acidente de
trânsito (CNV, 2014).
A lberto, viveu em São B orja até 1964, foi o prim eiro atingido p ela repressão no
m unicípio, e ju n to dele, to d a sua fam ília foi afetada. Inicialm ente exilou-se na A rgentina, e
posteriorm ente no U ruguai. Foi abrigado a abandonar o cargo de m édico que exercia ju n to à
investido em ja n e iro de 1964, exercido até os últim os dias de sua perm anência em São Borja.
coligação cham ada U nião P o p u lar São B orjense, que aglom erava um grupo dissidente do PTB ,
p arece ter aceitado candidatos sem partidos naquele m om ento, ou pode te r ocorrido a filiação
a algum desse partidos, com o objetivo da candidatura, contudo, não encontram os qualquer
inform ação que defina qual p artido p ertencia nesse período. O s docum entos produzidos pela
121
N o curto período que esteve veread o r em São B orja defendeu que a casa se posicionasse
seu local de trabalho e residência, levou até o prefeito, G eneral Serafim V argas, as dem andas
energia frequentes, inclusive, essa ação foi m al interpretada entre os colegas edis, que
defendiam que essas dem andas deveriam passar prim eiram ente pelo L egislativo. Independente
dos desejos dos edis, A lberto foi defender o interesse de seus eleitores pelos cam inhos que
A pós o C om ício da G uanabara, quando o país estava cada vez m ais polarizado e
ten sio n ad o pelo discurso anticom unista, na sessão do dia 16 de m arço de 1964, A lberto
u m a C om issão de Inquérito para apurar as denúncias realizadas pelos v eread o r José P ereira
A lvarez, em u m a reunião com a classe ruralista da cidade, com a presença do prefeito Serafim
V argas, quando disse que haviam sido desem barcadas arm as pelos cam pos de nosso m unicípio.
form ada. U m dos relatores, P edro de Sá, solicitou que seu requerim ento fosse votado na
p róxim a sessão, que ocorreria no dia 23 de m arço, não há m enção, nas atas disponíveis, dos
m otivos para tal decisão. P odem os im aginar que houve um esvaziam ento da ban cad a do
proponente, ou esvaziam ento geral da sessão. O que sabem os é que a sessão do dia 23 não
ocorreu, na ata consta apenas o nom e dos presentes, m as que, devido um a falta de energia foi
im possível dar seguim ento aos trabalhos. D estacam os, que na m aio ria das vezes as sessões
ocorriam durante a tarde, além de que, em nosso papel crítico de tensionar as possibilidades,
não há garantias de que a ata apresente a realidade do ocorrido. Sabem os que não houve sessão
ou não houve registro, nos perm itim os deixar em aberto essa questão.
Sabem os que, entre os dias 16 de m arço, sessão que ocorreu o pedido de form ação de
C om issão Investigativa, até o dia 23 de m arço, m uito eventos agitaram o B rasil, entre eles a
M arch a da F am ília com D eus pela L iberdade, que na época, deu o tom dos antagonism os. Se
o C om ício da C entral do B rasil, aglom erou sindicatos, ligas cam ponesas, estudantes. A M archa
da F am ília com D eus pela L iberdade, contou com apoio das classes produtoras, da F ederação
e do C entro das Indústrias do E stad o de São Paulo, do Instituto de P esquisa e E studos Sociais
- IPES, em sua idealização e financiam ento, m arcada para o dia 19 de m arço, em conform idade
com os preceitos da fé católica, “ dia de São José, padroeiro da fam ília e da Igreja U n iversal”
122
D ino A ldir do N ascim en to Lopes, nasceu em 19 de ju n h o de 1941, faleceu em 2022 e
por m uito anos p artilhou suas m em órias entre seus círculos fam iliares e políticos. A repressão
se apresentou em sua vida em 1968, quando ficou preso po r cerca de 30 dias para averiguações,
em função de sua atuação do program a “M ach a para o P rogresso” da rádio F ronteira do Sul.
D epois disso, outras 3 prisões ocorreram , um sequestro, o exílio e por fim , o retorno para S ão
B orja para cum prir o 1 ano e 3 m eses de prisão. O ú n ico são-borjense condenado pela ditadura.
tem as, outras atividades, esm iuçando b o a parte de sua vida, incluído suas outras atividades
D ino era p rofessor de português no C olégio E stadual São B orja, radialista da Fronteira
do Sul, estudante de direito em Santo  ngelo e v eread o r pelo M D B e todas essas atividades
foram interrom pidas em função da atuação do E stado. Foi exonerado do cargo de professor do
estado, obrigado a afastar da rádio e em função das inúm eras prisões, deixou o curso de direito
entre os anos de 1969 a 1971 e foi forçado a ren u n ciar a vereança, pleito de 1968, que ficou
com o suplente, contudo, logo ao assum ir em 1969, foi im pedido de perm anecer no cargo.
A segunda prisão, a que gerou seu prim eiro IPM , ocorreu em 7 de setem bro de 1969,
até 30 de ja n e iro de 1970, no 2° R egim ento de C avalaria M ecan izad a de São B orja, durante a
prisão m uitas perguntas sobre a vida do A lberto B enenenuto foram realizadas, ao que parece,
qualquer inform ação sobre A lberto. D in o nunca gostou m uito de falar sobre as barbaridades
que ocorriam durante os “interrogatórios” , sem pre preferiu falar de si com um ser resistente.
C ontudo, sabem os que nesse período, perdeu com pletam ente a visão do olho direito, segundo
m aterial disponível no A cervo de L uta C ontra a D itadura, isso ocorreu em função de um traum a
durante o cárcere.
D epois desse período de prisão, sua soltura foi sim ulada, durante a m adrugada, recebeu
ordem para que fosse em bora, achou tudo m uito estranho, m as obedeceu ao oficial do dia,
pediu apenas que lh e acom panhasse até a guarita, afinal, estava escuro ainda, poderia ser
confundido com um fugitivo. M eio a contragosto, conseguiu ser acom panhado, contudo, o
oficial não foi até a frente do quartel, apenas fez um sinal para a sentinela de plantão,
N esse m om ento, assim que pisou na calçada de fo ra do quartel, D ino foi encapuzado e
colocado na traseira de um fusca, levado em direção ao rio U ruguai. N esse m om ento, pensava
que seria m orto no rio. A cidade é relativam ente pequena, m as a distância que percorreu, para
123
D ino parecia um a eternidade, a ú n ica coisa que tinha sentido é que o carro havia virado para o
lado do rio, e nada m ais. P assado algum tem p o o veículo para, e ao descer e ter seu capuz
retirado, D ino encontra dois outros presos, M iguel Paiani D urão e A m andio A m aral, que
tam bém estavam no 2 R C M ec e que tam bém haviam sido sequestrados. O s três foram levados
para o quartel dos Fuzileiros N avais, na beira do rio U ruguai, onde hoje é a P olicial Federal,
de lá, foram colocados em u m a cam inhonete, algem ados entre si e levados até Santa M aria.
D ia 31 de jan e iro dava-se início ao terceiro cárcere. Ficou p reso até 18 de fevereiro de
1970, no R egim ento da B rigada M ilitar Cel. Pillar. C ontou com a ajuda do advogado A delm o
G enro para conseguir sua liberdade provisória enquanto aguardaria sua sentença. A pós a
obtenção da liberdade provisória, D ino, tem endo pela própria vida decidi ir para o exílio. O nde
ficou to d o o ano de 1970. C ontou com algum as redes de solidariedade, com o a do am igo
M iguel P aiani, que trabalhava com o transporte pelo rio. C ontudo, m enos de 24 horas do
m om ento que iria atravessar, D ino teve m edo, de ser descoberto, dos F uzileiros atirarem para
m atar. P o r isso fez outro cam inho, um am igo o levou até A legrete, depois disso, a p artir de
redes, descobriu um taxista que o levaria de A legrete até Santana do L ivram ento, onde poderia
V iveu no U ruguai de m arço a dezem bro de 1970, sentia-se triste, não tin h a trabalho,
afinal, era p rofessor de Português, conseguia trab alh ar em R iv era dando aulas para aqueles que
desejavam aprender a língua, m as não era n ad a fácil. N esse período, enfrentou tentativas de
sequestro, de forças policiais tanto brasileiras, quanto uruguaias, quando, sem encontrar m elhor
L ivram ento, a fim de cum prir a sentença de um ano e três m eses de reclusão, conseguiu ser
transferido para São B orja, onde ficou preso até 22 de outubro de 1971.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A h istória de A lberto e D ino expressam dois grandes grupos atingidos pela repressão.
Suas histórias não cabem apenas nesse texto, m as dão o tom da repressão na região. D ino,
em bora eleito pela sigla do M D B , integrava anteriorm ente do P artido C om unista, era am igo de
A lberto e de sua fam ília, inclusive, contou com apoio de A lberto em seu envolvim ento com a
política.
124
A repressão preventiva em São B orja fom entou significativam ente form as de
resistência. O discurso anticom unistas foi b asilar para determ inar quem seriam os m ais visados,
aqueles, claro, pertencentes ao P artido C om unista, m as tam bém , aqueles que detinham cargos
públicos ou m esm o atuavam com m uitas pessoas, caso de A lberto, m édico e D ino, professor.
A m em ória de D ino, partilhada com igo, é tam bém a m em ória de A lberto, um pouco da atuação
de A lberto esteve sem pre na m em ória de D ino. Seja na v id a que tiveram ju n to s, seja nas
REFERÊNCIAS
125
HISTÓRIA DO POVO INDÍGENA XOKLENG/LAKLÃNÕ - SÉCULOS
XVIII e XIX
C A R L O S E D U A R D O B A R T E L 57*
INTRODUÇÃO
popularm ente com o bugreiros), próxim o de P apanduva, pertencente hoje à Santa C atarina,
v an guarda da tropa entrou em luta corporal com os indígenas, um desses pulou sobre o bugreiro
que lhe desferiu um golpe com o facão “ abrindo-lhe o ventre. O infeliz quis com as m ãos
segurar os intestinos, porém caiu sobre eles no chão” . E m outro episódio, ocorrido em 1908,
relacionado à construção da E strad a de F erro BrazilRailway, que tin h a por objetivo ligar São
ao “ exam inar os cadáveres dos bu g res” perceberam que “ dois ainda viviam e gem iam ” , porém ,
conform e inform aram , não puderam se ocupar “ com eles e para que não sofressem , o
fartam ente encontrados nos docum entos e fontes bibliográficas. A h istória do B rasil é repleta
de violências contra as m inorias sociais, e quando praticada contra os povos indígenas essa
v io lência é, po r vezes, n egligenciada pela historiografia. P o r outro lado, ainda que m uitos
avanços, em term o s de inclusão, conquistas sociais e dem ocracia, tenham ocorrido ao longo
57* Docente do Instituto Federal Catarinense (IFC), Doutor em História (UFRGS), carlos.bartel@ifc.edu.br. O
artigo decorre do Projeto de pesquisa, intitulado “Os Xokleng-Laklãnõ em Santa Catarina - séculos XVIII e XIX”,
desenvolvido no IFC, contou com o apoio do Campus Ibirama e com o trabalho da bolsista Maria Eduarda Loch,
estudante do Curso Técnico de Informática Integrado ao Ensino Médio.
58Nas fontes, os Xokleng/Laklãnõ eram denominados genericamente como Botocudos, devido usarem um adereço
no lábio inferior, o botoque. Por sua vez, o termo Xokleng, usado por estudiosos para classificação e distinção
desses indígenas, foi popularizado através das obras do antropólogo Sílvio Coelho dos Santos. Atualmente tal
nomenclatura vem sendo questionada e relativizada por estudiosos e, principalmente, pelos próprios indígenas,
que assumindo a condição de protagonistas também para narrar sua história, têm utilizado a expressão Laklãnõ,
termo que remete ao grupo sobrevivente que protagonizou o contato com os agentes do SPI, em 1914. Sobre a
revitalização da identidade Xokleng/Laklãnõ ver, entre outros, os trabalhos de Namblá Gakran e a dissertação de
mestrado de Walderes Coctá, para esta autora, muitos foram os nomes dado a esse povo, como “Botocudos,
Aweikoma, Xocrén, Kainkang e Bugres. Mas nenhum desses nomes são reconhecidos pelo povo, que atualmente
se autodenomina como Laklãnõ, que significa povo que caminha em direção ao Sol ou povo do Sol (PRIPRÁ,
2021, p. 16-17).
126
diversas, exclusão e preconceitos (e até m esm o genocídio) persistem e fazem parte do cotidiano
estabelecim ento de im igrantes, italianos e alem ães em sua m aioria, os choques com as
rarefeitas populações locais existiam , m as em m en o r núm ero, se com parados com “a vio lência
surgiram inúm eras colônias, B lum enau, Joinville, B rusque, R io do Sul, H am ô n ia (Ibiram a),
X X , dim inuindo após o contato pacífico, ocorrido em 22 de setem bro de 1914 nas terras da
C olônia H am ônia, interior de B lum enau, entre representantes do Serviço de P roteção ao Índio
(SPI) e um grupo X okleng/L aklãnõ. P o r que o contato ocorreu neste local? às m argens do R io
P latê, onde foi criado o P osto Indígena D uque de Caxias, hoje Terra Indígena L aklãnõ (TIL).
R efletir acerca dessa pergunta pode (aparentem ente), parecer sem sentido, contudo, encontros
entre X okleng/L aklãnõ e não indígenas ocorriam desde o século X V III, m as po r que som ente
no início do século X X houve um a aproxim ação exitosa e perm anente? T anto o encontro,
quanto o local em que ele ocorreu, se deve m eram ente ao acaso ou existem aspectos que
expliquem as razões desse contato que ajudem a com preender essa história?
E studos, pesquisas e abordagens m ais sistem áticas sobre o povo X okleng/L aklãnõ são
produzidos desde a prim eira m etade do século X X , m uitos desses são excelentes trabalhos, que
com diferentes perspectivas se dedicaram a analisar o tem a e seus desdobram entos ao longo do
século XX. A ssim , m uito j á se escreveu e m uito se conhece sobre esses indígenas e sobre a
“ pacificação de 1914” .
E n tre estas abordagens, se destacam as produções de Santos (1987; 1997), W ittm ann
(2007), N am em (2020) e P rip rá (2021), entre outras, para ficarm os apenas com os estudos m ais
recentes. Igualm ente, em term os de qualidade, porém em m enor quantidade, foram abordados
aspectos relativos aos X okleng/L aklãnõ no século X IX e em períodos anteriores, com destaque
analisaram essa história, principalm ente após a “ pacificação” , descrevendo por vezes, tam bém
59 Abordamos a persistência e a continuidade das violências contra os povos indígenas em Santa Catarina em outro
local, ver BARTEL; MAFRA, 2020.
127
inform ações de contatos entre não-indígenas com “ os b o tocudos” em Santa C atarina no período
P o r sua vez, estudos específicos sobre a trajetó ria X okleng/L aklãnõ ao longo do século
X IX , são m ais escassos. A ssim , o presente texto, um a contribuição para o estudo e a reflexão
acontecim entos anteriores à aproxim ação entre agentes do SPI e os X okleng/L aklãnõ, para fins
C om preender a trajetória dos X okleng/L aklãnõ ao longo dos séculos X V III e X IX a partir
dos questionam entos que m otivaram a pesquisa constitui seu principal objetivo. P ara isso,
reconstruím os essa h istória em Santa C atarina através da seleção e cruzam ento de inform ações
e fragm entos citados em diferentes docum entos e obras bibliográficas. O bras atuais com o
artigos acadêm icos, teses e dissertações e outras produzidas desde o século X IX , algum as que
apesar de fazer m enção aos indígenas não os têm com o principal objeto de análise, com o por
exem plo, a obra que apresenta a “ Q uestão de lim ites entre o P aran á e Santa C atharina” (1887),
A m aio r parte das obras, fontes bibliográficas e docum entais foram localizadas no acervo
D igital da B ib lio teca B rasiliana G uita e José M indlin (B B M ) - U niversidade de São Paulo
(U SP), no acervo D igital da B iblioteca C urt N im u en d aju - línguas e culturas indígenas sul-
N o passado não havia por parte do povo X okleng/L aklãnõ a preocupação para m anter a
terra, viviam em um espaço que não era delim itado po r linhas ou divisas com o conhecem os
hoje, o território ocupado por esses indígenas se estendia do P araná ao R io G rande do Sul, era
vasto e sem fronteiras. Sabiam exatam ente onde encontrar alim entos e os recursos que
precisavam , bem com o onde fazer suas cerim ônias e rituais, m ontavam acam pam entos em
determ inados locais, nos quais perm aneciam po r dias ou m eses. P orém , com o p assar do tem po
e, principalm ente, no século X IX com o estabelecim ento das colônias europeias nos territórios
indígenas, esse povo foi “ sendo encurralado e em purrado para o A lto V ale do Itajaí, onde não
128
podiam m ais tran sitar de um lado para o outro. Presos, passaram a ter que se habituar a viver
de um m odo que lhe foi im posto po r m eio da força e da v io lên cia” (PR IPR A , 2021, p. 12).
econom ia bim odal, conform e expressão de C urt N im uendaju, ao referir-se aos grupos Jês,
com binavam assim períodos de dispersão e assentam ento em determ inados locais de acordo
estendia do P araná ao R io G rande do Sul, de P aranaguá, próxim o a C uritiba até P orto A legre.
N o sentido leste, seus lim ites eram a Serra do m ar e a oeste, um a faixa que se estendia de
P alm as no P araná até C am pos N ovos em Santa C atarina, região onde os X okleng/L aklãnõ
Distribuição geográfica dos povos indígenas em Santa Catarina, em meados no século XIX
(Apud D’ANGELIS, 2017. p. 44).
O “grande cerco de paz” , conform e expressão usada por A ntonio C arlos de Souza L im a
(1995), serviu para que as terras indígenas fossem ocupadas sem m aiores conflitos. C ontudo,
as ações prom ovidas pelo SPI no século X X , foram precedidas por v iolências diversas que,
quando não exterm inavam os agrupam entos indígenas, os expulsavam de suas terras. Em
relação aos X okleng/L aklãnõ, o cerco e a redução do território pelo qual eles transitavam teve
início no século X V III, ao sul, seu m arco foi a abertura da estrada C am inho dos C onventos,
129
entre 1728 e 1730, que ligava o planalto catarinense ao litoral, isto é, a região de Lages a
A través do A lvará R eal de 9 de setem bro de 1820, D. João VI, po r razões de segurança,
C atarina. C onsiderando que “ a V ila de L ages era a m ais m eridional das da P rovíncia de São
P au lo ” , devido a grande distância que se achava da C apital a V ila não pod eria ser prontam e nte
socorrida dos ataques efetivados por seus vizinhos, os indígenas selvagens que causavam danos
a L ages.60 A vançando na ocupação dos territórios indígenas no sul de Santa C atarina, em 1829
foi criada a colônia de São P edro de A lcântara, a prim eira colônia alem ã no estado. A colônia
dava suporte aos tropeiros que se deslocavam de L ages à ilha do D esterro (atual F lorianópolis).
C atarina, desde os prim órdios da presença de europeus no continente am ericano, porém esses
contatos se lim itavam a costa litorânea. Portanto, grupos diversos de não indígenas eram bem
conhecidos pelos indígenas, que sabiam das am eaças e perigos que representavam esses
grupos.
encurralados e a ver seu território tradicional dim inuído. N esse período, em sua grande m aioria,
já tinham sido expulsos do R io G rande do Sul, onde perm aneceram apenas pequenos grupos,
que se refugiaram entre a serra, a região de V acaria, e o litoral norte gaúcho, conform e
dem onstrou o pesquisador L auro C u nha em seus estudos (2012, 2017). Já nas prim eiras
décadas do século X IX , com o avanço da frente pastoril e através das tropas que conduziam o
gado do R io G rande do Sul para São Paulo, o com bate aos indígenas se to rnou m ais intenso:
...em 1808 os Xokleng (ou Botocudos de Lages) sofreram uma declaração de guerra
justa, assinada pelo Príncipe Regente, Dom João VI [...]. Como consequência das
ações daquela frente, respaldada pelo governo português, os Xokleng não tiveram
como resistir em seus campos, e migraram em direção às florestas da Serra Geral e a
Serra do Mar (D’ANGELIS, 2017, p. 44)
aos B otocudos e a presença de colonos europeus, criou um cerco ou um a b arreira que dificultou
sobrem aneira a circulação dos indígenas X okleng/L aklãnõ pelos territórios em direção ao R io
G rande do Sul e ao oeste de Santa C atarina, onde viviam tam bém os povos G uarani e K aingang,
60 “Alvará com força de Lei, pelo qual Vossa Magestade Ha por bem desannexar a Villa das Lages e todo seu
Termo, da Capitania de São Paulo, e encorpora-la na Capitania de Santa Catharina”. Impressão Régia, Rio de
Janeiro, 1820. Documento disponível no acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP.
Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/383, acesso em 14 de outubro de 2022.
130
por sua vez, o litoral já se encontrava ocupado por portugueses desde o século XV I, restando o
espaço da Serra G eral, que se estendia de Santa C atarina ao Paraná, bloqueado, em parte, com
O processo de invasão, ocupação das terras e de exterm ínio dos indígenas, denom inado
eufem isticam ente de “ G uerra Justa” , ocorreu de m odo concom itante e foi im pulsionado por
im agens depreciativas, id eia reforçada por teo rias raciais em voga naquele período e que, em
N esse sentido, a pesquisadora L aim a M esgravis referiu que nenhum dos cronistas dos
elaboradas “no século XIX, quando se quis explicar as razões de em pregar o negro no trabalho
escravo. A qualidade de trab alh ad o r obediente e subm isso atribuída ao negro foi contraposta à
A ssim , no sul do B rasil, ao longo dos séculos X V III e X IX , ig ualm ente ao que o corria
em outras regiões do país, processos diversos atuaram de m odo sim ultâneo, caracterizados pelo
avanço das diferentes frentes de expansão sobre as terras indígenas, por políticas
povos.
E m m eio a esses processos, no século X IX , o territó rio que hoje com preende o estado de
Santa C atarina passou por inúm eras transform ações relacionadas à sua geografia política. A
questão dos lim ites entre o P araná e Santa C atarina era im precisa e até o final do século, a
Incursões exploratórias para desbravar o in terio r do território, cham ado de Sertão, foi
europeias no estado.
da im igração europeia pelo in terio r de Santa C atarina. E ssa ocupação foi acom panhada por
u m a visão id eológica que difundia im agens extrem am ente negativas e estereotipadas dos
131
indígenas, as quais no dizer de M aria C elestino de A lm eida (2010, p. 68) “ incentivavam a
v io lência de colonos e m ilitares. A carta régia de 1808 foi finalm ente revogada em 1831, m as
P rovíncia de Santa C atarina criou a T ropa de P edestres ou C om panhia de P edestres, que m ais
tarde daria origem aos grupos bugreiros e suas incursões belicistas pelas m atas.
P o r outro lado, analisar esses acontecim entos sob a p erspectiva de brancos e índios, com o
se fossem grupos hom ogêneos, pouco ajuda para o entendim ento da situação que apresentam os,
e até m esm o colabora para a não com pressão dos processos relativos à h istória indígena, pois
os vários atores sociais, incluindo os indígenas, que interagiam no B rasil, eram m ovidos por
diferentes interesses e objetivos, que se m odificavam com a dinâm ica da colonização e das
relações, entre eles. D essa form a, do século X V I ao X IX , os com portam entos e ações dos atores
D a m esm a form a, tam pouco ajuda o uso genérico do term o “B o tocudo” , criado pelos
portugueses para classificar os grupos m acro-jê, que resistiam a sua dom inação.61 N o final do
século XIX, entre 1882 e 1884, o engenheiro A lfredo E rnesto Jacques O urique, foi designado
pelas províncias do P aran á e de Santa C atarina, para elaborar um p arecer que resolvesse a
questão dos lim ites entre as duas províncias, pois segundo ele o sertão ainda era m uito
desconhecido. A lgum as páginas de seu relatório, intitulado “ Q uestão dos lim ites entre o Paraná
e Santa C atharina” , publicado em 1887, foram dedicadas para analisar os povos indígenas.
alguns grupos que circulavam pelas províncias do sul do B rasil, afirm ação com partilhada pelo
“ indiozinho” que havia sido aprisionado e não desejava m ais v oltar para o sertão. D e nom e
Covi, foi b atizad o com o Felicio, segundo O urique ele tinha entre 7 e 8 anos e aprendeu a falar
o português. Covi, disse “ que ju lg a v a im p ró p ria a designação de botocudos dada a essa raça”,
pois esse qualificativo foi atribuído a certas “tribos b rasileiras” que usavam “ grandes botoques
que, pelo tam an h o e peso, lhes deform avam os b eiços e orelhas” , o que não se dava com os
B otocudos do P aran á e Santa C atarina, tam bém com o auxílio de Covi foi feito um pequeno
vocab u lário de palavras X okleng/L aklãnõ (O U R IQ U E , 1887, p 29), bastante preciso, conform e
61 Conforme Maria Hilda B. Paraíso “as primeiras notícias sobre os Botocudos, ainda chamados Aimorés ou
Tapuias, datam dos primeiros anos de tentativa de colonização do país” (1992, p. 413). Em nosso estudo, tendo a
nítida noção das limitações desse termo, usamos a denominação “Botocudos” apenas para designar os ancestrais
dos Xokleng/Laklãnõ, que transitavam no sul do Brasil.
132
Segundo O urique, esses indígenas eram “ indom áveis e nôm ades ao ú ltim o extrem o”
devido a contínua guerra im posta pelos brancos, assim , “ habitam , estes selvagens, u m a facha
(sic) de sertão cercada po r todos os lados de povos, vilas e cidades, conservando, entretanto,
no coração das m atas, quase virgens, seus hábitos prim itivos” . O engenheiro relatou tam bém
que, durante a incursão pelo território, sua equipe sentiu-se “ sem pre sob a v ig ilân cia do índio
sagaz e astuto, m as nunca o podem os ver, porque tam bém nunca dem os ensejo de se
H á m uitos relatos sem elhantes ao do engenheiro A lfredo O urique, tam bém são bastante
longo da segunda m etade do século XIX, com o po r exem plo, a criação de um aldeam ento em
P apanduva, cidade situada atualm ente ao norte de Santa C atarina. E m 1876, “ o presidente da
P rovíncia do Paraná, A dolfo L am enha Lins, criou o aldeam ento de São T om áz de Papanduva,
destinado aos índios B otocudos; porém , o m esm o não se desenvolveu e desapareceu, devido
p. 470).
quais não obtiveram êxito. O m otivo para esses fracassos se deve ao fato dos indígenas,
conhecedores do território, não desejarem o contato, pois conheciam bem as populações não
m encionado, sabiam dos perigos e dos riscos que corriam ao contatar essas populações.
identificavam com clareza se o contato tinha propósitos am istosos ou não. O p esq u isad o r Lúcio
T adeu M ota, ao analisar diferentes expedições que tentaram contatá-los após confrontos
ocorridos em 1868 na região de Passo R uim , divisa entre Santa C atarina e Paraná, m ostrou
de ação para lidar com a situação. U m a das estratégias utilizadas no trato com os invasores foi
a da invisibilidade, dessa form a, “ com base na avaliação que faziam do invasor, não se
...a história das relações dos grupos Xokleng com a população do entorno e com as
autoridades imperiais e provinciais é muito mais complexa que a simples reação à
invasão de suas florestas, campos e pinheirais. Os Xokleng desenvolveram formas de
lidar com os invasores que iam além da simples reação aos ataques que sofriam.
Tinham paciência para preparar meticulosas emboscadas, [...]; sabiam dissimular e
esconder os vestígios de suas caminhadas; faziam estruturas de proteção de suas
133
aldeias principais; examinavam cuidadosamente e conheciam os objetivos de cada
um daqueles que penetravam em seus domínios, traçando formas e estratagemas para
lidar com eles, o que se exemplificou com seu comportamento diferenciado diante de
duas expedições que foram à sua procura logo após o ataque praticado em Passo Ruim
(MOTA, 2017, p. 188).
C ontudo, com o avanço das frentes de expansão o cerco foi se fechando para os
X okleng/L aklãnõ que, por sua vez, buscavam fugir das agressões, passaram assim a se refugiar
num a região bastante conhecida po r eles, a região do R io Platê, território tradicional indígena,
que se transform ou num a região estratégica devido possuir cam inhos diversos (usados tam bém
com o rotas de fuga) para outras, que agora se encontravam ocupadas. S obre a im portância
lim ites entre Santa C atarina e P araná fecharam as rotas pelas quais os X okleng/L aklãnõ
Embora o grupo liderado pelo chefe Voble tenha sido drasticamente reduzido depois
dos ataques dos bugreiros, a fome e a sensação de privação de liberdade aumentavam
cada vez mais. Os índios passaram a comer toda a sorte de larvas e insetos para
sobreviver à escassez de carne que antes era o seu principal alimento. Além disso,
havia também a constante ameaça de ataques dos bugreiros, o que forçava o grupo a
mudar-se constantemente de lugar.
134
Diante dessa situação difícil, o líder sentiu uma crescente vontade de fazer contato
pacífico com os não-índios e encerrar o conflito que havia entre eles (CAMPOS;
GAKRAN, 2021, p. 82)
D essa form a, o contato derradeiro não ocorreu por acaso ou de m odo fortuito, foi
precedido por u m a longa h istória de violências, com o invasão e ocupação dos territórios, a
indo ao seu encontro, a decisão do contato partiu dos indígenas. U m a questão avaliada po r eles,
antes do contato foi o grande núm ero de crianças ó rfãs. E m algum as fotografias feitas anos
após 1914 é possível v er o enorm e n úm ero de crianças, em contraste com um grupo m enor de
m ulheres e poucos hom ens X okleng/L aklãnõ. O que retrata o exterm ínio e corresponde aos
A ssim , a região do R io Platê, talvez ten h a sido o ú ltim o refúgio dos X okleng/L aklãnõ,
onde agindo com o protagonistas, avaliaram a n ecessidade de outras estratégias, com o, por
exem plo, fazer com o fizeram os K aingang que na visão deles tinham feito aliança com os
brancos. A ssim , se escolheu por estabelecer o contanto, aliança e o convívio com as populações
não indígenas, as quais por ocuparem suas terras e exterm inar o povo indígena, precisavam ser
pacificadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
por acaso, a situação foi avaliada pelos indígenas que escolheram igualm ente o local para o
contato, o território tradicional do povo L aklãnõ/X okleng, um a espécie de entroncam ento onde
havia conhecidos cam inhos e rotas que davam acesso a diversas localidades, po r exem plo, o
acam pam ento denom inado “Z ág Jo l” , antes de 1914, era um a rota para Taiózinho, Salete,
C açador, P residente G etúlio, Ibiram a, Taió descendo para R io do Sul (PR IPR Á , 2021, p. 59).
E m 1914 a região do R io P latê j á contava com a presença de agentes do SPI, essa presen ça
foi aproveitada pelos indígenas para “ pacificar” os não-indígenas, pois se tratav a de um local
estratégico (atual Terra Indígena Ibiram a), nessa região havia diversos acam pam entos usados
pelos X okleng/L aklãnõ para diferentes finalidades, m uitos dos quais continuaram sendo usados
m esm o depois do contato, “ eram lugares onde o povo L aklãnõ m uitas vezes se encontrava para
festejar ou até m esm o para dividir o grupo para a caça e coleta” (PR IPR Á , 2021, p. 54).
135
A ssim , para os X okleng/L aklãnõ, os não indígenas, que invadiram seus territórios e
praticavam o exterm ínio dos povos indígenas é que deveriam ser pacificados, não por acaso
José D eeke, D iretor da C olônia H am ônia entre 1909 e 1929, na obra intitulada “ O M unicípio
de B lum enau e a história de seu desenvolvim ento” (1995) a o narrar o episódio, ainda que de
acordo com a perspectiva do colonizador, tam bém enfatizou que do ponto de vista indígena,
no século X V III e concluída (não sabem os) com a pacificação de 1914. C om preender essa
história, evidenciando os indígenas tam bém com o protagonistas, e não com o vítim as passivas
en tender os m ovim entos sociais indígenas e sua luta pela terra, pela identidade cultural e até
m esm o pela existência física, bem com o para um a m elhor com preensão tanto da história,
A cervo D igital da B iblioteca C urt N im uendaju - línguas e culturas indígenas sul-am ericanas.
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62A obra escrita originalmente em língua alemã foi publicada em 1917, nela, Deeke enfatiza aspectos diversos da
colonização no Vale do Itajaí, dedicando seu terceiro capítulo à “Questão Indígena”. A obra revela a visão de
mundo dos colonizadores no início do século XX, compartilhada pelo autor do livro.
136
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138
HISTÓRIA E IMPRENSA OPERÁRIA:
UMA ANÁLISE DO JORNAL A LUTA DE CLASSE
C A R L O S P R A D O 63
O G rupo C om unista L enine (G C L ) foi lançado oficialm ente em 8 de m aio de 1930, por
m eio da publicação do prim eiro núm ero do jo rn a l A Luta de Classe6 E sta organização foi
bem observou M arques N e to (1993), a origem deste grupo está relacionada a diferenças
orientação sindical. N ã o obstante, se a princípio estas questões parecem girar em torno apenas
de problem áticas nacionais, M arques N eto (1993) e C astro (1993), destacam que há sim um a
relação direta com os debates no in terio r do P artido C om unista da U nião S oviética (PC U S).
apenas após o retorno de M ário P e d ro sa 66, que estava na E uropa, que os ex-m em bros do P C B
pequena organização trotskistas era constituída por pouco m ais de um a dezena de m em bros,
63 Doutor em História pelo PPGH-UFF e professor da FACH-UFMS. Trabalha com temas relacionados à Teoria
da História e História do marxismo. E-mail: carlosprado1985@hotmail.com
64 Esperava-se que a primeira edição do jornal A Luta de Classe fosse publicada no 1° de maio, junto às
comemorações ao dia do trabalhador, mas o número inaugural só foi publicado na semana seguinte, no dia 8. O
jornal apresentava uma diagramação bastante simples, suas edições contavam com 4 ou 6 páginas. No seu
cabeçalho havia apenas o nome da publicação e a indicação “Órgão do Grupo Comunista Lenine”, seguido por
número, cidade e data.
65 O termo “trotskista” é utilizado aqui como referência aos membros da OEI. Todavia, é necessário esclarecer
que estes oposicionistas se autodenominavam “Bolcheviques-leninistas” num esforço para afirmarem sua
vinculação político-ideológica com a tradição revolucionária da Revolução de 1917. Nas décadas de 1920 e 1930,
marcadas por disputas no interior do partido russo e da Internacional, o termo “trotskista” foi utilizado de forma
pejorativa pela burocracia stalinista e remonta as críticas direcionada à Trotsky desde as primeiras divergências
em 1904. Apenas após o assassinato de Trotsky em 1940, o termo perdeu o caráter negativo e passou a ser aceito
pelos militantes que reivindicavam o seu legado teórico.
66 Membro do PCB desde 1926, Pedrosa havia sido enviado, em meados de 1927, para a Escola Leninista em
Moscou, mas, devido a uma enfermidade, parou na Alemanha, onde teve contato com a OEI. Foi na Alemanha e
na França que Pedrosa pôde se informar melhor sobre o que ocorria no interior do PCUS e sobre as articulações
da Oposição. Pedrosa não participou diretamente dos debates no interior do PCB. Mas, mesmo distante, ele
acompanhou as divergências por meio das correspondências. Assim, ao retornar ao Brasil, em julho de 1929, ele
se transformou numa das figuras centrais da organização dos dissidentes do PCB.
139
entre os quais, o próprio Pedrosa, L ívio X avier, R odolfo C outinho, João da C osta Pim enta,
W enceslau A zam buja, José N eves, O ctaviano du P in G alvão, entre outros. O grupo teve um a
existência curta, cerca de sete m eses, entre m aio e novem bro de 1930.
U m aspecto relevante que foi destacado por C astro (1993; 1999; 2000) é que o G C L
reuniu os quadros com unistas com a m elhor form ação teórica. Seus principais dirigentes,
Pedrosa, X avier, C outinho, parte deles advindos de fam ílias abastadas, eram intelectuais com
form ação acadêm ica e tinham dom ínio de línguas estrangeiras. A ssim , contribuíram para o
avanço da análise sobre a estrutura social brasileira, a p artir da qual construíram um a proposta
política alternativa ao PCB. O utra contribuição foi o esforço realizado na tradução e divulgação
pioneira de obras de M arx, E ngels, L enin e T rotsky (m uitas delas traduzidas po r X avier),
publicadas pela E d ito ra U nitas (do tam bém m em bro Salvador P intaúde).
docum entos que nos forneçam inform ações m ais precisas sobre seu funcionam ento interno,
seus m em bros e etc. A ssim , a principal fonte sobre o G C L é o jo rn a l A Luta de Classe. E ntre
os m eses de m aio e outubro de 1930 foram publicados cinco núm eros. T odavia, apenas os
quatro prim eiros foram preservados, pois o quinto foi apreendido pelos aliancistas durante a
luta arm ada em outubro. P o r conseguinte, é m ediante a investigação destas publicações que
no C entro de D ocum entação do M ovim ento O perário M ario P edrosa (C EM A P), que
publicações buscaram caracterizar a própria organização, num esforço para esclarecer qual era
a posição do grupo diante do PC B . C abe d estacar que a m aio r parte dos artigos publicados
tinham com o objetivo a denúncia e a crítica aos com unistas brasileiros e à Internacional
C om unista (IC). O s tem as m ais frequentes versavam sobre a política nacional, o m ovim ento
de A luta de Classe seria o instrum ento para levar esclarecim ento e elevar a consciência dos
seus leitores, buscando am pliar suas influências, conquistando novos sim patizantes e
m ilitantes. Sobre o caráter pedagógico dos jo rn a is com unistas, Sousa (2015, p. 32) aponta que:
140
cultura e da leitura, despertariam o seu espírito crítico em relação ao mundo - como
os lesender Arbeiter, idealizados pelo dramaturgo e poeta comunista Bertolt Brecht
(1898 - 1956) -, o que outorgaria à imprensa comunista uma função doutrinária e
pedagógica.
apresentar e analisar a atuação teó rica e política do GCL. N um prim eiro m om ento, busca-se
C arlos Prestes. Posteriorm ente, investiga-se com o a organização se posicionou diante de tem as
artigos e docum entos, entre os quais o “ T estam ento de L enin” e a carta de Y offe.
Foi nas páginas de A Luta de Classe, que o G C L lançou as prim eiras críticas à
concepção de que o B rasil era um país agrário e que, portanto, o caráter da revolução brasileira
era dem ocrático-burguesa, antifeudal e anti-im perialista. A ssim , destacaram desde o prim eiro
os oposicionistas, se to rnou a principal contestação teórica lançada pelo GCL. P ara o grupo, a
a realidade econôm ico-social ao apontar que a contradição fundam ental era entre o cam po e a
P ara os trotskistas, tal concepção encobria o antagonism o entre capital e trabalho e não
tin h a com o objetivo o com bate à burguesia, m as o seu desenvolvim ento, a sua am pliação
141
m ediante o incentivo a u m a lógica industrializante. A ssim , o proletariado era d eslo cad o do
centro da lu ta revolucionária:
D e acordo com a teo ria da “revolução em retalh o s” as tarefas socialistas não poderiam
se realizar, pois não havia ainda condições objetivas p ara o seu desenvolvim ento. D esde às
intervenções de T rotsky sobre a R ev o lu ção C hinesa, esta era um a das principais críticas
burguesa. O s trotskistas apontaram que m esm o diante dos desastres da experiência chinesa
entre 1925-1927, a “ ideologia kuom intanguista” persistia sendo aplicada nos países coloniais
econom ia nacional: “ O im perialism o vai assim servir para apagar a luta de classes e m obilizar
o p roletariado indígena a serviço da p rópria burguesia n acional” . (Idem , 1930a, p. 1). E sta
interpretação questionava a tese de B randão que partia do pressuposto de que o setor agrário
era apoiado pelos investim entos ingleses, enquanto que o setor urbano-industrial estava
atrelado ao capital norte-am ericano e que am bos im pediam o florescim ento de u m a indústria
autônom a e nacional.
opressão nacional é a base do p ior confusionism o. (...) A ideologia “ anti-im perialista” concebe
o capital internacional e nacional era a base teó rica que sustentava a tática da revolução
dem ocrático-burguesa:
A oposição comunista nas discussões sobre a revolução chinesa, denunciou esse erro
grosseiro e, via-se logo, fatal. A luta revolucionária contra o imperialismo não cria
uma coesão de classe na colônia, mas é, ao contrário, fator de diferenciação política.
A força do imperialismo reside na ligação econômica e política do capital estrangeiro
com a burguesia indígena. (Ibidem).
142
P ara os oposicionistas não havia contradição entre a b urguesia nacional e a
com bater os investim entos e financiam entos do capital im perialista. A ssim , criticavam a
direção do PC B que a p artir desta teoria de com bate ao “ im perialism o” acabava por aproxim ar
os com unistas da b urguesia nacional, apresentando-a com o interessada e possível aliada na luta
pelo desenvolvim ento nacional. Tal concepção, extinguia o conflito entre capital e trabalho e
apresentava o capital internacional com o o grande adversário a ser com batido. N ão obstante,
estes p rim eiros artigos publicados pelo G C L representaram apenas o início do desenvolvim ento
questão em to rno de L uiz C arlos Prestes. Já no prim eiro núm ero de A Luta de Classe,
com unista?” . Im portante observar que este texto antecedeu a publicação do “M anifesto de
torn o do nom e de Prestes. P rincipalm ente a partir das ações da C oluna, p ercorrendo o interior
do país, o tenente apareceu nas publicações burguesas e até com unistas, com o um nom e envolto
na figura de Prestes, um sím bolo que gostariam de atrair para angariar apoio das m assas. C om o
a ideologia e o program a do tenentism o era dem asiado genérico, ele passou a atrair diferentes
grupos: “ T odos faziam do C hefe da C oluna P restes a m enina política dos seus olhos” . (Idem ,
Os trotskistas estavam interessados em desvelar quem era P restes e qual a classe ele
representava. E m prim eiro lugar, apontaram que o tenente tinha um program a eclético e não
assum ia nenhum a posição de classe, buscava ap arecer apenas com o um indivíduo interessado
Mas quem é afinal esse fabuloso “general” L. Carlos Prestes? Para nós - comunistas
- é apenas um nome individual. E nós não fazemos política com um indivíduo por
maior que seja. A nossa política é com as massas. E os indivíduos só valem
politicamente na medida em que são as direções representantes de uma classe, de um
partido. Carlos Prestes não é nada disso. (Ibidem).
que P restes “ não é m em bro de nenhum a classe: não faz parte integrante nem da grande, nem
143
da pequena burguesia. É um com ponente do E stado. Serve aos interesses das classes
dom inantes, sejam quais forem , que detenham as rédeas do governo” (Ibidem ). A o contrário
revolucionária, os trotskistas afirm avam que seu discurso e seu program a o colocavam “ acim a
das classes sociais” , m as sem pre servindo às classes dom inantes e em b u sca do controle do
b o n ap artista” (Ibidem ).
que se apresentava com o indivíduo acim a das classes e que poderia ser ao m esm o tem po
Há vários anos que está no exilio, e até hoje ninguém sabe ao certo a posição política
que ocupa. (...) Não se conhece ato político seu, que o defina. Será que o “general”
tem medo de perder a popularidade alijando as simpatias que conta em grande parte
da burguesia liberal? (Ibidem).
Três sem anas após a publicação deste texto em A Luta de Classe, P restes lançou o seu
“M anifesto de m aio” , no qual b uscou um a aproxim ação com a classe trabalhadora e com o
PC B , e ainda apresentou u m a série de críticas ao tenentism o, especialm ente aos seus ex-
com panheiros que estavam apoiando a A liança Liberal. D iante da nova m anifestação de
afirm aram que o M anifesto apresentava um enorm e esforço do ex-chefe da coluna em se definir
politicam ente e que, po r isso, representava um im portante passo à frente. R essaltaram que
P restes havia abandonado o discurso bonapartista e buscou definir seu posicionam ento de
classe, se colocando ao lado das m assas populares, o que o afastou dos liberais e levou ao
rom pim ento com os dem ais líderes tenentistas. (Idem , 1930j, p. 4).
Sobre a interpretação econôm ica e social que o M anifesto apresentava sobre o B rasil,
os oposicionistas apontaram que era m uito sim ilar àquela apresentada e defendida por B randão:
144
“ parece até um decalque do A grarism o e Industrialism o” (Ibidem ). P restes rep ro d u ziu a
perspectiva dualista, enfatizou que o B rasil era um país agrário e feudal, dom inado pelo
latifúndio e pelo im perialism o e que lutava pela independência nacional. A principal crítica
lançada em A Luta de Classe é que Prestes tam bém subestim ou a lu ta entre capital e trabalho,
capitalism o:
Dessa análise é que parte o manifesto para declarar uma luta de morte, total, contra -
nomeadamente - os senhores da terra, fazendeiros, contra a burguesia agraria, vulgo
feudal, e contra o imperialismo. E é aqui que se revela em toda a sua gravidade, a
grande omissão sintomática do manifesto. (...) queremos nos referir a completa
ausência de referência á burguesia nacional das grandes cidades, a burguesia
industrial, a grande burguesia comercial e bancaria, que se nota no manifesto. Será
possível que o autor do manifesto negue a existência dessa burguesia? (Ibidem).
era radical quando se dirigia contra as estruturas “feudais” e contra o im perialism o, m as era
program as é assim evidente. A o p roletariado u rbano cabe assim no final do m ovim ento um
quinhão de parente pobre” (Ibidem ). A crítica era a de que a estratégia de P restes não garantia
m as não questionou a interpretação econôm ica e o program a. P o r sua vez, o G C L destacou que
desenvolvim ento do capitalism o no B rasil, am bos cam uflavam a luta de classe e adiavam as
145
E m A Luta de Classe n o 4, os oposicionistas publicaram m ais um artigo sobre Prestes.
N e sta edição a discussão girou em torn o do lançam ento da L iga de A ção R evolucionária
(LA R ). A liga era um a ten tativa de P restes rom per o isolam ento e, segundo o m esm o, era um
órgão técn ico -m ilitar para auxiliar os com unistas no processo revolucionário. D e acordo com
cujos caracteres ainda não estavam claram ente definidos, m as apresentava u m a tendência a se
tran sfo rm ar num a am pla frente nacionalista, u m a nova versão do K uom intang: “P o r enquanto,
ninguém pode garantir que ela não seja de fato ou não tran sfo rm e em um sim ples partido
político, no caráter dessas m últiplas variações de K uom intang, que proliferam hoje po r volta
V ale fazer referência a u m a entrevista à C arone, na qual P restes afirm ou que apesar de
te r desde o início se posicionado ao lado de Stalin e do PC B nas polêm icas acerca da condução
Eu não admitia a crítica a Stalin, porque eu achava que Stalin era realmente o homem
que tinha conseguido iniciar a construção do plano... e concordava com as posições
dos documentos do Partido Comunista da União Soviética. Mas eles (os trotskistas
influíram numa coisa... no Manifesto da Liga de Ação Revolucionária tem uma
palavra de ordem que não era da Comintern, era dos trotskistas: era o poder ao
governo proletário, governo proletário. (PRESTES Apud Carone, 1989, p. 301).
A L A R não obteve o sucesso alm ejado por P restes e p ereceu depois de poucos m eses.
A ssim , para ten ta r exim ir-se da culpa, apresentou esta versão que identificava a L A R com o
trotskism o. P ed ro sa (Apud M arques N eto, 1993, p. 143) tam bém com entou sobre a L iga e sobre
Eu era contrário a que ele fizesse um partido independente. Isso iria prejudicar
profundamente o Partido Comunista, pois com seu enorme prestígio iria arrastar
muita gente. O PC era um partido novo ainda, sem grande expressão, a não ser nos
meios operários mais adiantados. Opunha-se àquela ideia, porque ramos
bolcheviques leninistas. Como já disse, nosso objetivo era repor o partido em sua
verdade histórica leninista. Éramos todos fieis a esse princípio.
evidenciando que a L A R não foi in stigada pelos trotskistas. A ssim , a iniciativa de P restes
acabou ten d o um fracasso total, pois foi repudiada pelos tenentistas, pelos stalinistas e pelos
146
A Luta de Classe e o cenário internacional
O G C L tam bém u tilizou as páginas de A Luta de Classe para p u b licar diversos textos e
docum entos sobre a conjuntura internacional, pois entre os com unistas b rasileiros as questões
debatidas internacionalm ente ainda estavam m uito obscuras. O objetivo era a cada edição
p u b licar artigos para esclarecer o leitor b rasileiro sobre o processo de degeneração burocrática
C onform e P ed ro sa observou em carta para L ívio X avier, era preciso trazer à to n a estas
problem áticas para só então b u scar um a aproxim ação e arregim entar novos m ilitantes:
Ninguém pode exigir dos outros que tomem partido por alguma coisa, sem ter o
menor conhecimento dela. Isso é besteira. Ninguém sabe nada da situação
internacional. Você pensa que o creta do Partido sabe o que é socialismo num país
só, questão chinesa, democracia na base, comitê anglo-russo, burocracia, centrismo,
direitismo, oposição, Stalin, Trotsky, etc. (...) Nós estamos agindo direito. Primeiro é
preciso dar a essa gente alguma coisa a respeito para ler, antes de exigir que tomem
posição. E é o que estamos fazendo, publicando de cada vez um documento com um
comentário simplesmente elucidativo e traduzindo também alguns para publicar em
folheto e espalhar. (PEDROSA [Carta] jun. 1930, p. 327).
destacaram o desenvolvim ento e a luta dos oposicionistas em diversos países. D essa form a, A
Luta de Classe se to rnou porta-voz da O IE, publicando traduções de T rotsky e outros textos
im portantes sobre o desenvolvim ento da luta dos trabalhadores ao red o r do m undo.
Já na prim eira edição de A Luta de Classe, em sua prim eira página, ao lado do editorial,
os oposicionistas publicaram trechos do “ T estam ento político de L enin” . V ale destacar que a
passagem divulgada era ju stam en te aquela nota acrescida em 4 de ja n e iro de 1923, que
solicitava o afastam ento im ediato de Stalin do cargo de Secretário G eral do partido. C om esta
nota, a nova organização já m ostrava claram ente a sua postura crítica à linha stalinista. N este
m esm o núm ero ainda foi publicado um trecho do tex to produzido por Trotsky, in titulado “ O
que é radicalização” , no qual ele lançou críticas às teses do V I C ongresso da IC, especialm ente
E m seu segundo núm ero, A Luta de Classe tam b ém apresentou outro docum ento
147
que A d o lf A bram ovich Y o ffe67 escreveu à T rotsky antes de com eter suicídio em 16 de
novem bro de 1927. A longa carta de Y offe é um docum ento de denúncia à burocratização, no
qual ele buscou dem onstrar com o a sua trag éd ia pessoal estava relacionada à própria tragédia
da revolução:
que a revolução soviética vivia e um a das questões centrais no início da década de 1930 era o
P lano Q uin q u en al. O objetivo era contrapor a versão oficial da b u rocracia soviética, a qual
apontava que o plano e todo o cenário soviético era otim ista e de avanço inquestionável. A ssim ,
desocupação” , que havia sido publicado pelos oposicionistas franceses em La Verité, em m arço
de 1930. O texto assinalava que a principal problem ática em torn o do P lano era teórica, pois
indicava que era possível que a U R SS avançasse na construção do socialism o de form a isolada.
A rgum entou-se que não se poderia desconsiderar a relação de interdependência entre econom ia
apresentou um a crítica à estrutura burocrática que dom inava o PC U S. D epois da expulsão dos
in terio r do partido. D e acordo com Senine (1930, p. 4): “ O X V I C ongresso vai se realizar
67 Yoffe conheceu Trotsky em Viena quando o ajudou a dirigir o Pravda e ingressou no Partido Bolchevique em
1917, se tornando membro do Comitê Central. Ao lado de Trotsky, Yoffe atuou durante as negociações de Brest-
Litovsk e, posteriormente se tornou embaixador na Alemanha, sendo transferido para o Japão devido sua simpatia
pelas demandas oposicionistas. No início de 1927, retornou à Moscou gravemente debilitado pela tuberculose e
foi orientado pelos médicos a buscar tratamento no exterior. Trotsky solicitou a aprovação da liberação de Yoffe
junto ao Comissário de Saúde e ao Politburo, mas o pedido de tratamento que custava mil dólares foi recusado
sob alegação de ultrapassar o orçamento. Neste mesmo período, Yoffe recebeu uma proposta de um jornal inglês
para publicar suas memórias por 20 mil dólares, mas Stalin o proibiu de publicá-las, recusou seu visto de saída e
impediu a sua assistência médica. Sem vislumbrar nenhuma solução para o seu problema de saúde e diante da
expulsão de Trotsky do Partido, Yoffe apontou uma contra a própria cabeça e atirou.
148
debaixo do chicote do aparelho. A ju ste z a deste prognostico se confirm a pela discussão atual.
Senine (1930) ainda afirm ou que m esm o com a exclusão dos p rin cip ais líderes
destacou que antes do congresso, a repressão tam bém atingiu os operários que dem onstravam
sim patias pelos oposicionistas: “N o s últim o s m eses m ilhares de operários foram presos nos
centros industriais da U R SS: em M oscou 450 operários foram presos po r sua atividade
oposicionista” (Ibidem ). A exclusão destes operários foi publicada no Pravda, que ju stifico u
reivindicavam , afirm ou Senine, era a discussão livre de suas propostas, um debate aberto com
A Luta de Classe tam bém destacou a atuação de grupos o posicionistas em outros países.
N esta perspectiva, publicaram um artigo sobre a L iga C om unista (O posição) de Paris, que
revolucionários da indochina foram m assacrados pelo governo francês num a ação que executou
dezenas e ainda condenou outros a m orte e a prisão perpetua. D e acordo com os oposicionistas
franceses, era preciso denunciar e p ro testar contra esses crim es. O s revolucionários da
acordo com o artigo de A Luta de Classe, a base do P artido C om unista E spanhol (PC E ) havia
149
Considerações finais
R odolfo C outinho para Lívio X avier, fica clara a fragilidade na com unicação entre os m em bros
e a ausência de atividades, pois cada m ilitante p arecia cuidar de outros interesses. N este m esm o
período, dois dos principais articuladores do grupo adoeceram . P o r m otivo de saúde, P edro sa
afastam ento do principal articulador, o grupo se rendeu ao desânim o e praticam ente encerrou
suas atividades. Sob o nom e do G C L não foi p u b licado m ais nenhum núm ero de A Luta de
A ristides Lobo, fundaram a L iga C om unista (LC) que em outubro de 1933 adotou o nom e de
L iga C om unista Internacionalista (LCI) e atuou até finais de 1936. N o ano seguinte, os
trotskistas rem anescentes fundaram o P artido O perário L eninista (PO L) que atuou até 1939.
D urante to d o este período, o jo rn al A Luta de Classe perm aneceu sendo publicado, afinal havia
45 núm eros, dos quais 34 foram preservados e até hoje configuram um im portante docum ento
Referências
150
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Rio de Janeiro. Jul. 1930b.
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PEDROSA, Mário. [Carta] 8 dez. 1930, Rio de Janeiro [para] XAVIER, Lívio. São Paulo. In:
MARQUES NETO, José Castilho. Solidão revolucionária: Mario Pedrosa e as origens do trotskismo
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YOFFE, A. A. O último serviço à causa. In: A Luta de Classe. n. 2. Rio de Janeiro. Jun. 1930, p. 3.
151
AZALEIA, ROSA E DÁLIA: A LUTA PELA TERRA NA ESTRUTURA DO
PATRIARCADO
C L Á U D IA D E L B O N I*
anos de 2013 e 2017, quando realizei a análise da história oral de vida de nove m ulheres
D á lia participaram das ações na luta pela terra, prom ovidos pelo M ST, de tal m odo que se
instalaram em baixo das lonas preta no ano de 2005 e im provisaram a produção da vida
dom éstica da fam ília, na expectativa de conquistarem a m orada. T ornaram -se assentadas rurais
no ano de 2007, nos assentam entos João B atista e E rnesto Che G uevara.
R ecorri ao uso da h istória oral de vid a com o opção teórico-m etodológica, na m edida
em que a narrativa das m ulheres assentadas m ostrou-se com o estratégia p ara a produção de
docum entos. D esse m odo, form ulei algum as perguntas para a construção de suas histórias de
vidas enquanto m ulheres assentadas: O nde e com o viveram a infância e adolescência? P o r que
Assim, os modos de registros das mulheres estão ligados à sua condição, ao seu lugar
na família e na sociedade. O mesmo acontece com seu modo de rememoração da
encenação propriamente dita do teatro da memória. Por força das coisas, ao menos
para as mulheres de outrora e para o que resta do passado nas mulheres de hoje (e que
não é pouco), é uma memória do privado, voltada para a família e para o íntimo, aos
quais elas estão de certa forma relegadas por convenção e posição. (PERROT, 2005,
p. 39)
A s lem branças fem ininas estavam repletas das recordações da vida íntim a e da unidade
dom éstica, lugar que foram socialm ente responsabilizadas. N as narrativas elas teceram as
relações sociais nas quais estavam inseridas e assum iam seu ponto de vista. T am bém , os
estudos de P ierre B ourdieu foram fundam entais para refletir sobre os poderes sim bólicos, um a
68* Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul. Doutora em História, CAPES/CNPQ,
Tese de Doutorado defendida no ano de 2017, com o título História de Mulheres do Assentamento Ernesto Che
Guevara e João Batista na luta pela terra em Sidrolândia/MS: consentimentos, rupturas e continuidade,
defendida no Programa de Pós-graduação de História (PPGH), na Faculdade de Ciências Humanas da
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
152
espécie de cerco invisível que operam nas relações de gênero. U m a econom ia de trocas
sim bólicas que encerram os sujeitos em papéis a serem desem penhados socialm ente. As
histórias e, em contrapartida, reconhece o papel da virilidade atribuída aos hom ens, cuja força
resu lta na tutela dos seus cam inhos, bem com o na superioridade m asculina, nas hierarquias de
poderes. O m undo social que constrói corpos m asculinos e fem ininos. (B ourdieu, 2010, p. 39)
N o contexto da pesquisa R osa tin h a sessenta e quatro anos de idade, era casada e m ãe
de quatro filhos. N asceu no m unicípio de R io V erde de M ato G rosso e com quatorze anos
em pregada dom éstica. C asou-se com dezoito anos, teve quatro filhos e interrom peu os
trabalhos assalariados, período que viveu para os cuidados da fam ília. E m fins da década de
1990 divorciou-se, casou-se novam ente e ingressou no M ovim ento N acional de L uta pela
se à luta pela terra, na qual se firm ou com o professora no acam pam ento e em preendeu um a
infância e a adolescência na periferia da cidade, nas casas construídas e v endidas pelo pai. A pós
inúm eros desarranjos fam iliares e diversas m udanças nas periferias de C am po G rande, viveu a
condição de v io lên cia que o pai subm eteu a m ãe no processo de separação quando foram
E ngravidou aos quinze anos de idade e assum iu sozinha a m aternidade, quando retom ou os
estudos, casou-se, trocou o M N L M pelo M o v im ento dos T rabalhadores R urais Sem Terra
(M ST ) e seguiu para o acam pam ento João B atista em Sidrolândia. N ele, estreitou os laços à
para a construção da escola João B atista, na qual perm anece com o professora, na ten tativa de
153
paulatinam ente im plantaram o E nsino Fundam ental I e II o E nsino de Jovens e A dultos (EJA )
A escola continuou andando e graças a Deus foi aumentando. Cada ano que passava
aumentava uma série, tínhamos até o quinto ano, depois aumentou o sexto, o sétimo
ano e agora se Deus quiser vai aumentar o oitavo. Mas a história da escola é enorme
teria que ter um tempo só para contar sua história, que acompanhou a minha trajetória,
quando me tornei professora. 69
C onduzidas pela certeza da necessidade de alfabetização das fam ílias assentadas, que
A E sco la João B atista foi criada no acam pam ento e conduzida p elas m ulheres
encontros do M ST. D esse m odo, a escolarização dos pais e filhos torn o u -se objetivo principal
de D á lia e R osa, que percorreram os assentam entos para coletarem assinaturas das fam ílias
Sidrolândia para a abertura das salas, e conform e as turm as se firm avam elas conquistaram
com um a turm a no acam pam ento, depois de sete anos no assentam ento acum ularam um total
A través da escola as m ulheres acessaram seu espaço de fazer política. A luta pela sua
edificação perpassou pelo apoio a form ação das m ulheres, que eram orientados para ocuparem
os cargos das escolas. D essa m aneira, D ália estim ulada pela possibilidade de trabalho, junto
com um grupo de m ulheres pressionou a S ecretária para reconhecer os Sem Terra, enquanto
responsáveis pela escolarização dos assentados. A escola tornou-se fonte de renda p ara algum as
fam ílias engajadas na escolarização, prim eiro das crianças com o E nsino F undam ental I, depois
proporcionados pelas professoras que buscaram m eios de superarem a distância entre o lote e
154
m unicípio, a qual trazia outra concepção de escola, orientada e direcionada pelos valores
cam po e não no cam po, com um a prática pedagógica que levasse em consideração a realidade
da com unidade. O protagonism o fem inino na construção da escola despertou a resistência dos
assentados, que com entavam que elas queriam co n stru ir um puteiro no assentam ento. A
dom inação m asculina perpassou pela consciência de que a escola era um espaço de fazer
política.
A escola tornou-se um in strum ento im portante para as m ulheres que nasceram na roça
ou nas periferias das cidades, que não a frequentaram por diversos m otivos, m as acim a de tudo
era resultado da relação de gênero, um a vez que o direto de escolarização havia sido negado,
em sua m aioria pela figura do pai. E sobre esse tem p o a m aio r lem brança de R o sa foi a escola
negada aos doze anos, quando com pletou a quarta série e o pai encerrou sua vida escolar. S obre
isso narrou:
Meu sonho era estudar, mas o meu pai falou, minha filha agora é época de você
parar! Tem suas irmãs e irmãos que são abaixo de você e que precisam estudar
também, você vê que só o pai trabalha. Aí eu chorei, chorava, chorava muito... Meu
sonho era estudar. Cresci com a vontade de querer estudar e nada.70
A lem b ran ça de sua infância na cidade de R io V erde não foi fácil de ser rem em orada,
na m ed id a em que foi u m a h istória de privações e, talvez, a falta da escola fosse a m aio r delas.
R o sa repetiu enfaticam ente o choro quando o pai, enquanto chefe responsável pela fam ília,
anunciou-lhe o fim da escola. A educação form al fazia parte do im aginário fem inino, j á que
m uitas passaram a infância e a adolescência nos serviços dom ésticos da casa, ou com o
em pregadas dom ésticas. O sonho da escola não era som ente para as crianças, m as tam bém para
as m ulheres adultas. A lém do que, a escola resultou em possibilidades de trabalhos para aquelas
que haviam acessado a universidade e conseguiram u m a fonte de renda exercendo a docên cia .
O núcleo fam iliar de D ália, além da parceria com o M ST, tam bém estabeleceu relações
narrativas perm eado pelos conflitos resultantes das negociações para a regularização do lote,
tal com o um a entrevista realizada pelo técnico que insinuou que ela e o m arido não tinham
155
pretensões de perm anecerem no assentam ento, m as desejavam o lote para vendê-lo, e ainda
conciliou à docência com a ten tativa de ocupação da terra, u m a vez que o salário de professora
possibilitou pequenos investim entos na produção de alim entos. P rim eiro gradeou o solo,
plantou m il ram as de m andioca e não nasceu uma mandioca para contar história! D epois,
investiu em um a horta, que não prosperou, som ente com a análise téc n ica do solo constatou
seu desgaste, to m ad o pelos cupins, cuja correção exigiu investim entos que a fam ília não
possuía. D ália ainda investia na sua form ação escolar, ressaltado nas lem branças:
estarem num espaço desconhecido, em m eio a inúm eras relações contratuais que
fam ília e da sociedade de m odo geral: D ália teve medo de naufragar na travessia. E la viveu o
dram a do ajustam ento, no qual contou com precários recursos, para v iver u m a situação
com pletam ente alheia à sua experiência, num a configuração social com pletam ente diferente de
agricultura, que exigia capital para a correção do solo. D esse m odo redirecionou os recursos à
D esse m odo, acessou os recursos do E stado destinados ao fom ento de projetos por m eio do
IN CR A :
71 Idem, Ibidem.
156
fo sse vender. 72
O evento rem em orado levou-nos a reflexão sobre os desencontros entre o planejam ento
assistência técnica, um a reform a agrária pautada em contratos que hom ogeneízam os sujeitos
cam po, acrescido pelo desconhecim ento da pecuária, esqueceu-se de investir no gado e
faltou-lhe recursos para com prar as vacas leiteiras, as q uais poderiam lhe render recursos
(R e)agregação da fam ília tornou-se prioridade para D ália, na m edida que a experiencia
vivida na periferia de C am po G rande havia resultado na separação dos pais. D esse m odo
com binou diversos tipos de projetos, com distintas m ediações para assegurar possibilidades de
u m a vida m enos difícil. A pesar dos esforços conjuntos, não conseguiu lucrar com a produção
do leite, pelo contrário: Quando começamos a colocar no bico da caneta todos os gastos,
descobri que estava tirando dinheiro do meu salário, para comprar ração para elas. As vacas
não me devolviam o lucro, com a produção do leite. 7273
C ontudo, da m esm a m aneira que as fam ílias reform ulavam os projetos, estes tam bém
(re)significava a vida em fam ília. D iferente da infância, na qual o pai decidia pelos destinos de
todos os m em bros, na condição de titu lar do lote, seu núcleo fam iliar reunia-se para decidir
novas estratégias:
A opção pela escolarização jam a is saiu do com puto da econom ia dom éstica da fam ília,
ela tin h a o acordo, que era prosseguir nos estudos, acordo este que antecedeu ao pacto do
72 Idem, Ibidem.
73 Idem, Ibidem.
74 Idem, Ibidem.
157
casam ento. Sua form ação profissional contou com a presença do m arido, que form ulava
questões sobre os ensinam entos de Piaget, Vigotsky, Fanon e Emília Ferreiro para p repará-la
(U EM S). N o tran sco rrer da organização fam iliar, não viveu a interdição da escola, experiência
com um na vida conjugal, o arranjo fam iliar levou em consideração as necessidades de co n ciliar
a vid a no assentam ento com sua form ação profissional, que por sua vez, im pulsionou o retorno
D ália percorreu um cam inho diferente da m ãe: R osa não conseguiu im por seu desejo
de retornar à escola durante duas décadas da relação m atrim onial. P ara além das dificuldades
econôm icas da fam ília, enfrentou a oposição do m arido, que enquanto chefe decidiu a
econom ia m onetária da casa, com a qual sustentou duas fam ílias e não viu necessidade dos
estudos da esposa.
professora efetiva no m unicípio e, consequentem ente, propiciou segurança alim entar para a
fam ília diante das incertezas da reform a agrária. T am bém , po r m eio da educação encontrou a
inserção no assentam ento com a garantia do lote, o qual foi titu lad o em seu nom e. Q uando
perguntada sobre a relação entre a regularização do lote no nom e da m ulher e sua participação
Eu percebo que isso ajuda muito! Por exemplo, quando eu e meu esposo fomos pegar
o PRONAF entramos num acordo. Então, eu não posso dizer que foi uma imposição
do meu esposo ou uma imposição minha. Não! Mas será que se o lote não tivesse no
meu nome, teríamos esse acordo? Eu não sei! Porque isso ainda está muito embutido
ali, o homem que manda, é ainda o homem quem decide. Ainda tem hoje tem isso.75
“ Se” é um a palavra que não existe no instrum ental do historiador, m as sem pre
arriscam os os perigos de pensar nas encruzilhadas que encontram os na tra v e ssia do cotidiano
vivido. D ália no m om ento da entrevista não tin h a certeza se o m arido levaria em consideração
seu posicionam ento na hora de decidir pela aplicação dos recursos vindos do IN C R A , acaso
não existisse a lei, pois era parte do habitus social o p o d er m asculino, está muito embutido que
é o homem quem manda nas palavras dela. E la som ente tinha a certeza de que seu nom e
constava no docum ento da terra e que foi ouvida no m om ento da aplicação dos recursos
recebidos.
75 Idem , Ibidem .
158
O acesso à terra é um elem ento im portante para o empoderamento da mulher, expressão
em pregada po r C arm en D ianna D eere e M agdalena L eón para ex p licar o poder nas m ãos das
m ulheres:
O em poderam ento das m ulheres assentadas passava pelo acesso a bens. A posse da terra
com o instrum ento de em ancipação fem inina atravessou os m ovim entos sociais de luta pela terra,
que pressionaram o E stado para a criação de políticas públicas que atendessem às dem andas das
trabalhadoras rurais. E n tre 2003 e 2007, o Incra publicou a P o rtaria N° 981/2003 e a Instrução
N o rm ativ a N °38/2007, cujo conteúdo alterou a regulam entação da reform a agrária ao efetivar o
A pós sete anos de assentam ento, D ália sentia-se tranquila, não se arrependeu pela
adesão ao M ST, pelo contrário reconhecia sua dedicação pela transform ação social. A despeito
dos prejuízos econôm icos nos em preendim entos agrícolas que a desanim aram , ainda se
pagava os investim entos na ração para alim entarem as vacas leiteiras, m as acreditava na
Falta ter uma cooperativa, falta ter uma associação que de fato tenha essa linha, de
você produtor, negociar com o mercado de forma justa. Os atravessadores vêm com
a caminhonete, pagam quatrocentos reais num bezerro que vale setecentos e a pessoa
vende! Por que vai fazer o quê? Ela precisa ganhar, precisa de dinheiro. Então, a
pessoa planta melancia e vende a preço de banana, banana vende a preço de nada. 76
A produção nos lotes esbarrou nos entraves da circulação e distribuição dos alim entos,
nas dificuldades das fam ílias de negociarem no m ercado os alim entos produzidos na roça por
um preço ju sto , de m aneira que rem unerasse os investim entos, tal com o o trab alh o das
assentadas. D á lia já havia visto fam ílias perderem roças de m elancias, ou conform adas em
76 Idem , Ibidem .
159
A s inseguranças na produção individual abateram sobre suas expectativas. N o m om ento
da pesquisa ela aguardava a liberação dos recursos do P ro n a f M ulher, com o qual pretendia
investir na cooperativa de leite para conseguir viver do trab alh o no lote que tanto desejava,
V ivia para a escola João B atista que ela cham ava de minha, a qual se constituiu no foco
de suas ações, que se iniciou com coleta de assinaturas e no final da pesquisa tinham
sociabilidade entre os diferentes assentam entos, onde duas festas aconteciam e os assentados
atividades dos sem terrinha, as quais eram organizadas pelos professores ligados a organização
M édio. N o am biente escolar ela acom panhou as trajetórias das fam ílias dos alunos, percebeu
as tensões oriundas das incertezas da reform a agrária, cujo percurso conduziu os hom ens para
os trabalhos fora do assentam ento e as m ães p ara os trabalhos de em pregadas dom ésticas.
Lá é onde se reflete as coisas, eu tenho a maioria dos meus alunos, ou mora com a
avós, porque o pai e a mãe foram para cidade pra trabalhar. Ou mora com os pais,
mas ele permanece a maior parte do tempo na cidade trabalhando, porque é mais fácil
homem ganhar dinheiro na cidade do que a mulher. O homem lá faz bico de servente,
é pedreiro, ganha dinheiro e trás, já mulher na maioria das vezes tem que ser uma
empregada doméstica.77
desem bocou no espaço da escola, onde as crianças no processo de letram ento, apresentavam
os sinais de desam paro diante da ausência dos pais, que buscam na capital a possibilidade de
assentam ento, a perm anência nos lotes dependeu da com binação com o trabalho assalariado
nas cidades, que apresentavam m aiores oportunidades de trabalhos tem porários aos hom ens, já
D essa m aneira, a vida de assentam ento seguiu m arcad a pelas relações de gênero que
perm eiam a sociedade de um m odo geral. M uitas m ulheres perm aneciam sozinhas nos cuidados
dos m aridos com o auxílio m onetário, indispensável p ara a sobrevivência das fam ílias.
E xistiam poucas opções de trabalho rem unerado no assentam ento para as m ulheres, segundo
160
D ália, ou dirigia-se para a escola, vai trabalhar na saúde, porque são os dois pontos
coletivos. R osa j á tin h a assinado o contrato e reuniu-se com um grupo que discutiram a
possibilidade de um em preendim ento que não fosse a cooperativa de leite, possivelm ente de
Agora tem seis anos que estou pre assentada, minha casa já foi construída, agora já
tem forro, já tem piso. E eu dou muito graças a Deus por isso, o lote está quase bem
plantado, tem mangueiro, tem pomar, tem pasto, já consegui minhas vaquinhas com
o PRONAF: tenho porcos, galinha, papagaio, periquito e também tenho ninhos de
canarinho na varanda, tenho comedouro deles, tenho uma égua, uma potra, eu
agradeço muito a Deus por isso.78
propriedade do lote, assim com o concretizou o sonho de ser professora. P lantou m uitas árvores
no lote e fazia questão de salientá-las com o um a conquista, era sim bologia da ocupação da terra
de m aneira definitiva, u m a estratégia de criar raízes. Seu lote estava localizado entre D ália e o
ex-m arido que, durante a pesquisa de cam po, perdeu a esposa, vítim a de um câncer.
condição atual, talvez porque considerava que o lote ainda estava quase bem plantado, um a
vez que o curso do assentam ento ainda era um território em construção, aberto a m uitas
considerava o trab alh o pesado devido aos problem as de coluna, assim com o o seu m arido, que
paulatinam ente ocupava o terreno ao redor da casa. N o lote tinha um a diversidade de anim ais
de criação, além das vacas leiteiras, cujo leite utilizava para a produção de queijo. T odavia, o
que m ais se orgulhava na trajetória da luta pela terra, foi a conquista do exercício da docência
P o r fim , a fam ília não alcançou a prosperidade desejada, os prejuízo nos investim entos
deixaram m arcas no seu percurso , po r isso D ália aconselhava os assentados que não repetissem
seus erros na produção, hoje falo para as pessoas que não façam o que eu fiz, porque os meus
erros foram graves. A m em ó ria da transição para o assentam ento estava entranha pelo
sentim ento de solidão e culpa pelos erros, contudo, eram sintom as intrínsecos a reform a agrária
que foi im plantada. E sta, circunscrita à distribuição, sem reform as estruturais na política
78 Idem , Ibidem .
161
P o r outro lado, o objetivo da luta foi cum prido, em to rno dos lotes as três fam ílias - a
da D ália, a da m ãe e do pai -, estavam novam ente unidos, depois do tenso processo de divórcio.
A lém disso o assentam ento propiciou a m orada, para recepcionar e extensa parentela:
Hoje os meus parentes veem na minha casa, hoje eu vou para a lagoa com eles. Hoje
a gente assa a carne junto, então eu estou resgatando aquela vida que eu tinha, quando
eu tinha minha avó. Aquele estar junto com um monte de gente. Eu gosto disso, eu
gosto de ter um monte de gente em casa. Todo mundo comer junto, ir tomar banho
na lagoa - amo tomar banho na lagoa.79
N o assentam ento, D ália agregou a extensa parentela que conviveu durante a infância na
casa dos avós, nas férias, assim com o reintegrou a fam ília e am enizou a situação de
entendem os o processo de consolidação da reform a agrária im plem entada nos últim os trinta
anos:
P o r fim , as lem branças de D ália e R osa sobre a luta pela terra trouxeram a certeza de
que seu ingresso na organização trouxe-lhe som ente coisas boas, na m edida que conquistou a
terra e a escola e consolidou a fam ília, que experim entou a precarização m aterial na década de
A z a le ia : o d iv ó rc io , a c o n q u is ta do sítio e o acesso à u n iv e rs id a d e
sucessivas de m igrações pelas fazendas até a m udança para a vila de A nhanduí, onde o pai
trab alh o u na em presa R odocon. V iveu a infância e adolescência ocupada com em pregos
dom ésticos: prim eiro na casa dos outros, depois num restaurante. E m m eio a década de 1980
79 Idem, Ibidem.
162
casou-se no intento de livrar-se da desvalorização do trabalho assalariado, m udou-se para
C am po G rande e ocupou-se da unid ad e dom éstica e reprodução da fam ília, teve três filhos.
A pós vinte anos no cuidado da fam ília, sentiu se desvalorizada no casam ento, tanto que
em 2005 ingressou na luta pela terra ju n to ao M ST, para reconquistar o m arido. E le não aceitou
sua participação no acam pam ento, e diante da pressão para desistir da estadia nos barracos de
lona, ela colocou fim ao m atrim ônio e assum iu a luta pela terra, ju n to com a filha de cinco anos
de idade.
tom ou a escola com o lócus central na construção da sua profissão, bem com o espaço para
consolidação da m orada. C om o titu lar do lote, paulatinam ente ocupou a terra conquistada,
denom inada de sítio. A travessou inúm eros desafios desde a chegada ao lote definitivo, quando
tratou de fazer a m udança do barraco de lona para o lugar definitivo, ju n to com a filha de cinco
anos de idade, rem em orado com um m isto de alegria e tristeza pela solidão do acontecim ento.
“ C onseguim os as terras definitivas, então m udam os p ara um lugar ainda m ais longe. E u não
tin h a carro, não tin h a dinheiro para pagar carro para levar as m inhas coisas. C om o eu iria?
Sozinha nos trab alh o s do lote, precisou reco rrer ao trab alh o assalariado em um m ercado
do Pronaf, com o qual increm entou a aquisição do rebanho, que cham ava de minhas vacas. A os
poucos, dedicou-se aos trabalhos inform ais para a geração de renda e desse m odo produziu
doce de leite no quintal e o com ercializou nas feiras de Sidrolândia, agregando v alor ao leite
produzido no sítio. Individualm ente, ela construiu um a cadeia produtiva que perpassou pela a
criação do gado, a ordenha da vaca, o cozim ento do leite e, po r fim , a com ercialização do doce.
Sobre a condição de estar sozinha na luta pela terra resum iu da seguinte m aneira:
Porque eu passei muito sofrimento por estar sozinha, pois o povo não respeitava a
gente, porque era mulher solteira, se você pedia para um homem fazer alguma coisa
para você, ele já ia com outras intenções, porque você era sozinha, eles achavam que
tinha que aceitar. É nesse sentido que não foi fácil.81
E nquanto habitus social, o casam ento era socialm ente valorizado e a sua condição de
divórcio, to rnou-a vulnerável para satisfação dos desejos m asculinos, porque você era sozinha,
eles achavam que tinha que aceitar. E m consonância com os valores do patriarcado, as
80 Idem, Ibidem.
81 ENTREVISTA, AZALEIA, (Áudio - MP3), Produção Cláudia Delboni - Sidrolândia, 20/03/20014, 40 min.
163
m ulheres eram percebidas com o dependente de um hom em , o qual exerceria o papel de chefia.
C aso contrário, eram vistas com o m ulheres afeitas à satisfação dos desejos sexuais im posta
R esponsável pela unid ad e dom éstica e pela produção do sítio, desdobrou-se em várias
frentes de trabalhos: assalariada, cozinheira, com erciante, estudante, além da produção do lote
e dos quintais, especialm ente na criação de gado leiteiro com o as dem ais assentadas. T odavia,
sofreu um revés na condição de assentada, quando a filha m udou-se para C am po G rande, para
cuidar da neta que havia nascido e a filha sem acesso a creche, contou com ajuda da irm ã para
reto rn ar ao trabalho. E ste evento foi narrado com profundo sentim ento de dor por A zaleia:
Porque a minha filha precisou da outra para ir para Campo Grande porque ela teve
uma filha e precisava trabalhar. Então, ela me pediu que deixasse a caçula ir para que
ajudasse a cuidar da neta. Eu fiquei muito triste, porque eu precisava sair para
trabalhar e estudar e a minha filha ficava sozinha naquele lugar. Era triste! Eu queria
que ela ficasse comigo, mas não tinha outra saída, pois eu precisava arrumar alguma
coisa para gente prosperar no assentamento, porque sozinha e só ali dentro você não
consegue. Tinha que ter uma, duas ou três pessoas - um ficava no sítio e o outro
trabalhava fora. Ou então, sobrevivia daquilo que produzia, mas eu ainda não tinha
isso, não tenho até hoje, a gente está devagarzinho. Ela tinha doze anos e eu a mandei
para Campo Grande, ela precisava fazer curso, estudar mais.!82
A saída da filha representou-lh e um golpe para o seu projeto de assentada. P rim eiro o
sentim ento de solidão foi difícil de ser superado, ainda que perm anecesse m uito tem po fora do
sítio, contou com a parceria da filha deste os cinco anos de idade. L ogo en co n tro u um
com panheiro, tam bém assentado no João B atista, que apesar de viverem u m a condição de
união, cada um trabalhava no seu lote. T alvez tivessem receio de que a condição de casam ento
resultasse em questionam entos da com unidade da existência de u m a fam ília e a posse de dois
lotes.
P o r isso, ela não se apresentou com o casada, po d eria com plicar sua trajetória de
conquista no assentam ento. T alvez isso fosse u m a dificuldade das m ulheres solteiras,
divorciadas e viúvas no in terio r da com unidade assentada: o m edo de assum ir u m a nova relação
de casam ento com um assentado, diante da possibilidade da perda da concessão de uso da terra.
E m segundo lugar, a saída da filha abalou seu projeto para o futuro do sítio, na m edida
que planejou deixá-lo de h erança para ela, que participou da sua luta. E ra um a m aneira de
com pensá-la pelo trabalho prestado, com o um direito assegurado pela difícil luta nos
82 Idem , Ibidem .
164
acam pam entos. U m dos b arracos de lona foi m ontado no dia de seu aniversário de cinco anos,
entre as lágrim as de criança, na resistência ao difícil trabalho de estar na luta pela terra.
D iante da necessidade da filha m ais velha, A zaleia não encontrou argum entos para
negar o seu pedido. A filha não queria ir, m as A zaleia convenceu-a devido a necessidade do
m om ento, com o argum ento de que na cidade teria m ais possibilidades de estudos, além do que
ficava m uito tem po sozinha no barraco de lona devido a diversas tarefas que precisou
desdobrar-se. C ontudo, o que A zaleia não esperava é que nesta trajetória ela se adaptasse ao
m undo urbano e não se interessasse m ais pelo sítio: o espaço do acam pam ento tornou-se
pequeno p ara os sonhos da filha. Sobre a m udanças no com portam ento da filha A zaleia
Mas depois que ela foi para lá não quis voltar. Então, ainda hoje eu falo para ela voltar
e fazer uma faculdade como estou fazendo aqui, mas ela disse que não quer mais sítio
de jeito nenhum, quer a cidade, quer shopping, esse negócio de tecnologia. Nem me
visitar ela vem. Eu falo para ela, minhafilha, você se lembra da vida que levamos? E
ela responde que por isso mesmo que não quer mais, diz que sofreu muito aqui.83
T odos os conflitos vividos no assentam ento pareceram m enores diante da saída da filha.
n ecessidade de estabelecer-se, sim ultâneo ao sofrim ento resultado da p erd a de única herdeira
de sua luta. D urante o dia trabalhava no m ercado e à noite retornou a escola do João B atista,
desse m odo sentiu-se culpada pela sua não presença no cotidiano do assentam ento e viu a
partida da filha para a capital com o estratégia para que a situação melhorasse.
cam po, baseados nos valores de uso da terra, o sítio é a melhor coisa . A traída pelos valores de
consum o da cidade, a filha não se interessou m ais pelo assentam ento, quer shopping, esse
m em ória de sua luta, a qual foi percebida não com o conquista, m as com o lugar de sofrim ento.
E la, que apostou na possibilidade de escolarização da filha fora do assentam ento, contribuiu
para distanciá-la dos laços identitários que as firm avam enquanto Sem Terra, desse m odo
83 Idem, Ibidem.
165
P ara com preender a saída da sua filha buscam os as reflexões antropológicas de E lisa
G uaraná sobre a saída dos jo v en s, especialm ente as m ulheres, dos assentam entos rurais do
paradoxo da partida da filha, ela que aceitou a sua m udança agora estranhava seu interesse pela
tecnologia, pelos shoppings e culpava-a pela falta de interesse pelo sítio. O sonho de um futuro
melhor para a filha resultou no abandono do sítio conquistado com lágrim as. D essa m aneira,
contrariou as expectativas da m ãe, deixando-a p rofundam ente entristecida, o choro no
m om ento da entrevista foi expressão desse p aradoxo. P o r fim , A zaleia percebeu na trajetória
construída a negação dos seus anseios, u m a vez que o acesso à universidade não se apresentou
para a filha no cenário urbano, m as sim para ela que perm aneceu na consolidação do
assentam ento.
A opção pela escola acom panhou sua trajetó ria de na consolidação do assentam ento,
quando cursou o E JA e ao térm ino do terceiro ano do E nsino M édio assistiu a oferta dos cursos
Terminei os meus estudos e agora estou fazendo a faculdade, que não era a coisa que
eu queria, meu sonho era fazer engenharia civil, mas não tive essa oportunidade. A
professora Célia me incentivou dizendo que através dessa faculdade eu poderia pegar
outras coisas e depois decidiria pelo que realmente queria fazer. O curso era na área
de formação de professores e para mim seria bom, porque para gente conseguir
alguma coisa, era necessário ter feito uma faculdade. Então, percebi que poderia ser
bom para mim, já que não pagava nada, também ficaria somente quinze dias na
faculdade e isso era bom por causa do meu sítio. Eu agradeço a professora Célia,
porque estou gostando muito.85
N o cotidiano da escola, A zaleia foi orientada pela professora de m atem ática86 para que
84
85 Idem, Ibidem.
86 A professora Célia era a freira, moradora no assentamento Eldorado II e desenvolvia um trabalho de pastoral
junto os diversos assentamentos da região.
166
aproveitasse a oportunidade da presença de u m a universidade pública, m esm o não sendo o
curso alm ejado, depois de ingressar na universidade ela poderia repensar o futuro. A zaleia
agradeceu pelos conselhos recebidos, pois eles foram valiosos na sua trajetória no
assentam ento, ela passou no v estibular e estava satisfeita com o curso. E m b o ra tenha
dispendido poucas inform ações sobre processo de form ação, ele foi fundam ental para assegurar
o trab alh o no assentam ento que desejava. A ntes da conclusão do curso conseguiu u m a carga
de aula na escola João B atista, quando estava cursando o ú ltim o ano no curso em L icenciatura
do C am po.
Se por um lado a trajetória de A zaleia não serviu de exem plo para a filha v o ltar p ara o
sítio e cursar a universidade, por outro lado, ela tornou-se m odelo a ser seguido po r algum as
C o n s id e ra ç õ e s fin ais:
U m elem ento de destaque nas histórias de vidas das m ulheres assentadas foi a ênfase
na conquista do lote no assentam ento, que foi resum ido em poucas palavras, m as com
realizações que o tem p o do acam pam ento não perm itiu. A conquista dos lotes possibilitou a
m obilização pela E sco la João B atista, o acesso aos recursos do Pronaf, a casa de alvenaria e a
criação das vaquinhas. E las encerraram suas narrativas salientando o assentam ento com o
espaço de realização de um sonho, que foi arduam ente conquistado, com histórias recheadas
de p ercalços, de coisas boas e ruins. O assentam ento era o espaço da contradição, de realizações
vulnerabilidade econôm ica que se encontravam , assim com o possibilitou m aior poder de
participação no interior da fam ília, um a vez que poderiam acessar os recursos públicos
entre hom ens e m ulheres no in terio r dos assentam entos. D esse m odo, conquistaram a
167
A s m ulheres assentadas p erm aneceram com panheiras de luta nos assentam entos, com o
foram nos acam pam entos, quando coordenaram as panelas das ocupações e asseguravam a
alim entação das fam ílias. A ocupação da escola pelas m ulheres foi o cam inho pelo qual elas
produziram a vida nos assentam entos, sem que isso resultasse num a participação m enos
politizada, quando com parada as ações realizadas pelos hom ens nos espaços públicos das
P o r fim , a m aneira de fazer política das m ulheres assentadas perpassou pela m obilização
de seus corpos, de suas vidas na luta pela escola, pela saúde, pelo transporte, estratégias nas
quais suas dem andas foram incluídas na pauta da luta pela terra. D esse m odo, no processo da
refo rm a agrária, a luta e a conquista da terra possibilitaram o acúm ulo de forças para
reorganizarem suas experiências de vida e interferirem , efetivam ente, em suas histórias, na qual
a m igração, o trabalho tem porário, o em prego dom éstico, a violação de seus corpos e de m uitos
de seus direitos por ora foram afastados de suas trajetó rias de vidas, pois afinal, as lutas
R E F E R Ê N C IA S B IB L IO G R Á F IC A S :
168
INSURGÊNCIAS E ENFRENTAMENTOS ÀS VIOLÊNCIAS
PELAS MULHERES GUARANI E KAIOWÁ: DEBATES SOBRE
RE(EXISTÊNCIAS) E POLÍTICAS DE GÊNERO
C L A U D IA R E G IN A N IC H N IG 87
O presente artigo tem com o objetivo analisar estratégias de enfrentam ento às violências
de gênero a p artir dos docum entos finais produzidos pela G rande A ssem bleia de M ulheres
Indígenas G uarani e K aiow á, dos anos de 2019 e 2020, no M ato G rosso do Sul. A s narrativas
im pactantes das m ulheres indígenas sobre as violências sofridas em suas relações fam iliares e
conjugais, denotam com o as relações fam iliares sejam elas, partilhadas nas aldeias ou nas
cidades, tam bém são para as m ulheres indígenas m arcadas por em oções e violências. A o se
lideranças fem ininas com partilham seus am ores, suas em oções e de que form a podem
coletivam ente b u scar um a vida sem violências. Se um a cultura política legalista e a busca pela
proteção do E stado são alm ejadas por essas m ulheres, que estratégias atravessam suas
dem andas das m ulheres indígenas quando as legislações e o E stado não alcançam seus
clam ores? Q uais são as estratégias e as problem atizações propostas pelas m ulheres indígenas
gênero que ocorrem no âm bito dom éstico e fam iliar com o um a form a de desnaturalizar da
fam ília com o o lugar do acolhim ento e da proteção? A s percepções sobre as violências sofridas
169
e suas estratégias de enfrentam ento, que afetam a corporalidade e o psicológico de m eninas e
m ulheres nas suas experiências, em oções e vivências são o objeto de análise deste artigo.
docum entos finais produzidos p ela G rande A ssem bleia de M ulheres Indígenas G uarani e
suas relações fam iliares e conjugais, apresentadas durante as assem bleias, são o objetivo do
artigo. A p articipação das m ulheres indígenas nas assem bleias aponta que as relações fam iliares
são espaços em que as m esm as com partilham com os presentes suas em oções, seus
sentim entos, bem com o as violências que são acom etidas. M as tam bém são espaços de agencia
e enfrentam ento. São espaços que o verbo resistir e esperançar são um a constante, j á que
buscam coletivam ente u m a vida sem violências. Se um a cultura política legalista e a busca pela
proteção do E stado são alm ejadas por essas m ulheres, que estratégias atravessam suas
dem andas das m ulheres indígenas quando as legislações e o E stado não alcançam seus
clam ores? Q uais são as estratégias e as problem atizações propostas pelas m ulheres indígenas
gênero que ocorrem no âm bito dom éstico e fam iliar com o um a form a de desnaturalizar da
fam ília com o o lugar do acolhim ento e da proteção? E stas questões serão abordadas neste artigo
que trata das estratégias de enfrentam ento às v iolências sofridas de fo rm a coletiva, as quais
A G rande A ssem bleia de M ulheres G uarani e K aiow á acontece desde 2006 no E stado
quais convidam m ulheres indígenas de diferentes tekohas p ara participem da assem bleia, para
que ju n ta s com partilhem as denúncias e pensem estratégias de enfrentam ento. O convite para
particip ar da assem bleia busca a discussão conjunta de pautas específicas para as m ulheres
indígenas, principalm ente para hom ens, m ulheres não indígenas e autoridades é para que sejam ,
sobretudo, escuta daquelas que em outros espaços são silenciadas. A Kunangue Aty Guasu
fem ininas se form am e são form adas, M esm o que questões com o a dem arcação das terras
indígenas e a pro teção dos territórios sejam consideradas dem andas im portantes, percebo com o
88 Participei como professora e pesquisadora do VII Kunangue Aty Guasu, realizado entre os dias 16 e 20 de
setembro de 2019, no tekohá Ivy Katu Potrerito atuando como facilitadora de uma das oficinas sobre violências.
170
violências, não som ente no âm bito privado, m as tam bém em am bientes públicos, evidenciam
as m ulheres e seus corpos com o territórios v iolentados po r hom ens (indígenas ou não) e
tam bém pelo próprio E stado. A ssim , trago com o parâm etro para a análise deste artigo as
assem bleia, que para as quais “não existe Lei M aria da P en h a para as M ulheres In d íg en as” , o
que está expresso no docum ento “R elatório Final da V II K unangue A ty G uasu” . Se a lei traz
em seu b o jo que to d as as m ulheres devem ser protegidas pela legislação b rasileira que visa a
proteção das violências de gênero acom etidas contra as m ulheres, efetivam ente quais m ulheres
evidencia que “pensar o E stad o b rasileiro na atualidade nos provoca a p ensar de qual m odo as
p.58), o que faz que os m ovim entos indígenas através da agência destas m ulheres discutam
com o as legislações específicas para o enfrentam ento das violências, com o a Lei M aria da
P en h a não atinja a realidade das m ulheres indígenas, pois com o j á denunciou a pesquisa da
autora, eis que a legislação “não tinha sido pensada em diálogo com as m ulheres indígenas e
com o se lid a com a realidade de diversidade cultural de com preensões dos papéis d e gêneros
no contexto de 305 (trezentos e cinco) povos indígenas que habitam o B rasil. (FO N SEC A ,
2016, p. 59).
é analisar a agências destas m ulheres quando as politicas são in ex isten tes ou insuficientes para
aten d er as indígenas que sofrem violências em seus relacionam entos conjugais e afetivos.
A criação de um a legislação específica que tem essa abrangência plural, traz com o
expectativa a proteção para todas as m ulheres, o que nem sem pre se traduz nas realidades
enfrentadas pelas m ulheres que vivem fora das cidades, em áreas indígenas que são
distanciadas das cidades e do atendim ento ju ríd ic o e policial. N o caso das m ulheres G uarani e
conhecim ento de que esta pode ser aplicada visando a punição de hom ens infratores, faz com
violências seja perseguida pelas lideranças indígenas, através de seus docum entos e relatórios.
A lei se tran sfo rm a em um horizonte de expectativa, algo que pode ser alcançado e que possa
ser u m a fo rm a de proteção e punição, bem com o traz em seu bojo um a visível intenção
pedagógica, de ensinar e p ropor com portam entos que devam servir de exem plo para hom ens
autores de violências.
171
A ssim , se as m eninas e as m ulheres indígenas adquirem u m a “consciência ju ríd ic a de
classe” e buscam o cum prim ento da legislação tam bém para as m esm as, as denúncias so bre as
deficiências da sua aplicabilidade para m ulheres que vivem fora da cidade, m as precisam ente
em reservas indígenas, áreas de retom ada e territórios já regularizados, os quais são na m aioria
distantes da presença do E stado, dem onstram tanto as d ificuldades para a realização das
C om o exem plo, as m edidas protetivas que visam o afastam ento dos hom ens autores de
violências de suas ex-m ulheres ou ex-com panheiras e/ou seus filhos, m uitas vezes não chegam
a ser entregues, ou porque esses hom ens não são localizados ou porque essas intim ações são
entregues p ara os cham ados “ capitães” das aldeias, que fazem esse papel de relação entre os
“ atraídos pela sim bologia política a respeito das leis avançadas e progressistas, ainda que pouco
“ paternalism o latino-am ericano, um eco da h erança colonial” . M esm o que não se refira a
entre patrões x em pregados e m ulheres x hom ens, pois é de conhecim ento que existem
sentido que um a educação para a igualdade e para o respeito, o não entendim ento que m ulheres
são propriedades, tam bém foi considerado pelo E stado com o correto quando tratava de form a
desigual as m ulheres e especialm ente aos indígenas, não os considerava com o sujeitos de
direito, devendo portanto, ser tutelados pelo E stado, o que som ente foi m odificado com a
172
P o r outro lado, u m a legislação protecionista em relação às m ulheres vítim as de
violências pune hom ens infratores, fazendo com que o E stado punitivo atue nos casos em que
as relações conjugais e fam iliares são m arcadas po r violências. D esta form a, o fato de serem
autores de violências, a consequente denúncia e a punição do E stado, afasta hom ens indígenas
que estariam ao lado das m ulheres em outras pautas, com o a luta pelo territó rio tradicional,
transform ando suas vidas em “ caso de polícia” . A ssim , as violências com etidas em âm bito
dom éstico e fam iliar não só aflige as m ulheres, as crianças, m as tam bém enfraquece o
m ovim ento indígena. P ara French, “ o caso de polícia expressava sua convicção de que a
os transform ando em caso de polícia, sendo que ao m esm o tem p o enfraquece as reivindicações
coletivas dos povos indígenas, po r direitos as suas terras tradicionais, sua cultura e sua língua?
brasileiras, estas “ apontaram de form a bastante firm e que as suas dem andas estão vinculad as
com as de seu próprio povo e que o “ reco rte” de gênero não pode ser feito de um a form a
desconectada” (FO N SE C A , 2016, p. 59), o que q u er dizer que as questões específicas das
m ulheres se relacionam com as lutas dos povos indígenas e que, portanto, as contradições e os
em bates se fazem presentes. P o r esse m otivo, a escolha m etodológica da autora foi analisar as
políticas gerais dos povos indígenas, pensando com o as m ulheres foram abrangidas nestas
indígenas.
com o as sofridas por m ulheres não indígenas, ocorridas no contexto fam iliar e dom éstico,
M esm o que a ocupação de cargos políticos seja alm ejada por m ulheres indígenas, durante os
encontros prom ovidos pelas m ulheres G uarani e K aiow á um m odo de fazer política tam bém
prom ove debates e b u sca através de estratégias diversas o alcance de direitos e proteção do
E stado. N esta discussão pretendo enfocar a busca das m ulheres indígenas pela proteção de seus
territórios e de seus corpos (com o corpos territórios), alçando o conceito de cultura política.
P ara esse debate, aproxim am os a h istória da antropologia, que tem com o intenção “ encontrar
173
tem p o da política para designar os períodos em que a população percebe a política e os políticos
com o parte da sua vida social” (K U S C H N IR , 2005, p.8), p ara as populações indígenas
anteriorm ente tuteladas pelo E stado, m as agora alijadas dos direitos concedidos e previstos na
C onstituição Federal de 1988, o tem po da política integra a h istória do tem po presente, pois
essas p opulações propõem através de suas organizações e estratégias próprias, questões que lhe
são caras, com o os conflitos vivenciados para a p ro teção de seus territórios, corpos e
subjetividades.
(sobretudo nos últim os dois anos em que o E stad o negligencia os direitos indígenas de form a
contundente, de form a expressa até pelo próprio P residente da R epública que autorizou um a
desestruturação das políticas públicas indígenas de saúde, dentre outras), as m ulheres assum em
a frente e a função de lideranças, apontando suas próprias agendas e o respeito dos direitos
com o indígenas e com o m ulheres, considerando suas especificidades de etnia e gênero, sendo
p.9). P ortanto, as trajetórias destas lideranças indígenas que organizam o Kunangue Aty Guasu,
relacionam dim ensões políticas b uscadas por estas m ulheres e suas trajetó rias individuais
naquilo que a antropologia entende com o “u m a preocupação perm anente em não iso lar a
política das dem ais dim ensões da v id a em sociedade, sendo que a própria noção de p o d er não
fazer coletivo e o fazer po lítica destas m ulheres está im bricado em suas próprias trajetórias, é
lideranças indígenas das organizadoras da assem bleia Kunangue Aty Guasu e as propostas
coletivas do grupo, percebo que as questões individuais, com o um a carreira acadêm ica ou a
coletivo indígena, aí som ando os coletivos de m ulheres e os coletivos m istos. E star diante desta
detrim ento de questões individuais, e envolvem diretam ente o fazer política, im plica em “lidar
29), pois a cultura política que estão im bricadas as m ulheres indígenas buscam atingir
174
A a g ê n c ia d a s m u lh e re s in d íg e n a s n a p r o d u ç ã o de d o c u m e n to s e re la tó rio s
indígena, em que lideranças fem ininas se form am e são form adas, sendo o relatório final um
resum o das discussões, propostas e encam inham ento da assem bleia. A s organizadoras do
com “ seriedade e reconhecim ento da luta das M ulheres indígenas” 89. A s discussões sobre
violências contra as m ulheres foi um dos m otes da assem bleia, com a realização de oficinas e
diferentes form as de enfrentam ento propostas nos encam inham entos finais. T am bém fizeram
irm ãs e fam iliares, bem com o o tratam ento pouco respeitoso recebido em alguns espaços
públicos.
M esm o que questões com o a dem arcação das terras indígenas e a proteção dos
territórios sejam consideradas dem andas im portantes, percebo com o a reflexão sobre
resistência de m ulheres indígenas em contextos de enfrentam ento às violências, não som ente
no âm b ito privado, m as tam bém em am bientes públicos, evidenciam as m ulheres e seus corpos
com o territó rio s violentados por h om ens (indígenas ou não) e tam bém pelo próprio E stado.
docum ento é datado 20 de setem bro de 2019, ú ltim o dia do evento, o que significa que foi
redigido durante a realização da assem bleia, durante o p eríodo em que estiveram reunidas no
Tekohá Yvy KatuPotrerito, localizado no m unicípio de Japorã, E stado do M ato G rosso do Sul.
A través do trabalho de relato ria realizado pelas lideranças da assem bleia, concluo que o
relatório foi redigido por m u itas m ãos, não trazendo a assinatura de apenas u m a liderança,
nhande sy, responsáveis po r ancorar as jo v en s lideranças na assem bleia. A p artir do docum ento
final é possível p erceb er que a circulação das propostas, encam inham entos e agendas, ocorre
através do envio para diferentes autoridades presentes no cabeçalho, inclusive para o presidente
89 Documento final produzido pela Organização da VII Kunangue Aty Guasu - Grande Assembleia das Mulheres
Kaiowá e Guarani.
175
principalm ente dos P oderes E xecutivo e Judiciário. M as a circulação e a divulgação do relatório
acontecem de form a efetiva através das redes sociais e dos debates prom ovidos em diferentes
assem bleia realizada virtualm ente em 2020, que apesar das lideranças do Kunangue terem
enviado a todas as autoridades listadas no docum ento, pouco ou quase nenhum retorno recebeu
dos órgãos públicos para os quais o m esm o foi encam inhado, conform e declarou m esa de
realidade é m ediada pela linguagem e pelos textos, portanto toda a pesquisa h istó rica é
dependente da reflexão sobre o d isc u rso ’ um a definição que lhe dá G erard N oiriel, que
contestou a esse m ovim ento a suprem acia da n arrativa” (R O U SSO , 2016, p.227). Portanto, irei
refletir sobre o discurso escrito por m ulheres indígenas, que carrega a força das denúncias de
violências sofridas e propostas das m esm as diante da ausência do E stad o no enfrentam ento das
violências.
T razer o debate das m ulheres indígenas na histó ria do tem p o presente é pensar um a
pesquisa com as m ulheres indígenas e não sobre elas, sendo que estou entendo a assem bleia
com o um espaço de construção coletiva. A pesquisadora D aphne Patai propõe enfocar questões
éticas da pesquisa fem inista realizada com m ulheres, na qual analisa principalm ente as
narrativas pessoais de m ulheres trabalhadoras brasileiras. A autora alerta para as trocas entre
estruturalm ente assim étricas, as quais podem ser consideradas com o exploração ou form a de
ingrediente. E u sim plesm ente não posso deixar você u sá -lo ” . (PA TA I, 2010, p. 82) é o que
u m a de suas colaboradas afirm a sobre a possibilidade da pesquisa fazer uso da narrativa destas
m ulheres. S e a pesquia de D aphne Patai nos ajuda a p ensar sobre o uso de fontes orais, em
90 O ano de 2020 foi marcado pela da pandemia de coronavírus que assolou o Brasil e o mundo, afetando
diretamente os povos indígenas. Diante da impossibilidade de deslocamento e a obrigação do distanciamento
social, a assembleia foi realizada de forma online, utilizando a página do facebook. Disponível em:
https://www.facebook.com/kunangueatyguasu. Acesso em: -7.12.2020..
176
relação a sua produção, finalidade e form a.
A análise do docum ento não retira o protagonism o destas quando expõem suas
docum ento im portante para refletir sobre duas im portantes questões: as dificuldades e a
superação destas m ulheres para redigirigem e se adaptarem a um a língua que não é a sua língua
específicas, bem com o as em oções vividas durante esse encontro realizado de form a presencial
pesquisa realizada por pessoas ou grupos fem inistas deve o correr em relação às pessoas
pesquisadas registra que “ alguns grupos fem inistas no B rasil (bem com o pesquisadores de
outros contextos) tem argum entado que a pesquisa deve ser ‘devolvida” (PA TA I, 2010, p.84),
de algum a form a para as pessoas que tornaram possível a realização do trabalho de pesquisa.
Patai “ sugere um a série de escolhas que não pode ser as de costum e dos acadêm icos” (PA TA I,
2010, p.84), com o a entrega de um livro ou cópia da publicação. N o caso das m ulheres
seja, não há que se aproxim ar de um grupo visivilm ente vulnerável e excluído social, política
B rasileiro, sem se po sicio n ar de form a evidente a assum ir u m a postura ética que envolve a
devolução que deve im plicar u m a atuação e apoio ju n to as diferentes frentes dos m ovim entos.
D aphne Patai sugere em sua pesquisa auxiliar um a “ fundação apoiada por m ulheres” (PA TA I,
2010, p.85). A ssim , no caso da assem bleia e do relatório analisado esse apoio pode se dar
através da divulgação das pautas e agendas específicas das m ulheres indigenas G uarani e
K aiow á e do auxílio financeiro da form a que for possível, seja de form a direta, com o indireta
através da ven d a de produtos, artesanatos ou divulgandos nos grupos pessoais buscando auxílio
essa população fazem com que eles próprios se organizem ou requeiram o apoio da sociedade
civil para questões b ásicas relativas a serviços essenciais que deveriam ser fornecidos pelo
E stado, com o acesso àgua, saúde, educação e alim entação. O que estou entendendo que esta
pode ser um a espécie de atuação política em que a presença das m ulheres, as quais falam de
suas experiências e de que form a projetam e executam as propostas retiradas em assem bleia. A
escuta po r parte das participantes, convidadas e autoridades presentes se faz im p o rtan te porque
este é um espaço específico para que as m ulheres indígenas sejam ouvidas e busquem
alternativas em cojunto. N este espaço, ser escuta de histórias sensíveis perm item que afetos e
177
coletivam ente.
A s m ulheres indígenas afirm am em assem bleia que elas são as protagonistas e nós
som os apenas “ escuta” . A o analisar um dos docum entos que é fruto de um a reivindicação
coletiva de m ulheres indígenas percebo que assim com o “ os velhos, as m ulheres, os negros, os
trabalhadores m anuais, cam adas da população excluídas da h istória ensinada na escola, tom am
a palavra” (B O SSI, 2003,p.15) e nos fazem ser escuta. A to m ad a da palavra e a agência destas
m ulheres é um processo que perm ite outras narrativas possíveis, pois a “ história que se apoia
u nicam ente em docum ento oficiais, não pode dar conta das paixões individuais que se
escondem atrás dos episódios” (B O S SI,2003, p. 15). A ssim , um relatório produzido e pensando
coletivo, escrito através da força das em oções de um encontro, traz tan to a força de seus
discursos com o das im agens, produzidas a p artir das experiências com partilhadas naquele
espaço coletivo.
é organizada po r elas, faz m enção à necessidade da escuta dos hom ens indígenas e das
autoridades diante das questões levantadas pelas m ulheres indígenas. C lassifico com o as
principais tem áticas discutidas na assem bleia: a descrição das diferentes form as de violências
retom ada e na reserva indígena de D ourados - R ID ; a situação das m ulheres que vivem
“ confinam ento” ; tem as com o o m eio am biente, saúde e adoecim ento; com destaque a m edicina
incluindo “todos os pacotes de leis que ferem os nossos corpos, nos violam , nos assassinam e
E stad o sobre os corpos das m ulheres com o um a form a de violência, o que é entendido com o
v io lência institucional e que estrutura a sociedade brasileira. O relatório tam bém afirm a a
relatório, que afirm a que o espaço do encontro pretende estar “à disposição para ecoar as vozes
das m ulheres que queiram falar sobre a vio lên cia” (R E L A T Ó R IO final, 2019, p.7). D esta
form a, o relatório condensa e articula “ as dem andas das m ulheres indígenas após essa escrita
91 As palavras escritas em caixa alta foram assim destacadas no próprio relatório final analisado.
178
final, 2018, p.8), evidenciando o caráter de ser um espaço e canal de denúncia principalm ente
para as m ulheres que vivem em regiões não regulam entadas, com o as áreas de retom ada, que
estão distantes da cidade e do acesso às políticas de proteção acessadas diante das violências
sofridas no contexto fam iliar e dom éstico. E stas m ulheres usam o espaço da assem bleia para
d enunciar pois “a vio lên cia nos fere cotidianam ente, e avançam com m ais
fo rças” (R E L A T Ó R IO final, 2019, p.6), dem onstrando que o ano de 2 0 1 9 92 configurou-se com o
um am biente bastante hostil para os povos indígenas brasileiros, especialm ente para às
aum entaram a partir de 2018 e que m uitas das lideranças que apoiam outras m ulheres tam bém
foram vítim as de violências e sofreram perseguições. E stes fatos foram denunciados tan to nos
relatórios, com o nas falas nas assem bleias de 2019 e 2020. O fato das lideranças sofrerem
violências po r conta de suas atuações políticas trazem sentim entos de revolta para m uitas das
M u lh e re s in d íg e n a s e a L e i M a r ia d a P e n h a : reflex õ es s o b re c o rp o s v u ln e rá v e is
a Lei M aria da P en h a93, estou articulando com o conceito de cultura política, a partir dos
Kunangue Aty Guasu, que estou entendendo com o um espaço político im portante p ara estas
m ulheres e para as políticas indígenas, o debate sobre as relações desiguais de gênero e as
agendas do enfrentam ento às violências são pensadas a partir da agência das pró p rias m ulheres
indígenas através da realização de suas assem bleias, podem ser pensadas com o um a cultura
92 Com a eleição de Jair Messias Bolsonaro em 2018 e sua posse em 2019, diferentes políticas para as mulheres
foram extintas, inclusive a Secretaria de Política para as Mulheres, a qual realizava diferentes política de
enfrentamento as violências contra as mulheres, inclusive com um recorte interseccional, destacando as mulheres
indígenas.
93 Conhecida como Lei Maria da Penha, a Lei 11340/2006 visa coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil 03/ ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em:
02.12.2020.
179
A id eia de um a cultura política com perspectiva de gênero está inserida no debate
realizado sobre a aplicação da lei, que traz em seu bojo o cum prim ento de um a igualdade form al
entre hom ens e m ulheres, m as que de fato ainda não ocorre em m uitas relaçõ es afetivas e
corrigir e enfrentar essas situações de violências traz consequências para os agressores, que se
inserem num a lógica punitivista, m as tam bém a lei traz um cunho pedagógico, que propõe
ensinar relações respeitosas e calcadas na igualdade entre os parceiros. A bordar as form as com o
relação as suas próprias dem andas, m as tam b ém que propõem um a agência e um a atuação
E m relação ao relatório final da assem bleia este dem anda que “ haja um parágrafo que
pode ser caracterizada com o u m a form a de denúncia de que esta legislação específica que se
traduz em inúm eras políticas públicas não consegue alcançar as m ulheres m arcadas po r sua
m ulheres indígenas se refere ao distanciam ento geográfico, o que tam bém é u m a problem ática
debatida por m ulheres em contexto rural, m as tam bém traz explícita a ausência de políticas
públicas e sociais em relação à população indígena brasileira, a com pleta ausência do E stado
em relação ao enfrentam ento das violências nos espaços das aldeias, reservas e áreas de
tam bém no não acesso a fornecim ento de água, energia elétrica e sinal de telefone que podem
b ásicas para as pessoas, o que traduz a situação de extrem a vulnerabilidade social em que vivem
P o r esses m otivos, a articulação se m ostra tão necessária, com o finaliza o relatório “E m nossa
aldeia não há sinal de telefone, inclusive para com unicar o descum prim ento de m edidas
protetivas, com o irem os denunciar se as delegacias estão distantes e no cam inho podem os ser
A análise destes docum entos e os relatos das m ulheres indígenas que participam das
assem bleias e as lideranças, que organizam os encontros, atuam ativam ente e coletivam ente
em diferentes espaços. A agência destas m ulheres no enfrentam ento as violências aco n tece de
form as variadas j á que continua, m esm o após as assem bleias. A atuação das lideranças é ativa,
antecede e precede a realização das assem bleias, o que as to rn a referência para as dem ais
180
m ulheres indígenas. A o atuarem em nom e do coletivo de m ulheres indígenas, as representavam
indígenas acom etidas po r violências que apelam para as lideranças, m as tam bém em outras
situações. A ssim , as lideranças se tornam referências dentre as m ulheres de suas com unidades,
atuando em diferentes frentes. L idando com as em oções de outras m ulheres, são fortalezas pois,
tam bém elas são, por vezes, acom etidas po r violências diante da sua atuação política.
A lg u m a s conclusões
em suas assem bleias m e perm ite concluir que estas são agentes ativas e, portanto,
sujeitas de sua p rópria história e as fazem diariam ente de form a coletiva e ativa. A o analisar as
estratégias de enfrentam ento às violências de gênero a p artir dos docum entos finais produzidos
pela G rande A ssem bleia de M ulheres Indígenas G uarani e K aiow á, dos anos de 2019 e 2020,
no M ato G rosso do Sul percebo que suas articulações são parte do presente e dem onstram sua
adversidades e m esm o diante das inúm eras violências e desrespeitos, o que nos faz sentir e
p erceber é que suas dores nos corpos tam bém são dores na alm a, m as que a resistência e a
persistência diária, sobretudo p ara a sobrevivência diante das inúm eras violências, as tornam
R e fe rê n c ia s
181
B E Z E R R A D E M E N E S E S , U lp ian o T. A fotografia com o docum ento - R o b ert C apa e o
m iliciano abatido na E spanha: sugestões p ara um estudo histórico. T em p o , núm . 14, 2002,
p p . 131-151
R O U S S O , H enry. A ú ltim a c a tá s tro fe : a história, o presente e o contem porâneo. T radução
F ernando C oelho. R io de Janeiro: F G V E ditora, 2016.
PA T A I, D aphne. P roblem as éticos de narrativas pessoais, ou Q uem vai ficar com o ú ltim o
pedaço do bolo?. In: PA T A I, D aphne. H is tó r ia O r a l, F e m in ism o e P o lític a . São Paulo,
L etra e V oz, 2010, p. 65-96.
182
A INSTRUÇÃO PRIMÁRIA EM PAUTA: A ATUAÇÃO DE
FRANCISCA CLOTILDE NO CENÁRIO EDUCACIONAL DA
FORTALEZA OITOCENTISTA
C L E ID IA N E D A SIL V A M O R A IS 940
R e su m o : O presente trabalho busca investigar, no recorte tem poral do C eará das últim as
décadas do século X IX , a atuação de m ulheres professoras pela co n q u ista do espaço público
letrado ocupado em m aior proporção por figuras m asculinas. A investigação se deterá na
trajetó ria da escritora, jo rn a lista e professora F rancisca C lotilde, cuja atuação no âm bito
educacional se deu no ensino prim ário e na E sco la N orm al, atentando sem pre para a dinâm ica
conflitual que envolveu sua atuação no cenário intelectual, à época. S uas posturas ora
constituíram reverberações do conservadorism o católico, ora foram se m odificando, m esm o
quando os papéis sociais tentavam in cutir o contrário. E sta professora tom ou as ideias vigentes
que lhe designavam as atividades no espaço dom éstico, na tentativa de te r reconhecida sua
im portância na ordem e harm onia da estrutura social. N esse sentido, defendeu a im portância
das funções po r ela realizada no in terio r do lar e da fam ília, inclusive com o base e suporte
im prescindível para se direcionar os próprios rum os da educação de seus filhos e alunos. A ssim ,
reivindicou sua com petência para tratar dos assuntos educacionais em voga, e participou
ativam ente, seja com o colaboradora de jo rn a is dentro e fora do C eará, ou m esm o no próprio
cotidiano escolar, das principais questões que direcionaram o estado de coisas àq uela época,
com o as discussões em torno da necessidade de m udanças no currículo do ensino de nível
prim ário, assim com o os m étodos de ensino que m elhor atenderiam às especificidades da
instrução pública. R essalte-se que a investigação se deu nos relatórios de inspetores da
Instrução Pública, nas sessões da A ssem bleia L egislativa Provincial e n o s artigos de autoria de
F rancisca C lotilde publicados nos principais periódicos que circulavam em Fortaleza. A busca
pelos indícios da trajetória e atuação desta professora, assim com o as questões e conjecturas
form uladas, perm itiram levantar problem áticas pertinentes à H istória das M u lh eres e da
E ducação.
ganham m aio r fôlego na década de 1880, isto porque à adm inistração da Instrução P ú b lica9495
seria apresentado, logo no prim eiro ano, um R elatório produzido por A m aro C av alcan ti96 com o
resultado de sua viagem aos E stados U nidos, com o fim de reu n ir inform ações sobre a instrução
94* Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará - UFCE.
Membro do Grupo de Estudos de América Latina (UFCE). Atualmente desenvolve tese de doutorado financiada
pela agência de fomento Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FUNCAP.
E-mail: cleidimorais2010@hotmail.com
183
prim ária, o ensino norm al e seu m ovim ento de fiscalização e inspeção. E m 7 de setem bro de
daria início à publicação do referido docum ento produzido po r um sujeito apto a discutir
questões concernentes à difusão do ensino, visto te r ele próprio testem unhado o que havia de
m ais m oderno no âm bito educacional, no que dizia respeito a currículo, m étodos, form ação e
avaliação de professores, com o reiteravam costum eiram ente seus colegas n aquela época.
N o R elatório, a educação m oral e religiosa e a form ação para o que C avalcanti cham ou
de “v id a ativa” ganham , sem pre num a p ersp ectiv a de correlação com a ideia de trab alh o e
disciplina, lugar de destaque. Tal espaço reservado à dim ensão religiosa, naquela época, se
devia, especialm ente, ao contato com as principais discussões sobre o ensino laico e a
secularização dos program as escolares que j á se faziam na E uropa e nos E stados U nidos e
ganhavam , ainda que de form a lenta, adeptos no Im pério do B rasil. U m a tarefa nada fácil para
aquele inspetor, advogado e tam bém p rofessor de latim foi, certam ente, a p artir das
inform ações coletadas, concluir o fim principal da instrução prim ária e apontar possíveis ações
C avalcanti se depararia com altas taxas de analfabetism o; períodos de seca, sobretudo nos anos
características do cotidiano das cam adas pobres a quem a instrução p rim ária era direcionada.
A m aro C avalcanti parecia representar com b o a desenvoltura a tarefa que lhe foi
incum bida com o intelectual da causa da instrução. S uas posições representam tam bém os
184
interesses religiosos, aspecto observado nas iniciativas de inspetores e diretores, visto
estrutura e organização do ensino. O exercício da função de padre e páro co por parte desses
“ funcionários” da Instrução P ública, assim com o as boas relações estabelecidas com a elite
eclesiástica na P rovíncia, tam bém reverberaram sobre suas posturas acerca do universo
educacional.
desenvolvim ento do ensino, A m aro C avalcanti dedicou m aior im portância à religião e sua
relação com a instrução prim ária. N aquela época, tal questão conquistaria m aio r entusiasm o,
especialm ente pelos debates no cenário político e letrado, a bem dizer, as discussões que
tam bém envolviam o trono e o altar, representadas pela laicização e secularização do ensino
que, na prática, significavam a destituição do ensino religioso da escola reservando-o à fam ília
e à igreja.
“ com pleta” no nível prim ário de ensino, que com preendia o tripé corpo, espírito e m oral. N essa
definição, de nada adiantaria form ar a dim ensão física e o espírito com a ginástica, as lições de
higiene, o estudo das letras ou das ciências e das artes, se os princípios religiosos não fossem
sãos, a instrução religiosa constituía dim ensão indispensável. O b em -estar do corpo parecia
fundam ental às necessidades do trab alh o livre. P ara as elites ilustradas e dirigentes, a saúde do
corpo agiria contra os vícios, os m aus hábitos e com portam entos, som ente se aliada à disciplina,
do sujeito alfabetizado. N o s projetos para a instrução pública, pensados pelas cam adas letradas,
na perspectiva de O linda (2004), o ensino prim ário está diretam ente vinculado à
pautas levantadas, bem com o de suas indicações para que tais dem andas fossem efetivadas na
185
prática escolar, especialm ente po r reiterar, de form a exaustiva, seus posicionam entos atinentes
à parte religiosa. A o tem a da form ação “com pleta” para a “vida ativa” , C avalcanti ju n to u o
[..]
É facto que os espíritos cultos tem procurado demonstrar a conveniência de não dar-
se ensino religioso na escola, invocando em apoio ao que chamam liberdade de culto.
Alegam que o ensino da religião na escola pública ou comum levará ao resultado
injusto de obrigar o discípulo aos exercícios de um credo, muita vez diverso e oposto
ao seu próprio; e que, por isso, importaria, uma injuria aos direitos da consciência
individual.
Para os brasileiros, que felizmente ainda professam uma mesma crença, o argumento
perde toda força e importância relativa; portanto, nos seja licito passar além sem
darmos especial refutação, tanto mais quando, sem ocasião oportuna, teremos ainda
de tocar sobre o mesmo argumento.
Não se separe um só instante, o ensino da religião e da moral - é nossa humilde
opinião, aliás todo aquele será infrutífero, ou talvez pernicioso.
Na alma tenra e cândida da criança, nesse coração puro, onde somente sorria
inocência, as primeiras lições, que se deve gravar, são, sem dúvida: o amor de Deus,
de seus pais, de seus semelhantes e da virtude. E nada disto se poderá conseguir,
desde que se separar totalmente do ensino os preceitos sublimes da verdadeira
religião. (CAVALCANTI, 1881c, p. 3)
N a década de 1880, na capital do Ceará, a dim ensão educacional p arecia ganhar novos
ares especialm ente pela inauguração da E sco la N orm al em 1884 - possibilitando às m ulheres
a am pliação de sua educação para além do nível prim ário - , pela produção de novos
regulam entos para a instrução pública, ou m esm o pela m aio r atenção, ao m enos no cam po
discursivo, à difusão do ensino prim ário entre as cam adas pobres. N esse m om ento, foram
de leitura, ainda que os grandes beneficiados tenham sido as classes ilustradas. A o longo dessa
década, as discussões nos círculos políticos e letrados tom am com o pauta indispensável ao
católica, num m ovim ento visto ora com o necessário, u n indo-as de fo rm a essencial, ora com o
N a esteira desses debates, um a professora pú b lica prim ária e posteriorm ente integrante
do quadro de m estres da E sco la N orm al teve seu nom e envolvido em diversos m om entos
186
im portantes da história do C eará Im perial, com destaque para as questões educacionais.
C earense de Tauá, região do Sertão dos Inham uns, F rancisca C lotilde B arbosa de L im a, nascida
em 1862, reuniu em sua trajetória a extensão do que havia de m ais contraditório para um a
oitocentista, por ter transitado com desenvoltura nos m ais diversos círculos letrados de en tão 97.
E sco la N orm al. Se dedicando tam bém a m in istrar aulas particulares de várias m atérias, das 4
horas às 6 da tarde, em sua residência, situada na P raça do M arquês de H erval, n. 41, em m arço
de 1886, era possível adquirir instrução pelo v alo r de 3.000 réis m ensais (LIM A , 1886, p. 1).
A vida de F rancisca C lotilde parecia ser bastante anim ada pelas diversas discussões
com que prontam ente se envolveu no cenário letrado fortalezense, seja nas sociedades e
das principais forças políticas, com o o Libertador, órgão da Sociedade C earense L ibertadora e
o Cearense, folha que representava os interesses do partido Liberal. A lém desses jo rnais,
(B razil/L isboa). D edicando-se à prosa, à poesia, contos, crônicas, crítica literária, teatro e
traduções, sua influência chegaria até outras províncias do Im pério, a contar pela contribuição
em diversas outras folhas, entre elas O Lyrio , de R ecife; O Bathel, da Paraíba; Paladino , do
F rancisca C lotilde foi sócia do C lub L iterário, agrem iação que reuniu intelectuais da
agrem iação, escreveu dois im portantes artigos quanto às questões que envolviam ensino e
religião naquele m om ento: “ A educação m oral das crianças na escola” e “A m u lh er na fam ília” .
C orroborando com o m ovim ento do cenário das letras, a professora da E scola N orm al
apresentou suas posições quanto aos tem as que j á vinham sendo discutidos desde o R elatório
de C avalcanti em 1881.
97 Em junho 1882, com exatos 20 anos de idade, Francisca Clotilde entra para o magistério público cearense,
exercendo a função de professora primária, como é possível acompanhar nas correspondências produzidas pela
Instrução Pública, órgão responsável pelo ensino público e privado na Província, e trocadas entre professores,
inspetores, diretores e presidente.
187
A religião e a moral - esses dois elementos indispensáveis para a formação do caráter
podem ser infiltrados nos corações infantis da maneira mais simples. Um passeio à
beira-mar, uma manhã de estio, uma flor que desabrocha, uma ave que canta, uma
abelha que fabrica o mel, uma borboleta que esvoaça, podem trazer à criança a ideia
do autor dessas cousas que tanto enlevam e arrebatam sua imaginação pueril, e o
professor terá ensejo de auxiliar-lhe o espírito de observação, infundindo-lhe ao
mesmo tempo o amor às ciências naturais. (LIMA, 1887a, p. 22)
ju n ta v a ao tim e de colaboradores de renom e dessa revista, form ado po r figuras com o José de
B arcelos, Justiniano de Serpa e Juvenal G aleno, intelectuais que se envolveram nas questões
com pêndios destinados ao ensino, ou m esm o escrevendo sobre o assunto nos periódicos que
circulavam na P rovíncia.
C o m o m u lh er inserida em seu tem po, por sua im portante p articipação na dinâm ica
política e literária, F rancisca C lotilde estava inteirada dos principais debates que envolviam a
sujeitos m ais célebres do cenário político e educacional, no referido artigo a autora travou
em bate, com o quem respondia aos que buscavam , ao m enos nessa parte, fo rm ar dividendos
pelas posições a favor da separação da religião do ensino, resultado tam bém dos conflitos entre
a Igreja e o E stado na segunda m etade do século XIX. C lotilde, portanto, trazia a religião e a
observação, respectivam ente com o o conteúdo e o m étodo m ais acertados para um a instrução
prom issora, nos m oldes estabelecidos por aqueles que se declaravam capacitados para legislar
sobre o ensino ou m esm o p rescrever o que seria m ais “ adequado” no plano educacional.
religiosos seriam incutidos nos “ corações in fan tis” . M o strando-se inserida no m ovim ento
letrado que defendia a inclusão de novas m atérias no currículo escolar prim ário, F rancisca
C lotilde arvorava-se nu m a form ação do espírito e do corpo pautada na dim ensão da fé, da m oral
e da religião. O aprendizado das ciências naturais se daria por m eio da observação e intuição
das coisas que rodeiam as crianças, a própria natureza representada po r anim ais e plantas. N a
m ed id a em que “ a ideia de criação do m undo” fosse apresentada por m eio desses elem entos,
P ara C lotilde, a instrução m oral e religiosa tin h a sobre as dem ais m atérias um a
“ incontestável superioridade” , pois debelava vícios e purificava hábitos e costum es, sendo a
dim ensão m ais im portante, dentro do program a escolar, a ser direcionada pela escola. Tais
questões foram tom adas po r um o lhar que com preendia os saberes a serem ensinados na
188
instrução prim ária a partir de u m a hierarquia de valores que adm itia a im portância do tripé
espírito, corpo e m oral, a ser trab alh ad o ora em diálogo, ora identificando a religião com o a
E m seu segundo artigo “ A m ulher na fam ília” , dado à apreciação do público cearense
em 15 de m arço do m esm o ano de 1887, F rancisca C lotilde trataria logo de discu tir qual
“ instituição” , entre a escola e a fam ília, efetivaria ou ficaria responsável pela dim ensão da
m oral e da religião na instrução infantil. T ais questões não deixaram de responder, sobretudo
quando analisadas posteriorm ente pelos historiadores, às principais dem andas daquele estado
de coisas, a dizer, as discussões, ainda que tím idas, acerca da laicização e secularização do
ensino público, com preendidas com o a transferência da instrução m oral e religiosa para a
N essa época, as tensões entre as experiências que fugiam às norm as e leis estabelecidas
- fossem elas de caráter religioso, pedagógico e higiênico, im pulsionadas pelo em pobrecim ento
das cam adas pobres - e u m a “ perspectiva racionalizadora de entendim ento dos sujeitos” ,
cresciam de fo rm a cada vez m ais expressiva (V E IG A , 2011, p. 400). A instrução foi tom ada
com o principal m eio para se alcançar os m odos do “ m undo civilizado” , vinculado às tentativas
de controle que se im prim iam sobre a população, passando pela norm atização dos corpos e
rem odelação dos hábitos e costum es. N esse m ovim ento, surgia u m a questão latente para a qual
convergiriam todas as outras: a n ecessidade de se p ensar quanto a que tipo de instrução deveria
F rancisca C lotilde, de fato, disputava “ lugar de fala” no cenário letrado, fazendo-se ser
ouvida e acreditada, especialm ente pelo com prom etim ento com que se envolveu nas questões
de seu tem po, considerando-se a quantidade de periódicos em que veiculou seus escritos. Tal
questão lhe rendeu, inclusive, credenciais tanto na dim ensão educacional, na própria instrução
prim ária e n a E sco la N orm al, com o na fundação, em m om entos posteriores, de estabelecim ento
de ensino, com o o E xternato Santa C lotilde, nos p rim eiro s anos da década de 1890 e revistas,
adm inistração, chefes m ilitares, e, em alguns casos, fam ílias politicam ente im portantes e
diretores de em presas econôm icas” (PA IV A , 1979, p. 28). P arte significativa dos que exerciam
os cargos da estrutura político-adm inistrativa, conform e P aiva (1979, p. 58), era h erd eira dos
potentados rurais. R ealizando sua form ação secundária em colégios com o o L iceu e o A teneu
189
R ecife, Salvador ou R io de Janeiro. O repertório de leitura e base político -filo só fica que
direcionaram suas ações foram form ados tam bém a partir do contato com experiências
gabinetes e agrem iações literárias. D e acordo com O liveira (1998, p. 42), o universo letrado
atuante na capital na década de 1880 entre jo rn alistas, docentes, políticos e literatos era form ado
por esse m ovim ento de estudantes que faziam seus preparatórios na P rovíncia m esclando-se
E ra esse o universo letrado em que F rancisca C lotilde estava inserida. N o início daquela
década, em 1881, a questão do ensino religioso nos debates da 37- A ssem bleia L egislativa do
C eará e publicados na Gazeta do Norte em setem bro do m esm o ano, ocupou lugar de destaque
nas preocupações dos deputados provinciais. A s vozes que se levantaram na sessão, divididas
entre João L opes F erreira Filho, Te. Cel. A ntônio P ereira de B rito Paiva, Pe. A ntero José de
L im a, Dr. F rancisco R ib eiro D elfino M ontezum a, Pe. V icente Jorge de Souza, Dr. Francisco
B arbosa de P au la P essoa e Pe. João A ntônio do N ascim en to e Sá, defenderam o ensino m oral
e religioso com o responsabilidade que deveria p esar sobre a Igreja, na figura do padre, e não
sobre o professor. E ste ensino constituía um “ direito m aterno” , um “ sagrado direito da fam ília” ,
Nesta questão, senhores, o meu voto seria contra o ensino religioso nas escolas, ainda
que eu fosse crente fervoroso e já o disse; por amor da religião, em respeito ao sagrado
direito da mãe de família. Senhores o ensino religioso nas escolas é de todo ponto
ineficaz; qual de vós tem no espírito crenças religiosas bebidas nos bancos escolares?
Qual de vós teve desenvolvidas ou acentuadas pelo professor as noções que levou do
lar para os bancos da escola primária? Nenhum, certamente, ao passo que todos
conservais indeléveis os ensinamentos que recebemos na primeira infância, ungidos
ainda da sinceridade com que impregnaram os lábios maternos. O ensino religioso é
uma disciplina naturalmente confiada aos cuidados da família; a mãe é o único mestre
que possui bastante eloquência para o incutir no ânimo da infância. (GAZETA DO
NORTE, 1881, p. 1)
a religião católica, reconheciam que a m atéria religiosa na in stru ção elem entar, aplicada por
dessa classe, não estava relacionada m eram ente ao exercício de um a liturgia, doutrina ou fé,
m as de participação da elite dirigente no seio de um a instituição que, ao longo dos anos, esteve
190
v inculada ao E stado e direcionou a legislação educacional, assim com o a própria construção
S egundo Jo ão Lopes, esse ensino servia apenas para p unir os alunos que incorressem
em erros quando inquiridos sobre as definições do catecism o nos exam es. T ratando a questão
do ensino religioso de m aneira cautelosa, visto tal m atéria do currículo escolar reservar lugar à
Igreja na própria organização do ensino, dois instrum entos estavam postos em questão: o
especialm ente pelos conflitos que se arrastavam desde o início da segunda m etade do século
X IX entre a Igreja e o E stad o Im perial. N os escritos de F rancisca C lotilde, a fam ília tam bém
ganhou centralidade quando se discutiu sobre o lugar reservado à educação m oral e religiosa
na form ação dos sujeitos. O artigo “ A educação m oral das crianças na escola” apresenta a figura
da m ãe com o a prim eira educadora dos filhos, de m odo que seria no am biente dom éstico que
os prim eiro s ensinam entos seriam infiltrados. A s noções de caráter, ensinadas po r m eio da
dim ensão religiosa, pois baseada na doutrina cristã católica, seriam os prim eiros e m ais
Não deve esquecer nunca que dela dependem a felicidade e o futuro das tenras
criaturas que nela se reveem como em um espelho que deve refletir as mais belas
puras imagens; que lhe cumpre velar incessantemente para desenvolver o bem
n’aqueles corações ingênuos e inexperientes, procurando todos os meios para
depositar neles o gérmen que deverá produzir no decurso bons e salutares frutos.
(LIMA, 1887b, p. 40)
N o lar, u m a atm osfera clara estava definida: seria a figura p atern a quem designaria os
princípios pelos quais a fam ília seria educada, cabendo à figura fem inina - a m ãe - g arantir o
exercício de tais princípios na prática cotidiana. C aso os filhos se desviassem dos trilhos da
ordem e da disciplina, a culpa, que era sobretudo religiosa, recairia sobre a função m aternal,
pois “ o m enino m olda-se à sua vontade, à sua influência e guiado pelo am or solícito e desvelado
que ela lhe dedica cresce nas m elhores disposições” (LIM A , 1887b, p. 47). Sobre tal questão,
os esclarecim entos de June E. H ahner são indispensáveis à com preensão dos papéis designados
191
mulheres eram perpetuamente menores. (E o Código Civil de 1916 não mudou
realmente a questão). Uma mulher casada tinha que se submeter à autoridade do
marido nas questões relativas à educação, criação e local de residência dos filhos. A
lei negava às mulheres casadas o direito de envolver-se no comércio, de alienar bens
imóveis por vendo ou doação, e, ainda, de administrar a propriedade sem o
consentimento de seus maridos. (HAHNER, 2003, p. 44)
designava com o papel para a m ulher na estrutura social: ser m ãe, esposa e dona de casa. P o r
outro lado, as m ulheres letradas, em bora exercendo tal tripé, com o foi o caso de F rancisca
Inseriram -se, po r sua desenvoltura com as letras, com os livros ou m esm o com aquela
Clotilde.
público infantil ainda dem asiadam ente alicerçada no conservadorism o católico - cujas bases
de form ação foram construídas desde há m uito tem po pela Igreja C atólica - , tom ando a figura
m aterna com o a principal propulsora da educação dos sujeitos desde tenra idade. N essa parte,
a questão prim ordial a se destacar é que, em bora atendendo a essa dim ensão, inúm eras
m ulheres não cercearam seu horizonte de expectativas à vontade das figuras m asculinas da
incessante pela realização de seus planos e projetos, sem pre num a correlação com as principais
N esse ínterim , não é que C lotilde continuasse a cristalizar o papel reservado às m ães,
responsabilidade dita “ m aternal” se tornava ainda m ais difícil, especialm ente pela vigilância e
fiscalização im pressa às experiências fem ininas, sobretudo daquelas que reuniam m u lh eres-
m ães, professoras e católicas. A ssim , não se trata som ente de com preender F rancisca C lotilde
com o voz dissonante, “ indisciplinada” frente à sociedade que lhe designava os “ recônditos do
lar” , principalm ente quando se pensa as m ulheres das cam adas m ais elevadas, m as de
com preender com o, ao longo do século X IX , as posturas dessas m ulheres professoras foram
192
m ulheres responderam , po r m eio de suas ações, à legislação educacional, m atrim onial,
fam iliar, questões que se dão, quando se tra ta de valores religiosos, num a perspectiva de “ longa
duração” . Isto é, as m udanças ocorrem dentro de um tem p o histórico m ais longo, num a
dinâm ica que se desenvolve a p artir de perm anências, desvios, rupturas e ressignificações. Os
Não será mil vezes mais glorioso desempenhá-lo e fazer da criança um homem útil à
pátria e à família do que sentar-se nos bancos de academias em busca de um
pergaminho, ou acompanhar os vaivéns da política, duende fatal que deve amedrontar
até os animais varonis? (LIMA, 1887b, p. 40)
A o leito r m enos atento, pode parecer que a professora da E sco la N orm al via com certa
apatia os bancos das academ ias ou o exercício de funções na vida política. P orém , Francisca
C lotilde, no trecho acim a, certam ente tentou convencer o leito r da im portância das atividades
v alo r m ais baixo às tarefas no lar, na hierarquia das funções na sociedade oitocentista. C lotilde
devendo esta dim ensão ser m in istrad a no in terio r dom éstico e na escola. E sta tarefa, para
C lotilde, não deveria ser conduzida apenas pela fam ília e igreja, com o defendido àquela época
nos debates políticos e intelectuais. A im portância que esta professora dava ao papel das
funções destinadas aos sujeitos a partir da com preensão do que se d en om inou “vocação
natural” , discurso com partilhado, inclusive, po r filósofos notáveis com o Fichte, H egel e
C om te. A educação foi dim ensão por m eio do qual esse discurso se fez produzir e reverberar
abnegação e sentim ento de cuidado, a educação dos filhos, questão m ais ligada à form ação do
caráter do que à som a dos conhecim entos, foi-lhes designada, ainda que posições contrárias se
tenham feito presentes. R econhecia-se essa tarefa com o essencial à form ação de um estado
ordenado e “h arm onioso” , todavia reservava-se pouco v alo r frente ao papel destinado aos
hom ens: p rovedor e direcionador dos princípios em que a fam ília deveria ser educada, se
pensarm os os sujeitos das cam adas m ais abastadas. É im portante ressaltar que tal aspecto não
cabe às circunstâncias vividas pelas m ulheres e hom ens das cam adas pobres. N a perspectiva
193
de D ias (1995), o em pobrecim ento constante fazia com que essas m ulheres, desde cedo,
estivessem circulando pelas ruas exercendo as m ais diversas atividades para sustento de sua
fam ília. O serviço dom éstico constituiu, na segunda m etade do século X IX , a “ principal
C O N S ID E R A Ç Õ E S F IN A IS
D ian te das problem áticas em análise, pode-se concluir que os escritos de F rancisca
C lotilde, m ais especificam ente os dois artigos publicados, em 1887, na revista A Quinzena, “ A
relações entre religião98 e o ensino oficial, assim com o suas reverberações nas experiências
fem ininas. D etid o a esses escritos, observa-se que os papéis sociais das m ulheres da época não
se restringiam ao am biente dom éstico, com o esposas, m ães e donas de casa. P o r vezes,
portanto, m isturavam -se e alim entavam -se um a à outra, com o foi o caso da trajetória de
F rancisca Clotilde.
sem pre em associação à sua participação na cena pública e privada, pois acredita-se que, por
colaboradora de periódicos, é possível lev an tar questões pertinentes à H istó ria das M ulheres e
da E ducação, especialm ente po r se tra tar de u m a dinâm ica conflitual que continua o cupando
A s relações entre religião e ensino, nessa época, m otivaram debates, especialm ente,
entre figuras do universo letrado ou daquele m ais diretam ente vinculado à Instrução P ú b lic a
com especificidades e dem andas próprias de sua am biência. N esse m ovim ento, o lugar
reservado à dim ensão religiosa na instrução p rim ária está claram ente associado às funções
sociedade oitocentista, seriam correspondidas pelo dever quase sagrado de conduzir a infância
98 Nesse caso, a religião é representada pela Instrução Moral e Religiosa, matéria pertencente ao programa escolar
primário.
194
O cum prim ento dessa tarefa, aparentem ente, não gerava insatisfações entre as
m ulheres, com o se vê pela postura de F rancisca C lotilde, quando, inclusive, com preende o
ensino religioso com o a m atéria m ais im portante do currículo escolar prim ário. M ais do que
constituíram , por suas ações, sujeitos que ao atender às exigências de um a sociedade patriarcal
e paternalista, puseram em destaque a im portância dos papéis que lhes foram designados com o
sendo de caráter “natural” ou religioso (“vocação” ), po r m eio dos quais suas ações eram
E ssas m ulheres, esposas, m ães, professoras, escritoras, donas de casa, católicas e m uito
m ais, foram m odificando suas posturas, em bora ainda tivessem seus ideais fortem ente
constituídas e à organização social vigente com o dim ensão do dever do ser cristão. Para
F rancisca C lotilde, os tem pos não teriam m udado, porém , parecia não se adm itir m ais lugar
para conform ism os ou silenciam entos. D efin in d o e redefinindo suas práticas, seus projetos
seriam o horizonte a ser perseguido, pois reconhecia estar ali em jogo sua felicidade, a dizer
suas realizações e propósitos. O ptou, portanto, po r seguir seus desejos baseados em suas
experiências e form as de agir e pensar em determ inadas condições, m esm o quando o discurso
da época, efetivado na legislação educacional, fam iliar e m atrim onial afirm ava o contrário.
R E F E R Ê N C IA S
195
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197
UM NACIONALISMO SERTANEJO: CRIAÇÃO DE
TRADIÇÕES, PATRIMÔNIO E MEMÓRIA99
D A N IE L R IN C O N C A IR E S
A o longo das prim eiras décadas do século X X observou-se um m ovim ento decidido de
m uitos dos antigos pintores, escultores e construtores que produziram obras utilizadas no
contexto dos ritos católicos foram reenquadrados, passando a ser com preendidos com o artistas,
e sua produção, com o obras de arte. M ais ainda, sua produção passou ser vista com o vestígio
do processo de nascim ento e evolução da genuína arte b rasileira e, com o tal, digna de ser
im agens de santos católicos em pedra-sabão e m adeira policrom ada, os altares-m ores, teto s de
patrim ônio, dos m useus e coleções ao passarem a ancorar novos significados, m uito além
daqueles que carregavam originalm ente. Santeiros e m estres, construtores e talhadores foram
adquiridos pela h istória da arte, devidam ente catalogados e qualificados, inseridos em arranjos
E sse foi o destino do santeiro goiano José Joaquim da V eiga V alle (1806-1874) e das
obras sacras atribuídas a ele. A p artir da prim eira passagem de um técnico do Serviço do
P atrim ônio H istórico e A rtístico N acional (SPH A N ) pela cidade de G oiás, em 1940, V eiga
V alle foi incorporado ao panteão dos artistas brasileiros, alinhado a outros representantes da
arte “ colonial” ou “barro ca” - apesar de, a rigor, não se enquadrar em nenhum a dessas
categorias - com o Jesuíno do M o nte C arm elo, M estre V alentim e A ntônio F rancisco Lisboa.
O s santos de m adeira policrom ada atribuídos a V eiga V alle passaram a atrair o interesse de
coleções, enquanto que alguns elem entos locais faziam esforços para evitar sua dispersão, já
99 Os textos apresentados nas citações tiveram sua grafia atualizada, exceto nos títulos.
198
que estavam tam bém convencidos do papel sim bólico recém -descoberto nas im agens, agora
o cham ado m ovim ento m odernista, perm itiu que esse grande reenquadram ento conceitual
ocorresse, chegando finalm ente a consolidar-se com o política de estado no m om ento da criação
do SPH A N . O contato com as fontes parece apontar que os letrados b rasileiros de diversas
regiões com partilhavam um substrato de ideias com uns, ideias que perm eariam a reconstrução
fo rm a dessas ideias em suas m anifestações m ais antigas e, m ais especificam ente, encontrá-las
e dem onstrá-las em uso entre os letrados goianos do início do século X X e nos textos
fundam entais dos intelectuais que prom overam diretam ente o reenquadram ento da cultura
brasileira, com o A fonso A rinos, R icard o Severo, M ário de A ndrade, entre o u tro s100.
E m linhas gerais, a ideia fundam ental que parece perm ear as reflexões de m uitos dos
intelectuais brasileiros nas prim eiras décadas do século X X pode ser resum ida na proposição
de que o caráter b rasileiro genuíno se encontra nas realidades étnicas, sociais e culturais
encravadas em seus interiores geográficos onde, por conta de um favorável isolam ento, o
processo de caldeamento dos elem entos originais pôde se desenvolver de m aneira com pleta. O
que significa tam bém , considerando-se a ideia pelo avesso, um ju ízo negativo sobre as
influências ex te rn as101. E ssa p rem issa perm ite u m a inversão de interpretações nas m ais
100 A ideologia dos intelectuais goianos será analisada quase exclusivamente a partir dos escritos que deixaram na
revista mensal A Informação Goyana, que circulou entre 1917 e 1935. A leitura dos seus 213 exemplares
demonstrou alguns padrões discursivo s consistentes que indicam a produção e a circulação de determinados tropos
interpretativos significativos para a compreensão do processo de reorientação ideológica que nos interessa
observar. A Informação Goyana foi minuciosamente analisada na tese de NEPOMUCENO, 1998.
101 O nacionalismo sertanejo funciona de maneira similar ao conceito de cultura conforme apresentado por
Norbert Elias, em oposição ao de civilização. Nesse recorte, cultura é o núcleo identitário original, associado ao
passado de um povo, essência verdadeira da raça, As influências estrangeiras, entendidas como civilização,
apareciam nesse esquema num papel negativo, como interferências alienígenas deletérias ao caráter de um povo.
Essa compreensão do processo histórico, conforme demonstrado por Elias, era observável em outros contextos
culturais contemporâneos ao estudado aqui, como na Alemanha; cfe. ELIAS, 1994.
199
variadas áreas. P ara criar um a term inologia que p erm ita referência direta a essa ideia geral
E m term os étn ico s, essa perspectiva perm ite rejeitar a profecia que condenava a raça
possível construir o argum ento de que a m iscigenação, ao invés de condenar o b rasile iro à
degeneração, é fonte de força, criando o hom em perfeitam ente adaptado ao m eio, p ortador das
E uclides da C unha fix a em Os sertões m uitas das ideias que seriam retom adas e
cultivadas nas décadas seguintes. Identifica um a região onde se apresentam as condições ideais
para o isolam ento e o caldeam ento da raça brasileira, o curso m édio do R io São Francisco, que
recebe vaqueiros, jesuítas e bandeirantes e perm ite um prim eiro povoam ento duradouro no
interior. O m esm o m eio que os atraía os guardava: “ sem os perigos das m igrações e dos
cruzam entos” , “inteiram ente divorciados do resto do B rasil e do m undo” aparece “u m a raça de
cruzados” que com põe “ o cerne vigoroso da nossa nacionalidade, os “ curibocas p u ro s” (“ quase
sem m escla de sangue africano” , garante), que form am a essência nacional, onde foram
98-99).
A inda perm anecem m uitos preconceitos contra aqueles considerados não-brancos, que
seguem em geral sendo posicionados em lugar in ferio r na escala evolutiva com que se m ed ia a
hum anidade. Tal perm anência determ ina u m a relação am bígua com o outro nos discursos dos
representados ora com o o hom em em estado puro com quem com partilhavam raízes, ora com o
o inculto, atrasado e arcaico que deveria ser resgatado, reform ado e superado. Tal am biguidade
é presença constante nos escritos dos in telectu ais goianos que às vezes os descrevem com
tern u ra e nostalgia - com o griots da cultura legítim a da região - ora com o atrasados, explorados,
U m exem plo da prim eira vertente aparece em tex to de João G oyano publicado em 1918.
102 Ferreira propõe o termo caboclismo para esse fenômeno, descrevendo-o como um sentimento nativista
alimentado “[...] na ideia de pesquisar as fontes vitais da regeneração da vida nacional na tradição, na história e
na cultura popular rural, como antídoto ao cosmopolitismo exacerbado, ao vício do homem urbano de copiar
padrões culturais das nações decadentes”; cfe. FERREIRA, 2002, p. 220.
200
“Tem-se repetido que Goiás, como pitoresco ‘hinterland’ e como porção inicial da região brasileira, é a
‘Arca de Noé da primitividade do Brasil’; diremos mais: abrigado das revoluções sociais generalizadas
e das influências alienígenas que transformaram o litoral em subúrbios ultramarinos da Velha Europa, é
uma caldeira interessantíssima de fusão dos restolhos raciais meio puros, impregnando na sociedade
alguns ‘itens’ reservados dos vícios da colônia, ou as mais recentes transformações étnicas” (GOYANO,
1918. p. 157).
A inda que se observe algum a ruptura com o m odelo de interpretação anterior, restam
refutação da ideia de determ inism o biológico que se reabilita a “raça b rasileira” , m as pelo uso
desse m esm o determ inism o para provar que, na equação das raças, a estrangeira ocupa o posto
de decadente.
H enrique Silva, m ilita r goiano form ado na E sco la M ilitar da P raia V erm elha, fundador
isolam ento aparece com o fator prim ordial na produção e conservação das qualidades essenciais
do brasileiro. C om parando o C entro-O este b rasileiro aos E stados U nidos, acreditava no destino
manifesto da região, que “traz no seio a v irtualidade de um alto destino social e hum ano no
irrad iar da futura civilização sul-am ericana” (SILV A , 1924, p. 67). Ali com põe-se o hom em
ideal, onde “ se encontraram as três raças distintas que, am algam adas e fundidas sob o sol do
sertão, produziram um tip o inteiram ente novo - o m estiço, que po r transform ação fisiológica,
M as talv ez seja nos textos de H ugo de C arvalho R am o s que se encontre o m ais típico e
bem caracterizado exem plo desse interesse da elite letrada pelos elem entos populares da região
sua linguagem , produzindo contos em que a prosódia local em bala um vocabulário pontuado
de expressões colhidas da b o ca dos sertanejos e produz um a visão de m undo cen trad a nos
valores de um suposto hom em sim ples do cam po. A ntecipando autores da cham ada geração
relação ao seu objeto. N esses textos, p rocura colaborar com a reinterpretação do caráter do
habitante local de form a que se pretende objetiva e científica. E m O Interior Goyano, por
103 Contrapõe ao “tipo do vero sertanejo” o “depauperado jagunço, pária da zona estreita da Bahia vizinha do
litoral e em contato com o elemento estrangeiro, que nos vai desnacionalizando pelo cosmopolitismo crescente”,
idem, p. 67.
104 Nesse papel, é tido pelos seus contemporâneos como “o mais lídimo artista da palavra escrita que nos dá a
impressão exata, fidelíssima dos cenários sertanistas do Brasil Central”, comentário do redator ao texto Caminho
das Tropas, com que Ramos inicia sua contribuição com a folha, cfe. RAMOS, 1918a; pp. 92-93.
201
exem plo, coleciona descrições dos tipos hum anos encontrados no in terio r de G oiás. D entre
todos, destaca a figura dos vaqueiros que, levando v id a livre e nôm ade, são para o autor os
autênticos sertanejos, resu ltad o de um a espécie de decantação racial (R A M O S, 1918b; pp. 35).
e inevitável das populações m estiças, especialm ente as que tinham em sua com posição o
elem ento não-branco; aponta com o causa do “ atraso” a inércia governam ental que segrega as
populações interiores das benesses da ciência e da tecnologia (R A M O S, 1919; p. 99). P ara ele,
superficial, afastado do contato com a realidade sobre a qual vaticinam . R egistra tam bém a raiz
social das m azelas que assolam o habitante do interior, descrevendo a exploração a que os
trabalhadores sem terras são subm etidos pelas fam ílias m ais ab astad as105.
em que representa um a visão de m undo instrum ental para que determ inados grupos sociais
reorganizem as narrativas de m aneira auspiciosa aos seus interesses. N essa tarefa, além de
elem entos genuínos da nacionalidade, os m em bros das elites letradas do hinterland lançaram -
interpretações históricas “litorâneas” que, a seu ver, teim avam em silenciar sobre o papel dos
sertanejos na construção do p a ís106. H enrique Silva m ilitou nessa direção em diversos textos
publicados n'A Informação Goiana. A firm ava que a “id eia de G oiás nasceu nos cam pos de
P iratininga - essa com o que nova Sagres continental na A m érica do Sul, de onde tantos
visionários fitariam os ínvios sertões procurando com os olhos da im aginação riquezas ocultas”
105 “O nosso pequeno lavrador, invariavelmente, não possui terras; aluga o braço, faz-se jornaleiro, ou, quando
muito, torna-se arrendatário nestas alturas”. Idem, p. 99.
106 Nesse aspecto, os esforços dos intelectuais goianos se assemelham notavelmente aos dos membros letrados da
elite cafeeira de São Paulo que, segundo demonstrou Ferreira, adotaram estratégias muito semelhantes em busca
do reconhecimento da importância histórica de seus antepassados. Nesse processo, a figura dos bandeirantes será
fundamental: eles serão reabilitados e incessantemente promovidos como os verdadeiros fundadores da nação,
responsáveis pela expansão e consolidação do território. Esses esforços seriam institucionalizados nos órgãos da
imprensa, nas academias literárias e, principalmente, nos Institutos Históricos locais que se erguem para combater
a visão “litorânea”; cfe. FERREIRA, op. cit..
202
R e a b ilita ç ã o do b a rro c o /c o lo n ia l
território, longe das influências externas, seria aplicado às narrativas sobre os fenôm enos
culturais. A tradicional m aneira de com preender a história da arte b rasileira seria desafiada por
novas interpretações. P ode-se argum entar que a ideia do caldeam ento protegido pelo
isolam ento geográfico é tran sferid a da análise das “ raças” para a análise da “ cultura” , pois para
os m odernistas, assim com o para outros grupos desse m om ento, a cultura genuinam ente
influência daninha do estrangeiro. E ssa inversão cria condições para a rejeição da cultura
“ cosm opolita” , enfraquecendo o im perativo da busca pelos padrões da E uropa. N esse aspecto,
A situação inicial dem onstra um v alo r negativo sobre a arte colonial brasileira, com o
aquele encontrado nos escritos de M anuel A raújo P orto A legre (1806-1879), intelectual
form ado na tradição neoclássica. P ara ele o b arroco - brasileiro ou não - aparecia com o
m anifestação típ ica de um tem po de abandono dos padrões desejáveis. N u m a com preensão da
trajetó ria da arte que reconhecia apenas três m om entos de esplendor - a antiguidade clássica, a
R en ascen ça e o N eoclássico francês - P orto A legre aninha o barroco no intervalo entre os dois
especial da arquitetura.
A s condições para o exercício de um olhar positivo sobre o barroco, com o dem onstra
dos trabalhos de H einrich W olfflin (1864-1945), crítico de arte que a partir de sua obra
m odelos clássico s108. E ssa revisão do caráter da arte barroca perm itiu que os intelectuais
b rasileiros envolvidos no p rojeto de refundação das tradições pudessem enquadrar os tem pos
coloniais sob um a luz favorável. L ibertados do apego aos padrões “ clássicos” - que os obrigava
107 Nesse minucioso mapeamento da trajetória do conceito de barroco, Gomes Júnior adverte que Porto Alegre
não chegou a empregar propriamente o termo barroco para se referir à arte colonial brasileira, ainda que esteja
presente a ideia que mais tarde será nomeada por ele.
108 Em suas palavras, “o barroco não representa nem o declínio nem a perfeição do clássico, em razão de que ele
é, desde sua própria origem, de caráter fundamentalmente diverso” (apud GOMES JÚNIOR, p. 19, nota 7).
203
a co ndenar tudo o que fosse desviante - podiam colher no passado colonial b rasileiro as
U m m om ento apontado com o sem inal no estabelecim ento dessa valorização dos
tem pos coloniais é o da m ontagem da p eça O Contratador dos Diamantes, de A fonso A rin o s109.
C o m o afirm ou M árcia C huva, a peça de A rinos instituiu um a determ inada im agem dos tem pos
coloniais e fez com que o tem a chegasse aos olhos dos paulistas da elite dos anos 1920 e seus
contribuiria para que o tem a fosse encam pado pela intelectualidade e ganhasse estatuto
institucional nos órgãos de preservação do p atrim ônio e nos com pêndios de h istória da arte.
C om o exem plifica Chuva, R odrigo M ello F ranco de A ndrade - futuro direto r do S P H A N - era
sobrinho de A rinos, conviveu com o tio durante seus anos de form ação e visitou com ele as
A rinos. N a tram a, um ouvidor enviado pelas autoridades portuguesas chega a T ijuco (atual
adm inistrador local (F elisberto C aldeira B randt, o C ontratador, herói da peça), que seria
condescendente com os trabalhadores locais: “ vieram reagir contra o m odo cristão de tratar
estes povos; vieram firm ar de novo no sangue, com ferro e açoites, o despotism o” (A R IN O S,
sim patia da m etrópole, que esperava lucrar com novos achados auríferos.
nativista na m edida em que m arca os personagens “b rasileiro s” com os sinais clássicos dos
heróis e reserva aos em issários do R ein o o papel de vilões da tram a. A autoridade brasileira é
d escrita com o benevolente e to leran te para com os garim peiros, pequenos com erciantes e povo
em geral do Tijuco, abstendo-se de ap licar algum as m edidas fiscais perm itidas. A rinos
qualificou a elite colonial brasileira com o afável e benéfica aos habitantes locais, resistindo aos
im pulsos exploratórios da M etrópole e lim itando a carga de exigências que recaía sobre os
trabalhadores, m esm o sob risco de represálias. D escrita com o tutora benevolente das classes
109 Sevcenko dedicou grande atenção à repercussão resultante da montagem desta peça, evento que funcionou
“como catalisador de uma fermentação nativista” em andamento nos anos 1920; cfe. SEVCENKO, 1992; p. 247.
110 Mário de Andrade faria uma espécie de versão retórica da peça de Arinos no segmento inicial de sua
conferência sobre a Arte Religiosa no Brasil, e citaria o autor mineiro como uma de suas fontes de informação.
Na abertura de seu discurso, Andrade descreveu minuciosamente aquilo que Arinos chamou de “luxo pesado” do
tempo colonial.
204
trabalhadoras, reafirm a-se seu direito de m ando, direito que a elite paulista que assistia à peça
desejava m anter. A o m esm o tem po, assinala-se o passado “ paulista” e “bandeirante” da classe
coloniais brasileiras seria proporcionado pelo arquiteto R icardo S ev ero 111. N u m a conferência,
editada na R evista do B rasil em 1917, ele reuniu argum entos que forneceriam um arcabouço
que propunham m uitos “nativistas” , que fossem aceitas com o partes integrantes do caráter
nacional as contribuições “ ocidentais” , ou seja, aquelas l egadas pelos elem entos de origem
especial a greco-rom ana - com o presente am ericano, ainda que m arcada po r um a coloração
especial, num a espécie de tradução lusitana. Sua tese central é a de que conquistadores
to m aria sua form a definitiva pelo “ caldeam ento” , gerando “um a m estiçagem de firm e
u m a decom posição avariada do neoclassicism o” . P ara ele, “ aquele estilo é, com o o gótico, das
m ais belas expressões artísticas dum a época e dum m eio social, tem u m a legitim idade tão legal
quanto o dogm a clássico das ordens arquitetônicas dos panteões g reco-rom anos” (SE V E R O ,
O utra contribuição duradoura de Severo apresentada neste texto seria a nova proposta
de periodização da história cultural brasileira. P ara ele, no com eço do século X IX , observa-se
111 Ricardo Severo (1869-1940) arquiteto lisboeta, exilou-se no Brasil na década de 1890 após envolver-se em
movimentos anti-monarquistas em Portugal; ver SANTOS; SILVA; DANTAS, 2012.
112 Ver, por exemplo, a proposta de Carlos Maul, resumida em seu manifesto Do Titanismo, como base de uma
estética nacionalista (1917), em que defendia uma cultura nacional expurgada tanto das contribuições africanas
quanto das adições europeias, especialmente as de origem portuguesa. Sobre Maul e suas propostas estéticas ver
CAIRES, 2018.
113 “Não temos que ir buscar muito longe a origem dos estilos em que foi construída a maioria das igrejas no
Brasil, as quais datam do século XVII, XVIII e XIX. Nelas se manifesta a influência de todas as fases da arte
portuguesa da Renascença, tomando como fundo o estilo pseudoclássico, do tempo do reinado dos Felipes, em
que se enxerta o barroco italiano e o churrigueresco, mas em que se reflete uma original fantasia, como sucedeu
ao romano-bizantino no Norte do país e ao gótico na sua modalidade do manoelino, que tomou em Portugal foros
de estilo nacional pela sua extraordinária e brilhante originalidade. O português deu sempre um cunho particular
à arte que importou, e este fenômeno que é notado pelos mais ilustres historiadores da arte portuguesa, sobressai
também no Brasil-colônia onde o barroco, dito jesuítico, tomou expressões de modesta singeleza, mas de um
cunho local digno de nota”; Idem, p. 401-402.
205
se com pletam ente o fio trad icio n al” . E le assinala o ano de 1822 com o data lim ítrofe desse
Tal situação, para Severo, p erm anecia vigente até os tem pos da R epública, onde “persiste a
Severo chegava assim , afinal, à intenção que m ovia toda sua argum entação: estim ular
M ário de A ndrade reto m aria parte dos argum entos de R icard o Severo em sua prim eira
de Santa E figênia em 1919 - p u blicada no ano seguinte em q uatro partes na R evista do B rasil
isolam ento colonial. C om o ideia de fundo, A ndrade rep etia Severo, condenando o ecletism o
“ cosm opolita” da arquitetura religiosa contem porânea e insistindo na religação com os padrões
coloniais.
N aq u ela altura, A ndrade acom odava em sua teo ria estética alguns traços do pensam ento
cientificista, aceitando a determ inação dos fatores m esológicos sobre o desenvolvim ento da
cu ltu ra115. C om o acredita que a iconografia de u m a época registra “ o espírito, os sentim entos,
114 Idem, p. 415. A periodização que se tornaria canônica na história da arte brasileira, consolidada pela geração
modernista e seus continuadores, acataria a ideia de interrupção do “fio tradicional” mas elegeria outro evento
causador: a atuação da Missão Francesa. Nesta ótica, a Missão Francesa aparece como influência estrangeira
nociva, sobrepondo procedimentos exógenos a uma arte nacional que se estruturava, interrompendo o processo
de formação de manifestações legítimas e autóctones; cfe. CHIARELLI, 2010; p. 126. Severo, por sua vez, poupou
a Missão Francesa dessa falta, apontando-a apenas como inócua. Apesar de ter propagado “a gramática da arte, a
técnica perfeita do desenho”, a Missão e a Academia fundada por ela “não encontrou eco no sentimento popular,
nem podia acomodar-se ao meio físico e social da época, devido à imperturbável rigidez dos seus moldes
clássicos”; p. 413.
115 “Geralmente a nascença dos estilos se origina ou das necessidades características de cada povo, pelos materiais
mais acessíveis, pela natureza do solo ou do clima, ou então por um desses fortes movimentos espirituais que
modificam a situação do homem em face da cousa pública, dando-lhe novas necessidades e deveres...”
(ANDRADE, 1920b, p. 96). Segundo JARDIM, o pensamento estético de Mário de Andrade formou-se a partir
da combinação de diversas doutrinas, que ele enumera: “Na formação do pensamento estético de Mário de
Andrade, o expressionismo aglutinou-se com outras doutrinas. A incorporação de propostas das vanguardas
206
a consciência religiosa” , lam enta que o tem p o presente expresse essa desorientação.
A dm oestava a arquitetura das igrejas recentem ente construídas no B rasil, que desprezavam a
trad ição e o estilo “b rasileiro” e se erigiam “ [...] estranhas e exóticas transplantadas para o
nosso m eio, flores enferm iças de estufa, sem outro odor que o da esquisitice, perturbando a
alm a católica n acional” . E le v oltaria a este ponto na parte final de seu texto:
“Não vos assusteis com a ousadia desta afirmativa, vós que vedes a nossa Paulicéia recobrir-se de
matrizes novas, infelizmente feitas com tanta rapidez! Estas poderão ser boas matrizes, poderão mesmo
ser belas, mas — insisto — não são brasileiras. A própria Minas, aliás, já rechaça as suas tradições! Nesse
encantado reino do silêncio que é Belo Horizonte a matriz será gótica e a atual igreja de que se servem
os cidadãos não vos poderei dizer o que é, porque resume todos os estilos. Orgulha-se com a pedanteria
de ser uma enciclopédia...” (ANDRADE, 1920b; p. 98).
poderiam ir colher m otivos de inspiração” 116. Essa, afinal, é a intenção de A ndrade: com eçaria
ali o trabalho de h istoriografar a arte colonial brasileira que consum iria parte de seus esforços
nas décadas seguintes. N essa prim eira incursão, ele se v aleria principalm ente de leituras e de
docum entos, u m a vez que a m aio ria de suas viagens pelos interiores do B rasil ainda estavam
por v ir 117.
A ndrade partia para sua análise m unido de certos conceitos prévios sobre a m aneira
h istória da arte e consciente das suas m ais novas viragens, ele p ro cu rav a classificar as
“ fases” sucessivas e cum ulativas de desenvolvim ento. N o interior de cada “fase” aninhava os
produtores culturais posicionando-os uns em relação aos outros de acordo com o grau de
p arece in spirada na leitura das interpretações canônicas da h istória da arte (com o a de V asari,
francesa, alemã e italiana, da poesia de Walt Whitman, de aspectos da filosofia católica e do evolucionismo se
deu no contexto brasileiro, onde se travou o embate com os chamados passadistas.”; interessa aqui chamar atenção
para a presença do que Jardim denomina “evolucionismo”, que é a aplicação de princípios científicos na análise
da arte, na tradição do século XIX, começando talvez por Taine; cfe. JARDIM, 2015.
116 “É um fóssil, necessitado ainda de classificação”; 1920b, p. 96.
117 Segundo HORTA, Mário teria viajado a Minas Gerais em quatro ocasiões: primeiro em 1919, quando visita o
poeta Alphonsus de Guimarães; em 1924 na chamada “Viagem de Descoberta do Brasil”, com Oswald de
Andrade, Nonê, Tarsila do Amaral, René Thiollier, Olívia Guedes Penteado, Godofredo Telles e Blaise Cendrars;
e de novo em 1939 e 1944; cfe. HORTA, 2014, p. 120-122.
207
im agem de um a lenta e contínua ascensão que culm inará no ápice, M ichelangelo). A o falar de
D om ingos P ereira B aião, po r exem plo, A ndrade o caracteriza com o “ o T iepolo da escultura
O autor vai rep licar esses artifícios ao longo de to d a a sua exposição sobre a “arte
religiosa no B rasil” : recolhendo e organizando o que se havia escrito sobre o tem a até então e
em com binação desse m aterial com o arcabouço de leituras de histórias da arte da E uropa, ele
p arece ter a am bição de construir um a m etanarrativa da história da arte brasileira, indo além da
A ssim , divide as m anifestações culturais que estuda em três tipos principais de acordo
com a região de produção: B ahia (barroco m enos sincero e m ais erudito), R io de Janeiro (onde
os aspectos externos são m enos im portantes e m ais se investe nas decorações internas) e M inas
G erais (“ a suprem a glorificação da linha curva, o estilo m ais característico, dum a originalidade
excelente” ). P ara cada local estabelece u m “ m estre” : C hagas, o C abra, na B ahia; m estre
A ndrade defende que os tem plos edificados no B rasil seguiram “um a certa ordem de
estilos arquitetônicos que, tendo-se vulgarizado po r todo o B rasil, tom aram u m a feição
fortem ente acentuada, donde bem se poderia originar um estilo nacional” . E sse estilo nacional
estaria m ais perfeitam ente desenvolvido em M inas G erais. G eograficam ente isolada do litoral,
e assim das “influências de P ortugal” , pode ali florescer “um estilo m ais uniform e, m ais
original, que os que abrolhavam podados, áulicos, sem opinião própria nos dois outros centros” .
a linha curva não se resum iam a aparecer apenas na decoração superficial dos edifícios, m as os
m arcava estruturalm ente, desde “ o risco” . A ndrade considerava esta um a característica única
na arte m undial e declarava “ m otivo de orgulho bem fundado que isso se ten h a dado no B rasil” .
A o tra tar da figura de A ntônio F rancisco L isboa, - “ o ú n ico artista b rasileiro que eu
configurações psicológicas de seu autor, recurso bastante utilizado na crítica de arte m oderna.
“ Insulado na dor de ser feio e repelente” L isboa procurava na escultura “um eco das am izades
que lhe recusara o m undo” ; sem acesso à form ação artística dos grandes centros, produz um a
“ arte rudim entar” da m esm a categoria que a dos artistas pré-históricos, onde abundava sua
208
N o te-se que, no esquem a narrativo esboçado po r M ário de A ndrade, calcado naquilo
que críticos e h istoriadores da arte faziam na E uropa, os artistas coloniais b rasileiros ocupariam
posição análoga àquela dos ‘p rim itiv o s’, ou seja, à dos elem entos p ré-m odernos que produziam
m ais genuinam ente porque não toldados pelas restriçõ es im postas pela civilização. As
vanguardas do com eço do século X X , que tinham com o princípio a rejeição das am arras
civilizacionais - sim bolizadas pelas “im posições acadêm icas” - requisitariam um a identidade
estética com estes supostos prim itivos, assim co m o fez A ndrade em relação aos artistas
O SPH AN
patrim ônio, que se consolidou nos anos 1930 e culm inou na fundação do SPH A N . E sse órgão
assum iu a tarefa de criar u m a “b iografia” da nação, capaz de conferir unidade identitária aos
habitantes do território.
A proposta central dos cultores do nacionalismo sertanejo foi encam pada pelo órgão:
os rem anescentes das m anifestações coloniais foram os prim eiros elem entos a serem
classificados com o patrim ônio nacional. A seleção, reconhece-se hoje, se realizou de acordo
com um a visão tendenciosa do processo histórico, num jogo de ênfases e silenciam entos que
v io lência sob o m anto da unidade. P ara Chuva, esse projeto de m em ória nacional é “um
exercício de v io lência sim bólica” m arcado p ela arbitrariedade das escolhas, “representadas e
A o chegar à cidade de G oiás, em 1940, o SPH A N articulou-se com m em bros da elite local que
já vinham se dedicando há anos à tarefa de reinterpretar o passado e representar a tra jetó ria
local de m aneira que seus interesses fossem preservados e que certos tem as inconvenientes
118 “O que foi revelado nas andanças por Minas, imbuídas de curiosidade histórica e sensibilidade estética, foi que
o primitivismo estético, então valorizado pelas vanguardas europeias, não se encontrava em lugares distantes e
exóticos, mas sim inseridos dentro do próprio tecido social brasileiro. O que a Europa buscava como referência
estética para a renovação artística fora de suas fronteiras, no Brasil estava presente em seu próprio território”; cfe.
BORGES, 2021, p. 28.
209
fossem evitados ou apresentados de m aneira edulcorada. E m conjunto, os dirigentes do
SPH A N e estes elem entos locais estabeleceríam “ [...] alianças e trocas que, nacionalm ente,
V ê-se que a “ descoberta” de V eiga V alle é um acontecim ento que se aninha no contexto
de form ação dessa narrativ a b io g ráfica nacional, controlada pelos intelectuais a serviço do
E stado, em que elem entos rem anescentes do passado são selecionados e costurados a um a
Q u e stõ es fin a is
A historiografia construída entre nós reconhece de form a unânim e que vários m om entos
de transição resultaram de arranjos e disputas entre os integrantes das elites locais, que
C haul, po r exem plo, aponta que as dissidências agudas entre os m em bros das elites goianas no
assuntos econôm icos e sociais, m as apenas do desejo de rotatividade no poder. T odos eles
“velejavam no m esm o barco e desejavam parte do lem e, sem perder de todo a trip u lação ”
(C H A U L, 1999, p. 35).
O que leva a questionam entos quanto ao papel dessa reordenação do sistem a de valor
cultural descrita ao longo deste tex to no pro cesso de to m ad a de controle do lem e. N ão seria a
to m ad a de poder? E nesse processo - ainda que nom inalm ente se esboçasse repulsa ao
“ cosm opolita” , ao estrangeiro, à v elh a e decadente E uropa - não teriam as elites locais não só
categorias coloniais? A com preensão m ais aprofundada dos processos de recalibragem das
narrativas sobre a trajetória cultural b rasileira parece m ais auspicioso quando considerada no
in terio r dos processos de lutas sociais e políticas. P arece haver um claro esforço p ara que se
dom inações culturais são tão im portantes p ara a m anutenção do status quo quanto o dom ínio
210
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___________________________ . O In terio r G oyano. In: A Informação Goyana, A no II Vol. II n.
3, 15/10/1918; pp. 35-37. (1918b)
212
NO BANCO DOS RÉUS AS NOSSAS ESTÁTUAS: A PROBLEMÁTICA
DOS PASSADOS SENSÍVEIS E O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL
D A R L IS E G O N Ç A L V E S D E G O N Ç A L V E S 119
adequação do ensino às dem andas do m ercado fazendo com que a sociedade de consum o
E ntretanto, se os hom ens fazem sua história em contado uns com os outros e com o
m undo a sua volta, atuando no m undo. P erceber-se enquanto agente histórico e conscientizar-
se no sentido m ais F reiriano que esse verbo possa conter, é ainda um a das principais fu n çõ es
da história. E m sua Pedagogia do Oprimido P aulo F reire nos assinalou que os hom ens pouco
sabem de sí e essa m áxim a gera sua enorm e inquietação po r saber m ais sobre seu lugar no
m undo. C onstatar essa inquietude desvela o grave problem a da desum anização enquanto um a
119 Mestra em História pela Universidade Federal de Pelotas e colunista do projeto História da Ditadura.
213
realidade histórica, pois a escola nem sem pre nos prepara para despertarm os essa com preensão,
que nas palavras do autor, é u m a vocação inerente à condição de ser hum ano:
carga crítica. E esse m ovim ento afeta diretam ente a capacidade do individuo desenvolver sua
consciência histórica, conceito esse que varia de acordo com a grade de leitura que o apresenta
gerando distintas form as de apreensão desta. Q ue antes m esm o de ser algo ensinado ou
pesquisado, a conciência histórica está ligada diretam ente a historicidade que é própria à
condição da existência hum ana. A ssim , o que varia são as form as de apreensão dessa
A ssim , um a h istória criticam ente problem atizada acaba po r fornecer os instrum entos
n ecessários para que aqueles grupos excluídos da cham ada “ história oficial” se
instrum entalizem teórica e politicam ente p ara tran sfo rm ação da sua realidade opressora. P o r
outro lado, quando não há reflexão e apenas preocupação com o “ se passar conteúdo” a história
excludente.
C urricular (B N C C ) em 2015. F elizm ente após m u ita pressão tal instrum ento norm ativo foi
revisto e substituída pela B N C C de 20 1 7 . E videntem ente que a m esm a ainda contém severas
lim itações, m antendo ainda em partes o seu viés conteudista, e, sobretudo, diante da política
A ssim , são neles indicados as com petências, habilidades e conhecim entos que devem ser
adquiridas durante o processo de escolarização em cada um a de suas fases. N esse estudo vam os
nos deter ao ensino fundam ental, u m a vez que a disciplina de história praticam ente desapareceu
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L ogo, em nossa B N C C há u m a dilatação do espaço conform e os anos letivos vão
avançando. Isso quer dizer que a orientação para o prim eiro ano do fundam ental é “ desbravar”
o m undo pessoal da criança. A ssim partindo do M EU : lugar no m undo; grupo social e tem po
em b u sca de um autoconhecim ento de seu entorno para que no ano seguinte lhe seja
‘co m u n id ad e’ com o elem ento prim ordial a ser trabalhado n essa etapa” (LIM A , M U N IZ , 2020,
p.269). N o terceiro ano essa percepção de entorno se am plia e com plexifica. N esse m om ento
currículo” (Idem ), trata-se então da cidade com o parte da F ederação e nas unidades tem áticas
são contem pladas questões com o “A s pessoas e os grupos que com põem a cidade e o
objetos de conhecim ento deve-se d estacar a ideia de “ a produção de m arcos de m em ória” , pois
esta dem andará do educando certo grau de abstração crítica ao “identificar os registros de
m em ória na cidade (nom es de ruas, m onum entos, edifícios, etc.), discutindo os critérios que
Embora muito bem centrada, esta questão na BNCC (2017) inicia e se encerra no
Ensino Fundamental dos anos iniciais, etapa de educação que só é possível ensinar
elementos básicos da vivência histórica do aluno. Dessa forma, nas fases de maior
desenvolvimento de criticidade do aluno, o cotidiano e a história regional são
substituídos abruptamente por um ensino de História Geral. Assim, o cotidiano do
aluno foi posto como um “degrau” mais simples de se compreender a realidade e no
seu auge de criticidade apresenta-se a ele a tão discutida forma conteudista de ensino
em círculo concêntrico (LIMA; MUNIZ, 2020, p. 275-276).
D iante de tal problem ática deslocarem os nossa análise para o R eferencial C urricular
G aúcho (R C G ) de 2018. D o cum ento de caráter norm ativo que dialoga com as h abilidades e
objetos nacionais, m antendo sua organização de espaço tem po dilatada ao longo dos anos
do Sul e principalm ente os principais aspectos da cultura gaúcha. T odavia, se o regional passa
a ser relativam ente contem plado, o local é o problem a em questão no R C G . P ois essa dilatação
do tem p o faz com que discussões referentes à realidade local e a história do cotidiano,
sobretudo no que tangem os tem as sensíveis, não sejam contem pladas enquanto realidade do
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entorno, sendo apresentadas enquanto discussões distantes, de um passado que não é nosso.
E videntem ente que tal exercício de deslocam ento de tais problem as para u m a realidade que é
D ando seguim ento a nossa análise do R C G , nos três prim eiros anos do ensino
fundam ental as tem áticas e discussões presentes em suas habilidades não diferem m uito das
expressiva quando são indicadas nas habilidades desse docum ento que sejam apresentados aos
educandos os principais povos indígenas que habitavam esse espaço antes da chegada
portuguesa e da ocupação jesu ítica, e, po r fim , quando orienta-se o conhecim ento dos principais
acom panhe a norm ativa nacional m antem ainda sutis conexões com o entorno quando na
unid ad e tem ática “ T ransform ações e p erm anências nas trajetórias dos grupos h um anos” aponta
enquanto u m a das habilidades a serem desenvolvidas a relação entre os tem pos locais com os
unid ad e tem ática seguinte “ C irculação de pessoas, produtos e culturas” tam bém tecem
para as trajetórias das distintas “ com unidades tradicionais que constituem a form ação do R io
do conhecim ento “A s rotas terrestres e m arítim as e seus im pactos para a transform ação das
cidades e as transform ações do m eio natural” o docum ento estabelece em suas habilidades
pontes de articulação m ais nítidas entre as escalas tem p o e espaço, indicando o m ovim ento de
relacio n ar o entorno do educando a processos m ais am plos a p artir do cotidiano das cidades e
de suas conexões possíveis com seu passado e tam bém com outras localidades através das
P ara o m esm o ano tam bém é destacado a im portância do conhecim ento da com posição
étnica do estado, assim com o, os processos m igratórios (forçados ou não) ocorridos na região
e a h erança cultural desses povos na form ação da cultura estadual. Sendo nesse aspecto um a
das habilidades a serem desenvolvidas “observar a presença ou não de im igrantes em sua cidade
ou região na atualidade, buscando conhecer sua cultura e os m otivos do seu m ovim ento
dos povos originários na com posição étnica e cultural do estado, bem com o, a contribuição
216
destes nas m ais distintas esferas da vid a social. E as tem áticas se am pliam para q u estõ es éticas
do viver em sociedade de um a form a m ais geral. A ssim , é pensada a religião e suas distintas
m anifestações, a constituição dos poderes que regem o país, a ideia de cidadania e as diferentes
relações de poder ao longo da história. A o m esm o tem po, são apresentados conceitos e
prem issas básicas para o fazer h istórico com o a noção de tem po, po r exem plo. E a h istória local
volta a aparecer atrelada a ideia de patrim ônio, em u m a estreita relação com a preservação da
m em ória e do im aginário local. Q ue deve ser acionado enquanto fio condutor para a
N o sexto ano a com preensão tem p o espaço se alargam por com pleto e as conexões com
o entorno dos educandos se apresentam apenas nas habilidades que se vo ltam para aspectos
“ C onhecer os m ecanism os para a participação cidadã em sua com unidade, cidade e escola” ; e
tam bém de “viv en ciar e desenvolver atitudes cidadãs, relacionando a antiguidade clássica com
P ara o sétim o ano quando a tem ática a ser abordada é a expansão portuguesa e
espanhola para a A m érica, o docum ento estabelece em suas habilidades conexões desse
processo global com as vivencias e resistências dos povos nativos da região, destacando os
conflitos de terras que dem arcaram as fronteiras sulinas. E, po r fim , indica a im portância de se
“ com preender as diferentes form as de organização social e econôm ica e as com posições étnicas
D O SUL, 2018, p. 160). Sendo essa a referência m ais próxim a a um a abordagem local da
história.
2018, p.171). E ntretanto não aprofunda o entendim ento do que seria essa perspectiva local, que
analisando o conjunto discursivo do docum ento pode-se in ferir que diz m uito m ais sobre um
caráter regional do que local. U m a vez que no docum ento esses conceitos são intim am ente
nascim ento do B rasil R epublicano o R C G propõe em u m a de suas h abilidades “ listar elem entos
da história local ou regional que perm itam relacionar com aspectos da R epública B rasileira no
período até 1954” (R IO G R A N D E D O SUL, 2018, p.175-176). Sendo essa a ú n ica referência
A inda que para os anos finais esse docum ento não traga explicitam ente m uitas
referencias à abordagem histórica a partir de um viés local, alguns de seus tem as apresentados
217
abrem m argem para tais reflexões em sala de aula. É um exem plo disso os indicativos p ara o
sexto ano, pois m esm o que o objeto de conhecim ento “ o papel da m ulher na G récia e em R om a,
e no Im pério M ed iev al” seja transcendido para u m a perspectiva m ais am pliada nas habilidades
do R C G , o docum ento se lim ita apenas indicar conexões com a realidade atual na luta pelos
seus direitos sem fazer m enção aos problem as cotidianos enfrentados pelas m ulheres nas
com unidades nas quais os educandos se inserem . O utro exem plo que deve ser m encionado são
as discussões sobre etinicidade e heranças culturais de outros povos em n o ssa cultura que estão
presentes no sétim o ano, tem ática esta que tam bém abre m argem para um espiral de discussões
que p odem ocorrer, inclusive, a partir de um a perspectiva local. P o r fim a tem ática das ditaduras
no B rasil, que são objetos de conhecim ento do nono ano, podem te r m uitas de suas nuances
am pliadas a partir de um a ótica analítica que enfoque as vivências e resistências dos diferentes
D ian te desses exem plos, que não são os únicos tem as possíveis de serem abordados
por esse viés, devem os ressaltar que os currículos escolares em bora tenham po r base tais
norm ativas federais e estaduais devem ser vivos e contem plar às distintas realidades d as
com unidades escolares ao longo do País. Sendo assim , po r que não nos atentarm os para a
h istória das N O S S A S m ulheres, quais são os problem as enfrentados po r elas em nossas cidades
e bairros? P orque não olharm os para a nossa com posição étnica enquanto bairro, escola,
com unidade e b u scar com preender as nuances dessa ancestralidade assim com o os problem as
que interferem diretam ente no cotidiano dessas pessoas hoje, e consequentem ente no nosso
devem os p ensar qual o lugar dos tem as sensíveis ou controversos em nossas salas de aula?
Q ual a im portância atribuída para se problem atizar os problem as que afetaram diretam ente o
nosso entorno im ediato? E m que m om ento estam os estabelecendo pontes entre o passo
D iante desses questionam entos as linhas que aqui se apresentam são m uito m ais
reflexões possíveis do que respostas prontas. A ssim , para refletirm o s a respeito dessas
sensível pode se relacio n ar com a história local? E qual pode ser a abrangência possível para o
Sabe-se que a problem ática de gênero, sexualidade, raça, m em órias difíceis, traum as
nacionais e tan tas outras têm se convertido em tem as “ espinhosos” no chão de nossas escolas.
Sendo esse um claro reflexo da sociedade que vivem os hoje e do m ovim ento de radicalização
política que vem sendo experienciado, e que foi agutizado com o G olpe de 2016. A ssim , diante
218
disso, com o abordar questões sensíveis/ vivas / traum áticas, sobretudo aquelas ligadas à
h istória do tem po presente que são objetos de tensões entre diferentes grupos, sem esbarrar em
B enoit F alaize (2014), define um tem a de ensino enquanto vivo a p artir de dois fatores
especialm ente se esse está presente nas m ídias e é objeto de disputas e controvérsias. O segundo
realidade local tem os ainda m ais um “ agravante” a essa equação, que é a proxim idade entre os
envolvidos direta e indiretam ente com tais tem áticas. V am os to m a r com o exem plo para esse
raciocínio o período ditatorial brasileiro, e as viv en cias e experiências ocorridas durante esse
em um a cidade interiorana qualquer onde os atores daquele período, que estiveram de am bos
os lados, ainda vivem ou possuem descendentes diretos. Isso faz com que na m aioria dos casos
as m em órias desse passado sejam “incom odas” e objetos de disputas no cam po das relações
im ediatas. A ssim , se transportados esses debates para dentro de um a aula de história terem os
“um encontro com um passado vivo [que] consiste num m ovim ento de aprendizagem ética que
E ntretanto, conform e destacou V erena A lberti, “ o p roblem a dos tem as sensíveis é que
eles não são fáceis de tratar em sala de aula - aliás, em lugar nenhum ” , pois “ estam os no terreno
das m em órias em disputa, que tem na escola um dos seus palcos políticos talvez m ais
escola estejam dispostos a co rrer riscos. A lém disso, é preciso que professores e alunos tenham
tem p o e vontade para entender um assunto com plexo, para sair da facilidade do preto-e-branco
P ara tanto, a autora aponta alguns cam inhos a serem percorridos pelos educadores com o:
uso de fontes atraentes e estim ulantes capazes de incentivar a reflexão crítica por parte dos
diversidade de experiências diante da tem ática abordada nos perm itindo fazer frente a um a
ten d ên cia da h istoria oficial de hom ogeneizar os grupos e, tam bém , respeitar as vítim as de
situações lim ites e os educandos que tom am contato com esses tem as não sendo necessário
choca-los.
Portanto, com o apontado pelo sociólogo francês B enoit Falaize, se seguirm os a Paul
R icoeur, que atenta para a necessidade de um a “ju sta m em ória” , talvez seja pertinente e de
extrem a u rgência pensarm os em um a “ju sta pedagogia” da h istória v o ltad a para a construção
219
de “u m a história crítica sem subestim ar a força social da m em ória em jo g o , que possa ser fiel
ao passado sem renegar a verdade e ser fiel à verdade acadêm ica, sem retirar nad a da dignidade
E p ara alcançar tal finalidade, o ensino de h istória a partir de um a persp ectiv a local pode
curiosidades e reforçar identidades e pertencim entos. E ntretanto vale destacarm os que o ensino
da h istória local encerrada em si acaba por esvaziar-se do seu potencial estratégico para a
form ação do pensam ento histórico nos educandos. R esidindo nesse ponto a im portância do
local passa a ser concebido com o um a estratégia pedagógica capaz de viab ilizar a transposição
e Padrós que cham am nossa atenção para a necessidade de estabelecerm os pontes de conexão
entre passado e presente, visando m elhores resultados de apreensão dos processos históricos
T endo em vista que a m em ória é um dos pilares b ásico s para a construção de identidades
individuais e coletivas, perm itindo que cada g eração esteja ligada às anteriores e futuras. A
aprendizagem do local pode ser apontada enquanto um dos m eios de solidificação desses
vínculos, a p artir do ensino form al. E ntretanto alguns cuidados devem ser tom ados: C irce
B itencourt, destaca que essa p rática de observação do entorno im ediato do educando ao ser
encarada enquanto ponto de partida para a aprendizagem histórica, não deve ser confundida
com u m a sim ples “ excursão escolar” . P ois a m esm a trata-se de “um m om ento específico de
pro p iciar o trabalho com realidades m ais próxim as às experienciadas pelos educandos.
com preensão desses processos. U m a vez que, esta abordagem perm ite, tam bém , que o
220
p rofessor parta das histórias individuais e dos grupos, gerando um exercício de reflexão crítica
contextos m ais am plos, identificando assim , passado e presente nos vários espaços de
convivência.
Tam bém é fundam ental que o professor possua um a base teórica e m etodológica
consistente, para não cair na m era reprodução ufanista desses passados. Sabe-se que há em muitos
casos um a séria dificuldade de se encontrar m aterial bibliográfico a respeito de algum as cidades,
sobretudo, devido à escasses de produções acadêm icas que versem sobre os interiores de nosso
país. E esse pode ser apontado enquanto um obstáculo que interfere negativam ente na prática
pedagógica. Outro aspecto relevante para essa problem ática é que ainda existe “um a forte
presença da ideologia dos grupos dom inantes tan to no currículo e program as escolares quanto
no livro didático que acaba influenciando as práticas de ensino” (LIM A, CA VA LCA NTE, 2018,
p-11)-
C avalcanti Ju n io r (2016) e Jelin (2002) nos cham am atenção para o fato de que as
im agens e narrativas apresentadas nos m ateriais didáticos e paradidáticos são perm eadas por
discursos de poder, e, nesse sentido, são escolhas, não sim ples representações da realidade.
A ssim , é a p artir da sistem ática repetição que determ inados discursos se im põem , e, desta
form a, ao vincularem m ajoritariam ente fatos e im agens referentes ao eixo R io - São P aulo os
determ inados acontecim entos a determ inadas espacialidades e assim sonegam a biografia de
atores periféricos. E ssa sonegação da história da “gente comum ” tam bém pode estar presente, por
exemplo, nas cartilhas de divulgação turística das prefeituras que perm eadas por relações de poder
intentam transm itir um a história linear rumo ao progresso, m ítica e idealizada.
D iante dessa conjunção de fatores, comum ente o ensino do local acaba sendo pautado na
m era reprodução vazia de datas comem orativas, vultos históricos, festas cívicas e religiosas.
Aspectos que em sua m aioria enaltecem apenas a um a parcela da sociedade, um a elite branca e
abastada. A ssim ao representar o passado da cidade de um a m aneira idealizada, nossa prática é
despida de toda criticidade necessária para fazer com que os educandos se percebam no espaço,
reconheçam os problem as de ontem e hoje, as rupturas e perm anências que os circundam. Aspectos
fundam entais para que esses possam desde a mais tenra idade debater possíveis estratégias para
221
E ntretanto, nem só de problem as se faz nossa prática, existem para esses algum as
pontuam que atualm ente são inúm eras as discussões no cam po do ensino que am pliam as:
D iante do exposto até aqui, questionar-se a respeito de quais m em órias têm sido
esquecidas, quais experiências sociais foram silenciadas, que atores e pro tag o n istas foram
renegados ao “um bral do esquecim ento histórico” é um dos focos centrais dessa “reeducação
do olhar” a respeito da história local que aqui nos propom os a fazer. L evando então nossos
educandos a conhecerem outros espaços da m em ória das nossas cidades para além daqueles
N esse sentido, é im portante usufruir criticam ente dos diferentes espaços urbanos de
sociabilidade e convivência nos quais os educandos estão inseridos ou pelos quais passam
cotidianamente. N esse ponto, reside a problem ática das estátuas: quem são os indivíduos ali
retratados? Em que período viveram ? Que papel ocupavam na sociedade em questão? Essas e
outras questões são abordadas durante a oficina “N o banco dos réus as N O SSA S estátuas” ao
p ropor com o eixo central um “julgam ento” das estátuas pelas quais cotidianam ente passam os em
nossas cidades.
Tal atividade não se configura em um a “ receita de bolo” pronta e engessada, ela é apenas
um desfecho possível para colocarm os em prática todos os pontos que viem os refletindo até aqui.
Assim, m etodologicam ente, a atividade divide a turm a em três grupos, que irão com por as três
partes de um tribunal, acusação, defesa e júri. D ependendo do número de educandos acusação e
defesa poderão ser divididos em outros pequenos grupos. Estes deverão se aprofundar em questões
referentes a trajetória das personagens retratadas pelos m onumentos, por eles escolhidos com
m ediação do professor, e assim defender a perm anência ou retirada/ ressignificação destas estatuas
do espaço público.
Esse exercício visa fom entar o debate e a reflexão crítica entre os educandos de uma
m aneira que eles se apropriem ativam ente da construção do saber. A ssim , não existe certo ou
errado (logicam ente que dentro do que é eticam ente perm itido), a ideia é que eles “ponham a
cabeça p ara funcionar” e que possam com preender o passado não com o algo distante de si, m as
222
sim com o algo que nos to ca e nos form a com o sociedade, estabelecendo conexões do entorno
C o n s id e ra ç õ e s fin a is
A creditam os que o ensino de h istória enquanto alicerce à form ação de seres críticos e
autônom os não deve estar apoiado apenas no u so de m étodos tradicionais, contidos em livros
e teses. E le deve se expandir a ponto de apreender a dim ensão hum ana dos processos. A ssim ,
com intuito de gerar u m a aprendizagem m ais significativa dos conceitos trabalhados em aula,
a p artir de um a educação crítica em acordo com as prem issas básicas de respeito à diversidade
e a pluralidade de nossa sociedade, defendem os a p ersp ectiv a de que partindo de nosso entorno
podem os chegar à com preensão de processos m ais am plos, e que se a h istória possuir um
sentido prático e próxim o a N O S S A realidade ela deixará de ser apenas m ais u m a disciplina, e
R e fe rê n c ia s :
223
F R E IR E , Paulo. P e d a g o g ia do O p rim id o , 17° ed. R io de Janeiro: P a z e terra, 1987.
FR A G A , H ilda Jaqueline; D E L FIN O , Josianne Pereira. O patrim ônio cultural de Jaguarão
através da história das m ulheres: u m a experiência de educação patrim onial da e na cidade. In:
G A S PA R O T T O , A lessandra, FR A G A , H ild a e B E R G A M A S C H I, M aria A parecida. E n s in o
de h is tó r ia no C O N E S U L - P a trim ô n io C u ltu r a l, te r r itó r io s e f ro n te ir a s . P o rto A legre.
E vangraf/U N IP A M P A Jaguarão, 2013.
224
UMA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO A PARTIR DOS PERIÓDICOS
D A Y A N E C R IS T IN A G U A R N IE R I
D outo ran d a em E ducação
U niversidade E stadual de L ondrina, L o ndrina - Paraná/B rasil
A im prensa possuía suas tendências políticas, interesses econôm icos e sociais que se
agregavam a sua form a de relato. Sendo assim , essa parcialidade não é um em pecilho para a
E x istem pesquisas na área da educação que efetivam um m ovim ento de aproxim ação e
identificação com o cam po da história, que po r sua vez, se abre para os tem as educacionais
(W A R D E , 2018, p. 134). A o b u scar novos objetos e problem as, a “história cu ltu ral120 abriu
N a g le 121 (2018) expõe que na década de 1960 ainda era recente o interesse em estudar
a educação brasileira, por m eio, da perspectiva histórica. M as a partir da década de 1970, com
educação adquirem im pulso (SA V IA N I, 2008). A ssim , logo surgem inúm eras pesquisas que
privilegiam a história geral da e d u cação 122.
A H istó ria N o v a - novos objetos, novos problem as e novas abordagens - atinge a área
da H istória da E d ucação que se renova, principalm ente a partir da década de 1990. D e acordo
com A raújo (2002) a “H istó ria da E ducação deverá ser com preendida com o o resgate do m odo
pelo qual os hom ens produziram sua existência, seja ensinando ou aprendendo aquilo que
circula na cultura” , portanto, educar-se é aprender o que circula no in terio r de um dado grupo
hum ano.
em dissem inarem suas pesquisas em revistas acadêm icas e fo m en tar estudos em grupos de
pesquisas que tam bém difundem p u b licaçõ es123 para fortalecer essa área de estudo, exem plo
120“O âmbito da História Cultural relaciona-se a diálogos interdisciplinares mais específicos, envolvendo as
relações da História com outros campos de saber”. (BARROS, 2011).
121 Parte da tese Nagle (2018, p.166) analisa o entusiasmo pela educação na década de 1920, fruto das reformas
do Governo Federal e dos Governos Estaduais nos vários graus e modalidades de ensino.
122Romanelli (1978), Ribeiro (1978), Xavier, Ribeiro e Noronha (1994).
123 Dentre os trabalhos podemos citar o de Carvalho (1989; 1995; 2000), Saviani (1983;2005), Monarcha (1993;
1996; 2007), Nunes (1995; 1996) e Warde (1984; 1990; 1998. Os artigos de Nunes e Carvalho (1991), Nunes
225
disso são: o Instituto N acional de P esquisas E ducacionais (IN EP), a A ssociação N acional de
A im p o rtân cia da fonte periódica no cam po da H istó ria da E d ucação foi destacada por
F aria F ilho (2002), que rev ela sua potencialidade de com preender as práticas de estratégias
A pesar de saber que o uso da im p ren sa não pedagógicas, não é algo novo para o estudo
da h istó ria da educação, os periódicos não educacional, são fontes que tem contribuído para
am pliar a p esquisa histórico-educacional, dando-lhe contornos e vitalidade, exem plo disso, são
os estudos que abordam a grande im prensa com o a tese de C astro (1997); a im prensa operária
trab alh o publicado por G iglio (1995); a im prensa alternativa em pesquisa apresentada por
Sim ões (2005), M onteiro (2011), T hom é (2018) e Tardelli F ilho (2019).
consolida, por m eio, de dissertações e teses e em 1990 passa a problem atizar a historiografia
educacional e suas fontes, atualm ente ela sofre a am pliação tem ática tem poral e docum ental.
“ a educação é um a prática social que se estrutura a p artir do que é veiculado pela cultura, a
P o r sua vez, M agaldi e X avier (2008), apontam que a fonte periódica ganha destaque
na h istória da educação, por p erm itir acessar u m a sociedade brasileira m ultifacetada, pautada
(1991) e Catam e Faria Filho (2002) elaborados a pedido da ANPEd. Os textos de Nunes (1998), Alves (1998),
Greive e Pintassilgo (2000), Xavier (2001) e Araújo (2006), foram produzidos para o Congressos Brasileiros e
Luso-brasileiros de História da Educação. Os artigos de Faria Filho e Vidal (2003), escrito a pedido da Revista
Brasileira de História; os textos de Saviani, Sanfelice e Lombardi (1998; 2001), elaborados para o Grupo de
Pesquisa HISTEDBR. A obra organizada por Araújo, Basto e Gatti Júnior (2002) é resultado das atividades do
núcleo de estudos e pesquisas em história e historiografia da educação da faculdade de educação da UFU,
vinculado ao (HISTEDBR) Grupo de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil.
226
A palavra escrita que percorre a história, pode ser resgatada no futuro e u tilizada com o
ideológico, cabe ao historiador utilizá-lo com o fonte para a recuperação de um determ inado
período histórico, aguçando o seu olhar crítico para os fatores que influenciaram a sua
construção (G O N Ç A L V E S N E T O , p. 2002).
com o um objeto de pesquisa contextualizado na história, e que assim com o os dem ais
indivíduos que integram a sociedade tinham seus interesses particulares e coletivos que
perm eavam as páginas im pressas. E ssa fonte de acordo com C am pos (2012, p. 67) é “u m a das
m aneiras m ais eficientes utilizadas pelos h istoriadores da educação que estudam os séculos
época, quanto para a utilização de objetos e pesquisas aparentem ente desvinculados com o
educação e im prensa, assim , essa ju n ç ã o perm ite a “ análise de diferentes grupos representantes
de determ inadas forças de poder, sejam elas expressas nas questões políticas, religiosas ou
educacionais” .
conhecim ento com o um instrum ento de força m aterial o socializa. Sua ação vai além da
m ultiplicidade própria do processo, perm itindo a análise das relações construídas socialm ente.
C o n s id e ra ç õ e s fin ais
controle e na form ação das em oções, sem autom aticam ente pensar nos m eios de com unicação,
pois atuam a p artir das inform ações que circulam na sociedade e m obilizam os sentim entos e
ações que m ovim entam a história. A pesar de selecionarem os eventos sociais que estarão em
evidência, fica registrado em sua linguagem o diálogo com os diversos seguim entos sociais e
processo social e cultural, no qual, estão inseridos. A ssim , eles tam bém são atingidos pelos
padrões de com portam ento que refletem . D essa form a, ao u tilizar os periódicos com o fonte
227
para analisar as percepções sobre o âm bito educacional se observa nele o reverberar das tensões
sociais, esse conteúdo das práticas cotidianas se transform a em fonte p ara o trabalho do
histo riad o r da educação, que precisa articular seu objetivo de pesquisa aos m ovim entos sociais
R E F E R Ê N C IA S
228
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230
MIGRAÇÃO E MEMÓRIAS DE NORDESTINOS EM VICENTINA:
UMA LEITURA A PARTIR DA MIGRAÇÃO CEARENSE E
PERNAMBUCANA.
D O U G L A S M A R T IN S L IM A D E M O U R A 124
N o presente artigo propom os com base no estudo de caso que estou realizando no
um projeto que está em andam ento que tem com o m etodologia a h istória oral e busca através
de entrevistas com m igrantes, com preender m ais que o p ro cesso de m igração com o um todo,
m as trazer para discussão tem as novos com o as subjetividades e em otividades que perpassam
os deslocam entos populacionais, com a m etodologia de h istória oral de vida, os sujeitos (as)
são o centro do nosso projeto e de nossa pesquisa. N esse sentido a m em ória aparece com o um a
expressão da histó ria oral de vid a. Portanto, suas m em órias são individuais, m as tam bém
coletivas, tendo em vista que falam de si, m as tam bém de um a h istória partilhada, sobre a égide
da com unidade nordestina, em especial da com unidade nordestina, em especial nesse estudo
Sendo assim o objetivo deste trabalho será analisar a m igração nordestina e suas
m em órias, v erificando que na citada localidade a com unidade nordestina deixou legados para
as m ais diversas gerações e possui influencias na identidade das pessoas, bem com o para a
construção desse lugar que v iria m ais tarde se to rn ar o m unicípio de V icentina. C om preende a
relações fam iliares, as experiências do que é ser m igrante nordestino, e da influência da cultura
h istória que em escala m aior abrange o território nacional, que é a m igração de nordestinos
para to d o s os cantos deste país. P ortanto, suas m em órias são individuais, m as tam bém
coletivas, tendo em vista que falam de si, m as tam bém de um a história partilhada, sobre a égide
da com unidade nordestina, em especial da com unidade nordestina, em especial nesse estudo
124 Graduado em Geografia pela UFGD (2013). Mestrando em História pelo PPGH da UFGD.
231
A m igração nordestina para o Sudeste, bem com o para o C entro-O este foi intensa,
devido vários fatores, talvez os m aiores sejam a b u sca de um a m elhor vida social e a fuga da
seca e da fom e, que m uitos dos nossos entrevistados relataram no decorrer do projeto. O
D o u rad o s) foi povoado por u m a diversidade de povos, m esm o estando num a região de forte
presença indígena que é a região de D ourados, pelos relatos e estudos já realizados, o território
onde se encontra o m unicípio de V icentina era um territó rio despovoado, se resum indo a p oeira
e m ata, e neste aspecto entra a figura do m igrante, com o sujeito que iniciou o processo de
povoam ento daquela m ancha territorial, m esm o assim não podem os atribuir som ente a questão
da seca a essa m igração. A o ouvir as histórias de nossos colaboradores, entendem os que outras
questões tam bém influenciaram nesse processo e que a seca e a fom e poderiam ser um
pream bulo, m as que a m igração é um processo m ais com plexo. D estaco que no decorrer do
projeto, a m igração fam iliar se destacou, com a vinda em conjunto com outros fam iliares.
Antes de tudo, é necessário definir este campo e este lugar chamado imigração, bem
como as pessoas envolvidas nesta jornada. Sujeitos em trânsito, diaspóricos,
deslocados, dispersos, exilados, retornados, pendulários, apátridas, repatriados,
refugiados têm sido conceitos neófitos para se juntar aos já tradicionais conceitos de
migrações, imigrações e emigrações. Da mesma forma, às razões mais comumente
apontadas para estes movimentos populacionais, sejam as questões econômicas, as
razões pessoais, os fatores de repúdio e de atração, juntam-se as explicações
decorrentes de conflitos civis, políticos, étnico-religiosos, conflitos armados,
violência generalizada e violação massiva dos direitos humanos, e mesmo de caráter
ambiental como são entendidas as questões relacionadas à fome, à pobreza e aos
desastres naturais. O que fica evidente é que estudar as imigrações no contexto atual
é tratar do fenômeno numa complexidade que está além da mudança de uma região
para outra e numa perspectiva diferente dos movimentos migratórios ditos históricos
ou tradicionais como os ocorridos em grande escala entre o final do século XIX e
meados do século XX.
presente ainda no nosso cotidiano e não precisam os ser “n o rtista s125” p ara com preender que as
relações sociais são pautadas tam bém pela religiosidade, a p resen ça de figuras lendárias
autores trabalharam sobre tal figura, que é algo recorrente na m em ória dos m igrantes
nordestinos... ah, m eu avô conheceu L am pião... ah, o bando de cangaceiros... R ecorrentem ente
nos deparam os no decorrer das entrevistas com tais reflexões, lem branças resultantes de
232
m em órias individuais com o tam bém coletivas, de perspectivas im aginárias em m uitas vezes,
de tradições e costum es que são passados de geração a geração. A s festas ju n in a s fam iliares e
da com unidade são um grande exem plo de tradição inventada e transm itida de geração para
geração, além de m uitas receitas culinárias, com o a rapadura, o cuscuz, o b aião de dois, o
acarajé, com idas tradicionais do N ordeste. A m úsica tam bém tem m uita influência,
principalm ente através do forró, que foi popularizado po r nom es com o Luiz G onzaga,
D om inguinhos e Sivuca, e que os nordestinos de todo o país adm iram , além de cantar sobre o
cotidiano do nordeste, eles divulgam a cultura de tal região para todo o país e o m undo.
A histó ria oral é um processo im portante nos estudos m igratórios, pois as entrevistas
orais p erm item o acesso a um a fonte que m uitas vezes não u tilizada nas consideradas as “fontes
oficiais” , com o os livros, os sites oficiais das prefeituras, os m useus, entre outras fontes, que
trabalham com história. A h istória oral perm ite u m a m aior subjetividade no processo, nas falas,
em entender o processo e ver o lado do outro, contado por ele próprio, bem com o a
cham ada M arch a para O este, iniciada no fim dos anos 30, e que se intensificou no início dos
anos 40, V argas tentou realizar a integração nacional com a ocupação dos cham ados “vazios
dem ográficos” e ao m esm o tem po V argas buscou im plem entar um sentim ento nacionalista ao
com a instituição do D ia do índio, m ais a frente na década de 1940, V argas foi o prim eiro
presidente a v isitar u m a aldeia indígena, na Ilha do B ananal, ao m esm o tem po em que parte de
integrantes do seu governo consideravam o índio de form a hom ogeneizada, ou seja, todos os
índios são iguais, e tam bém tu telan d o o índio, considerando serem incapazes de seu próprio
N esse am biente de alianças e desavenças que V argas com andava a sociedade, foi
pensado e planejado a M arch a para O este, regiões com o N o rte e C entro-O este foram as m ais
im pactadas com tal projeto, e a região da G rande D ourados está inserida nesse processo, que
claro, nordestinos. N esse aspecto, a presença nordestina se intensificou a p artir da M archa para
O este, em b u sca de um a nova p ersp ectiv a de vida, prom essas de novas oportunidades, com
127 Período que durou de 1937 a 1945, Vargas deu um golpe de estado e permaneceu no poder durante tal período.
233
V argas preocupou-se nesse processo de interiorização que j á era um a antiga
reivindicação do m ovim ento tenentista, que via um in terio r m eio “ escanteado” , na qual o
E stad o brasileiro não olhava e assistia tal população, então V argas com preendendo a dem anda,
interna, realiza esse processo de colonização, pensando territorialm ente na ocupação e defesa
de áreas vazias, bem com o na dinam ização do m ercado interno para aquecim ento da econom ia
brasileira, que havia sofrido m uito com a C rise de 1929 e a derrocada da econom ia cafeeira.
latifúndio e o poder exercido por m eio da C om panhia M ate L aranjeira, que dom inava
politicam ente o sul de M ato G rosso, p o d e r esse exercido, desde o fim da G u erra contra o
P araguai, em que o B rasil anexou parte do território que estam os discutindo em nossa pesquisa.
A Companhia Mate é referência pelo fato de ter exercido não somente poder
econômico e político, mas, sobretudo, pela grande concentração de terras devolutas
sob seu domínio. Assim, o sul do Estado de Mato Grosso, desde o período pós-Guerra
do Paraguai, ficou sob o virtual monopólio econômico da Companhia Mate Laranjeira
por meio da exploração da erva-mate nativa, havendo grande concentração de terras.
que significava que além de ocupar um vasto espaço territorial e lucros m uito grandes, gerava
em prego e renda para a população paraguaia, o que ia contra a ideia nacionalista de V argas, de
dinam izar a econom ia e integrar o território com a ocupação de brasileiros, reforçando a ideia
colonização, O L IV E IR A (2013):
234
N esse contexto, V icentina com o núcleo populacional inicia sua form ação, no ano de
1951, o senhor M anoel N on ato (in memorian) m igrante n ascido em A ssaré/C E , havia chegado
A m em ória varguista é sem pre re(vista) por m uitos historiadores e no nosso caso por
em suas palavras, bem com o quando em m eio a entrevista observam os a im agem de V argas
em sua estante, m ostra a representação da figura de V argas não só para ele, m as algo que
coletivam ente atinge a um a am pla gam a de fam iliares, vizinhos, entre outros sujeitos.
Toda a arte do orador consiste talvez em dar àqueles que ouvem a ilusão de que as
convicções e os sentimentos que ele desperta neles não lhes foram sugeridas de fora,
que eles nasceram deles mesmos, que ele somente adivinhou o que se elaborava no
segredo de suas consciências e não lhes emprestou mais que sua voz (HALBWACHS,
1990, p. 47).
com o de suas im bricações históricas, consideram os que tal análise depende do conhecim ento
articulam em suas p ráticas com a sociedade local, nas igrejas, escolas, centros culturais, e ainda,
com o a cidade é pensada pelo pesquisador enquanto objeto de pesquisa, o que vai ao encontro
235
C ada local possui suas idiossincrasias, porém , a cultura com o algo m utável e em
constante transform ação, se inventa e se reinventa dentro e fora das m últiplas sociedades,
influenciando cada local de um a form a, nesse contexto a cultura da com unidade nordestina, em
especial a com unidade cearense e pernam bucana, trouxe consigo diversos fatos a serem
com idas tradicionais, traços culturais que se entrelaçam com outras realidades, de outros
indígenas, através das relações entre as diversas culturas citadas, podem os com preender o
presentes, não só nos antepassados, bem com o nos descendentes que dão continuidade aos
costum es de seus prim órdios, bem com o sua influência é de extrem a proem inência, tendo em
vista os espaços sociais ocupados pelos nordestinos, desde o início do povoam ento da região.
C om os parâm etros de um projeto em histó ria oral, a m em ória de expressão oral a partir
m igrantes oriundos do C eará e do Pernam buco, é utilizada para entender com o essa m em ória
influencia diretam ente nas tradições e costum es da com unidade local, e quais lem branças,
traum as, recordações, sentim entos essa m em ória traz consigo. A esse respeito, retorno ao
com preender que o processo m igratório em sua quase totalidade foi influenciado por um a
decisão conjunta, que envolve laços parentais, há sim a m igração individual, m as essa é m ais
difícil, ela pode ocorrer em casos traum áticos, de revolta, m as a grande m aioria dos casos
m igratórios são u m a decisão que é influenciada pelos pais, pelo casal, que b u sc a novos
horizontes em suas vidas. C om esse trab alh o com a com unidade de destino nordestina, o
entendim ento de com o as m em órias são cíclicas é m uito instigante, o aqui e o lá, as recordações
da terra natal, as recordações da paisagem de quando chegaram , aos que puderam reto rn ar a
236
terra natal, as lem branças de quando retornaram e as novas paisagens que lá encontraram
sem pre estão presentes, são m em órias que seletivam m om entos seja pelo am or ou pela dor,
seja pelo esquecim ento e a am nesia de outros m om entos, sem pre tentam organizar suas falas,
porém , o sentim ento de alegria, tristeza, angustias, m uitas vezes estão presentes não som ente
M ais que u m a h istória da m igração nordestina, nosso objetivo é valo rizar a figura do
m igrante nordestino, dos hom ens e das m ulheres, valorizando sua história de vida,
evidentem ente, não rom antizando, m as fazendo análises e desdobram entos que trazem consigo
os im pactos históricos das m igrações em suas vidas e de suas fam ílias, bem com o das
com unidades que passaram a fazer parte no decorrer de suas trajetórias de vida, trajetórias essas
dado tem p o histórico e um determ inado lugar. A cultura nordestina se fez e ainda se faz
presente, basta andar alguns passos para encontrar alguém que seja descendente de nordestinos,
alguns com m ais orgulho outro com m ais pudor, porém , os laços são dados, as em oções são
postas e as vidas são reescritas, pelo encontro de m uitos povos, entre eles, os nordestinos que
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238
RELAÇÃO TRABALHISTA NA ATIVIDADE DE PASTOREIO NO
PANTANAL, FINAL SÉCULO XIX E PRIMEIRAS DÉCADAS DE XX
E N R IQ U E D U A R T E R O M E R O 128
A L E X A N D R E D E S O U Z A C O R R E A 129
A b s tra c t
T he m ain objective o f th is article is to analyze the lab o r relations existing in the Pantanal
livestock activity in the late 19th century and early decades o f the 20th. In B razil, slavery w as
form ally abolished in 1888 and this w as a m ilestone for M ato G rosso. In pastoral activity, there
w ere already several lab o r regim es during the period o f slavery and, w ith the abolition, they
continued w ith o u t radical change. T he tim e lim it established by the E m pire w orks as a
p aram eter to be taken into account in the P antanal, but n ot everyone com plied w ith this law,
b ecau se slavery continued after the enactm ent o f the “Lei Á urea” . In the “ cattle handling” , the
w orker's com pensatory regim e takes place in the m ost varied ways. T he frequency o f receipts
by salaried labor is nothing like those practiced in industry, com m erce or o ther econom ic
activities, in w hich rem uneration w as basically m onthly. E m ployees w ere day laborers or
m onthly w orkers, b u t they w ere not paid m onthly, b u t w hen they needed to. For his control,
128 Doutor. Professor do Curso de Ciências Econômicas da FACE-UFGD (Faculdade de Administração, Ciências
Contábeis e Economia da Universidade Federal da Grande Dourados). E-mail: enriquero mero @ufgd. edu.br
129 Doutor. Professor do Curso de Ciências Econômicas da FACE-UFGD (Faculdade de Administração, Ciências
Contábeis e Economia da Universidade Federal da Grande Dourados). E-mail: alexandrecorrea@ufgd. edu.br
239
the farm er had a b o o k o f C urrent A ccounts, in w hich each cow boy has his special account
w here the M ust and H aver o f his expenses and credits w ere registered. The relationship w ith
the landow ners w as, in general, characterized by bonds o f personal loyalty, ex panded over the
years through cronyism relationships b uilt as an extension o f the tru st acquired after a long
period o f w ork on th e farm s. R egarding the appropriation o f cattle by the em ployees, other
authors have registered this occurrence, and som e have ev en changed th eir social class i f w e
tak e into account th e division o f classes. F o r the elaboration o f this article, official docum ents
w ere u sed both in C orum bá and C uiabá, as w ell as the R eports o f the P resident o f the State, as
w ell as other sources, th o se considered to be secondary sources.
I n tr o d u ç ã o
N esta Província, os processos de criação eram m uito prim itivos. A criação do gado, de
acordo com M iguel A rrojado R ib eiro L isb o a 130, era solto no cam po som ente cercados em suas
divisas extrem as. O gado era obrigado a v ir ao curral para consum ir sal, nesse m om ento recebe
N o M ato G rosso, o trab alh o escravo foi estabelecido ao longo do século X V III na
Q uando a lei do fim da escravidão foi prom ulgada no M ato G rosso, existia em torno de
5.000 escravos de um total populacional de 90.000 habitantes aproxim adam ente, o que
representa 5,56% da população sendo que a m aior parte estava concentrada em Cuiabá. As
condições de trabalho escravo não diferiam m uito das do resto do país. O estabelecim ento de
sem o estabelecim ento de um único regim e. O seu papel foi de destaque na form ação das
fazendas no cuidado do gado. P ertenciam às m ais diversas tribos com o G uaná, K inikinau,
T erena, G uaicuru, entre outras. A ssim , o crescim ento da atividade criatória u tilizou-se do
130 LISBOA, Miguel Arrojado Ribeiro. Oeste de São Paulo, Sul de Mato Grosso. Geologia, Indústria Mineral,
Clima, Vegetação, Solo Agrícola, Indústria Pastoril. Rio de Janeiro, 1909.
240
Os índios pertencentes à tribo guaicuru têm a fam a de serem os m elhores vaqueiros;
indígena.
O peão quando residia na fazenda, além de vaqueiro, era tam bém com panheiro dos seus
filhos, existia, pois, a v alorização pessoal, “até o fato de contar um causo e ser ouvido pelo
rem uneração m onetária, u m a vez que não era caracterizada com o um a fo rm a de trabalho
D e form a geral, a relação com os proprietários era caracterizada por laços de fidelidades
pessoais, am pliadas ao longo dos anos p o r interm édio de relações de com padrio construídas
com o extensão da confiança adquirida, após longo p eríodo de trabalho nas fazendas. S obre a
apropriação de gado por parte dos em pregados outros autores registraram essa ocorrência, e
M é to d o
capitalism o, quando este na verdade j á estava por trás, em plano global, da m ão do prim eiro
garim peiro ou do fazendeiro que vinha otim izar, econom ias naturais, que de naturais só
A fo rm a p ela qual se processou a acum ulação de capital foi m ediante o dom ínio do
com ércio p ela m etrópole; a função da colônia está p ré-definida em ser consum idor de produtos
concorrer com a m etrópole se não vedada era bem lim itada. A té o transporte de m ercadorias
241
deveria ser realizada pelo país colonizador. Q uem observa de form a esp ecífica é E sselin na
“A produção colonial, a não ser em casos esporádicos, não deveria ser transportada
em navios estrangeiros, especialmente quando se tratasse de carga a ser vendida em
outro país, e as mercadorias não produzidas na metrópole também não deveriam
chegar às colônias em navios estrangeiros.” (ESSELIN, 2011, p. 129).
iv) D ocum entos avulsos que contém tanto C ontrato e D istratos Sociais na Junta
vii) L ivro N° 01, R egistro N : 001 à 426 da Inspetoria C om ercial de M ato Grosso.
onde foram coletados os seguintes docum entos das diversas repartições do E stado:
L egislativa P rovincial desde o ano de 1871 a 1888. A p artir de 1892 a denom inação p assa a ser
de M ensagens, estes docum entos foram coletados até 1915. E stas fontes são fundam entais para
esta pesquisa pela contribuição, j á que são elem entos com probatórios dos fatos relacionados
O enfoque deste artigo se relaciona m ais com a h istória econôm ica e o tratam ento tende
dos recursos de ordem quantitativa para a obtenção de um conhecim ento dos m ovim entos da
erro, ainda assim será utilizado este m étodo pela capacidade de m ensuração.
242
D IS C U S S Ã O E R E S U L T A D O S
R e la ç ã o T r a b a lh is ta no P a s to re io
N o B rasil, a escravidão foi abolida form alm ente em 1888 e isso consistiu num m arco
para M ato G rosso. N a atividade pastoril, j á havia diversos regim es de m ão -d e-o b ra durante a
v igência da escravatura e, com a abolição, continuaram sem m od ificação radical. O lim ite
tem poral estabelecido pelo Im pério funciona com o parâm etro para ser levado em conta no
Pantanal, m as nem todos cum priram essa lei, porque a escravidão continuava após a
prom ulgação da “Lei Á urea” . N a “ lida do gado” o regim e com pensatóri o ao trabalhador
u m a m odalidade de trabalho desenvolvida, tam bém , por livres pobres, m as isso não isenta a
presença de cativos. P ara D ivino M arcos de Sena, as fazendas de gado j á eram presentes em
M ato G rosso na segunda m etade do século X V III, e sua expansão aconteceu no decorrer da
prim eira m etade do X IX , com a gradativa exportação de gado proveniente das regiões de V ila
M aria, Poconê. assim com o do P resídio de C oim bra, A lbuquerque, M iranda, e Jaurú nas
proxim idades dos rios São L ourenço e Jaurú e no planalto sul M ato G rosso, o que não excluía
M ã o de o b r a e s c ra v a
A leixo, apud B orges (2001), destaca um efeito lim itado do fim da escravatura na
243
N o M ato G rosso, o trab alh o escravo foi estabelecido ao longo do século X V III na
Q uando a lei do fim da escravidão foi prom ulgada no M ato G rosso, existia em torno de
5.000 escravos de um total populacional de 90.000 habitantes aproxim adam ente, o que
representa 5,56% da população sendo que a m aio r parte estava concentrada em C uiabá
Fonte: ALEIXO, Lucia Helena Gaeta. Mato Grosso: trabalho escravo e trabalho livre (1850 - 1888), 1980, p. 92.
trab alh o escravo não diferiam m uito das do resto do país. O estabelecim ento de quilom bos
tam bém foi característica no E stado. A ssim o retrata o R elató rio da Secretara da P o lícia de
da m ão-de-obra escrava negra na atividade pastoril, o que não nos autoriza a afirm arm os a sua
(in)existência neste tip o de atividade econôm ica no Pantanal. M as foram encontrados relatos e
131 R elatório da Secretaria da P o lícia da P rovíncia de M ato G rosso em C uyabá em 13 de abril de 1877, p. 05.
244
inform ações de que os índios, das m ais diversas tribos, tenham sido subm etidos a este regim e
de trabalho.
seguinte m aneira:
C ontrastando com esta asseveração encontram -se os apontam entos da M aria do C arm o
B razil que registra a existência da m ão de obra cativa em algum as fazendas com o a do B arão
de V ila M aria, M ajo r M etello e F irm iniano Firm ino F erreira, am bos grandes p roprietários de
cadastrados na ju n ta de m anum issão, entre pretos e pardos. José C aetano M etello possuía 34
cativos e F irm iniano C ândido detinha propriedade possuía 2 1 escravos que executavam
trabalhos no cam po” 133. C om isso, fica registrado que houve m ão de obra escrava nas fazendas
pantaneiras.
M ã o de o b r a in d íg e n a n a p e c u á r ia
sem o estabelecim ento de um único regim e. O seu papel foi de destaque na form ação das
fazendas no cuidado do gado. P ertenciam às m ais diversas tribos com o G uaná, K inikinau,
T erena, G uaicuru, entre outras. A ssim , o crescim ento da atividade criatória utilizou-se do
132 MOURA, Zilda Alves de. LIVRES PARA O TRABALHO: os africanos livres do Mato Grosso - 1852-1864.
4o. Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Curitiba: 13 a 15 de maio de 2009.
133 BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai. O “Mar Interno” Brasileiro. Campo Grande, 2014, p. 263.
134 LEITE, Eudes Fernando Marchas na história: comitivas e peões boiadeiros no Pantanal. Dourados, 2003, p.
60.
245
Os índios pertencentes à trib o guaicuru têm a fam a de serem os m elhores vaqueiros;
É curioso observar que de certo modo, o guaicuru preparou o terreno para a pecuária
e os fazendeiros já encontraram, principalmente na planície pantaneira, a tradição
campesina. De alguma forma, o peão já estava lá, entre os cativos dos senhores
guaicurus, e estes desaparecendo, foi transferida aos fazendeiros a suserania.
(FIGUEIREDO, 1994, p. 88).
O que perm itiu o aum ento da população indígena em terras pantaneiras foi a sua riqueza
natural, consistente na v ariedade de fauna e aves, que passaram a incorporar em sua dieta,
m esm o que a base de sua dieta não fosse a carne. O hábito alim entar era com posto de frutas,
C om o surgim ento da grande p ropriedade para o criatório bovino adotou-se basicam ente
expropriado das suas terras, dos seus gados, seus bens e sua gente.
O regim e colonial ao qual o país foi subm etido tem sua continuidade no in terio r do país,
quando houve u m a “ recolonização” . E sta foi a relação existente entre os grandes proprietários
da criação de gado com as diversas tribos, habitantes prim itivos da região do P antanal. O
aborígene, ao ser expulso das suas posses, e ao o ptar po r não se subm eter ao novo regim e,
sofreu estas consequências. A alternativa foi o retorno ao estágio m ais prim itivo da econom ia,
A população nativa foi sendo aos poucos expropriada das suas terras e de seu gado e
sistematicamente reduzida à condição de servidão. Empobrecida, à medida que ia
sendo desapropriada dos seus bens, juntaram-se em bandos, perambulando pelas
fazendas, mendigando por um local onde pudesse se fixar, desenvolver lavouras de
subsistência e caçar. (ESSELIN, 2011, p. 193).
Os índios se abasteciam dos donos das fazendas, que praticavam preços abusivos com
eles, e suas dívidas cresciam com o decorrer do tem po, perpetuando a relação de dependência
entre em pregado (com prador) e patrão (fornecedor) a fim de retê-los nas fazendas. E os
produtos que a propriedade não produzia com o roupas, calçados, aguardentes etc. eram
135 ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária bovina no processo de ocupação e desenvolvimento do Pantanal sul-
mato-grossense (1830 - 1910). Dourados, 2011, p. 90.
246
Os terenas são muito procurados pelos fazendeiros, contentavam-se com pequena
remuneração, sendo em geral, por êles explorados. Raramente se encontrava um
camarada terena que não devesse os cabelos da cabeça ao fazendeiro, seus serviços
não eram pagos pelo que valiam e, nas fazendas efetuadas pelo patrão, eram
tristemente roubados. Daí, uma escravidão de nova espécie, porque nenhum
camarada de conta poderia deixar o patrão antigo sem que o novo se responsabilizasse
pela dívida. E se tivesse a ousadia de fugir, correria os maiores riscos de vexame e
até de morte, porque nos povoados e vilas, estava a polícia sempre em mãos dos
fazendeiros. (VIVEROS, 1958, pp. 179 - 180).
nas fazendas e nas vilas, tais com o a agricultura de subsistência e outras atividades produtivas
O s índios tam bém tinham um a função dentro da estrutura social e produtiva. E sselin
aponta que as jo v en s índias recebiam os b o n s p rin c íp io s 136 da form ação ocidental cristão para
tornarem -se em pregadas dom ésticas, cozinheiras, para realizarem todos aqueles serviços que,
por u m a razão ou outra, eram considerados pouco dignos de serem realizados pelas fam ílias
oligárquicas, que com eçavam a se fo rm ar no P antanal sul.136137138
tratam en to dispensado às jo v e n s ín d ias pela B aronesa de V ila M aria, assim ela é retratad a por
M outinho:
fazendeiros tirarem as índias bem novas das fam ílias para lhes fornecer u m a m elhor educação.
247
D esde a chegada à casa dos patrões eram colocadas nas tarefas do dia a dia, assim com o divertir
aos filhos e netos dos coronéis na condição de babá, geralm ente sem ganho nenhum , a sua
rem uneração era a h o n ro s a c o n d iç ã o 139 de serem partícipes do círculo m ais íntim o da fam ília
talen to da m ão de obra indígena com suas habilidades e técnicas que atendiam perfeitam ente
às exigências tanto nas secas e nas cheias. A o in co rp o rar os braços do guaicuru e do paiaguá,
se apropriaram de excelentes cavaleiros, exím ios canoeiros, que dom inavam com precisão o
conhecim ento da rédea e do rem o, o que lhes garantiu seu estabelecim ento estável no Pantanal,
continuou sendo o indígena. M as, a m ão de obra paraguaia passará a ser incorporada bem
encontrando m uita dificuldade, porque eram , conform e a q u alificação do autor a ser citado,
exím ios v a q u e iro s142. A lém disso, sua utilização não se lim ita na atividade criatória, outros
setores econôm icos passaram a adotar esta m esm a força de trabalho, com o na agricultura,
colheita e preparo da erva-m ate e da ipecacuanha, b o rrach a e nos transportes pela sua
D urante o ciclo ascendente das águas, a condução dos rebanhos nas áreas não alagáveis
conhecim ento e perícia n essa atividade. Q uem pôde atender a esta especificidade fora a m ão
de obra indígena, po r isso, eram m uito disputados pelos fazendeiros da região. E m particular,
os guaicurus, que j á estavam acostum ados ao ciclo das águas, levando e trazen d o seus rebanhos
para aproveitar a renovação das pastagens e lhes oferecer um a m elhor alim en tação .144
indígenas precisavam das ferram entas do seu colonizador, sem as quais não conseguiriam
produzir. O colono precisava do alim ento que o prim itivo produzia. M as apesar desta
248
am bivalência, contra o indígena era com um , n essa região, ser praticado todo tip o de
ressurgim ento das p ráticas anteriores de escravização dos índios. A lém da escravidão, os
colonos praticavam alguns atos de crueldade contra os índios, "não contentes com os
assassinatos promovidos, abriam os ventres das índias que se achavam em adiantado estado
de gravidez”146. O s novos dirigentes do P antanal sul, com m étodos n ad a ortodoxos, foram
quebrando a resistência dos indígenas estabelecendo sua própria o rd em 147148e o que se verificou
R ousseau (2002, p. 13) afirm ava que “a violênciafe z os primeiros escravos, mas a sua
covardia os perpetuou”. E ssa referência era aos negros africanos; tran sportando essa realidade
aos índios do Pantanal, percebe-se que um a eventual atitude de v alen tia perante o colonizador
não tin h a a possibilidade de reverter a sua condição porque to d a a estrutura legal, social, bélica
M ã o de o b r a liv re
O peão quando residia na fazenda, além de vaqueiro, era tam bém com panheiro dos seus
filhos, existia, pois, a v alorização pessoal, “até o fato de contar um causo e ser ouvido pelo
rem uneração m onetária, u m a vez que não era caracterizad a com o um a form a de trabalho
145 ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária bovina no processo de ocupação e desenvolvimento do Pantanal sul-
mato-grossense (1830 - 1910). Dourados, 2011, p. 248.
146 RONDON, Cândido Mariano da S. Missão RONDON, apud ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária bovina no
processo de ocupação e desenvolvimento do Pantanal sul-mato-grossense (1830 - 1910). Dourados, 2011, p. 257.
147 Ibidem.
148 FIGUEIREDO, Aline. A propósito do boi. Cuiabá, 1994, pp. 187 - 188. Grifo nosso
249
assalariado. A lém do trab alh ad o r indígena em pregado no trabalho vaqueiro, a m ão -d e-o b ra de
origem paraguaia foi em pregada com frequência nas atividades p a sto ris.149
Q uem registra tam bém a presença da m ão de obra paraguaia é M aria do C arm o Brazil
quando aponta que com o fim da G uerra da T ríplice A liança houve a im igração paraguaia,
dentre eles se encontravam exímios 150 vaqueiros que j á estavam acostum ados a diferentes
O trab alh ad o r não necessariam ente deveria residir na propriedade do seu em pregador.
O s “ cam aradas” 152 na criação de gado vacum podiam m orar, ou não, na propriedade do patrão,
os que não residiam nos locais do trabalho recebiam salários. Já os que m oravam nas
propriedades do patrão; além de em pregados tam bém estabeleciam dom icílios nestas terras.
P ara estes cam aradas era dada certa quantia em dinheiro e alim entação, estes cam aradas
poderiam trab alh ar de vaqueiro, a função do vaqueiro está na condução e trato do g a d o .153
O utra fo rm a de rem uneração, a p artir da ótica do próxim o autor, era a perm issão aos
em pregados dos proprietários de fazendas no P antanal de criarem seu próprio gado, ao lado
dos donos das fazendas, sendo por estes custeadas as criações do “rebanho” pertencente ao
assem elha aos praticados na indústria, o com ércio ou outra atividade econôm ica, na qual
rem uneração era basicam ente m ensal. O s em pregados, eram diaristas ou m ensalistas, m as não
recebiam m ensalm ente, e sim quando necessitavam . P ara o seu controle o fazendeiro dispunha
de um livro de C ontas C orrentes, em que cada vaqueiro tem sua conta especial onde estava
E ste autor e fazendeiro, na sua descrição explícita, tran scrita abaixo, a firm a que não
em pregados m ais antigos, havendo interesse em dim inuir a rotatividade dos trabalhadores, para
149 BORGES, Fernando Tadeu Miranda. Do extrativismo á pecuária, algumas observações sobre a história
econômica de Mato Grosso. 1870 - 1930. São Paulo, 2001, pp. 105 - 106.
150 Grifo nosso.
151 BRAZIL, Maria do Carmo. Terra e trabalho no sul de Mato Grosso - considerações sobre superação do
escravismo, luta pela terra, economia pastoril e advento do trabalho livre - séculos 19 e 20. História: Debates e
tendências - v. 7 n. 2. Jul/Dez. 2007, pp. 82 - 100. Passo Fundo, 2008.
152 O termo camarada é muito utilizado para fazer referência ao trabalhador de uma forma geral. O autor a ser
citado só se refere ao trabalhador com este termo.
153 SENA, Divino Marcos de. Livres e pobres no centro da América do Sul, um estudo sobre os camaradas (1808
- 1850). Dourados, 2013, pp. 123 - 124.
154 NETTO, José de Barros. A criação empírica de bovinos no Pantanal da Nhecolândia, São Paulo, 1979, p. 38.
155 Op. Cit. p. 90.
250
Na grande maioria das vezes, o fazendeiro não dispõe de armazém fornecedor, de
modo que as compras dos empregados, à exceção de gêneros alimentícios e algum
medicamento fornecido em um almoxarifado chamado ‘despensa’, são feitas sob a
forma de ‘encomendas’ à cidade, quando o patrão ou capataz a ela se dirige. Quase
sempre roupas, lanternas, calçados, etc. são os artigos mais pretendidos. Com os
empregados mais antigos, as necessidades de aquisição frequentemente não são
apreciadas relativamente quanto ao seu débito. Ou seja: o patrão não costuma levar
muito em conta a situação financeira do empregado, em relação á fazenda, mesmo às
vezes tratando-se de bens supérfluos. (FIGUEIREDO, 1994, p. 188).
fidelidades pessoais, am pliadas ao longo dos anos po r interm édio de relações de com padrio
construídas com o extensão da confiança adquirida, após longo p eríodo de trabalho nas
faz e n d a s156. Sobre a apropriação de gado p o r parte dos em pregados outros autores registraram
essa ocorrência, e alguns m udaram m esm o de classe social se levarm os em conta a divisão de
classes.
Era comum termos na fazenda Taboco pequenos criadores, quase que em regime
patriarcado, ou melhor, de comunidade, que iam crescendo, aumentando a sua
criação, e depois o próprio patrão legalizava para eles ou os auxiliava na compra de
glebas para se tornarem fazendeiros. (RIBEIRO, 1984, p. 33).
colonização das A m éricas, especialm ente anglo e francesa, o dono que vin h a sem capital
assinava um contrato cuja cláusula estabelecia quem seria dono de um a parte da criação após
um determ inado p eríodo de tem po. O que prevaleceu nestas análises foram os dados
O elo m ais forte entre o fazendeiro e o seu rebanho é o peão, ou cam arada, pois deste
dependia b o a parte do crescim ento quantitativo e qualitativo do boi. E não se pode desprezar a
relevância dos seus principais aliados e com panheiros: o cavalo e/ou bu rro ; a esse respeito,
156 LEITE, Eudes Fernando. Marchas na história, comitivas e peões boiadeiros no Pantanal. Dourados, 2003, p.
111.
251
construíram -se as m ais diversas representações, m arcadas po r suas relações com seu m eio, ou
p eculiaridades:
A p ecu ária d escrita acim a nos leva a perceber certo gosto pelo detalham ento, que
dem onstra um v erdadeiro sentim ento de adm iração pelo trabalho do vaqueiro pantaneiro, e que
se estende até os tem pos atuais, com provada em diálogos inform ais sobre suas atividades com
O peão pantaneiro convive tanto com a aridez e a seca, assim com o com as enchentes,
e os anim ais sob sua guarda, além da sua própria condição social. O trabalhador se vin cu la ao
fidelidade com o patrão, considerada com o seu p rotetor. Sob esta perspectiva, este
relacionam ento social encobre relações econôm icas e sociais, que posicionavam patrões e
em pregados em esferas bem diferentes. A s relações de trabalho na atividade pastoril podem ser
C ultivava-se a m andioca, tão valorizada, e extraía-se a farinha, o polvilho para fazer o bolo e
o pão de queijo. A lém da m andioca, p lantava-se tam bém o feijão já que os solos eram propícios
ao desenvolvim ento dessa cultura, assim , seu p lan tio não dem andava m uita água, além do seu
produto ser de arm azenam ento fácil, no estoque pode du rar algum tem po. A lém destas culturas,
157 LEITE, Eudes Fernando. Marchas na história, comitivas e peões boiadeiros no Pantanal. Dourados, 2003, p.
115.
158 LEITE, Eudes Fernando. Marchas na história, comitivas e peões boiadeiros no Pantanal. Dourados, 2003, p.
119.
252
o m ilho era u m a cultura obrigatória, dele se obtinha a farinha, a canjica, o curau, a pam onha e
m uitos outros quitutes apreciados pelos pantaneiros. O m ilho tam bém era arm azenado no paiol
para alim entar os porcos que, além da carne, favorecia sua b a n h a .159
C o n c lu sã o
A o concluirm os este artigo, v erificou-se que o gado foi a p eça decisiva na constituição
na agricultura e indispensável à alim entação, desde o couro vacum até o vestiário, habitação e
im portante artigo de exportação. E ste conjunto harm ônico de circunstâncias pro p icio u o
processo de desenvolvim ento da pecuária pantaneira, que chegou ao seu auge nas prim eiras
N as relações sociais de trabalho, o que prevaleceu foi a dualidade, que perm itiu avanços
principalm ente indígena, até a m ão de obra assalariada. O Pantanal, desde o início do processo
foram superadas e contribuíram de form a decisiva à articulação da região com todo o território
nacional.
N a cidade portuária de C orum bá, que recebia com frequência m ercadorias vindas de
C uiabá, apesar da pequena distância entre o porto e os outros pólos e da facilidade em se fazer
o percurso via fluvial, havia um fato r lim itador: só produziam um a pequena parte tanto para o
consum o local para a exportação (produtos prim ários). O s produtos que a P ro v ín cia im portava
tam bém atracavam no P orto de C orum bá devido à lim itação que a via fluvial im p u n h a para
chegar à capital, e outra fo rm a de transporte não havia. C om isso, C orum bá foi se form ando
com o entreposto com ercial, pois, foi a p artir dela que as exportações eram realizadas, e
recebiam as im portações para sua posterior distribuição para o m ercad o regional, dados estes
que ju stificam , por isso, a análise específica do capítulo a seguir, o cam inho das águas.
desde a m ão de obra escrava africana, que alguns autores o denom inavam de C ativa à m ão de
obra indígena com o tam bém m ão de obra paraguaia e bo liv ian a e até a m ão de obra contratada
159 ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária bovina no processo de ocupação e desenvolvimento do Pantanal sul-
mato-grossense (1830 - 1910). Dourados, 2011, p. 189.
253
R e fe rê n c ia s
A L E IX O , L ucia H elena G aeta. M ato G rosso: trab alh o escravo e trabalho livre (1850 - 1888),
1980,
254
A IMPRENSA COMO FONTE PARA O ESTUDO DO MOVIMENTO
SOCIORRELIGIOSO DOS MONGES BARBUDOS (RS, 1935-1938)
F A B IA N F IL A T O W 160
I n tr o d u ç ã o
O m ovim ento sociorreligioso dos M onges B arbudos ocorreu entre os anos de 1935 e
1938, no m unicípio de Soledade, interior do R io G rande do Sul. Sua origem está associada com
a figura do santo m onge João M aria, conhecido no sul do B rasil. E ste personagem teria estado
núm ero de m em bros o m ovim ento despertou a atenção da com unidade local e das autoridades
O conflito ocorreu durante o ano de 1938, quando o grupo com posto po r cam poneses
se reuniu na capela de Santa C atarina com o propósito de esperar o retorno do santo m onge. A
religiosa. Inseridos num contexto político com plexo foram acusados de com unistas. E sse fato
A construção do inim igo p olítico pode ser evidenciada tam bém através da im prensa, na
qual foram publicadas diversas reportagens sobre o conflito envolvendo os cam poneses e os
do grupo religioso teriam algum a ligação com u m a doutrina política estrangeira, sendo, assim ,
enquadrados com o am eaça com unista à nova ordem in staurada com o recente golpe do E stado
N ovo.
N este sentido, os M onges B arbudos foram reprim idos tam bém devido ao contexto no
qual estavam inseridos, sendo u tilizados politicam ente para dar estabilidade ao regim e iniciado
em 10 de novem bro de 1937. E nfim , a análise da construção do outro nas páginas dos jo rn a is
contribui para m elh o r com preenderm os os m otivos, reais ou im aginários, que contribuíram
255
A lg u m a s n o ta s s o b re o m o v im e n to so c io rre lig io so dos M o n g e s B a rb u d o s .
O m ovim ento dos M onges B arbudos ocorreu entre 1935 e 1938 no m unicípio de
Soledade (RS). Sua origem está associada ao m onge João M aria, o qual teria estado na
localidade e in struído a nova religião. R eunindo um significativo núm ero de m em bros o grupo
despertou a atenção da com unidade local que recorreram ao uso da força para reprim i-los.
C atarina à espera do retorno do santo m onge, que ocorreria na sem ana santa daquele ano. A
religiosa. Inseridos num contexto político com plexo foram acusados de com unistas, fato que
contribuiu para legitim ar a ação repressiva orquestrada pelo E stado. O s M onges B arbudos
foram reprim idos pelo contexto no qual estavam inseridos. Foram u tilizados politicam ente para
A im prensa com o fonte de pesquisa, assim com o as dem ais fontes u tilizadas nas
pesquisas históricas, não é inocente, com o bem lem brou Jacques Le G o ff (1996, p. 110),
T ânia R egina de L uca (2008) d estacou que até m eados da década de 1970 eram poucos
os trabalhos que utilizavam jo rn a is com o fontes para a pesquisa histórica. Segundo a autora,
hipóteses, iniciado pelos Annales (REIS, 2000), tem o s a inclusão do jo rn al com o fonte para as
pesquisas históricas. D estacam os seu u so no cam po da histó ria política, principalm ente a partir
do trabalho intitulado Por uma história Política, sob organização de R ené R em ond (2003).
256
Segundo C láudio P ereira E lm ir (1995), a consulta a um periódico não pode ser feita
sem u m a análise criteriosa. F az-se necessário o cotejam ento com outras fontes e docum entos,
não estudando a fonte im pressa de m aneira iso la d a .161 P ara D erocina C am pos Sosa, “ aquilo
que aparece escrito deve ser lido em dois tem pos: um objetivo que interpreta o texto escrito
efetivam ente e outro subjetivo que precisa entender aquilo que não aparece escrito, m as é
A autora destaca tam bém que “ o estudo da im prensa necessita do reconhecim ento do
que está em to rno dela, já que essa m esm a im prensa está invariavelm ente atrelada ao seu tem po
histó rico ” (2007, p. 12). A creditam os que esta percepção contribui para com preenderm os a
repressão im posta aos cam poneses de Soledade e as notícias publicadas nos jo rn a is sobre a
N esse sentido, é im portante relem brar que cabe ao historiador realizar “os
questionam entos às fontes para extrair um significado, retirando de sua linguagem os elem entos
capazes de representarem determ inado m om ento h istórico” (SO SA , 2007, p. 16; 19).
C om o alerta M árcia Janete E spig, “ a im prensa não info rm a a história, sim plesm ente, e
não basta ao pesquisador retirar de suas páginas os dados referentes ao período desejado para
que possa considerar seu trabalho concluído” . (1998, p. 274), necessitam os realizar u m a leitura
interna, m eticulosa e exaustiva dialogando com outros docum entos e com o contexto no qual
N esse sentido faz-se necessário atentar para o conceito de representação, o qual nos
conduz ao m odo com o u m a “ determ inada realidade social é construída, pensada, dada a ler” .
(C H A R T IE R , 1990, p.17). Som ando-se a esta orientação conceitual tem os o im aginário, com
sociedades legitim am -se, criam um a identidade, elaboram m odelos form adores para seus
N esse sentido,
161 Neste artigo, devido ao espaço e objetivos propostos, estamos analisando especificamente as notícias
publicadas referentes aos Monges Barbudos nos jornais impressos, porém, na tese de doutorado (FILATOW,
2015) realizamos o debate incluindo outras fontes documentais, como processos crimes, documentos policiais,
documentos eclesiásticos e documentos da administração pública de Soledade.
257
C om o salientou E SPIG , “ a im prensa deve (...) ser pensada com o um a representação
construída sobre o real, sobre o qual incidem determ inados filtros deform adores que cabe ao
histo riad o r determ inar e equacionar em suas análises” (1998, p. 276). E ste é o caso dos M onges
foi apresentada com o um a ação fanática que am eaçaria a própria ordem nacional, sendo
u tilização da im prensa com o fonte de pesquisa para o estudo dos M onges B arbudos.
O s M o n g es B a rb u d o s n a im p re n s a : a a m e a ç a p o lític a .
com preenderm os os m otivos, reais ou im aginários, que contribuíram para a repressão im posta
aos M onges B arbudos. N a im prensa localizam os entrevistas, relatos e dados sobre os ocorridos
em Soledade. Segundo o jo rn a l C orreio do Povo, era “um grupo de fanáticos, superior a m il,
entrevista concedida após m issão de reconhecim ento no local, assim os descreveu: “barbas
com pridas, cabelos grandes, com grande devoção religiosa, naturalm ente deturpada. E sse
27/04/1938, p. 14)
publicação de um a carta enviada de Sobradinho. N e sta tem os: “ m ais um a vez chega ao nosso
conhecim ento um exem plo do fanatism o gerado pela credulidade de nossa população cabocla
no m ato e no cam po, ainda hoje absolutam ente esquecida no que tange à escola e à educação” .
258
27/04/1938, p. 2)
ju stifica tiv a utilizada para explicar a ocorrência de diferentes m ovim entos sociais estaria
atrelada à ausência do E stado. E ssa seria expressa na deficiente assistência social, restrito
acesso à educação, no precário serviço de saúde pública, na falta de am paro religioso etc. Tal
desses grupos sociais, não considerando suas crenças populares e religiosas com o expressão
A carta oferece contribuições sobre alguns fatos do conflito. “H á algum tem po, tem -se
ouvido rum ores e notícias m ais sérias sobre a aparição de um “ santo” ou “ m onge” na região
não m uito tran q u ila (...)” provavelm ente referindo-se aos conflitos políticos que agitavam o
construção de saberes e de inform ações. P ara G inzburg, “ o que caracteriza esse saber é a
capacidade de, a partir de dados aparentem ente negligenciáveis, rem ontar a um a realidade
M onges B arbudos: “ desta cidade seguiu, para norm alizar a situação, um a força de quarenta
tem o s um a página contendo fotografias dos m onges presos e um a entrevista concedida pelo
capitão R io g ran d in o da C osta e S ilva relatando sua m issão em Soledade. H á dados sobre a
rem essa das tropas, im pressões do capitão sobre os M onges B arbudos, o trab alh o de
im agens, o que nom eam os de “ a fonte dentro da fonte” , ou seja, tem os acesso a raras im agens
162 Essa forma interpretativa foi rebatida por WITTER (2001 e 2007). Segundo a autora, o curandeirismo não
ocupava um espaço deixado pelo branco, mas sim ocupava o espaço que sempre ocupou.
259
m ovim ento, o tratam ento e a hum ilhação a que foram expostos. C ontribui para a singularidade
desta fonte visual é sua inexistência nas dem ais fontes consultadas. A través da im prensa
tom am os conhecim ento de que “no m esm o dia em que se dera o fato, (...), o governo foi
reportagem tem os que o interventor federal C ordeiro de Farias contribuiu para a ação: “ a
P refeitu ra de S obradinho, po r interm édio do respectivo prefeito m unicipal, sr. Santo Carniel,
tam bém cooperou bastante no sentido de facilitar a ação do delegado auxiliar de acordo com
C osta e Silva relatou ao capitão A urelio Pi (chefe de polícia) e ao interventor o que observou
M onges B arbudos. A pós o velório prolongado e o enterro de T ácio Fiúza, um dos líderes do
m ovim ento religioso, os “ denom inados fanáticos” dispersaram -se p ara diversas regiões. E stes
escolta com o delegado de polícia de Soledade. N esse encontro ocorreu um novo conflito,
Para evitar que possam abandonar suas habitações e fazer reuniões em outros pontos
o cap. José Rodrigues da Silva vai espalhando pela região destacamentos montados
ou motorizados, que terão a vigilância de toda a zona, no sentido de não permitir
mesmo que, amanhã ou depois, se possam repetir as reuniões em outros pontos
diferentes. (...) Para maior eficácia desta ação, ainda vai dirigir o serviço policial nos
dois municípios, dispondo para isso não só dos destacamentos locais como também
dos reforços que foram enviados de Santa Maria e de Passo Fundo. (CORREIO DO
POVO, 27/04/1938, p. 14)
H á inform ações de que alguns M onges B arbudos foram trazidos para P orto A legre.
“ C hegou, preso, ontem , m ais um M onge” (...) “ (...) detidos alguns chefes, e enviados para esta
Frei C lem ente era pároco de Soledade e fez u m a incursão ao reduto dos M onges
B arbudos a pedido do capitão chefe de polícia. V indo a P orto A legre relatar suas im pressões
para o capitão A urelio P y e para C oelho de Souza, então secretário da E ducação, concedeu um a
entrevista na qual tem os seu relato sobre os M onges B arbudos. P odem os id en tificar o m edo de
um novo C anudos, “ dir-se-ia algum novo A ntônio C onselheiro a reu n ir b andos arm ados e
alucinados, a fim de oferecer resistência à ação legal de repressão e disciplina” . D eclarou existir
260
abusos de poder naquela região: “ essas autoridades m unicipais queriam fazer u m a farra, dando
ensejo aos perseguidores daquela gente sim ples, (...) para saqueá-la, espancá-la e m assacrá-la
com o até aqui tinha acontecido” . C om plem entando disse que “ a força arm ada já estava pronta
em Soledade para serem recom eçadas as m esm as atrocidades de outrora” . Sobre os m onges
pesava a acusação de serem com unistas. Sobre isso o frei declarou que “ os m onges da colônia
das T u n as eram acusados de com unism o, saques, im oralidade, aversão ao trabalho e não
pagam ento de im postos” . Q uanto ao com unism o disse “não há vestígio algum que a
fundam ente. (...) proclam am obediência absoluta às leis do B rasil e aos princípios gerais da
A p o n ta m e n to s fin a is.
P odem os identificar a presença das questões políticas que vigoravam naquele período,
o contexto político nacional. A ssim , acreditam os te r dem onstram os ser possível id en tificar nas
de pessoas desprovidas de cultura. V isões que contribuem para legitim ar a repressão que foi
im posta aos cam poneses na Sem ana Santa de 1938 e nos m eses que se seguiram , com a
p roibição e caça aos rem anescentes do m ovim ento que m antinham sua fé na figura
L o c a is de p e sq u isa .
F o n te s p e sq u isa d a s.
C O R R E IO D O PO V O (1934-1938).
D IÁ R IO D E N O T ÍC IA S (1934-1938).
261
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263
NOVAS QUESTÕES E PERSPECTIVAS À DECOLONIALDADE: AS
INFLUÊNCIAS DOS ESTUDOS SUBALTERNOS E DA HISTÓRIA
CULTURAL
F E L IP E C R O M A C K D E B A R R O S C O R R E IA 163
1. IN T R O D U Ç Ã O
p ráticas coloniais de opressão de gênero, raça e classe nos dias atuais. A s influências p ó s-
form ação do grupo, porém , a b u sca por um lócus enunciativo próprio da A m érica L atina
sentido, a H istória Social e da C ultural de Thom pson, D avis, G eertz, D arnton, C hartier e Barth,
em diálogo com os estudos subalternos de Spivak, C hakrabarty e G uha, nos possibilitam pensar
em form as novas de nos relacionar com o m undo - ou novas lentes para form as antigas de se
nas p ráticas quilom bolas, capazes de im p o r questões latentes às epistem ologias decoloniais.
D esse m odo, o objetivo deste texto é traçar, a partir das influências dos estudos subalternos e
B allestrin im põe questões ao grupo que ainda não parecem claras quando analisam os as
epistem ologias decoloniais. U m a destas questões, e a que será debatida e desenvolvida neste
163Graduado em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), mestrando em
História Social e da Cultural pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO) e bolsista
C A PES.
264
abandonem os as contribuições do pensam ento ocidental/europeu/ilum inista - especialm ente,
podem lap id ar e aprim orar nossas lentes analíticas do Sul G lobal para nossa realidade
am efricana é a questão central a ser debatida. A lém disso, as form as pelas quais estas teo rias e
p ráticas serão utilizadas, a fim de não reatualizar a colonialidade do saber, ou seja, esta
g eo política do conhecim ento que p rioriza e concede m aior im portância as teorias vindas da
B allestrin de que ao separarm os o N orte do Sul, ao não lerm os e escreverm os confluindo com
estes outros saberes num a escrita decolonial apenas recriam os um novo “ saber m elhor” , está
de acordo com a ideia, ainda em estado de g erm inação neste texto, de que após duas décadas
com saberes que potencializem o d esm antelam ento da colonialidade/m odernidade, seja estes
tan to do N orte com o do Sul global, está cada vez m ais aceita e frequente nos estudos
2. A S O R IG E N S D A R E S IS T Ê N C IA E R E -V IV Ê N C IA D E C O L O N IA L
saberes e povos, m as tam bém às práticas cotidianas de resistência e re-v iv ên cia que
perm anecem organizando relações sociais, políticas e econôm icas dissem elhantes ao m undo
capitalista ocidental, são as b ases das epistem ologias decoloniais. A origem da decolonialidade
início de suas práticas de desm antelam ento e desprendim ento das form as coloniais de m undo
estão presentes, para W alter M ignolo, desde a colonização das A m éricas. A o pontuarm os a
existência da colonialidade, ou seja esta inserção europeia no que se cham ou posteriorm ente
de A m éricas com p ráticas violentas que se sedim entaram até hoje em instituição, práticas
sociais, na p o lítica e na econom ia, na qual a A m érica L atin a foi o epicentro deste projeto de
D e form a m ais específica, para M ignolo (2010), é possível p erceb er a m arca decolonial
intérprete indígena no projeto de colonização do P eru que produziu o prim eiro docum ento
265
híbrido conhecido, sua crônica, a qual excedia suas perspectivas pessoais ao abordar
palavras de G iane L essa “inaugurou um gênero híbrido que, acim a de tudo, representou um ato
de resistência e subversão à ordem colonial que se estabelecia.” (LESSA , 2009, p. 1). Sua
crônica intitulada “N ueva C orônica y B u en G obieno” com 1200 páginas foi e nviada ao Rei
F elipe III, a fim de forn ecer u m a outra versão da “ conquista” hispânica, colocando em destaque
e desigualdades do colonialism o.
M odernidade/C olonialidade. N esse sentido, ao tratar das práticas decoloniais, M ignolo elabora
o conceito de desprendim ento, “ o giro decolonial é um projeto de desprendim ento epistêm ico
na esfera do social” (M IG N O L O , 2010, p. 15). E ste corte das am arras proposto pelo autor, que
saber e ser.
A ssim , para M ignolo, o p rim eiro passo para aprender e fazer ru ir o sistem a-m undo que
posteriorm ente, re-aprender. A o p ensar em desaprender, rem ete-nos ao desprendim ento dos
d esum anizar indivíduos, serem os capazes de re-ap ren d er com outras totalidades não universais,
epistem ologias, políticas, éticas, cosm ogonias e cosm ologias apenas será possível po r um
desprendim ento, portanto, não significa negar e ig norar o que não se pode negar, m as saber
39, trad u ção m inha.). D iante disso, para M ignolo - e, possivelm ente, um a resposta à B allestrin
hegem ônica, capaz de p o tencializar a escuta e o aprendizado com outras epistem ologias
266
apagadas, negadas e relegadas ao ostracism o por um a história lin ear e eurocentrada. L uciana
B allestrin com plem enta ao detalhar o m ovim ento não in iciad o pelo grupo
3. P O S S ÍV E IS A P R O P R IA Ç Õ E S D A H IS T Ó R IA S O C IA L E D A C U L T U R A
A H istó ria Social inglesa e a H istória C ultural francesa possuem a tarefa essencial de
to rn ar possível as descrições m inuciosas da H istória, a partir da dim ensão sim bólica de cada
ação. A o contrário de b u scar generalizações e form as de pensar universais, estes cam pos, que
m alhas” de E dw ard P alm er Thom pson, ao passo que nos perm item tam bém enxergar os
diálogo com a antropologia, a H istória Social e a H istória C ultural colocam em destaque não
outros carneiros em outros vales — e assim incluí-las no registro de consultas sobre o que o
hom em falou” (G E E R T Z , 1978, p. 21). D esse m odo, por um viés decolonial, não devem os
b u scar a teoria eurocentrada para aplicar na A m érica L atina, pois estaríam os reproduzindo a
m esm a geopolítica eurocentrada do conhecim ento. T am bém não é possível negar a existência
deste cam po de saber e suas produções relevantes para a h istória “vinda de b aix o ” . D evem os,
por outro lado, nos apropriarm os das leituras e práticas deste cam po, em v irtude de desm antelar
e denunciar a colonialidade. A ssim , perm itindo-nos encontrar form as de viver, resistir, nos
267
relacio n ar e organizar que o sistem a-m undo m oderno/colonial - o qual não devem os esquecer
os locais em que se estabeleceram seus laboratórios n ecropolíticos,- ainda procura exterm inar.
conecta às preposições de N atalie D avis e R o b ert D arnton, ao m ostrar que o estím ulo
para problem as antigos, enfatizando o que foi deixado de lado po r um a historiografia que não
certam ente, um dos artifícios que a decolonialidade deve trabalhar, m esm o que não centrado
som ente nas disputas de classes, com o o fez T hom pson, po r suas b ases m arxistas:
p artir de Thom pson, que a universidade e as ciências ocidentais não são as únicas produtoras
de saber, m esm o que a todo m om ento sejam colocadas, pela colonialidade do saber, neste
poder” (H A R A W A Y , 2005, p.11). O conhecim ento, a erudição e a ciência estão diretam ente
ligados ao p o d er e à autoridade racial epistêm ica. C hakrabarty pontuará que a universidade não
pode ser o lu g ar de surgim ento de u m a pensam ento contra-hegem ônico, pois será im possível
desvirtuar desta ideia im portada de E uropa “E nquanto continuar operando dentro do discurso
p.124). A h istória nada m ais é do que um a disciplina dentro do sistem a de conhecim ento que
se b aseia tam bém no E stado-nação. A ssim com o cita A lthusser no início de seu texto, podem os
com preender o porquê para o autor a universidade faz parte das ferram entas que perm item os
sobre as abadias e desgovernos, a fim de lapidarm os nossas com preensões sobre as resistências
jo v en s e suas práticas na sociedade do século X V I até o século XIX. A experiência das abadias,
perpetuava valores e provocava grandes abalos à crítica política da época. V isto que a
268
experiência é esta inter-relação do ser social e u m a resposta em ocional ou m ental espontânea
é v ista tam bém em O grande massacre de gatos (1986) de D arnton, cuja tese principal do autor
pode ser sintetizada pela existência na vida com um de estratégias e inteligibilidade, m esm o que
sob a ótica da desordem . T odavia, esta escala reduzida dos pertencim entos sociais, valores e
sím bolos que nos perm item enxergar as estratégias e interações deve, para G inzburg (2007),
representações, costum es e valores que excedam o ocidente capitalista. A dem ais, c o m o nos
m ostra B arth (2005) o resultado das inter-relações do ser social, ou seja, o resultado das
experiências, é a cultura. P orém , “ A cultura está sem pre em fluxo e em m udança, m as tam bém
sem pre sujeita a form as de controle.” (B A R TH , 2005, p. 22). D e outro m odo, as influências da
H istória Social e da cultura nos perm item aperfeiçoar nossas análises sobre os apagam entos,
controles e silenciam entos culturais, bases da colonialidade. Possivelm ente, e esta é um a das
prem issas da decolonialidade, a prática de relem b rar outras cosm opercepções de m undo e de
d enunciar as desigualdades e hierarquias que continuam a d esum anizar e m atar determ inados
4. IN F L U Ê N C IA S D O S E S T U D O S S U B A L T E R N O S N A D E C O L O N IA L ID A D E E
SU A S R E L E IT U R A S
O Subaltern Studies foi um grupo criado na década de 1970, no sul asiático. F orm ado
por diversos intelectuais, reuniu as teses de estudos da teoria e filosofia política de P artha
C hakrabarty Spivak, da h istória do cam pesinato de Shahid A m in, dos cam poneses na índia do
b ritânico de G uatam B hadra. P roveniente do m arxism o indiano e im erso nas teorias pós-
Said e do encontro colonial de Talal A ssad, a form ação do grupo ocorre no interior do C entro
reunindo-se em torn o de um a revista, o Subaltern Studies, de ten d ên cia m arxista, liderados por
269
in d ian a analisando a insurgência de cam poneses e buscava “reescreve r o desenvolvim ento da
consciência da nação indiana” (SPIV A K , 2010, p. 61). P ara eles, a p rodução da subalternidade
subalterno de A ntonio G ram sci foi apropriado pelo grupo, ao criticar os ideais pós-
A ssim , com o um a posição de crítica que surge dentro da elite, trouxeram um a grande revisão
abordaram o colonialism o, suas resistências e suas relações de poder. D essa form a, tinham o
m arxista da Índia m oderna, por m eio da recuperação da “voz” subalterna que se aproxim a da
“H istória vista de b aix o ” , criticando a hegem onia de um a h istória capitalista global que não
realocando o sujeito que fala contra um a análise eurocentrada. N esse sentido, a experiência
hierarquias que com põe a situação colonial. O grupo enxerga a(o) subalterna(o) com o atriz/ator
N este ponto que os intelectuais que com põe este grupo se divergem de G ram sci, pois m esm o
utilizan d o seu term o, pensam na autonom ia dos subalternos, algo que para G ram sci não existia.
T odavia, não devem os b u scar u m a unid ad e no grupo inexistente, visto que a heterogeneidade
exem plo, com exceção do em blem ático caso de C handra analisado por R anajit G uha, o
prim eiro volum e dos estudos subalternos não possui elaborações sobre as questões de gênero
e suas intersecções com a subalternidade, com o anos depois se enxerga com os escritos de
hum anism o de F oucalt que enxerga o poder apenas a partir de suas práticas, negligenciando o
posição social, é vista no texto de G uha na resistência do B agdís (casta m ais baixa) às fortes
consequências das transgressões sexuais fem ininas, com o no caso de C handra. E sta
som atopolítica da vigilância e opressão sobre o corpo fem inino que C handra reage, com prova
270
as opressões do regim e colonial na sociedade rural indiana em m eados do século X IX e
passado, visto a fragm entação da H istória causada pela experiência subalterna. E ste registro de
vozes anteriorm ente apagadas, com o no caso de C handra, p erm ite-nos questionar o que fazer
ao olhar para outros povos e culturas. Sob u m a ótica decolonial, influenciada diretam ente pelos
suas partes m ais em pobrecidas da Índia, não se deve olhar com um pensam ento fem inista
ocidental branco, exportando um a fo rm a de com bate e luta fem inina. P elo contrário, devem os
com preender seus valores, sím bolos e representações, visto que para G uha (1987) olhar os
subalternos nas epistem ologias decoloniais são as que partem da restauração da condição de
ser histórico das tribos, castas e outros grupos subalternizados. A o retirar a passividade
desm antelam ento do sistem a m undo colonial/m oderno. A s histórias subalternas em contextos
diferentes podem ser apenas histórias, m as saber colocá-las em seus contextos de assim etrias
de p o d er e dom ínios coloniais nos perm item restaurar seus poderes. P ara isso, não devem os
descartar as ideias que não provém de um lócus de enunciação da A m érica L atina por suas
com preender que nas nossas relações com estas experiências que nos oprim em , tam bém as
trazer estas ideais para nossa realidade am efricana a p artir de estratégias e ferram entas com
intenções decoloniais.
5. P R Á T IC A S IN S U R G E N T E S
271
A s ideias de H araw ay estão em constante diálogo com o cosm opolitism o insurgente de
B o aventura de Souza Santos, o qual parte de u m a ecologia de saberes que devem fertilizar a
im aginação. N ão à toa, ao discursar sobre esta transição p aradigm ática - a qual poderia não ser
cham ada de transição, m as de quebra, visto que a tran sição evoca o conceito lin ear de
substituição po r a lg o - Santos propõe três ferram entas estratégicas. A prim eira é a apropriação
laços que pensem além , com o as com unidades de p articipação livre e total, sem hierarquias e
dicotom ias e com um a dim ensão educativa. U m exem plo de zonas liberadas são os quilom bos,
os quais para B eatriz N ascim en to “não significa escravo fugido. Q uilom bo quer dizer reunião
m o b ilizar grupos relegados ao estado periférico por raízes culturais, histórias e de experiências
ancestrais que por caracterizar um a prática contra-colonial, com o denom ina N ego B ispo, capaz
legalizados, com o “essa rede de associações, irm andades, confrarias, clubes, grêm ios, terreiros,
últim o, possivelm ente o m ais próxim o das ideias de quebra de Jota M o m b aça propostas em seu
livro Não vão nos matar agora (2018), Santos dialoga sobre as ruínas sem entes, nas suas
palavras:
Quando tudo parece estar em ruína, não há outra alternativa senão procurar nas ruínas,
não só a memória do que já foi melhor, como sobretudo a desidentificação com o que
no desenho das fundações contribuiu para a fragilidade da edificação. (SANTOS,
2021, p. 257)
E stes sím bolos, resistências, cosm ologias e cosm ogonias dos subalternizados se
sem entes e apropriações contra-hegem ônicas fazem parte do que Santos cham ou de Sociologia
assim com o D ipesh C hakrabarty acentua que devem os q uestionar “ m ediante quais processos
históricos - sua “razão ” , que nem sem pre foi evidente para todos, tem sido apresentada de
272
m aneira que se vê com o “ obvia” para além dos terren o s em que se originou”
(C H A K R A B A R T Y , 2020, p.124). E perm item -nos explorar outras form as de nos relacionar
com o m undo, po r outros saberes organizações políticas, sociais e econôm icas. “ A alternativa
epistem ologia.” (H A R A W A Y , 2005, p. 22) P rovincializar a E uropa, praticar quilom bism os,
ressignificar discursos hegem ônicos com o A yala são form as de d esm antelar a colonialidade,
m esm o que por m eio de influências da H istória S ocial e da C ultura e dos E studos Subalternos.
P o r fim , não é necessário d itar o que estar po r vir, m uito m enos desacreditar em nossas ações,
de desprenderm os da geopolítica do conhecim ento e fazer ruir esta form a de m undo hierárquica
e desigual.
B IB L IO G R A F IA
273
G U H A , R anajit. La muerte de Chandra. T radução de F austo José Trejo. “ C handra's D eath ” .
Subaltern Studies. Vol. V. O xford, D elhi: O xford U niversity Press, 1987, p. 135-165.
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2018 D isponível em:
https://w w w .ucs.br/ucs/extensao/agenda/eventos/vsiget/portugues/anais/arquivos/nueva_coro
nica_y_buen_gobierno_de_felipe_guam an_pom a_de_ayala_um _novo_genero.pdf. A cessado
em: 21/06/2022
274
COLUNAS EM MARCHA PELO MATO GROSSO: APROXIMAÇÕES
ENTRE A RETIRADA DA LAGUNA (1867) E A COLUNA MIGUEL
COSTA - PRESTES (1925)
F E R N A N D O D O S A N JO S S O U Z A 164
1 C o n s id e ra ç õ e s in ic ia is
E ste artigo focaliza a R etirada da L aguna (1867) e a passagem da C oluna M iguel C osta
- P restes (1925), cam panhas bélicas desenvolvidas na porção sul do A ntigo E stad o de M ato
G rosso, região correspondente ao E stad o de M ato G rosso do Sul, a ser especificada neste
dezem bro de 1864, as tro p as do Paraguai invadiram e ocuparam parte do território brasileiro,
atualm ente equivalente ao E stado de M ato G rosso do Sul. P ara desalojá-los, o governo im perial
assim denom inada pela existência de um a lagoa em sua área, distante cerca de v in te e poucos
quilôm etros da fronteira. A s tro p as im periais buscavam encontrar gado bovino para
alim entação. E ncontraram apenas o lugar arrasado e devastado. C om a falta de m antim entos e
35 dias de m archa, alcançavam o P o rto C anuto, no lado esquerdo do rio A quidauana. D urante
a operação m ilitar, estam pada na F igura 1, percorreram , desde O uro Preto, origem do
m ovim ento das tro p as m ineiras, 3.927 quilôm etros, segundo G uim arães (1999, p. 194). O
percurso encerrou-se dois anos e dois m eses depois de ser iniciado, não com putando o
T enentism o ou M ovim ento T enentista são denom inações p ara um conjunto de levantes
ocorridos na P rim eira R epública (1889-1930), liderados por oficiais de nível interm ediário,
164 Doutor em História. Militar da Reserva Remunerada, prestando tarefa por tempo certo no Comando da 4a
Brigada de Cavalaria Mecanizada (Dourados/MS).
275
Os m ilitares revoltosos, unidos com setores dissidentes da oligarquia dom inante,
prom overam levantes em São P aulo e R io G rande do Sul. U nificados em torn o do objetivo de
Is*0 PAULO
Campinas
SáaPau
UniãolAnia
Legenda
Pontos
Hidrografia Grosso revolucionário
Limite Internacional
Fonte: Acervo da Diretona do Patnmônio Fonte: Prestes (1991, p. 186). Elaborado por Angelo Franco
Histórico e Cultural do Exército, autoria de do N. Ribeiro (2018)
Valdemar Franciscehtti (2019)
A fração paulista, duram ente reprim ida, m archou em direção ao E stado de M ato G rosso,
B rig ad a gaúcha, após diversas derrotas, cam inhou rum o ao N orte, com andada por L uis C arlos
R evolucionária, tam bém conhecida com o C oluna M iguel C osta - Prestes. E m m archa, a coluna
A vanguarda da C oluna M iguel C osta - Prestes, com andada pelo coronel João A lberto
276
da Serra de M aracaju, quase central na região, e seguiu ao final com u m a ligeira inflexão para
leste, até o ingresso no E stado de G oiás, após 53 dias de m archa, em 23 de ju n h o , pela serra de
Santa M arta, na região do B aús, ao norte do atual m unicípio de C osta R ica, conform e
visualizados na Figura 2.
P restes teria percorrido cerca de 25.000 quilôm etros. C om putando-se a data da internação em
território boliviano, 3 de fevereiro de 1927, e a saída de São P aulo pela C oluna P aulista rum o
ao M ato G rosso, em 27 de ju lh o de 1924, a coluna esteve po r dois anos e seis m eses varando
os sertões brasileiros. O D estacam ento com andado por Siqueira C am pos, com 65 com batentes,
P rovíncia de M ato G rosso na cidade de U beraba, em ju lh o de 1866, com a reunião das tropas
vindas de M inas G erais, e utiliza o adjetivo expedicionária, qualificando a tropa que m archaria
para a C am panha de M ato G rosso. A dotou-se neste trabalho, em consequência, a denom inação
coluna para as duas tropas que m archaram pelo território m ato-grossense, diferenciando-as,
porém , pelos adjetivos expedicionária e revolucionária.
tenente da C om issão de E ngenheiros. Sobre a passagem da C oluna M iguel C osta - Prestes pelo
território do M ato G rosso, os livros de T ávora, M oreira L im a e P restes serviram de fontes para
as análises realizadas. P o r serem obras escritas por testem unhas das cam panhas, adquirem o
fundam entação teórica na análise das obras, as observações de N o rá (1993), B ourdieu (2006),
P o llak (1989) e R icouer (2007) foram im portantes. E las alertam ao historiador sobre os
m onum entos com o lugares de m em ória, a seleção nos relatos autobiográficos de certos
epopeias bélicas, são apresentados neste texto os acontecim entos considerados im b ricad o s em
am bas: a existência de m ulheres entre os com batentes; a conduta com os canhões conduzidos
nas C olunas; os principais com bates realizados; o em prego de cavalos com o m eio de
277
2 A s m u lh e re s em m a r c h a n a s C o lu n a s: e n fe rm e ira s , c o m b a te n te s e a v e n tu r e ir a s
T aunay (1960, p. 136). A pós a saída de U beraba, m ais de duzentas m ulheres acom panharam
T aunay (2006, p. 108 e 133), ela cuidava, com o enferm eira, dos inúm eros feridos no com bate
criança sendo conduzida pelas m ãos, no M o num ento aos H eróis de L aguna e D ourados, erigido
de trin ta seguiam as tro p as paulistas e vinte as gaúchas, segundo P restes (1991, p. 179). E las
podem ser consideradas com o vivandeiras e aventureiras. A s vivandeiras, nom e adotado por
M oreira Lim a, incum bido de redigir o diário dos revolucionários, são aquelas que m archavam
Ai! Jesus!, m u lh er espevitada; Onça, dançarina de m axixe; Cara de Macaca, confundida com
vaqueiros por u sa r roupas de couro; Hermínia, loira austríaca, casou-se com um revolucionário
negro; IsabelPisca-Pisca, confundida com a P rincesa Isabel pelos sertanejos m ais incultos;
Chininha, em bora gorda, era u m a andarilha sem igual e m archava m ais rápida que qualquer
soldado; Alzira, linda aos dezoito anos e de b o c a inculta; Albertina, gaúcha, a m ais form osa
das vivandeiras, b ondosa e bela; Tia Maria, acusada de ser feiticeira, invocava os deuses negros
da m acum ba para fech ar os corpos dos soldados da C oluna às balas inim igas. A Santa Rosa
teve um filho, o prim eiro a nascer durante a m archa da coluna e, vinte m inutos depois, m ontou
acam pam ento nas proxim idades de C abeceira do Apa, p o ssivelm ente em 08 de m aio de 1867,
e que acom panharam o D estacam ento após a saída de P onta Porã. A s m ulheres “vestidas de
hom ens, se m isturavam à tropa, com a intenção de continuar na m archa. M an d ei-as logo de
volta a pé para P onta Porã, sob o o lhar m elancólico dos seus adm iradores” (B A R R O S, 1997,
p. 81).
278
P ara L im a (1979, p. 130), tal com o as vivandeiras da G uerra da T ríplice A liança, as
m ulheres acom panhavam a C oluna e prestavam serviços nas enferm arias, preparavam a com ida
dos soldados e algum as eram valentes e com bateram . E las eram adm iradas e queridas pelos
soldados e, de acordo com P restes (1991, p. 201), ainda que pouco num erosas, tam bém
do com portam ento das m ulheres durante as m archas são pertinentes com os ensinam entos de
B ourdieu (2006, p. 184) sobre os relatos autobiográficos, quando se “procurar dar sentido, de
3 A a r tilh a r ia : o s a lv a m e n to e o a b a n d o n o dos c a n h õ es
O C orpo de A rtilharia form ava a artilharia da Força E xped icio n ária de M ato G rosso.
artilheiros prosseguiram em 25 de abril de 1866, de C oxim para M iranda, levando quatro peças
de canhões, segundo T aunay (1960, p. 209). N a R etirada da Laguna, as quatro peças eram
com andadas por João T om ás da C antuária, João B atista M arques da Cruz, N ap o leão A ugusto
M uniz F reire e C esário de A lm eida N obre de G usm ão. Juntas de bois cargueiros tracionavam
carretas, carros m anchegos, e aqueles que serviam de fo rja e galera, para dar carne ao s soldados
(Taunay, 2006, p. 147 e 257). Seguiram -se cenas de sacrifício para preservar os canhões,
id eia de tran sp o rtar para a outra m argem as quatro peças suspensas em um cabo, em vez de
abandoná-las subm ersas em um local profundo do rio. A transposição dos canhões realizou-se
reconhecim ento dos esforços expedicionários na condução dos canhões, constante na O rdem
279
Segundo L im a (1979, p. 125), após a concentração das forças paulistas e gaúchas, na
com ando do capitão H enrique R icardo H oll, com dois canhões de cam panha e um de m ontanha,
A travessia do rio P aran á de G uairá para P o rto A dela no Paraguai foi difícil, “ os canhões
foram guindados por m eio de cabos que num erosos soldados puxavam po r um a ladeira de cento
e tan to s m etros de altura, cheia de pedras, curvas e buracos, e de grande declive” (LIM A , 1979,
p. 126).
foram m uitas vezes arrastados sobre os rios, com “ dificuldades incontáveis” (A M A D O , 1987,
p. 113), exigindo a tração a bois e o auxílio de anim ais da escolta de cavalaria (TÁ V O R A ,
1974, p. 179). C onform e L im a (1979, p. 135), pelos atrasos provocados p ela artilharia, o
general M iguel C osta, com andante da D ivisão R evolucionária, deu ordem para abandonar os
canhões. A ordem foi inicialm ente cum prida pelos capitães com andante da artilharia e do
brasileiro.
de artilharia. O s esforços para conduzirem os canhões evidenciam a união dos com batentes das
duas épocas em to rno do m aterial coletivo. O abandono dos canhões revolucionários foi
trazendo-os para serem escondidos no Brasil. Os expedicionários conduziram seus canhões até
o final da R etirada, pois não adm itiam abandoná-los para servirem com o troféus ao inim igo,
heroísm o daqueles que o conservaram , atestam a v eracidade das observações de P o llak (1989)
desejada por um a sociedade ou um pequeno grupo para ser transm itida. A referência a algo do
280
passado, com um ao grupo, tem a utilidade de m anter a coesão grupal e das instituições
4 O s p rin c ip a is c o m b a te s d a s d u a s C o lu n a s : L a g u n a , B a ie n d ê , N h a n d ip á , P a n c h ita e
C a b e c e ira do A p a
planejou o ataque à Invernada da L aguna, ponto de retorno dos expedicionários, para “ dar aos
paraguaios prova de que não fugia de encontros e com bates” (T A U N A Y , 1960, p. 238).
R ealizad o em 06 de m aio de 1867, o com bate da L aguna levantou o m oral dos soldados e
N o com bate Baiendê, o prim eiro durante o retrocesso, travado em 08 de m aio de 1867,
ainda em solo paraguaio, foi caracterizado com o “ não pouco m ortífero, para am bos os lados”
(T A U N A Y , 1960, p. 239). Taunay (2006) cita o grande esforço para a retirada de um canhão
de um riacho avolum ado pelas chuvas e a algazarra provocada pelas m ulheres ao receberem os
prim eiros tiros, enquanto m archavam tranquilam ente ao lado dos soldados.
A pesar das m ortes nesses dois com bates, o considerado m ais m ortífero e o m ais
im portante da R etirada da L aguna foi o de 11 de m aio de 1867, cham ado Nhandipá, travado
em terras hoje pertencentes ao m unicípio brasileiro de B ela V ista. O m om ento decisivo da luta
nas fileiras brasileiras pelo gado que, aterrorizado pelos tiros, abriu passagem nos quadrados
A o final do com bate, com duração de cerca de quinze m inutos, contaram -se no “terreno
os quadrados form ados pelas tropas brasileiras. A carga da cavalaria foi considerada tem ível,
ao surgirem galopando, provocando “ debaixo das patas dos cavalos, atirados em louca
disparada, o chão trem ia, com baq u e surdo e tem eroso. D everas p arecia um pesadelo ver aquela
nuvem de hom ens verm elhos, fazendo luzir ao sol das grandes e pesadas espadas” . (T A U N A Y ,
1960, p. 241).
N a passagem da C oluna M iguel C osta - P restes pelo SM T, os com bates com bates
281
interm ediária (10 a 16 de m aio), na m archa entre o rio A m am baí e D ourados; e a fase final (17
garantindo o prosseguim ento para o in terior do M ato G rosso. O com bate de 6 de m aio, o m ais
Sacarão (Iguatem i) para P atrim ônio da U nião (A m am baí) e, tam bém , para a Fazenda
cam inhões, utilizados posteriorm ente no transporte, conform e B arros (1997, p. 80). N a versão
N a fase interm ediária realizaram -se os com bates para proteção da flanco guarda, em
P orto D om C arlos, no rio P araná (10 de m aio) e, o decisivo, na região da C abeceira do Apa,
nas proxim idades da atual sede do distrito de C ab eceira de Apa, pertencente ao m unicípio de
P o n ta Porã.
fez a seguinte narração dos com bates na C ab eceira do Apa, ocorridos nos dias 14 e 15 de m aio
de 1925: “ dois regim entos rebeldes (S iqueira C am pos e João A lberto), com cerca de 300
hom ens, atacavam ao am anhecer as posições de Cab. do Apa. E nvolvendo rapidam ente um Pel
p. 246).
P ara receb er o ataque dos revolucionários, o com andante das tropas legalistas ordenou
a construção de trincheiras. N o s com bates, apesar da presença da A rtilharia nas tropas legais,
cavalaria:
282
O general M alan m andou construir um m onum ento na C abeceira do A pa, para
hom enagear a todos que pereceram nos com bates ali realizados e relem brar “ que a m esm a terra
patrícia, generosa e fecunda, acolheu irm ãos divididos em vida por ideais diversos, pelos quais
lutaram e se sacrificaram , reunidos pela m orte no eterno esquecim ento de ódios e paixões.”
(M A L A N , 1926, p. 42).
lugares de m em ória, criados para m an ter as lem branças de um passado, tornado atual algo de
outra era, dando-lhe o sentido de eternidade. O s m onum entos são construídos, ou deixam de
ser erigidos, de acordo com a sociedade que os seleciona, com o sinais de reconhecim ento e de
E ntre as diferenças dos acontecim entos das duas C olunas, as m ais significativas estão
A tro p a dos expedicionários m archava pelo SM T a pé, pois os cavalos, na trav essia do
Pantanal, de C oxim a M iranda, foram acom etidos po r u m a epizootia, ficando a tropa a pé. Sem
os cavalos, a procura de gado para p roporcionar o alim ento era dificultada. E, o E xército
D urante a execução da retirada, no com bate de N handipá, o pouco gado que restava
aprisionado fugiu, ficando a tropa sem o seu principal alim ento. E, para o consum o, foram
sacrificados os bois de tração das carretas, m agros e cansados po r longos trajeto s sem descanso
e alim entação.
À falta de alim entação era acrescentado o frio im piedoso, som ado com a um idade
trazid a pelos fortes tem porais. R eduzidos à roupa do corpo, pois os soldados, p ara a liv ia r o
peso da bagagem que conduziam , atiraram fo ra os pesados capotes que os em baraçam nas lutas,
e queim ados as m alas e barracas, sofriam para acender fogueiras nas noites frias, quando
fogo, à custa de em pilhar m uita lenha verde que ardia quase sem labaredas” (T A U N A Y , 2006,
p. 122).
P ara a C oluna R evolucionária M iguel C osta - P restes não faltaram alim entos e cavalos
durante a passagem pelo SM T. O s potreadores, pequenas patrulhas form adas de cinco a quinze
283
hom ens, arrebanhavam anim ais e alim entos nas fazendas e povoados po r onde passavam , “ a
m arch a pelos cam pos do A m am baí, no sul do E stado de M ato G rosso, era fácil. H avia
M iguel C osta - Prestes, o em prego dos cavalos foi um fato r preponderante, e contribuiu
positivam ente. A ausência desses anim ais, nas tropas brasileiras, im pôs sacrifícios em longas
6 A s tra v e s s ia s de c u rso s de á g u a
das operações realizadas. O s cursos de água são considerados com o obstáculos à progressão
das tropas, podendo servir com o elem ento defensivo de alto valor. P o r isso, as travessias são
A F orça E xped icio n ária ao Sul da P rovíncia de M ato G rosso contava com um a
dos m eios para tran sp o r os rios, estudava rum os da estrada a percorrer, reconhecia itinerários,
os cursos de água, consertava pontes, m elhorava os acessos nas m argens de rios, preparando
ram pas e abrindo cam inhos. C onstruíram , ainda, canoas, pontes e pinguelas. O trabalho era
realizado de m odo precário, pois m uito m aterial ficara abandonado, em V ila das D ores do R io
V erde, na m archa para M ato G rosso, po r falta de anim ais para o transporte.
O s rios N ioaque, C anindé, Santo A ntônio, M iranda, Feio, D esb arran cad o e Apa, na
fronteira, eram os obstáculos m ais im portantes. O itinerário seguido na retirada foi diferente
daquele u sado para o avanço ao P araguai, para evitar a trav essia de três rios volum osos.
284
A travessia do R io M iranda, o ú n ico de vulto a ser transposto durante a retirada,
procedeu-se de m aneira traum ática. O rio estava transbordado, e a tro p a aguardou a b aix a das
águas. Sem as ferram entas e forças para construção de balsas apropriadas, arm as e cartucham e
foram transportados em pelotas, m ontadas com couro bovino, com as quatro pontas levantadas
dim inuiu, iniciou-se a travessia do grosso da tropa. O s hom ens utilizaram o m étodo do cabo
subm erso, form ado com couro trançado. O s petrechos, arm as e cartucham e, assim com o alguns
A o final desse dia, estavam todos reunidos na m argem direita, e prosseguiram na m archa para
N ioaque.
P ara a C oluna M iguel C osta - Prestes, u m a travessia trouxe surpresa aos que a
perseguiam : a trav essia do rio Paraná, em P o rto M endes, quando adentraram no território
paraguaio, após o desem barque em P o rto A dela. A trav essia foi executada de 27 a 29 de abril,
utilizan d o dois navios, com a transposição de “ cerca de 1.000 hom ens, m ais de 600 anim ais de
sela, de carga e de tração, todo o m aterial bélico da D ivisão, inclusive um a B ateria de A rtilharia
desem barque, pela prom essa de atitudes puram ente defensivas e p o sterio r rápida saída dos
quando atravessaram o rio Iguatem i, em P orto L indo, após percorrerem 25 léguas no Paraguai.
A nhanduizinho, L ontra e São Felix), em pregaram -se canoas e a cavalhada passou a nado.
pelos paraguaios, que antecipavam os m ovim entos por serem dotados de boa cavalhada. A
coluna M iguel C osta - P restes, ao percorrer cam inhos po r estradas, j á os encontrava com pontes
e cruzaram a m aioria dos rios no SM T em locais sem proteção das tropas legalistas.
285
7 A s tra n s fo rm a ç õ e s e c o n ô m ica s no S M T d e c o rre n te s d a R e tir a d a d a L a g u n a e d a
p a ssa g e m d a C o lu n a M ig u e l C o s ta - P re s te s
os habitantes, aprisionando fam ílias inteiras, capturaram o gado das fazendas, colheram as
A pós, retiraram -se para o Forte B ela V ista, na m argem esquerda do rio Apa. A ocupação
suprim entos aos expedicionários vinham em com boios de carretas e m uares, das distantes
A incursão b rasileira firm ou o posicionam ento im perial sobre a questão do lim ite no rio
F inalizada a guerra, estabelecida a paz e dem arcado os lim ites, instalou-se o dom ínio
retom ada do com ércio fluvial, a instalação de novas estradas p ara São P aulo e M inas G erais, o
retorno da população e a vinda de novas pessoas, “ atraídos pela excelência das terras, pelo
províncias vizinhas pelos rem anescentes da R etirada da L aguna” (C am pestrini, 2009, p. 212).
Seguiram -se, com o increm ento do povoam ento, a criação de novas com arcas. A s vilas, com o
C orum bá, b eneficiada pela reabertura da navegação livre no rio P araguai, foram reerguidas e
experim entaram “ surpreendente progresso, provocado tam bém pela isenção quase com pleta de
assum iu a dívida, o que retardou o pagam ento. O Paraguai não realizou o pagam ento e acabou
sendo perdoado. E m b o ra com o Im pério e P rovíncia endividados, o novo ciclo de povoam ento
286
e a exploração dos recursos descobertos com o a erva m ate (ilexparaguayensis), perm itiram a
reconstrução da econom ia no SM T.
arm am entos, vestuários e anim ais durante a passagem no SM T. P o r falta de m eios para o
arm azenam ento, e para não dificultar a m obilidade, o gado era abatido para alim entar o grupo
recibos não foram resgatados pelo governo, e a população experim entou am argo prejuízo, m as
O E stad o de M ato G rosso sofreu os m aiores im pactos econôm icos p ela passagem da
C oluna M iguel C osta - Prestes. O s trabalhadores foram m obilizados para com por as tropas
legalistas. A exportação da erva-m ate ficou p aralisada (C orrea, 1925, p. 61), reduzindo os
im postos arrecadados. P ara saldar suas dívidas com os fornecedores, e im pulsionar a econom ia,
o governo contraiu em préstim os com E m p resa M ate L aranjeira (C orrea, 1927, p. 37). O
pagam ento seria pela dedução dos im postos a serem recolhido, durante o contrato de dez anos
político no E stado. O contrato estabeleceu o fracionam ento da área excedente ao arrendam ento
8 C o n s id e ra ç õ e s fin a is
m ulheres nas tropas, os m eses do ano da realização, em bora em épocas distintas e objetivos
distintos. U m a coincidência está relacionada com o rio Apa, lim ite do B rasil com o Paraguai,
entre os m unicípios de B ela V ista e seu conurbado hom ônim o paraguaio: local do início da
Siqueira C am pos. E, enquanto os retirantes buscavam o territó rio pátrio em busca de proteção
287
F igura 3 - M o num ento C em itério dos H eróis F igura 4 - E scom bros do M o num ento ao
- Jardim / M S C om bate da C abeceira do A pa - P onta
Porã/M S
A alim entação, o em prego dos cavalos, assim com o o destino final dos canhões,
M iguel C osta - Prestes, de com parar a m arch a realizada com a da R etirada da Laguna. A
ten tativa de igualarem -se aos expedicionários é v erificad a pelo em prego do term o vivandeira
dos sofrim entos enfrentados durante a longa m arch a pelo in terio r do Brasil.
L aguna, A ntônio João), distritos m unicipais (Taunay, G leba R etirad a da L aguna), escolas, ruas,
m onum entos (com o o C em itério dos H eróis, tom bado com o P atrim ônio H istórico N acional,
m ostrado n a Figura 3), denom inações históricas de organizações m ilitares e com em orações em
eventos cívico-culturais.
A passagem da C oluna M iguel C osta - P restes pelo M ato G rosso e o M ovim ento
T enentista, que a inspirou, foram esquecidos, e são quase desconhecidos pela população. O
esquecim ento é evidenciado pela ausência de m onum entos ou de outras referências na m em ória
O m onum ento da C abeceira do Apa, o ú n ico a rem em orar o com bate com m ais vítim as
envolvidas nas lutas, está descaracterizado, reduzido a escom bros, m ostrados na Figura 4, e o
seu significado é ignorado pela população local, em bora seu idealizador pensara em
D e acordo com a existência dos m onum entos, as lem branças da R etirada da L aguna, de
realização m ais antiga, perm anecem nos lugares de m em ória, em vários m unicípios sul-m ato-
288
grossenses. E a C oluna M iguel C osta - Prestes, m ais recente, está esquecida e, portanto,
A causa da lem brança ou esquecim ento na m em ória coletiva das regiões por onde
defesa do E stado-N ação. Os retirantes serviam à Pátria, defendendo sua integridade territorial.
R e fe rê n c ia s
289
N O R A , Pierre. Entre memória e história : a problem ática dos lugares. Trad. Y ara A un
K houry. Projeto História, São Paulo: PU C -SP. n° 10, p. 7 - 28. dez. 1993.
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290
O APRISIONAMENTO EM RUPTURA: TRAJETÓRIAS NEGRAS DE
LIBERDADE NO RIO DE JANEIRO (1830-1836)
G A B R IE L A V IE R A D O S SA N TO S
U niversidade Federal de Santa M aria
1 IN T R O D U Ç Ã O
hom ens e m ulheres de diferentes etnias africanas no sistem a escravista, m antendo-os anônim os
a vida desses sujeitos e suas origens. C ontudo, atualm ente, abrem -se novas perspectivas
relações, utilizando-se de fontes seriais até então pouco exploradas, com o o caso dos
inventários post-m ortem , processo-crim e, ações de liberdade e m ais recente dos anúncios de
escravos, um a vez que essas fontes são encontradas em m aiores volum es em países das
A m éricas e perm item identificar aspectos, antes desconhecidos, das vidas dos escravizados.
Segundo G w endolyn M idlo H all (2005, p. 29), as inform ações presentes em fontes seriais
dispostas em diversas b ases de dados nos ajudam a reconstruir m em órias dos escravizados e
suas etnias, além de contribuir com os estudos sobre a diáspora africana, de form a que som ente
29 1
os estudos de travessia atlântica não são suficientes. A lém disso, seguindo as críticas de
objetivassem a autodeterm inação desses sujeitos, elas raram ente escaparam ao status de
sofrimento na história, no qual a h istória da Á frica e dos africanos perm aneceu condicionada
ao processo de degradação histórica. C om preende-se que a p artir do enfoque nas ações dos
escravism o e de seu funcionam ento e assim reescrever o processo histórico no qual a vivência
escrava pode ser com preendida para além da esfera econôm ica e do trabalho, m as tam bém
cultural e social desse período, dem onstrando o papel de agente dos escravos no
escravism o detém fato r im portante para a continuidade desses avanços, sendo essencial
co ntribuir com análises com o de J. J. R eis e E duardo Silva (apud C O ST A , A na C aroline R.,
2010) acerca das m otivações para as fugas. A inda que o inconform ism o com as condições de
escravo e a negociação sejam a explicação m ais enfatizadas, M am igonian (2010, p. 43) alerta
para a im portância de descobrir quanto dessa negociação relaciona-se com a b u sca por adaptar
as condições e ritm os de trabalho im postos p ela escravidão com os seus hábitos ancestrais
vividos em Á frica. D esse m odo, o trab alh o a seguir propôs analisar a liberdade advinda dessas
fugas e o perfil dos fugidos com o fo rm a de seguir os contornos apresentados anteriorm ente.
P ara tal, utilizou-se procedim entos quantitativos ao analisar o periódico carioca Correio
Mercantil (RJ)165, publicado sem analm ente entre os anos de 1830-1836 na cidade do R io de
Janeiro, ten do-se selecionado 127 anúncios de escravos fugidos, onde as inform ações m ais
2 AS FU G A S
ganharam novos contornos e cam inhos possíveis. E nquanto as prim eiras interpretações
lim itavam as análises de fuga som ente com o atividade natural, e previsível, fren te as condições
de vio lên cia e roubo da liberdade dos indivíduos escravizados, as m ais recentes passaram a
165 Todas as edições do periódico (1830-1836) podem ser encontradas online na base de dados da
Hemeroteca Digital Brasileira (HDB - http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/).
292
enfatizar o papel ativo e consciente dos escravos que fugiam . C om o dem onstra a historiadora
rem etem a trabalhos com o de C lóvis M o u ra e Suely Q ueiroz, que em bora divergissem em
determ inado ponto, foram m uito significativos para a com preensão das fugas enquanto reações
2020), ao criticar um escravo passivo possibilita dim ensionar a v io lência das relações entre
escravos e senhores de form a que as fugas pudessem a ser entendidas enquanto elem ento
natural de reação devido ao m odelo v iolento desse sistem a, porém , o m esm o ainda
contrapartida, para Q ueiroz ainda que as fugas não fossem atividades planejadas, necessitando
fugas eram “previsíveis” , a autora propunha que a ação das fugas revelavam o caráter
consciente dos sujeitos escravos u m a vez que isso dem onstrava com o os m esm os percebiam
suas realidades e optavam pela fuga em m eio a outras escolhas (Q U E IR O Z , 1977, p. 201 apud
FE R R E IR A , 2020). T anto F erreira quanto M achado em suas form ulações nos perm item
dim ensionar os cam inhos que o entendim ento das fugas receb era ao longo da historiografia,
inicialm ente apenas enquanto im pulso, para um a ação consciente de rebeldia devido as
condições enfrentadas. Porém , em paralelo, ainda que significativas cabe ressaltar com o essas
ideias acabavam po r negar a capacidade de autonom ia dos sujeitos escravos de planejar suas
fugas e de aquirir consciência de suas realidades, u m a vez que o presente trabalho faz o trabalho
inverso ao questionar tais interpretações e propõe com preender os fugidos en q uanto sujeitos
ativos, conscientes de suas realidades e capazes de construir relações e pensam entos que os
perm itisse contornar o aprisionam ento e a v io lên cia escravista. A p artir de criticas com o a de
M aria H elena M ach ad o (1987, p. 146 apud FE R R E IR A , 2020) que propôs a n ecessidade de
estudos profundos e com plexos para entender o papel dos escravizados no processo h istórico e
escravidão, assim perm itindo aos sujeitos escravos de au m en tar suas oportunidades de inserção
na sociedade tal com o lhes era negado. C halhoub, em blem ático ao pro p o r estudos tão
p o ssibilita um m elhor tratam ento das fontes que perm itisse com preender aspectos da
escravidão que não eram vistos, com o a construção de redes e relações entre os escravos,
293
descum prim ento de acordos e com prom issos dos senhores, etc. (M A C H A D O , G. M ., 2010. p.
A liado a isso, a questão das negociações desem penharam papel im portante na vida dos
estratégia por parte dos escravizados p ara conquistar alforrias, garantia de acordos entre
senhores e m elhores condições de vida, m as po r am pliar o caráter das fugas enquanto “ fugas
reivindicatórias” , quando os sujeitos escravos fugiam para co nseguir n egociar suas dem andas
com os senhores. A pesar de não nos debruçarm os sobre as ações de negociação no trabalho
aqui pretendido, salienta-se a im portância de estudos que atentem -se para as viv ên cias dos
hom ens e m ulheres escravizados, pois perm item acessar essas negociações e os seus
desdobram entos na vida dos sujeitos, assim integrando-os ao processo histórico da qual sem pre
deveriam te r feito parte. D ito isso, reforça-se o reconhecim ento das negociações no universo
identificação do perfil dos fugidos anunciados nas fontes, po r isso sendo enfatizado que não há
um questionam ento acerca da integridade das fugas anunciadas e tão pouco das negociações
que existiam nesse período, m as que nosso enfoque se dá na liberdade, em especial na hipótese
de u m a liberdade “ provisória” .
3 A N Ú N C IO S D E E S C R A V O S F U G ID O S
P ara esse estudo foram coletados 127 anúncios das 194 inserções contidas nas páginas
em bora o periódico se estenda até o ano de 1836 só foram encontrados anúncios até o ano de
1834. A creditam os que devido ao fato de nem to d o s os núm eros do perió d ico -fo n te estarem
disponíveis no acervo digital da H em eroteca B rasileira, seja porque estavam m uito danificados
para passar pelo processo de m icro-film agem ou po r não se ter acesso aos m esm os, que as
ocorrências de fuga não puderam ser encontradas nas edições de 1835 e 1836. A o a c essa r o
p eriódico online é possível v isualizar que não se encontram n enhum a edição do periódico no
ano de 1835 e que de 1836 se tem apenas sete edições, enquanto para o ano de 1834 apenas
u m a edição. M as po r m ais com plicado que seja trab alh ar com tais brechas, essas fontes não
perdem sua im portância, pelo contrário, requerem cada vez m ais cuidado e atenção. D ito isso,
entre todos os anúncios coletados 7 acabaram sendo excluídos da análise por se tratar de
ocorrências repetidas ao longo do tem po, m as que estiveram presentes nos ficham entos.
294
N osso prim eiro enfoque se deu na inform ação m ais recorrente nos anúncios de fugas:
lacunas nas inform ações anunciadas, com o é o caso das idades dos fugidos que tendem a
aparecer por m eio de estim ativas, entre 14 e 15 anos, a partir do sexo dos anunciados é possível
acessar determ inados aspectos de suas vid as em que o gênero causava algum a influência. A
Sexo N° %
F em inino 25 17,73%
E m b o ra a recorrência m asculina seja esm agadora quanto a fem inina, isso não nos
im pede de analisar e construir hipóteses quanto as suas realidades. Sabem os que em grande
m ed id a eram as m ulheres que ficavam responsáveis pelas tarefas dom ésticas, recolhidas m u itas
vezes ao am biente da casa, o que dificultava as suas oportunidades de fugas, m as tam bém
garantiam m aio r acesso às negociações com os senhores. E m contrapartida os hom ens em seus
ofícios de sapateiro, pedreiro, cozinheiro e etc, tinham m aior acesso à cidade, assim com
m aiores chances de fugas. T am bém por isso que os hom ens em diferentes faixas etárias tendem
a aparecer m ais vezes que as m ulheres, tal fato devido a inserção de m eninos no ofício de
aprendiz, o que garantia a eles conhecim ento do fu n cionam ento da cidade e suas relações desde
cedo. N ão se trata de p ensar que m ulheres fugiam m enos e os hom ens m ais, e sim analisar de
levando em conta, principalm ente, as realidades do sistem a escravista para que ocorressem
essas diferenciações. Isso nos leva a um segundo enfoque, a faixa etária dos fugidos, já que tais
distinções entre hom ens e m ulheres pode ser m elhor observada em m om entos diferentes de
suas vidas. A tab ela a seguir dem onstra a faixa etária dos escravos fugidos:
295
T a b e la 02 de faixa etária dos escravos fugidos anunciados no C orreio
______________________ M ercantil (1830-1836)______________________
Id a d e N° T o ta l
H om ens 4-16 anos 29 46,77%
17-25 anos 25 40,32%
26-30 anos 3 4,84%
31-40 anos 3 3,84%
41-50 anos 2 3,23%
N ão in fo rm a d o s 54 87,10%
C aso s c o n h e cid o s 62 53,45%
M u lh e re s 4-16 anos 3 21,43%
17-25 anos 2 14,29%
26-30 anos 2 14,29%
31-40 anos 3 21,43%
41-50 anos 4 28,57%
N ão in fo rm a d o s 12 85,71%
C aso s c o n h e cid o s 14 56%
T o ta l g e ra l 127 100
Fonte: Correio Mercantil (RJ) - 1830-1836
D iferente da inform ação do sexo dos fugidos que aparece em 100% dos casos
analisados, a idade dos m esm os acaba po r ser a m enos m encionada. Isso possib ilita constatar
a dificuldade dos senhores em observar a faixa etária dos escravizados, m as principalm ente,
A o passo que h om ens aparecem em diversas fugas j á aos 4 -16 anos, porcentagem m aior
do que em seus 41-50 anos, as m ulheres tem m aior m ovim entação som ente nos 41-50 anos,
de leite, j á não era m ais latente, e assim p erm itia m aiores chances de fugas. A lém disso, de
m aneira m uito com um os senhores ao anunciar seus escravos e d esconhecer suas idades
acabavam por descrevê-los enquanto “m eninos” , m oleques” , “ pequenos” e até pelo dim inutivo,
com o “ negrinhos” .
296
C om o visto no anúncio de Juliana, as duas inform ações m encionadas constam , porém
o que m ais cham a atenção está na dificuldade do senhor em afirm ar que se tratav a de um a fuga
ou perda. A inda que não seja possível saber ao certo o m otivo para tal, j á que em fugas de
m eninos da m esm a idade não há essa dúvida, é possível a partir da distinção de sexo se supor
que, novam ente, isso designava qual atividade cada um iria desem penhar. N o caso de Juliana,
por se tra tar de um a m enina, é possível que a m esm a frequentasse am bientes dom ésticos,
aprendendo as funções cabíveis dos m esm os e não tendo tan ta oportunidade em reconhecer os
cam inhos da cidade, de form a que, p ara seu senhor, poderia não se tratar de u m a fuga. Junto a
isso, pode-se q uestionar o próprio entendim ento que os senhores ao anunciar fugas de m eninos
e m eninas divergiam quanto a capacidade de um e outro escolher ou não pela fuga nessa idade.
V im os que som ente 21,43% das fugas de m eninas ocorriam entre 4-16 anos, enquanto a de
m eninos é de 46,77% , dem onstrando que, provavelm ente, até os senhores notavam essa
diferença na ocorrência das fugas j á que elas eram frequentes na vid a tanto de escravizados
A tab ela a seguir dem onstra os ofícios presentes nos anúncios coletados:
297
U m a vez que apresentado o ofício é possível supor que o acesso a cidade e outras redes
C onseguim os observar por m eio disso que a qualidade de u m a especialização perm itiria não só
m aiores oportunidades de fuga, quanto a autonom ia pra escolher fugir de um senhor e encontrar
trab alh o com outro que lhe agradasse m ais. P ercebem os isso no anúncio de C lem ente, onde ao
ten ta r ser reavisto por seu senhor é inform ada a possibilidade de que o m esm o, um alfaiate, já
fuga levantou-se duas questões centrais para a pesquisa:1. A construção de um a rede de laço s
T ip o s de fu g a N ° de fu g as %
T o ta l 116 100
298
A prim eira questão retom a um aspecto im portantíssim o dos estudos sobre a escravidão.
sociais que poderiam existir dentro do sistem a escravista e a com plexidade delas. A pesar da
vida na escravidão lim itar, e ten tar cercear, as redes afetivas dos hom ens e m ulheres cativos,
isso não significa retirar a autonom ia e a capacidade desses sujeitos de contornar os lim ites. É
exatam ente isso que vim os na tab ela anterior onde cerca de 12,07% das fugas eram
acom panhadas, m esm o com o aprisionam ento e a presença de rivalidades entre diferentes
entre os africanos de nações distintas ora se reproduziram e ora dim inuíram sob o peso da
relações de apoio, e possivelm ente fam ília, se faziam presentes ainda que em núm eros m enores
a de fugas sozinhos.
C om o m ostra o anúncio de José, n ação M ina, b oleiro e cozinheiro, “elle anda acoutado
pela praia de D. Manoel, e dizem dormir no Engenho Velho do Botafogo, em uma chacara que
tem pretos M inas.”166, podem os notar, que ainda escassas ou difíceis, essas relações existiam
e são de extrem as im portâncias aos novos estudos africanos e brasileiros, no que rom pem com
o pensam ento antigo de que estes sujeitos não eram conscientes ou incapazes de criar contornos
na B ahia tinham identidades separadas (SO A R E S, M . 1998; 1999), o que nos leva a pensar
que, em bora o anúncio entenda que se tratavam de fugidos de um a m esm a origem , para eles
possivelm ente não seria o m esm o, j á que em grande m edida as origens anunciada não eram
exatas, principalm ente se levadas frente ao contexto de rivalidades que existiam entre
E m segundo, observam os que cerca de 46,77% das fugas de hom ens cativos era entre
os 4-16 anos, fase em que, ou estavam aprendendo as tarefas de aprendiz de determ inado ofício
ou ainda não possuíam facilidade com o português, sendo considerados “b u çal” . C ontudo,
nenhum desses fatores im possibilitou que essas fugas ocorressem , e principalm ente, durante
essa idade. N ão só diferente das m ulheres, m as tam bém de outros cativos adultos, essa
observação abre espaço para outros questionam entos com o: O que garantia o sucesso de fuga
166 FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). BNDIGITAL I: Correio Mercantil (RJ) - 1830 a
1836, Ano 1830, Ed. 00039, p.4.
299
para esses jo v en s? O fato r m arcante seria a condição de trabalho desem penhada ou a idade para
L evantam -se essas perguntas, pois com o aparece no anúncio de A ntônio , nem sem pre
a fuga pod eria ser para afastar-se com pletam ente da condição de escravos ou de negociação
com seus senhores. Q uestiona-se se essas fugas, entre os 4-16 anos, pudessem ser m otivadas
pela necessidade de “liberdade provisória” , quase aliada a necessidade de rom per com a
b arreira que lim itava a livre transição desses sujeitos, assim alcançando certa proxim idade com
hábitos anteriores a vinda para o B rasil, tal qual alertou M am igonian (2010, p. 43). V ale
lem b rar que as condições vivenciadas pelos africanos escravizados no B rasil divergia e m uito
daquela vida na Á frica, a noção de aprisionam ento dificilm ente seria a m esm a, talvez por isso
romper com o aprisionamento, em bora por pouco tem po, fosse algo a ser cobiçado j á que
garantia u m a liberdade, com o a de A ntônio, de andar pela Tijuca. N otam os, não só pelo hábito
de fugir, m as que andar pela T ijuca poderia in d icar fam iliaridade com o espaço, de m odo que
cada vez m ais o jo v em buscava form as de garantir o sucesso de sua fuga levando p e ç as de
roupa, trocando-as e assim podendo estender o tem po que lhe era possível aproveitar nesse
espaço. A s redes de sociabilidade reaparecem com o hipótese neste caso j á que além da
fam iliarização com o espaço poderia existir tam bém com pessoas.
4 CO N CLU SÃ O
A p artir dos resultados apresentados com preende-se que o perfil dos fugidos e das fugas
300
condição de escravo e p o ssibilita (re)pensar o entendim ento de liberdade na histo rio g rafia
E ntendem os que apenas a necessidade de fugir dessa condição não m ais responde a
escolha pelas fugas e pela liberdade advinda dela, a com plexidade dos sujeitos escravizados e
das relações que eles construíam em m eio a esse contexto dem onstram o am plo olhar possível
para essas fontes. A ideia de liberdade provisória não é vista apenas com o saídas a passeio, m as
hábitos que a vid a nesse contexto não perm itia. P erceb e-se que a consciência da realidade de
escravo era acessada e com partilhada desde m uito jovem por esses sujeitos já que a idade se
to rn a um indicativo de que a volta para o cativeiro poderia ser prevista por eles e a garantia de
C abe, po r m eio das hipóteses levantadas aqui, dar continuidade aos estudos que se
contornar o aprisionam ento são plurais. A num erosidade das fontes nas A m éricas e a
acessibilidade das m esm as com o no caso da H em eroteca D igital B rasileira, alertam para a
n ecessidade dessas novas perspectivas que surgem com a leva atual de historiadores.
R E F E R Ê N C IA S
301
M A C H A D O , G eosiane M . C om vistas à liberdade: fugas escravas e estratégias de inserção
social do fugido nos ú ltim o s decênios do século X IX em M inas Gerais. D issertação
(m estrado) - U niversidade de M inas G erais, F aculdade de F ilosofia e C iências H um anas.
2010. 192 p.
302
COMO SE FORJAM HERÓIS: O AVESSO DA MEMÓRIA OFICIAL
SOBRE OS PRIMÓRDIOS DA CIDADE DE JOÃO MONLEVADE/MG
G A B R IE L L A D E S O U Z A D A M A S C E N O 167
SÉ R G IO L U IZ G U SM Ã O G IM E N E S R O M E R O 167168
I n tr o d u ç ã o
Piracicaba, a pouco m ais de 100 km da capital do estado de M inas G erais, B elo H orizonte,
ancora-se, desde seus prim órdios, no desenvolvim ento do setor m in ero -sid erú rg ico . N esse
sentido, destaca-se a trajetória do pioneiro Jean A ntoine F elix D issandes de M onlevade, o qual
fundou, no espaço do que viria a se to rn ar o m unicípio que h erdou seu nom e, u m a das prim eiras
ricas terras ferríferas de M inas G erais m etam orfoseou-se, aproxim adam ente um século depois,
m uitos dos contornos do atual m unícipio, os quais, p artindo do dom ínio econôm ico, ecoariam
por todas as esferas que conform am sua realidade social. A inda hoje, po r m eio da atual A rcelor
h istórica oficial, com o herói e pioneiro desbravador, visão esta que desconsidera e escam oteia
ideologicam ente a contraparte brutal de seu legado; isto é, o fato de que a grandiosidade de sua
riqueza e legado se assenta sobre o trabalho negro escravizado de que Jean M o n lev ad e lançou
m ão desde o m om ento em que aportou no B rasil. A dem ais, o papel desse com plexo de
patrono, que forjou sua riqueza po r m eio de u m a espécie de visão em preendedora avant la
lettre não se restringe à conform ação de certa visão do passado, antes atuando no presente para
167 Graduanda em Engenharia de Minas da Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG - unidade João
Monlevade; bolsista do Programa Institucional de Apoio à Pesquisa - PAPQ/UEMG.
168 Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG - unidade João Monlevade; mestre em Estudos
Literários pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara - UNESP; professor orientador bolsista do Programa
Institucional de Apoio à Pesquisa - PAPQ/UEMG
303
a form ação m n em ônica de certa identidade cultural que ignora as m em órias e a experiência dos
grupos historicam ente oprim idos. D e inúm eras form as, com efeito, tanto o poder público
A f o r ja do p io n e iro
França, form ou-se na E sco la P olitécnica de P aris no ano de 1812. E ngajou-se, posteriorm ente,
no C orpo de E ngenheiros M ilitares (Corps Royal Des Mines), atuando no cam po da E ngenharia
diversas obras que narram suas origens e, ao fazê-lo, enfatizam , po r exem plo, a nobreza de sua
ascendência. O historiador e escritor m odernista m ineiro João D ornas F ilho (1902-1962), que
extraiu m uitas das inform ações sobre M o n levade que utilizo u de m em órias de um a bisn eta do
engenheiro francês, após relatar que Jean M onlevade nascera “ no castelo de B ogenet, p erto de
a pretensa superioridade de suas origens, atestada pela enunciação nom inal de tradicionais
ram os da n obreza da França, as posições de destaque político assum idos po r seus antepassados
na h istória de determ inada região do país e, no lim ite, a vinculação com o reinado de L uiz X II,
iniciado, na verdade, ainda em fins do século X V . E sse discurso não se restringe, com efeito,
ao texto em questão, m as é reiterado sistem aticam ente por m eio de diferentes suportes que
304
A glutinam -se aí tan to elem entos de distinção de classe quanto de caráter étnico-racial,
os quais integram , significativam ente, a com posição da figura do pioneiro. D e outra parte, se
este se configura desde o princípio com o hom em nobre branco/europeu, sua u n ião conjugal e
sua descendência fam iliar constituiriam , obviam ente, senões, caso se colocasse em risco o ideal
de pureza que subjaz a construção ideológica im plicada na figura de M onlevade. D isso decorre
a necessária observação de que tam bém as linhagens com que, j á no B rasil, o nobre sangue
M inas, levando j á consigo dois escravos de sua propriedade (PA SSO S, 1973; R E B E L A T T O ,
2012). P ercorre então várias com arcas nos m eses que se seguiram , tais com o C aeté, São João
parceria com o capitão Luiz Soares de G ouveia construiu um alto-forno p ara a produção de
ferro cujo sucesso lhe rendeu reconhecim ento de personagens im portantes do cenário político
da época. A ssim , destaca-se a carta que A ntonio G onçalves G om ide, m édico e senador do
Im pério, escreveria, em 16 de m aio de 1823, a José B onifácio, indicando elogiosam ente o nom e
de M onlevade para analisar e gerenciar a exploração da galena de A baeté (rica fonte de prata
e de chum bo), o que efetivam ente se consum aria nos anos seguintes. N a época em que atuou
em A baeté, o engenheiro francês travou contato tam bém com João B atista F erreira de Souza
C outinho, B arão de C atas A ltas, proprietário das fam osas m inas de G ongo Soco. A
aproxim ação entre os dois seria sobrem aneira im portante, pois, poucos anos depois, M onlevade
contrairia m atrim ônio com u m a das sobrinhas do B arão, D. C lara Sophia de Souza Coutinho.
m eados dos anos 1820, po r m eio da aquisição de algum as sesm arias de terra a po u ca distância
daquele arraial, às m argens do rio Piracicaba. T am bém aqui se pode apontar com o a
pautando-se pela construção m o d elar da figura do herói, o que ocorre, por exem plo, na obra de
Juliana Passos, autora da m ais p o p u lar b iografia do engenheiro francês, tam bém am iúde
305
E, homem de ação, Monlevade adquiriu duas léguas abaixo do Arraial de São Miguel
(hoje cidade de Rio Piracicaba), algumas sesmarias de terra. (1973, p. 43-44).
abaixo do então arraial de São M iguel, algum as sesm arias de terras” . (1995, p. 5)
qualificativos elogiosos, quer direcionados ao próprio M onlevade quer ao esp aço em que ele
consum ará seus feitos, concorrendo para a tessitu ra de um a m em ória coletiva apologética. E sse
espaço, rom antizado, assum e contornos m íticos: não possui passado ou habitantes originários,
m as aguarda placidam ente a vinda gloriosa daquele a que foi destinado. N as narrativas de
pioneirism o, o apagam ento histórico do período anterior à vinda dos assim cham ados pioneiros
ao local em questão é um a constante, um a vez que os espaços são retratados com o desabitados,
adentrando realm ente a história a p artir da chegada do pioneiro que efetivam ente o coloniza
D e m aneira m ais am pla, pode-se dizer que o pioneirism o, enquanto categoria, se refere
u m a visão hegem ônica, m onológica e épica da história. E ssa leitura do passado influi
determ inantem ente sobre a cultura do presente, articulando um a representação m nem ônica
coletiva que assum e posições elitistas frente às contradições sociais — classe, raça-etnia,
gênero, religiosidade etc. — e que engendra, ainda, um ethos p articular estabelecido com o
paradigm a legitim ado de conduta social hierarq u izad a. A ssim , em u m a ótica colonial, o
p ioneirism o atua a p artir da reificação de personagens históricos que detém diferentes tipos de
poder, m as que, nos diversos recortes tradicionais da m em ó ria local, tendem a corresponder
consistentem ente com a figura eurocêntrica m asculina, identificada com as classes dom inantes,
306
dotada de um a espécie de senso p riv ilegiado para os negócios, de ilim itada capacidade de
inovação, e de com petência e resiliência ím pares. A fo rm a com que o presente reelabora nesses
O utra passagem cuja representação tam bém explicita, por m eio da exaltação épica de
seus feitos, a construção heroica da figura do pioneiro diz respeito à construção da sede de sua
responsável efetivam ente pela construção m aterial do S o lar (concluída em m eados dos anos
1820) quanto, por outro lado, o discurso acerca do m arco civilizatório representado pela
instalação de M onlevade e de seus em preendim entos no local. M ais um a vez, fica evidente a
proezas do herói fundam um a com unidade ideológica pautada pelo ethos que a própria
n arrativa delineia.
E sse com plexo ideológico-discursivo não se ancora, evidentem ente, apenas nas
m onum entos e espaços históricos do m unicípio, em sua recepção contem porânea atuam com o
suporte da narrativa que veicula a versão oficial do passado cristalizada na im agem do pioneiro.
Sob esse viés, o próprio Solar, em sua m aterialidade, constitui suporte e difusor do ideário em
questão.
307
Figura 1 - Solar M on levade
um sím bolo de grandiosidade para toda a província, pois diferentem ente das propriedades
rurais locais, o casarão em estilo europeu im pressionava pela singularidade de sua edificação.
A exaltação recorrente — no discurso oficial bem com o nos diferentes m eios de com unicação
im ponente, dom inava a paisagem do V ale do P iracicab a” (1973, p. 44), corresponde (e reforça),
m etonim icam ente, à grandiosidade atribuída a seu original proprietário, colaborando para a
N ota-se que a estrutura original do prédio foi m antida, apesar de reform as que foram
exigidas pelo tem po. N ão há, todavia, um trab alh o técn ico-científico de estudo e preservação
desse im portante m onum ento que, nos dias atuais, é propriedade da A rcelorM ittal A ços L ongos
308
É claro que, do ponto de vista econôm ico, o presente da cidade de João M onlevade
ratifica o em preendim ento concretizado pelo francês, sobretudo quanto às condições propícias
para a produção de ferro (e contem poraneam ente o aço), visto que até os dias atuais, a
m ineração e a siderurgia são as atividades econôm icas predom inantes, to rnando a cidade e a
p redom inância do setor m inero-m etalúrgico na região, nota-se um alheam ento da população
com relação ao seu passado histórico, som ado à recepção acrítica do discurso de pioneirism o
eurocêntrico que caracteriza a m em ória coletiva oficial acerca das origens da cidade.
observada nos discursos das autoridades públicas locais, das m ídias de um a form a geral, assim
os prim órdios da cidade que silencia e recalca a participação dos oprim idos — e as próprias
relações de opressão — no processo histórico, ao passo que se refestela à m esa dos vencedores.
os indígenas botocudos que habitavam toda a b acia do R io D oce, cujos últim os representantes
são os K renak, sejam os negros de origem africana subm etidos à escravidão — por m eio do
E sse com plexo de representações se dilui no ideário local em sentido am plo, arrogando
para si o status de verdadeiros valores e de v erd ad eira cultura. C abe-nos, porém , trab alh ar com
a verdade fundam ental enunciada por W alter B enjam in, isto é, a constatação de que “ [n]ão há
docum ento de cultura que não seja tam bém docum ento de b arb árie.” (2012, p. 137)
O avesso d a m e m ó ria
E ssa m em ória fabricada para exaltar a figura do pioneiro à revelia dos subalternizados
personagem de Jean M onlevade, tal com o ela se apresenta pelo viés do discurso oficial, culm ina
no culto à figura do herói que é, concom itantem ente, patrono e paradigm a, reverberando sob
para quem ?
T alvez um dos exem plos m ais significativos que se possa apontar em relação a essa
dinâm ica resida no poem a “M onlevade, Saga” , de autoria do p rofessor L uciano C lem ente
309
M endes Lim a. E sse texto fora proposto com o poem a-sím bolo da cultura literária do M unicípio
de João M onlevade, proposição aprovada por unanim idade pela C âm ara M unicipal no dia 22
de ju n h o deste ano (R O M E R O , 2022). O texto, que reproduz estilisticam ente o gênero épico,
voltado à n arrativa m ítica e à exaltação de personagens heroicos, e que agora fig u ra com o
sím bolo oficial da cultura de João M onlevade, cristaliza ju stam en te aquela im agem do passado
preferiam ser teu s que livres/ E livres dispersos não te encontram m ais.” (LIM A , 2016) T rata -
se dos m esm os versos registrados em um a p laca afixada no C em itério H istó rico da cidade com o
2022). O excerto afirm a, de fo rm a cristalina, que os negros preferiram a servidão a serem livres,
com o se lhes fosse disponibilizada algum a chance de esco lh er e que, m esm o escolhendo, eles
naturaliza os papéis sociais instituídos pela relação de opressão, contribuindo ainda para a
de um descendente da alta nobreza francesa, o qual construiu sua fortuna e legado a p artir da
naturais de terras expropriadas aos povos originários que nelas habitavam e que foram — e
João M onlevade possui um vasto acervo tan to de m onum entos quanto de docum entos
dos vencedores, favorecendo a form ação de u m a identidade cultural local hegem ônica,
eurocêntrica e elitista, m as que tam bém podem ser explorados de form as alternativas, visando
310
enxergar a história por outros ângulos. É necessário co nfrontar o passado — o que sem pre se
faz a partir do presente — para resgatar do olvido esse avesso da m em ória oficial, um a vez que
constitui condição sine qua non p ara transform ar um m undo que frequentem ente se nos m ostra
às avessas.
R E F E R Ê N C IA S
311
A INCORPORAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS NOS PROJETOS
POLÍTICOS NACIONAIS DA ARGENTINA E DA COLÔMBIA (1860
1890): UMA ANÁLISE DOS DISCURSOS À LUZ DA HISTÓRIA
COMPARADA
G IO V A N A E L O Á M A N T O V A N IM U L Z A 169
R e su m o : O presente trabalho tem com o intuito apresentar nossa pesquisa em desenvolvim ento
no D outorado em H istó ria P olítica, a qual se propõe a analisar a história da A m érica L atina sob
a m etodologia da H istória C om parada enunciada por C harles Tilly (1991) e José D ’A ssunção
B arros (2007). O objetivo do estudo consiste em abordar as propostas políticas de inserção dos
povos indígenas nos E stados N acio n ais da A rgentina e da C olôm bia, analisando os discursos
veiculados em livros e revistas publicados po r autores argentinos e colom bianos entre 1860 e
1890. D entre as fontes inicialm ente selecionadas, podem os enum erar a Actualidadfinanciera
de la Republica Argentina (1875) do coronel Á lvaro B arros p ara o estudo do caso argentino e
Ensayo sobre las revoluciones políticas (1861) de José M aría Sam per para a análise com parada
do caso colom biano. A hipótese que será investigada durante a pesquisa considera que o estudo
com parado nos possibilitará observar discursos superficialm ente diferentes po r parte de am bos
os países: enquanto os autores argentinos sustentarão um a política de exterm ínio e assim ilação
forçada dos povos indígenas, os estudiosos da C o lô m b ia defenderão um a assim ilação b ran d a e
v o lu n tária conduzida pelas m issões e p ela senda civilizatória. À priori, nossa tese con jectu ra
que, apesar das diferenciações nos discursos e nos m étodos de incorporação indígena, os países
analisados com partilharam u m a ideia de branqueamento que estava em consonância com um
projeto civilizatório europeizante com um às nações h ispano-am ericanas do século X IX que se
orientava para a hom ogeneização da sociedade.
I n tr o d u ç ã o
A form ação dos E stados N acio n ais latino-am ericanos consiste em um a tem ática
consolidada nas pesquisas acadêm icas (B ETH ELL, 1990). Seus conteúdos são debatidos em
sim ultaneam ente o processo de form ação de dois E stados N acionais pode ser um a tarefa que
ainda revela novas surpresas, principalm ente porque u m a análise com parativa possibilita
dem onstrar as singularidades de cada caso estudado. A presente pesquisa se inscreve nesse
objetivo: observar com parativam ente a form ação de dois E stados N acionais latino-am ericanos.
169 Universidade Estadual de Maringá (UEM); Doutoranda em História Política; Bolsista Capes.
312
O s países escolhidos para serem com parados foram a C olôm bia e a A rgentina em fu n ção da
singularidade de cada experiência nacional e pelas sem elhanças originárias na dem anda de
consolidar um E stad o forte frente o rol das nações civilizadas que se consolidavam no ocidente.
A opção pelos países selecionados tam bém se deve aos interesses da pesquisadora: a
C olôm bia com preendeu seu objeto de estudo no m estrado e a A rgentina lhe suscitou interesse
no decorrer da graduação em H istória. O recorte tem poral escolhido com preende o período
situado entre as décadas de 1860 e 1890 - em bora esse contorno não venha a ser estático tendo
desvendar o m odo com o esses dois E stados N acionais partiram de necessidades com uns e
prosseguiram po r cam inhos singulares diante de suas realidades locais. A creditam os que essa
análise com parativa possibilitará um a nova abordagem que m utuam ente ilum inará as
C onform e orienta o m étodo com parativo, irem os realizar algum as perguntas para
am bas as nações selecionadas: Q ual era o m odelo de E stado N acional que alm ejavam ? C om o
as populações nativas se encaixaram nesse m odelo? Q uais estratégias foram usadas para
alcançar esse m odelo de E stad o N acional? C olôm bia e A rgentina foram capazes de im plantar
o ideal nacional que projetaram ? T ais questões serão direcionadas para os casos colom biano e
argentino, as quais perm itirão um a ilum inação recíproca que revelará suas singularidades. É
evidente que esperam os delinear trajetórias específicas m arcadas pelas políticas de exterm ínio
do E stado argentino e pelas aproxim ações institucionais E stad o -Ig reja do governo colom biano.
N o entanto, acreditam os que a análise sim ultânea dessas trajetó rias singulares evidenciará um
objetivo sem elhante com partilhado por am bos os países: construir E stados N acionais
R e fe re n c ia is te ó ric o s
acerca da construção das nações hispano-am ericanas no século XIX. Segundo a autora, as
b u scar ferram entas para “in v en tar suas n açõ es” . Os m ecanism os em pregues pelos governantes
313
dessas nações em construção foram distintos, m as poderiam ser sintetizados na lógica de fixar
dem onstram que os cam inhos percorridos pelas nações colom biana e argentina foram
específicos, m as suas m etas com partilham sem elhanças que poderiam ser contem pladas através
da com paração.
dinâm ica de sem elhança-distinção na história das nações hispano-am ericanas do século XIX.
E sse é o argum ento defendido pela h istoriadora M aria L ígia C. P rado (2005) em suas
percorridos pela C olôm bia e pela A rgentina para construírem suas nações pode revelar um
exercício inédito que dem onstra a im portância dessa pesquisa e que, ao m esm o tem po, dificulta
revela a contundência desse estudo. C om base nesse cenário, nossas balizas teóricas sobre a
C olôm bia e a A rgentina serão aquelas que analisam singularm ente os cam inhos de cada nação.
P ara a C olôm bia, podem os m encionar alguns estudiosos que contatam os aquando de
nossa pesquisa de m estrado. U m relevante estudioso que n orteia esse cam po é O scar B lanco
M ejía (2009), quem delineia pertinentes observações acerca do papel da Igreja C atólica para a
tra ç a o com plexo quadro institucional que conduziu os governantes da C olôm bia a reco rrer a
um a aliança estratégica com o clero católico. E ssa p o stu ra tam bém aparece nas pesquisas de
E dw in C ruz R odríguez (2010), quem apresentou as principais tendências políticas que iriam
conduzir a C olôm bia na segunda m etade do século XIX. T ratava-se, com o j á havia apresentado
F rédéric M artínez (1996), de im portar m odelos de nação que perm itissem inserir aquele país
na senda do progresso. T ais autores possuem contribuições para a presente pesquisa na m edida
em que delinearam , com precisão, os m ecanism os usados pelos políticos colom bianos - fossem
C olôm bia para o concerto das nações civilizadas. C om o balizas, nos perm item observar a
ten d ên cia desses políticos em alm ejar a construção de um a nação orientada pelos costum es
hispano-católicos e que busca in cluir as variações regionais e étnicas nesse m odelo idealizado.
P om peu (2012 e 2014), quem dedicou suas pesquisas para desvendar os m ecanism os
institucionais que levaram o E stad o argentino a prom over as C am panhas do D eserto entre 1877
314
e 1885. A autora dem onstrou a existência de u m a “nação excludente” que teve com o principal
característica o exterm ínio - físico e/ou cultural - dos m odelos de sociabilidade que
análise da obra Facundo: civilização e barbárie e da m an eira com o D om ingo F. Sarm iento
(1845) havia influenciado as trajetórias tom adas pelos políticos argentinos na segunda m etade
do século X IX com base na dicotom ia rural-urbano. O utra pesquisa de relevância foi feita por
G abriel P assetti (2010), cuja tese de doutorado com preendeu um estudo com parando a
form ação da A rgentina com a da N ova Z elândia. O caráter in o v ad o r da análise está no recorte
individualizadora de C harles T illy (1991) que tam bém conduzirá este trabalho. O s cam inhos
percorridos por G abriel P assetti (2010) convertem sua tese em um im portante referencial para
A pesar da m enção a autores brasileiros, sabe-se que a produção acadêm ica sobre a
am ericanos. O id io m a espanhol, dessa form a, será predom inante para a realização dessa
pesquisa - tan to no que se refere à b ib liografia secundária quanto, obviam ente, às fontes
históricas a serem analisadas. E sse aparente desafio, contudo, revela-nos um aspecto a ser
m encionado: o pouco espaço que a A m érica L atina oitocentista recebe no rol de interesses dos
pesquisadores brasileiros, que poderiam lançar novos olhares para a h istória do B rasil através
do estudo de seus vizinhos continentais. E stá claro que um a com paração entre a C olôm bia e a
A rgentina urge em ser realizada e nossos esforços se orientam a dem onstrar a fecundidade que
o m étodo com parativo pode rep resen tar para a com preensão da h istória da A m érica L atina e,
O b je tiv o s
- O b je tiv o s G e ra is :
O objetivo desta pesquisa é analisar - m utuam ente - a form ação dos E stados da
C olôm bia e da A rgentina e as estratégias que esses países usufruíram para ten ta r alcançar seus
- O b je tiv o s E sp ecífico s:
315
• P rom over exposições gerais acerca das experiências históricas da C olôm bia e da
A rgentina;
• A nalisar as especificidades dos casos colom biano e argentino com base nas fontes
selecionadas;
M e to d o lo g ia e fo n tes
C harles T illy (1991). A m bos os autores delinearam procedim entos com plem entares para o
tratam en to das realidades com paradas. P ara B arros (2007), a H istó ria C om parada com preende
um recorte gem inado no espaço e no tem po, tendo com o objetivo analisar universos diferentes
através da com paração e da ilum inação recíproca. A ssim , a H istó ria C om parada consiste na
possibilidade de se observar o m odo com o um m esm o problem a pode atravessar determ inadas
realidades histórico-sociais distintas, baseando-se em u m a m útua ilum inação que culm ina no
E m consonância com tais colocações, C harles T illy (1991) buscou elaborar quatro
individualizadora to rnar-se-á a m ais adequada para nosso objeto de estudo. S egundo Tilly
(1991), o procedim ento in dividualizador b u sca m ap ear as sem elhanças entre as realidades
observadas e, a partir daí, perm ite id en tificar as singularidades de cada caso com parado. Com
base nesse m étodo, o historiador reúne as características que as realidades possuem em com um
e depois se dedica a identificar as especificidades de cada caso. Pretendem os, a partir desse
procedim ento, com parar as realidades colom bianas e argentinas com o fim de especificar as
A s fontes que irão com por esse trabalho, assim com o a bib lio g rafia secundária, se
referem a cada realidade particular. Isso se deve à escassez de trabalhos e de fontes que versem
sobre o tem a elencado. D essa form a, esta pesquisa analisa docum entos sobre a C olôm bia e
sobre a A rgentina em suas realidades singulares, tendo em vista a inexistência de algum a fonte
h istórica do século X IX que verse sobre am bos os países sim ultânea e com parativam ente. D e
316
fo rm a a organizar nossa pesquisa, optam os por selecionar fontes de acordo com as
problem áticas centrais enum eradas anteriorm ente. P ara o estudo sobre o E stado N a ç ã o
alm ejado, optam os por analisar as observações de Á lvaro B arros (1875) para a A rgentina e os
ensaios publicados por R afael N únez durante sua carreira política na C olôm bia entre 1850 e
1891. N o que tange à inserção dos povos indígenas, podem os enum erar os ensaios de D om ingo
F austino Sarm iento (1883) e de M ardoquéo N avarro (1881) para a A rgentina e algum as
observações de José M aría Sam per (1860) para a C olôm bia. Sobre o tem a das estratégias
1881 e 1913 na A rgentina e um texto de Jose E usebio C aro (1842) para a Colôm bia.
contará com outras fontes que serão coletadas e analisadas ao longo do d esen volvim ento da
pesquisa.
O e stu d o d a H is tó r ia In d íg e n a a p a r t i r d a H is tó r ia P o lític a
E len car o político com o âm bito de estudo revela nosso interesse em analisar as relações
de p o d er que perm earam a construção dos E stados colom biano e argentino no tran scu rso do
século XIX. A pesar dos estigm as que acom panharam a h istória política no alvorecer do
novecentos (R E M O N D , 2003), a renovação teórico -m eto d o ló g ica que percorreu esse cam po -
perm itiram inserir o estudo das relações de poder no rol da h istória-problem a defendida pelos
h istoriadores da g eração dos Annales. T ais m udanças, no entanto, não substituíram o poder
com o objeto de análise da história política e sua relevância p a ra a com preensão dos
A creditam os que a opção pela linha política decorre do recorte tem ático realizado.
A final, propom o-nos a analisar as relações de p o d er - em sua esfera institucional ou não - que
perm earam a form ação dos E stados colom biano e argentino - desde a form ulação de m odelos
até a im posição de um a organização estatal e social vencedora. N osso estudo irá se debruçar
sobre ideias e discursos que estavam em con so n ân cia com as n ecessidades enfrentadas pelas
nações latino-am ericanas do século X IX , as quais poderão ser m elhor com preendidas através
da análise do político e da sua influência sobre as dem ais esferas da vid a social. E ssa foi a
proposta defendida po r R ené R ém o n d (2003) em seus trab alh o s inaugurais sobre a N ova
317
H istória Política: observar a dupla realidade do político, na qual p o de-se revelar sua autonom ia
E ssa pesquisa tam bém poderia ser feita a p artir dos p arâm etros estabelecidos pela
histó ria cultural, tendo em v ista que a construção das nações latino-am ericanas tam bém poderia
ser observada através de outros enfoques. N o entanto, o recorte tem ático elencado im pediria
d issociar essas possíveis análises culturais de seu aspecto político, ten d o em vista a relevância
das relações de poder para a com preensão do m undo h isp ano-am ericano do século XIX.
R e fe rê n c ia s B ib lio g rá fic a s
318
P A SSE T T I, G abriel. O m u n d o in te rlig a d o : poder, guerra e território nas lutas na A rgentina
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319
THE FRENCH LIEUTENANT’S WOMAN: PRESENTISMO E
UBIQUIDADE DO PASSADO
G U E ISE D E N O V A E S B E R G A M A S C H IN E 170*
O livro The French Lieutenant's Woman foi publicado em 1969 e é a terceira obra
on-Sea, no condado de E ssex, Inglaterra. Sua obra ficcional é m arcada pela utilização dos
gêneros literários de grande p opularid ade, com o o th riller e o rom ance, para a abordagem de
questões filosóficas e sociais com plexas, com o o papel social da m ulher, a individualidade e a
sexualidade. A ntes de TFLW , John F ow les havia publicado The Collector (1963) e The Magus
(1965), am bos bestsellers. M as foi com a publicação de TFL W que ele passou a ser apontado
passagem proporciona. D entre os m uitos jogos reflexivos que existem na obra, há o fato de
passado. O n arrador se posiciona, desde o prim eiro capítulo, no presente. E então, com pés bem
plantados no século X X , lan ça seu olhar para a época de suas personagens. P o r sua vez, C harles
e Sarah, no século XIX, tam bém olham para o passado, seja para ten tar se libertar dele ou para
reescrevê-lo.
O capítulo1 da obra diz m uito ela. E le descreve u m a cena no Cobb, o queb ra-m ar da
cidade de Lym e. P ara o narrador, trata-se não só do “ m ais belo quebra-m ar da costa sul da
Inglaterra” (FO W LES, 2008, p. 7), m as tam bém de um local “im pregnado de sete séculos de
histó ria” . E caso o leito r ju lg u e sua descrição um “ exagero” , o narrador afirm a que o leitor
poderia com prová-la, já que “ o C obb m udou m uito pouco desde o ano sobre o qual escrevo”
(FO W L E S, 2008, p. 8). C om isso ele se distancia de suas personagens e crava sua posição no
tem p o de seu leitor. O tem po de suas personagens não é o seu tem po, é o tem p o sobre o qual
ele escreve.
É o século X X que form atará a perspectiva do narrador. É assim que ele se refere às
cores das roupas de E rnestina, que passeava pelo C obb com C harles:
170* Doutoranda pela Universidade Federal de Ouro Preto. Nossa pesquisa conta com o apoio da UFOP e o
financiamento da CAPES.
171 A partir de agora, para efeito de simplificação, passaremos a mencionar a obra usando apenas suas iniciais
TFLW.
320
Hoje acharíamos as cores das roupas da senhora nitidamente gritantes; mas então o
mundo estava extasiado com a descoberta das tinturas de anilina. E o que a mulher
exigia de uma cor, como compensação pelo comportamento que se esperava dela, era
que fosse vibrante, não discreta (FOWLES, 2008, p. 9).
T alvez essa seja a prim eira entre as suas m uitas observações que ligam E rn estin a aos
costum es vitorianos, a u m a m oral supostam ente recatada e, ao m esm o tem po, hipócrita. N esse
caso, u m a m oral de fachada, que ao im por discrição às m ulheres, era bu rlad a no seu vestuário.
pessoa. E ra Sarah, que “estava postada na ponta que avançava p ara o m ar” , com roupas pretas
que “ se agitavam com o vento” . Sua “figura perm anecia im óvel, o o lhar parado, fitando o m ar,
m ais com o um m onum ento vivo aos afogados, u m a figura m ítica, do que qualquer outro detalhe
obra com o um a figura fora de seu tem po, S arah espreita o m ar, com as costas voltadas p ara o
Cobb, que encarna os “ sete séculos de histó ria da In g laterra” . A inda segundo o narrador,
haveria, além de Sarah, um “ espião local” (FO W LES, 2008, p. 8), ou um “ hom em do
D essa form a, estão colocados na cena descrita no prim eiro capítulo, o passado ou a
história, representados pelo C obb, E rnestina, ligada à era vitoriana, S arah que se posiciona de
costas para o C obb ou para o passado, e finalm ente C harles, que a p artir daí e durante to d a a
obra se dividirá entre as duas m ulheres e entre os dois tem p o s: o de E rnestina, e aquele p elo
qual S arah anseia e, de certa form a, fo rja com sua narrativa. A lém deles, existe alguém ligado
ao ato de observar, e que pelo u so do telescópio, parece g uardar certa distância da cena. Talvez
seja alguém distante com o o narrador, possivelm ente no p resen te. E n tre ele e as personagens
pode haver u m a distância tem p o ral. E o telescópio talvez busque v en cer a passagem do tem po
retro sp ectiv o 172. C om o afirm am os, um capítulo significativo e rev elad o r do que a obra irá
tratar.
C onsiderando esse protagonism o que a passagem do tem p o tem em TFLW , esse artigo
faz algum as considerações sobre as form as de abordagem do passado, do futuro, sobre com o
n arrador e personagens percebem a passagem do tem po, e sobre as form as de fig u ração da
h istória na obra.
172 É possível associar o “homem do telescópio” à personagem do Dr. Grogan, amigo da família Freeman e
confidente de Charles Smithson, que possuía um telescópio apontado para a bahia de Lyme. Ainda assim, a
perspectiva de um observador distante temporalmente nos parece bastante significativa, já que é esse o ponto de
vista da voz narrativa.
321
Q uanto ao futuro, claram ente não há otim ism o, j á que o progresso e a m odernidade são
ele pergunta: “H oje, que m édico conhece os clássicos? Q ue am ador pode conversar
detalhadam ente com um cientista?” P ara ele, um a conversa entre as personagens de C harles e
D r. G rogan dificilm ente poderia ocorrer no presente, j á que o entendim ento entre eles som ente
poderia ocorrer porque “ o m undo desses dois hom ens era um m undo ainda livre da tiran ia da
esp ecialização” . E faz um alerta ao leitor: “ eu não gostaria que você confundisse felicidade
com progresso” (FO W LES, 2008, p. 163). E ssas palavras, que lem bram o tom cr ítico da
autor russo do século XIX. N o entanto, m esm o que um tanto desconfortável no século em que
vive, o olhar de C harles não se volta para o futuro e não traça expectativas positivas ou
negativas quanto a ele. É olhando para o passado que C harles busca resolver seu estranham ento
com o presente. E as palavras acim a são de fato as palavras do narrador, em p len a década de
O passado tam bém não é poupado de um a visão crítica. E m b o ra haja com parações entre
engarrafam entos m odernos não são bons, “ os engarrafam entos dos m eados da época vitoriana
eram tão incôm odos quanto os m odernos - e m uito m ais barulhentos, um a vez que todas as
rodas tinham um a cinta de ferro que rangia nos paralelepípedos” (FO W LES, 2008, p. 309).
M as ainda que observado de form a crítica, é o tem a do passado que enche as páginas
de TFLW . P o d e-se dizer que existe ubiquidade do passado na obra, e talvez seja ju stam en te
das form as de se lidar com o passado, m ais do que de qualquer outra coisa, que dependa o
O bserve a form a curiosa com que o narrador lida com as datas. E m um a passagem , ele
afirm a de form a m uito precisa, que E rnestina lia um poem a para C harles na noite de 6 de abril
de 1867, situando-a dessa form a às portas do m ovim ento de em ancipação fem inina na
Inglaterra. M as tam bém nos diz que E rn estin a “nasceu em 1846 e m orreu no dia em que H itler
invadiu a P o lô n ia” (FO W LES, 2008, p. 35). C om o C harles teria “ sobrevivido a ela dez anos”
(FO W L E S, 2008, p. 358) e considerando que ele, no ano de 1867 “tinha trinta e dois anos”
(FO W L E S, 2008, p. 17), C harles teria falecido em 1949 com a idade pouco provável de 114
322
anos. U m equívoco que claram ente destoaria de u m a escrita cuidadosa e que cham a a atenção
T alv ez seja razoável associar o falso descaso do autor com as datas, a um a percepção
de tem p o que afirm a, m uitas vezes, que alguns com portam entos seriam u m a “ constante” . Ou a
u m a percepção com o a que teve C harles, que sente o tem po com o um “ engano” , e que vê na
Num estalo, num lampejo negro, compreendeu que a vida seguia em linhas paralelas
- que a evolução não era vertical, subindo sempre até alcançar a perfeição, mas sim
horizontal. O tempo era o maior engano, a existência não tinha história, era sempre
agora, sempre esse ser apanhado pela mesma máquina perversa. Todos esses biombos
pintados que o homem erguia para se isolar da realidade - a história, a religião, o
dever, a posição social - eram meras ilusões, fantasias provocadas pelo ópio
(FOWLES, 2008, p. 218).
E ssa descrença em relação a história surge para C harles em um m om ento em que ele se
com para a um fóssil que ele próprio havia encontrado, um exem plar das “ am onites” que foram
fossilizadas depois de “ apanhadas de surpresa em algum a poça d ’água” , ou seja, seres que
tiveram seu destino conduzido ou m arcado pelo m ero acaso, pelo que é aleatório, e que,
incapazes de reação, ficaram presas e a um tem po que não m ais existe (FO W LES, 2008, p.
2015, p. 129).
sentim ento de que é “ sem pre agora” ou u m a percepção de tem po im buída de presentism o em
C harles Sm ithson, não é um a constante na obra. É possível que seja justam ente sobre esse tipo
de p ercepção que o autor queira tratar. M as fará isso através de personagens que, vivendo um
século antes dele e de sua obra, ainda têm essa p ercepção de form a m om entânea e aguda, são
surpreendidos por ela, com o po r um insight. P ara as personagens, notadam ente C harles e Sarah,
o passado ainda tem tan ta im portância que, a fo rm a com o elas irão eq u acioná-lo influenciará
173 A comprovação da intencionalidade do equívoco vem no capítulo 45 da obra, também bastante identificado
com a prosa pós-modernista. Nele, o narrador ironicamente atribui o equívoco ao cansaço do autor. No que nos
parece uma forma de, bem de acordo com os debates pós-modernistas, trazer o foco para os papéis do leitor e do
autor no processo de produção e assimilação da narrativa, o narrador diz: “Se nesses dois últimos capítulos você
tiver notado uma certa brusquidão, uma certa inconsistência, uma indicação do potencial maior de Charles e a
naturalidade com que lhe é atribuída uma existência de quase um século e um quarto; se você desconfia que o
autor começa a dar sinais de cansaço, como tantas vezes acontece na literatura, e arbitrariamente terminou a
corrida enquanto ainda está ganhando, não me culpe; porque todos esses sentimentos, ou reflexo deles, estavam
presentes na mente de Charles”.
323
É ju stam en te a desorganização tem poral causada pela perda da referência do passado
que parece produzir em C harles o sentim ento de estar fora de seu tem po, de ter sido incapaz de
conversa em que o Sr. Freem an, pai de E rnestina, hom em de enorm e fortuna e de grande
destaque no com ércio, pede a C harles que, após o casam ento, considere a possibilidade de
não se podem d ed icar ao com ércio” (FO W LES, 2008, p. 305). M as a argum entação do Sr.
Os tempos estão mudando, você sabe. Esta é a era do progresso. E o progresso é como
um cavalo fogoso. Ou montamos nele ou ele monta em nós. Deus me livre de pensar
que a ocupação de cavalheiro não seja uma atividade satisfatória na vida. Que nunca
poderá ser. Mas esta é uma era de realizações, Charles, de grandes realizações
(FOWLES, 2008, p. 306).
vítim a da evolução de todos os sentidos” (FO W L E S, 2008, p. 306). Seu sentim ento de
inadequação fica evidente quando, ao deixar a m ansão dos F reem an e sair às ruas, ele se m istura
com a m ultidão de pessoas que “ pertenciam às classes m ais m odestas” (FO W LES, 2008, p.
310), e ele se sente m ais infeliz que elas. É quando a m etáfora do “ fóssil” v o lta a ser usada para
expressar sua inadequação, agora diante de u m a situação que parece configurar um novo
A gora observe com o a m etáfora do fóssil é articu lad a com o conceito de ironia para
tra tar da percepção da passagem do tem po de C harles Sm ithson. L em brem os que suas am onites
eram seres que foram “ apanhadas de surpresa em algum a poça d ’água” . E le se sentia com o um
“ fóssil” e se com parava a elas, quando p erceb ia que “ o tem p o era o m aior engano, a existência
324
não tin h a história, era sem pre agora” e ele era “ sem pre esse ser apanhado pela m esm a m áquina
p erversa” .
P ois agora, andando pelas ruas de L ondres, o passado nobre de C harles se torna, diante
“ sentença de m orte” . D iante da oferta do Sr. F reem an e de sua sensação de inferiorização diante
da “ era do progresso” , ele se sente novam ente “um fóssil am bulante” e sua falta de
com preensão da passagem do tem po volta a aparecer, ju stam en te, no que ele cham a de um a
M as p erceba o que ele recupera quando pensa ter “ recuperado o senso de ironia” :
Charles sorriu, pois, mais que a ternura sentimental, aquela garotinha o fez sentir que
havia recuperado o senso de ironia, o que, por sua vez, equivalia a recuperar a fé em
si mesmo. Horas antes, quando estava no coche de sir Tom, tivera uma sensação falsa
de viver o presente. Sua rejeição do passado e do futuro não fora mais que um
mergulho perverso na irresponsabilidade e no esquecimento. Agora tinha uma
intuição muito mais profunda e genuína da grande ilusão dos homens a respeito do
tempo, ou seja, a de que o tempo é como uma estrada - em que a pessoa sempre vê
onde estava e onde provavelmente estará - em vez da verdade: que o tempo é uma
sala, um agora tão perto de nós que normalmente não conseguimos vê-lo (FOWLES,
2008, p. 338).
Ora, quando C harles acredita ter “recuperado o senso de ironia” , o que ele recupera é
significado óbvio, algo m uito de acordo com a noção de ironia vista até aqui em nossa pesquisa.
M as ele recupera essa capacidade em relação a u m a coisa específica: a passagem do tem po. E
em bora não fique claro qual é sua nova percepção, ou o que ele considera ser a “v erd ad e” , está
claro que essa verdade desfaz “ a sensação falsa de v iver o presente” , e que ela não inclui “a
conhecer o passado ou prever o futuro, o tem po passa a ser perceb id o com o u m a “ sala” que
está “tão perto que não conseguim os v ê -lo ” . N ão há m uitas pistas sobre o que isso significaria
exatam ente. M as talvez seja possível in ferir que estando tão “p erto” de nós, e ao m esm o tem po
tão im previsível, nos caberia ter algum a agência sobre o tem po, sobre a sua passagem e
325
V ejam os então, algum as form as de figuração da palavra “ história” em TFLW . T odo o
dram a de C harles, seus m edos, sua ligação com E rnestina e principalm ente com Sarah, tudo
isso é tratad o através de sua relação com o passado e com a história. O passado é algo que
aprisiona C harles, que teria que lutar “ contra esse desejo m acabro de cam inhar de costas para
o futuro, com os olhos fixos, com o que hipnotizados, em nossos pais falecidos e não em nossos
filhos por nascer” . E a presença ubíqua do passado era um a espécie de condenação à m orte:
“E ra com o se sua crença anterior na presença fantasm agórica do passado o tivesse condenado,
sem que ele jam a is se tivesse dado conta disso, a viver na sepultura” (FO W LES, 2008, p. 386).
O m undo e a vid a podiam , sim , ser diferentes para C harles. M as isso passava por sua
ligação com Sarah, que, para se concretizar, precisava que ele rom pesse com a tiran ia do
passado. E la deveria ser capaz de m o strar a ele “ que h av ia um a verdade além de suas verdades,
u m a em oção além de suas em oções, u m a história além de todas as suas concepções de h istória”
(FO W L E S, 2008, p. 277). A qui as palavras h istória e passado não se equivalem . L onge de se
tra tar de um a disciplina, a h istó ria aparece com o algo próxim o dos hom ens e m ulheres, algo
cuja percepção influenciaria nas suas atitudes, algo, portanto, que se relacionaria com sua
agência. D ependeria das novas “ concepções de h istória” de C harles a realização do rom ance
dos protagonistas. M ais que isso, a h istória está presente na form a com o o n arrador define o
protagonista. V eja com o ele pede ao leitor que com preenda C harles: “ V eja-o com o ele é: um
hom em em luta para ven cer a história, ainda que ele próprio não perceba isso” (FO W LES,
2008, p. 315).
atentando sem pre para os inúm eros jo g o s reflexivos existentes na obra, podem os considerar
que a personagem de C harles propicie reflexões sobre um passado que o ligava à n o b reza e,
portanto, lhe fornecia identidade, m as que, ao perder im portância, fazia dele um fóssil. O u seja,
perm ite ao autor, no século X X , fazer reflexões sobre um passado do qual se é inegavelm ente
tributário, m as que j á não pode fo rn ecer identidade ou garantias. U m passado que perdia
considerar que ju stam en te essa perda de im portância do passado seja um dos tem as de Fow les.
D aí a im precisão das datas. N ão im porta qual passado, o de Fow les ou o de C harles Sm ithson,
o que im porta é sua condição de passado. T alvez o que Sarah pretenda m ostrar a C harles seja
que, no século XIX, haja m enos determ inism os, e que o passado em si pode ser m enos
significativo que a capacidade dos indivíduos de ler e reler o passado e com isso reescrev er sua
história.
326
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329
PESQUISA, ESCOLHA BIOGRÁFICA E MICRO-HISTÓRIA
G U IL H E R M E D E M A T T O S G R Ü N D L IN G 174
I n tr o d u ç ã o
fácil. A inda m ais quando este indivíduo foi central na construção de identidades políticas,
desta pesquisa foi com preender a construção da carreira de M anoel Luís O sório (1808-1879)
no E xército im perial.
M anoel L uís O sório nasceu em 10 de m aio de 1808, no R io G rande do Sul quando este
era ainda um território em constante disputa entre as C oroas ibéricas. E sses territórios situados
ao sul das A m éricas estiveram subm etidos a tentativas de avanço territorial do Im pério
português rum o às possessões do Im pério espanhol, assim com o em direção aos territórios
apresentadas à A m érica do Sul ao longo dos séculos X V III e X IX , dentre essas o próprio
N essa perspectiva, M anoel L uís trilh o u um longo e singular cam inho até atingir os
postos m ais altos da hierarquia m ilitar. T eve seu “batism o de fogo” nos conflitos de
independência do B rasil na região da C isplatina, antes m esm o de com pletar 15 anos de idade.
de idade. A o final desse m esm o ano, tam bém foi alçado ao M inistério da G uerra e ao Senado
obteve-os som ente durante a sua atuação na G uerra da T ríp lice A liança (1864-1870).
P ara analisar esse indivíduo, procurou-se com preender o processo que o levou a ser um
m ilitar com relevante prestígio social e político. M anoel Luís O sório ao longo da vida, torn o u -
se um dos “ senhores da guerra” do Sul do B rasil. E sses indivíduos atuaram sob um a lógica que
os distinguia dos dem ais “ hom ens com uns” , com o assinalou M iqueias M ugge em sua tese de
doutorado sobre os com andantes de fronteira: Senhores da Guerra: Elites militares no Sul do
174 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Doutorando em História, Bolsista CAPES.
330
“ consciência de elite” que refletiu em configurações específicas, com o por exem plo, com andar
forças m ilitares em tem pos de guerra e recrutar tropas para fiscalização da fronteira em
períodos de paz. U m a sistem ática que prom oveu am plas negociações e favorecim entos
C ontudo, a intenção não foi propor um a coerência ilim itada ou u m a am pla racionalidade
a vida de M anoel L uís O sório ou a qualquer outro indivíduo com quem se relacionou. A té
m esm o, porque da m esm a form a que suas ações enquanto chefe m ilitar, político e estancieiro
ajudaram a estabelecer fortes vínculos, am igos e correligionários, certam ente essa m esm a
condição lhe proporcionou desafetos m ilitares e inim igos políticos. A través da análise desses
que se buscou elucidar a construção da carreira m ilitar de M anoel L uís O sório. Se os constantes
possibilitaram a inserção social da fam ília O sório, tam bém serviram para inviabilizar u m a série
de outros projetos. A form a com o M anoel L uís m anejou esse legado e essas dificuldades gerou
um m odo ún ico de ação social, política e m ilitar, possibilitou o aparecim ento do general O sório
(M arquês do H erval).
In d iv íd u o e B io g ra fia
A opção por bio g rafar M anoel L uís O sório som ente foi possível a p artir de u m a revisão
teó rica e m etodológica sobre o tem a. A s problem áticas em torno da b iografia histórica e da
historiografia constituem atualm ente um dos debates clássicos da historiografia. O objetivo não
foi esgotar as form as de com preensão dos indivíduos na histó ria através suas representações
âm bito acadêm ico. (A V E L A R , 2 0 1 0 )175 A p rim azia das análises, no que diz respeito à pesquisa
histórica, era pela longa duração desenvolvida p ela história dos Annales. (SC H M ID T , 2003,
p.57-72) T ais narrativas buscavam com preender as grandes transform ações sociais em curso.
175 Segundo Alexandre de Sá Avelar, as temáticas listadas nunca deixaram de existir na historiografia, entretanto,
durante a "hegemonia dos Annales", a biografia passou a ocupar um plano auxiliar na historiografia.
331
A ssim , reafirm ava-se a p referência pelas grandes transform ações coletivas. (R EV EL, 2000)
R eleg ad a a segundo plano de im portância, a bio g rafia ficou estritam ente atrelada aos estudos
reelab o rar a dim ensão ocupada pelo indivíduo na história, Sabina L origa considerou que foram
década de 1930, por atribuição da h istória dos Annales, nas críticas atribuídas à história
historicizante, que a b iografia virou um dos principais ícones da h istória tradicional, cuja
preocupação era m ais com a ordem cronológica dos fatos do que com as m udanças estruturais,
m ais pelas narrativas dos heróis do que pelos m ovim entos coletivos. (L O R IG A , 2003)
frequentes quanto aos anseios totalizantes v inculados à Escola dos Annales. P o r conseguinte,
as anteriores críticas aos estudos biográficos passaram a ser incorporadas às suas análises
análise historiográfica, porém na prática, seus estudos restringiam -se a m odelos que não
N esse contexto, havia o predom ínio de "(...) dois usos da biografia: a b iografia
previam ente estabelecida. D essa form a, tais m odelos não levaram à com preensão das possíveis
gênero renovava suas bases: abriam -se possibilidades para “ as cham adas v o ltas” ou “retornos”
sobre esse “ retorno” das biografias, de fato o período registrou u m a profusão de narrativas.
U m a das ressalvas m ais difundidas, feita pelo historiador francês Jacques Le G off, considerou
176 Para a autora, a biografia representativa buscava o estudo de trajetórias ilustrativas de um grupo a ser
representado e que não pretendia investigar as singularidades de uma trajetória, mas sim, enfatizar elementos que
poderiam simbolizar um grupo. A biografia como estudo de caso, por sua vez, reduziria ainda mais o espaço de
experiência da produção de uma escrita da história pelo viés biográfico, pois, nesse modelo analítico em um
primeiro momento seriam definidas as análises gerais e contextuais. Somente após os eixos explicativos serem
definidos, as análises biográficas seriam inseridas de maneira a ilustrar a análise discorrida anteriormente.
332
“ essas v o ltas” com o “ equívocos” . P a ra ele, “ se cada um a delas pode ser aceita pela nova
h istória e se os partidários da nova h istória não raro delas deram o exem plo, é porque cada um
desses gêneros históricos (ou quase) v o lta com um a problem ática profundam ente
O autor cham ava atenção para u m a profunda m odificação na abordagem que, naquela
conjuntura, as biografias e outros gêneros textuais (históricos ou não) passaram a im plem entar.
O utras áreas do conhecim ento, não som ente historiadores, dedicaram -se à escrita biográfica. A
jo rn a lista e escritora am ericana Janet M alcolm , po r exem plo, pontuou relevantes contribuições
para profissionais dedicados à pesquisa e escrita de um a vida. P ara a autora, o tem po dedicado
aos arquivos, às b ib lio tecas e às instituições de g u ard a de docum entos, fotografias, diários e
correspondência deveriam estar articulados aos textos. A final, ao fazerem a leitura de um texto
biográfico, os leitores não são m ovidos som ente pelo “voyeurism o” e “bisb ilh o tice” da vida
alheia. A s m otivações do b iógrafo para escrever sobre um a vida devem aparecer de form a
histórica, a historiografia precisou dem arcar que aquele retorno não pod eria ser um a retom ada
qual estava inserido. O caso do general O sório, po r exem plo, cairia “ com o um a luva” a quem
estivesse disposto a escrever este tipo de texto. A liás, pode-se dizer que “ caiu com o um a luva” ,
pois as características pessoais e profissionais atribuídas à O sório por seus biógrafos são m uito
distintas das atividades e das dinâm icas da sociedade da qual fazia parte. Sem querer a m issão
de recuperar o general O sório “v erd ad eiro ” , na m ed id a que esta seria um a tarefa im possível,
tam pouco reforçar as narrativas heroicizadas desse indivíduo, este estudo se preocupou em
explicar, analisar e problem atizar a vida de M anoel Luís O sório e de suas redes de relações.
Isto porque trab alh ar a b iografia de alguém é recuperar as ações, os elem entos constitutivos de
A o elab o rar u m a biografia, deve-se estar atento aos "(...) perigos de form atar seus
por escrever sobre um a singularidade única, coerente e im utável perdeu espaço, diante de
procedim entos teórico-m etodológicos cujo intuito principal é privilegiar espaços sociais
plurais, identidades não fixas e referenciais diversos. Isso ocorreu, pois existiu o entendim ento
de que as individualidades não se m oldam a m odelos esquem áticos, a conceitos e a lim ites
333
teó rico s previam ente definidos. A b u sca atual por um a narrativa que correlacione aspectos
variados da vida, não se sujeitando a linearidade e/ou a representação que confere identidade a
um grupo. (B O U R D IE U , 1996)
sentidas em sua expressão narrativa. Para exem plificar, atualm ente ao escrever um texto
histórico, deve-se estabelecer as ações a serem representadas: deixar explícito aos leitores sobre
os elem entos que ju stifica m a escolha pelo sujeito biografado, assim com o salientar as
problem atização dessas encruzilhadas, que m uitas vezes envolvem a construção da pesquisa e
da escrita acadêm ica, tornaram -se parte do dever de historiadores, que, de m aneira
experim ental, estiveram sujeitos a cam inhos e a possibilidades diversas. (B A R R O S, 2010, p.9-
12)
E sses procedim entos são possíveis de serem adotadas no sentido de desnudar os canais
que legitim am a relação entre autor e leitor. A s questões salientadas podem rem eter a
problem áticas m ais am plas e gerar im portantes reflexões no cam po historiográfico. O que se
enfrentados durante a construção da pesquisa. A im p o rtân cia de p roblem atizar essas questões,
tam bém possuíam especial relação com outros indivíduos preocupados com as estratégias da
P e s q u is a e M ic ro -H is tó ria
P ara a construção desse novo olhar, ou seja, o reaparecim ento dos indivíduos e do
b iográfico com o parte central dos debates historiográficos, foi tam bém determ inante a
escolha po r M anoel Luís O sório e o processo de seleção e de tratam ento das fontes, foram
tam bém inspiradas nas contribuições de C arlo G inzburg e de C arlo Poni, sobretudo, o
tipo de bússola, com a capacidade de exercer um a dupla função: servir de guia ao pesquisador
334
narrativas. D esse m odo, a trajetó ria de um indivíduo específico e de suas relações, podem servir
pode oferecer, buscou-se reco n stru ir e articular problem áticas m ais gerais. A cessar, por
exem plo, as relações fam iliares, os anos de form ação profissional, as diferentes estratégias de
essas fases da vida de O sório com as transform ações ocorridas no espaço social que esteve
inserido. A s lutas que foram travadas, m as tam bém os lim ites de sua atuação no controle das
fronteiras tam bém em período de “paz” . A s m igrações territoriais que realizou, devido a
2011, p.161) N esse sentido, é im portante considerar que a escolha do individual não precisa
ser entendida com o a ausência do social, pois “ ao longo de um destino específico”, p o de-se
destacar as redes de sociabilidade, as variedades de espaços sociais e as tem poralidades que fez
respostas que enfatizam a redefinição de conceitos e um a análise aprofundada dos instrum entos
e m étodos existentes” . (LEV I, 1992, p .1 3 5 )177A possibilidade de observação por m eio dos
p.135) C om o ferram enta de análise, tam bém ajudou no entendim ento dos relacionam entos
pessoais, sobretudo po r procurar “ evidenciar a rede social em pleno funcionam ento, ou seja, os
E sta assertiva parte do princípio de que os estudos dos indivíduos históricos devem
p riorizar o desenrolar de suas ações, as situações perpassadas em suas vidas. E sse entendim ento
pressupõe u m a dinâm ica de pesquisa que privilegia a obtenção de grande volum e de registros
177 Para Levi a micro-história reúne uma ”gama de possíveis respostas que enfatizam a redefinição de conceitos e
uma análise aprofundada dos instrumentos e métodos existentes."
335
Sendo assim , a m icro-história influenciou decisivam ente nos estudos biográficos. Para
Schm idt, a m etodologia privilegiou o debate sobre o papel dos indivíduos n a história,
salientando certas “im plicações éticas” , com o: os lim ites das ações dos indivíduos.
(SC H M ID T , 2014, p.134) Im portante relativizar esse espaço de atuação individual, pois, com o
afirm ou G iovanni Levi: essa liberdade de ação “ não é absoluta” . P o r essa razão, as biografias
liberdade de que dispõem os agentes e para ob serv ar com o funcionam concretam ente os
sistem as norm ativos, que ja m a is estão isentos de contradições” . (LEV I, 1996, p .1 7 9 -180)
term os, os sujeitos do passado - hom ens e m ulheres - possuíam racionalidade, ainda que
lim itada. Isto quer dizer que suas vidas não eram definidas através de um a predestinação, m as
por um a série de aspectos - políticos, econôm icos, culturais etc - acionados por cada um
Isso im plica no esforço de entender esses aspectos, a partir dos contextos, dos
relacionam entos, dos m eios sociais que o indivíduo estudado fez parte. A s relações de poder
entre indivíduos e fam ílias que ocupavam posição de elite nas províncias im periais brasileiras
no século X IX , nesse sentido, não poderia se restringir som ente ao grau de p aren tesco biológico
entre os indivíduos envolvidos, m as tam bém aos com prom etim entos e às alianças consolidadas
através do m atrim ônio, do com padrio, de laços de sociabilidade e de reciprocidade. T ais fatores
estabeleceram um a certa lógica àquele sistem a, ou seja, o de dar e de retribuir, algo que era
observado se inseriu, ou seja, p erceb er com o M anoel Luís O sório construiu o prestígio político
vezes, envolveram diversos atores sociais, prom overam a associação de fam ílias em projetos
que se entrelaçavam em um conjunto de dem andas políticas. Seguram ente, para executar tais
projetos, M anoel Luís O sório teve de estabelecer ligações com outros indivíduos e com redes
P ortanto, para o entendim ento dessas estratégias foi fundam ental o entendim ento de
políticas e de com o se form avam os vínculos sociais entre fam ílias de elite, no R io G rande do
336
Sul oitocentista. A ssim com o qualquer outro indivíduo, M anoel L uís O sório estava conectado
por distintos conjuntos de interações sociais. E le era filho, irm ão, pai, m arido, proprietário de
terras e de indivíduos escravizados, m ilitar do E x ército im perial e p o lítico que atuava nos
bastidores das eleições. E nfim , era contem plado de diferentes conjuntos de relações, u m a vez
que nenhum indivíduo é filho, irm ão, pai e m arido de si m esm o ou ainda chefe político e m ilitar
C o n s id e ra ç õ e s fin ais
pressupostos que nortearam esta proposta de pesquisa. E m vista disso, m ostrou-se com o um
cam po de investigação im portante, principalm ente po r considerar que as ações sociais são
resultado de escolhas, de deliberações realizadas pelos indivíduos e grupos sociais. Isso, porque
“todo indivíduo ocupa um a posição em um a teia hum ana com posta po r relações que não lhe é
perm itido m odificar senão dentro de certos lim ites” . (SO U Z A ,2008, p.39)
O que se pretendeu foi analisar através do cruzam ento das fontes as relações que se
aproxim aram de M anoel Luís O sório ao longo de sua vida. Portanto, ao contrário de partir de
um contexto global para situar a atuação de alguns atores históricos, o exercício m etodológico
R e fe rê n c ia s B ib lio g rá fic a s
337
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339
OS SENTIDOS DA AUDIÇÃO: A CONSTRUÇÃO DA TRILHA
SONORA COM ÊNFASE NA REPETIÇÃO MUSICAL EM GRITOS E
SUSSURROS (1972) DE INGMAR BERGMAN178
H E L L E N SIL V IA M A R Q U E S G O N Ç A L V E S *
I n tr o d u ç ã o
diálogos p sicologicam ente penetrantes, um terceiro plano, um aural, com trilh a sonora que
m escla diálogos, m úsica clássica, u m a rica variedade de efeitos sonoros, com o o m arcan te som
A relação do diretor sueco com a m úsica se deu ainda na infância, graças a um pequeno
piano que havia em sua casa. Sua m ãe, vendo o interesse da criança pelo instrum ento, contratou
com o “ Hopp, hopp, hopp! Pferdchen lauf Galopp !” , aliada a um a inaptidão m usical, B ergm an
se afastou da atividade, em bora sem perder o encanto de ouvinte (LU K O , 2015, p. 03).
P osteriorm ente, já na vida adulta, B ergm an foi contratado para um a tem porada na Ó pera R oyal
Sueca, quando desenvolveu um am or pela m úsica dos com positores F rédéric Chopin, Franz
Schubert, W olfgang A m adeus M ozart, L udw ig van B eethoven, Johann Sebastian B ach e
para a sua estética cinem atográfica, procurando criar ligações entre as form as e os ritm os da
m úsica e o cinem a (LU K O , 2015, sem paginação): “ cinem a com o sonho, cin em a com o m úsica.
N en h u m a outra arte p assa tão p erto de nossa consciência diurna, indo diretam ente até nossos
178 Este trabalho comporta-se como uma revisão do artigo: GONÇALVES, Hellen S. M. As Cinco Mulheres de
Gritos e Sussurros (1972) - uma Construção Aural das Personagens de Ingmar Bergman. In: Congresso Brasileiro
de Ciências da Comunicação, 41. 2018, Joinville. Anais do 41° Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação. São Paulo: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2018. Grupo de
Pesquisa Cinema, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, 01-13. Disponível em:
https://portalintercom.org.br/anais/nacional2018/resumos/R13-1642-1.pdf. Acesso: 03 ago. 2020. E também é
derivado da dissertação: GONÇALVES, Hellen S. M. O cinema de Ingmar Bergman: A construção dos
elementos estilísticos e existencialistas em Gritos e Sussurros. 2019. 172 p. Dissertação (Mestrado em Artes) -
Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.
* Doutoranda em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisa desenvolvida com o
financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail:
hsmgoncalves23@gmail.com.
340
A trilh a sonora, que se divide em vozes, ruídos, m úsica e silêncio, dem onstra que quase
experiência fílm ica existe a viabilidade de constituir significados que são sentidos de m aneira
inevidente e o espectador ao procurar construí-los deve ter em vista a sua coerência com os
sentidos literais; e os significados sintom áticos, no qual alguns elem entos da obra podem
tam bém podem ser vistos com o u m a expressão individual e consequência das obsessões do
cinem a pode desem penhar um im portante papel de pontuação (C H IO N , 2013, p. 45), no qual
a m úsica clássica ocidental abre a possibilidade de se conduzir pelas cadências, que se arranjam
por m eio da inflexão m elódica e da progressão harm ônica, fazendo com que se antecipem antes
m eio dessas ligações intertextuais em larga escala entre film es, recorrendo repetidam ente aos
m esm os fragm entos m usicais, o cineasta cria um processo que gera m últiplas cam adas de
significado, o que atribui à trilh a sonora um papel privilegiado, principalm ente ao destacar de
m odo conciso os atos de fazer e ouvir m úsica, conferindo-a um papel ativo para influenciar a
ação das personagens e iniciar ou transform ar eventos dram áticos (LU K O , 2015, sem
paginação).
Gritos e sussurros (1972) situa a sua narrativa por m eio da vida de um grupo de cinco
m ulheres: três irm ãs - M aria (L iv U llm ann), K arin (Ingrid T hulin) e A gnes (H arriet A nderson)
-, sua falecid a m ãe (L iv U llm ann) e A nna (Kari Sylw an), sua em pregada. E m um a casa no
cam po, A gnes está bastante enferm a e recebe cuidados de suas duas irm ãs e de A nna, que
p recocem ente perdera sua filha e po r isso extravasa seu am or de m ãe, dando o m aior carinho
possível para aquela m ulher tão debilitada com câncer abdom inal.
N o film e, além dos to n s verm elhos perceptíveis em todo o decorrer da película, outros
dois elem entos com põem a narrativa cinem atográfica, m esm o que de form a discreta: a
341
P ara tanto, o recorte do trabalho estabeleceu Gritos e sussurros com o fonte prim ária,
dado que, concom itante à análise das im agens, o estudo do som nos incita a p onderar a respeito
da relevância dessa repetição m usical que se configura com o tem a para o film e, interpelando
qual o papel da trilh a m usical para este estudo. A p artir da investigação desse elem ento
averiguação da funcionalidade da repetição m usical dentro do discurso cin em ato g ráfico 179.
A ssim , o exam e de com o, quando, onde e po r que esses trechos m usicais são reciclados é
im prescindível para revelar a catálise das ações das personagens e destacar o m ergulho das
som, em com o am bos dialogam para produzir os efeitos desejados para o cineasta, o que pode
repetição m usical na narrativa. P ara edificar a análise, inicialm ente, foi em pregada a
cinem atográfica. A abordagem m icrocontextualista (ho rizo n tal) tam bém foi utilizada, sendo
esta para investigar as faixas m usicais no contexto das cenas e do film e com o um todo, o que
pode revelar o m odo pelo qual u m a m úsica pode atuar com o catalisadora das ações da tram a.
e im plicações m útuas entre im agem e som, situando em com o as m úsicas podem se relacionar
E m seus dram as existenciais das décadas de 1960 e 1970, B ergm an havia se distanciado
do uso m ais ou m enos convencional da m úsica de seus prim eiros film es, m arco que possui
com o fato r preponderante o seu casam ento em 1959 com a fam osa pian ista sueca-estoniana
ser encontradas nas autobiografias de B ergm an, com o Lanterna Mágica e Imagens.
179 Cf. XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico - A Opacidade e a Transparência. 4a ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2008.
342
N o d ecorrer de sua carreira, B ergm an convidou L aretei para atuar nas trilhas sonoras
de vários film es: O Olho do Diabo (1960), Gritos e Sussurros, Face a Face (1976), Sonata de
m usical que influenciaram suas abordagens referentes ao cinem a (LU K O , 2015, p. 25). A
a Op. 17, No. 4, que foi destaque em Gritos e Sussurros, tendo sido gravada em um piano
Steinw ay.
A repetição de trechos de m úsica clássica é um elem ento proem inente que pode ser
visto no decurso de to d a a film ografia bergm aniana. P ara tanto, A lexis Luko, em Sonatas,
Screams, and Silence: M usic and Sound in the Film s o f Ingm ar B ergm an, realizou o trabalho
cuidadoso de sistem atizar a ocorrência dessas repetições, abrangendo cinco décadas, de Prisão
(1949) a Sarabanda (2003), com o pode ser visto na tab ela (T abela 01) abaixo:
Tabela 01: Repetição de Trechos de M úsica C lássica nos Film es de Ingm ar Bergm an (1949-2003)
(C ontínua)
Film e T re ch o M usical N ú m e ro de
V ezes O uvido
Prisão Bach, Cantata n° 137 02
R um o à A legria Beethoven, Nona Sinfonia em Ré menor, Op. 125 02
M ozart, Quarteto de Flauta em Lá maior, K. 298 02
M endelssohn, Concerto de Violino em Mi menor, 02
Op. 64
Juventude Tchaikovsky, O Lago dos Cisnes, Op. 20 04
O Olho do D iabo Scarlatti, Sonata em Mi maior, K. 380 03
Scarlatti, Sonata em Ré maior, K. 535 02
Scarlatti, Sonata em Fá maior, K. 446 05
A través de um E spelho Bach, Violoncelo Suíte n° 02 em Ré menor, 02
Sarabanda
Para N ão F alar de Bach, Suíte Orquestral n °03 em Ré maior, Aria 07
Todas Essas M ulheres
Beethoven, Adelaide, Op. 46 02
343
Tabela 01: Repetição de Trechos de M úsica C lássica nos Film es de Ingm ar Bergm an (1949-2003)
(C onclusão)
Britten, Violoncelo Suíte n° 03, Op. 87 04
pontos em Gritos e Sussurros, no entanto a m úsica se apresenta quatro vezes na narrativa. E sses
tem as m usicais delineados pelo cineasta geralm ente sofrem algum a transform ação a cada
Investigar com o, quando, onde e por que esses trechos m usicais são reciclados nos
film es de B ergm an pode sugerir novas estratégias interpretativas para en ten d er as m aneiras
pelas quais a repetição m usical é conveniente para reforçar os tem as narrativos. L uko, para
d iscorrer sobre o assunto, possui com o aporte teórico a dissertação The Allegorical Device o f
the Character Double in the Films o f Ingmar Bergman, de Paul Luke, que se b aseia no ideário
de um a técnica de repetição, frequentem ente vista na film ografia bergm aniana, que envolve o
uso de dois corpos para representar aspectos díspares da m esm a psique form ando o conceito
de personagem duplo.
L uke distinguiu diferentes tipos de personagens duplos nos film es de Ingm ar B ergm an,
personagens que se m isturam e se com binam , com eçando a m anifestar as qualidades do outro
até que as linhas fronteiriças entre as duas identidades sejam ultrapassadas; enquanto que o
E lizab eth V ogler e N urse A lm a, em Persona (1965), Jons e A ntonius B lock, em O Sétimo Selo
(1957); e A lexander Ekdahl e Ism ael R etzinsky, em Fanny e Alexander (LU K O , 2015, p. 108).
personagens se fundem através da repetição dos trechos m usicais. O casionalm ente, essa fusão
344
é agradável, produzindo um ganho positivo, ao passo que, em outros m om entos, as m esclas
m usicais são disjuntivas e prejudiciais, fazendo com que as m ulheres percam de vista suas
próprias identidades individuais (LU K O , 2015, p. 109). E ssa peculiaridade corrobora o fato de
que Ingm ar B ergm an, a p artir da década de 1960, com poucas exceções, preferiu u sar m úsica
ênfase m ais trabalhada e m adura para o papel da m úsica em seus film es, salientando que os
sons não m usicais e o silêncio tam bém desem penham um papel im portante em suas trilhas
U m a das sequências m ais essenciais tem seu início m arcado po r um plano m édio de
A nna em seu quarto, a personagem está am arrando os cadarços de seus sapatos, estando
praticam ente de costas para a câm era, que a enquadra através das grades de sua cam a. A
em pregada se levanta, olha no espelho e se dirige para a cam a, arrum ando-a, para logo depois
pegar um avental e se sentar em um a cadeira, que está de frente p ara um a m esa com um a cesta
de m açãs verm elhas, um a vela, um a pequena B íblia e um retrato. A objetiva que até esse
m om ento acom panhava todos os m ovim entos de A nna sem se deslocar do seu eixo, agora fix a-
Eu Vos agradeço, Senhor, por me permitir acordar bem animada após um bom sono
sob Vossa proteção e pela boa noite de descanso. Eu Vos suplico também hoje e
sempre que os anjos protejam a minha filhinha... que Vós, na Vossa sabedoria levaste
para a Vossa morada. Amém.
Q uando A nna com eça a sua oração m atinal, a cena é cortada e, enquanto expressava
seus agradecim entos e pedidos, são visualizados diversos planos com o dois close-ups, um
plano-detalhe do retrato, em que é possível v er A nna com sua filha, e outro plano-detalhe
apenas do rosto da criança na fotografia. A ssim que a personagem term ina a sua prece, a
Mazurka de C hopin é ouvida inicialm ente em um contexto não diegético, praticam ente
sim ultâneo a um corte, seguido de um plano m édio de A nna apagando a vela, pegando um a
m açã, m ordendo-a e contem plando a fotografia. A personagem se levanta e a câm era realiza
A Mazurka ajuda a evocar a m em ória devastadora de A nna sobre sua fin ad a filha, além
de ressaltar as rem iniscências das três irm ãs, um a vez que, im ediatam ente após essa cena, a
m úsica continua a soar m esm o depois de um corte seguido de um plano m édio de A gnes
abrindo u m a porta para entrar em um côm odo da casa. A personagem se m ovim enta em direção
345
a um a m esa, em que se encontra um vaso com rosas brancas. A objetiva acom panha seus
m ovim entos m ostrando parte do côm odo, A gnes pega u m a dessas rosas e seu rosto é
enquadrado na tela. E la cheira a flor, expressando serenidade ao ato, porém , quando ela coloca
a rosa em cim a da m esa, a câm era se aproxim a ainda m ais de seu rosto e é possível com preender
certo sofrim ento, dado que a personagem abaixa a cabeça, escondendo-a entre os braços.
A câm era faz um m ovim ento para trás enquadrando um p lano-detalhe da rosa. N o
form ato da flo r aparece a m ãe das irm ãs vestida de branco, tem -se um fade out e vários planos
da m atriarca passeando por um jard im , sim ultâneos à narração do ponto de vista de A gnes, por
Mamãe está nos meus pensamentos em quase todos os dias, embora tenha morrido há
mais de vinte anos. Eu me lembro que ela sempre buscava a solidão e a paz do parque.
Também me lembro que a seguia de longe e a espionava quase sem querer, porque
eu a amava a ponto de sentir ciúme. Eu a amava porque ela era tão doce, bonita e
animada e tão intensamente presente. Mas ela também podia ser fria, sutilmente cruel
e me repelir. No entanto, eu não podia deixar de sentir pena dela e, agora que estou
mais velha, a entendo melhor. Eu queria poder vê-la de novo e dizer que entendo o
tédio, a impaciência, os desejos e a solidão dela.
A gnes, ao segurar a rosa branca, parece hipnotizada pelo m om ento e um gatilho libera
as m em órias reprim idas de sua falecida m ãe. A Mazurka acom panha todo esse flashback da
infância, contudo sendo sobreposta pela voz e cessando quando tem um corte para adentrar em
continua n essa cena, enquanto tia O lga conta um a história que está sendo ilustrada pelas
im agens da lanterna m ágica e todos estão reunidos e sorrindo. A gnes, estando m ais afastada do
grupo, estuda com inveja a proxim idade entre sua m ãe e sua irm ã M aria, que estão abraçadas:
“M am ãe e M aria sem pre tiveram m uito o que sussurrar, elas eram tã o parecidas. Com ciúm es,
soar da Mazurka retorna ju n ta m e n te com um close-up de A gnes criança, que está atrás de um a
cortina. M ediante outro corte, o espectador se depara com um plano conjunto da m ãe sentada.
A través de vários contracam pos e da narração, torna-se possível com preender que A gnes está
observando a m ãe, até o m om ento em que esta olha em direção à filha. A câm era realiza um
close-up em A gnes, que ainda está atrás da cortina, e a acom panha no m ovim ento em direção
à m ãe: “ Insegura, eu fui até ela, achando que, com o sem pre, ela iria m e repreender. M as, em
vez disso, ela m e deu um olhar tão cheio de dor que eu quase caí no choro. E rgui a m inha m ão
346
N o instante em que A gnes realiza o gesto de carícia, tem -se um prim eiro plano da m ãe,
que está de frente, em que tam bém é possível ver A gnes, que está de costas. A cena se
desvanece em v erm elho e o soar da Mazurka term ina. A m úsica nessa sequência do film e
origina e reforça a conexão de todas essas m ulheres, transpondo cada um a delas, po r sua vez,
para vestígios notórios do passado (LU K O , 2015, p. 113). A inda na rem iniscência de A gnes
com sua m ãe, p ercebe-se a presença das rosas brancas, do soar da Mazurka e de um piano de
salão, inserindo o questionam ento se a m úsica seria parte da diegese do film e nesse m om ento
M aria, ao ser alienada em seu próprio ser e dada a condição volátil intim am ente ligada
à ocasião, claram ente esconde suas ações para defender o seu m odo de vida. Tal aspecto pode
ser visualizado em outra parte da sequência que com põe um flashback, m as que particularm ente
m escla-se com o onírico. A cena tem seu início m arcado po r um close-up de Joakim , m arido
de M aria, em que sim ultaneam ente ouve-se a Mazurka, de C hopin. E n q u an to a m úsica continua
a tocar, a entrada de A nna no enquadram ento é precedida por sua voz, j á que esta deseja bom
dia para o patrão, sem aparecer no cam po da câm era. Q uando ele a responde, a câm era realiza
um m ovim ento para trás, agora enquadrando Joakim do tórax para cim a, sendo possível v ê-lo
lendo um jo rn al e parte do corpo de A nna, que está lhe servindo algo. A serviçal se retira do
enquadram ento, ao passo que Joakim continua com o jo rn al em sua m ão, porém aparentando
estar distraído. A pós esse m om ento, tem -se um corte seco da cena e a Mazurka para de to car
abruptam ente, salientando que a voz é d estacada dos dem ais sons e a m úsica apenas se sobrepõe
aos ruídos.
Segundo A lexis Luko, o soar da Mazurka ativa o flashback de M aria e, desta vez, a
personagem é inquestionavelm ente a pianista. E sse acontecim ento dem onstra com o In g m a r
B ergm an brin ca com os lim ites da criação de m úsica dentro e fo ra da tela, j á que nunca revelou
M aria ao piano e film ou a cena inteira com a câm era fixada em Joakim . E ssa passagem em que
agrupam entos repentinos e exasperados. M aria sim plesm ente desiste de C hopin, não
e subjetivo (C H IO N , 2013, p. 73-74). E ssa interrupção da m úsica à prim eira vista se com porta
de m aneira inocente, com o algo da v id a privada burguesa com um a sessão de prática de piano
no início da m anhã; entretanto, no dia anterior, M aria teria com etido um adu ltério com o
m édico da fam ília. A Mazurka, de C hopin, portanto, pode ser interpretada com o um a espécie
de m áscara (LU K O , 2015, p. 117). M aria se esconde po r trás de sua beleza intrínseca,
347
esperando desesperadam ente cobrir seus rastros adúlteros, fabricando u m a cena inocente de
fazer m úsica dom éstica, podendo afirm ar seu caráter de m entirosa, sedutora e adúltera (LU K O ,
2015, p. 115).
Q uando a m úsica cessa, M aria entra em cena ju n ta m e n te com a filha e conversa com
Joakim sobre assuntos cotidianos. O hom em acaricia a face da m ulher e da criança, para, então,
possibilidade de seu m arido ter conhecim ento da traição, o segue e encontra Joakim sentado à
frente de um a escrivaninha com um abridor de cartas encerrado em seu abdôm en. O hom em
ferido ao suplicar po r ajuda sim plesm ente obtém um a resposta negativa po r parte de M aria.
pelo terceiro soar da Mazurka, é a única expressão da intim idade em ocional entre K arin e
M aria, que inicialm ente se com porta com o redentora. L ogo após ao flashback da autom utilação
genital de K arin com o um ato de desespero em um casam ento sem am or, tem os um m om ento
em que M aria indaga a irm ã po r que am bas não possuem um a am izade, po r qual m otivo suas
conversas apenas perm eiam banalidades, im plorando, assim , por algum com panheirism o.
P erm anecendo quase com o um m onólogo de M aria, nessa cena, som ente ouvim os a voz
de K arin quando esta com eça a ler o diário de A gnes e, em seguida, deixa a irm ã acariciar seu
rosto em um a com binação de h orror com afeição, salientando novam ente a sua ojeriza ao
contato. Posteriorm ente, quando as duas irm ãs se encontram a u m a m esa para um a refeição, a
situação se inverte: o m onólogo nessa ocasião é de K arin, que, no início, discorre sobre a vida
cotidiana e as posses da fam ília, m as, em um súbito m om ento, com eça a falar sobre suicídio e
sua relação com o m arido. D iante do desconforto da irm ã, K arin im ediatam ente m u d a de
postura, dizendo que a odeia e cham ando-a de falsa. E ssa cena é inteiram ente constituída por
que assum e com pletam ente a cena de m odo extradiegético e contradizendo todo o te o r da
relação das duas irm ãs. P aralelam ente ao início da cena, tem -se um plano próxim o de M aria e
K arin abraçadas, com os rostos bem próxim os e as duas se m ovim entam entrelaçadas com a
câm era as acom panhando em panorâm ica. A pós um corte, segue-se um close-up das irm ãs, em
que a câm era se m ovim enta de um lado para o outro enquadrando suas frontes separadas,
fixando-se posteriorm ente nos rostos das duas m ulheres, enquanto elas conversam , se
acariciam e se beijam .
348
T endo um novo corte, agora o espectador pode enxergar um plano próxim o das duas
irm ãs, em que elas continuam a se acariciar, sendo seguido de outro corte com um close-up de
M aria e contracam po dos rostos das duas m ulheres. Sucessivam ente, a câm era se m ovim enta
em panorâm ica da esquerda para a direita enquadrando em cada m om ento a face de um a das
personagens, p ara adiante realizar um close-up de seus rostos praticam ente unidos com beijos
contínuos e “as duas irm ãs só sobrevivem girando em torno dele e se afastando m utuam ente”
(D E L E U Z E , 1983, p. 123). A câm era se m ovim enta para cim a, fixando-se apenas na parede
v erm elh a que se encontra ao fundo, encerrando a cena com um fade in.
frequentem ente na film ografia bergm aniana e, possivelm ente, essa constante ocorre em função
da linhagem ilícita da Sarabanda, que pode te r atraído B ergm an. A dança foi proibida na
com parável à dos protagonistas bergm anianos psicologicam ente carregados (LU K O , 2015, p.
119). E ssas sarabandas têm um talento especial para co ngelar o tem po e em balar as
em prego n esta cena pode rem eter a um m om ento am bíguo da relação de K arin e M aria.
O silêncio na obra é abordado po r B ergm an na figura de A nna, que perm anece calada
durante todo o film e. Sua m udez é atribuída a sua baix a posição social e a seu status de estranho
na fam ília, não obstante é inegável sua proxim idade com a doente A gnes. N a relação dessas
m ulheres, o silêncio é substituído pelo som do vento, que parece sussurrar, e pelos gritos de
dor de A gnes. E sses elem entos com binados, aliados a fortes im agens presentes nas cenas em
de u m a atm osfera fúnebre e o ato de am or, em que A nna constantem ente oferece seu calor
A conexão física e espiritual entre essas duas m ulheres se to rna perceptível no segundo
real e o onírico, tendo o seu início aparente com o u m a rem iniscência de A nna para se
tran sfo rm ar na volta do tú m ulo de Agnes. Q uando K arin e M aria rejeitam A gnes, j á m orta, é
A nna quem oferece seu próprio corpo para ajudar na passagem do plano m aterial p a ra o
m om ento ouve-se o segundo soar da Sarabanda , de B ach, que novam ente to m a conta da cena
de m aneira extradiegética. Sincronicam ente, quando se ouve a Sarabanda a cena tem um plano
conjunto de K arin e M aria perm eado po r um a ilum inação escura, seguido de um corte que
m ostra M aria em close-up, acom panhado de um novo corte para visualizar, agora, um close-
349
up de K arin. Posteriorm ente, tem -se um novo corte, sendo possível v isualizar a percepção da
reprodução e a associação sim bólica da obra Pietà (1499), de M ichelangelo di L odovico
falsidade de K arin e M aria, j á m arcado na prim eira ocasião em que se ouve a m úsica, que
depois ojerizam a irm ã e provavelm ente agiam por obrigação, e o sentim ento pueril e m aternal
de A nna para com A gnes, que oferece o próprio corpo para o conforto da m orta. A Sarabanda
conduz a cena de m odo a interrom per a narrativa e elev á-la a um contexto puram ente
sentim ento hum ano m uito profundo, um a vez que a cena não apresenta diálogos e se com porta
com o redentora central: a expressão m áxim a e estim a da intim idade em ocional entre as duas
personagens (B R O M A N , 2012, p. 27). O utro ponto que corrobora tal questão é o figurino
dessas quatro m ulheres, enquanto A nna e A gnes estão vestidas de branco, K arin e M aria se
O utro m om ento de absorção física entre A gnes e A nna ocorre em u m a das sequências
finais de Gritos e Sussurros, em que se ouve p ela quarta vez o soar da Mazurka, de Chopin.
E m um plano m édio de A nna acendendo u m a vela, paralelam ente a m úsica irrom pe por to d a a
sequência, sobrepondo-se aos ruídos, ao passo que a serviçal abre u m a gaveta para pegar o
diário de A gnes, destacando as m açãs presentes no fundo do quadro. A nna se dirige para a sua
cam a, dispondo da vela e do diário em suas m ãos. E m plano am ericano, a em pregada abre o
diário e se tem novam ente um corte, que é sucedido por um plano detalhe do diário. O utro corte
e o espectador v isualiza um close-up de A nna que com eça a leitura do diário: “ Q uarta-feira,
três de setem bro. O arom a do outono preenche o ar lím pido e parado, m as é leve e fino” , sendo
A câm era se m ovim enta para baixo m ostrando um p lano-detalhe da vela. N esse instante
há um m om ento de com unhão aural com parável ao exem plo anterior de absorção física entre
as duas personagens. A qui, a m uda A nna e a m uda A gnes, po r m eio da m orte, se encontram
em suas vozes enquanto se unem auralm ente com o u m a só (LU K O , 2015, p. 118). A câm era
desliza dos lábios de A nna com o u m a narração de fora do túm ulo, po r m eio da utilização do
recurso de voz over, costum eiram ente em pregado em leituras de diário no âm bito
cinem atográfico. N essa ocasião, quem ouvim os é A gnes: “M inhas irm ãs K arin e M aria vieram
m e ver. É m aravilhoso estarm os ju n ta s novam ente, com o nos velhos tem pos e estou m e
sentindo m uito m elhor. N ó s fom os capazes de cam inhar ju n tas. Foi um acontecim ento p ara
350
m im , sobretudo porque não saio há tanto tem po” . Isso sinaliza u m a m udança do som diegético
apresentando um plano próxim o de A gnes que cam inha em direção à câm era im óvel.
Posteriorm ente, através de um corte, tem -se um plano geral da área externa da propriedade com
as três irm ãs e a em pregada cam inhando; todas estão de branco, apenas a roupa de A nna é um
pouco m ais escura. N ovo corte e plano conjunto das quatro m ulheres cam inhando, sorrindo e
direção ao balanço, as três irm ãs se sentam e A nna com eça a em purrar. O utro corte, plano
am ericano das quatro personagens no balanço, em que A gnes está no centro do quadro. A
câm era lentam ente se aproxim a dela, enquadrando seu rosto e tornando perceptível o m odo
com o ela olha para as outras m ulheres. Q uando A gnes olha diretam ente para a câm era, o soar
da Mazurka term ina, porém prim eiram ente a m ulher finaliza o seu discurso:
Todas as minhas dores se foram. As pessoas que eu mais amo no mundo estavam
comigo. Podia ouvi-las conversando ao meu redor. Podia sentir a presença dos seus
corpos, o calor das suas mãos. Queria prender aquele momento fugaz e pensei: Haja
o que houver, isto é felicidade. Não posso desejar nada melhor. Agora por alguns
minutos posso viver a perfeição. E eu me sinto profundamente grata a minha vida,
que me dá tanto.
A Mazurka, de C hopin, acom panha todos esses quadros finais, sendo aliada ao instante
em que a voz de A nna se tran sfo rm a na de A gnes, to rn an d o -se u m a lacuna fantástica, gerada
pelas vozes diegéticas e não diegéticas das m ulheres, evidenciando a ideia de que essa é um a
m em ória com partilhada pertencente tan to a A nna quanto a A gnes. Logo, B ergm an acaba por
criar sim ultaneam ente um vínculo narrativo e conceitual para a cena do gatilho da rosa b ran ca
C o n s id e ra ç õ e s F in a is
N o decorrer deste trabalho, foi realizada um a tentativa de análise para com preender de
que m odo a trilh a sonora atua com o fato r de catálise para as ações das personagens, evocando
m em órias que beiram ao onírico e dialogando com os dem ais elem entos estilísticos. A repetição
m usical se com porta de m aneira preponderante para as interrogações delineadas, dem onstrando
que Ingm ar B ergm an diversifica o m odo com o insere os trechos de m úsica clássica no decorrer
351
da obra. E ssa repetição p ropicia investigar u m a obra m usical em diferentes segm entos,
com binando o trech o com efeitos sonoros e/ou voz over (LU K O , 2015, p. 219).
com preendeu que Gritos e Sussurros tratava profundam ente de sua m ãe, que ele a descreveu
por m eio da fo rm a de quatro m ulheres diferentes, que nenhum a delas é realm ente a sua m ãe,
m as que to d as elas o são. N o entanto, no docum entário A Ilha de Bergman (2006), realizado
pela cineasta M arie N yrerod, B ergm an é indagado sobre tal afirm ação e responde o seguinte:
Isso foi uma mentira para os meios de comunicação. Foi uma observação espontânea
e descuidada. Até hoje me persegue, pois desde então tem sido relacionada ao filme.
Alguns comentários estúpidos que se faz tendem a ter vida própria. Foi uma mentira.
Disse só para ter o que dizer. É muito difícil dizer algo a respeito de Gritos e
Sussurros. Disse e pronto.
análise com ênfase na im agem que o diretor am biciona passar para o leitor/espectador, sendo
pouco antes do agonizante outono de A gnes. E sse caso reflete o uso convencional do tem a do
verão po r parte de B ergm an, reflexo da tradição rom ântica sueca, em contraste com a ilusão, a
realidade da hipocrisia e da traição desnudadas pelas histórias, porém há tam bém o alcance das
tentativas de retirar a m orte de seus pavores. A entrega do cineasta sueco para com A gnes
transm ite a m esm a m isericórdia, estando o am or de A nna com o um tipo de abraço para
E xiste u m a tela v azia e o film e com eça com quadros de um verm elho profundo, com
seu títu lo e créditos, além do som suave dos relógios. D epois, há alguns m om entos da v id a e
finalm ente a m orte, instante em que cada u m a das partes da alm a se esvai e seus últim os
abrupto em um a m oldura verm elha, com as palavras: “E ntão, os gritos e sussurros ficam
A inda m ais visivelm ente do que as cenas de abertura do film e, o final id ílic o fornece
que o sentim ento de A gnes referente à bondade da infância lhe foi restituído, o jo g o infantil
das irm ãs no balanço e o b ran co usado pelas m ulheres im plicam um salto cativante para um a
inocência passada, em que a culpa no núcleo do film e é subm ergida em suave ilusão através da
fam ília reunida am orosam ente. A gnes se envolveu em u m a busca, que term in a na perfeição
352
que ela experim enta com suas irm ãs e A nna; sinalizando o significado dessa perfeição, o tem a
e depois a erupção de em oções do raro m om ento de intim idade da garota com sua m ãe (G A D O ,
1986, p. 421).
A lém disso, nos casos em que o trecho m usical não sofre alteração por m eio da
repetição, torna-se segura a m odificação dos contextos, personagens narrativos e/ou ângulos
de câm era. N a obra bergm aniana, os repetidos trechos m usicais tipicam ente levam a um
aspecto que pode ser visto ao d iferenciar as conjunturas e sensações que a Sarabanda pode
oferecer.
duplos am algam ativos, enquanto que em outras ocasiões expõe as rupturas entre os
personagens duplos disjuntivos, com o as irm ãs de Gritos e Sussurros. A dem ais, a repetição da
Mazurka, de C hopin, ajuda a liberar m em órias reprim idas para esse grupo de m ulheres,
instigando u m a reencarnação m etafórica da figura m aterna, prom ovendo a com unhão e o
colapso para um a m istu ra de pares am algam ativos (A gnes e A nna) e disjuntivos (as trê s irm ãs).
A s m elodias de B ergm an se repetem nos m om entos clim áticos de seus film es, servindo para
guiar as em oções e destacar os tem as narrativos unificadores em todo o seu universo m ítico
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355
O ROMANCE GABRIELA, CRAVO E CANELA COMO LUGAR DE
MEMÓRIA DA CAPITAL DO CACAU: REPRESENTAÇÃO DA
CIDADE DE ILHÉUS-BA DA DÉCADA DE 1920
IG O R C A M PO S SA N TO S*
cidade passava po r constantes transform ações econôm icas e urbanas. T endo vivenciado o
das estórias a respeito da “ conquista” e “ desbravam ento” das terras do cacau por m eio da
m em ória de seus pais e tios, bem com o, provavelm ente, pelo contato que teve com as narrativas
que circulavam na im prensa escrita local a respeito desse processo (Ver: PO L L A K , 1992;
H A L B W A C H S , 1990); o escritor criou seu universo ficcional sobre a região sul da B ahia, a
“ região cacaueira” , e m ais especificam ente sobre Ilhéus, que era conhecida com o “ C apital do
cacau” e após o sucesso de seus rom ances, com o “ T erra da G abriela e de Jorge A m ado” .
E m entrevista para a francesa A lice R aillard, o escritor diz que foi para Ilhéus
(...) com um ano e pouco, um ano e quatro meses. Nasci em Ferradas, mas, quando
chegou a colheita do Rio Cachoeira, em janeiro de 1914, que destruiu a plantação de
meu pai, fomos para Ferradas, e de lá para Itabuna; depois continuamos diretamente
até Ilhéus, onde meu pai foi morar, no Pontal, e fazer tamancos, com minha mãe.
(1990)
O utro m otivo apontado po r A m ado para a saída de seus pais de Itabuna, foi a epidem ia
de varíola, conhecida na época com o “bexiga negra” ; e em suas m em órias ele com enta sobre o
m edo que tin h a do lazareto, lugar para onde iam os “bexigosos, m etidos em sacos de aniagem ,
A os onze anos, em 1923, o “ m enino grapiúna” foi colocado num internato religioso em
Salvador, ou C idade da B ahia, com o era conhecido naquele tem po. Lá, Jorge A m ado entrou
em m aior contato com o m undo das letras e da literatu ra clássica através de seu professor, L uiz
Inevitavelm ente as notícias de sua cidade de coração, a então bela Ilhéus, lh e chegavam por
Da m esm a form a, o futuro escritor deve ter tid o contato com as narrativas e inform ações
acerca do desenvolvim ento urbano e da riqueza de Ilhéus quando, aos 14 anos, foi trabalhar
356
com o rep ó rter investigativo p ara o jo rn al Diário da Bahia, escrevendo reportagens policiais,
1990, p. 32) O u tam bém quando passava as férias escolares nas terras do cacau, “ à b eira -m ar,
P o r isso as suas criações ficcionais a respeito do sul da B ahia têm m uito de suas m em órias
vividas ou adquiridas através do reavivam ento de m em órias de seus pais e/ou tios, em suma,
de sua “ com unidade afetiva” , o grupo dos coronéis do cacau, m as tam bém dos subalternizados
- trabalhadores urbanos e ru ra is.180 (R IB EIR O , 2008) É im portante destacar que a fam ília do
rom ancista era com posta pelos cham ados “ desbravadores” , que lutaram pelas terras do cacau,
e ele m esm o ressalta isso em sua conversa com A lice R aillard quando afirm a que seu pai “ m uito
corajoso, participou de todas essas lutas” , sendo “ferido três vezes: na prim eira e u [Jorge
187)
(...) Meu pai cortava cana para a égua, sua montaria predileta. O jagunço, postado
atrás de uma goiabeira, a repetição apoiada na forquilha de um galho (assim o enxergo
na nítida rememoração), esperou o bom momento para descarregar a arma. O que
teria salvo o condenado? Um movimento brusco dele ou da égua, talvez, pois o animal
recebeu a bala mortal, enquanto nos ombros e nas costas do coronel João Amado de
Faria vieram incrustar-se caroços de chumbo que ele jamais retirou, visíveis sob a
pele até o fim da vida. (AMADO, 1982, p. 7)
E m resum o, o pai do rom ancista, “ desbravador de terras” que “ (...) plantara cacau, a
riqueza do m undo. N a época das grandes lu tas” , (A M A D O , 1982, p. 6) e sua m ãe, que “ dorm ia
com um a carabina sob o trav esseiro ” , (A M A D O , A pud R A IL L A R D , 1990, p. 189) assim com o
com partilharam com A m ado as m em órias dos riscos e aventuras daquelas terras perigosas.
D a m esm a form a, o escritor tam bém recordava de acontecim entos que presenciou ainda
m enino, com o as frequentes brigas de bar, assassinatos bárbaros, os advogados de defesa dos
Era assim; estes são os elementos da minha infância... um mundo bárbaro, que às
vezes tinha elementos da Idade Média, um tempo cheio de aventureiros, prostitutas,
um mundo que também tinha um lado divertido, muito vital, os franceses e os
poloneses, as brigas de bar, um sem-número de brigas de bar. (AMADO, Apud
RAILLARD, 1990, p. 194)
180 A comunidade afetiva é composta por sujeitos que compartilham vivências e memórias, permitindo que uma
memória individual complemente a outra e que a memória coletiva seja compartilhada por todos os homens e
mulheres que compõem essa comunidade. (HALBWACHS, 1990)
357
O próprio A m ado foi quem confirm ou que os seus rom ances se baseavam em suas
m em órias de infância:
Eram coisas da minha infância... (...) São as coisas que vivi, que conheci em minha
infância, e que estão na base de tudo o que depois criei e recriei. Até mesmo os
romances da Bahia (...), mesmo aí há muitos reflexos da infância, muitas coisas que
se encontram ligadas ao tempo da minha vida na região cacaueira. (AMADO, Apud
RAILLARD, 1990, p. 196)
m odificou acontecim entos, inverteu a ordem de fatos históricos da região cacaueira e inventou
tan to s outros, produzindo assim seu universo ficcional na “ saga do cacau” . (SA N T O S, 2021)
especificam ente em Ilhéus, são tom ados por m uitos de seus leitores com o acontecim entos que
seus rom ances para a m ídia audiovisual, com o cinem a e televisão, por m eio de film es e novelas
am plam ente divulgadas nacionalm ente, a popularização dessas estórias alcançou públicos
m aiores, incluindo aqueles que não tinham acesso aos livros po r m otivos econôm icos ou pelo
apropriações da ficção am adiana perm itiram a prom oção e facilitação da transform ação da
de Ilhéus aproveitaram a fam a do escritor e de um de seus m aiores rom ances, Gabriela, Cravo
principalm ente o já citado Gabriela, a área do centro histórico de Ilhéus sofreu algum as
m odificações físicas, com o o fecham ento de ruas para construção de calçadões; a restauração
de prédios históricos (principalm ente os citados no rom ance, ou aqueles supostam ente
entre o “ real” e o im aginário na população e nos turistas que visitam /visitaram a cidade.
(SIM Õ E S, 2002)
A lguns em presários aproveitaram as apropriações desse rom ance ( Gabriela) pelo setor
na narrativa, usando-os em seus estabelecim entos com erciais ou em em presas. Ficou com um
358
v er nas fachadas das lojas im agens que rem etiam principalm ente à personagem G abriela,
representada com o um a m ulher bela e sensual, de pele bronzeada. D e acordo com M aria de
O signo Jorge Amado está por toda a parte. Por vezes, sentindo-se um tanto dono da
"marca", o local, em exploração banalizadora, expõe a imagem de uma Gabriela em
ônibus urbanos, lanchonetes, pousadas... Coloca o nome em tipos de sanduíche,
sorvetes, chocolates; busca, dessa forma, atrair pela beleza, sensualidade, cheiro (de
cravo e canela), instituindo o "tipo" Gabriela, vinculada ao tempo áureo do cacau.
(SIMÕES, 2012, p. 4)
A reform ulação do espaço central da cidade para abrigar um a m em ória b asead a na ficção
am adiana, e a confusão entre acontecim entos históricos e acontecim entos ficcionais po r parte
dos habitantes e dos turistas, fez com que pessoas de sobrenom es tradicionais da cidade
afirm assem que alguns dos personagens criados po r A m ado fossem seus parentes, ou versões
destes. E sse é o caso de H élio L im a Júnior, tam bém conhecido com o Jú n io r M aron, dono de
Ilhéus, minha paixão, da R edebahia, apresentou as “ delícias culinárias” tradicionais de sua avó
e afirm ou que D o n a L ourdes (com o era conhecida) e seu A vô, E m ílio M aron, foram as
inspirações de Jorge A m ado para a criação dos personagens G abriela e N acib. D e acordo com
que se estabeleceu na cidade com o com erciante; após a m orte do pai ela se casou com E m ílio
M aron, filho de pai im igrante libanês e m ãe francesa. A té aqui, a ú n ica sem elhança com o
rom ance é o fato de N acib tam bém ser filho de im igrantes libaneses, porém nascido no Líbano.
(R E D E B A H IA , 2022)
A inda segundo H élio, seus avós foram proprietários do b a r V esúvio de 1945 até a década
de 1980, e D o n a L ourdes cozinhava as com idas tradicionais árabes, a exem plo do quitute que
passou a ser divulgado na cidade com o quibe do N acib. (R E D E B A H IA , 2022) A p artir daí o
em presário fez a associação entre a narrativa do rom ance Gabriela, com algum as
características pessoais de sua fam ília, inform ando tam bém que além de boa cozinheira, sua
avó era u m a m u lh er bela e que “ cham ava a atenção” quando jo v em . Isso lhe proporcionou
C ontudo, em entrevista cedida ao B log do A nderson, em 2012 (há dez anos), o m esm o
neto de D o n a L ourdes, Jú n io r M aron, parece não gostar da associação feita entre sua avó e a
personagem G abriela. E le com enta que entre D o n a L ourdes e G abriela “ não há nenhum a
359
sem elhança com a personagem do livro de Jorge A m ado. (...) qualquer pessoa que com parar a
h istória de E m ilio e L ourdes verá que não há sim ilaridades com G abriela e N a c ib ” (M A R O N
É importante registrar que toda essa comparação começou a ser feita logo após o
lançamento do livro, quando um jornalista ilheense e radicado em São Paulo, muito
amigo de Jorge Amado, publicou na revista de maior circulação da época, “O
Cruzeiro”, uma matéria em que relacionava os protagonistas do livro com meus avós.
A partir daí, surgiu todo esse incômodo, toda essa lenda criada e recontada ano após
ano. (Idem)
Todavia, em outra legenda que acom panha a fotografia de E m ílio M aron na reportagem é dito
que ele “ não dem orou a identificar-se com o insp irad o r do árabe N acib, que am ou G abriela”
(Idem ). A inda assim , fica evidente no decorrer da entrevista que o sr. M aron n ã o lera o rom ance
lo” e confirm ar a suspeita do rep ó rter sobre a inspiração de A m ado na criação de N acib: “Jorge
deve te r dito algum a coisa que, provavelm ente, não p o d ia estar ao seu alcance. Se tivesse m e
procurado antes, conversando assim com o estam os, eu poderia ter revelado outras coisas da
O neto de M aro n afirm a que seu avô dizia que a reportagem foi um “golpe de publicidade
b o lad o p o r Jorge A m ado e pelo jo rn a lista am igo dele” , Jorge M edauar; e acredita que o sucesso
D O A N D E R SO N , 2012) E ntretanto, o próprio rom ancista deixa explícito que apesar de ter
partido “ de fatos e figuras reais” , isso não significa que “tais fatos e figuras estejam
transportados fotograficam ente para o rom ance. R om ance é obra de criação. P artindo da
1959). A inda assim , a exploração turística da cidade pelo setor em presarial, baseada na ficção
am adiana, usufrui dessas associações vulgares; e o próprio Jú n io r M aro n parece ter se adaptado
a essa realidade.
C om a escassez na produção cacaueira, a p artir dos anos 1990, provocada pela “vassoura
360
sem cacau e praticam ente sem opção do que explorar, essa associação [entre seus avós e os
E ssa assim ilação entre ficção e realidade ocorre devido ao entrelaçam ento entre o tem p o
narrado na ficção e o tem po da narração, ou seja, entre o período no qual se p assa a tra m a e o
contexto da sua escrita; ou contexto da escrita do autor e sua m em ória. (ECO , 1994). O escritor
b aian o ressalta que “É natural, no entanto, que os leitores, sobretudo os da cidade onde se
sociais” e por isso precisam os “te r consciência da relação arbitrária e deform ante que o trabalho
Jorge A m ado fez exatam ente isso em seus rom ances, principalm ente os relacionados à
“ saga do cacau” e à cidade de Ilhéus, pois, assim com o fazia com os acontecim entos históricos,
o escritor m ontava personagens b asead o s em pessoas reais que conhecia, os quais criavam vida
adicionando um a m aio r carga em otiva às suas tram as. P orém , o próprio C andido salienta o
A inda assim , isso não im pede a fruição da liberdade criativa dos escritores de ficção, e
“ m esm o dentro da orientação docum entária, é o quinhão da fantasia, que às vezes precisa
m odificar a ordem do m undo ju sta m e n te para to rn á-la m ais expressiva; de tal m aneira que o
sentim ento da verdade se constitui no leitor graças a esta traição m etódica.” (C A N D ID O , 20 06,
p. 21)
Jorge A m ado, ao nos transportar para o m undo inventado po r ele, está ao m esm o tem po
interpretando a p artir da rem em oração os acontecim entos que ouviu e presenciou nas terras do
cacau e criando novos. Sejam os casos de assassinatos bárb aro s ligados às lutas pela posse da
porto; ou a beleza da cidade em crescim ento com a abertura de novas ruas; a construção de
palacetes m onum entais; a ascensão da econom ia cacau eira e a desigualdade social produzida
361
por ela. E m sum a, o autor “intérprete do B rasil” nos leva para a sua realidade e nos induz a
“ extrapolar” a ficção, acreditando que tudo o que ele escreveu corresponde aos fatos que
O rom ancista foi um dos principais intérpretes da realidade da região cacaueira e m ais
especificam ente da cidade de Ilhéus, pois além de seus rom ances guardarem em si a m em ória
coletiva dos C oronéis do cacau, neles tam bém se p ercebe um esforço para preservar os
outra realidade, aquela dos bairros habitados pela população pobre e dos sujeitos “m al
afam ados” - para além da riqueza, do progresso e dos palacetes, construídos pela renda do
cacau - foi quase todo desconsiderado pelas apropriações das suas narrativas feitas de form a
É po r isso que Gabriela, Cravo e Canela vem sendo considerado um lugar de m em ória
(N O R A , 1993) que conserva a m em ória social da cidade firm ada na ideia de riqueza,
sujeitos subalternizados tam bém presentes na tram a. E apesar da divisão de sua obra em duas
fases, criada pelos críticos literários, a m ilitante e a cultural ou hum orística, o escritor preservou
em am bas a crítica social em relação à vida dos m ais pobres. (SA N T O S, 2021)
A respeito desse rom ance ser tratad o com o “um divisor de águas na carreira do escritor”
reafirm ando sua unidade. (SA N TO S, 2021, p. 22) N as palavras do escritor, a separação de seus
Tudo isso é uma tolice incomensurável. Mas perdura até hoje: as duas obras, a do
início, revolucionária, denunciando a injustiça social, e a outra. Não, minha obra é
uma unidade, do primeiro ao último momento. Só se pode dizer que existe, no início,
uma profusão do discurso político, correspondendo ao que eu era então. (AMADO,
Apud RAILLARD, 1990, p. 267)
A inda assim A m ado reconheceu que “ G abriela aparece com o um a etap a clara de um a
ressaltou que não abandonou a preocupação com as causas sociais no rom ance. E le apenas
m udou seu m étodo de ataque e crítica ao m odelo social instituído, partindo então p ara o hum or,
pois ele é a arm a “ m ais eficaz de todas, p ara denunciar o presente e defender os interesses do
362
E tam bém podem os perceber isso na totalidade de sua construção literária a respeito da
região cacaueira. D esde o rom ance Cacau o rom ancista descreve e denuncia as p ráticas
coronelistas da zona sul da B ahia, destacando a v id a dos trabalhadores rurais e urbanos que
constituíam a força produtiva da riqueza regional. E m Terras do Sem-Fim e São Jorge dos
Ilhéus o escritor m uda o tom m aniqueísta do seu prim eiro “rom ance proletário” , adicionando
com plexidades aos personagens C oronéis, ao m esm o tem p o em que acrescenta u m a carga
rurais; as prostitutas; os m eninos e m eninas - e dem ais m oradores - que viviam nas ruas de
Ilhéus. D o m esm o m odo, nesses dois rom ances a cidade vai ganhando m ais destaque e
E, finalm ente, em Gabriela, Cravo e Canela A m ado desejou contar u m a narrativa que
dizia respeito a “um a cidade brasileira do interior, quando sua vida - hábitos, costum es, leis
não escritas - se transform ava, devido a transform ações econôm icas. A cidade de Ilhéus e a
região do cacau são os cenários da ação do rom ance, e a população da cidade (...), seu
elem entos de seus rom ances anteriores, com o personagens ou inspiração para criação de novos
protagonistas.
E sse é o caso de G abriela. O próprio autor j á afirm ou que a prim eira ideia para a criação
m ais explícita, encontra-se num a cena de São Jorge dos Ilhéus, com u m a personagem de nom e
m uitos de seus livros há o prenúncio de outras narrativas que desenvolveu posteriorm ente
1945, que: “ O s livros deste autor nascem uns dos outros, germ inam de sem entes lançadas
anteriorm ente, sem ente que às vezes perm anecem m uito tem po em latência” (C A N D ID O ,
2004, p. 45)
C andido ainda ressalta que o núm ero de tem as nos rom ances de Jorge A m ado é pequeno,
2004) José P aulo P az concorda com A ntonio C andido e traça um a continuidade que “ se
escalona na série de rom ances que vão de Cacau a Gabriela” , dizendo que “ podem alguns
deles até ser vistos com o reto m ad a e am pliação, em separado, de m otivos apenas esboçados no
prim eiro desses dois livros [C acau], e que, enriquecidos de to d as as conotações adquiridas
363
2008, p. 401) E podem os conferir isso ju stam en te a respeito da form a com o a cidade é
vindos de vários pontos do norte e nordeste do B rasil, entre eles o protagonista José C ordeiro,
ou Sergipano. O narrador-personagem com enta sobre alguns espaços urbanos pelos quais ele
passou, com eçando pela “Ilha das C obras” , “ aglom erado de ruelas que se escondia no fim da
cidade pequena e m ovim entada” (A M A D O , 2010, p. 18), lugar para onde iam os sujeitos
Sergipano em sua curta estadia no espaço central da cidade, foi o bairro da C onquista onde
in tendência - enquanto circulava com fom e pelas ruas da rica cidade. U m a das frases que
definem aquele lugar é dita pelo m encionado agente policial durante a conversa com Sergipano:
“ M oro lá em cim a, cam arada. H á pouca com ida e m uita boca. M as num dia de fom e sem pre
A frase vem carregada de sentidos, principalm ente quando nos é explicado que R oberto
tin h a m uitos filhos para alim entar ganhando pouco “ soldo” (salário). N a sequência, o narrador
em enda outra inform ação que contrasta com a situação do bairro da C onquista e seus
habitantes: “ C hegam os ao porto. U m prédio enorm e dorm ia, pesado na noite. R oberto explicou:
- U m sobrado do C oronel M anuel M isael de Sousa Teles. R icaço daqui. E m baixo é o B anco
dele. T em d in h e iro ...” (A M A D O , 2010, p. 20). C onstatam os assim que A m ado teve o cuidado
de representar os dois lados da cidade, o rico e próspero dos coronéis do cacau, e o pobre e
m iserável dos trabalhadores ligados direta ou indiretam ente ao fruto. (SA N TO S, 2021)
m aneira a form ação da região cacaueira e da cidade de Ilhéus, que veio a torn ar-se a “R ainha
do Sul” , “ C apital do C acau” . N esse rom ance, Jorge A m ado recria as lutas pela conquista das
terras p ara o plantio do “ fruto de ouro” , bem com o narra o desenvolvim ento de Ilhéus -
político da região. N esse sentido, Ilhéus foi representada na narrativa com o u m a cidade
interiorana acanhada em vias de crescim ento econôm ico, m as ainda sem o devido “processo
narrador, “ ainda assim restava na cidade um certo ar de acam pam ento” (A M A D O , 2008, p.
173).
364
N o decorrer do rom ance, o narrador vai apresentando ao leito r os m elhoram entos e as
“ m odernizações” introduzidas na cidade, pela intendência e pelos coronéis, dem onstrando seu
crescim ento espacial, desenvolvim ento urbano e enriquecim ento econôm ico. T oda a riqueza e
na seguinte passagem :
A árvore que influía em Ilhéus era a árvore do cacau, se bem não se visse nenhuma
em toda a cidade. Mas era ela que estava por detrás de toda a vida de São Jorge dos
Ilhéus. Por detrás de cada negócio que era feito, de cada casa construída, de cada
armazém, de cada loja que era aberta, de cada caso de amor, de cada tiro trocado na
rua. Não havia conversação em que a palavra cacau não entrasse como elemento
primordial. (AMADO, 2008, p. 172)
A “Ilha das C obras” voltou a ap arecer no rom ance São Jorge dos Ilhéus, continuação
direta de Terras do Sem-fim. E sse espaço foi representado na narrativa com o “ a zona m ais
b a ix a de toda a cidade, a m ais pobre tam bém ” (A M A D O , 1944, p. 131), onde se concentrava
u m a parte da classe trab alh ad o ra da cidade, assim com o na C onquista e no U nhão (atual O uteiro
de São Sebastião).
P o r m eio dos jo rn a is da década de 1920 e 1930, podem os observar que a “Ilha das
C obras” era um conjunto de ruas localizadas próxim a ao centro da cidade, entre a estação de
trem e o m orro onde se localiza o bairro da C onquista. N esse período, esse espaço era
considerado zona suburbana pelo fato de ser um local de habitação p opular onde viviam os
sujeitos subalternizados, ou “m al afam ados” ; não recebendo a m aio r parte dos m elhoram entos
públicos que chegavam para a área central a poucos m etros dali. (SA N TO S, 2021, p. 90)
E sse era o espaço “ onde os m ais pobres m oravam , aqueles que não podiam pagar sequer
m oradias encontradas ali eram os “ m ocam bos de palha, [com ] as paredes de b a rro batid o ” . Em
resum o, a “Ilha das C obras” era o “lugar onde os ilheenses nu n ca levavam os turistas que
E m Gabriela, Cravo e Canela, o narrador retom a o tem a das lutas pelas terras de form a
resum ida, iniciado em Terras do Sem-Fim, p ara enfim apresentar a cidade que se desenvolvia
m odernização, m as que ainda passava por u m a série de atrasos em sua cultura e sociedade.
365
N esse sentido, seus habitantes, principalm ente os coronéis, precisavam atravessar o processo
N esse rom ance as contradições sociais narradas adquirem um tom hum orístico e irônico,
habitação descritos nas narrativas anteriores. (SA N T O S , 2021, p. 95) A aparente falta de crítica
social no rom ance relacionada às condições de vida dos subalternizados que viviam em Ilhéus,
assim com o o abandono declarado do escritor da m ilitância do P artido C om unista, pode ter
por isso Gabriela, Cravo e Canela foi um a das obras m ais adaptadas po r diferentes m ídias e
E ssa “inocência” referir-se-ia ao fato do autor ter criado u m a “ sim ples h istória de am or”
am bientada num a “ sim ples cidade do interior” que passava po r transform ações. (A M A D O ,
A pud M A N C H E T E , 1959) C ontudo, nos subtextos e nas entrelinhas, Jorge A m ado contou pela
voz do n arrador a vida de sujeitos considerados “m enos im portantes” que os coronéis do cacau
“ m enos m odernos” que a área central que se transform ava. (SA N T O S, 2021)
principalm ente m ulheres cozinheiras, quituteiras, dom ésticas; ou quando destaca que nesses
lugares, bem com o no Pontal, não havia calçam ento, as casas eram m odestas; tam bém é
transposto narrativam ente o “m ercado dos escravos” , espaço próxim o ao porto onde os
m igrantes sertanejos “ estacionavam ” suas b arracas à espera de em prego; assim com o fala-se
apropriação do rom ance pelo setor em presarial e pelo p o d er m unicipal quando fizeram dele o
que rem etiam aos coronéis e em presários do cacau na ficção - em ú ltim a instância destacaram
G abriela e N acib po r serem os personagens principais e po r seu b a r ser o centro dos encontros
na narrativa; transpondo para a realidade u rb an a apenas esses elem entos, com a criação do
rastro disso, seguiram -se as apropriações dos nom es de personagens e dos próprios personagens
com o figuras reais que efetivam ente existiram em Ilhéus, com o vim os acim a.
366
O que fica para nós, enquanto habitantes da cidade ou com o historiadores e professores
sujeitos e espaços subalternizados, (Ver: B E N JA M IN , 1987) que tam bém estão presentes na
que contribuíram no desenvolvim ento de Ilhéus e sua história. E isso é possível através do
conhecim ento po r m eio dos indícios (G IN Z B U R G , 1989) presentes tanto na própria produção
ficcional de Jorge A m ado, quanto em outras fontes históricas, com o nas fotografias, jo rnais,
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369
SERTÕES A OESTE DO SAPUCAÍ: CONCENTRAÇÃO FUNDIÁRIA E A
FORMAÇÃO DO ESPAÇO RURAL NOS REGISTROS PAROQUIAIS DE
TERRAS DAS FREGUESIAS DE CALDAS E ALFENAS (MG, 1855-1856)
ISA A C C A S S E M IR O R IB E IR O 181
R e su m o
I n tr o d u ç ã o
sediado no campus M achado, ten d o com o parceria o pro fesso r D r. T arcísio de S o u za G aspar,
do campus M uzam binho.182 A presentam os aqui parte dos resultados dessa pesquisa, no que
tange a análise dos R egistros P aroquiais de T erras (doravante R T P) de duas antigas freguesias
1811 Doutor em História Social da Cultura pela UFMG, professor EBTT do IFSULDEMINAS, campus Machado.
Financiamento: IFSULDEMINAS.
182 Trata-se do projeto intitulado: Sertões a oeste do Rio Sapucaí: história, patrimônio e cultura material (sécs.
XVIII-XIX), aprovado no EDITAL N°171/2020, GAB_IFSULDEMINAS, e foi desenvolvido entre 2021 e 2022.
370
do oeste do R io Sapucaí, no Sul de M inas: C aldas e A lfenas. A m bas englobavam territórios
que hoje pertencem a m ais de u m a dezena de m unicípios. C aldas abrangia, para além da cidade
de m esm o nom e, os m unicípios de P oços de C aldas, A ndradas, Ibitiúra de M inas, Santa R ita
D as duas freguesias aqui abordadas, C aldas é a m ais antiga, sua origem colonial
rem onta ao ú ltim o quartel do século X V III, quando da intensificação do povoam ento da região
no extrem o sudoeste de M inas. A pós a dispersão e exterm ínio de indígenas falantes de M acro
Jê (C aiapós etc.) (PIM E N T A , 1998, p. 11 - 12), e dos quilom bos da região, a extração aurífera
de po u ca m onta foi realizada nos arraiais de Santana do Sapucaí (1746), O uro Fino e C abo
V erde, todos esses fundados em função da exploração m ineral. N o ano de 1759 João V eríssim o
de C arvalho abriu o cam inho ligando O uro Fino à C abo V erde (nos quais possuía catas
auríferas), passando pelas proxim idades da nascente do R io Pardo, onde fundou a fazenda de
Pim enta, seria a p artir dessa “ picada” que se iniciou o povoam ento da região de C aldas
(PIM E N T A , 1998, p. 15). B u scava-se os cam pos naturais do entorno para a criação de gado
cavalar e vacum, a serem vendidos prim eiram ente nos pequenos arraiais auríferos próxim os, e,
A inda de acordo com os estudos de R ey n ald o P im enta, em 1789 foi criado o “ registro
de C aldas” 185 (próxim o ao que hoje é a cidade de P oços de C aldas), antes m esm o da criação do
arraial de “N o ssa Senhora do P atrocínio de C aldas” , que se daria som ente em 1806 (PIM E N T A ,
1998, p. 103). O m esm o foi erigido em parte das terras da fazenda dos B ugres, fu n d ad a pelo
ali j á existia o “ cem itério de A ntônio G om es” , e po r v o lta de 1805 ele fez a doação de doze
183 O atual distrito rural de Douradinho, em Machado, em 1855-56 era uma freguesia separada, estendendo-se por
territórios de cinco atuais municípios, a saber: Machado, Paraguaçu, Poço Fundo, Turvolândia e Carvalhópolis (a
área integral deste último pertencia a antiga freguesia de Douradinho). (RIBEIRO, 2021)
184 A fonte citada pelo memorialista é o inventário de João Veríssimo de Carvalho, aberto em 1778, e pertencente
ao acervo do Fórum de Caldas.
185 Registro de cobrança de impostos nesta divisa da capitania de Minas Gerais e de São Paulo.
371
alqueires, em v o lta do m esm o, à N o ssa Senhora do P atrocínio. E stim a-se que no ano seguinte
com eçaram a erguer-se as prim eiras casas do entorno. N o ano de 1811 construiu-se no local a
seguinte (...) po r alvará de (...) de 27 de m arço de 1813, foi a capela de N. Sr.a do Patrocínio
66). P ela lei provincial n° 134, de 16 de m arço de 1839, a freguesia foi elevada à categoria de
do m esm o nom e, e as de C abo V erde, e de São José e D ores dos A lfenas” , sendo que a “ Serra
dos C am pos” serviria “ de lim ite entre este m unicípio e o da C am panha pelo lado da Freguesia
de Santana do Sapucaí” 186. E m 1846 a m unicipalidade foi tran sferid a para C abo V erde,
retornando à C aldas em 1849 (B A R B O SA , 1995, p. 67). F inalm ente a vila foi elevada à
P o r sua vez, a freguesia de A lfenas teria sua origem em u m a capela erguida no início
m ulher, M ariana F erreira de A raújo. Segundo W ald em ar B arbosa: “m em bros da fam ília
‘A lfen a’ edificaram a capela, ao red o r da qual se form ou o povoado” . T ratar-se-iam dos irm ãos
João M artins A lfena e José M artins A lfena, provavelm ente oriundos do lugar denom inado
fato, entre os antigos docum entos do acervo do fórum de C aldas, à qual A lfenas pertenceu
durante certo tem po, identificam os o in v en tá rio post-mortem aberto em 1808 pelo falecim ento
de A na Joaquina dos Santos, esposa de Joaquim M artins A lfena. E sse seria pai ou irm ão dos
dois supracitados “M artins A lfena” , constando no rol dos herdeiros um “José de idade de trin ta
e dois anos” .187 A ligação dos m esm o com a origem da fu tu ra freguesia de A lfenas é atestada
entre os bens inventariados: “um a sorte de terras de cultura ao pé da capela de São José e Dores
que se com põe de m atos virgens avaliada em cento e vinte m il réis - 120$000” .188
de 1832, sob o títu lo de São José de A lfenas. Todavia, na d ocum entação o nom e corrente se
firm ou com o S. José e D ores dos A lfenas (incluindo-se nessa as capelas de M ach ad o e A reado).
186 Mina Gerais, lei provincial n° 134, de 16 de março de 1839. Disponível em:
https://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa.html?tipo=LEI&num=134&comp=&ano=1839
(acesso, 20 de março de 2022).
187 Fórum de Caldas, inventário post-mortem de Ana Joaquina dos Santos (1808), fl. 3.
188 Idem, fl. 6.
372
A inda de acordo com B arbosa, o povoado cresceu e foi elevado à vila som ente em 1860, pela
lei provincial de n° 1090, passando a denom inar-se V ila F orm osa de A lfenas (B A R B O SA ,
1995, p. 21). N esse interim , entre 1839 e 1860, o territó rio da freguesia de A lfenas pertenceu à
vila de C aldas, período em que foram realizados os registros paroquiais de terra (1855-56),
u m a das fontes que pesquisam os. P ouco tem p o depois, no ano de 1869, p ela “lei provincial n.°
1.611, de 15-10-1869, a V ila F orm osa de A lfenas foi elevada à condição de cidade” .189
Lei de T erras de 1850 (C A ST R O , 206, p. 18). E ssa foi a prim eira legislação sobre a propriedade
fundiária no B rasil. A ntes dela existiu apenas a Lei de Sesm arias, no P eríodo C olonial,
originada na Idade M édia P ortuguesa, e que concedia a posse da terra, em nom e do rei, a um
Sesm arias foi abolido, e até a prom ulgação da lei de 1850, predom inou certa confusão no que
dizia respeito ao tem a, prevalecendo a posse com o ú n ica form a possível de acesso à terra. O
principal objetivo dessa lei era criar um a legislação m oderna para o país instituindo a
propriedade privada da terra e garantindo ao E stad o o dom ínio sobre as ditas “terras d ev o lu tas” .
A e ficácia da lei no concernente ao dom ínio estatal de terras sem títulos foi questionável, sendo
de quatrocentas declarações de terras, que posteriorm ente foram tratadas em banco de dados
no Excel. T am bém foram lidos e transcritos, porém diretam ente no Excel, os dados já filtrados
de 308 páginas dos m anuscritos do “L ivro de R egistros de T erras da F reguesia de São José e
D ores de A lfenas” , contendo quase quatrocentas declaraçõ es.190 A m bos os livros pertencem ao
189http://www.cmalfenas.mg.gov.br/a-camara/conheca-a-
cidade#:~:text=Com%20a%20Lei%20Provincial%20ade%2022%2D09%2D1871. (acesso, 20 de março de
2022).
190 Toda leitura paleográfica e transcrição foi realizada, sob supervisão, pelo bolsista do projeto, a quem agradeço:
Gabriel Silva Fernandes, então graduando em Administração pelo IFSULDEMINAS, campus Machado.
373
acervo do A rquivo P úblico M in eiro (A PM ), e para presente pesquisa foram utilizadas as
im agens digitalizadas pelo próprio arquivo e disponibilizadas no site dessa in stitu içã o .191
ban co de dados, conform e o diagram a abaixo (ver D iagram a 1), não necessariam ente nessa
detrim ento de outras, buscando transcrever prim eiro no banco de dados aquelas que diziam
E m 413 (89 % ) registros constaram a extensão de algum dos terrenos declarados. T rinta e dois
declarantes registraram duas ou m ais propriedades distintas com suas respectivas extensões,
totalizando 376 sujeitos que declararam algum a extensão de terra. N o registro de C aldas
observam os m aio r núm ero de pessoas com m ais de u m a declaração quando com parado à
A lfenas, o que talv ez se deva à algum a especificidade local ligada a form a com o se realizou o
registro. C onfrontam os as declarações para descartar possíveis hom ônim os. P orém , sem um
cruzam ento m assivo de outras fontes não podem os descartar absolutam ente que eles não
existiram .
374
Diagrama 1 - 16 Variáveis de dados
nos Registros Paroquiais de Terras
f > \
1.Declarante A possam ento
Tantos alqueires
v C om pra Posse
c \ Sesm aria Arrendamento/ de terras de
2.Acesso H erança aluguel cultura e, tantos
V > T roca
c \ Sesmaria de campos de
D oação
3.Extensão propriedade criar, matas, etc.
>
r
4.Tipificação
v________________________ Fazendas
f \ Sítios
Sortes de Terras de cultura, e
5.Alfabetização terras matos, etc.
C hácaras
v____________ ) Situação
t
r \
6.Forma de
Tenência
v w
9. Dependência das
13.Aproveitamento da terra
j
7. N° de confrontantes f > r >
V_______________________________________________ >
10. Sociedade com 14.aproveitamento detalhado da
v________________________________________________ > ^ J
tin h a hom ônim os, ou po r terem nom es m uitos específicos com o “M anoel F rancisco G uim arães
T odos os declarantes que registraram a extensão de suas terras em C aldas som aram
ju n to s u m a área de 27.1219,08 h a 193, sendo que 87,28% (23,6719,56 ha) dessas terras
concentrava-se nas m ãos de 133 grandes proprietários (35,73% ) com 400 ou m ais hectares
(tabela 1). É consenso entre pesquisadores que se dedicaram à H istória A grária do Brasil
Im pério que esse foi o m arco divisor entre “grandes proprietários” e as dem ais categorias,
considerando com o parâm etro “ a área m édia de um a fazenda de café no V ale do P araíb a (400
I n te rv a lo D e c la ra n te s
M u n ic íp io s D e c la ra n te s % Á rea %
(h a) - T o ta l
< 400 123 76,40% 16,52%
A lfen a s (M G )
> 400 38 23,60% 83,48%
< 400 242 64,53% 12,72%
C a ld a s (M G )
> 400 134 35,73% 87,28%
São J o ã o del- < 400 76 81,73% 13,10%
R e i (M G ) > 400 17 18,27% 86,90%
V ale do < 400 1049 72,10% 29,82%
P ir a n g a (M G ) > 401 406 27,90% 70,18%
P a r a íb a do < 400 279 85,10% 32,80%
Sul (R J ) > 400 55 14,90% 67,10%
< 400 151 84,83% 25,00%
C a p iv a ri (R J )
> 400 27 15,71% 75,00%
Fonte: Registro Paroquiais de Alfenas e Caldas. Para São João del-Rei (ALENCASTRO, 2002, p. 116); para o
Vale do Piranga (ANDRADE, 2018, p. 163), e para as cidades do Rio de Janeiro, João Fragoso e Hebe Mattos
apud. (OLIVEIRA, 2015, p. 71).
A região de C aldas voltava-se para a econom ia de abastecim ento interno de alim entos,
destacando-se a pecuária, em detrim ento à agricultura (ao m enos até o prim eiro quartel do
193 Praticamente todas as declarações foram feitas em alqueires. Convertemos todas considerando que o alqueire
mineiro equivalia a 4,84 hectares (GRAÇA FILHO, 2002, p. 116, Quadro n° 8).
376
de A ndrade (A N D R A D E , 2018) p ara as freguesias do vale do Piranga, tam bém um a região de
povoam ento antigo (anterior m esm o à C aldas), e voltada para o abastecim ento interno de
alim entos (ver tab ela 1), na qual 27,9% foram considerados grandes proprietários, todavia, a
O núm ero de “grandes p roprietários” foi proporcionalm ente m aior em C aldas (35,73% )
que em A lfenas (23,60% ), talvez isso se deva à m aior antiguidade da prim eira freguesia, quando
com parada à segunda, o que pode te r possibilitado um a m aior distribuição de terras n o topo da
h ierarquia fundiária da prim eira. N o livro de R egistros P aroquiais de T erras de A lfenas foram
transcritas 373 declarações, sendo u m a delas a correção de o u tra .194 T otalizaram -se, portanto,
372 registros válidos. E m apenas 163 (43,81 % ) constaram a extensão de algum dos terrenos
declarados. N estas, dois declarantes registraram duas propriedades distintas com suas
respectivas extensões, portanto, 161 sujeitos declararam algum a extensão de te rra .195 Q uinze
indivíduos (4,03% ) apontaram apenas o v alo r de suas terras, e oito (2,15% ) declaram a extensão
de algum as e o v alo r de outras. E m ao m enos dois registros constam o tam anho e o v alo r da
m esm a te rra 196, o que nos perm itiu encontrar um preço m édio de 48$960 por alqueire de terras
de cultura e 17$000 po r alqueire de cerrado. E sse preço m édio das terras de culturas se aproxim a
daqueles encontrados po r G raça F ilho nos inventários de São João del-R ei entre 1845 e 1859,
cujo v alo r m édio era de 48$000 por alqueire. P ara o m esm o período o autor identificou o preço
entorno de São João del-R ei não existe cerrado, o m esm o não apresentou v alo r m édio para esse
tip o de terreno. P orém , o registro de A lfenas sinaliza que o cerrado era desvalorizado, podendo
O s 161 declarantes que m anifestaram a extensão dos terrenos em A lfenas som aram
ju n to s um a área de 76772,08 hectares. A m aio r parte desse território, 83,48% (64.086,44 ha),
abastecim ento interno, com o as do V ale do P iran g a; e daquelas altam ente vinculadas ao
com ércio interprovincial (com o São João del-R ei). T anto C aldas com o A lfenas se distinguiam
194 Trata-se do registro de n° 29, corrigindo 24, ambos em nome de José Vieira da Silva.
195 Cândido de Souza Dias, registros de n° 251 e 254; e Domingos Gonçalves Chaves nos de n° 93 e 216.
196 Trata-se do registro 29, no qual constam 12,5 alqueires mais 5 alqueires de cultura comprados por 856$000; e
do registro 258 onde se declara que 10 alqueires “entre culturas e cerrados” foram comprados por 170$000.
377
província do R io de Janeiro, e m esm o de C a p iv a ri197 (R J), com grande produção de farinha
v o ltad a para o m ercado interno, m as próxim a de regiões cafeicultoras (ver T abela 1). É
im portante lem brar que o café ainda não era um a cultura expressiva no Sul de M inas quando
da realização dos registros paroquiais de terra (1855 - 1856). À época predom inavam na região
a agricultura e a pecuária voltada para o com ércio de abastecim ento. A cafeicultura sul-m ineira
registros paroquiais de terras nos dão bons indícios de que em C aldas e A lfenas essa realidade
não foi diferente. T odavia, p ara se observar as especificidades regionais, é necessário decom por
form a, foi possível observar que a m aior concentração de terras se deu, efetivam ente, nas faixas
acim a de 800 hectares, a qual denom inam os aqui de os “ m aiores proprietários de terra” . Talvez
a m aior disponibilidade de terras e diversidade no uso desse solo (pasto e plantação) explique
a m aior extensão das m aiores propriedades quando com paradas às do V ale do Paraíba, voltadas
para a agroexportação. Todavia, para m elhor com preensão desse ponto seria necessária um a
com paração com estudos que levantem m ais faixas de concentração para essa região.
E m C aldas o grupo dos “ m aiores proprietários de terra” era form ado po r 85 declarantes
que representavam 22,61% dos que registraram a extensão de suas terras. E m conjunto o grupo
detinha 76,93% de todo território registrado. E m A lfenas, po r sua vez, 25 declarantes (15,53%
dos que inform aram a extensão das terras) concentravam 74,90% da área total. A ssim com o
afirm am os anteriorm ente, esta últim a freguesia, po r ter sido povoada tardiam ente em relação a
Já aqueles que aqui classificam os com o “pequenos declarantes de terra” (com extensões
entre 0,1 a 50 hectares), representavam 15,43% (58) dos que declararam a extensão de terrenos
em C aldas. E sse grupo deteve som ente 0,7% das terras registradas. Já em A lfen as eles foram
31,06% dos que inform aram a extensão das terras, som ando apenas 1,83% da área total
levantada. V em os, portanto, n esta últim a freguesia, de povoam ento m ais recente, que os
“ pequenos” eram proporcionalm ente m ais num erosos que em C aldas, detendo ju n to s u m a área
relativam ente m aior que nesta ú ltim a freguesia. T alvez isso se deva à m aior proxim idade da
paró q u ia de A lfenas a áreas de fronteira aberta no período, quando com parada à outra,
perm itindo m ais “brechas” aos “ pequenos” (porém , para u m a con clusão m ais acertada, seria
necessário cruzar outras fontes com o inventários post-mortem, processos crim es, registros
F a ix a s em N° de % D e c la ra n te s % Á rea
Á r e a (h a) Á rea %
h e c ta re s D e c la ra n te s com á r e a a c u m u la d a
0,1 - 25 33 8,78% 450,12 0,17% 0,17%
26 - 50 25 6,65% 1.009,14 0,37% 0,54%
51 - 100 50 13,30% 3.832,07 1,41% 1,95%
101 - 200 68 18,09% 9.787,69 3,61% 5,56%
201 - 399 66 17,55% 19.420,50 7,16% 12,72%
400 - 800 49 13,03% 28.079,26 10,35% 23,07%
801 - 2.000 54 14,36% 66.329,78 24,46% 47,53%
2.001 - 4.000 17 4,52% 46.386,56 17,10% 64,63%
4.001 - 8.000 8 2,13% 45.360,48 16,72% 81,36%
8.001 ou m ais 6 1,60% 50.563,48 18,64% 100,00%
Total 376 100,00% 271.219,08 100,00% -
F a ix a s em N° de % D e c la ra n te s %
Á r e a (h a) Á rea %
h e c ta re s D e c la ra n te s com á r e a a c u m u la d a
P o r últim o, aqueles que aqui consideram os com o “ declarantes de terras m edianos” (com
extensões entre 51 a 399 hectares) apesar de num ericam ente m aiores que os ditos “pequenos” ,
p roporcionalm ente tam bém não possuíam parte expressiva na som a da área total de terras
declaradas. E m C aldas os “m edianos” eram 184 indivíduos, correspondendo a 48,94% dos que
declararam a extensão fundiária. Juntos eles detiveram apenas 12,18% das terras. E m A lfenas
eles eram 45,34% dos que registraram a extensão das terras, som ando 14,69% do território
379
declarado. A “ cam ada m édia” caldense era pouco m ais expressiva que à de A lfenas, porém
O s dados dos R P T tam bém podem ser analisados a partir de recortes qualitativos. Foi o
que fizem os em relação aos declarantes da freguesia de A lfenas que registraram terras na Sacra
F am ília e Santo A ntônio do M achado (R IB EIR O , 2022). G eograficam ente essa área era m ais
próxim a de C am panha, o centro de povoam ento m ais antigo da região. D entre os 373
declarantes da paró q u ia de A lfenas, som ente 21 m anifestaram -se com o m oradores de M achado.
cada um desses registros, apenas 8 (44,44% ) u ltrapassaram 400 hectares (o m arco das grandes
propriedades), e detinham ju n to s 93,63% da área registrada. D iferentem ente dos dados gerais
p ercentuais encontrados para C aldas (M G ), (35,73% - 87,28% ), com o vim os, um a das regiões
de povoam ento m ais antigo a oeste do Sapucaí. O bservam os que a m áxim a concentração se
deu, efetivam ente, na faixa acim a de 800 hectares: a dos “m aio res proprietários de terra” . Em
M ach ad o esse grupo era form ado po r apenas seis declarantes cujas terras, ju n tas, som aram
13.552,00 hectares, ou seja: um terço dos indivíduos concentravam 87,39% dos terrenos
registrados.
fam ília concentrar em suas fazendas a m aior parte das terras declaradas na localidade. D entre
os seis m aiores proprietários de terras de M achado entre 1855 e 1856, cinco eram do m esm o
grupo fam iliar: os Souza D ias. O s dados dem onstraram que um a só fam ília concentrava 74,9%
Sobre as principais form as de acesso a terras nos registros, apesar de poucos terem
povoam ento em C aldas (ver tab ela 4). N esta freguesia, 47,83% dos que declararam a fo rm a de
acesso afirm aram que o fizeram através de herança, contra 39,13% por com pra. Já em A lfenas,
freguesia de povoam ento m ais tardio, 53,66% acessaram a terra por com pra, enquanto apenas
29,27% obtiveram sua terra po r herança. N e sta ú ltim a freguesia houveram m ais registros de
form as de acesso, com algum as variações pouco expressivas com o “ dote” , “b arganha” e
“ doação” .
380
T a b e la 4 - P rin cip ais form as de acesso a terra nos registros paroquiais de terra (M inas G erais
- C aldas e A lfenas, 1855-56)
C aldas A lfenas
C o n clu sõ es
P ela análise dos registros paroquiais de terras de C aldas e A lfenas foi possível concluir
que a situação fundiária na região não fugiu dos padrões encontrados para o restante do país: a
concentração da m aior parte das terras na m ão de um grupo seleto. N e stas duas freguesias, entre
um terço a um quarto dos declarantes (os grandes proprietários com m ais de 400 hectares)
A pesar da concentração fundiária ser a regra, seus níveis variavam entre as freguesias e
províncias po r diversos fatores. Internam ente, na região a qual denom inam os “ O este do
fundiária em Caldas. A creditam os que essa configuração se deu devido ao fato desta freguesia
ser m ais antiga, fazendo com que as terras dos m aiores proprietários fossem divididas
sucessivam ente entre os herdeiros, o que ju stificaria m aior distribuição das grandes
P o r outro lado, A lfenas era um a freguesia de povoam ento m ais recente, em área de
expansão do Sul de M inas, o que p erm itia aos m aiores proprietários (aqueles com m ais de 800
nos p erm ite lev an tar a h ipótese de que áreas de fronteira recentem ente abertas eram m ais
propícias à concentração de terras no to p o da hierarquia. P orém , para g eneralizar essa afirm ativa
é necessário com parar um núm ero m aior de freguesias para diferentes regiões.
A lfenas, devido a sua m aior proxim idade em relação a C am panha, São João del-R ei e
381
interprovinciais m ais lucrativos, quando com parada a C aldas. T am bém é necessário destacar
que as terras alfenenses eram m elhores que as caldenses no que se refere a topografia, e suas
pastagens naturais eram m ais extensas e planas, com m uitas m atas nativas para alim entar o
sistem a extensivo de agricultura. C aldas tam bém possuíam pastos nativos e m atas, p o rém seu
terren o é m ais alto e acidentado, além de sofrer com tem peraturas m uito baixas nos m eses m ais
frios do ano.
E m contraste com outras áreas da P rovíncia de M inas, as duas freguesias que estudam os
a O este do Sapucaí, de um a form a geral, apresentaram um padrão fundiário interm ediário entre
Piranga), e um a outra região tam bém de abastecim ento, m as altam ente ligada ao com ércio
interprovincial (São João del-R ei). Isso pode ser ju stifica d o na crescente im portância do Sul de
leitura, podem os constatar que os níveis de concentração de terras em M inas G erais eram
relativam ente inferiores, m esm o quando com parados a regiões com grande especulação
fundiária com o era o caso do entorno da cidade de São João del-R ei. O fato de grande parte do
território flum inense voltar-se para a cafeicultura de exportação talv ez ju stifiq u e seus m aiores
níveis de concentração de terras, em com paração com M inas, m esm o em freguesias que se
R e fe rê n c ia s
M a n u s c r ita s
L ivro de registro de terras da freguesia de São José e D ores dos A lfenas (1855 - 1856),
disponível em :
http://w w w .siaapm .cultura.m g.gov.br/m odules/terras publicas/brtacervo.php?cid= 14& op= 1
(acesso, novem bro de 2022)
L ivro de registro de terras da freguesia de N o ssa Senhora do P atrocínio de C aldas (1855 -
1856), disponível em:
http://w w w .siaapm .cultura.m g.gov.br/m odules/terras publicas/brtacervo.php?cid= 41& op= 1
(acesso, novem bro de 2022)
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384
THOMPSON E A HISTÓRIA DOS COSTUMES:
UMA LEITURA NÃO ECONOMICISTA DOS CONFLITOS NA
INGLATERRA DO SÉCULO XVIII
IS A B E L A B A R B O S A R O D R IG U E S 19819
C A R L O S P R A D O 1991
E dw ard P alm er T hom pson foi um histo riad o r m arxista-hum anista - ou com o ele
século XX. E ra, sobretudo, um m ilitante ativo das causas políticas e sociais. N o cam po
historiográfico, T hom pson possui um a produção p rofícua com um a pluralidade de tem as, indo
desde estudos sobre classes sociais às discussões teóricas sobre o ofício do historiador,
bottom u p ” - , a qual b uscou explorar, entre outros tem as, a relação entre cultura e classes
sociais. E m sua proposta, superestrutura e infraestrutura não estão separadas e isoladas, ao
contrário, estão interligadas. E llen W ood (2006, p. 62) discorre que o m aterialism o de
T hom pson é ím par por se recusar a privilegiar a econom ia em relação a cultura. D esse m odo,
ele não pode ser classificado com o um econom icista ou um hum anista:
m arxistas adotaram um pensam ento estritam ente econôm ico e excludente com a cu ltu ra.200
1981 Graduanda da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) da Faculdade de Ciências Humanas
(FACH)
199 Doutorem História pelo PPGH-UFFe professor da FACH-UFMS. Trabalha comtemas relacionados à Teoria
da História e História do marxismo. E-mail: carlosprado1985@hotmail.com
200 O primeiro empecilho é o próprio fato de existir uma definição abrangente para o conceito de cultura na
Antropologia e na História. Enquanto existem correntes interpretativistas, deterministas e relativistas, a cultura
385
A ssim , u m a vertente econom icista do m arxism o relegou à cultura um espaço secundário, ou até
m esm o subordinado à econom ia. N ão obstante, esse determ inism o não encontra
fundam entações teóricas nas obras de M arx e E ngels. A m bos ja m a is foram determ inistas.
T hom pson faz parte de um seleto grupo de autores m arxistas que buscaram
com preender as relações entre o cam po econôm ico e cultural. P ensando de form a peculiar, ele
cultura “ com o todo um m odo de v id a” (M A TTO S, 2012, p. 189). T hom pson fu n d am en ta seus
estudos na relação entre a dim ensão cultural e o m odo de produção, sem cair no reducionism o
E m Costumes em comum, T hom pson dem onstra que os processos de transform ações
técn icas - incluindo o desenvolvim ento das forças produtivas ocorrido na Inglaterra ao longo
do século X V III - não transform aram apenas as form as de produção e as relações de trabalho.
M as, de fo rm a concom itante, prom overam m udanças nos costum es, nos hábitos, no cotidiano
das pessoas; o que alterou, portanto, os aspectos fundam entais de sua cultura. A crítica de
T hom pson é direcionada ao econom icism o que paira sobre o m arxism o. E le dem onstra ao longo
dos artigos apresentados que a transição para o capitalism o e a sociedade industrial não ocorreu
T hom pson em torn o das transform ações sociais prom ovidas pela revolução industrial na
Inglaterra do século X V III. P ara tanto, investigarem os dois artigos do autor, am bos presentes
na obra Costumes em comum ; o prim eiro, “ Tem po, disciplina de trabalho e capitalism o
prim eiro artigo, evidencia-se que a disciplina e a hierarquização do trabalho não foram
m udanças m eram ente econôm icas, m as tam bém , culturais. Isto é, no cam po d o s costum es,
p recisam ente em relação à percepção do tem po. Já em relação ao segundo artigo, discute-se a
conceituação da econom ia m oral dos pobres, e com o os cham ados “m otins de fom e” possuíam
significações e sim bologias m ais profundas do que u nicam ente o âm bito econôm ico poderia
captar.
oscila entre pêndulos de intelectuais como Burke, Kuper, Boas, Geertz e outros. Aliás, é pertinente lembrar que,
como afirmar Mattos (2012, p. 118), a cultura “é um conceito muito impreciso (como economia ou política), mais
uma noção geral que um conceito, referindo-se a questões muito amplas - o que o distingue, portanto, da
conceituação de classe social”. Ou seja, cultura é um conceito polissêmico, o que possibilita ser interpretada de
formas muito diferentes por historiadores e antropólogos.
386
Tempo e disciplina do trabalho
O artigo “ Tem po, disciplina de trabalho e capitalism o industrial” que com põe a obra
Costumes em Comum, foi lançado originalm ente em 1967, na revista Past and present. D e
m odo geral, esse escrito traz novas conclusões para assuntos já abordados em A formação da
classe operária inglesa. O intuito principal de T hom pson nesse artigo é dem onstrar o processo
de transform ação, no século X V III, do ritm o de trabalho irregular, baseado na “ orientação pelas
tarefas” , para o ritm o de trabalho regular, m arcado pela ideia do “uso-eco n ô m ico -d o -tem p o ” .
C ontudo, com o m ostra M acedo (2017, p. 62), T hom pson oferece um novo o lh ar para esse
m om ento histórico, visto que “procura reconstituir diversos fios de tradições culturais vigentes
no século X V U F’, enquanto dem onstra que “ os trabalhadores não seriam táb u la rasa sobre a
D essa form a, T hom pson foge do determ inism o econôm ico ao propor u m a análise
h istoriográfica que leva em consideração, além da cultura local, a ação e reação dos
trabalhadores diante da m udança na organização do tem po. A ssim , ele evidencia que houve
resistência dos trabalhadores ao novo m odelo de organização do ritm o de trabalho, sendo essa
Mais uma vez, em sua oposição ferrenha ao utilitarismo, Thompson demonstrava que,
buscando manter seus antigos hábitos de trabalho, houve resistência dos trabalhadores
à ideia de que tempo era dinheiro. Somente em uma terceira geração de operários é
possível se verificar a aceitação de tal preceito e se constatar a realização de ‘greves
pelas horas extras ou pelo pagamento de um percentual adicional (1,5%) pelas horas
trabalhadas fora do expediente’ (MACEDO, 2017, p.61-62).
Segundo T hom pson (1998), o costum e era um a ferram enta chave para se conhecer as
no X V III, - com o propõem m uitos historiadores - m a s sim, em plena agitação. T am anha era a
força dos costum es populares que facetas sociais, econôm icas e históricas poderiam ser
influenciadas po r eles. U m exem plo disso é a percepção do tem p o nas com unidades pré-
industriais.
noção elisabetana de que este era um “devorador, desfigurador, tiran o sangrento, ceifeiro”
(T H O M P SO N ,1998, p. 268) tem o s a orientação do tem po por tarefas. O u seja, antes das
apresentavam um a outra percepção do tem po. B asicam ente, esse tem p o levava em consideração
a organização fam iliar e o ritm o de trabalho dom éstico. A orientação do tem po, em sum a, era
387
to d a realizada em dependência das tarefas diárias e cotidianas, com o exem plo, a colheita, o
cuidar do pastoreio e afins. C om o bem explicita T hom pson (1998, p. 271-272) este trabalho
incorporavam o trabalho com o parte integrante da vida. A fim de ilu strar esta relação,
T hom pson (1998, p. 269-270) cita alguns casos: os N uer, com o relógio diário sendo
classificado pelo gado; os N andi, para os q u ais o tem p o era contado de m eia em m eia-h o ra; em
M adagascar, o tem p o era m edido pelo “ cozim ento do arroz” ; no C hile, o tem po era m edido em
“ credos” . T odavia, T hom pson (1998, p. 271) deixa claro que o tem po orientado pelas tarefas
só é possível em sociedades pequenas: “ [...] esse descaso pelo tem po do relógio só é possível
adm inistração é m ínim a e pela qual as tarefas diárias [...] parecem se desenrolar, pela lógica da
n ecessidade.”
À vista disso, pode-se constatar que o tem po orientado pelas tarefas é caracterizado
hum ano. O u seja, essas sociedades pequenas dividiam suas tarefas de acordo com as
n ecessidades vigentes. C om o exem plo, T hom pson (1998, p. 271) cita u m a com unidade de
agricultores que pensa ser natural “trab alh ar do am anhecer até o crepúsculo” nos m eses da
colheita. Isto porque se esses agricultores não colherem o grão no período correto haverá
A ssim , nota-se que não existe um a distribuição fixa dos trabalhos e das funções, tendo
em vista que um a época pode ser de colheita, e outra de pastoreio. Fora isso, T hom pson (1998,
p. 271) tam bém observa que além dos trabalhos rurais - com o cuidar das ovelhas na época do
p arto e protegê-las dos predadores, o rdenhar as vacas e os dem ais - existem trabalhos industriais
de orientação pelas tarefas. C itando casos análogos, T hom pson descreve a produção de ferro e
o cuidado com as fornalhas, bem com o sobre a ocupação de cuidar do carvão e não d eix ar que
com pra e venda da força de trabalho, constata-se um a perceptível m udança na concepção, bem
com o na utilidade do tem po. A relação do em pregador e do em pregado, m ediada pelo dinheiro,
388
atua e m odifica o trabalho. Se outrora o tem po era orientado pelas tarefas, agora o trab alh o de
horário m arcado ganha peso. A relação, até m esm o pacífica com o tem po, tran sfo rm a-se em
um terreno de disputas e controle sobre o tem p o do trabalhador. T hom pson (1998, p. 272)
esclarece com o a com pra e a ven d a da força de trabalho altera a definição de tem po:
P ara m ais, u m a diferença m arcante entre o trab alh o orientado por tarefas e o trabalho
m arcado pelo horário é o ritm o de trabalho. E nquanto o trabalho dom éstico detinha um a
m ultiplicidade de tarefas com um tem po de execução variável, o trabalho industrial passa a ser
m odo, argum enta T hom pson (1998, p. 280) que a irregularidade característica de padrões de
trab alh o antes da indústria foi sendo substituída por um a disciplina de trab alh o m ais eficiente.
L ogo, o padrão de trab alh o dom éstico era intensam ente irregular - se com parado ao novo ritm o
D iante disso, o trab alh o é m odificado por um novo costum e que atrela o tem po ao
dinheiro. Segundo T hom pson (1998, p. 289), essa nova lógica de trabalho transform a a
“ m edição do tem po com o m eio de exploração da m ão-de-obra” . Isto significa que o em pregador
b u sca o lucro m áxim o sobre seus em pregados através de um cronogram a extenso de horas, com
b aixos salários e com um a sincronização de tarefas. O m ais im portante não é o ritm o de trabalho
hierarq u izar o trabalho, controlar o tem p o de ócio e produção do trabalhador, im plem entar os
disciplinado.
socioeconôm ico. C onform e T hom pson (1998, p. 281-283), o trab alh o na Inglaterra, até m eados
dizendo, o trab alh o detinha de um a irregularidade legitim ada pelos costum es e hábitos da época.
C om o exem plo, a “ Santa S egunda-F eira” , que n ad a m ais era do que um dia livre das obrigações
laborais. O bviam ente que a “ Santa Segunda-F eira” não era m eram ente um artificio de fu g ir do
389
T hom pson realça a reflexão se esse ritm o de trab alh o - regulado pelo próprio hom em
- não seria um ritm o natural de trabalho hum ano. O seu objetivo é destacar que a transição das
não deve p riorizar som ente para o âm bito econôm ico. O desenvolvim ento industrial e a
concom itante m udança nas relações produtivas escapam do cam po econôm ico e invadem o
O desenvolvim ento das relações capitalistas de produção prom oveu m uito m ais do que
transform ações econôm icas. A s m udanças no cam po produtivo eram , ao m esm o tem po,
m udança dos costum es era concretizada através da “ divisão de trabalho, supervisão de trabalho,
m ultas, sinos e relógios, incentivos em dinheiro, pregações e ensino, supressão das feiras e dos
disciplina de trabalho na vida dos ingleses eram po r interm édio dos serm ões, pregações,
incentivos capitalistas, e até m esm o pela educação. A propósito, T hom pson (1998, p.298)
questiona até que ponto essa internalização de fato ocorreu, tendo em vista que m uitas práticas
A inda assim , p ercebe-se que a passagem do trab alh o reg u lar im pele um a alteração dos
hábitos e costum es. U m dos fatores prim ordiais para tudo isso acontecer foi a ética puritana.
C om o alinham ento do p uritanism o aos valores do capitalism o, as adm oestações e os serm ões
são redirecionados p ara duas concepções: a adm inistração eficiente do tem po - ou seja, m ais
u m a insistência da equação “tem p o -d in h eiro ” - e a brevidade da vida com o Juízo Final. Essas
duas ideias sobre o tem po serviram para introjetar na m ente dos ingleses, aos poucos, u m a nova
fo rm a de pensar, e tam bém de agir, sobre o tem po. C om o destaca T hom pson (1998, p. 302)
A inda sobre essa questão, T hom pson (1998, p. 295) relata os ataques do puritanism o
O utro artifício de interiorizar, lentam ente, a nova disciplina do trabalho foi com a
criação de escolas. A educação no século X V III, a p artir da análise de T hom pson (1998, p.
292), pode ser entendida com o “um trein am en to para adquirir o ‘h ábito do tra b a lh o ’” . Em
outros term os, isso significa que a escola e a educação m inistrada nesses am bientes eram
ferram entas de “ adestração” ao trabalho. E ra na escola que a criança, de sde m uito nova,
aprendiam sobre disciplina, pontualidade e assiduidade: “u m a vez dentro dos portões da escola,
O utro m ecanism o explorado para a aceitação dos trabalhadores dos novos costum es
de trabalho foram os incentivos salariais. Junto a isso, tam bém tem os o uso das cam panhas de
expansão de consum o. C orroborando com T hom pson (1998, p. 299): “ [...] à m edida que a
[...] são claram ente eficientes” . P o r conseguinte, T hom pson aponta que todas essas form as de
persuasão do trab alh ad o r foram eficientes po r conta do resultado de gerações depois. D e outro
m odo, o trab alh ad o r industrial inglês do século X IX é, de form a direta, fruto dessa
Por volta das décadas de 1830 e 1840, [...] o trabalhador industrial inglês se distinguia
de seu colega irlandês, não só pela maior capacidade de trabalho, pela regularidade,
pelo dispêndio metódico de energia, e talvez também pela repressão, não dos
divertimentos, mas da capacidade de relaxar segundo os hábitos antigos desinibidos.
(THOMPSON, 1998, p. 299).
A ssim ilar com o os processos de trabalho industrial são opostam ente contrários ao
trab alh o irregular pré-industrial é um a form a de entender e determ inar as condições de trabalho
sob a lógica capitalista; e concom itante, com preender o porquê de os trabalhadores resistirem
tanto. A final, o que T hom pson (1998, p. 293) se esforça para dem onstrar é que a disciplina de
trab alh o teve im pactos diretos nos costum es populares vigentes e m otivou disputas e conflitos:
“ A investida, vinda de tantas direções, contra os antigos hábitos de trab alh o do po vo não ficou
certam ente sem contestações” . O hábito do trabalho regular e disciplinado só foi sendo
ataque aos hábitos populares - com o feriados paroquiais, festas anuais das sociedades de
am igos, o costum e da m esa de chá ao fim da tarde e outros - foram enfrentados pela população
trab alh o orientado pelas tarefas para a nova lógica capitalista industrial. N otoriam ente, esse
processo dem orou anos para ocorrer, sendo que em alguns locais ainda existem o ritm o irregular
do trabalho. O tem po passou a ser caracterizado de m aneira totalm ente diferente: “ na sociedade
capitalista m adura, todo o tem p o deve ser consum ido, negociado, utilizado; é um a ofensa que
do tem po, ju n to a u m a divisão m arcante entre o trabalho e a vida. Os valores que devem ser
a pontualidade, a assiduidade e a disciplina. O em prego útil do tem po torn a-se u m a com pulsão,
na m edida que a ideia do tem po sinônim o de dinheiro penetra a m entalidade social. O lazer e a
p. 302)
A e c o n o m ia m o ra l
“A econom ia m oral da m ultidão inglesa no século X V III” que tam bém com põe a obra
Costumes em comum, foi p u b licado originalm ente em 1971, tam bém na revista Past and
present. E n tre os assuntos abordados, T hom pson destaca as lutas sociais diante da nova
econom ia de m ercado não regulado. E ssa nova form a de m ercado b asead a no laissez-faire vai
de encontro à econom ia m oral, a qual perm itia um am paro aos pobres enquanto regulava o
m ercado de cereais. F undam entada em um a ética p o p u lar própria, a econom ia m oral se utilizava
de alguns elem entos do paternalism o para leg itim ar suas noções de econom ia201.
A dem ais, é nesse artigo que T hom pson desenvolve a id eia de que o m otim de fom e
era um a ação articulada e com plexam ente planejada. C om o elucida M acedo (2017, p. 63), o
em bate entre econom ia m oral e a nova econom ia de m ercado teve im pactos significativos para
a Inglaterra do XV III:
[...] ‘a gente comum’ fez da praça de mercado uma ‘arena de guerra de classes’. Sua
resistência ativa ao laissez-faire teve papel relevante na regulação do mercado,
contribuindo, provavelmente, para evitar clássicas crises de subsistência na Inglaterra
201 Consoante com a tese de Macedo (2017, p.63), a economia moral dos pobres “[...] seria uma reconstrução
seletiva de um paternalismo constituído por elementos que poderiam ser remontados até o século XVI. De maneira
ativa e autônoma, a multidão extraía ‘dele todas as características que mais favoreciam os pobres e que ofereciam
uma possibilidade de cereais mais baratos’. Assim, ao se analisar a ação direta e coletiva da multidão, que era
categoricamente reprovada pelos ‘valores da ordem que sustentavam o modelo paternalista’, poder-se-ia se
constatar que ela era sancionada por uma ética popular fundada em ‘noções gerais de direito’”
392
do século XVIII. Ainda que o motim enquanto protesto social não apresentasse
‘intenções políticas manifestas e articuladas’, com exceção, talvez, de um curto
período no fim do século XVIII, a ‘economia moral’ que o informava ‘supunha noções
definidas, e apaixonadamente defendidas, do bem-estar comum’.
A o contrário de m uitos h istoriadores sociais, T hom pson não coloca o desenvolvim ento
econôm ico com o objeto central de suas pesquisas. É claro que existem elem entos econôm icos
fundam entais nos estudos, m as, especialm ente em seus artigos produzidos ao longo da década
de 1970 e 1980, o norteador é o costum e, e não a econom ia. D esse m odo, T hom pson era um
ferrenho crítico da visão espasm ódica da histó ria popular, a qual obtinha um a análise histórica
dos acontecim entos apenas pela via econôm ica, ten d o o apagam ento das com plexidades
culturais. T hom pson questiona a visão espasm ódica de que os m otins eram resultados
Um sintoma da morte definitiva é termos sido capazes de aceitar por tanto tempo um
ponto de vista “economicista” dos motins de fome, como uma reação direta,
espasmódica, irracional à fome - um ponto de vista, em si, produto de uma economia
política que fez do salário o nexo das reciprocidades humanas (THOMPSON, 1998,
p. 202).
T hom pson (1998, p. 152) argum enta que o m otim era “u m a fo rm a altam ente com plexa
de ação p opular direta, disciplinada e com objetivos claros” . C om o T hom pson (1998, p. 191)
explana inúm eras vezes em Costumes em Comum, os protestos de fom e não podem ser
analisados longe de seu contexto sociocultural: “ A questão não é sim plesm ent e que, em tem pos
de escassez, os preços fossem determ inados po r m uitos outros fatores além das m eras forças de
m ercado [...]. É m ais im portante observar o contexto socioeconôm ico total em que operava o
m ercado, bem com o a lógica da pressão da m u ltid ão ” . Já para os econom icistas, o m otim de
fom e - com o o próprio nom e esclarece - seria apenas fruto das “ rebeliões do estôm ago” . P o r
conseguinte, à m edida que a visão th om psoniana é legitim adora, a noção econôm ica dos m otins
era sim plesm ente po r conta do fator instintivo da fom e, e, portanto, m onocausal. Em
contrapartida aos econom icistas, T hom pson dem onstra que os m otins não ocorriam som ente
pela alta dos preços. E le argum enta que existia um consenso p o p u lar que legitim ava a cobrança
po r regulação dos preços, quer dizer, existiam costum es que legitim avam essas práticas:
É certamente verdade que os motins eram provocados pelo aumento dos preços, por
maus procedimentos dos comerciantes ou pela fome. Mas essas queixas operavam
dentro de um consenso popular a respeito do que eram praticas legítimas e ilegítimas
na atividade do mercado, dos moleiros, dos que faziam pão, etc. (THOMPSON, 1998,
p.152).
39 3
N ota-se que T hom pson não nega a im portância da fom e e dos fatores econôm icos. N ão
obstante, sua interpretação m ostra que essa perspectiva não pode ser to m ad a de form a isolada.
D estarte, “ a palavra m otim é dem asiada p equena para abarcar [...]” (T H O M P SO N , 1998, p.
153) to d a a com plexidade em volta dos costum es ingleses do X V III. D a m esm a form a que os
possuía seu próprio significado, transform ando-se em u m a econom ia m oral da plebe ou dos
pobres. E ssa econom ia é um com portam ento econôm ico ditado a p artir dos valores m o rais ou
[...] uma visão consistente tradicional das normas e obrigações sociais, das funções
econômicas peculiares a vários grupos na comunidade, as quais, consideradas em
conjunto, podemos dizer que constituem a economia moral dos pobres. O desrespeito
a esses pressupostos morais, tanto quanto a privação real, era o motivo habitual para
a ação direta.
A dem ais, a conduta não-econôm ica baseada nos costum es da econom ia m oral estava
am eaçam desintegrar os costum es” (T H O M P SO N , 1998, p. 21). Isto porque a econom ia m oral
estava em confronto com a econom ia de m ercado inovadora, que vinha sendo aplicada ju n to
aos novos preceitos de tem po e trabalho. R essalta-se ainda que a econom ia m oral não era
política, e nem tam pouco apolítica, na m edida que encontrava certo apoio na tradição
paternalista. D essa form a, T hom pson (1998, p. 193) argum enta que o século X V H I evidencia:
“ [...] um padrão de protesto social que deriva de um consenso a respeito da econom ia m oral do
bem -estar público em tem pos de escassez” . E acrescenta: “E m geral, não adianta exam iná -lo
Sendo assim , a econom ia m oral dos pobres é caracterizada pela defesa do “ju sto preço”
para os m ais pobres. A venda de produtos, principalm ente dos cereais, deveria ser realizada de
u m a m aneira em que privilegiasse a com pra aos pobres. T odo o processo de venda de
m ercadorias precisava ser feito de m odo direto e sem um com prador interm ediário. Isto porque
o pobre conseguia preços m ais ju sto s ao negociar diretam ente com o fornecedor. E ssa cultura
p o p u lar de m ercado destoava do laissez-faire ao defender o bem -estar dos m ais pobres e um a
regulam entação do m ercado que beneficiasse a cam ada popular. D e acordo com T hom pson
(1998, p. 18):
394
ser aplicados contra o fura-greve, contra o proprietário rural e seus couteiros, o
inspetor de tributos, o juiz de paz.
autoridades, com o no conservadorism o das tradições. T hom pson (1998, p. 152) afirm a que a
cultura cam ponesa era fragm entada e diversificada, à m edida que reunia diferentes elem entos.
O conservadorism o era recorrentem ente utilizado pela econom ia m oral para legitim ar as
p ráticas de com pra e v en d a sem interm ediários, com o tam bém a fixação dos preços dos cereais.
Sobre o conservadorism o, T hom pson (1998, p. 19) reforça: “E ssa era u m a cultura de form as
conservadoras, que recorria aos costum es tradicionais e procurava reforçá-los. A s form as são
tam bém não racionais: não apelam a razão” . Isto é, existe u m a lógica própria e específica de
funcionam ento dentro da econom ia m oral dos pobres e de to d a a cultura p o p u lar do X V III. É
de sum a im portância destacar que o costum e dos pobres era um a form a própria de regulam entar
a v id a diária. T hom pson (1998, p. 19) explica que a lei era, m uitas vezes, ineficaz; sendo que o
costum e p opular era responsável po r tra z er norm as: “ A lei pode estabelecer os lim ites tolerados
pelos governantes; porém , na Inglaterra do século X V III, ela não penetra nos lares rurais, não
aparece nas preces das viúvas, não decora as paredes com ícones, nem dá form a a perspectiva
de vida de cada u m ” .
econom ia m oral para u m a nova lógica de econom ia de m ercado, m ovida pelo lucro e
acum ulação de capital. N esse ínterim , em erge o conflito entre o tradicionalism o e a nova
política econôm ica liberal. E ssa lu ta entre plebeus e aristocracia se evidenciou na discussão
sobre as Leis dos C ereais202 e sucessivam ente, do preço do pão. O pão de farinha b ran ca era
essencial na alim entação dos ingleses, seja pelo seu vigor, ou pelo costum e alim entar. O pão
integral, conhecido com o pão escuro ou preto, não era desejado pela população. P or isso, que
quando a Lei do P ão Preto, ou Lei do V en en o 203, foi estabelecida em 1880, inúm eros levantes
foram realizados pelas cam adas m ais populares. A revolta foi tan ta que, em m enos de dois
N ão obstante, o preço do pão não era o único fato r que colocava as classes em conflito.
A m udança de um m ercado regulam entado e direto - com o intuito de ben eficiar os pobres - ,
202 As leis dos Cereais, em concordância com Thompson (1998, p. 155-160), são um conjunto de regulamentações
acerca do comércio de cereais. Seja a exportação como a importação de cereais eram completamente controladas,
sendo proibidas ou taxadas em muitos casos. Além disso, o mercado interno de cereais era controlado por meio da
fixação dos preços. O mercado de trigos era regulamentado para que os pobres comprassem primeiro, e somente
depois os comerciantes e os demais. Na prática, isso só ocorria em algumas regiões da Inglaterra, não sendo o caso
de boa parte do território.
203 Sobre a Lei do Pão preto ou Lei do Veneno, Thompson (1998, p. 153-155) diz que ela proibia os moleiros de
fazer qualquer outra farinha a não ser a integral. Isto gerou uma revolta imediata da população.
395
para um m ercado com com pradores interm ediários, foi um dos grandes responsáveis pelas
revoltas plebeias. Isso em razão de que o m ercado de trigos era regulam entado para que os
pobres com prassem prim eiro, e som ente depois, os com erciantes e os dem ais. E ssa prática era
reconhecida tan to pela lei estatuária, com o pela lei consuetudinária e pelo m odelo paternalista.
regulado foi sendo substituído, aos poucos, pelo m ercado dos com pradores interm ediários. N o
início, isso ocorreu po r m eio da prática da am ostragem , com os fazendeiros passando a evitar
o m ercado e a negociar com interm ediários na sua própria residência. A lgum as cargas de cereais
ainda eram levadas ao m ercado regulam entado com o in tuito de m anter as aparências.
Posteriorm ente, as leis que proibiam as com pras antecipadas foram revogadas, privilegiando
A consequência dessa econom ia liberal repressiva aos costum es dos pobres foi um
m otins p o r causa dos preços abusivos de cereais. T hom pson (1998, p. 164) explana que as
revoltas eram ainda m ais hostis nos períodos de aparente fartura das colheitas: “ O s m otins de
setem bro ou outubro eram em geral provocados quando os preços não baixavam depois de um a
relutante e o consum idor irado” . P osto isto, a rebeldia contra os valores abusivos oco rr ia em
defesa do costum e plebeu; ou m elhor dizendo, a econom ia m oral oferecia um elem ento
O utro exem plo análogo de m anifestações da fúria p opular foram as revoltas contra as
padarias e m oinhos. A insatisfação p opular com as padarias era em virtude dos preços e da
pesagem . T hom pson (1998, p. 175) determ ina que “ a m ultidão com bastante frequência ‘fixava
o p reç o ’ do p ão ” . O aum ento repentino dos preços, acarretou vários m otins. U m caso
em blem ático foi a L uta de Shude-H ill de 1757, onde a tu rb a pediu o fim dos direitos senhoriais
dos donos dos m oinhos e exigiu a queda dos preços. D e acordo com T hom pson (1998), a
p o pulação frequentem ente reclam ava dos m oleiros e de suas p ráticas para ganharem m ais
396
dinheiro - com o exem plo, m istu rar farinha v elh a com a nova. H ouve diversas tentativas de
regulam entar os m oinhos com leis, com o a Lei M ille r s Toll. E ssa lei propunha regular de form a
E ntretanto, T hom pson (1998, p.176) explicita que as am ostras m ais im portantes de
C onjunto a isso, existe o apelo popular contra a exportação dos grãos para os
subvencionadas eram as que p ior ressentim ento provocava. O estrangeiro era visto com o
alguém que recebia os grãos a preços, às vezes, m ais b aixos do que os praticados no m ercado
inglês” . A lém de tudo, se anteriorm ente a econom ia m oral era im buída de princípios
paternalistas, com os m otins pela fixação dos preços dos cereais verem os um rom pim ento
C onquanto, é preciso deixar explícito que a ação fem inina foi essencial para a
organização dos m otins. T hom pson aponta que quase sem pre, eram as m ulheres que
com eçavam as revoltas po r conta dos preços abusivos. E las tam bém “eram naturalm ente as
m ais envolvidas com as negociações face a face no m ercado, as m ais sensíveis ao significado
dos preços, as m ais experientes em detectar peso insuficiente ou qualidade inferior” (1998, p.
184). D estaca-se que o agenciam ento fem inino não pode ser renegado ou m inim izado nos
É de sum a im portância a com preensão de que as rebeliões populares eram feitas com
a finalidade de fixar os preços. A fú ria p o p u lar era incitada, basicam ente, nos períodos de
escassez de alim entos e de forte carestia. E m oposição à ideia de que os protestos eram
desorganizados e sem m otivações suficientes, T hom pson (1998, p. 176) rebate: “ O notável
dessas ‘in su rreiç õ es’ é, prim eiro, a sua disciplina, e, segundo, o fato de m ostrarem um padrão
de com portam ento cuja origem devem os b uscar centenas de anos antes” . A ação central coletiva
era bem direcionada e organizada, no m om ento em que o foco era a fixação dos preços, a fim
de g arantir a subsistência.
397
Considerações finais
A o d iscutir a Inglaterra do século X V III, a análise de T hom pson sobre os costum es,
seja investigando a m udança em torn o da percep ção do tem p o ou os m otins de fom e, se opõe
ao reducionism o econôm ico. L onge de apresentar um a leitura unicam ente econôm ica dos fatos,
ele integra a cultura na investigação dos processos históricos. C om o T hom pson (1998, p. 304)
Pois não existe desenvolvimento econômico que não seja ao mesmo tempo
desenvolvimento ou mudança de uma cultura. E o desenvolvimento da consciência
social, como o desenvolvimento da mente de um poeta, jamais pode ser, em última
análise, planejado.
século X V III são alterados diante das novas form as de produção. A o d iscutir o trabalho
m arcado pelo horário. E ssa conversão no m odo de trabalho teve reflexos na form a com o a plebe
enxergava e vivenciava o tem po. O tem p o “natural” é trocado por um tem po orientado pelo
relógio e pela m áxim a de “tem po é dinheiro” . C om o afirm a E llen W ood (2006, p. 66),
T hom pson foi “ capaz de identificar os significados sociais das tradições populares em m utação,
A o d iscutir os cham ados m otins da fom e, T hom pson tam b ém foge da visão
econom icista e evidencia to d a u m a com plexidade de relações culturais que fundam entavam as
revoltas populares. O s protestos sociais contra a nova form a de econom ia liberal eram um
consenso entre a população m ais pobre, um a m aneira de resistir às m udanças culturais im postas
tradicionalism o, garantia um m ercado com preços fixos que beneficiavam os pobres. A ssim , os
plebeus apoiavam a econom ia m oral não só pelo seu caráter de regulam entação do m ercado
segundo a m ultidão, m as tam bém pela proteção aos costum es. C om o argum enta T hom pson
(1998, p. 19): “ a cultura p opular é rebelde, m as o é em defesa dos costum es” . P o r m ais que a
nova eco nom ia im punha costum es inéditos, isso não ocorre sem m uita luta po r parte da turba.
T hom pson é reconhecido por trazer o costum e para o centro do debate, evidenciando-
distanciar de um a historiografia econom icista, T hom pson articula o conceito da luta de classes
no cam po sociocultural. A ssim , com o observa M aced o (2017, p. 111), sua h istoriografia possui
398
“ reiterar e desenvolver sua concepção de cultura com o fenôm eno dinâm ico, conflitivo,
relacionai e contextual, deixando evidente sua opção, fundada no m aterialism o histórico, por
R e fe rê n c ia s
399
“PELO FUTURO DO BRASIL”: O DISCURSO DE MEMÓRIA CÍVICA
DO GUIA DO ESCOTEIRO (1925)
IU R Y G A B R IE L A M O R IM D E A R A Ú JO 204
N O T A S IN T R O D U T Ó R IA S
A im prensa foi um im portante instrum ento utilizado para a dissem inação da proposta
revistas e livros as notícias e orientações sobre o que era e com o p raticar o escotism o chegava
aos diversos p aíses e localidades. N o B rasil, durante o período inicial de inserção e expansão
do escotism o, principalm ente no decorrer das décadas de 1910 e 1920, não foi diferente. C om o
exem plificado por B lo w er (1994) desde os prim órdios do escotism o b rasileiro a im prensa se
fez de sum a im portância para divulgação de ideias em torno o m ovim ento escoteiro.
p artir de então, e tal com o esses, diversas associações voluntárias, igrejas e E stado passaram a
p ropagar a proposta educativa criada pelo general inglês R o b ert B aden-P ow ell iniciada em seu
país no ano de 1908 e trazid a po r aqueles oficiais, fosse po r m eio de instalação de grupos de
escoteiros, fosse por m eio de im portação de u niform es e m ateriais para prática escoteira,
tom ou-se com o necessário à época publicizar m ateriais em língua nacional para os escoteiros
brasileiros, de m odo a “ guiá-los” nas práticas do escotism o. N esse contexto um dos principais
sujeitos interessados na difusão dos fundam entos e orientações em torno do escotism o no país
foi então o alm irante da M arinha do B rasil B enjam in de A lm eida Sodré, autor de co lu n as em
revistas brasileiras e do livro “ G uia do E scoteiro” ainda durante a prim eira m etade do vigésim o
século.
pesq u isad o r interessado na h istória do escotism o teci este trab alh o que teve po r objetivo analisar
o discurso de m em ória escoteira cívica desta obra proposta pelo então m ilitar, escoteiro e
204 Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-graduação em
Educação (PPGEd/UFRN). Pesquisa sob financiamento da CAPES.
400
futebolista B enjam in Sondré, sob pseudônim o de V elho Lobo, p u blicada pela Im prensa N aval
P ara construção deste trabalho, problem atizam os com o fonte histórica o próprio "G uia
do E sco teiro ” , m ais especificam ente o seu "C apítulo 14” , parte que trata do civismo, a p artir da
versão fac-símile da sua prim eira edição. E sta versão foi p u blicada no ano de 1994 pelo C entro
C ultural do M ovim ento E scoteiro. D e m odo geral, nesta obra se indicavam as diferentes
constituíam o discurso de Sodré, que p o r sua vez foi evidenciado com o enunciado em seu
aspecto de conservação e repetibilidade, com o tam bém alinhado a outros cam pos discursivos
com o o da educação escolar republicana. T am bém foram im portantes para a escrita deste texto
algum as as com preensões e conceitos tais com o o de cultura escoteira de N ascim en to (2008)
com o “ [...] um conjunto de teorias, ideias, princípios, norm as, pautas, rituais, inércias, hábitos
e práticas. F orm as de fazer e pensar, m entalidades e com portam entos sedim entados sob a form a
p ercebe esta com o um processo construído po r sujeitos de um tem po em interação, seja ela m ais
ou m enos conflituosa. E as com preensões em torn o do escotism o e civism o enquanto elem entos
elem entos patrióticos que sugeriam a devoção pelos sím bolos oficiais nacionais desde a
infância, para tanto dialogam os com autores com o O liveira e L eandro (2017), M arta C arvalho
P o r fim , com preendi que na obra "G uia do E sco teiro ” se tentava propagar um discurso
de adoração e sacrifício pelo B rasil em nom e de unidade nacional que deveria ser apreendida
desde a infância pelos escoteiros. E um a vez que adultos com esp írito escoteiro alinhados ao
U M G U IA A O A L C A N C E D E U M “ E S P ÍR IT O E S C O T E IR O ”
alheio aos anseios educativos republicanos em v o g a durante as prim eiras décadas da R epública.
D esse m odo, enquanto ten tativa de orientação aos escoteiros, educadores e interessados no
escoteirism o, po r m eio da obra “ G uia do E sco teiro ” se b uscou p ro jetar um perfil de escoteiro
com o um cidadão deste tem p o que tentava se m odelar. H avia na época um desejo por um
40 1
[...] sujeito leal a seus direitos e deveres cívicos, morais, físicos e intelectuais para
que se tornasse cada vez mais útil para a sociedade que lhe demandava esforços para
construir uma nação que prosperasse diante das suas dificuldades, que demonstrasse
sua força e poder de constituidora de um tempo promoção da ‘paz’ e do respeito por
meio da subordinação, do disciplinamento, representado ainda por uma ‘figura
masculina ideal’ (ARAÚJO, SOARES JÚNIOR, 2020, p. 579).
E para isso era necessário que se com partilhassem inform ações que coadunassem com
esse ideário, que orientassem as p ráticas dos chefes e jovens escoteiros para ten tar in cutir um a
id eia de unidade nacional e tran sp o r um a im pressão de alinham ento da proposta escoteira nas
N este aspecto reforça-se o entendim ento de Jorge N ascim ento quando este afirm ou
que "O s im pressos que trataram do m ovim ento escoteiro tiveram caráter inform ativo, instrutivo
e regulador da vida social, sobretudo nos aspectos m orais, além de serem ferram entas para a
escotism o. P o r m eio dela B enjam in Sodré explicava quais seriam as atividades que estavam
alinhadas à proposta escoteira, quais eram suas leis, fundam entos, cerim ônias, histórias,
norm as, dentre outros aspectos. O u seja, delineava u m a “ cultura escoteira” nacional.
delineam ento de virtudes que, para ele, um escoteiro e hom em do futuro deveria te r consigo em
sua m ente e corpo. Se dizia que o jo v em deveria “p raticar n aturalm ente” as virtudes da
generosidade, altruísm o, bondade, cortesia, cum prim ento do dever. E p ara desenvolvê-las o
V ale ainda destacar, conform e os escritos de Z uquim e C ytrynow icz (2002) que
n aquela década o escotism o b rasileiro assum ia cada vez m ais o entendim ento de ser um a
P ow ell para construção de sua p roposta de adestram ento e form ação do caráter fundam entada
O u seja, além dessas com plexas e diversas características apresentadas pelo “ V elho
L o b o ” no “ G uia do E sco teiro ” associadas às ideias do fundador do m ovim ento escoteiro B aden-
Pow ell, existia um destaque aos fundam entos cívicos que deveriam alicerçar e, assim , tentar
g estar este estado de espírito nas crianças e jovens. V ejam os no tópico a seguir com o o autor
402
O “ V E L H O L O B O ” E A IM P R E N S A P E L O E S C O T IS M O
B enjam in Sodré, o V elho Lobo, foi um sujeito de am pla atuação educacional, m ilitar
e desportiva, dentre elas destaquei neste trabalho a sua atuação no e pelo escotism o através da
im prensa. E le escrevia para a revista no R io de Janeiro “ O Tico T ico” , por m eio da qual
divulgava am plam ente notícias acerca do m ovim ento escoteiro. C onform e V ergueiro (2008)
este im presso obteve am pla circulação nacional, se m anteve ativo por m ais de 50 anos e se
com partilhados com o escotism o. Percebi com isso então um a forte tentativa de Sodré para
enaltecer não apenas um a instituição escoteira, m as um m ovim ento educativo em seu aspecto
B enjam in Sodré foi o principal redator da coluna sobre o escotism o em “ O Tico T ico” .
A coluna teve início com o título Escotismo. A partir de 25 de março de 1925 ela
passou a ser publicada com o título de Escoteirismo. Depois do número publicado em
19 de fevereiro de 1930 ela volta ao antigo nome, Escotismo. Houve uma grande
quantidade de textos sobre o escotismo publicados na revista e que não apareceram
na coluna em foco (HEROLD JUNIOR, 2015, p. 304).
Isso m ostrava que escotism o ganhava espaço nas páginas dos jo rn a is pelos escritos de
Sodré, porém não som ente. E n q u an to escritor divulgador do escotism o e m ilitar ele teve
abertura tam bém com a Im p ren sa N aval, ponto em que identifiquei com o um potencial
acentuada presença do caráter cívico presente em am bas as instituições, e que poderiam ser
M ostra dessa abertura foi a recom endação pelo então M inistro da M arinha para
publicação do “ G uia do E sco teiro ” , livro de autoria de B enjam in Sodré no ano de 1925,
enfatizando-o pelo seu v alo r m oral e cívico (L O B O , 1994). Isso dem onstrava ser m ais um a
fo rm a deste autor de enunciar um ideal de escoteirism o, tal qual fazi a po r m eio da revista “ O
T ico T ico” . D e acordo com F oucault (2020), considerei então que Sodré dem onstrava um a
N o que se refere a esta obra, dentre os fundam entos, técnicas, norm as e propostas
postas pelo autor constava um capítulo dedicado ju stam en te a este aspecto à época elogiado. O
décim o quarto capítulo da obra destacava a tríad e: patriotism o, civism o e espírito escoteiro,
403
sequenciando-as de form a a elucidar um fundam ento para a construção de um perfil de jovem .
Já isto no tó p ico anterior o ú ltim o desses elem entos, vejam os na sequência o que significava id
outros dois.
O prim eiro elem ento destacado por Sodré foi a Pátria. E m sua escrita ele introduzia o
tem a ten tan d o criar no leitor um a sensação saudosa po r m eio de um a provocação, vejam os:
Certamente amas aos teus, á tua casa, ao teu lar. E quanto te afastas por algum tempo
de lá, seguindo sozinho para o collegio interno, para o trabalho distante, ou para uma
viagem qualquer e que essa ausência se prolonga por muitos dias, não sentes uma viva
lembrança dos teus paes e irmãos, de tua casa, do teu jardim, da paysagem que te
cercava, do céo dos morros, dos caminhos por onde corria? (LOBO, 1994, p. 272).
patrió tica po r m eio da sensação de pertencim ento e recorrendo à descrição de um cenário inicial
de pacifism o. P artia do princípio do am or pela fam ília, dem onstrando que essa era a prim eira
das u nidades que deveria ser louvada, m esm o que estivesse distante fisicam ente. Seria
considerado honrado o hom em que dem onstrasse apreço e apego à casa e aos parentes, em
especial aqueles vistos com o sujeitos a serem prontam ente protegidos pelo hom em adulto, quais
fossem a m ãe e os irm ãos m ais novos. O que parecia ser um a tentativa para despertar um senso
de autorresponsabilidade no escoteiro pelos seus e pela m anutenção do cenário que deixara para
A p artir dessa pequena unidade, o lar, cham ava-se atenção para que o jo v em
am plificasse esse senso de responsabilidade. G radativam ente ele ela instruído a adorar a sua
fam ília, depois os lares, a cidade, a natureza, os postos de trabalho, as pessoas de m esm a
nacionalidade e os sím bolos pátrios. E m seguida se definia na obra o que considerava com o
patriotism o: o exercício incansável de defender a Pátria. E esta teria um delineam ento definido
C oncom itantem ente, sugeria que to d a e qualquer am eaça ao posto oficialm ente com o
essa “b rasilidade” deveria ser fervorosam ente com batido. Indicava que o jo v em agisse para
“ im petuoso, de arm a na m ão, com batê-los, defender o teu lar, a tu a santa m ãe, os teus irm ãositos
transidos de pavor” (LO B O , 1994, p. 272). Ou seja, o hom em do B rasil não deveria tem er a
m orte ao defender a m anutenção da “fam ília b rasileira” (pai, m ãe e irm ãos que com partilham o
Não exita! Com o mesmo ardor com que defenderias o teu lar, tu, pequenino, corre a
defender os lares dos teus compatriotas, as regiões longiquas desse torrão sagrado que
recebemos dos nossos antepassados. E’ isso o patriotismo, esse ardor que nos prende,
para a vida e para a morte, á Patria onde nascemos (LOBO, 1994, p. 272).
404
A com preensão de P átria era construída então em torn o de um pensam ento de ótica
bélica, em que se tentava inculcar um a necessidade de haver não apenas um a defesa de seu lar,
m as tam bém das fam ílias tais com o a sua, da sua cidade. M ais que isso, incentivava-se que o
jo v em deveria se preparar desde a tenra idade para o sacrifício em nom e do país, fosse pela
am eaça estrangeira, fosse pelo que am eaçasse a “ ordem ” . E esta era u m a construção instituída
po r aqueles que definiam o que era a “b rasilidade” , m e referi aqui ao E stado principalm ente.
interesse e apreço pelo B rasil. N ão seria apenas protegê-lo de tudo que fosse considerado
am eaça à “b rasilidade” , m as tam bém conhecê-lo para exaltá-lo pelos seus caracteres ditos com o
legítim os. A firm ava então que “A prim eira condição p ara um hom em ter civism o é conhecer
bem a h istória e as leis do paiz, porque só assim se poderá interessar pela v id a nacional. Q uem
vive indifferente á vida e aos destinos da nação, não tem civism o” (LO B O , 1994, p. 273). N esse
sentido concordo com Iranilson O liveira e A ndressa L eandro (2017, p. 165) quando explicam
que o escotism o se configurou com o u m a “ estratégia para incul car a ideia de form ação do
cidadão nacional: viril, forte, saudável, disciplinado e patriótico, ou seja, o escotism o foi
u tilizad o para adestrar a infância” . E ssa ideia de cidadão era incorporada com o brasilidade: um a
identidade nacional devota dos sím bolos nacionais, seus heróis, seu território.
E ntretanto, cabe aqui destacar que ao p ropor que os escoteiros fossem conhecedores
especificava que era “ dever conhecer todas as phases porque tem o s passado e os factos capitaes
occorridos, guardando os nom es e feitos dos grandes hom ens, nossos antepassados, que
trabalharam e m orreram para nos leg ar um a terra tão grande e unida” (LO B O , 1994, p. 273).
M ais que isso d estacava que era necessário conhecer as leis brasileiras, pois isso lhes fariam
e as leis M unicipais, bem com o as datas do calendário oficial nacional (LO B O , 1994).
discurso proposto pela escola da R epública. C onform e C irce B ittencourt (2008) essa
perspectiva determ ina com o conteúdo histórico aqueles vistos com caráter de oficialidade com
intuito de defin ir e d efen d er um a ideia de “ identidade nacional” im buída de sentim ento cívicos
e enaltecim ento dos “heróis nacionais” . P o r sua vez, esses “ ditos heróis eram os considerados
grandes hom ens de feitos m em oráveis que criaram e deram a vid a pela pátria e seriam
com positores de um a elite predestinada à conduzir o país” (A R A Ú JO , 2021 138). E sses eram
405
elem entos abordados com o circunstanciais a serem apreendidos pelos escoteiros brasileiros à
ótica de Sodré, eles deveriam alicerçar o que ele denom inava de “ espírito escoteiro” .
nacionalism o com o proposta de “ salvação da n ação” , tal com o no cam p o da educação escolar
da época, com o explicou M arta C arvalho (2003). O que fortalece a ideia de que escotism o e
educação form al eram cam pos discursivos associados pelo elo da educação cívica com o
m odeladora do caráter dos hom ens do futuro próxim o. A o m esm o tem po em que se colocava
com o cura da “ degenerescência” do país causada pelas m azelas que os intelectuais e governos
destacavam haver na época, tais com a am orfia e vícios (Cf. C A R V A L H O , 2003). O escotism o
em m oldes cívicos se pregava com o m ais um in strum ento educativo para prom oção da
ainda que essas determ inações de fundam entos aos escoteiros p u b licad a e republicada em
diferentes anos e refo rçad a po r m eio da articulação tem ática nos diferentes enunciados
produzidos pelo m esm o autor, era, pois, um a construção calculada. Se bu scav a definir o que
deveria com por o caráter do escoteiro, futuro hom em cidadão a serviço da nação, um a form a
las para serem apreendidas e perm anecerem em voga p arecia ser de interesse de Sodré. M ais
que isso, tal com o destacado po r B aden-P ow ell, Sodré b uscou consolidar num a fô rm a de
enxergar a fam ília, a Pátria, o trabalho de fo rm a m uito específica e que buscava ocultar outras
form as divergentes. Isso dem onstrava ser um m odo de fazer uso da proposta escoteira
estrangeira para contribuir com o fortalecim ento de u m a m em ória com foco cívico a ser
exercitada pelos escoteiros brasileiros, m uito em bora este não fosse o único fundam ento do
escotism o.
C O N S ID E R A Ç Õ E S F IN A IS
foi possível com preender que este buscou refo rçar um a ideia de civism o por m eio de seu
discurso a partir de seu lugar social m ilitar e de apoiador do esco tism o e do esporte, em prol da
que deveria ser alcançado pelos jovens deveria ser fundam entado em ideias de Pátria,
406
patriotism o e história nacional, elem entos intercalados entre si e que deveriam fundam entar a
C oncom itantem ente, seu discurso se fazia im buído de um teo r de “legitim idade” por
exaltar um a “b rasilidade” com desejo de verdade, de perm anência, logo de m em ória. A o m esm o
tem p o em que incitava o com bate aos que lhe fosse antagônico. M anifestava o desejo de
reverberar aos quatro cantos do país um im presso que deveria incentivar a construção de um
dito espírito cívico nos jo v en s escoteiros. O que se reforçava pela repetibilidade do discurso por
m eio de outros im pressos da época. P o r fim , ao projetar fundam entos patrióticos se tentava
m o ld ar o caráter dos jo v en s “ pelo futuro do B rasil” e se desejava que se fizesse por m eio de
abnegação, generosidade e coragem . E stes fundam entos eram im portantes fatores, dentre outros
R E F E R Ê N C IA S
407
V E R G U E IR O , W aldom iro de C astro Santos. A postura educativa de O T ico-T ico: um a
análise da prim eira revista b rasileira de história em quadrinhos. C o m u n ic a ç ã o & E d u c a ç ã o ,
São Paulo, n. 2, p.23-34, 2008.
Z U Q U IM , Judith; C Y T R Y N O W IC Z , R oney. N otas para u m a história do escotism o no B rasil:
a “ psicologia escoteira” e a teoria do caráter com o pedagogia de civism o. (1914-1937).
E d u c a ç ã o em R e v ista , B elo H orizonte, n. 35, p. 43-58, 2002.
408
ENSINO DE HISTÓRIA REGIONAL: UM ESTUDO DOS
DOCUMENTOS ORIENTADORES DA CIDADE/MUNICÍPIO DE
DOURADOS - MS.
205 JA C K S O N JA M E S D E B O N A
IN T R O D U Ç Ã O
O presente trabalho b u sca dar visibilidade aos docum entos orientadores para o ensino
de M ato G rosso do Sul, a saber, o R eferencial C urricular do E n sin o Fundam ental A nos Iniciais
2°5c Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD, doutorando no Programa de Pós-Graduação em História
-PPGH/FCH.
409
e A nos Finais da R ede M unicipal de E nsino de D ourados-M S - versão 2016; C urrículo de
R eferên cia de M ato G rosso do Sul - v ersão 2019; e o C urrículo da R ede M unicipal de E nsino
D ourados -M S .
escriturado historicam ente em seus diversos e diferentes tem pos m arcados po r acontecim entos
pelo qual os seres hum anos vivenciaram e deixaram vestígios im pressos, seja culturalm ente ou
socialm ente. D esse m odo, g eograficam ente optam os pela com preensão, naqueles term os, de
um estado federativo do B rasil, que atualm ente é M ato G rosso do Sul e seus m arcos tem porais
que, nos registros de m ateriais didáticos e outros suportes ao ensino, data da pré-h istó ria aos
im portantes. O prim eiro é intelectual, que se caracteriza pela construção do discurso científico
pelos intelectuais das diversas áreas das hum anidades. O segundo é social, que se caracteriza
do estado de M ato G rosso do Sul está incluso neste trabalho com intuito de dar visibilidade às
políticas educacionais que tem , nesses últim os oito anos, alinhavado as proposta de conteúdos
entre os currículos de referência das escolas m unicipais aos currículos de referência do E stado.
são indissociáveis quando estão em ato e potência, ou em outras palavras, n a prática em sala de
aula.
410
O R e fe re n c ia l C u r r ic u l a r do E n s in o F u n d a m e n ta l A n o s In ic ia is e A n o s F in a is d a R e d e
M u n ic ip a l de E n s in o de D o u ra d o s -M S - v e rs ã o 2016
cam po educacional, ainda que pesem os fatores d esfavoráveis relativos a rem uneração e
acom panhar as alterações de docum entos referencias, no âm bito estadual e nacional, com certa
presteza. N esse sentido, o R eferencial C urricular para o E nsino de D ourados, antecipa u m a série
Q u a d r o 1: Sistem atização dos conteúdos de H istória do M S para o E nsino F undam ental A nos
finais, em 2016
ANOS Unidade temática CONTEÚDOS/ Objetos de Conhecimento
6°. Ano Não há conteúdo Não há conteúdo lançado para o ano serial.
lançado para o ano
serial.
7°. Ano Desbravamento do ^ A presença espanhola na região do atual Mato Grosso do Sul (relevância da
“sertão” Missão do Itatim no processo de ocupação e povoamento do Mato Grosso).
História de Mato ^ Expedições monçoeiras no atual sul de MS;
Grosso do Sul ^ Formação dos primeiros povoados no sul de Mato Grosso;
^ Fazendas de gados e agriculturas;
^ Divisão do Estado;
^ Economia, organização política, cultura e processo de aculturação e
contribuição cultural.
8°. Ano Guerra contra o ^ Panorama do Mato Grosso antes da guerra;
Paraguai (1864 ^ A retirada da Laguna (1867);
1870) ^ Retomada de Corumbá comandada por Antônio Maria Coelho (1867);
^ As etnias indígenas envolvidas no conflito: as alianças com o Brasil
Imperial.
O atual Mato ^ Economia Ervateira: influência política e econômica no Brasil Império:
Grosso do Sul no • Companhia Matte Laranjeira;
Brasil Império • Exportação;
• O Trabalho escravo.
9°. Ano Não há conteúdo Não há conteúdo lançado para o ano serial.
lançado para o ano
serial.
Fonte: Referencial Curricular do Ensino Fundamental Anos Iniciais e Anos Finais da Rede Municipal de Ensino
de Dourados-MS, 2016.
Elaborado por: DEBONA, 2021.
estudo/fonte R eferencial C urricular do E nsino Fundam ental A nos Finais, porém , em prim eira
análise podem os notar que a atual região denom inada de M ato G rosso do Sul só passa a existir
U niversidade Federal de M ato G rosso do Sul -U F M S , afirm a em seu livro ‘B reve painel etno-
h istórico de M ato G rosso do S ul’ que a presença hum ana nessa região data “ por volta de onze
m il anos atrás” (M A R T IN S, 2002, p. 19). E m ais recentem ente, no livro in titu lad o “A rte
41 1
rupestre em M ato G rosso do S ul’, organizado por R odrigo L uiz Sim as de A guiar onde cita que
“ [...]os arqueólogos G ilson M artins e E m ília K ashim oto conduziram pesquisas fundam entais
para a arqueologia sul-m atogrossense, estabelecendo recentem ente a data de 12 m il anos para
O utro conteúdo tam bém significativo para conhecerm os a região: O s povos indígenas
originários do atual território sul-m atogrossense (sic), cultura e sociedade que não foram
O s conteúdos propostos para o 7° ano não estão tem poralm ente tipificados, ou seja, se
é período C olonial com suas C apitanias; Im perial, com suas P rovíncias; R ep ú b lica Federativa,
com seus E stados. É de sum a im portância essa periodização, pois envolve term o com o:
C apitania, P rovíncia e E stado que conceitualm ente é essencial para com preenderm os a história
do B rasil e de suas regiões. A ssim se repete nos conteúdos propostos para o 8° ano. Já no 9°
ano, que não há conteúdo proposto, o conteúdo “D ivisão do E stad o ” em M ato G r osso e M ato
G rosso do Sul que está proposto no 7° ano, seria pertinente, j á que ocorreu no ú ltim o quarto do
século X X , ser abordado ju n to s com conteúdos da h istória recente, ou seja, trazer o conteúdo
Sobre o R eferencial C urricular de 2016, ainda pode ser observado que os conteúdos
proposto estão lançados sem m encionar o bim estre a que se refere, desta form a é essencial um a
periodização da h istória para não dissociar a H istória R egional da história do B rasil e da H istória
O C u r r íc u lo de R e fe rê n c ia de M a to G ro sso do S ul - v e rs ã o 2019
político que se vivia no E stado, o C urrículo de R eferência, surge com o um docum ento
p retensam ente inovador, com o slogam “ feito po r todos e para to d o s” . P arte do esforço conjunto
de E stado e M unicípios, para atender, essencialm ente às alterações propostas pela B ase
G rosso do Sul, com seus S ecretários M unicipais da E ducação, som ado n esta listagem os
Fonte: MATO GROSSO DO SUL. Currículo de Referência de Mato Grosso do Sul. Campo Grande: SED, 2019.
Elaborado por: DEBONA, 2021.
conteúdo de h istória regional, inseriu conteúdos necessários p ara entenderm os a form ação da
e das com unidades quilom bolas. O utro aspecto, não m enos afirm ativo é a reafirm ação de um a
histó ria regional de ente federativo de existência cro n ológica que tem seu início na pré-história
a qual se desvincula a qualquer ente federativo anterior a qual fazia parte com o território. Salvo
a referência “A ntigo Sul de M ato G rosso” que dado o seu período, a porção Sul de um estado
federativo, será em si ele m esm o não necessitando em adjetivá-lo com o “ A ntigo” , o que se
to rn a desnecessário.
O C urrículo de R eferên cia do E stad o de M ato G rosso do Sul de 2019 se com parado
ao R eferencial C urricular do E n sin o Fundam ental A nos Iniciais e A nos Finais da R ede
h istória regional e a inserção de conteúdos que estão em consonância e alinhado com a H istória
tem poralm ente em sala de aula sem a n ecessidade de m alabarism os de m arcos tem porais
anacrônicos.
O C u r r íc u lo d a R e d e M u n ic ip a l de E n s in o de D o u ra d o s - v e rs ã o 2020
N a m esm a linha de atuação do ano de 2016, m as desta vez estritam ente alinhado ao
E stado, a cidade de D ourados elabora seu C urrículo de E nsino, cujos conteúdos para o ensino
414
de história, acom panham quase que integralm ente as orientações propostas pelo C urrículo de
R eferên cia de M ato G rosso do Sul, com o se pode dem onstrar pelo quadro 3:
Q u a d r o 3: Sistem atização dos conteúdos de H istória do M S para o E nsino F undam ental A nos
finais, em 2020
até o presente m om ento reproduzido o C urrículo de R eferência de M ato G rosso do Sul - versão
2019, salvo algum as adequações term inológicas concernente ao m esm o período histórico que
podem ser identificados nas ‘unidades tem á tic as’ do 6° ano. Q uanto ao conteúdo dessas
C o n s id e ra ç õ e s fin ais
Fundam ental séries finais do estado de M ato G rosso do Sul e da cidade de D ourados -M S ,
b u sca dar visibilidade a inserção de conteúdos que pautam sobre história regional de M ato
G rosso do Sul. C onsiderando que não só em quantidade, m as tam bém contem plando a nossa
diversidade cultural e social, o currículo que está em v igor dá sustentação legal para que se
possa pau tar as m inorias e abre espaço para que as abordagens das m ais variadas m anifestações,
sejam elas culturais ou religiosas possam em ergir para serem abordadas em sala de aula. N o
entanto, devem os lem brar que os currículos ou referencias curriculares anteriores tiveram em
seu contexto histórico sua im portância de m arco b alizad o r de um tem p o histórico e form ação
Silva: “D iferentes currículos produzem diferentes pessoas, m as naturalm ente essas diferenças
416
não são m eras diferenças individuais, m as diferenças sociais, ligadas à classe, à raça ao gênero.”
não apenas representa, ele faz. É preciso reconhecer que a inclusão ou exclusão no currículo
Portanto, ao longo das ú ltim as décadas tem os observado alguns avanços em seleção
que prim a pela diversidade social e cultural, no entanto po r outro lado, observam os estratégias
R e fe rê n c ia s B ib lio g rá fic a s
417
O DIÁLOGO ENTRE A HISTÓRIA E AS NOVAS LINGUAGENS DE
ENSINO
JA N E D E S O U Z A 206
RESUM O
O artigo pretende analisar no prim eiro m om ento a H istória com o ciência e sua evolução com o
disciplina escolar e com o as tecnologias podem auxiliar na aprendizagem em sala de aula
destacando a im portância de um a das com petências das B ases N acio n ais C om uns C urriculares
(B N C C ). A dim ensão deste trabalho fundam enta-se em m ostrar essa relação entre a tradição
dos livros didáticos com a prática das novas linguagens tecnológicas na sala de aula. A frente
disso, faz-se necessário à b u sca dessa reflexão do am biente escolar onde o p rofessor passe a
v iv en ciar essas alterações de form a a b en eficiar suas próprias ações podendo b u scar novas
m etodologias e novas form as de prom oção do processo ensino aprendizagem . A sociedade vive
um desenvolvim ento acelerado que ocorrem todos os dias, as descobertas ocorrem em
segundos. A análise da disciplina de H istória e sua evolução e a B N C C nos leva às seguintes
problem atizações: E m prim eiro lugar o ensino de H istória, a atuação da escola nesse contexto,
o papel do professor e com o os alunos tem recebido essa nova fo rm a de aprendizagem e
com preender as causas e a dinâm ica desse processo é algo que consideram os fundam ental.
O ptou-se pela pesquisa de referencial bibliográfico, que m ostrou com o essas ferram entas estão
im pactando cada vez m ais a vid a m oderna com reflexos na educação. O presente trabalho foi
dividido em duas partes. A prim eira destaca o ensino de H istória e su a evolução, a segunda
apresenta a B ase nacional com um curricular destacando a quinta com petência.
In íc io do e n sin o de H is tó ria
tran sm issão de inform ações porque está intrinsecam ente ligada ao surgim ento da histó ria dos
hom ens. A H istória, em seu processo de construção com o disciplina escolar, experim entou
construídas m ostram esta realidade. N o que diz respeito ao ensino de história, apresentam -se
com o um m arco de ruptura das opções h istoriográficas e m etodológicas até então em voga nas
A nova ten d ên cia destaca um a “H istória viva” , ou seja, um a H istória que desperte no
aluno a curiosidade para conhecer a sua vida, a realidade que o rodeia, ligando o presente ao
passado.
do ensino de h istória deixam claro um aspecto unificador: a crítica ao ensino tradicional. Isso
quer dizer que na grande m aioria destas novas propostas, a cham ada história tradicional,
conhecida com o positivism o histórico, que dom inou o século X IX e grande parte do século XX,
tan to na produção acadêm ica quanto no ensino escolar e nos m ateriais didáticos tem sido agora
com batida.
diplom áticos e religiosos do passado, que tin h a com o fontes de estudo os docum entos oficiais
concebia a história com o u m a evolução passou a ser questionada a partir do início do século
X X por intelectuais franceses vinculados à cham ada E sco la dos A nnales que transform aram a
D iante desse contexto inicialm ente tem os a ruptura frente à E scola dos A nnales, que
trouxe consigo novas abordagens tem áticas, de novas fontes, no m om ento dessa ruptura essas
novas abordagens supriram as necessidades da época, m as e agora será que essas abordagens
têm sido suficientes para suprir a necessidade acadêm ica, e escolar? O s professores conseguem
fazer ligações entre os conteúdos apresentados nos livros com o u so dessas novas ferram entas?
D esse m odo, podem os dizer que desde seu in ício os saberes históricos estão voltados
para a reflexão sobre a aplicação das práticas tradicionais. E sses saberes j á não conseguem
sobreviver no m undo que exige que as pessoas tom em decisões rápidas, po r isso não basta
educacionais. M iceli diz que é im portante o professor de história valo rizar a experiência
viv en ciad a pelos estudantes, nesse sentido tem os: C onsiderando que o aluno deve ser
incentivado a desenvolver u m a espécie de sentido histórico, para atuar no m undo em que vive,
cabe ao p rofessor de H istó ria disponibilizar elem entos que possam auxiliar esse processo de
histórico.
H oje, novos debates acerca da história e de sua produção têm sido realizados nas
universidades por professores que atuam na área da ciência histórica. O s resultados desta
produção, das novas concepções e das próprias m udanças presentes em nossa sociedade têm
A grande inovação que ocorre hoje é quanto aos objetivos da disciplina e podem os dizer
que um a de suas finalidades na contem poraneidade seria a sua contribuição à form ação de
identidades e ao lugar que cada indivíduo ocupa na história, ou seja, a com preensão de que
419
todos nós som os sujeitos históricos. A form ação de um cidadão crítico, que possa, a p artir do
entendim ento das relações históricas dos hom ens em suas variadas tem poralidades, agir no seu
próprio espaço e tem po é tam bém u m a das várias finalidades a serem alcançadas.
N o entanto a partir do século X X a sociedade passou a ter inform ações com o nunca
antes, os avanços tecnológicos tiveram um papel fundam ental, e no m eio desse furacão de
transform ações com o fica a educação? É preciso recriar a própria escola e o próprio professor,
é preciso saber o que é b em -vindo em sala de aula é o que não é, o uso dos am bientes didáticos
É neste ponto que tem que haver o diálogo dessa apropriação das linguagens
tecn o ló g icas em sala de aula, a questão das diferentes linguagens com o m eios para estabelecer
relações de ensino, ou com o instrum ento de investigação e, especialm ente, com o m eio de
autor reforça que todo conhecim ento é m ais facilm ente apreendido e retido quando a pessoa se
envolver m ais ativam ente no processo de aquisição de conhecim ento. Portanto, graças à
característica reticular e n ão -lin ear da m ultim ídia interativa a atitude exploratória é bastante
favorecida. “É, portanto, um instrum ento bem adaptado a u m a pedagogia ativa” (LÉV Y , 1993,
p. 40).
A área propõe diferentes cam inhos para observar e intervir no processo de
u tilização de diferentes docum entos históricos um m odo de dialogar com a consciência histórica
e provocar progressos no pensam ento histórico. D e acordo com R üsen, o aprendizado histórico
é u m a com petência que todos nós desenvolvem os. R üsen coloca que:
420
O professor deve assum ir o com prom isso de separar a aula tradicional, visando à
construção de um a aula pautada em novas descobertas e isso através de ferram entas que
auxiliem no desenvolvim ento intelectual do aluno e, que o aluno possa p erceber que o ensino
de h istória pode ser interessante e que a h istória não é um a narração de fatos com o era ensinado
professores podem em suas aulas jogos com perguntas históricas, atualm ente existe vários
C om o visto o papel do p rofessor de H istó ria vai m uito além de um sim ples transm itir
conhecim entos prontos e acabados, o que revigora a discussão sobre a questão de ensinar
professores no to cante as suas teo rias e m etodologias. F undam enta-se p ensar essas novas
tecnologias com o m etodologias para estabelecer relações de ensino, ou com o instrum ento de
investigação e, especialm ente, com o m eio de articular nossas ações com o docentes.
A B N C C no e n sin o de H is tó r ia
F ederal de 1988 (B R A SIL , 1988) e no artigo 26° da Lei de D iretrizes e B ases da E d ucação de
1996 (B R A SIL, 1996), esse docum ento com eçou a ser desenvolvido a partir do Plano N acional
da E d ucação (PN E ) em 2014 (B R A SIL, 2014), sendo apresentado ao público pela prim eira vez
com petências e habilidades relacionadas ao uso crítico e responsável das tecnologias digitais
diversas com petências e habilidades com objetos de aprendizagem variados quanto de form a
direcionada tendo com o fim o desenvolvim ento de com petências relacionadas ao próprio uso
com petências de com preensão, uso e criação de T D IC s em diversas p ráticas sociais, com o
N essa relação entre tecn o lo g ia e sala de aula não podem os deixar de evidenciar o papel
das B ases nacionais com um curriculares (B N C C ) neste contexto, pois é a p artir dela que tem os
u m a direção de com o prosseguir em sala de aula. P rofessores e alunos p recisam -se adaptar a
essas inovações, para com preendê-las, e incorporá-las, e introduzindo essas transform ações, no
escolas não acom panharam essa evolução tecnológica e as m udanças ocorridas nos currículos
D esse m odo, podem os dizer que desde seu in ício os saberes históricos estão voltados
para a reflexão sobre a aplicação das práticas tradicionais. P ortanto a finalidade deste trabalho
é analisar essa aproxim ação dessa ferram enta na educação com preender com o a tecnologia pode
ser usada em favor da educação e com o os professores podem fazer uso da tecnologia em sala
de aula.
N ão existe um a ú n ica atividade hum ana que não exija algum a form a de com unicação.
com unicação. Segundo A ndrade e H enriques (2004), com unicar vem do latim com m unicare,
que significa colocar algo em com um . É expor algum a m ensagem a um ou m ais indivíduos.
prática docente, um a vez que as m udanças nas práticas pedagógicas são construídas das
saberes, reutilizando-os no trabalho para adaptá-los e transform á-los pelo e para o trab alho”
E no que se refere ao ensino de histó ria a capacidade de tran sm itir o conhecim ento da
disciplina de história, deve ir além dos livros didáticos, e das aulas tradicionais é im portante
que o ensino da disciplina esteja voltado no contexto que a sociedade está inserida, a sociedade
da inform ação, onde surgem novas form as de pensar, de agir e se relacio n ar com unicativam ente
em hábitos corriqueiros e em sala de aula não deverá ser diferente, o aluno precisa com preender
que histó ria não é apenas um a narração de fatos. A tecnologia digital apresenta novos desafios.
422
tecnologias com o conteúdo de ensino e aprendizagem , preparando o aluno para além de
O advento dessa cultura digital apresenta desafios ainda m ais am plos para a escola
enquanto instituição, ou seja, novas form as de ensinar, novas form as de aprender, F onseca
destaca que:
A grande inovação que ocorre hoje é quanto aos objetivos da disciplina, podem os dizer
que um a de suas finalidades na contem poraneidade seria a sua contribuição à form ação de
identidades e o lugar que cada indivíduo ocupa na sociedade, ou seja, a com preensão de que
todos nós som os sujeitos históricos. C om a form ação de um cidadão crítico, que possa, a partir
do entendim ento das relações históricas dos hom ens em suas v ariadas tem poralidades, agir no
seu próprio espaço e tem po é tam bém um a das várias finalidades a serem alcançadas.
um m aior envolvim ento entre as áreas tecnológica e educacional é cada vez m ais evidente.
H oje, a relação educação e tecn o lo g ia é presente em quase todos os estudos que analisam o
m aneiras para aulas m ais agradáveis, m ostrar os fatos históricos de outra form a, po r isso a
im portância do debate entre cam pos de conhecim ento e a inauguração dessa nova dim ensão dos
conhecim ento. T odos estes recursos podem contribuir no processo de construção de aulas
v oltadas para o tem po presente, utilizando os recursos tecnológicos. Isso nos m ostram que a
423
que a cada dia estão se dissem inando com o lugares de b u sca e produção do conhecim ento,
podem p ensar com o este tipo de interatividade pode p ropiciar o acesso a fontes históricas que
M E T O D O L O G IA
analisar o que já tem escrito sobre o tem a, através de leituras sobre o que é história, a evolução
da ciência H istória, e a leitura das com petências das B ases nacionais com um curriculares, e
P ara isso a pesquisa foi baseada em estudo de autores, com o por exem plo, C irce M aria
F ernandes B ittencourt, E dw ard H allett Carr, Jorn R üsen, entre outros que elaboraram assuntos
h istória e as novas linguagens de ensino, e com o essas ferram entas podem trazer benefícios à
educação com o troca de experiências, u m a m aior interação entre professores e alunos, essas
p rofessor pode ser m ais que um narrador de histórias, ele pode ser quem sabe u sa r os recursos
disponíveis p ara u m a aula m ais proveitosa, as ferram entas tecnológicas podem ser sim usada
que foram utilizados conceitos de autores, que são sem elhantes com os objetivos em questão,
O m étodo de pesquisa escolhido favorece u m a análise de iden tificação que perm ite a
m ovim entação po r diversos cam inhos, possibilitando várias posições no decorrer do percurso,
C O N S ID E R A Ç Õ E S F IN A IS
O E nsino de H istória, com o qualquer outra disciplina tam bém requer que o professor
ten h a conhecim ento e esteja aberto para novas form as de construir um m étodo de ensino
424
aprendizagem , e saiba utilizar as ferram entas tecnológicas, em bora o uso das tecnologias tenha
v inculados à presença das tecnologias na educação. P o r tanto, eles devem estar dispostos a
aprender e experim entar novas form as de ensino e discutir e refletir sobre os resultados da
m esm a. E ssa transform ação que a sociedade no todo estar vivenciando não pode deixar de ser
contem plada pelos responsáveis em educação, para se o bter um benefício educativo em sua
com por o ensino de H istória. Pois, as linguagens são recursos didáticos e precisam fazer parte
de nossas aulas. E las são m eios para m obilizar e construir saberes; são os elem entos para
reflexões sobre os acontecim entos históricos e os m odos com o estes acontecim entos são
representados e, ainda, são ferram entas para estabelecer e evid en ciar narrativas sobre a H istória
uso de diferentes linguagens e um a preocupação em estabelecer o seu uso de m odo crítico, bem
com o de perm itir aos alunos um entendim ento dos ‘do cu m en to s’ em análise com o construções
discursivas. O u seja, os grupos evidenciam a vontade de dem onstrar, aos estudantes, que não
trabalham com verdades históricas prontas e/ou definitivas e, ainda, que tinham ciência da
A s instituições de ensino são cobradas para que não seja sim plesm ente u m a fonte de
tran sm itir conhecim ento, m as que sejam m otivadoras para novas descobertas e m ediadora na
construção do conhecim ento através de tro cas de experiências vivenciadas po r aqueles que nela
estão inseridos desenvolvendo em seus alunos a criatividade e o pensam ento crítico e reflexivo.
grandes desafios. N este cam po no qual o p rofessor atua, e ele o principal instrum ento usado
para a form ação de cidadãos; nesse sentido a sociedade atua com as rápidas m udanças, o avanço
da tecnologia e tantas inform ações sendo repassado de fo rm a constantem ente, o professor ficam
diante do desafio que aum enta cada dia e fica obvio que é preciso ir se ajustando a realidade
atual e no ensino da disciplina de H istória essa realidade não deve ser diferente.
O educador precisa estar capacitado a lidar com novos recursos tecnológicos e integrar
esses recursos as suas p ráticas pedagógicas, e para isso ele deve se p o sicionar com o aprendiz
com o alguém que estar aprendendo assim com o seus alunos. T alvez esteja essa a grande
disponibilize a aprender.
425
É preciso abandonar as antigas p ráticas educacionais e inovar as experiências em sala
ferram enta tecnológica despertando assim a curiosidade e a criatividade dos nossos alunos.
T en d o em vista que a tecnologia é apenas u m a ferram en ta, e não pode ser considerada um
resultado de aprendizagem , o esperado é que os alunos passem a dom inar linguagens, resolvam
N este artigo foi perm itido refletir sobre os sentidos produzidos no ensino de história
com o ciência e por outro lado tendo a B N C C com o elem ento n o rtead o r através das suas
com petências gerais abrindo espaço para um novo ensino de H istória e com o professores de
H istória poderão e podem se apropriar desse docum ento curricular para a transm issão de
conhecim entos. C onsiderando que ainda há m uitas questões em aberto nas quais os
R E F E R Ê N C IA S :
426
DESAFIOS E POSSIBILIDADES DO ENSINO DE HISTÓRIA
INDÍGENA EM UMA ESCOLA PÚBLICA DE DOURADOS-MS
JO Z IA N E D E A Z E V E D O C R U Z 207
R e su m o :
O artigo apresenta com o reflexão a discussão da experiência do ensino de h istória indígena nas
aulas de H istória, com turm as de ensino fundam ental, de um a escola pública da cidade de
D ourados-M S . Instigada pelas experiências que os estágios proporcionaram , tenho por objetivo
refletir a p artir das questões colocadas em sala de aula e das as atividades escritas pelos alunos
construídas no período de estágio. A fonte que subsidiou a construção do texto são os registros
escritos em fo rm a de textos de opinião, elaboradas pelos estudantes, alusivo ao tem a das
dem arcações das áreas indígenas em M S. N esse sentido, a Lei 11.645/2008 se constitui em um
m arco para a m inim ização desse cenário de desigualdades e discrim inação no qual diversos
grupos sociais estão sujeitos. A educação se constitui em um espaço propício para a
im plem entação de novas práticas, que consequentem ente poderão acarretar num a
transform ação de im aginários construídos historicam ente, no qual o negro e o índio foram
negligenciados na h istória brasileira.
I n tr o d u ç ã o
os registros e reflexões construídas a partir das vivências durante a trajetória acadêm ica na
U niversidade po r m eio dos estágios supervisionados, aulas teóricas, bem com o realizar a
discussão de um dos assuntos que m ais m e cham ou atenção nos períodos de regências- a
abordagem desenvolvida a respeito das dem arcações de terras indígenas no estado de M ato
G rosso do Sul.
A in ten ção é com preender, po r m eio dos registros escritos dos alunos e alunas, as
jo rn al. A ssim com o averiguar com o os estudantes construíram (ou não) a relação com a H istória
207Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Graduada em Ciências Sociais e História pela UFGD. A
discussão apresentada é parte do trabalho final de graduação e formação docente (TG2), no curso de
História/UFGD, realizado sob orientação do Prof. Dr. Luís César Castrillon Mendes.
427
A educação se constitui em um espaço p ropício para a im plem entação de novas práticas,
p o ssibilita a transform ação de im aginários construídos historicam ente, no qual o negro e o índio
constitui em um m arco para a m inim ização desse cenário de desigualdades e discrim inação no
ensino fundam ental (com turm as de 7 e 9° anos) com a discussão sobre os grupos étnicos
históricos que perm item perceber a redução dos territórios indígenas no país no decorrer do
avaliativas com os alunos. A prim eira foi a tarefa de construção um tex to de opinião: “M S é
terra de índio, sim ou não? Justifique sua resposta” . A segunda atividade se deu com a
expliquei com o se dão as etapas ju ríd ic a s que com põe o processo de identificação, delim itação
entendim ento das etapas que envolvem os processos de identificação e delim itação de um a
T erra Indígena, tais com o o relatório pericial de um antropólogo, a contribuição a com unidade
interessada na apresentação de elem entos im ateriais e m ateriais que dem onstrem sua relação
com o espaço territorial pretendido, o longo p eríodo de tem po que pode levar até se chegar no
ju lg am en to , entre outras m uitas ações e situações com ponentes dos transm ites para um a
dem arcação ou não, de um a área indígena requerida. A s etapas citadas, entre outras que fazem
parte do percurso ju d ic ia l para a análise de áreas que se pretendem à dem arcação, foram
P ara a análise das respostas dos alunos, foram im portantes as contribuições das
b ibliografias acerca da h istória indígena e h istórico da im plantação da Lei 11.645 que estabelece
escritos de Silva (2013), E dson Silva (2013), Jesus (2013), P en h a (2013) com põe o arcabouço
teórico; relevantes tam bém foram as abordagens desenvolvidas pelas autoras Pim enta(2011),
com preensão dos elem entos relacionados a organização social, religiosidades e os aspectos
contribuições de B rand (1997), C avalcante (2013) e G ruenberg e A oki (2004), C ham orro
O tex to está divido em dois itens. N o prim eiro apresento a discussão do histórico da Lei
h istória e cultura dos povos indígenas no B rasil e u m a breve contextualização dos grupos
a h istória indígena do M S com os estudantes do fundam ental e suas percepções sobre os grupos
étnicos.
U m a d é c a d a d a L e i 11.645/2008 e as e tn ia s no M S
direitos sociais, políticos e civis foram assegurados po r esse in strum ento legal que contem plou
artigo 205, que “ A educação, direito de todos e dever do E stado e da fam ília, será prom ovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvim ento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trab alh o ” . E respectivam ente,
no Art. 242, § 1 da C F / 1988, afirm a: “ O ensino da H istória do B rasil lev ará em conta as
contribuições das diferentes culturas e etnias para a form ação do povo b rasileiro” (B R A SIL,
1988).
isso, em m eio a tantos desafios na educação, nas suas diferentes especificidades quanto ao
público alvo, se estabelece com o algo de fundam ental im portância à reflexão e preparação
desses futuros profissionais da educação para as situações diversas que encontrarão no espaço
escolar, com o os alunos com deficiência, negros e indígenas, por exem plo. Para que os alunos
possam ser recebidos com as condições necessárias para o seu desenvolvim ento estudantil de
D e acordo com Silva (2013, p.108), “ o B rasil tem um longo h istórico de exclusão social,
preconceitos tão introjetados na m em ória social geralm ente dem oram a se diluir” . T am anha é a
429
n ecessidade de assegurar políticas públicas e m udanças no m eio educacional a fim de m inim izar
venham a ser descontruídos. A educação se constitui em um espaço propício para a im p lan tação
de novas práticas, que consequentem ente poderão acarretar na transform ação de im aginários
brasileira.
ganharam força e espaço p ara suas lutas. D ecorrentes de m uitas reinvindicações e pressões para
com o E stad o brasileiro, assuntos com o o ensino da cultura afro-brasileira e indígena passaram
desigualdades, dom inação e discrim inações com o se faz presente no B rasil, é que os
reconhecim ento as suas diferenças. A autora explicita que “É nesse contexto que os m ovim entos
sociais passam a reivindicar um tratam ento m ais igualitário e antidiscrim inatório, inclusive no
N o cenário de lutas sociais p ela inclusão de suas pautas, os m ovim entos sociais que m ais
se destacaram foram os m ovim entos negros e indígenas pelo país. E sses m ovim entos possuem
contudo, é no início da década de 1990 que eles galgam fôlego e conseguem a m aterialização
de algum as conquistas depois de m uita resistência frente ao E stado, que se tornam política
N o bojo das lutas sociais po r reconhecim ento as diferenças, inclusão social, políticas
públicas específicas, m elhores condições de vida entre outras dem andas, em 2008 é aprovada a
Lei 11.645/2008. A nova Lei vem ao encontro das reinvindicações dos m ovim entos sociais que
alm ejavam a inserção dos conteúdos ligados as discussões de caráter etnicorracial na educação
básica.
A pós u m a década que a Lei 11.645/2008 está em vigor, m uitos avanços ocorreram nos
espaços educacionais. A im agem do negro e do indígena tem sido desconstruída com o sujeitos
que rem etem ao atraso do país, ora apresentados de form a rom antizada, com o no caso dos
nacional, ou em outros m om entos percebidos com o selvagens e hostis, com o cham a atenção
430
N o contexto das pautas reivindicadas pelos m ovim entos sociais, m uitas das dem andas
foram arquitetadas e executadas pelos diferentes grupos indígenas. O histo riad o r E dson Silva
(2013, p.39) aponta que: “ os discursos e im agens sobre os índios vêm m udando nos últim os
anos. E essa m udança ocorre em razão da visibilidade política conquistada pelos próprios
índios. ”
de a constituição m ais dem ocrática que o B rasil j á teve, contou com a participação de diversos
grupos da sociedade, entre eles os representantes dos m ovim entos indígenas. N ela, foram
assegurados direitos básicos aos grupos indígenas com o a dem arcação de seus territórios, saúde
e educação diferenciada.
D esse m odo, é nesse m ovim ento de com preensão das im plicações da Lei de 11.645 e a
prática docente, proporcionadas pelos espaços de estágio curricular em H istória, que o presente
surgim ento de outras experiências de práticas de ensino em H istória que vislum brem os
D e acordo com o censo (IB G E - 2010), no B rasil a p o pulação indígena é de 896,9 m il,
há 305 etnias e falam 274 idiom as. N o estado do M S se encontra a segunda m aior população
indígena do país, um total de 73.295 pessoas pertencentes aos N andeva, K aiow á, K adiw éu,
m odificações no m odo de viver dos povos indígenas no B rasil e no estado do M ato G rosso,
com o: A M atte L aranjeira (1882); o Serviço de P roteção ao índio (SPI que surge em 1910) com
a política indigenista, entre elas a criação das oito reservas no sul do estado de M ato Grosso; e
O s eventos e instituições citados anteriorm ente, culm inaram na expulsão dos diferentes
grupos indígenas de seus territó rio s tradicionais, bem com o a m odificação dos m odos de ser e
v iv er conform e suas especificidades culturais. T ais situações e seus im pactos foram discutidos
po r B rand (1997), trab alh o etno-histórico que se constitui em um a referência a todos que se
debruçam nas discussões a respeito da h istória indígena dos grupos localizados, hoje, no estado
de M ato G rosso do Sul, com o os N an d ev a e K aiow á que se encontram em m aior núm ero
social dos K aiow á podem ser v erificados na abordagem desenvolvida po r P ereira (2004).
A o tra tar dos agentes que contribuíram para a perda dos territórios tradicionais dos
possui na produção e análise do conhecim ento do passado e do presente, algo que nos perm ite
im agem negativa atribuída aos “ índios” . N o item a seguir, o propósito é averiguar com o essas
questões relacionadas ao território, as representações quanto a cultura e outros elem entos, foram
“ Q u a n d o C a b r a l c h e g o u a q u i no B ra s il os in d íg e n a s j á e s ta v a m a q u i...”
dá o processo judicial de dem arcação de terras indígenas. L ogo no início da aula, um aluno m e
A frase acim a, refere-se um a pergunta realizada por um aluno do 7° ano, quando iniciei
a aula com a exposição do m apa G uarani Retã, que apresenta onde estão localizadas as etnias
falantes de G uarani na A m érica Latina. N a ocasião em que o m apa foi utilizado, os aspectos
que m ais cham aram atenção dos alunos foram o reduzido espaço territorial em que os grupos
étnicos habitam , as áreas am bientais preservadas pelos indígenas e o núm ero expressivo de
indígenas guarani residentes em diferentes terras indígenas, o que d esm istifica a ideia que os “
N o decorrer da h istória do B rasil, a figura do “ín dio” recebeu diferentes sentidos, que
de acordo com E dson Silva (2013), ao tra tar das im agens construídas quanto ao negro e o
m uito tem po, com o apenas “ índios” ou os “ T upi” , represen tados assim , em tex to s literários,
pinturas, docum entos oficiais, entre outros registros. M esm o com to d a a riqueza cultural que
organização social.
outros m om entos, com o no m ovim ento rom ântico brasileiro, com o o índio heroico e/ou dócil.
432
R epresentações foram construídas e m uitas ainda perm anecem presentes nos dias de hoje e
precisam ser desconstruídas. N esse sentido, o ensino de história e o uso diferentes fontes
G uim arães (2012) contribui de fo rm a significativa para o vislum bre das diferentes
p ossibilidades no ensino de história. A autora cham a atenção para as inúm eras linguagens que
são possíveis de serem utilizadas na sala de aula, seja no ensino fundam ental ou m édio,
dem onstra o quão rico e prazeroso pode se to rn ar o ensino aprendizagem nas aulas de história.
o livro didático e o referencial curricular do M S (2012); 2- literária- com o poem a E xterm índio,
do poeta douradense E m anuel M arinho; 3-o M apa G uarani Retã208 de 2008, que apresenta o
F otografias e desenhos produzidas em 2014 e 2015 com fam ílias da etnia k aiow á de D ourados;
O Progresso.
N A prim eira aula, no exercício da regência intitulada: “M S não será terra de índio” ,
D ourados/M S. 209E scolhi a frase acim a, que foi proferida pelo ex-governador na época dessa
notícia, devido a repercussão que a notícia ganhou no ano de sua publicação nas m ídias locais,
ju sta m e n te po r seu teo r polêm ico e que expressa um alto grau de preconceito e negação de
a instrução era levarem com o atividade de casa e trazerem na aula seguinte. C onform e as
208 O Mapa Guarani Retã de 2008, em conjunto com o caderno que explica aspectos históricos e sócioculuturais
das etnias que compõe os grupos falantes de Guarani (Mbya, Nandeva e Kaiowá), explicam a localização
geográfica do povo Guarani, que podem ser encontrados no Brasil, Argentina e Paraguai. A produção do mapa,
somados a outros materiais, se constitui em uma ferramenta importante na luta dos grupos indígenas, por sua
dimensão política. Fruto do esforço de diferentes entidades e pesquisadores desses grupos. O mapa e o caderno
citado acima, podem ser encontrados no endereço eletrônico. Disponível em:
<http://campanhaguarani.org/guaranicontinental/mapas/>
https://pib.socioambiental.org/files/file/PIB institucional/caderno guarani espanhol.pdf> Acesso em 15
out.2019.
209 Fonte: O Progresso, 08 de agosto de 2008. Disponível a versão digitalizada no Centro de Documentação
Regional da FCH/UFGD.
433
m anifestações de im aginários e representações estigm atizantes210 no trato com os povos
de notícias.
inúm eras violências. Im agens são produzidas com suas histórias, suas crianças, sobre suas vidas
e até a respeito de seu futuro/projeções que na m aioria das vezes apresenta um fim trágico para
os grupos.
V ale destacar que para com preender as representações presentes nas fotografias de
indígenas nas páginas do O Progresso, e os tex to s escritos, que m uitas vezes reduzem o “ín dio”
E v id enciando assim , im aginários que foram construídos po r séculos no B rasil, m as que ainda
com os alunos acerca do papel que a im prensa desem penha e os cuidados necessários sobre o
que é noticiado, após a entrega do tex to solicitado e a correção, pude identificar term o s e
im pressões que m ais apareceram nos trabalhos entregues. A m aioria dos alunos construiu seus
tex to s a p artir da afirm ação de que “M S é terra dos índios, pois os índios viviam no B rasil m uito
antes da chegada dos europeus” ; u m a parcela m en o r argum entou que “M S não é terra de índio,
indecisos, ou que não quiseram m an ifestar sua opinião de form a direta, responderam que “ em
parte, o M S é terra de índio” , estes, apresentaram os grandes proprietários de terra com o vítim as
N a m aio ria dos trabalhos, os alunos apresentaram acontecim entos históricos ligados a
h istória indígena brasileira apresentados nas aulas, assim com o os dados dem ográficos e outras
características de cunho cultural discutidos em sala. A s repostas dos estudantes revelam falta
fortalecem por diferentes m otivações, entre eles as inform ações deturpadas e equivocadas
acerca dos grupos indígenas. P o r outro lado, a experiência desafiadora do ensino da história
210 O conceito de estigma cunhado por Gofman (1988), sociólogo e antropólogo canadense, contribui para orientar
considerações apresentadas no decorrer no texto. Os estigmas que as etnias sul-mato- grossense vivem são
compostas pela falta de dignidade, desumanização, ações discriminatórias e exclusão que os grupos indígenas
estão sujeitos, atribuídas por sua condição de pertencimento étnico.
434
indígena possibilitou perceber que novas perspectivas podem ser apresentadas e contribuir,
m iserabilidades que os grupos estão sujeitos, devido à perda de seus territó rio s ao longo da
h istória do Brasil.
A s experiências dos estágios supervisionados configuram -se com o algo essencial para
form ação dos futuros professores e professoras de H istória. T eoria e prática estão
nas salas de aula no contato com os alunos e alunas do ensino fundam ental e m édio.
C o n s id e ra ç õ e s F in a is
experiência no ensino de história. Id entificar os principais aspectos presentes nas respostas dos
alunos e explicitar algum as possibilidades do ensino de histó ria indígena e o uso de diferentes
fontes, se configurou enquanto um dos elem entos centrais para a discussão desenhada no
presente texto.
A o tra tar dos agentes que contribuíram p ara a perda dos territórios tradicionais dos
possível evidenciar, durante as aulas, o longo período de violências que as diferentes etnias no
M S sofreram e sofrem atualm ente, assim com o, dem onstrar o v alo r que a disciplina de história
possui e sua contribuição para o conhecim ento do passado e do presente, algo que nos perm ite
E assim , ao térm ino das aulas, condições de d iscutir com alunos/as, porque o M S é palco
de tantos conflitos, ligados a disputa territorial. P assando p elo s variados episódios históricos
que dem onstram com o as etnias indígenas foram expulsas, escravizadas, se constituíram em
m ão obra explorada e tendo suas vidas ceifadas no decorrer da história do B rasil, assim com o,
435
núm ero no estado de M S, para que na ú ltim a aula, pudesse refletir no processo ju d icial de
M uitos estudantes expuseram afirm ações com o: “ os índios invadem as terras dos
fazendeiros” , “ os índios querem todas as terras” , os fazendeiros perdem suas terras e os índios
ficam com tu d o ” , entre outras colocações que sucederam no m esm o sentido. U m ideário
construído pela desinform ação e preconceito relativo aos grupos in d íg en as e as dem andas
territoriais que os envolvem , um discurso m uito sem elhante ao que circula por m eio dos m eios
historicam ente, no qual o negro e o índio foram negligenciados na h istória b rasileira. N esse
sentido, a im plantação da Lei 11.645 se constitui em um m arco para a m inim ização desse
cenário de desigualdades e discrim inação no qual diversos grupos sociais estão sujeitos.
A diferentes etnias do B rasil continuam com suas p ráticas e elem entos culturais
específicos de seus grupos, com m uitas perm anências, assim com o diversas rupturas e
m udanças culturais que são frutos das relações h u m an as no decorrer do tem po e dos im pactos
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A cesso em 10 ag o .2 0 1 8 .
S ites c o n su lta d o s
F o n te s
438
FOTOGRAFIAS DA COMISSÃO RONDON NO SUL DE MATO
GROSSO
JU L IA F A L G E T I L U N A 211
M estre em H istória-U F G D / D outo ran d a em H istória-U F G D
C o n s id e ra ç õ e s In ic ia is
M ato G rosso, abrange um recorte inicial acerca m aterial im agético (fotografias), produzidas
pela conhecida C om issão R ondon, no início do século X X , no Sul do E stad o de M ato G rosso.
O interesse pela tem ática surgiu durante o processo de escrita da dissertação de m estrado,
quando tive contato com estudos que referenciavam os trabalhos im agéticos da C om issão
R ondon. N a busca po r fontes acerca da tem ática, a princípio, tive acesso apenas ao livro índios
do Brasil, especificam ente o Tomo I, que contém fotografias do recorte geográfico - pretensão
deste ensaio, o Sul de M ato G rosso. D estaco que há m ais dois outros tom os, II e III, com
A pós esse contato inicial com as fontes, no ano de 2021 em participação com o aluna
especial da disciplina T ópicos especiais II: h istória e historiografia de M ato G rosso e M ato
G rosso do Sul, ofertada pelo P rogram a de P ó s-g rad u ação em H istó ria da U niversidade Federal
211 Graduada em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul- Campus de Nova Andradina. Mestre
pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD e,
atualmente, doutoranda em História pelo mesmo programa. Contato: iuliafluna94@gmail.com/
juliafalgeti. 94@hotmail. com .
439
da G rande D ourados, pude aprofundar o estudo acerca da tem ática o que posteriorm ente
na disciplina, a m enção aos trab alh o s da C om issão R o n d o n em M ato G rosso ocorreu no livro
da professora e h istoriadora L ylia G aletti, Sertão, fronteira, Brasil: imagens de Mato Grosso
no mapa da civilização (2012), que por sua vez faz referência ao trabalho de L aura A ntunes
M aciel (1998).
A p artir de então iniciei um levantam ento de obras: artigos, dissertações, teses e livros
extenso trabalho a ser realizado, com o po r exem plo, o levantam ento de im agens fotográficas
na base de dados nos arquivos do M u seu do Ín d io / R J e leituras de obras que não estão
S egundo a h istoriadora A na M aria M auad (2002), a fotografia, desde o seu surgim ento
vem acom panhando e se adaptando às m udanças ocorridas no m undo, sendo u tilizad a com o
de im agens, seja po r m eio dos veículos de com unicação ou pelos arquivos particulares, as
reconhecido nos dom ínios historiográficos, que perm ite desvelar presenças/ausências de
determ inados sujeitos ou conjunturas históricas. A u tilização dessa tipologia de fonte tem
crescido consideravelm ente nas abordagens de pesquisa histórica, principalm ente após os
M aria E liza L inhares B orges (2011) destacou, em seu estudo, que as im agens em um a
to talid ad e são polissêm icas. A s variad as facetas desse docum ento culm inaram em diferentes
com preensões entre os historiadores, po r exem plo, o condicionam ento de espelhos da realidade
ou conceitos equivalentes foram uns dos entendim entos. B orges (2011) po r sua vez, considera
que as im agens devem ser entendidas com o m ediadoras e não com o reflexos de um fato
histórico.
P ensar a fotografia ou dem ais im agens com o um registro fiel da realidade, que legitim a
ou com prova um fato é, por sua vez, um pensam ento errôneo. A s fotografias, assim com o as
dem ais fontes históricas, precisam ser interrogadas, passam pela construção e intencionalidades
212 A aprovação do mencionado projeto de pesquisa ocorreu no início do ano de 2022 no Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD, e encontra-se em fase de
andamento.
213 A respeito do surgimento da fotografia as historiadoras Mauad (1996) e Borges (2011) consideram que a partir
de 1800 ocorreu um desenvolvimento tecnológico que fomentou pesquisas que buscaram reter imagens em uma
câmera escura.
440
de seus produtores. Sendo assim , as fotografias das expedições da C om issão R ondon são, neste
ensaio, com preendidas com o registros históricos de um a determ inada época e que foram
A C o m issã o R o n d o n
M arechal C ândido M ariano da Silva R on d o n 214, um m ilitar, que em fins dos anos de 1880 havia
recentem ente se form ado um oficial engenheiro. Segundo o antropólogo F ernando de Tacca
(2001, p.15), o jo v em R ondon participou, com o ajudante, com o m ajor G om es C arneiro, das
prim eiras com issões de L inhas T elegráficas que iniciaram os trabalhos em 1889. A p artir de
1891 passou a com andar, efetivam ente, a C om issão. A m udança de com ando ocorreu devido à
sua m aioria, filiados à corrente de pensam ento da filosofia positivista e evolucionista. Segundo
despontava com o m eio de com unicação m ais adequado para a m anutenção da ordem pública.
Q uanto à expressão C om issão R ondon, T acca (2011) relata que fora atribuída às
telegráficas no E stad o de M ato G rosso (de C uiabá a C orum bá, até as fronteiras com B olívia e
P araguai, 1900-1906). Posteriorm ente, R ondon tornou-se responsável pela C om issão de L inhas
214 Por meio de consulta ao verbete disposto na página do CPDOC/FGV, Candido Mariano da Silva Rondon nasceu
em Mimoso, município de Santo Antônio de Leverger, no dia 05 de maio de 1865. O pai Candido Mariano da
Silva faleceu antes do nascimento do filho, vítima da epidemia de varíola, no ano de 1864. A mãe Claudina Lucas
Evangelista veio a óbito no ano de 1867, a causa da morte não foi revelada. Após ficar órfão, ficou aos cuidados
de um tio, Manuel Rodrigues da Silva Rondon, de quem em 1890 agregou o sobrenome Rondon, tornando-se
assim Candido Mariano da Silva Rondon. Rondon possuía ascendência materna de indígenas Bororo. Na década
de 1870 formou-se professor primário, mas abandonou a carreira para se tornar militar. No curso preparatório da
Escola Militar foi aluno de Benjamim Constant, que por sua vez exerceu forte influência na vida de Rondon,
principalmente em relação aos ideais positivistas, Rondon foi professor da Escola Militar antes de ser indicado
para trabalhar na Comissão de Linhas Telegráficas, por meio de sua atuação e defesa dos indígenas ganhou
notoriedade nos debates públicos que lhe rendeu em 1910, com a fundação do Serviço de Proteção aos Índios, o
cargo de direção do Serviço. Rondon participou de várias expedições ligadas à Comissão de Linhas Telegráficas
e SPI. Por fim, Rondon foi conduzido ao cargo de diretor do Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI).
mais em: MAYER, Jorge Miguel. Candido Mariano da Silva Rondon. Centro de Documentação e Pesquisa de
História Contemporânea do Brasil/ CPDOC, s/a. Disponível em:<
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/candido-mariano-da-silva-rondon >. Acesso em
19 jul. de 2021.
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T elegráficas E stratégicas de M ato G rosso ao A m azonas a C L T E M A , cujos trabalhos
encerraram -se em 1916. R ondon tam bém foi o responsável pela E xpedição C ientífica R ondon-
destacou-se no período republicano b rasileiro com o um ó rgão incum bido de levar o progresso
órgão passou a produzir e divulgar im agens, apresentando, dessa fo rm a o in terio r aos centros
urbanos.
(1998):
A histó ria oficial do órgão e, certam ente, a im prensa não destacavam relatos com o o
trech o supracitado. M aciel (1998) apresenta-nos situações que ocorriam na C om issão R ondon
e que são pouco conhecidas. O uso de vio lên cia contra trabalhadores da C om issão não era um a
prática aprovada por todos os oficiais, alguns repudiavam esse tip o de agressão. C onform e a
autora, os castigos não eram aplicados diariam ente, m as sim nos m om entos oportunos e de
n arrativa de M aciel (1998) é possível p erceber que esses trabalhados eram contratados com o
diaristas e lhes era prom etido o ordenam ento de 5.000 ou 6.000 réis, a serem pagos nos fins de
cada m ês. A esses sujeitos relatavam que seriam tratados com o hom ens livres. A prática,
entretanto, contrapunha-se com o que era prom etido; ao chegarem aos cam pos de trabalhos
trabalhadores civis, m as tam bém os m ilitares. A alim entação não era adequada para o tip o de
esforço realizado, a ingestão de água não potável e o clim a de algum as regiões favoreciam o
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acom etim ento de doenças. V idas foram perdidas durante o processo de execução dos trabalhos
da C om issão R ondon.
outros com a m esm a finalidade se fizeram com uns, pois representavam a efervescência
Segundo R odrigues (2011, p. 205) ocorreu um reordenam ento político-cultural nacional nos
prim órdios do século XX, em que a ideia central é m odernizar o país, a partir dos m oldes
europeus. A nova estrutura desejada pelos governantes e sociedade d ev eria alcançar todos os
lugares do Brasil.
povoada po r não indígenas. D e acordo com G alleti (2012), M ato G rosso frequentem ente
transpareceu ser um lugar de rica natureza inesgotável, pronto a ser explorado, m as tam bém
com u m a vasta população indígena, o que, na visão dos não indígenas era um problem a. D essa
fo rm a M ato G rosso era visto pelos próprios brasileiros a p artir de u m a im agem negativa, ligada
à selvageria e barbárie.
Já no entendim ento de L ucidio (2008 p. 75), M ato G rosso ganhou im pulso com ercial
com a reabertura da navegação no rio Paraguai, m as não m inim izou as diferenças sociais entre
autor, os grupos dom inantes ressaltavam as riquezas do estado e as potencialidades econôm icas,
sendo as carências nos m eios de transporte e de com unicação m otivo de atraso, bem com o a
n atu reza do hom em m ato-grossense que com ascendentes negros, indígenas, pardos e m estiços
não eram afeitos às condições que a m odernidade exigia. D e fato, é possível vislu m b rar nos
trabalhos de: G aletti (2012), Q ueiroz (2006) e L ucidio (2008) um a discussão sobre a b u sca por
A s im a g e n s d a C o m issã o R o n d o n
A o com ando de R ondon, as com issões to rn aram -se sím bolos de progresso e
m odernização do país. É nesse cenário que o próprio R on d o n com eçou a ocupar lugar nos
debates público e político, ocorridos nos grandes centros urbanos, São P aulo e R io de Janeiro,
em relação ao destino dos indígenas e da colonização do país. F ilho de M ato G rosso, R ondon,
aliou trabalho e im agens (fotografias e cinem atografias) a seu favor: “R ondon não fotografou
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M ato G rosso. E le registrou aspectos de seus trabalhos que ocorreram , principalm ente, em terras
O s registros fotográficos realizados pela C om issão R ondon durante seus trabalhos eram
enviados anexos aos relatórios para o governo nacional, bem com o am plam ente divulgados em
curiosidade da elite litorânea interessada em conhecer o B rasil dos sertões, e de certo m odo,
conquistar esse público, visto que neles poderiam encontrar aliados que partilhassem da m esm a
discussão de pauta que o próprio R ondon. E ssa elite que fo ra m encionada, estava
geograficam ente distante do in terio r brasileiro, logo conhecia o indígena, por exem plo, apenas
po r m eio das representações na literatura brasileira. D essa form a, a im agética R ondon insere
etc., que poderia condicionar em casos de olhares estereotipados dos “ outros” . O historiador
P e ter B urke (2017) em Testemunha ocular. O uso de imagens como evidência histórica discorre
sobre as m aneiras com que o “ outro” pode ser representado; m ais precisam ente com o as
B urke cham a atenção não apenas para a idealização daqueles que estão além das
fronteiras, m as tam bém para os sujeitos concebidos com o “ outro” , que com ungam do m esm o
território nacional. D essa form a, entendem os que tanto os indígenas brasileiros com o os não
indígenas que m oravam nas áreas visitadas pela C om issão R ondon estavam inseridos no
contexto daqueles que com ungam do m esm o espaço territorial, m as que, po r sua diversidade
cultural, acabavam sendo relativizados com o sujeitos que não se enquadravam aos padrões de
civilidade.
Segundo G aletti (2012, p.259) “ [...] R ondon tin h a com o m issão integrar os sertões ao
corpo da pátria [...]” . C om preende-se que a passagem anterior se deve ao fato de que o B rasil
havia, recentem ente, tornado-se república; logo, órgãos com o a C o m issão de R ondon
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im pulsionariam o desenvolvim ento industrial e colaborariam com a consolidação do capital,
M aciel (1998) aborda a com preensão da história das C om issões ao com ando de R ondon,
bem com o os projetos políticos dos prim eiros anos da R epública. A autora evidencia elem entos
que ficam obscuros diante da idealização da figura de R ondon e dos benefícios im plem entados
pela C om issão R ondon à sociedade. M aciel reconhece a apropriação que R ondon faz das
im agens (fotografias e film es) das expedições com o fo rm a de se co m u n icar com a sociedade
brasileira.
E m consulta à obra Índios do B rasil, tom o I 215, anteriorm ente m encionada, im porta
ressaltar que o tom o em questão possui fotografias de indígenas brasileiros e de áreas da região
centro, noroeste e sul de M ato G rosso. C om relação a esses povos, o ín d ice do livro m enciona
A s fotografias dos povos indígenas e áreas referentes ao sul de M ato G rosso podem ser
localizadas das páginas 315 a 338 da obra. A coleção fotográfica som a aproxim adam ente 40
fotografias em coloração preto e branco. A s im agens fotográficas estão num eradas, seguindo
breve legenda e abaixo o nom e do fotógrafo que a produziu, sem outras inform ações adicionais.
Segundo M aciel (1998, p.189) “ [...] ‘Índios do B ra sil’, foi publicado em três volum es, sob o
patrocínio do C onselho N acional de P roteção aos Índios nos anos 40, e pretende ser u m a grande
síntese de todo o trabalho realizado nas regiões percorridas pela C om issão e pelo SPI216” . A ssim
215 É oportuno ressaltar que a mencionada obra possui 378 páginas. A versão que a autora deste artigo possui é
datada de 2019, uma publicação especial do Senado Federal, disponível para download em:
http://www2. senado.le g.br/bdsf/handle/id/559114.
216 É oportuno esclarecer que o Serviço de Proteção aos Índios, o SPI, conforme citado por Maciel (1998) foi um
órgão oficialmente criado no ano de 1910, regulamentado pelo decreto n° 8072 e vinculado ao Ministério da
Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC). Inicialmente a sigla do órgão era SPILTN, que significava: Serviço de
Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais. Em linhas gerais, o desmembramento do SPILTN
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com o a C om issão R on d o n o SPI tam bém incorporou a prática de docum entar seus serviços em
tom o I de Índios do B rasil é difícil associar, por exem plo, a qual órgão pertencia a autoria das
Segundo T acca (2001, p.02) a C om issão R ondon, criou em 1912, u m a seção própria
Photographia, com andada po r um m ilitar, o m ajor T hom az L uiz R eis, a quem é rem etida a
autoria da grande parte dos registros im agéticos, m as R eis não era o único que realizava os
registros im agéticos, nom es com o o de José Loro, B enjam in R ondon, Joaquim R ondon,
C harlotte R osenbaum e C arlos Lako, tam bém foram m encionados po r F ernando T acca com o
fotógrafos que prestaram serviços à C om issão R ondon. C onsiderando a m enção a vários nom es,
é legitim o supor que as conduções dos registros fotográficos, anterior à seção de cinem atografia
1998, p.193).
referente ao sul de M ato G rosso, é possível v isualizar indígenas das etnias Terena, K aiow á e
K adiw éu em suas casas, ju n to a seus fam iliares, hom ens, m ulheres e crianças, bem com o a vista
das fotografias dois indígenas da etnia T erena aparecem travestidos com os uniform es usados
na guerra com o P araguai, de m odo que ao visualizar a fotografia no nosso entendim ento seja
ressaltado os préstim os desses sujeitos na defesa do B rasil. A presença de R ondon pode ser
A lguns aspectos presentes nas fotografias cham aram a atenção, o prim eiro diz respeito
à organização das fotografias, não há tex to s inform ativos, apenas as breves legendas. A s
pessoas que ora são representadas nas fotografias não são nom eadas, apenas há a identificação
indígenas vestem roupas dom ingueiras, as m ulheres usam enfeites, com o laços em seus cabelos.
Segundo T acca (2001) o uso de roupas padronizadas, igualava os indígenas de várias etnias
sul de M ato G rosso, as dem ais im agens não foram ignoradas. Isso nos levou à percepção de há
ocorreu oficialmente em 1918, por meio do decreto de Lei n° 3.454. A localização de trabalhadores nacionais não
deixou de existir; apenas foi transferida para outra pasta governamental.
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fotografias que não estão configuradas com a tem ática dos capítulos; po r exem plo, há im agens
dos cam pos do rio V acarias inseridas no livro, m as em capítulos com outras finalidades, sem
m uitas afinidades com a região representada na im agem . Segundo M aciel (1998, p.189) “ [...]
vez[...]” . O que pode ter ocorrido com a fotografias, observadas com estranheza pela sua
d esapercebidas.
P o r fim , com preendem os a riqueza dos detalhes presentes nas fotografias do tom o I, de
m odo que se configuram com o um interessante inventário im agético, a ser explorado, sobre as
C o n s id e ra ç õ e s fin ais
po r m eio dos estudos realizados, conceitos com o: progresso e m odernidade faziam parte dos
projetos políticos dos governantes. O B rasil, um país de tam anho continental, possuía áreas,
com o o estado de M ato G rosso, pouco habitados po r colonos. N a visão dos governantes, e
povoam ento de localidades que estavam na m esm a situação que M ato Grosso.
m odos de oferecer o progresso e consequentem ente atrair colonos. Porém , conform e estudado
os povos indígenas que habitaram essas áreas eram tidos com o obstáculos para o avanço da
m odernidade. V istos com o incivilizados, havia um im aginário de que esses povos eram capazes
de com eter violência contra os não indígenas. O que as autoridades não levavam em
D essa form a, a p artir de 1900, a C om issão R ondon na figura do próprio com andante
M arechal R ondon, passou a docum entar im ageticam ente os trabalhos da com issão e,
posteriorm ente, a divulgar entre as gentes dos grandes centros urbanos o trabalho de am ansar
os sertões, seja levando o progresso po r m eio das linhas telegráficas ou realizando um trabalho
de contato pedagógico de pacificação dos indígenas. D essa form a, as divulgações dos trabalhos
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da C om issão R ondon passaram a fom entar o debate público que inseriam os indígenas, por
exem plo, com o sujeitos que estavam prontos para serem integrados à so ciedade nacional, porém
necessitavam , na visão positivista dessas lideranças, da intervenção do E stado, com o realm ente
realizados pela C om issão R ondon. S ão im agens posadas, que tiveram a interferência dos
lugares, ações, práticas, belezas naturais entre outras. T odas com o objetivo de am plam ente
divulgar não som ente os trabalhos da C om issão, m as tam bém de incentivar a colonização para
essas áreas, transm itindo a ideia de que o progresso está em todos os recantos do país.
m arechal sem pre em p osição de destaque, u sando suas roupas de oficial, fiscalizando obras.
atribuída às im agens de u m a m aneira geral, tam bém deve ser aplicada aos registros produzidos
pela C om issão, considerando o contexto em que foram produzidas e cuja finalidade seria a
divulgação.
P o r fim , entendem os que os registros im agéticos podem e devem ser utilizados nos
entendim entos de fatos históricos. O conjunto de fotografias e dem ais im agens produzidas pela
C om issão R ondon não ressaltam apenas a im portância do órgão, m as contribuem para a história
R e fe rê n c ia s b ib lio g rá fic a s
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O ALINHAVAR DA MEMÓRIA DO QUE SE QUER PRESERVAR E A
CRÍTICA DO QUE SE QUER TRANSFORMAR: UMA ANÁLISE DO
FAZER ARTESANAL CERAMISTA DO VALE DO JEQUITINHONHA.
JU L IA N A P E R E IR A R A M A L H O 217
E ste trabalho tem com o objetivo analisar o artesanato em barro produzido no V ale do
Jequitinhonha, a partir dos aspectos socioeconôm icos e culturais que com põem o seu processo
criativo. A id eia de desenvolvim ento do processo artesanal que utilizam os neste estudo está
b asead a na tipologia desenvolvida po r R ubim (2007 e 2008), que entende que o processo
divulgação, transm issão e difusão; troca, intercâm bio e cooperação; p reservação e conservação;
análise, crítica, estudo, investigação, pesquisa e reflexão; consum o e organização. T odos estes
m ovim entos articulados constituem o com plexo sistem a cultural que vem , cada vez m ais, sendo
acionado com o elem ento de políticas governam entais, ao m esm o tem p o em que, constitui-se
apresentarem de form a entrelaçada, neste artigo, optou-se por fo car na fase criativa do
artesanato, evidenciando a tip o lo g ia das peças confeccionadas pelos artesãos jeq u itin h o n h en ses
observar a população pesquisada a partir das suas diversas inserções e redes sociais
estabelecidas na com unidade. A p o rta de acesso escolhida para a inserção neste universo
A s feiras sem anais, que geralm ente acontecem aos sábados nas diferentes cidades do
Jequitinhonha, constituem im portante lócus de trocas, tanto m ateriais com o sim bólicas. D evido
às com plexas interações existentes neste espaço social, pudem os estabelecer aproxim ação com
os artesãos, ao m esm o tem po em que se construía a rede de info rm an tes que viria a com por o
foram fundam entais para o segundo m om ento do trabalho, pautado no conhecim ento das
relações m icrossociais, vivenciadas pelos artesãos em seu cotidiano. C ada visita a cam po era,
acerca da m inha origem , dos m eus objetivos, das representações que eu poderia construir a
respeito de suas v ivências, com o tam bém se interessavam pela possível existência de elem entos
de que eu poderia d ispor para o estabelecim ento das trocas. E aqui entendam tro cas no sentido
de am izade e tam bém com o um a pessoa que representava, m esm o sendo natural do
pod eria ser descrito com o u m a fase de fundam ental im portância em que se decidiam a aceitação
ou a n ão-aceitação das negociações em que am bas as partes - pesquisadora e inform antes, cada
perm itiu o acesso aos códigos das subjetividades em diálogo. N este m om ento, desenrolaram -se
os frágeis “fios de A riadne” (SILV A , 2000, p. 66) que nos conduziram até este m om ento da
escrita etnográfica e, com certeza, continuará a influenciar nossas vindouras reflexões nos
C ada conversa com um artesão era um universo que se ab ria e conduzia a outro,
perm itindo que adentrássem os o ín tim o da vida daquelas pessoas, ao m esm o tem po que se
alargavam os horizontes da pesquisa. E sta trajetória foi com posta de vários encontros, em
contato m ais estreito com os artesãos para execução das entrevistas. E sta postura m etodológica
im pediu que retornássem os a to d as as com unidades visitadas p ara com plem entação da
prim eiro m om ento. A inda que não tenham os form alm ente registrado seus depoim entos através
das entrevistas, estas pessoas foram fundam entais para a construção das redes de inform antes e
tam bém para o conhecim ento dos m eandros que com põem o fazer artesanal no Jequitinhonha.
O cam po de pesquisa com eçou a ser construído no prim eiro sem estre de 2008, quando
Jequitinhonha. C om o o intuito era estabelecer contato com o m aior n úm ero de artesãos, foi
definido que iniciaríam os pela F eira de A rtesanato que a cada ano acontece no F estivale,
F estival da C ultura P o p u lar do V ale do Jequitinhonha, evento itinerante que anualm ente ocorre
N aq u ele ano de 2008, o F estivale aconteceria em C apelinha. P ara chegarm os até aquela
cidade, incluím os em nossa logística outras cidades do Jequitinhonha, tam bém conhecidas pela
sua expressividade artesanal. E assim visitam os alguns postos de vendas à b eira da estrada com o
451
tam bém as feiras sem anais. N estes lugares, conversam os com artesãos que vendiam o fruto de
seu próprio trabalho; outros que assum iam a condição de atravessadores e sobreviviam
revendendo a m ercadoria alheia; e, ainda, aqueles artesãos que encaravam o artesanato com o
pessoas são artesãos e artesãs de diferentes faixas etárias, desde crianças até senhores
form ato que a im aginação lhes perm ite ou que a tradição lhes orienta.
É relevante salientar que nos postos de vendas m ais inform ais, com o as feiras livres
locais e as b arracas à beira das estradas, as peças artesanais se m isturam a outros produtos
oferecidos pelo m ercado local, com o aqueles oriundos da agricultura fam iliar e os pro d u to s
industrializados, com o as vasilhas de plástico e alum ínio, advindos de outras regiões do país.
N ã o existe ali um a preocupação com a disposição estética das peças, tal com o pudem os
observar nas lojas especializadas em arte e artesanato. N estas feiras, m u itas vezes, as peças se
encontram de m aneira am ontoada, expostas ao chão ou em estruturas de m adeira que até m esm o
dificultam sua visualização pelo consum idor. O u seja, a disposição do artesanato segue a
m esm a organização dos dem ais produtos locais que v isam a atender à necessidade da
com unidade local, com o a farinha disposta ao lado em sacos de algodão ou com o as bananas
que fazem com panhia ao requeijão e ao m el. N este cenário, nem sem pre conseguim os ter
contato com o artesão, autor das peças, caso de M in as N ovas, em que pudem os apenas apreciar
Im portante dizer que a visita aos postos de com ercialização do artesanato, com o as feiras
e sedes da associação dos artesãos são espaços riquíssim os para partilhar do conhecim ento da
fam ília artesã. O u seja, o consum idor que frequentar estes espaços terá a oportunidade de
presen ciar não só o produto exposto com o p articipar do processo de confecção de u m a peça,
com o pude experim entar nos fundos da loja de artesanato de A raçuaí. N o entanto, apesar da
organização destas lojas, a sua estrutura ainda é m uito sim ples se com paradas às lojas
especializadas em arte e artesanato dos grandes centros com o B elo H orizonte em que a peça
em oldurada por um a vitrine, ilum inada artificialm ente, aguça a sensibilidade consum idora do
cliente, transform ando-a em objeto de desejo. A lém das feiras locais, foram visitadas duas feiras
regionais dentro do V ale do Jequitinhonha e outras duas feiras artesanais realizadas em B elo
H orizonte, nas quais tam bém houve participação dos artesãos jequitinhonhenses. A s feiras
regionais foram , respectivam ente, a “F eira de A rtesanato N o em isa B atista” , em 2008, na cidade
de C apelinha, durante o 26° Festivale; e a “F eira de A rtesanato T ião A rtesão” , em 2009, sediada
na cidade de G rão-M ogol, no 27° Festivale. E stas duas feiras foram essenciais para realização
da pesquisa ju n to aos artesãos e aos m ediadores sociais. E ntre um a feira e outra, tam bém foi
452
possível frequentarm os algum as residências em que pudem os p artilhar experiências e
inform ações sobre o m odo de vida e fazer artesanal. U m a destas residências foi a casa do artesão
ceram ista conhecido por todos com o M estre U lisses. M estre U lisses, com to d a sua sim patia e
b o a retórica, tem sua história com o barro confundida com a m ilitância política e cultural no
V ale do Jequitinhonha, na década de 70. Justifican d o suas peças, U lisses esclarece que sua
m issão é denunciar a exploração a que o cam ponês do Jequitinhonha está subm etido. O prim eiro
contato com U lisses aconteceu em ju lh o de 2008, quando foi possível participarm os da sua
oficina de cerâm ica, por ocasião do 26° Festivale. E m ja n e iro de 2009, visitam os sua residência,
onde pudem os gravar seu depoim ento e conhecer de m odo m ais ín tim o seu “cantinho de
Jequitinhonha, com o ocorreu no m ês de m aio de 2009, quando pudem os acom panhar a 10a Feira
encontram o-nos não apenas com U lisses, m as tam bém com outros artesãos que fizeram parte
desta pesquisa. O m esm o ocorreu no m ês de novem bro de 2009 na 20a F eira N acional de
A rtesanato prom ovida pela E xpom inas, em B elo H orizonte. A participação nas feiras externas
ao Jequitinhonha foi im portante no sentido de possibilitar nosso contato com o grande público
consum idor do artesanato do Jequitinhonha, bem com o acom panhar o encontro dos artesãos
com este público. E stas idas e vindas possibilitaram a construção do corpo de participantes
form ado po r vinte e um artesãos de diferentes cidades do V ale do Jeq u itin h o n h a que
A escolha dos inform antes artesãos foi norteada pelo critério de envolvim ento dos
agentes no ofício de artesão e sua inserção no m ercado regional, nacional e internacional. Junto
a este grupo, algum as questões foram fundam entais para o desenvolvim ento e problem atização
durabilidade das peças artesanais; novas tem áticas para produção; confecção em larga escala):
consum idor?
A p artir destas questões, o estudo foi pautado com o objetivo geral de descrever os
m om entos do ofício ceram ista e entalhador e o papel das políticas de cu ltu ra e dos m ediadores
453
sociais na organização deste processo no V ale do Jequitinhonha. T endo com o base este
a) A nalisar a dim ensão econôm ica e sim bólica do artesanato para os artesãos;
em estudo;
e) A nalisar a relação entre produção artística dos artesãos no contato com o outro: o
D entre as respostas a todas estas questões, elegem os com o objeto deste artigo apenas a
análise da tipologia das peças em cerâm ica produzidas no Jequitinhonha e sua relação com a
A R T E S A N A T O E M C E R Â M IC A D O V A L E D O J E Q U IT IN H O N H A
O artesanato do V ale do Jequitinhonha tem sido referenciado pela m ídia e até m esm o
contem porâneas vivenciadas tam bém na região têm ocasionado algum as transform ações no
trab alh o artesanal no sentido am plo, ou seja, nas diversas etapas que constituem o que
inseriram na região, bem com o a m aneira com o os artesãos passaram a pensar as relações com
seu próprio ofício e tam bém com aqueles que fazem usufruto de suas peças.
N o entanto, há que se ressaltar tam bém que as m odificações são acom panhadas de um
m ovim ento de preservação e de transm issão de certos valores tradicionais que m arcam o fazer
artesanal. E stes m ovim entos que a princípio parecem contraditórios revelam a condição híbrida
do artesanato da região que tam bém com unga com a condição da nossa sociedade brasileira ou
até m esm o com a nossa condição latina, com o diria C anclini (2003), de ser h íbrida conjugando
possível encontrar peças em fibras, cerâm ica, m adeira, sucatas, tecelagem etc. C ada tipologia
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apresenta suas especificidades e suas diferenciações de acordo com o estilo de cada artesão. N o
caso deste estudo em que trabalham os com o artesanato m ineral (argila), podem os classificar
u tilizados pelos próprios artesãos que, dependendo da situação, utilizam tam bém os term os
enfeite ou escultura para se referirem ao artesanato ornam ental ou figurativo. E stas categorias,
que podem os classificar com o resultantes do discurso local em contraste com o discurso
externo, tam bém são as m esm as utilizadas para a classificação ou subdivisão das peças para
D alglish (2006). E stas categorias tam bém são adotadas neste estudo para classificarm os as
A s peças utilitárias são com postas por panelas, pratos, xícaras, m oringas, potes para
água, etc. E ste tip o de produção é m uito consum ido pelas com unidades locais, até m esm o pela
acessibilidade dos preços. A pesar de alguns estudiosos afirm arem que no V ale do Jequitinhonha
este tip o de artesanato deixou de ser consum ido pelas com unidades locais devido à entrada dos
u tensílios em plástico e alum ínio, podem os afirm ar que ainda existe consum o significativo,
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A s peças u tilitário-decorativas são aquelas que apresentam u m a ju n çã o de duas
características: servem para o uso, m as tam b ém podem ser utilizadas na ornam entação. São
exem plos as m oringas de três peças, os potes que m uitas vezes são usados com o v a so s para
ornam entação ou filtros com cabeças de bonecas que, ao m esm o tem p o em que desem penham
u m a função utilitária, tam bém ocupam a categoria de enfeite. Isso m ostra a m obilidade do
artesanato entre o útil e o belo, com m anutenção de sua aura criativa (PA Z , 1991). D entre os
há u m a constante busca pela ornam entação, pela b u sca do belo, pelo “ fazer bem feito” .
U m terceiro tipo de peças artesanais são as esculturas que, norm alm ente trazem
m uito com um de ser retratado nas esculturas são as m ulheres com seus diversos afazeres
dom ésticos e os m om entos m arcantes do universo fem in in o local, com o o casam ento e a
“ P O D E R O S A S , C O N S C IE N T E D E S E U P A P E L E D E SU A I M P O R T Â N C IA ” :
M U L H E R E S N O A R T E S A N A T O D O J E Q U IT IN H O N H A
A centralidade da m ulher enquanto tem ática escultórica não se dá por acaso. E m m uitas
fam ílias e po r algum as gerações, especialm ente no contexto da m igração m asculina para o
trab alh o no corte de cana, ou na construção civil nas grandes capitais com o São Paulo, as
m ulheres ocuparam o papel de chefe de fam ília, cuidando dos filhos, dos roçados e dos anim ais.
A lém disso, é im portante d estacar que a própria atividade artesanal é um m eio de em ancipação
fem in in a da m ulher. M uitas artesãs que antes ficavam confinadas ao lar, dedicadas às atividades
dom ésticas e rurais, passaram a freq u en tar espaços p ú blicos de discussão política, com o as
associações dos artesãos, possibilitando m aior acesso à inform ação do m undo externo à
com unidade e tam bém o contato com outras m ulheres, o que prom ove u m a autorreflexão e
m udança com portam ental, com em poderam ento financeiro, social e psicológico. A s m ulheres
burocráticos ou até m esm o para realizar suas funções artesanais. M uitas associações
desem penhar suas funções, com o podem os observar em algum as localidades com o
Jequitinhonha, B otum irim , D atas, entre outras. N estes espaços ocorre não apenas a tro ca de
inform ações sobre o ofício, m as tam bém se discutem os conflitos daquela coletividade, criando
456
A cerca da autonom ia das m ulheres em sua associação, u m a presidente de associação de
nós éramos cinco. Eu e mais quatro. Depois apareceram mais duas. Então tinham
algumas delas que tinham problemas em casa com os maridos e os maridos cuspiam
no chão e falavam assim: antes de secar, cê tem que chegar. Aí começou um
movimento assim: nós começamos a fazer reuniões, falar sobre a mulher. Começou
com um encontro de mulheres realizado pela Emater, juntamente comigo que
inclusive foi uma coisa muito importante nesse setor de artesanato, onde cada um
trouxe o que fazia da roça ou que já tinha feito há muito tempo, que a mãe tinha feito,
pra começar o artesanato lá que tinha morrido. A partir disso aí, as pessoas começaram
a conversar em grupo, começou assim a desabafar. Então assim, o artesanato, a
geração de renda é importantíssima, mas uma coisa que não é negado a nenhum
artesão é essa questão da autoestima, né? Que ele adquire e leva pra dentro de sua
casa. Ele é mais respeitado. O trabalho dele é conhecido. Os filhos começam a
respeitar e participar. É tanto que nós temos histórias em que toda a família tá
participando nesse momento. Ontem, era uma e, hoje, é a família toda. E também
assim que a gente escuta. Por exemplo: se a mulher vai lá pra mexer com o tear que
tá magoada com o marido e a gente tem aquele momento que a gente começa a
conversar. A gente começa a conversar e falar assim: cê não pode fazer isso. A vida é
difícil, mas cê tem que continuar... impõe respeito. Chega na sua casa e chama ...
Então, hoje o que acontece? Hoje, o marido não fala eu vou cuspir no chão e a hora
que secar cê tem que tá aqui, antes de secar cê tem que tá aqui. Porque a mulher
conseguiu. Hoje, elas não escondem a cara quando vão conversar. Pra dar entrevista,
elas escondiam e eu falava: Ou fulana, vem cá! E elas ficavam assim... E hoje chega
gente de Belo Horizonte e onde que chega elas estão ali conversando, né? Algumas
são tímidas, mas a maioria hoje já estão, né? Poderosas. Consciente de seu papel e de
sua importância. E isso aí eu acho que foi uma coisa que mudou demais. Chegou antes
do dinheiro até (Depoimento de uma presidente da associação de artesãos. Pesquisa
de campo na Feira de artesanato “Tião Artesão” no 27° Festivale, Grão-Mogol, julho
de 2009).
transparece nas esculturas que retratam as m ulheres com seus adornos, com vestidos
m eticulosam ente enfeitados por florezinhas, unhas pintadas e o cuidado com o cabelo, o que
457
R E L IG IO S ID A D E E T R A N S F O R M A Ç A O S O C IA L : O T R A B A L H A D O R R U R A L
C R U C IF IC A D O
A s esculturas de tem áticas religiosas são aquelas que rem etem de algum a form a à
religiosidade local, em que podem os encontrar tan to as im agens sacras u tilizadas pelos fiéis,
com o tam bém outros personagens que rem etem a este universo, com o, por exem plo, o diabo.
U m elem ento m arcante entre os ceram istas que confeccionam peças de tem ática religiosa é o
h ibridism o do discurso religioso com um discurso p olítico social e am biental. E ste tip o de
transfere para as suas peças. E com o exem plo, tem o s o cam ponês crucificado de autoria de
proxim idade do sagrado com o hum ano decorre de dois m ovim entos. U m prim eiro m ovim ento
sinaliza para os sentim entos do santo, que é a expressão triste da im agem . O segundo
m ovim ento refere-se ao elo que o crucificado tece com a hum anidade. E é algo que se dá dentro
de u m a tem poralidade presente, conform e podem os visu alizar na figura 3 abaixo. N o te que,
nesta escultura, U lisses M endes traz com o protagonista de sua estética criativa o hom em rural,
O bserve que o cam ponês não está com u m a cruz, m as pregado nela em substituição ao
Jesus Cristo. O C risto não é m ais o Jesus da Igreja C atólica, m as um hom em jequ itin h o n h ês
com suas ferram entas de trabalho que com põem o cenário da crucifixão. N esta perspectiva, ao
tra z er o trab alh o para a cena escultórica, U lisses faz u m a denúncia política e social das
condições de exploração e das relações trabalhistas pautadas na baixa rem uneração, no trabalho
inform al e na falta de acesso à terra que é o principal m eio de produção da região. A escultura
de U lisses M endes é, portanto, u m a denúncia daquilo que se deseja tran sfo rm ar naquele m eio
e fazer ren ascer um a outra realidade m ais ju sta e de plenitude existencial. A o crucificar o
trab alh ad o r rural do Jequitinhonha, U lisses o parafraseia a C risto que em u m a cruz sofreu até a
m orte, m as em seguida ressuscitou. D esta form a, anseia-se que o cam ponês crucificado pela
situação de exploração social, alcance o regozijo da m elhoria das suas condições de trabalho.
458
Figura 3: Camponês crucificado. Autoria: Ulisses Mendes, ceramista da cidade de Itinga. Pesquisa de
campo em Itinga, janeiro de 2009. Fonte: Juliana Pereira Ramalho.
CO N CLU SÃ O
docum ento da vida coletiva das com unidades, tan to no aspecto da m anutenção das tradições, o
459
que fica evidente pela m anutenção do fazer artesanal secular que é um a herança indígena,
proveniente dos diversos grupos indígenas que habitaram o território banhado pelo rio
Jequitinhonha, os quais confeccionavam seus utensílios em cerâm ica, bem com o m aterializam
políticas que subjugam hom ens e m ulheres do Jequitinhonha. N esse sentido, podem os dizer que
m em órias locais. B enjam in (1994), em reflexão sobre a figura do narrador, descreve-o com o
um sujeito que “ associava o saber das terras distantes, trazidos p ara casa pelos m igrantes, com
B IB L IO G R A F IA
460
ENSINO DE HISTÓRIA NO MUSEU DA UFMG: COLONIAL OU
DECOLONIAL?
JU L IO C E S A R V IR G IN IO D A C O S T A 218
A N A C L A R A D E SO U SA D U A R T E
D A N IE L L E IT E G O N S A L E Z M O T T A
M A R IA E D U A R D A SO A R ES SIM Õ ES
IN T R O D U Ç Ã O
cam po esse que tran sita na fronteira entre a H istória e a E d ucação e, no caso específico desse
texto, debruça seus olhares sobre o m useu de H istória N atural e Jardim B o tân ico da U FM G . A
pesquisa está em sintonia direta com os axiom as e pressupostos listados por Oriá,
especialm ente, no tocante à questão da cidadania, elem ento este sem pre fragilizado e m uitas
das vezes negado à grande m aioria de nossa p o pulação brasileira nas diversas facetas ou
A pesquisa tev e seu início em m aio de 2022 e está sendo realizada em duas frentes.
E stam os em cam po, no M useu de H istó ria N atural e Jardim B o tânico da U niversidade F ederal
texto, artigo ou capítulo de livro para nos instrum entalizados para um a m aior com preensão da
tem ática e apresentarm os as análises dos vestígios, indícios e docum entos encontrados no
E sta com unicação pretende apresentar algum as ações realizadas pelo E ducativo do
M H N JB diante do fenôm eno cotidiano das visitas escolares aos m useus. N a verdade, vam os
relatar alguns indícios iniciais das observações feitas durante o acom panham ento de 4 visitas
que são m ediadas pelos educadores do m useu - setor educativo. E sses educadores são
A rqueologia, H istória, G eografia e B iologia. E les/as são os responsáveis por m ediar todas as
arqueologia dos povos originários de M G que datam de cerca de 14.000 anos atrás e analisar as
ações educativas v oltadas para as escolas da educação básica, especialm ente as públicas, na
P atrim onial e da conservação de bens arqueológicos e históricos. E essas ações estão em busca
da com preensão se “A m em ória social ou coletiva, evidenciada através dos registros, vestígios
e fragm entos do passado - os cham ados bens culturais de um a dada coletividade” se apresenta
com o u m a versão ainda colonizadora e/ou decolonial, ou seja, versão que prom ove um giro
epistêm ico e traz ao discurso as vozes, os saberes e os bens culturais silenciados após o processo
ciência de que eles tam bém podem apresentar um a perspectiva excludente e que evocam , m uitas
vezes, im agens canônicas que representam um a versão da história que não abre possibilidade
para o diverso, para o m ú ltiplo e para um a abordagem da h istória “vista de b a ix o ” e, que, m uitas
vezes, adotam u m a postura de um a “ história ú n ica” , história esta que não abre espaço para os
sujeitos negados e silenciados pelos currículos, pela m ídia, pelos próprios m useus e po r um a
T am bém é inegável que os m useus são espaços m uito visitados por escolas da educação
básica e que u m a parte considerável desse público o faz a p artir da disciplina de H istória, ou
m esm o que não seja sem pre assim , certos m useus trabalham com a H istória m esm o quando
recebem visitas das áreas de C iências, G eografia etc. N o caso do M H N JB , tem o s a inform ação
que ele recebe cerca de 50.000 visitas por ano, sendo que as visitas escolares são a m aioria.
e vestígios históricos do Setor E ducativo do M H N JB na busca pela com preensão se estas ações
“ laboratório/fórum ” ou se prom ove u m a leitura de m useu com o “tea tro da m em ória/tem plo”
que canoniza a tem ática expositiva do m useu no contexto de inserção dos sujeitos nas relações
A pesquisa que ora se apresenta além do seu caráter qualitativo se enquadra n a tipologia
pressuposto de que o estudo de caso “perm itirá inicialm ente fornecer explicações no que tange
diretam ente ao caso considerado e aos elem entos que lhe m arcam o contexto” e auxiliadas por
estudo de caso e descritivo perm ite u m a série de instrum entos/coleta de dados que estão sendo
produzidos pelo setor E ducativo do m useu para que as visitas escolares possam ser realizadas
ao longo do ano letivo ou, vestígios docum entais que apresentem essas ações m esm o que não
local, contexto e docum entação. A profundando essa consideração, o autor ainda nos afirm a que,
A lém do já indicado, tem os tam bém um típico caso de m useu que faz parte da rede de
investigativa desse am biente educativo para buscarm os com preender com o esse espaço se
prepara e com quais m ateriais o faz para receber essa dem anda constante das cerca de 50 m il
R E F E R E N C IA L T E Ó R IC O
E m relação ao espaço m useal e sua relação com o ensino de h istória na educação básica
educação m useal - e tam bém de esquecim ento, para além do m ero com plem ento ou
confirm ação do que foi visto em aula. T am bém , am parados em B rulon, direcionar o olhar
investigativo para esse espaço edu cativo na perspectiva de que o “ (...) m useu é palco para
encenação de identidades forjadas po r relações de poder sedim entados pelo tem po desde a
463
colonização” .
tam bém , não exclusivam ente, ven h a a prom over u m a educação para a sensibilidade, p ara um a
postura m ais crítica e reflexiva de nossa presença no tem p o ou nos tem pos históricos e, com o
nos afirm a e esclarece P ereira (2009, In C O STA , 2016. P .24-25), ser u m a oportunidade para
u m a leitura/usufruto do m undo.
M as, diante desta hipótese, com o o setor educativo contribui ou não para que essa
postura possa ser alcançada? O u será que o M H N JB é um m useu canônico? É um m useu que
encapsulou o tem po e não possibilita outras travessias tem porais? Será que as ações do setor
educativo objetivam u m a experiência do pensar, do sentir e do agir para além de m eras placas
e nom es para serem decorados? O u ainda, conform e B rulon é um espaço onde “ os regim es de
2005), em especial, em relação à travessia de um a concepção m useal, nos quais o predom ínio
seria a do m useu enquanto “teatro da m em ória” para outra gram ática, o do “laboratório da
H istó ria” em discussão tam bém form ulada por R am os (2004), no to can te ao ensino de história
essencialm ente espacial e visual e de trab alh o sobre a m em ória não com o objetivo, m as com o
objeto de conhecim ento e, que, segundo o m esm o autor (1994), não ignorando as tarefas
os sonhos, a m ística da com unicação, isto tudo, sem perderm os de vista a curiosidade.
N essa p erspectiva p ostulada po r M eneses (2005), haveria outra postura de trabalho nos
m useus com a história. N ão seria m ais a adoção ou concepção de m useus com o locais de
que recusa um m odelo ú n ico de m useu e seria um m useu que trabalharia com problem áticas
históricas na p erspectiva dialética. Seria a possibilidade de não trab alh ar com as perguntas que
solicitam dados ou inform es sobre datas, fatos ou nom es de certas personalidades. O perar com
problem as históricos significaria um trabalho com questões postas pela dinâm ica social.
Seriam m useus que trabalh ariam com objetos, em um a perspectiva denom inada de
sem ióforos. E xpressão desenvolvida po r P om ian (1977, A pud M E N E SE S, 2005, p. 26) e que
(e não cognitiva) entre o visível e o invisível, outros espaços e tem pos, outras faixas de
realidade” . O u seja, seriam objetos ou signos, na perspectiva po lifô n ica de B ak h tin (1992),
portanto, pensam os nós, p o lifônico tam bém . P olifônico tam bém , porque, a partir das várias
m ais críticas e reflexivas de inserção na prom oção de práticas educativas m ais em ancipatórias.
N esse sentido, C osta (2016, p. 27), acrescenta que, além dos objetos m useais, há que se
atentar para a potência educativa das vivências proporcionadas pela visita, os deslocam entos,
diante de um objeto, os com entários dos m ais diferentes sujeitos, pelas oficinas que são
realizadas no m useu, pela conexão estabelecida entre as exposições daquele m useu com as
tam bém , o aspecto onírico desse lug ar que encanta e provoca sonhos. (B E N JA M IN , 2005). N ão
custa tam bém ressaltar que o trân sito tem poral estabelecido entre a p ré-h istó ria e o tem po
disposição à aprendizagem .
P orém , R am os (2004), faz um alerta. N ão b astaria apenas que a exposição assum isse
esse caráter crítico. Seria necessário desenvolver program ações com o objetivo de sensibilizar
os visitantes para esta nova gram ática. P ara u m a m aior interação com o m useu. (R A M O S, 2004,
profunda, que adote u m a postura de percepções críticas sobre o nosso estar no m undo e sobre
O s m useus são instituições sociais e de m em ória. São tam bém , instituições aprendentes,
pois oferecem m últiplas possibilidades de leitu ra do m undo e das realidades sociais, podendo,
po r isso, conhecer, inventar e criar esse m undo. Se os m useus são, então, am bientes de form ação
- tan to para aqueles que nele atuam profissionalm ente, quanto para aqueles que os visitam e
465
dele fazem uso - eles tam bém podem educar com unidades, potencializar suas m aneiras de se
relacio n ar com a m em ória social e com seu patrim ônio. (P E R E IR A e SIM A N , 2009, p. 3)
possíveis sobre as quais o visitante, ator da construção de novos conhecim entos, tra ç a seus
próprios cam inhos.” M as, com o o ensino de h istória é efetivado nesse espaço? U m a tela fixa,
é m últiplo, polifônico e da p ercepção de que m ed iar o ensino de história através do m useu possa
tam bém abarcar essa postura. D e to rn ar disponível várias integrações e interações, a partir da
noção que “ obra aberta” a p artir da experiência m useal possa prom over r esultados diversos e
P E R S P E C T IV A D E C O L O N IA L
[...] janelas, portas e portais; elos poéticos entre memória e o esquecimento, entre o
eu e o outro; elos políticos entre sim e o não, entre indivíduo e a sociedade. [...] Eles
são bons para exercitar pensamentos, tocar afetos, estimular ações, inspirações e
intuições (2007, p. 6)
E assim , os autores acreditam que esse am biente é um espaço “bom para pensar, sentir
e agir” (Idem ). Porém , C osta (2016) afirm a que o m useu não é um espaço/“ portal” estático e
nem tão pouco um p rojeto isento de intenções. O autor afirm a que o m useu se realiza por
m etam orfoses, com o o personagem G regor Sam sa, de K afka (1997)[2]. E ele nos alerta para
que não esqueçam os que os objetos m useais sofreram , j á desde sua inserção em projetos
m useais e patrim oniais, processos de m etam orfose, perdendo sua função original, e adquirindo
outras e que os sujeitos tam bém podem ser transform ados no contato com os M useus,
N esse sentido, Francisco R égis L. R am os (2004) tam bém nos adverte que o m useu é
tran sfo rm ad o de fora para dentro, alvo da “ sociedade de consum o” , m uitas vezes assum indo
perfis totalm ente diferentes daquele do m om ento de sua concepção, o que, especialm ente para
a form ação docente, é fundam ental, j á que caberá, portanto, aos m useus, em sua articulação
com escolas e centros de form ação, articular-se aos profissionais da educação para to rn ar cada
C anclini (2011) considera os projetos m useais a partir das experiências de vida, trazendo
466
à baila o quanto é influente o contexto de inserção dos sujeitos nas relações estabelecidas com
o passado-presente, por m eio dos signos, indícios e artefatos. O m esm o autor nos inform a que
o “patrim ônio existe com o força política na m edida em que é teatralizado: em com em orações,
m onum entos e m useus.” D isso decorre tanto a força expressiva dos m useus quanto, tam bém ,
as arm adilhas e dilem as expressos em seus p rojetos e na relação dos diversos públicos com suas
propostas.
esse “tex to ” é “ obra aberta” , incom pleta - apresentando-se com inúm eras possibilidades
narrativas dispostas à tam bém m últipla recepção. A qui se estabelece um diálogo com
educativa.
É nesse sentido que a pedagogia decolonial se insere nesta reflexão pro p o n d o um giro
epistem ológico nas form as de ver, atuar e estar no m undo. E tam bém sobre as form as de
aprendizagem e saberes que conform am as sociedades colonizadas. P orque é bem provável que
E m síntese, C andau & O liveira (Idem ) nos inform am que, essa “pedagogia” está em busca:
A ssim , podem os p erceber que essa estrutura se difere do colonialism o enquanto ato de
dom inação física, pois, as estruturas foram profundam ente colonizadas. E la sobrevive apesar
não.
É exatam ente nessa com preensão anunciada po r T orres (2007) que pensam os que a
colonialidade poderá estar presente nos m useus. N a sua form a de p ensar nas exposições e, em
especial para esta pesquisa, nas ações do setor educativo. M as, será que os m useus universitários
de ser e de saber. A ssim , ela reprim e os saberes, os m odos de ver e estar no m undo. N ão som ente
isto, ela tam bém reforça a ideia de um “ sujeito outro” , o subalterno. O u seja, essa concepção
que foi posta em ação a p artir da m odernidade atuou, e ainda atua, com o um elem ento de
saberes e sua história. E xem plos fortem ente presentes nos povos originários da A m érica e da
Á frica.
D iante desse breve quadro descritivo nos perguntam os o que esse grupo sugere? Essas
sugestões podem estar em u m a pesquisa sobre m useus? “ O pen sam en to -o u tro ” j á não estaria
E les nos sugerem um a pedagogia d ecolonial. P edagogia esta que reconhece juntam ente
com os conhecim entos do ocidente os saberes dos povos denom inados de outros. Seria um giro
tam bém em outras partes do m undo para decolonizar o pensam ento, o p o d er e o ser.
incluindo, o que está em direta relação com esse projeto de pesquisa e os processos
Portanto, estam os diante de u m a pro p o sta de pedagogia que preconiza outra form a de
contar a história. E, é inegável que os m useus atuam n essa seara. São espaços educativos,
inform ais, m as educativos e m uito visitados e que prom ovem m ateriais didáticos, que oferecem
um sem núm ero de oficinas e outras form as de intervenção educativa para essas escolas de
E d ucação B ásica.
E é po r essa característica que essa epistem ologia nos ajudará a trilh ar os passos desta
pesquisa.
468
O S P R IM E I R O S IN D ÍC IO S
O Museu História Natural e Jardim Botânico da UFMG (MHNJB) ocupa uma área,
onde, em fins do século XIX, existia a Fazenda Boa Vista. No início do século XX, a
fazenda foi desapropriada pela Comissão Construtora de Belo Horizonte, a nova
capital de Minas Gerais, e adquirida pelo Governo do Estado com a finalidade de
instalação de um Horto Florestal. Em 1912, com o objetivo de impulsionar suas
atividades agroindustriais, o Estado de Minas Gerais transformou o Horto Florestal
em uma Estação Experimental de Agricultura. Entre agosto de 1938 e novembro de
1947, pesquisadores da Secretaria de Agricultura, da antiga Faculdade de Filosofia e
da Academia Mineira de Ciências encontraram material arqueológico nessa região do
Horto, que por conta disso também era conhecida como Estação Arqueológica do
Horto. Artefatos líticos e cerâmicos encontrados foram então enviados ao Museu
Nacional, no Rio de Janeiro, pela ausência, nessa época, de um museu de História
Natural em Belo Horizonte.
https://www.ufmg.br/mhnib/institucional/historico/historia-do-mhnib/Acesso em 20
de nov. de 2022.
interessa, especificam ente, as visitas com foco na arqueologia indígena. E sta exposição
(F lorestal, S erra do E spinhaço, B uritizeiros e P eruaçu). A lém dos sítios, a exposição co n ta com
réplicas de ossadas, diferentes exem plos de tecnologia indígena, m içangas e outros enfeites,
arqueológicos expostos. P ara além dessas inform ações, tem os ainda outras:
a h istória e cultura indígena. V ia de regra, to d as as visitas in iciam -se em u m a trilh a pela reserva
de M ata A tlântica do m useu. N esses trajetos, é possível encontrar árvores im portantes para
diferentes culturas indígenas: a sapucaia, fruto sagrado para algum as com unidades, tem form ato
que inspira u rnas funerárias com o a encontrada na exposição da arqueologia; o Jequitibá, tão
alto que alguns povos acreditavam chegar nos deuses, era conhecido com o árvore dos desejos.
N esse contexto, nosso trabalho de cam po consiste em acom panhar as m ediações com
469
foco na arqueologia indígena, b uscando e n ten d er qual visão da h istória o m useu, por m eio de
m uda de m onitor p ara m onitor. Independente de qual o objetivo co locado pela escola, os
educadores tendem a p u x ar a m ediação para sua área de form ação inicial. N esse sentido, é
possível en co n trar m ediações que trabalham a história indígena desde as trilhas, que m ostram
colonização portuguesa com o invasão. P o r outro lado, tam bém é possível encontrar educadores
que desconhecem do assunto e/ou tendem a p u x ar a m ediação para o lado das ciências naturais.
existe um a v alorização dos povos originários. A o longo do trajeto da visita, esses educadores
trazem conhecim entos e apontam vestígios dessas com unidades e qual a relação delas com o
espaço m useal. A inda observam os que eles praticam dinâm icas de grupo com esses alunos e
tentam fazer com que os m esm os vivenciem um a experiência im ersiva na parte expositiva da
m ata do m useu. O s m ediadores tentam fazer com que o aluno participe de form a ativa da visita
e da construção do conhecim ento, m as o núm ero de visitantes e o perfil dos m esm os variam ,
N a visita acom panhada com m ediadores da biologia, p ercebem os alguns indícios que
destaque dado pelos dois m ediadores de que o contexto de escavação dos artefatos
O u seja, a h istória do B rasil na tem seu início em 1500. E m ais ainda, com o há um alerta de que
“ aqueles povos j á habitavam m inas a m uito tem p o 219” , perm ite um trabalho crítico sobre nossa
p rópria relação com o tem po, com o patrim ônio e com a m em ória.
p erceber u m a grande interação entre o publico escolar e os m ediadores. Inclusive foi notado o
uso do term o “ sítio pré-colonial” , outro in dício de com o os educadores pensam a exposição,
sua im portância enquanto espaço de u m a educação patrim onial brasileira e m ineira e, que abre
possibilidade para questionam entos e reflexões decoloniais. P orém , elas não foram realizadas
m ediação. P o r esse m otivo, tivem os dificuldade em encontrar, no cam po, qual é realm ente o
219 Esses trechos e a fonte para essas reflexões nesta sessão são retiradas dos cadernos de campo e de nossas
observações diretas de cada visita acompanhada. Ressaltamos que tanto o educativo quanto os mediadores do
museu autorizaram o acompanhamento e as anotações.
470
discurso do m useu. E sse fato r im possibilita, por ora, chegar a u m a conclusão a respeito do
discurso do m useu: ele é colonial ou não? O sentim ento que fica é de que quem visita o M H N JB
observarm os as m ediações, m as sem pre atentos na ideia de que um a sala de m useu pode ser um
palco para encenação de identidades forjadas por relações de p o d er sedim entados pelo tem po
desde a colonização. O s m useus em seus fragm entos podem encenar o O utro construindo
distâncias invisíveis entre quem vê e quem é visto, quem p ro d u z e quem consom e, ou quem
um passado pouco contestado, os patrim ônios valorados no presente, porém , nunca de form a
R E F E R Ê N C IA S B IB L IO G R Á F IC A S
A D C H IE , C him am anda N gozi. O perigo de u m a história única. São Paulo: C ia das Letras,
2019.
B E N JA M IN , W alter. M agia e técnica; arte e política; ensaios de literatura e história da
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472
O CASO UFOLÓGICO DA BARRA DA TIJUCA DE 1952: A
FUNDAÇÃO DA UFOLOGIA NO BRASIL PELA AÇÃO DA IMPRENSA
K E V IN F R A N C O D O S SA N TO S*
C O M O O S D IS C O S V O A D O R E S C H E G A R A M A O B R A S IL
setor de periódicos ufológicos, este ano foi especial para a ufo lo g ia b rasileira em razão da
“ com em oração” de cinquenta anos de um caso que foi reconhecido com o o fundador do cam po
no B rasil, e um dos m ais fam osos do m undo à época, ainda que tenha sido u m a enorm e fraude.
N a octog ésim a segunda edição, de novem bro de 2002, seria publicada um a extensa reportagem
rem em orando este caso e suas im plicações na infante u fologia brasileira. E ste foi o C aso da
B arra da Tijuca. E ste artigo, a partir de fontes da im prensa, propõe-se a estudar esta ocorrência
sob a luz da ciência histórica e refletir sua im portância no nascim ento da u fologia no B rasil.
preocupação sobre o desenrolar da G uerra da C oréia221 desem bocar para um novo confronto
m undial entre as potências nucleares. N a área ufológica, o avistam ento de K enneth A rnold no
M o nte R ainer222 j á havia sido exposto ao m undo, assim com o o in cidente de R o sw ell223, em
220* Aluno do Programa de Pós-Graduação em História, nível Mestrado, da Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). Licenciado e Bacharel em História pela UFGD. Especialista em Metodologias do Ensino de
História pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER). Professor de História da rede pública de Campo
Grande (MS).
Conflito político-ideológico que marcou o século XX, opondo as potências vencedoras da Segunda Guerra
Mundial Estados Unidos, representando o capitalismo, e a União Soviética, líder do bloco socialista.
221 A Guerra da Coreia foi um conflito que aconteceu na Península da Coreia (1950 e 1953) entre os diferentes
governos que haviam sido formados na Coreia do Norte e na Coreia do Sul. Esse conflito foi um dos mais mortais
de todo o século XX, causando um total de 2,5 milhões de vítimas. Também contribuiu para agravar a divisão
existente entre as duas Coreias. Ver: HISTÓRIA DO MUNDO. Guerra da Coreia. Disponível em:
https://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/guerra-da-coreia.htm. Acesso em 07 set. 2022
222 Em 24 de junho de 1947, o piloto de avião Kenneth Arnold, em decolagem, avistou cerca de nove objetos perto
do Monte Rainer, no estado norte-americano de Washington. Após pousar no estado vizinho Oregon, Arnold foi
entrevistado e relatou o ocorrido como “pires voadores flutuando sobre a água”. Foi a primeira vez que o termo
“flying saucer” ou em português, disco voador, foi utilizado para se referir a Ovnis. Para saber mais: EQUIPE
UFO. Nostalgia: Kenneth Arnold, o início de tudo em 24 de junho de 1947. 2010. Revista UFO. Site. Disponível
em: https://ufo.com.br/noticias/nostalgia-kenneth-arnold-o-inicio-de-tudo-em-24-de-junho-de-1947/. Acesso em
07 ago. 2022.
223 A queda de um suposto balão meteorológico em uma fazenda em Roswell, Novo México - EUA, em 08 de
julho de 1947, é considerada como o marco inicial da Ufologia contemporânea. O incidente foi noticiado por
jornais locais e rapidamente repercutiu na opinião pública americana, com a presença constante do alto escalão do
Exército americano na região fez nascer a era moderna dos discos voadores. Ver: CARLOS, Daniel Pícaro.
473
N a área cultural, o film e “ O dia em que a T erra p arou” , que retrata a chegada de um ser
extraterrestre à Terra, lançado em 1951, havia se tornado um sucesso crítico e um sím bolo do
m ovim ento antiarm am entista e contrário à G uerra Fria. A nos antes, em 1938, a transm issão
radiofônica da novela “ G uerra dos M undos” , na em issora de rádio CBS e suas afiliadas, tornou-
E sse período da história m undial, a G uerra Fria, caracterizada pelo belicism o e pela
oposição entre capitalism o e o socialism o, foi significativa para o contexto ufológico, sendo um
C oncom itante a isso, surge a corrida pelo controle do espaço sideral e do universo entre
as superpotências, com a disputa de tecnologia espacial para levar o ser hum ano a lugares nunca
explorados no universo. A U nião S oviética, porém , dava passos largos nessa disputa: prim eiro
satélite artificial (Sputnik, 1957), o prim eiro voo espacial tripulado por hom em e m ulher (1961;
1963) e os prim eiros passeios espaciais foram todos russos (H O B SB A W M , 1994, p. 527).
fantasm agórico inim igo soviético no controle do espaço, o O cidente passou a noticiar cada vez
ótica da G uerra Fria e na identificação dos inim igos com unistas. A s pessoas, incluindo civis e
m ilitares, jornalistas e governantes, não conseguiam explicar a origem dessas aparições e sua
natureza, o que eram e quais seus objetivos, m as a julgar pelo contexto em que estavam im ersos
- era n o tória a desconfiança e dúvida de qual seria a origem daquelas naves: extraterrestre ou
soviética? A s duas respostas assom bravam o O cidente. D esse m odo, o avanço da ocorrência
ufo ló g ica nesses anos acirrou os tem ores e o clim a de disputa no período da G uerra Fria.
Extraterrestres: Ciência e Pensamento Mítico nas Sociedades Modernas. 2007. 157f. Dissertação (Mestrado em
Antropologia) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - Universidade Federal de São Carlos
224 Ver: TSCHKE, Jean. 1938: Pânico após transmissão de "Guerra dos mundos”. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2017/10/30/1938-panico-apos-transmissao-de-guerra-
dos-mundos.htm. Acesso em 13 de janeiro de 2022
474
N o B rasil de 1952, no segundo governo de G etúlio V argas (1951-1954), os discos
publicidade. O caso de R osw ell foi noticiado pelo jo rn a l paulista de grande circulação Estado
de S. Paulo e vários outros jo rn a is m enores. E m 1947, em m eio a grande onda de avistam entos
ocorridas em terras norte-am ericanas, o B rasil tam bém noticiava suas prim eiras ocorrências na
p equena cidade de P residente Prudente, em São P aulo (SA N T O S , 2009, p. 34). O B rasil, em
L ogo percebeu-se o interesse do público pela tem ática extraterrestre, já que o aum ento
da cobertura de jo rn a is e revistas sugere que havia dem anda p a ra este tem a. N esse contexto, um
caso polêm ico dividiu opiniões e teve enorm e repercussão na parte sudestina do país: em 17 de
m aio de 1952, a revista O Cruzeiro apresentava ao público aquilo que considerava “um furo
F undada em 1928 po r A ssis C hateaubriand, a Cruzeiro foi u m a das revistas sem anais
ilustradas de m aior circulação no B rasil. O p eriódico atingiu a m édia de 550 m il exem plares em
m eados da década de 1950, p atam ar que seria m antido até o início dos anos 1960. O recorde de
setecentos m il exem plares seria atingido na edição que circulou dois dias após o suicídio de
V argas em agosto de 1954 (V E L A S Q U E S , 2022, p.6). A rev ista tam bém circulou em espanhol
em alguns países da A m érica L atina na década de 1950, e cobriu acontecim entos nacionais e
internacionais, expondo, assim , suas credenciais que deram à ocorrência na B arra da T ijuca a
475
O “ E S P E T Á C U L O IN E S Q U E C ÍV E L ” N O R IO D E J A N E IR O
um b a r da B arra da T ijuca, na zona sul carioca por dois fotógrafos renom ados da revista: E d
K effel e João M artin s225. Segundo os repórteres, o intuito era registrar casais apaixonados para
u m a futura m atéria. P orém , acabaram registrando o avistam ento de O V N Is. O caso rodou o
m undo e foi am plam ente divulgado. C lau d eir C ovo e P a o la L ucherini C ovo, ufólogos e
m atéria, em si, foi publicada no dia seguinte com a data de 17 de m aio. E ra com um a esse
p eríodo publicarem edições com data futura, em face do planejam ento das redações. K effel e
M artins ficaram um tem p o considerável no local, visto que alm oçaram e só no final da tarde
A s fotos foram divulgadas em edição extra (im agem ) da edição 31 da O Cruzeiro, com
data de 17 de m aio de 1952, m as lançada nas bancas em 8 de m aio de 1952, e gerou com oção
instantânea na população, que avidam ente esgotou as edições da revista: “ A ssim que a notícia
foi para as bancas, a revista esgotou rapidam ente. Foi um dos m aiores fenôm enos editorais de
225 Ed Keffel era alemão. Veio para o Brasil no período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), estabelecendo-
se como fotógrafo no Rio de Janeiro. Notabilizou-se por ser altamente técnico e capacitado na fotografia; João
Martins era baiano, exercendo a função de fotógrafo e posteriormente redator na Cruzeiro. Fonte: SECRETARIA
ESPECIAL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. O Cruzeiro - A maior e melhor revista da América Latina. Governo
do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro Junho de 2002.
476
Im a g e m 1: E d ição extra da R evista O Cruzeiro (1952)
sobrevoando a P edra da G ávea, no R io de Jan eiro . L ogo abaixo, revelam -se as fotos dos
im pacto da publicação, com u m a lista de testem unhas que corroboravam as fotos do editorial,
desde pessoas desconhecidas com o com erciantes e estudantes, que afirm avam ter observado
objetos parecidos com os que foram registrados pela revista, até pessoas públicas e cientistas,
com o D om ingos Costa, chefe do O bservatório N acional, que com entou que não ter “m ais
dúvida a respeito da existência dos discos vo ad o res” (SA N T O S, 2009, p. 117), com o é m ostrado
na im agem 2, da edição n° 32 de 1952. M as, salienta-se, não foram apresentadas testem unhas
477
Im a g e m 2: R eportagem da Cruzeiro com as cinco fotografias dos O V N IS, da ed. n° 32, de
m aio de 1952
evidenciando a beleza da paisagem onde supostam ente deu-se o avistam ento, de form a a
não foi à toa: a Cruzeiro, à época, fazia parte dos D iários A ssociados, o enorm e conglom erado
de revistas, jornais, program as de rádio sob a lid eran ça de A ssis C hateaubriand, que passou a
noticiar o evento em cadeia em seus veículos de inform ação. D essa form a, a repercussão,
em bora tratando-se de um a tem ática de interesse do público à época, não ocorreu de fo rm a tão
espontânea.
da F orça A érea B rasileira e até m esm o o m inistro da G uerra de V argas, G eneral C iro do E spirito
Santo C ardoso, com pareceram na redação da revista nos dias que se seguiram à p u blicação das
fotos e no local onde estas foram registradas para averiguar e investigar a v eracidade da
478
ocorrência. T odos foram unânim es em suas considerações: as fotos eram reais (SA N T O S, 2009,
p. 117).
A eronáutica, chefiada pelo então coronel João A dil de O liveira, em 1954, e rebateram
O coronel A dil, além de sua carreira prom issora enquanto m ilitar, chegando ao cargo
de M arechal-do Ar, o últim o a receb er tal patente no B rasil, era um notório defensor da ufologia
U M C A S O D E “ M IL H Õ E S ” ; U M A F R A U D E D E “ C E N T A V O S ”
divulgação cientifica no país, iniciou um a cruzada contra as fotos e o fato em si, e se m anifestou,
po r m eio de seu editor, A ry M aurell L o b o 226, em sua edição de ju n h o de 1952, alertando sobre
possíveis fraudes:
226 Ary Maurell Lobo nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 27 de abril de 1900. Era filho de Elisa Maurell Lobo,
natural do Rio Grande do Sul e de Ayres da Costa Lobo, natural do Rio de Janeiro. Engenheiro de formação,
fundou a revista Ciência Popular em 1948. Fonte: SILVA, Catarina Capella. O mundo científico ao alcance de
todos: a revista Ciência Popular e a divulgação científica no Brasil (1948-1960). 2009. 164f. Dissertação
(Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte.
479
A s “m olecagens” denunciadas po r L obo referem -se à um a série de em bustes ocorridos
principalm ente nos E stados U nidos no período, em que pessoas alm ejavam fam a e notoriedade
inclusive, foi u m a das hipóteses levantadas p ela Ciência Popular para explicar as fotos da B arra
da Tijuca, devido a seu enquadram ento e presença de som bra de form a irregular, que não
E m ja n e iro de 1955, a m esm a revista, em sua edição 76, divulgou, em um tom m ais
duro e irônico, que as im agens de K effel e M artins não eram genuínas, denunciando num só
parágrafo a qualidade das fotos, o (ou falta de) poderio bélico do B rasil e as intenções da revista
A o escrever que a Terra de Santa Cruz tinha mais generais e almirantes que soldados,
E xército, em que a prom oção a posições elevadas atendia a critérios políticos que profissionais
(M A R T IN S FIL H O , 2003, p. 117), ecoando u m a crítica à ação e papel das forças m ilitares, que
àquela época estavam envolvidos com a política nacional. O ano de 1955 foi m arcado pelas
presidente eleito Juscelino K ubistchek, culm inando com o M ovim ento de 11 de novem bro, em
que setores dem ocráticos do E x ército liderados pelo general H enrique B atista D uffles T eixeira
E m outubro de 1957, novam ente a Ciência Popular, agora em sua edição 109, reafirm ou
a farsa das fotos. O físico nuclear canadense, Stanton Friedm an, afirm ou à UFO em 2002, que
C O V O , 2002, p.13). E isso faltou ao caso de K effel e M artins. N inguém havia observado o
sobretudo, poderiam cham uscar suas reputações, visto que deram estim ada im portância e
480
reconhecim ento ao caso. O coronel A dil, inclusive, continuou defendendo o caso m esm o com
Você se lembra, Martins, que algumas pessoas declararam ter visto homens jogando
um disco para o ar e fotografando? Realmente êles viram êste disco que aqui está, mas
nós sabemos que não foi jogado por vocês, porque êle foi jogado por nós da FAB, que
nos dias seguintes ao fato fomos para o local fazer minuciosos estudos em tôrno das
suas fotografias. Inclusive andamos jogando êste disco para o ar, numa tentativa de
reproduzir uma seqüência como a de vocês (MARTINS, 1959, p. 24).
A ocorrência chegou até m esm o a constar no fam oso R elatório C on d o n 227. Segundo
O relatório, que foi solicitado pela Força Aérea Norte-Americana (USAF) e foi
publicado em 1968, só atentou para a fraude em uma foto. Nesta foto (a quarta)
aparece além do UFO no céu, uma palmeira na paisagem que serviu como referencial
para se estudar a fotografia. Nela, a iluminação do UFO está para o lado direito e a
palmeira abaixo e sua vegetação circundante estão com a iluminação para o lado
esquerdo. A posição da sombra no UFO nesta foto só seria possível se o Sol estivesse
dentro do mar (BORGES, 2010).
O u seja, u m a série de fotos, ainda que bem construídas, facilm ente desm ascaradas a um
olhar técnico apurado. M esm o assim , o caso fez com que o B rasil entrasse de vez no m apa da
u fologia m undial; de início pela im portância e qualidade das fotos, pois tratava-se de um dos
assinalam : “É u m a triste constatação, m as o fato é que a u fologia brasileira com eçou com um a
fraude gritante.” (2002, p. 14). O ocorrido na B arra da T ijuca foi um ponto de inflexão na
p rem atura u fologia brasileira, e u m a pequena am ostra de com o a m ídia trataria o fenôm eno
U F O a p artir de então. A pós isso, casos relatados com m aior seriedade foram pendidos ao
sensacionalism o e chacota da m ídia; a exem plo das fotos do O V N I da Ilha da T rin d a d e 228,
227 O relatório Condon, iniciado em 1968, foi fruto de uma colaboração entre a Universidade do Colorado e a Força
Aérea Norte-americana, baseou-se num painel de análise cientifica sobre o fenômeno OVNI, que passaria a
orientar os órgãos e entidades sobre as ocorrências ufológicas
228 As fotos de OVNIS registradas na Ilha da Trindade, por Almiro Baraúna, que estava a bordo do navio Almirante
Saldanha, sofreram com o descrédito da opinião pública em meio a controvérsia do caso Barra da Tijuca. Para
48 1
ocorrido seis anos após as fotos da Cruzeiro, e o clássico caso V ilas-B oas229, notadam ente a
prim eira alegação de abdução de um ser hum ano relatada no m undo. O caso V ilas-B oas foi
prejudicado por te r sido relatado tam bém por João M artins, que já havia saído em descrédito
pela fraude das fotos da B arra da Tijuca. A lém disso, outros veículos de im prensa cariocas da
•ra ’ T
! 2) — P o r q u e ? e r * q u e t o d o
t
| Atlético eítevc « c m p r e * mlll-
i m e t r o s d o e m p a t e e s é r.Ao lu tr. I n s i s t e e m a p i t a r c o n t r a
| conseguiu atin g ir a* rede» c nosso tim e ? (
i c m z m n l t i n * ' p">r n h r » d o tí e s - S» — C o m o s e e x p l i c a a p o
[ t i n e V. q u a n d o o d e s t i n o r.Ao
i q u e r . é tnuttl lnrlstir. . A s « ( m .
J os a v a n te s a tlc ttc a n o s fenem -
>tr a ra m n trav e com o o seu
lícia p e r m i t i r q u e u m q u a d r o
Jogue " a rm a d o ? " .
4* — A s " l u v a s ” d o A D E s
RÍ I P sAo d e b o x o u d e n y l o n ?
I
[ m a io r o b stácu lo . In clu siv e u r .a 5 ' — U m “c h a u f f e u r ” d e !n-
I
, fa lto m ftx lm a c o b ra d a p o r LU» •ac5o nSo pode se r u m e x c e
[ CAR q u e u tra v e d e fe n d e u c a le n te m e d io "v o la n te
, p rlc h o s a m e n te . M o ra l d a histo » «* — P o d e - s e J u l g a r u m e r a -
J r i a : a t r a v e ío l u m v e r d a d e l - q u e assassino p o r " m a ta r " a
, to ‘ c n ...tro v o " " i v /v m in e!- p e l o t a n a eabe.ca ?
| r».-s. C ". t . a, q,i* t r a v e t r a - 7 t — S e em Jutebo] e x is te m
; v í . , ss.i | " . " c h a v e s " . p o r q u e nSo h é t a m
bém fech ad u ras ?
| SHERLOCKADAS fli — S e r * q u e e r t e T o r r . e l o
E x tra v * | tra re r l u c r o s ao*
| F n q u an lr» p» C id a d e V a r a » clu b es ?
> v ilh o sa o» o u r ,( voadores
| m a rc a v a m en co n tro s com ( o .
» t o g r a f o » . o r.osso M e n g n a « s e n -
TREINANDO... %
| t o u t n n t é p i d o *■'e n d e r - v o u s ” j D ósde a sem ana passada q u e
» c o m a d e r r o t a e m .ToSo P e s - 1 n se le c io n a d o pau lista s e m r e a -
| M ' Q u a n d o a p e le ja a tin g iu 1l i a n d o i n t e n s o s p r e p a r a t i v o s .
I
a o -ti ■ > m in u to e o p la c a rd e A Y M O R E ' est* c a p r i c h a n d o e
assin alav a « v a n ta g e m do m m - i p r e t e n d e le v a r a seleçS o b a n
h m . i d o p a r a i b a n o p o r 3x2. o d e ir a n te A co n q u ista da s u p r e
Ju ir. u m ta l SH K iSLO C K . r e - m a c ia fu te b o lística brasileiro .
-o lv ru g i r a n t l r n v tio rla dos S eria c o n v en ie n te, o 7.F.7F'
paraib an o ? su sp en d en d o a o ar- • a b r i r u m o lh o s e m f e c h a r o
tid a p o r falta <le g a r a n t i a * o u t r o " p o is o le m a d o A Y M O -
Apó» o "m atem *. os to r c e d o re s • R E ‘ A o se g u in te : "Irm A os.
in cals c a n t a v a m a leg rerr.en te | I r m S o s . m a s r .e g o c l o s A p a r
em córo: i te
revista O Cruzeiro, de C hateaubriand, dono dos D iários A ssociados, era um a notória opositora
saber mais: COVO, Claudeir & COVO Lancherini, Paola. Trindade restaura a credibilidade. Edição 82. UFO,
2002, p. 17-21
229 O caso Villa-Boas é considerado o primeiro relato de um contato imediato de quarto, quinto e sétimo graus,
que em linguagem ufológica é designado a casos de sequestro, contato bilateral e relação sexual de seres humanos
com seres alienígenas. O caso refere-se à alegação do agricultor mineiro Antônio Villas-Boas, que afirma que em
1957 foi levado para dentro de uma nave extraterrestre onde passou por inúmeras experiências, incluindo relação
sexual com uma suposta entidade biológica extraterrestre (EBE). Villas-Boas foi entrevistado por Martins no Rio
de Janeiro em 1958, submetido a baterias de exames que constataram perfurações em seu corpo e sintomas
equivalentes a de pessoas que foram expostas a um grau elevado de radiação. Martins, porém, relutou em divulgar
a história, guardando-a até a década de 1960, quando foi publicada no periódico britânico Flying Saucer Review,
após o estouro do Caso Hill nos Estados Unidos. Antônio Villas-Boas morreu em 1991, de complicações de um
aneurisma. Ver: SUENAGA, Cláudio Tsuyoshi. Caso Vilas-Boas 50 anos depois. Edição 137. UFO, 2007.
Disponível em: http://www.ufo.com.br/artigos/caso-villas-boas-50-anos-depois. Acesso em 13 jan. 2022
482
do governo V argas. O Última Hora, entretanto, foi fundado por um ex -repórter da Cruzeiro,
Sam uel W einer, sob u m a forte retórica getulista, j á que o m esm o era identificado com o um
governo V argas nas eleições de 1945, ao fim do E stad o N o v o 230. A s agruras entre os veículos
corrupção, já que ele h av ia sido criado com um financiam ento suspeito por m eio do B anco do
Brasil.
N A O E R A M D IS C O S V O A D O R E S ?
A inda que nunca tenham adm itido terem forjado as fotos, M artins e K effel saíram
desacreditados em suas carreiras, porém , continuando com seus em pregos na revista. E m 1973,
M artins m odificaria sua h istória duas vezes, ao m en cio n ar que as supostas fotos foram tiradas
quando estavam à procura de um sósia de H itler, e posteriorm ente m odifica ao dizer que, na
verdade, estavam à procura de L uís C arlos P restes, à época foragido. O E x ército renovaria seu
interesse pela tem ática ufológica com o passar dos anos, sobretudo quando se tornam governo
a partir da D itad u ra231 que se instala no país em 1964. E a Cruzeiro tam bém ja m a is adm itiria
sua participação na farsa das fotos, ainda que continuasse a explorar a tem ática ufológica em
suas edições.
não profissionais, foi a responsável po r fundar o cam po ufológico no país, iniciando um debate
na recém nascida ufologia brasileira, que ganhou contornos m ais rigorosos ao endurecer a sua
investigação de m odo a filtra r as ocorrências para que não surgissem m ais enganos ou em bustes.
A dem ais, é de se n o tar que o caso da B arra da T ijuca foi desm ascarado por cientistas e pessoas
ditas céticas, e não po r ufólogos, em razão de a u fologia brasileira à época estar engatinhando,
não havendo estudiosos da área no país até então ou que tivessem inserção na im prensa. Isso,
de certa form a, contribuiu para a descrença pública que a u fologia se acostum aria, j á que a
P o r fim , o caso da B arra da T ijuca tornou-se singular pela m aneira com o a m ídia se
230 Governo de Getúlio Vargas, entre 1937 e 1945, caracterizado por uma centralização do poder nas mãos de
Vargas, nacionalismo e políticas de cunho populista.
231 Em 1964, militares depõem o presidente eleito João Goulart, iniciando um período de 21 anos de governos
militares no país.
483
C om o apontado po r C apelato: “N a construção do fato jo rn a lístic o interferem não ap en as
elem entos subjetivos de quem o produz, m as tam bém os interesses aos quais o jo rn al está
vin cu lad o .” (C A P E L A T O , 1988, p. 22). N esse sentido, a Cruzeiro e os repórteres foram além ,
ocorrência espontânea que foi explorada pela revista (C A PE L A T O , 1988, p.22). A través do
estudo deste caso, observa-se a construção e m anipulação de ideais e fatos por um veículo de
interesses, prática pouco ortodoxa no quesito ético e m oral, m as que serve aos m ais variados
FO N TES
484
SU E N A G A , C láudio T suyoshi. Caso Vilas-Boas 50 anos depois. E d ição 137. UFO, 2007.
D isponível em: h ttp ://w w w .u fo.com .br/artigos/caso-villas-boas-50-anos-depois. A cesso em
1 3 jan . 2022
TSC H K E , Jean. 1938: Pânico após transmissão de "Guerra dos mundos”. Site. D isponível
em: https://noticias.uol.com .br/ultim as-noticias/deutschew elle/2017/10/30/1938-panico-após-
tran sm issao-de-guerra-dos-m undos.htm . A cesso em 13 jan . 2022
R E F E R Ê N C IA S B IB L IO G R Á F IC A S
485
“AQUI TINHA TRABALHO COMO O QUÊ”: HISTÓRIAS DE VIDA E
DESLOCAMENTOS NO PÓS-ABOLIÇÃO NO DISTRITO DE ALMAS
(ANGUERA-BA), 1900-1960.
L Á Z A R O D E S O U Z A B A R B O S A 232
RESUM O:
E sse tex to se propõe a discutir, de form a prelim inar, os processos de deslocam entos de
trabalhadores/as rurais no distrito de A lm as (atual m unicípio de A nguera-B a) num cenário de
longo pós-abolição. Intercruzando processos crim inais, trabalhos de m em órias (entrevistas) e
fragm entos do p eriódico feirense F olha do N orte, tornou-se possível identificar experiências
que sugerem cam inhos interpretativos a respeito das tensões e dos conflitos cotidianos em
contexto de trabalho, assim com o da invenção de significados para a liberdade e a cidadania na
m esorregião do centro-norte baiano. Incertezas, expectativas, itinerâncias e visões de m undo,
po r vezes contraditórias, m arcaram os corpos e as trajetórias dos sujeitos que atravessam estas
páginas.
1. IN T R O D U Ç Ã O .
N o cenário baiano de deslaçam ento das relações com pulsórias de trabalho, final do
século X IX e ao longo das décadas do século X X , sobretudo na prim eira m etade, o distrito de
A lm as, pertencente à Feira de S antana/B A até 1961, era um território que dispersava e atraia
liberdades po r m eio do trabalho, das possibilidades e das estratégias de acesso e usos da terra.
E ste texto se desdobra na tentativa de com preender as m aneiras de constituição das experiências
e das vivências de trabalho de pessoas negras e pobres, oriundas do universo rural no distrito
onde se destacava, num contexto de pequenas e m édias propriedades, o com ércio de gado,
trabalhadores/as rurais, destacadam ente negros/as, deslocavam -se para o distrito que se
desenhava enquanto um possível territó rio de busca pelo m ínim o social e/ou pela invenção da
liberdade.
2. U M D IA D E S E R V IÇ O , U N S D IA S S E M T R A B A L H O : IT IN E R Â N C IA S E
C O N F L IT O S N O D IS T R IT O D E A L M A S .
dar “um dia de serviço em com panhia de outros” na casa de A lexandre Ferreira, onde
p resenciou o conflito entre João F erreira e G regório G onçalves que acabou em derram am ento
de sangue. É provável que F rancisco ten h a se d eslo cad o ju n to com V ictor dos Santos, de 25
anos de idade, e M anoel C orreia da Silva, de 35 anos, tam bém naturais e residentes da freguesia
do B onfim e que se m ovim entaram para dar um dia de trabalho no distrito de A lm as.
para um dia de serviço, parte deles natural de diversas localidades com o U m buranas, Jaqueira
e da freguesia da G am eleira. Q uando se encontravam jan tan d o , por volta das sete horas da noite,
na casa de A lexandre F erreira (possível contratante do trabalho), notaram “um tiro de pist ola
[...], m ais [sic] não havendo explosão [...] deixaram todos a m eza de ja n ta r para de ju n to
observarem o que tin h a se dado233” , quando chegaram à frente da casa de João Ferreira,
identificaram G regório G onçalves ferido po r u m a facada que v iria lhe afastar da labuta por
longos dias.
A lém dos trabalhadores já citados, tam bém se encontram nos autos M anoel C orreia de
L im a, 35 anos, F rancisco de A lm eida Lim a, 49 anos, V icto r P ereira dos Santos, 25 anos, P aulo
F ernandes dos Santos, 22 anos e V alessiano Lopes de 25 anos. N ão seria descabido sugerir
parentescos entre alguns desses trabalhadores, m uito m enos inferir sobre possíveis grupos que
se form avam e fechavam dias de serviço em diversas paragens da região, assim com o se
frustrações entre si, cultivando a p artir daí am bíguos laços com unitários que, em dados
m om entos, tam bém eram tem perados com a violência, desavenças e sangue. O espaço para
“ gracejar com alguns com panheiros” nem sem pre rendia risos p ara todos, sobretudo entre
aqueles que já viviam “ intrigados” . E ssas dim ensões não derivam som ente dos conflitos, m as,
sobretudo, dos arranjos e das estratégias para dar sentido concreto as suas concepções de
liberdade e cidadania, principalm ente no que diz respeito ao trabalho no cam po e ao acesso a
terra. C om o instrum entos da labuta cam pesina, a faca e o facão eram itens íntim os do cotidiano
de lavradoras e lavradores. N ascid o em 1943, seu E dson, conhecido com o Ézo, hom em negro
e lavrador, oriundo da fazenda Santa R osa, atualm ente m orador do M unicípio de A nguera-B a
(antigo distrito de A lm as), sugere, a p artir dos exercícios de suas m em órias referentes à década
A presença da faca no conflito, assim com o da pistola, entre João F erreira e G regório
G onçalves talv ez passe po r essa paisagem de um possível direito (costum eiro?) m encionada
po r seu E dson, que era filho de rendeiro e foi criado em um a das diversas pequenas e m édias
lavrador sugere u m a noção de instrum entos, arm as do cam po, restrita ao uso no trab alh o e
distanciada das tensões e dos desentendim entos. Q uando questionado sobre o uso desses obj etos
nos conflitos, seu E dson tratou logo de atualizar a paisagem para o espaço da bodega ju n to à
presença do álcool e seu perfum e de desordem , de m odo que ficou estabelecida, em parte da
sua narrativa, um a divisa entre os hom ens do cam po que trabalhavam e os que caçavam
“ m olequeira” , sendo assim , segundo ele, não deveria se confundir, po r exem plo, os usos da
usos desses objetos no universo rural, com o propõe seu E d so n . F ocalizando a prim eira década
do século X X , essa dicotom ia perde ainda m ais fo rça. O depoim ento de P aulo F ernandes dos
G regório G onçalves, evidencia o im bricam ento dos possíveis usos e significados dos
Na occasião em que estavam jantando, e isso relata em que não tem a ciência, estando
0 denunciado a gracejar com um dos companheiros, e ordenando Gregório a este que
se cale, o denunciado levantou-se para frente [...] armado de uma pistola, sahindo para
fora da casa, saltando uma janela, para aonde tavam sahindo a victima, e então dera
lhe uma faccada, e tando esta desfechado-lhe um tiro a pistola não houve esplosão.
Disse mais que o denunciado e a victimajá estam [sic] inimigos (Processo-crime. E:
01 Cx: 29 Doc: 511. CEDOC/UEFS. 1901, grifos meus).
A lém de refo rçar o que sugere o depoim ento do lavrador Francisco de A lm eida L im a -
apontando tam bém outras tem poralidades para se pensar o conflito, tendo em vista que o
características que apontam com o o docum ento ju d iciário , no caso aqui o p rocesso-crim e, é,
tam bém , tecido pela m em ória (PA SS E R IN I, 2011). O inquérito policial do referido processo
foi concluído sinalizando que “ G regório G onçalves Soares fôra v ictim a de um a facada, em
consequência da qual soffrera ferim entos de saúde que o im possibilita dos serviços po r m ais de
489
trin ta dias234” . A s m arcas do serviço acabaram po r im pedir alguns dias de trabalho para o
C abe aqui d estacar que significativa parte destes trabalhadores residia no distrito de
A lm as, m as não era natural dali, o que corresponde aos processos intensos de m igração num
de liberdade por m eio do trabalho e das itinerâncias (SILV A , 2017; 2021). N ascid o em 1846, o
visualizou diversos arranjos de liberdade e cidadania por essas localidades entre a freguesia do
D istrito esse que não atraia som ente em contextos de trabalho ou dias de serviços. N o
m ês de dezem bro de 1909, o jo rn a l feirense Folha do N o rte noticiava que “na m issão havida
[...] no arraial das A lm as, neste m unicípio” , foram realizados “ 83 casam entos, 1400 confissões,
75 b ap tisados e 1599 crhism as, sendo calculado em 6000 o núm ero de concorrentes a m esm a
m issão 235” . M esm o colocando esses núm eros em suspensão, é possível constatar que o distrito
pós-abolição. E m 1914, o m esm o periódico m enciona a organização da aclam ada festa de São
B enedito no distrito, de acordo com o jo rn al, “ na cappela das A lm as, da F reguezia do B onfim ,
preparam -se para o dia 10 de M aio, dom ingo, im ponente festas em honra deste glorioso
fazendas que cercavam o distrito, assim com o daqueles/as que residiam em outras partes da
região.
Sul da B ahia no contexto de pós-abolição, pontua que em cenários de devoção im bricavam -se
e p o d er (SO U ZA , 2012). É possível captar dim ensões com o essas no distrito de A lm as, que
tam bém possuía suas variadas form as de conexões com o R ecôncavo naquele contexto.
po r m om entos de diversão, não era esvaziado de tensões sociais que m arcavam as vivências das
pessoas e dos grupos no p ó s-abolição (SO U ZA , 2012). E m 1898, num sábado do m ês de jun h o ,
dia efervescente no distrito po r conta da feira livre, às sete horas da noite, na estrada que liga o
assassinato de C anuto de Tal. O processo ju ríd ic o se desenrola entre os anos de 1900 e 1901.
C anuto de Tal “ era crioulo, com trin ta e tantos anos, m ais ou m enos” e constantem ente era visto
“ no arraial das A lm as237” . R astros de cativeiro, assim com o das m obilidades com o exercício de
liberdade, sobretudo, nas itinerâncias destes trabalhadores, são localizáveis a p artir deste
ocorrido. Segundo o depoim ento do a utor dos disparos, F rancisco de P aula, lavrador de 17 anos,
A presença das “ arm as do hom em do cam po” pontilhava as relações sociais po r ali.
C abe destacar os itinerários dos sujeitos envolvidos no conflito. R esidente no distrito de A lm as,
F rancisco de P au la retornava de viagem a Santo A m aro, R ecôncavo da B ahia, o que pode ser
da B ahia, isso num contexto de longo pós-abolição, inclusive de grupos de trabalhadores que
se deslocavam em direção a partes do R ecôncavo para a com pra de café, ja c a e outros itens a
serem vendidos na feira do distrito, sem falar nas idas ao R ecôncavo p ara fins de trabalho nas
fazendas. P o r outro lado, C anuto de Tal, potencial descendente de escravizados e/ou libertos/as,
circulava pelo distrito de A lm as num a provável costura de cam inhos para u m a sobrevivência
m enos contingenciada.
idade, natural da freguesia de São José, residente no B om D espacho (atual D istrito de Jaguára),
pontua que “ achava-se elle [...] no arraial das A lm as, deste term o, e [...] ouviu o estam pido de
um tiro para o lado da rua que vai dar na fasenda R o m a” , para onde se dirigiu apressadam ente
encontrando diversas pessoas e “ o offensor de C anuto238” . A inda no seu depoim ento, quando,
A lm as era palco de diversas experiências coloridas pela violência nas estradas, nos am bientes
sim bólica desse m undo rural ainda era tingida pelas lógicas e dinâm icas do trabalho
construções de autonom ia, de fixação de fam ílias, de hom ens negros, de m ulheres negras, de
gente pobre que cinzelava suas concepções de liberdade na labuta e na plena interação com
E m 1901, precisam ente no dia 20 de m aio, Q uintino de Tal foi b aleado po r Luiz M iguel
da C onceição, preso em flagrante, no distrito de A lm as. O que cham a atenção nesse processo é
a origem dos depoentes, por exem plo, “ Saturnino C ardozo de Lim a, Solteiro com desenove
Na noite do dia vinte estando em casa de João Barreto, pela sete a oito horas da noite
com Quintino, Luiz e mais pessôas, e n’esta occasião Quintino procurara a Luiz uma
facca que elle lhe havia furtado, este respondendo-lhe que não foi elle quem furtou a
facca sim um menino do Jacaré, e que elle Luiz tomou a facca e negociou, e como
Quintino persistisse este convidou parafora da casa e saíram ambos, Luiz pushou da
sinta uma pistolla disendo a Quintino que não camiasse que morria, e como Quintino
aumentou os passos recebeu logo o tiro (Processo-crime. E: 01 Cx: 28 Doc: 510.
CEDOC/UEFS. 1901, grifos meu).
A resolução das tensões po r m eio de am eaças, tiros e facadas insere essas experiências
num terreno perm eado e possível de ser lido, interseccionalm ente, pelas relações de gênero,
classe e raça, m oldadas ao calor do universo rural e das suas especificidades num cenário de
longo pós-abolição. O utro depoente no processo, M anoel B ispo de Souza, lavrador de 25 anos
em sua casa presenciou que saía de u m a casa v isinha L uiz e Q uintino e que elle testem unha
ouviu vozes de L uiz diser não cam inha que eu ti atiro e n ’este instante ouviu os estam pidos do
tiro 239” . O utros sujeitos im plicados no processo tam bém eram oriundos de outras regiões,
M anuel da C ruz Souza traz nas suas narrativas orais alguns aspectos do com o funcionavam as
relações de “ segurança” no distrito de A lm as. A narrativa de seu M anuel - que busca recobrir
com unitárias e pessoais, todas elas interconectam -se lastreando o trabalho das suas m em órias e
anunciando tem poralidades, linguagens e experiências que com puseram o universo rural no
distrito de A lm as.
D e acordo com A lessandro P ortelli (2010), a histó ria oral é constituída por diversas
m odalidade com unitária, tecid a na prim eira pessoa do plural, m arcad a pelas relações na
com unidade local de trabalho e entorno; e a m odalidade pessoal, erguida singularm ente em
prim eira pessoa, tom ando a vida privada, a fam ília e a casa com o referentes. N as n arrativas
orais as m odalidades dificilm ente se distanciam de m odo evidente, convergindo frequentem ente
A n arrativa oral de seu M anuel C ruz de Souza aponta tam bém para outras realidades
não acessíveis, pensando o distrito de A lm as, por m eio dos docum entos escritos, com o a
presença das m ulheres “ que vinham fazer a vid a” , não necessariam ente no trabalho rural, ou
não som ente po r lá, sem falar nos aspectos sim bólicos e culturais d a faca, do canivete, assim
com o das tensões envolvendo sujeitos das forças de seguranças e m oradores do distrito de
A lm as.
A m an eira com o seu M anuel vai u rdindo sua narrativa, revela, em parte, “ as em oções
com o com ponentes da identidade” e “ a im portância dos sentim entos na dinâm ica identitária e
o caráter m óvel e intersubjetivo das identidades” (PA SSE R IN I, 2011, p. 10-11). O s risos que
envolvem a tessitu ra da h istória da facãozada dada por um m orador do distrito no inspetor local
tam bém apontam para “ o papel das em oções no cruzam ento entre o público e o p riv ad o ”
(PA SS E R IN I, 2011, p. 100). O destaque de seu M anuel da C ruz Souza para a existência de
u m as “vendinhas” nas ruas do distrito, não deixa dúvidas de que o espaço das vendas, tam bém
responsáveis po r fazer girar a econom ia local anteriorm ente e após a abolição, era fértil para o
abolição, nas quitandas e vendas era identificável as disputas pelo tem p o do trabalho, assim
entorno, foram m arcadas/os po r diversas relações de conflito, por diversos contatos com
pessoas de territórios distintos e que se encontravam em A lm as, m arcados/as tam bém por cortes
profundos de um contexto de longo pós-abolição, assim com o por estilhaços de balas, lam inas
crim es e fragm entos de periódicos sobre o distrito de A lm as, à luz das problem áticas do pós-
abolição, num a perspectiva de longa duração, pode arrepiar os silêncios historiográficos sobre
essa região pertencente à cidade de F eira de Santana até um pouco m ais da m etade do século
que caracterizaram o contexto de p ó s-abolição no distrito de A lm as, territó rio m argeado por
494
pequenas e m édias propriedades e que figurava, para parte de diversos/as trabalhadores/as do
cam po, enquanto terreno de possíveis liberdades e exercício da cidadania po r m eio do trabalho,
3. C O N S ID E R A Ç Õ E S .
esforços p ara contribuir de form a significativa no debate sobre o p ó s-ab o lição na B ahia, em
específico pelo seu interior num contexto de estendida tem poralidade. E ste texto se propõe a
fazer parte dessa abertura de cam inhos, da n ecessidade de levantar hipóteses, docum entos e
problem áticas que possam situar essa região, m arcadam ente negra, nos cen ário s e nas questões
do B rasil R epública.
O intercruzam ento de processos-crim es com as narrativas orais, por exem plo, ainda que
espaçado po r algum as frações de tem po, perm ite elucidar e/ou p roblem atizar im portantes
dim ensões das relações de trabalho não só do ponto de vista das hierarquias com os senhores,
fazendeiros e/ou seus representantes, m as tam bém nas relações internas ao universo dos/as
raça, classe e gênero que davam form a aos conflitos tratados neste texto, é de fundam ental
im portân cia para a com preensão dos significados, dos usos e das sim bologias de certos objetos
no cotidiano dessas pessoas, das variadas form as de constituição das suas identidades sociais e
das transitoriedades diversas, tanto do ponto de vista territorial, quanto das relações
interpessoais.
das m aneiras de v iver e significar o tem po nas fazendas e no distrito, agenciando experiências
senhorial. N esse sentido, o universo das roças é com preendido aqui enquanto um a arena fértil
O conjunto de leituras a cerca da historiografia do pó s-ab o lição indica que as cam adas
suas presenças em processos-crim es, torna-se possível captar as nuances dessas experiências e
tensões no cam po, onde a pele negra continuou sendo alvo de constrangedoras fantasias, não
só do m edo branco, m as tam bém de olhares diversos. N u m a sociedade que relutava para
495
posicionar-se além da escravidão e que tingia com cores negras e não brancas a despossessão
m aterial, política e sim bólica, o trabalho era v iv en ciad o de truncadas form as.
o cativeiro era significado, lido ou relido no m undo do pós-em ancipação nas fazendas
localizadas nas im ediações do distrito de A lm as? Q uais eram os sentidos atribuídos pelos/as
trabalhadores/as, rendeiros/as no caso, ao ato de te r que pagar a renda para poder prosseguir
com as suas m oradias? O contato com a docum entação jurídica, jo rnalística e o trabalho com
os arquivos orais podem m in ar as ausências de respostas a essas questões e rev elar dim ensões
desses processos nessa região ainda carente de pesquisas com esse enfoque tem ático e tem poral.
O não aprisionam ento nas datas e a atenção nos processos históricos perm item um a análise m ais
a fundo sobre as reelaborações das m aneiras de dom inar, tu telar e fazer dependentes nu m a arena
P esquisas nesse sentido podem contribuir para a elaboração de um conhecim ento sobre
um tem a ainda não abordado de m aneira específica nessa região do centro-norte baiano,
acrescentando tam bém no debate local, sobre a identidade da cidade e seu entorno na m edida
em que traz elem entos sobre processos de organização dos espaços u rbano e rural. A inda nesse
cam po, estas pesquisas podem som ar no entendim ento dos processos de êx o d o no cam po e o
surgim ento de pequenos aglom erados urbanos com densas relações com o rural num contexto
de longo pós-abolição.
docum ental de p rocessos-crim es e inventários, podem anunciar alguns sentidos para o que foi
insum os ao trab alh o de possíveis narrativas históricas a respeito dos arranjos culturais e das
labutas desenhadas na constituição social da cidade. A s teias econôm icas, culturais e sim bólicas
estabelecidas no entorno das roças, das sociabilidades nas estradas e do trabalho rural de um
m odo geral, com portavam am plos significados de autonom ia, ainda que precários, e no âm ago
trabalhadores/as rurais anguerenses, estava o acesso à terra que poderia alargar as condições
N esse sentido, é possível in fe rir sobre a luta pela am plificação dos espaços de
A lm as, processos que certam ente estavam relacionados aos anseios po r um acesso m ais
496
significativo aos m ercados locais, sobretudo à feira livre do distrito. E ssas questões podem
ajudar na avaliação sobre os processos que tangenciavam as idas e vindas entre essas pequenas
F O N T E S D O C U M E N T A IS :
F O N T E S O R A IS .
R E F E R Ê N C IA S :
497
O MOMENTO DO JUÍZO: REPRESENTAÇÕES DOS JUÍZES DO
MUNDO DOS MORTOS GREGO NA EPOPEIA E NA COMÉDIA
L E A N D R O M E N D O N Ç A B A R B O SA *
P arece haver certo ponto com um em assentar a instituição do ju lg a m e n to das alm as que
deixam o m undo dos vivos e adentram o subm undo à cosm ovisão platônica. O L inguista
A lberto B ernabé (2021) e o H istoriador R adcliffe Edm ons, (2014) são exem plos que, apesar do
reconhecim ento de influências pretéritas na acepção dos ju íz e s da m o rte, com ungam que a
com preendem os que a concepção dos seres responsáveis pelo destino da alm a abarca m om entos
docum entação anterior ao pensam ento platônico não apresente de form a substanciosa estas
criaturas, defendem os que sua m aterialização é anterior aos escritos de Platão: na epopeia e na
com édia gregas240.
m etodologicam ente, p artir do paradigm a indiciário, qual seja perceber indicativos m arginais
centrada em trechos bastante específicos que nos levam a questionar o estabelecido em relação
atingir destaque nos diálogos platônicos, bem com o à ideia consistente de julgam ento. T odavia,
o autor aponta, a p artir de u m a com petente análise de trechos hom éricos, que as representações
p. 139).
Indiciariam ente, acreditam os que estas alusões são im portantes para form ar parte da
id eia que se tinha sobre a ju stiç a além -vida e sobre os agentes que com punham este im aginário
240* Doutor em História Antiga pela Universidade de Lisboa-Portugal. Pós-doutor em Estudos Culturais pela
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. SEMED/Campo Grande. Membro dos Grupos de Pesquisa
“ATRIVM - Espaço Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade” e “Historiografia e Ensino de História: diálogos
em trânsito”, ambos sediados na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Há também uma menção acerca de um juiz anônimo que avaliaria os seres que acabavam de morrer no epinício
Olímpica II, de autoria do poeta tebano Píndaro. No escrito, este juiz inominado concedería uma além-vida sem
trabalho para os bons, e com labuta pesada para os maus (II-56-67).
498
religioso. Já E dm onds concorda que foi a concepção platônica que construiu a com plex idade
e até de seres específicos para isso surgem de um a tradição m ítica grega com um que antecede
Platão:
The idea of judges, be it the gods in a vague and unspecific sense or particular entities
who carried out a detailed process of examination, seems to derive from the common
mythic tradition, although Plato’s bricolage with the bits of tradition produce far more
complex and detailed scenarios than anything else extant. (EDMONDS, 2014, p. 13)
R ad am an tis242 com o M inos - que são irm ãos - constam nas E p opeias H om éricas e, de acordo
com P ierre L évêque, seriam divindades cretenses incorporadas ao panteão H elênico, pois a
m oldes egípcios, recom pensando os m ortos de acordo com seus feitos em vid a (L É V Ê Q U E ,
1996, p. 132). A rnaldo B ernabé concorda com a tradição cretense no que se refere a M inos
com o sul da P enínsula Itálica, devido a farta representação na cerâm ica apúlia, o que não é
C om ecem os com M inos. F ilho de Z eus e E u ro p a243, é o rei de C reta três gerações antes
da G uerra de Tróia. Inteligente, foi responsável por org an izar seu povo por m eio de códigos
que servirão de base para diversas C idades-estados gregas (G R IM A L , 2000, p. 313). Sua
n arrativa m ítica é vasta; aqui centrar-nos-em os no M inos ju iz do m undo dos m ortos e, para isso,
b asead a no em pirism o e na dedução a partir de dadas realidades; um fenôm eno literário: “ (...)
grandes feitos, eventos e personagens divinos e hum anos, as epopeias hom érica e hesiódica
servem de exem plo e inspiração para estruturas narrativas m esm o após m ais de dois m ilênios
241 Conforme Alberto Bernabé (2021, p. 150), em representações nas cerâmicas do período helenístico Triptólemo
figurará entre os juízes, muitas vezes substituindo Minos. Em Apologia de Sócrates, Platão aloca Triptólemo junto
aos outros três juízes.
242 Radamantis é citado tanto na Ilíada (XIV, 322) quanto na Odisseia (IV, 564; VII,323), sem relação direta com
a justeza no além-vida.
243 Filha de Agenor e Telefaassa, foi amada por Zeus, que se transformou em um touro branco e viajou com ela
até Creta, lá consumando seu amor.
499
H om ero, em bora cite M inos em sua Ilíada, coloca-o com rei de Creta, sem nenhum a
referência ao m undo dos m ortos. É na Odisseia que o herói hom ônim o vê M inos no am biente
A interpretação de A lberto B ernabé sobre este trecho é de que M inos concede a ju stiç a
aos m ortos que j á m oram no H ades. Seria o que resolve litígios, organiza as pelejas e disputas
entre as alm as. N ã o se trataria de um ju iz o qual designa p ara qual lugar iria a alm a que acabou
de adentrar ao subm undo (B E R N A B É , 2021, p. 149). Propom os, a p artir desta observação, duas
questões: a prim eira é que O disseu não estava m orto, era um vivo em um um a realidade de
katábasis. D este m odo, não é possível afirm ar que M inos não ju lg a ria o herói caso este fosse
para o H ades na condição de m orto. O disseu em estado de vivência não perm ite com preender
O utro ponto está no fato de M inos ser apontado na circunstância da ju stiça . O rei/juiz
aparece aplicando ju ste z a às alm as, m esm o que já se encontrem no m undo dos m ortos. Se não
podem os afirm ar, pelo que H om ero nos deixou, que M inos é um ju iz que pondera as ações dos
outrora vivos, tam p o u co seria verossím il cravar que ele não sim bolizava a figura de ju iz , haja
N o p eríodo de construção da epopeia o palácio era o sím bolo de poder nas cidades
balcânicas ainda em crescim ento. A o rei era reservado b o a parte do atributo p olítico e ju ríd ico ,
cabendo-lhe diversas funções ligadas à legalidade. (LY E, 2016, p. 11) A p osição de M inos entre
os m ortos sugere que as hierarquias sociais do m undo dos vivos se reproduziam na terra dos
N otam os por esta passagem que, ainda no período hom érico, M inos era concebido por
um padrão isonôm ico, e no contexto m ortuário. E sta divindade dúbia - rei e ju iz - na Odisseia
é apontada com o filho de Z eus e dentro da m ansão de H ades, local onde ju lg av am os m ortos;
em punhava um cetro de ouro, sím bolo do poder e da soberania. O senso de equidade, parte do
im aginário religioso H elênico, concedia ao divino o poder sobre os vivos e sobre suas ações e
244 Situação semelhante se passa com Radamantis em uma menção dada por Hesíodo em uma passagem de sua
obra Catálogo de Mulheres - que sobreviveu fragmentada - referindo-se à criatura como “justo”.
500
atitudes. A Odisseia propaga no im aginário a questão de M in o s relacionado ao ju íz o da m orte,
O outro ju iz que com pleta a tríade é É aco. A o contrário dos irm ãos M inos e R adam antis,
É aco não é descrito po r H om ero. A parece a prim eira vez na Teogonia de H esíodo e
posteriorm ente é contem plado pelo teatro ateniense. T am bém filho de Z eus e da n infa E g in a ,245
era o m ais piedoso de to d o s os gregos (G R IM A L , 2000, p. 125); po r este m otivo foi escolhido
para ju lg a r os m ortos.
ideal helênico: autocontrole, piedade com os bons e sabedoria. E stas características nos
rem etem à própria m oral ideal do “ ser helênico” : o p o d er dos ju ízes, que quase nu n ca era
contestado, foi adquirido devido ao consenso destes ideais. D esde a A ssem bleia hom érica, m as
principalm ente na A ssem bleia dem ocrática de A tenas, predicados com o estes eram cobrados
dos cidadãos que possuíam poder de voz e de voto, sendo estas características caras a um bom
N as obras hesiódicas que chegaram com pletas a contem poraneidade não existe um a
relação direta entre as três criaturas e a ju s tiç a 246. C ontudo, é notório com o este tino está
associado ao poder e à personificação de figuras divinas, com o o próprio Zeus. Igualm ente no
m onarquias:
A realidade palaciana na qual H om ero e H esíodo confeccionaram suas obras dem onstra
a im portância da sim biose entre política, poder e ju stiça. A pesar dos ju íz e s não serem citad o s
nestes term os po r H esíodo, ju lg a m o s im portante esta breve explanação para com preen der o
E m As Rãs, rep resen tad a em 405 A EC, durante as festas das L eneias (R A M A L H O ,
2008, p. 11), A ristófanes n arra o descontentam ento do deus D ioniso acerca do que havia se
tran sfo rm ad o as artes naquele fim de G uerra do Peloponeso. A divindade desce, então, ao
245 Filha do deus-rio Asopo, foi raptada por Zeus. Deu à luz a Éaco na ilha que passou a ter o seu nome.
246 Na Teogonia há uma descrição sobre a genealogia de Éaco (v. 1003-1007).
501
subm undo para resgatar o tragediógrafo Eurípides. O com ediógrafo zom bará com a autoridade
distinguir quem é o deus e quem é o escravo quando se depara com D ioniso - fantasiado de
H éracles - e seu escravo X ântias - que ora tam bém assum ia a aparência de H éracles. É dada a
id eia de tortu rar am bos, após um a acusação de roubo im putada a X ântias, pois quem fosse o
deus dor não iria sentir - a tortura aos escravos era p erm itid a em A tenas, desde que com o
ÉACO
Palavras justas. E se eu fraturar alguma coisa, ao bater no teu escravo, a
indenização será paga.
XÂNTIAS
Não vale a pena, por quem é! Pegue nele e experimenta-o.
ÉACO
Aqui mesmo, para que fale diante dos teus olhos (A Dioniso) Você
coloque a tralha depressa, e não diga agora nenhuma mentira.
DIONISO
Proclamo a quem quer que seja, que não me torture, porque sou imortal. Caso
contrário, sou eu próprio quem se torna o acusador.
ÉACO
Que está dizendo?
DIONISO
Afirmo que sou imortal, Dioniso, filho de Zeus (Apontando para Xântias) e que o
escravo é ele.
ÉACO
(A Xântias) Ouve isto?
XÂNTIAS
É o que eu digo. E muito mais deve ser chicoteado porque, se é um deus,
não sentirá.
DIONISO
Porque é que, se você diz que também é um deus, não recebe igualmente
as mesmas pancadas que eu?
XÂNTIAS
Raciocínio justo (A Éaco). E aquele de nós dois que você ver chorando primeiro ou
preocupando-se um pouco com a pancada, acredite que esse não é um deus.
ÉACO (A Xântias)
Não há dúvida que és um homem nobre, porque vai direto ao que é justo
(A ambos). Despem-se.
XÂNTIAS
Como é que nos julgará com justiça?
ÉACO
Da maneira mais fácil: pancada em um, pancada em outro. (Aristoph., Ra., v. 623
643)
502
É aco, a p artir de sua própria noção do que é ju sto , tortu ra am bas as personagens com o
in tuito de saber quem é deidade e quem é hum ano. C om o os dois perm anecem im passíveis, o
to rtu rad o r tem de reco rrer aos deuses H ades e P erséfone. O É aco de A ristófanes é confuso e,
até certo ponto, patético, com o a própria ju stiç a naquele final de século V A E C ., na visão do
com ediógrafo. É aco, nesta com édia, representa a crítica aos padrões de legalidade que a
seja, em pregue em u m a posição de trabalho inferior na escala econôm ica. A ju s tiç a para
A ristófanes era tru cu len ta e ignorante, invertendo a lógica cara aos justos.
A ssim com o ocorre com M inos na epopeia, É aco é inserido neste m eio da ju rid icid ad e
na com édia. O escravo X ântias pergunta “C om o é que nos ju lg a rá com ju stiç a ? ” . C oncordam os
que há fragilidade em afirm ar a função de É aco com o um ju iz por este trecho. C ontudo, a
asseveração de que a criatura não era um ju iz, partindo do m esm o extrato, é igualm ente frágil.
E m b u sca de um arrem ate, é possível notar, pelas pistas deixadas pela docum entação
n a sc e n te s poleis reflete na representação construída de M inos no m undo dos m ortos. O rei que
P o r outro lado, a com édia descontrói este ideal por m eio da crítica aos costum es e
padrões da ju ric id a d e ateniense. A ristófanes, particularm ente em As Rãs, erige u m a ácida crítica
ao que A tenas, ao seu ver decadente, transform ou-se, o que faz as personagens recorrerem ao
que É aco é reduzido a um porteiro abstruso da casa de H ades é a aplicação da ju stiç a de m odo
A construção da visão de ju stiç a que a d ocum entação escrita até o século V A E C trás é,
adem ais da m udança paradigm ática no sentido de ju steza, a personificação deste ju sto em
figuras, em criaturas que efetivam ente cum priam um papel para a ordem da vida e da m orte.
M inos e É aco, sobretudo, encarnam o ju sto e sim bolizam de que form a parte do im aginário
503
B IB L IO G R A F IA
FO N TES:
504
O ATEÍSMO DE ZÉ DO CAIXÃO E SUA RELAÇÃO COM OS
REGIMES DE HISTORICIDADE DE KOSELLECK
L E T ÍC IA D A S IL V A L E IT E 247
questões referentes ao m apeam ento de novos conceitos de tem p o histórico à guisa de sua
classificação, definição e exem plificação, tendo em vista três grandes rubricas: a m etafísica do
detalhar esses três cam pos dos estudos do tem po, definindo e exem plificando as ten d ên cias que
em que cada um deles se constitui e os autores que as representam . E ste trabalho trata-se de um
m estrado.
Portanto, antes de iniciar a relação aqui intencionada, acredito ser válido apresentar a
m eu projeto de pesquisa, cujo títu lo é “A representação do ateísm o nos film es “A m eia noite
levarei sua alm a” (1964) e “E sta noite encarnarei no teu cadáver” (1 9 6 7 )” . A pretensão da
p o p u lar brasileiro na década de 1960 a partir da análise dos film es citados, cujo um é sequência
do outro e am bos foram dirigidos por José M o jica M arins. O d iretor em questão é considerado
pai do terro r brasileiro e tanto dirigiu os film es supracitados quanto interpretou o protagonista
da tram a, Z é do C aixão, um coveiro ateu na b u sca pela m ulher ideal para conceber seu filho,
crendo que a união entre ele e um a m u lh er com os m esm os ideais pautados n a ciência e não na
religiosidade daria à luz u m a criança superior aos outros hum anos. A id eia é entender o ateísm o
a partir do exam e da relação do film e com a sociedade que o produz, analisar o im aginário da
de divindades, o oposto ao teísm o, que em sua form a m ais geral é a crença de que existe ao
m enos u m a divindade. P odem os afirm ar de acordo com M inois que “ o ateísm o, independente
das religiões, pode ser concebido com o a grandiosa tentativa do hom em de criar um sentido
para si m esm o, de ju stific a r para si m esm o sua presença no universo m aterial, de nele construir
um lugar inexpugnável” (M inois, 2014, p.3-4), m as, u m a definição norm ativa de ateísm o pode
Silva (2020), isso se dá por diversos m otivos e é necessário considerarm os a forte tradição
séculos X V I e in ício do X IX , trad ição essa que m oldou com portam entos, form as de p ensar e
agir em diversos grupos no país. N esse caso, não é surpreendente que os historiadores tenham
produzido inúm eros estudos da religião e das práticas religiosas na história do B rasil, m as não
olhado de form a m ais precisa para o ateísm o. C om efeito, a significativa lacuna na literatura
sobre o ateísm o no B rasil, reforça a percepção da sociedade brasileira com o em inentem ente
religiosa.
T endo apresentado o tem a da pesquisa, se faz válido destacar que para a realização deste
trab alh o nos estenderem os ao ateísm o de m aneira m ais am pla e não apenas no recorte tem poral
da pesquisa. B uscarem os fo car no personagem principal tendo em vista que seu com portam ento
reflete o que K o selleck diz sobre a relação dos regim es de historicidade às experiências vividas
pelos indivíduos da sociedade. P ara que essas questões fiquem m ais claras, apresentarem os
D e acordo com K oselleck, em “ sedim ents o f tim e” (2018), os historiadores lidam com
o tem po, m ais com um ente, de duas m aneiras: retratan d o -o com o linear ou com o circular. N o
m odelo linear, o tem po é retratado com o u m a flecha direcionada a um futuro aberto, sendo
é retratado com o recorrente e cíclico, portanto, aborda a recorrência do que é fundam entalm ente
o m esm o. P ara o autor, os dois m odelos são insuficientes, porque de acordo com ele, toda
sequência histórica contém tan to elem entos lineares quanto recorrentes. D este m odo, K oselleck
m últiplas.
P ara explicar essa teoria, faz o uso do term o “ sedim entos ou cam adas de tem p o ” com o
m etáfora, ao referir-se a form ações geológicas que diferem em idade e profundidade e que
cham ada história da Terra. E le transpõe isso a história hum ana, política, social e estrutural, para
desenrolam . D e acordo com K oselleck (2018), os tem pos históricos consistem em m últiplas
cam adas que se referem um as às outras de fo rm a recíproca, m as sem serem totalm ente
dependentes um as das outras. Segundo ele, essa m etáfora surgiu pela prim eira vez no século
506
X V III, depois que a histó ria natural tradicional e estática (historia naturalis) havia se
P ara K oselleck (2018), n essa teoria de sedim entos do tem po, os regim es de
historicidade, isto é, a experiência de tem po, são variáveis, pois são resultados de experiências
vividas pelos seres vivos, portanto, existem pontos de viradas, singularidades e continuidades
historicidade existentes para K o selleck (2018), vam os esclarecer essas relações. Segundo o
autor, podem os considerar as sucessões de eventos singulares com o lineares e localizar todas
as inovações num a linha do tem po, assim , o progresso é concebível e possível porque o tem po,
h istória com o um todo se baseia em estruturas de repetição que não se esgotam na singularidade,
para a singularidade. D este m odo, não é apenas a singularidade dos eventos súbitos que trazem
consigo m udanças h istóricas: as estruturas m ais duradouras, que inicialm ente parecem m ais
P ara ficar m ais claro, K o selleck (2018) afirm a que a singularidade de um a sequência de
eventos pode ser localizada em piricam ente no ponto em que se experim enta a surpresa. M as,
experim entar um a surpresa significa que algo aconteceu de form a diferente do que se pensava,
rom pida e precisa se constituir de novo. D esta m aneira, K o selleck (2018) supõe que os
historiadores, em seu m étier, devem questionar não apenas qual foi o caso singular, m as tam bém
com o isso po d eria ter acontecido da m aneira que era esperado, buscando causas nas quais a
D estarte, de acordo com K o selleck (2018), a vantagem dessa teo ria das sedim entações
desacelerações, e, assim , revelar diferentes m odos de m udança histórica que indicam grande
com plexidade tem poral. Falam os até aqui de eventos singulares e de estruturas de repetição
sem as quais tais eventos singulares não seriam possíveis. E m am bos os casos, essas diferentes
cam adas de tem p o foram conectadas às m aneiras pelas quais os indivíduos ou gerações que
T en d o explicitado as relações de tem po na teo ria de sedim entos do tem po, voltem os à
questão dos regim es de histo ricid ad e propostos por K oselleck. O autor propõe, dentro dessa
ten d ên cia de tem po, três regim es de historicidade possíveis: o regim e pautado no passado, o
regim e pautado no presente e o regim e pautado no futuro. D e acordo com o autor, podem os
507
dividir a h istória em 3 períodos: a h istória m agistra vitae, que durou até o final do século X V III
h istória que ten d ia a ser repetir, sattelzeit, que foi o interregno entre final do X V III e início do
X IX , zona de transição, tin h a deixado a m agistra vitae m as ainda não tinha entrado na nova
fase, com o se os dois se m isturassem num a am bivalência, e neuzeit, que teve início no século
sequência na teo ria de K oselleck, H artog (2013) afirm a que desde 1989, estam os em nova fase,
que é p autada no presente, ou seja, um regim e presentista, a h istória está próxim a dem ais, se
h istoriciza im ediatam ente, há um a atenção aos fatos que estão ocorrendo, e po r isso é
P ara entender e estabelecer qual regim e de historicidade se trata cada período, K oselleck
história. O u seja, todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas e pelas
expectativas criadas pelas pessoas envolvidas. O autor afirm a que essas categorias são
genéricas, m as enquanto históricas equivalem às de espaço e tem po. T endo isso em vista, a tese
de K o selleck é que as categorias experiência e expectativa são adequadas para nos ocuparm os
com o tem p o histórico, pois entrelaçam passado e futuro. Portanto, tam bém são adequadas
tam bém para a ten tativ a de descoberta do tem po histórico, pois, enriquecidas em seu conteúdo,
elas dirigem as ações concretas no m ovim ento social e político, além disso, fornecem as
determ inações form ais que perm item que o nosso conhecim ento histórico decifre essa
execução. E les rem etem à tem poralidade do hom em , e com isto, de certa form a m eta-
experiência é o passado atual, aquele no qual acontecim entos foram incorporados e podem ser
inconscientes de com portam ento, que não estão m ais, ou que não precisam m ais estar presentes
no conhecim ento. A dem ais, K oselleck (2006) afirm a que, n a experiência de cada um ,
tran sm itid a po r gerações e instituições, sem pre está contida e é conservada um a experiência
alheia. N esse sentido, tam bém a história é desde sem pre concebida com o conhecim ento de
experiências alheias. Q uanto à expectativa, algo sem elhante pode ser dito, tam bém está ligada
à pessoa e ao interpessoal, tam bém se realiza no hoje, voltado para o ainda n ão experim entado,
para o que apenas pode ser previsto. K o selleck (2006) cham a atenção ao fato de essas categorias
508
não se tratarem apenas de conceitos opostos. A o contrário disso, indicam m aneiras desiguais
de ser, e ju stam en te da tensão que daí resulta pode ser deduzido algo com o o tem po histórico.
D esta m aneira, não se pode conceber u m a relação estática entre espaço de experiência
e horizonte de expectativa. O autor aponta então que eles constituem um a diferença tem poral
acordo com ele, na era m o d ern a a diferença entre experiência e expectativa aum enta
progressivam ente, aliás, na sua visão, só se pode conceber a m odernidade com o um tem po novo
a partir do m om ento em que as expectativas passam a distanciar-se cada vez m ais das
experiências feitas até então. A s expectativas que eram ou que podiam ser alim entadas, no
m undo m etade cam ponês, eram inteiram ente sustentadas pelas experiências dos antepassados,
que passavam a ser tam bém as dos descendentes. O autor explica que quando ocorria algum a
m udança, ocorria tão lenta e v agarosam ente que a ruptura entre a experiência adquirida até
então e um a expectativa do que ainda estava po r ser descoberto não culm inava no rom pim ento
m undano. O objetivo de um a perfeição possível, que antes só podia ser alcançado no além , foi
posto a serviço de um m elhoram ento da existência terrena, que perm itiu que a doutrina dos
ú ltim o s fins fosse ultrapassada, assum indo-se o risco de um futuro aberto. D esde então to d a a
h istória pôde ser concebida com o um processo de contínuo e crescente aperfeiçoam ento. Os
fins são estabelecidos pelas gerações e as ações que se fazem para chegar nele são justificadas,
isto é, a expectativa de progresso legitim a a ação política. E m linhas gerais K o selleck (2006)
C ontudo, K o selleck (2006) afirm a que não foi só o horizonte de expectativa que
adquiriu u m a qualidade historicam ente nova e pôde ser utopicam ente ultrapassado, o espaço de
experiência passou po r m odificações cada vez m aiores. O conceito de "progresso" só foi criado
no final do século X V III, quando se procurou reu n ir grande n úm ero de novas experiências dos
três séculos anteriores. O conceito de progresso único e universal nutria-se de m uitas novas
experiências individuais de progressos setoriais, que interferiam com profundidade cada vez
m aio r na vida quotidiana e que antes não existiam . D e acordo com o autor, todas essas
experiências rem etiam à contem poraneidade do não-contem porâneo, ou, inversam ente, ao não-
expectativas afetadas por um coeficiente de v ariação tem poral. E le afirm a que um grupo, um
país, um a classe social tin h a consciência de estar à frente dos outros, ou então procuravam
cim a para baixo o grau de desenvolvim ento dos outros povos, e quem possuísse um nível
Portanto, o que se deu de novo, concordante com o que escreveu K o selleck (2006), foi que as
expectativas para o futuro se desvincularam de tudo quanto as antigas experiências haviam sido
capazes de oferecer, os lim ites de um e de outro se separaram . D este m odo, K o selleck indica
que afirm ar que n enhum a experiência anterior pode servir de objeção contra a natureza diferente
do futuro torna-se quase um a lei. O futuro será diferente e m elhor que o passado.
A aplicação histórica das duas categorias m eta históricas de K o selleck fornece um a chave para
o reconh ecim ento do tem po histórico, particularm ente o nascim ento daquilo que recebeu o
A nossa fonte está localizada nesse período em que o regim e de historicidade era
considerado por K o selleck num a tendência futurista e o personagem principal dos film es que
servem com o fonte para a m inha pesquisa e sua relação com o ateísm o está bastante atrelada a
para afirm ar e viver seu ateísm o. E le ju stific a sua violência e até m esm o o assassinato de
pessoas religiosas pelo bem de um futuro pautado na ciência e livre de crenças. O paradigm a
que o apóia sustenta a ideia de u m a superação, com o se a religião ocupasse um estágio anterior
ou m enos desenvolvido de pensam ento. P odem os v er isso em algum as cenas do film e, darem os
N o prim eiro film e "A m eia noite levarei sua alm a” , quando Z é do C aixão é indagado
po r um am igo sobre o porquê de sua descrença, responde que não pode te r descrença, j á que
nu n ca teve crença e retruca: “ C rer em que? E m um sím bolo? E m um a força inexistente criada
pela ignorância? E u sou um revoltado sim , m as é com tolos com o você, que tem em o que não
veem e tornam -se escravos daquilo que realm ente existe: a vid a” (A m eia noite levarei sua alm a,
1964, 33 m in.). N esta cena, além de negar a experiência p assada pautadas nas religiões, dá a
en tender que é superior aos religiosos po r acreditar na ciência e ainda afirm a que os que não
com partilharem desse progresso que ele com unga, serão dom inados.
N o segundo film e “E sta noite encarnarei no teu cadáver” , Z é do caixão faz outro
discurso que rem onta seu ideal de progresso proposto pelo ateísm o, a consciência de que não
haverá u m a vida pós m orte dá a ele o esclarecim ento de que a im ortalidade está pautada em
que existe depois da m orte? N ada! Portanto, a im ortalidade está no sangue. Q uando o hom em
se realiza? O que é essa realização? U m filho, sangue do próprio sangue, o hom em só é im ortal
E m outra cena, ainda no m esm o film e, Z é do caixão rapta várias m oças para selecionar
qual seria m ais apta a lhe dar um filho perfeito, após subm etê-las a alguns testes e não considerá-
las boas o suficiente p ara gerar o filho do hom em superior, ele as m ata cruelm ente e ao ser
cham ado de sádico po r um a das m oças que ele deixa viva ele retruca num discurso que
dem onstra u m a justificativa para suas ações no presente já que estão sendo feitas visando um
progresso futuro: “ Sadism o não m inha cara, ciência! A m orte delas não é um sacrifício, é apenas
T am bém no film e “E sta noite encarnarei no teu cadáver” , existe outra fala bem m arcante
do quanto ele se sente superior e responsável por levar a sociedade ao progresso ateísta. P restes
a m atar um hom em religioso que intencionava im pedi lo de casar com a m ulher selecionada por
ele com o perfeita para dar à luz o seu filho, ele discursa: “N ão, não sou louco, nem tão pouco
perverso, ao contrário, sou a salvação de to d a a hum anidade, quem sabe o único ser que luta
sem exigir nada, pela sobrevivência de um a raça que infelizm ente não despertou, esperam a
ajuda de um deus, e se assim fosse, m eu caro am igo, eu estaria ai e você aqui, então está
provado, não existe um a força ju sticeira invisível, m as algo tem que reger a T erra, u m a força
perfeita: a m ente do hom em perfeito, livre de sentim entos, criado pelo instinto e eu vou
im ortalizá-lo". D este m odo, m ais um a vez Z é do caixão explica suas ações em prol de um futuro
antes só podia ser alcançado no além , foi posto a serviço de um m elhoram ento da existência
T en d o em vista tudo o que foi colocado, torna-se claro a relação da fonte com o tem po
h istórico e o regim e de historicidade em que foi produzida. E ntretanto, vam os além . G ostaria
de fazer um paralelo com a relação com o ateísm o no B rasil m ais contem porâneo.
N o contexto atual, existe um cenário em que a laicidade do E stad o é um fato de direito. C larissa
F ranco (2014) defende a existência de um novo ateísm o e elenca 5 fatores que a perm ite alegar
isso, o prim eiro é a característica de m ovim ento social, o segundo é o fato de o E stado secular
dar proteção e força aos ateus, em terceiro, ela aponta a passagem do paradigm a filosófico para
o científico na defesa do ateísm o, com penetração pelo senso com um , o quarto fator é o cenário
de terrorism o religioso, que assustou o m undo com m ais intensidade desde o atentado de
511
setem bro de 2001, e po r últim o, a autora cita com o quinto fator a Internet, que p o ssibilita a
form ação de redes e o espraiam ento das ideias ateístas, focando o público jovem .
A pesar disso, M ontero e D ullo (2014) escrevem que ainda há concepções de que a
posição ateísta perm anece invisível e, m ais do que isso, publicam ente indefensável até o
presente. E ntretanto, a diferença, é que as forças m ovidas para alterar essa situação visam
m udanças no próprio presente, o horizonte de expectativas está m ais próxim o. D arem os com o
exem plo disso u m a cam panha prom ovida por u m a organização de ateus, a A TEA . C om base
engenheiro D aniel Sottom aior, em 2008, tem com o um dos objetivos principais dar m ais
conjunto dos que declaram não ter religião, pautados na crença de que a afirm ação de si com o
“ ateu” ainda enfrenta forte preconceito por parte da população, sendo um a m inoria que sofre
P ara lid ar com o preconceito, a A ssociação idealizou u m a cam panha que buscava
posicionar-se publicam ente afirm ando que ser ateu faz da pessoa um alvo do preconceito.
M o n tero e D ullo (2014), alegam que a tentativa de p rom over a v eiculação da “bus cam paign”
no B rasil foi a prim eira proposta concreta de dar visibilidade pública à organização. D e acordo
com eles, o presidente da associação, D aniel Sottom aior, a cam panha inglesa o inspirou e o fez
com preender a im portância de realizar algo sim ilar no B rasil para com bater o que ele descreve
com o o “ arraigado preconceito antiateu” . A cam panha consistiu na seleção de quatro im agens
com respectivos slogans que seriam expostas em ônibus e teoricam ente prom overiam um a
D e acordo com a A TEA , o objetivo principal da cam panha era lutar por um E stado
v erdadeiram ente laico e pelo reconhecim ento dos descrentes com o cidadãos plenos. A
cam panha não deu certo, m as nossa intenção ao citá-la é m ostrar a pretensão dos ateus de agir
caixão que agia no presente com pretensão de m udanças futuras. C oncluindo, após todo o
v er a m udança da experiência que a sociedade teve p ara com o ateísm o, conseguindo encaixar
512
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513
HOMERO ENTRE HUMANISTAS:
A PRIMEIRA VERSÃO LATINA DA ILÍADA (1365)
L U ÍS A N D R É N E P O M U C E N O 248
1. H is tó ric o de u m m a n u s c rito
quase 25 anos, o encontro de 1359, em M ilão, parece ter adquirido um significado definitivo
para os destinos do H um anism o, já que n aquela oportunidade, os dois hom ens de letras de m aior
v u lto da Itália projetavam ju n to s a tradução latina integral dos poem as de H om ero, trabalho
adm irável e am bicioso que ficaria a cargo de L eonzio P ilato, calabrês de origem bizantina, então
pouco conhecido dos dois e com pletam ente inexpressivo no cenário intelectual europeu
deve ter estado em pauta no encontro de 1359 depreende-se pela correspondência petrarquiana
O referido encontro de 1359, não bastasse o projeto de trad u ção de H om ero, rendeu
outras discussões fundam entais para o H um anism o nascente: se em 1351, P etrarca havia aberto
as portas de sua biblioteca (em raro m om ento) ao am igo florentino que conhecera recentem ente,
definiram rum os para a R enascença, o nom e de L eonzio P ilato deve te r sido m encionado
diversas vezes, com o ú n ica possibilidade para a execução do projeto de tradução. O plano era
difícil, dependia exclusivam ente da b o a vontade e disposição de L eonzio que, ao que tudo
A prim eira ideia de se te r em m ãos u m a tradução latina com pleta da Ilíada e da Odisseia
teve ter partido inicialm ente de Petrarca, consciente que estava de que H om ero era o pai da
poesia ocidental. U m pequeno libelo que, j á na Idade M éd ia circulava sob o nom e de H om ero,
cham ado Ilias latina - que Sabbadini (1996) atribui a autores inexpressivos - P etrarca ju lg o u -
que definitivam ente não poderia ser de H om ero, conform e se atesta na Fam. X X IV 12. D iante
disso, e seguindo a orientação de Sabbadini, todas as vezes que se m enciona diretam ente a obra
de H om ero na Idade M édia, deve-se lem brar que a Ilias latina serviu com o m odelo ú n ico para
248 Universidade Federal de Viçosa/ campus Rio Paranaíba. Doutor em Teoria e História pela UNICAMP, com
pós-doutoramento pela mesma instituição.
514
os que acreditavam estar diante dos originais hom éricos traduzidos. Isso quer dizer que, entre a
princípio s do H um anism o, H om ero não foi lido diretam ente, exceto em terras bizantinas, senão
po r vias indiretas e sinuosas, em com pilações sobre os m itos de Troia, ou em poem as im itativos
de com pilações antigas, po r vezes com m ínim as relações com a obra do poeta grego. C onform e
esclarece V idal-N aquet (2002, p. 21), “ após a queda do Im pério R om ano, o núm ero de pessoas
que sabiam ler grego se reduziu pouco a pouco até tornar-se ínfim o” . E m vista disso, o vulto de
M as a “ prim eira ideia” petrarquiana de ter em m ãos a trad u ção latina de H om ero não
lhe surgiu dos debates com B occaccio em 1359, porém po r m eio de interesses antigos, que
rem ontam a pelo m enos 11 anos antes. Sabe-se que o hum anista pedia aos am igos m ais distantes
que, onde quer que fossem , enviassem a ele o m aior núm ero possível de m anuscritos de autores
diversos, o que lhe rendeu a honra de u m a b ib lioteca considerável em seu tem po. A ssim sendo,
P etrarca encontrou-se com N ico la Sigero, em b aix ad o r do alto escalão da corte de B izâncio,
enviado em 1348, pelo im perador João C antacuzeno, a A vignon, para um a m issão diplom ática
ju nto ao papa C lem ente VI, com um a proposta de unificação das Igrejas ro m an a e grega
não soubesse lê-los, ainda que, àquele m om ento, se esforçasse po r aprender a língua de H om ero,
com o m onge B arlaam , com quem vinha tendo lições desde 1341, sem grandes frutos.
E m dezem bro de 1358, em P ádua, P etrarca conheceu L eonzio Pilato, por interm édio de
um ju rista não identificado. T ratava-se de um raro helenista no norte da Itália do séc. X IV que,
com o bem define P ertusi (1979, p. 14), “poteva a q u e ll’epoca leggere e com prendere cosi bene
O m ero e citarlo con tan ta sicurezza, codice greco alla m ano, in u n a discussione g iuridica in
trib u n ale” . O encontro rendeu frutos para o hum anista que j á não acreditava m uito na
possibilidade de acesso à rara docum entação das letras gregas. L eonzio confiou-lhe, com o
presente, um a cópia de sua tradução latina dos cinco prim eiros cantos da Ilíada que, por tem pos,
antes da tradução integral, P etrarca irá cham ar de prima translatio, e que será incorporada com
prim eira vez que P etrarca lia efetivam ente um tex to hom érico, novidade que seria partilh ad a
com B occaccio, tam bém este ávido po r acesso aos poem as do pai do O cidente.
B o ccaccio o projeto decisivo e am bicioso da trad u ção integral, satisfeito que estava o p rim eiro
com o sabor que a prima translatio lhe antecipara. O s dois parecem te r feito planos estratégicos.
B o ccaccio alim entou a possibilidade de se criar u m a cátedra de língua e cultura grega na recém -
515
fundada U niversidade de Florença, com a in ten ção de levar L eonzio a ocupar o cargo. A s coisas
cam inharam com agilidade: no ano seguinte, 1360, o calabrês j á estava em Florença, com o
hóspede de B occaccio, m inistrando o curso solicitado, num a prim eira tentativa original e
ousada de difusão das letras gregas na E u ro p a do fim da Idade M édia, fato que só terá
repercussões tardias, inicialm ente por causa da indisposição e da conduta tem peram ental de
L eonzio, e em segundo lugar, po r causa de sua m orte em 1365. A convivência com L eonzio
P ilato deve ter sido das m ais difíceis: inexpressivo que era no m eio intelectual da E uropa, o
tra d u to r precisou do apoio dos grandes. N o lhac (1965, p. 20) é levado a crer que tanto P etrarca
quanto B occaccio tiveram seus sacrifícios financeiros para m an ter o tradutor, que foi m al
casa, e até P etrarca o fará posteriorm ente, em V eneza, para que L eonzio concluísse a obra tão
alm ejada.
nesse m eio tem po, as relações com P etrarca se tornaram m ais difíceis. A pesar dos conflitos
entre os personagens desse curioso dram a, pode-se p erceb er o andam ento contínuo do trabalho.
A m orte súbita de L eonzio P ilato em 1365 não im pediu que o projeto de tradução latina dos
poem as hom éricos ficasse concluído. A ju lg a r pela cronologia de W ilkins (1960), P etrarca já
tin h a os m anuscritos em m ãos em 1366, p ortanto disponíveis para novas cópias. P ara ele, a
de H om ero era fato profundam ente novo. P o r infelicidade, vin h a-lh e tardiam ente, o suficiente
para que a m orte o im pedisse de ler to d a a Odisseia, j á que apenas o m anuscrito da Ilíada foi
lido integralm ente. A pesar disso, o projeto de tradução ainda foi capaz de alterar sensivelm ente
particularm ente decisivo para determ inar a essência do H um anism o renascentista. Suas lições
em bora - de u m a difusão m ais intensa dos estudos helenistas no séc. XV. D epois dele, as
atividades do em inente erudito b izantino M anuel C hrysoloras, na F lorença do fim do séc. XIV,
parecem ter tid o m aior im pacto. C om o esclarece K risteller (1999, p. 163), “ A fter 1400, G reek
in struction w as m ore or less continuously available at m any Italian universities, and after the
m iddle o f the fifteenth century, the study o f G reek began to spread to the other W estern
countries” . O s estudos de grego acabaram se ex p andindo pela Itália, seja com a vin d a de
intelectuais bizantinos, com a to m ad a de C onstantinopla pelos turcos, seja com a ida de eruditos
europeus - italianos, sobretudo - às terras bizantinas. K risteller ainda esclarece que se a difusão
516
da cultura grega (língua, literatura, filosofia) não foi m érito exclusivo do H um anism o, pois que
o próprio Im pério B izantino j á tom ara conhecim ento das letras gregas na Idade M édia, foi
apenas com os intelectuais hum anistas que a cultura grega foi trazid a à m odernidade, à luz de
num a espécie de reinvenção do universo clássico grego (K R IST E L L E R , 1961, pp. 17-18).
L eonzio Pilato, com o p rofessor e tradutor, as portas foram abertas às letras gregas, p elo m enos
na Itália. Só no caso de H om ero, P ertusi (1979, p. 522-529) m enciona nada m enos que 48
traduções da Ilíada e da Odisseia, até o séc. X V III. A lguns dos m ais im portantes eruditos
hum anistas da g eração p ó s-petrarquiana estiveram envolvidos com estudos de grego, alguns
com o tradutores, filólogos ou exegetas: L eonardo B runi, G uarini, Francesco Filelfo, L orenzo
latino da Ilíada que pertenceu a Petrarca, tendo-as com o o prim eiro grande docum ento da
preciso lem brar que os exercícios de interpretação de P etrarca à Ilíada dependem razoavelm ente
de indicações prévias feitas pelo próprio L eonzio, a que B occaccio teve acesso, seja po r m eio
do m anuscrito original, seja p elo contato direto com o tradutor, inclusive para a com posição de
suas Genealogiae deorum gentilium. C um pre esclarecer ainda que as considerações de Petrarca,
u m a vez dependentes dos estudos prévios de L eonzio, acabam adquirindo as feições das leituras
do tradutor, m uito em bora sua grande riqueza consista ju stam en te no m érito inovador de
P etrarca de com preender o texto clássico e adequá-lo a novas possibilidades de seu tem po.
pergam inho com 241 folhas (recto e verso), de 32,5 x 19,5 cm, referente aos anos de 1367-68,
e pertenceu ao acervo pessoal de Petrarca, com pondo tem porariam ente o inv en tário da
B ib lio teca do castelo de P avia (entre 1390-1499), antes de fazer parte do acervo da B iblioteca
N acional de Paris. O m anuscrito contém apostilas abundantes de P etrarca, tan to nas entrelinhas,
quanto nas extrem idades direita e esquerda, o que deve eq u iv aler a m ais de 6700 notas,
deixando patente a acuidade disciplinada com que P etrarca leu o texto, em cada um a de suas
páginas. O códice 7880.1 foi publicado recentem ente, por iniciativa do filólogo T iziano R ossi
(2003), seguindo os critérios do códice original, de tal form a que a tipografia m oderna
517
reconstitua ipsis verbis o texto de L eonzio, bem com o as anotações integrais de P etrarca e os
P o r tem pos, a trad u ção de L eonzio foi sem pre tid a com o frágil, sobretudo em seus
aspectos estilísticos. A opção por u m a linguagem linear e literal, certam ente a m enos perigosa
n aquela circunstância ousada, desagradou os retóricos e hum anistas de seu século e do século
posterior, a co m eçar pelo próprio Petrarca, que se viu dividido entre louvor e crítica. Já estava
na própria essência da retórica hum anista do séc. X V a avidez pela reconstrução de um latim
L eonzio deve te r soado b árb ara aos ouvidos de alguns que lhe sucederam , aptos que estavam a
O m anuscrito da Ilíada adquire um relevo especial, p ara não dizer tam bém único, por
m arginais do m estre hum anista é u m a aventura adm irável, porque ali P etrarca parece revelar
aspectos de sua intim idade, à m edida que vai buscando possibilidades interpretativas ao poem a
possíveis lucros conceituais para o H um anism o nascente. Sua marginalia consiste nos m ais
diversos tipos de observação, desde as notas de caráter puram ente linguístico, até as de m aior
fôlego, em que ele oferece interpretações pessoais, inform ações históricas e m itológicas,
passando po r com entários de v alo r estritam ente subjetivo, em que a p oesia de H om ero se
E ste trabalho procura fazer um levantam ento tem ático das notas petrarquianas e separá-
las conform e essas m esm as tem áticas já previam ente desenvolvidas nas obras do autor. É certo
que essa separação pode p arecer po r vezes insuficiente, dada a com plexidade de algum as
observações m arginais do m anuscrito, que m isturam , po r exem plo, o problem a filológico com
a dim ensão política. O volum e excessivo de apostilas denuncia um a leitura atenta e um olhar
rigoroso e severo sobre o in tento de L eonzio Pilato. Seja pelo acesso inicial entusiástico à prima
translatio, seja porque o cansaço tom ou as forças do apostilador, fato é que, à m edida que se
avança pelo m anuscrito, as notas se tornam m ais curtas, e as pesquisas históricas e m itológicas,
m enos intensas. U m grande volum e de anotações de v alo r político e m oral concentra-se nos
cinco prim eiros cantos, portanto na prima translatio, a que P etrarca tiv era acesso desde 1358,
quando de seu prim eiro encontro com L eonzio, em Pádua, m esm o que a tradução desses cantos
ten h a sido m odificada. O utro volum e significativo de notas se estende até os cantos X V e X V I,
quando os com entários passam a assum ir então um caráter m ais exclusivam ente linguístico.
518
a) N o ta s de n a tu r e z a g ra m a tic a l, filo ló g ica e e stilístic a
P etrarca foi, antes de tudo, um hum anista, o profissional dos studia humanitatis,
defensor da poesia, da retórica e da filologia, em detrim ento dos estudos escolásticos e das artes
m ecânicas, que ele tanto criticou. Seu prim eiro olhar sobre a tradução latina de L eonzio recai
inevitavelm ente sobre o problem a do estilo, ainda que j á estivesse consciente das lim itações do
tradutor. P o r isso, a im ensa m aioria de suas m ais de 6700 notas pontua problem as de gram ática
e estilística da língua latina. E m grande parte delas, preocupa-se com a dim ensão classicizante
m edieval. N a f. 143v, po r exem plo, correspondente ao canto XV, em m om ento em que A polo
faz ru ir o m uro dos aqueus, P etrarca sugere que se substitua o verbo ruinavit po r diruit, na
expressão ruinavitque murum aquivorum, pela inadequada proxim idade do prim eiro verbo com
o latim v ulgar m edieval. N a f. 94r, relativa ao canto X, para outro exem plo, sugere que se
substitua adiungat po r attingat, acrescentando o com entário: etpersepe hoc verbo usus est Leo.
in sistir em m atéria m enos determ inante para os objetivos deste ensaio, que deverá se concentrar
m uito m ais nos aspectos m orais e políticos da marginalia petrarquiana do m anuscrito. Será
tare fa para filólogos rastrear esse im enso universo de com entários de natureza gram atical,
filológica e estilística que, apesar do volum e, parece m enos valioso para se buscar aquela
b ) N o ta s q u e se c a ra c te r iz a m com o e stu d o s
A s lições de língua e cultura grega que L eonzio m inistrou em Florença, ainda que breves
e m al recebidas pela com unidade universitária, parece ter tido repercussões valiosas, pelo
m enos para P etrarca e m ais ainda para B occaccio, os quais estiveram atentos àquilo que o
calabrês tin h a para lhes oferecer. P etrarca m ostra-se curioso e ávido po r conhecim entos novos
que extrapolem os lim ites do m anuscrito, ou seja, que não estejam explicitados no texto de
H om ero. A Ilíada trazia inform ações dem ais, na verdade, um turbilhão de nom es pessoais,
geográficos e m itológicos, que pelo m enos para o séc. X IV , era um universo profundam ente
novo, j á que o conhecim ento de textos gregos, inclusive para in telectu ais de m aior porte, só
pod eria v ir por cam inhos indiretos, po r m eio de citações dos autores latinos.
519
A lgum as notas m arginais de P etrarca no m anuscrito 7880.1 m ostram que o apostilador
tin h a em m ãos (por vezes na m em ória) um corpo de tex to s latinos, que vai da B íb lia aos m estres
da retórica clássica, e que lhe serviu com o suporte para pesquisas diversas sobre cultura grega,
afora as interlocuções viva voce com L eonzio Pilato. C ícero, Isidoro de Sevilha, T ito Lívio,
M acróbio, P línio, Sêneca, Juvenal - autores que com põem a base de sua biblioteca - estão vez
ou outra disponíveis para esclarecim entos sobre nom es próprios m encionados na Ilíada.
U m a nota estam pada na f. 24v, po r exem plo, referente a um a m enção que H om ero faz
aos pigm eus, no canto III, rev ela um P etrarca atento a questões históricas e geográficas, no
sentido de evidenciar a com preensão dos m itos. F undam entou-se em P lín io (História natural)
e Isidoro (Etimologias), p ara esclarecer a origem e a natureza dos pigm eus: pigmei cubitales
sunt. ut fam a est. sive ut dicunt alij pedales. habitare feruntur in superioribus egipti circa
occeanum. A notações razoavelm ente longas, sobretudo contidas nos prim eiros cinco cantos,
igualm ente revelam um apostilador paciente e disposto à pesquisa exaustiva. A p en as no canto
I, po r exem plo, P etrarca pesquisa a identidade do sacerdote Crises, pai de C riseida, a escrava
roubada de A quiles (f. 1r ); o nom e da ilha de Cila, que ele identifica com o espaço do tem plo
de A polo (f. 1v); o nom e de um a estrela ven erad a pelos pro fetas egípcios (em nota im ensa na f.
1v); as artes m édicas e astrológicas de A quiles (f. 1v e f. 7r); os instrum entos utilizados pelos
gregos em sacrifícios de anim ais (f. 7v); além de inúm eras outras pesquisas sobre deuses
m itológicos, sobre fábulas diversas, fundam entadas em seus conhecidos clássicos latinos.
c) N o ta s de v a lo r p esso al
retórica latina, a ponto de escrever-lhes cartas, em que o tom da interlocução jam ais assum ia o
caráter de um a recepção da verdade, o que contrariou essencialm ente a base do pensam ento
N u m a de suas m ais polêm icas invectivas, o De sui ipsius et multorum ignorantia, o hum anista
E foi assim que P etrarca recebeu os m anuscritos hom éricos, disposto a v er neles um
ponto referencial de interlocução. E m suas anotações ao texto, fez questão de dialogar com o
autor da Ilíada , com o se este fosse um seu contem porâneo, não apenas p o r causa dessa sua
visão ino v ad o ra dos clássicos, m as porque, na verdade, H om ero acabava de sair da form a, era
520
m odelo inteiram ente novo para a Idade M édia. N esse seu diálogo inaugural com H om ero,
P etrarca m istura seus valores pessoais aos do poeta grego, n a ten tativ a de adequá-los a seus
próprios interesses, quase a to rn ar o autor da Ilíada um hum anista estoico do Trecento italiano.
P ara um exem plo m ais sim ples, veja-se u m a anotação excessivam ente pessoal, contida
na f. 43r, no canto V, em que L icaônio n arra a E neias as tentativas frustradas de com bater o
v alente D iom edes que, àquele m om ento, fazia resistência furiosa ao exército troiano. A
sentença final de L icaônio, que L eonzio P ilato traduz por vana enim me sequuntur249, e que
m ostra a triste constatação dos inúteis trabalhos do guerreiro troiano, servem com o pretexto
para que P etrarca pense igualm ente a inutilidade e a vaidade de seus próprios esforços (nesse
caso, intelectuais, é claro), na observação: vanitates mee. vanum studium. vana ars. T rata-se de
raro m om ento em que P etrarca, quase num desabafo, adm ite o despropósito de sua vaidade,
superficialm ente j á confessada em cartas, bem com o a sensação am arga de que a arte e os
pelos problem as de seu tem po, a ponto de acreditar que H om ero lhe será um interlocutor
com preensivo, apto a o ferecer soluções. H á ali m om entos em que P e tra rca expõe suas
divergências com o espírito escolástico e com o m étodo dialético, ainda predom inantes nas
m anuscrito em análise, P etrarca faz observações de v alo r estritam ente subjetivo, quando lem bra
referente ao canto II, em que N e sto r e A gam êm non fazem rixas com palavras e divergem sobre
os planos de ataque aos troianos, depois do sonho p seu doprofético do segundo, P etrarca
acrescenta a seguinte nota longa, que reproduzo em parte: quasi dicat non iterum et sepius
teramus tempus in verbis. sed procedamus ad factum. Já na f. 15r, relativa ao m esm o fato,
reproduzia um verso significativo, presente na prima translatio, que L eonzio m odificara na sua
trad u ção nova: vane autem verbis litigamus non autem finem invenirepossumus multo tempore
hic existentes. N a f. 98r, referente ao canto XI, num a forte cena em que H om ero descreve a
deusa D iscórdia, com o a ú n ica que reinava entre os hom ens, num m om ento sangrento de
batalha, P etrarca faz a anotação: quasi dicat non doli. non insidie. non ars ulla. sed lis tantum.
et ira. et discordia et simplex bellum, que poderia assum ir qualquer acepção filosoficam ente
abstrata, caso não conhecéssem os a rixa de P etrarca com as “ disputas e discórdias d ialéticas” .
diz respeito às notas de v alo r pessoal, é a id entificação que P e tra rca faz entre si e o sofrim ento 249
249 Haroldo de Campos (2001, vol. 1) propõe: “como o vento vão seguiu-me”.
521
de A quiles, no canto I, quando o herói se sente lesado com o roubo de sua escrava e am ante
B riseide por A gam êm non que, por sua vez, fora forçado a entregar C riseida. A quiles, nos versos
149-171, faz o discurso da ju stiça , queixa-se de que os espólios de A gam êm non são sem pre
m aiores e m ais ricos, em bora lute m enos e, po r fim , expõe sua ira (que inicialm ente advém de
u m a injustiça) e anuncia que irá abandonar a guerra. A o final, ressalta que sua grande lu ta acaba
resultando sem pre em prêm ios que lhe vêm pelo esforço e pelos m éritos, m as que lhe são
roubados. O discurso parece te r com ovido o lado estoico e hum anista de P etrarca, que pondera
observações com oventes, denunciando o ato desonesto da rescisão do que antes fora d ecretado:
rescindere que decreta sunt semel. Auferre qua data sunt meritis (f. 2v). P ouco depois, em enda
u m a n o ta ao discurso de A quiles, lam entando o prêm io m edíocre concedido a grandes m éritos:
quasi dicatpro magnis meritis parvum munus. P o r fim , a identificação pessoal, curiosam ente
na prim eira pessoa, reconstrói a ideia do indivíduo que supera o outro em trabalho e que po r ele
é superado em prêm io: ego enim te labore tu me premio superas. A m elancólica identificação
com A quiles, que m uito fez pelos gregos e que por eles foi injustiçado, rem ete a um P etrarca
decepcionado e indisposto com seu próprio tem po, injuriado diante das dificuldades de ser poeta
d) N o ta s de v a lo r exegético
P etrarca sem pre definiu a p oesia por um a espécie de fábula alegórica, a que o leito r deve
te r acesso, po r m eio de um a habilidade interpretativa, conform e ele m esm o dem onstrou em sua
carta Sen. IV 5, ao poeta F ederigo A retino (PE T R A R C A , 1992, vo1. 1, p. 139-151), que
de que a épica v irgiliana é um com posto de alegorias com intenções m oralizantes, P etrarca
propõe, por exem plo, que na prim eira cena do poem a, os v en to s que assolam as em barcações
de E neias sejam com preendidos com o os im pulsos de desejo e ira, ou com o as em oções que
habitam o coração dos hom ens, perturbando-lhes a serenidade da vida. E m ais: que o que se diz
de V irgílio servirá tam bém para H om ero, porque am bos trilham os m esm os cam inhos de poesia.
P ara um exem plo das interpretações petrarquianas do poem a hom érico, sobretudo num a
visão n aturalista e racionalista, ten dendo à alegorização, ten h a-se em m ente u m a curiosa nota
sua na f. 65v, referente ao canto VII, em que A polo protege H eitor, quando de um ataque de
Á jax. A cena do auxílio divino de A polo é brevíssim a, ocupa espaço reduzido na descrição de
H om ero, m as P etrarca a destaca com o m atéria fecunda de interpretação dos m itos, no caso o
m ito de A polo, com o alegoria do sol. E sclarece o apostilador que, quando se diz que A polo
522
ajudou H eitor, é porque o sol feriu os olhos de Á jax, im pedindo-o ao m esm o tem po de assistir
à queda de seu inim igo: quod hic de Apolline dicitur quidam sic accipiunt ut vergente ad
occasum sole et radij Aiacis oculos ferientibus. casum hectoris non videns. spatim illi dederit
resurgendi. Alij autem Hectorem in ortu solem habuisse. ita dispositum. ut ex vi constellationis
mori tunc non posset. Astrologorum nuge veteres. A anotação é extrem am ente reveladora,
porque, além de expor a visão naturalista e alegórica do m ito, de form a ousada, condena de
passagem as crenças de astrólogos que casualm ente poderiam se pro p o r a análises equivocadas
e) N o ta s de v a lo r relig io so
P etrarca passou grande parte de sua vida num a tentativa exasperada de conciliar a ética
cristã com os m odelos estéticos da A ntiguidade, e é possível que, j á no séc. XIV, fosse capaz
considerasse C ristianism o e poesia clássica latina coisas distintas. P elo m enos é o que ele nos
faz crer, por exem plo, em sua tão com entada carta Fam. X X II 10, ao am igo F rancesco N elli,
em que afirm a que, num a certa idade da vida, chegara-lhe o tem po de se dedicar às coisas sérias
e à salvação, m ais do que à eloquência; e que, então, nesse tem po, seus oradores to rn aram -se
A m brósio e A gostinho, Jerônim o e G regório, seu filósofo tornou-se Paulo, e seu poeta, D avi.
D e qualquer form a, ainda que a Fam. X X II 10 seja em parte ficção e retórica, P etrarca
deu m ostras de um dram a pessoal, em exercícios de conciliação da ética cristã com a estética
próxim a da prim eira. S u a recepção de H om ero p artiu igualm ente de um exercício com o esse, e
fáceis. M as tam bém não era tarefa nova: Sêneca, V irgílio e m esm o C ícero já haviam sido
trazidos a esse exercício de cristianização por parte de autores m edievais e hum anistas, P etrarca
entre eles.
O caráter terrivelm ente hum ano, po r vezes lascivo, dos deuses gregos p arece ter
incom odado os autores cristãos que tentaram adequá-los a um a m oral específica. P ara apenas
um exem plo, na divertida cena do canto X IV da Ilíada, em que Z eus é seduzido po r sua m ulher
H era, que pretende adorm ecê-lo, para assum ir ela m esm a o controle da guerra de Troia,
multe. pulcer deus insanorum. N um verso do in ício do canto IV, em que se m enciona a beleza
de P alas A tena, o apostilador volta a m en cio n ar os perigos da sedução e do belo erotizado,
lem brando e condenando o artifício encantador e atraente das esculturas de deusas gregas:
ydolum artificiose sculptum letitiamque oculis afferens. ideo dicitur pallas Agalcomenis. idest
pulcra et ornata. et letitiam prebens (f. 31v). M as o próprio Zeus, que fo ra censurado no canto
X IV , pela lascívia, servirá com o m etáfora da grandeza do D eus cristão, num a nota que P etrarca
faz a um discurso de N estor, sobre a p o tência de Z eus que em m uito excede a vontade dos
hom ens. À fala do ancião grego, o ap ostilador em enda um a convicção subjetivam ente cristã:
non resistat homo mortalis deo. quia multo potentior deus est homine (f. 71 r). E feito igual irá
se rep etir num a outra nota da f. 76r, referente a um discurso do m esm o Z eus que, diante da
cólera de sua m u lh er H era, antecipa o inevitável destino dos hom ens po r ele traçado (Ilíada,
VIII, 470-484). O poder da palavra de Zeus, que fala um a vez só e que traça com consciência
divina os rum os da vid a hum ana, ofereceu a P etrarca um pretexto de m atéria religiosa que, em
nota m arginal, distanciou-se de H om ero, para lem brar o “peso grave e im utável” das palavras
santas de nosso D eus cristão: semel locutos [sic] est deus. Grave et immutabile sanctispondus
f) N o ta s de v a lo r po lítico
A s notas m arginais de caráter político que P etrarca inseriu em seu m anuscrito da Ilíada
devem ser entendidas em função de suas próprias concepções adotadas nos anos anteriores,
vividos em M ilão, sobretudo quando de sua convivência com os V isconti, u m a das fam ílias de
m aio r poder político e b élico da Itália do séc. XIV. O hum anista esteve em M ilão entre 1353
suas anotações feitas no códice 7880.1, é possível p erceb er que P etrarca esteve atento à
dim ensão política do poem a, intuindo por vezes que a organização da pólis grega tin h a algo
V idal-N aquet (2002, p. 66-68) observa que a Ilíada não pode ser concebida sem um a
noção de organização social, política e dem ocrática da G récia de seu tem po, enfim , sem um a
noção de pólis , j á que H om ero, em bora esteja relatando fatos lendários m uito anteriores a seu
tem po, constrói um m odelo concebível para a sua p rópria época, quando, desaparecida a
524
m on arq u ia das cidades gregas, j á se fundavam os conceitos de dem o cracia250. A construção de
um ideal político atribuído aos gregos, na Ilíada, é m ais com plexa do que parece, porque
curiosam ente os troianos, p elo m enos na n arrativa hom érica, têm m aior unidade po lítica e
m oral, inclusive traçad a e bem definida por um valor pátrio, nacionalista e fam iliar, e po r um a
concepção de bem social. E ntre os gregos, a discórdia é m ais visível, chega a lev á-lo s quase a
u m a guerra civil, sobretudo a partir do desentendim ento entre A quiles e A gam êm non, o que
tem levado leitores a acreditar que H om ero estaria secretam ente do lado dos troianos. A
organização destes, afora um a ou outra discussão entre H eitor e Páris, leva-nos a u m a sensação
de equilíbrio e ordem social, e à m edida que se avança na história, p erceb e-se um a natureza
com ovente dos troianos, dispostos à proteção das fam ílias e dos bens públicos.
N o entanto, os gregos estão im buídos de um v alo r político a que poucos têm dado
atenção, e que deve ter estado sob os olhos de P etrarca: o debate público e a arquitetura de
planos fundam entados em discussões dem ocráticas. O s gregos da Ilíada podem eventualm ente
m ilitar.
P etrarca elabora com entários bastante valiosos no âm bito da discussão p ú b lica entre os
gregos. N um diálogo entre A gam êm non e o D iom edes (canto IX), ju sta m e n te diante de um
conselho reunido, em que o prim eiro propõe a retirada do exército e o segundo discorda
radicalm ente, apesar de o outro ser o rei, a proposição de vozes m ú ltip las no âm bito da
argum entação pú b lica cham a a atenção de Petrarca, que lem bra que o bem se com preende
m elh o r na guerra, porque é ju sta m e n te na guerra que as vozes se confundem : bello bonus
intelligitur. quia in bello multe funduntur voces (f. 78r). M as a ousadia atribuída a D iom edes,
que se vê no direito de contestar o próprio rei, porque a dem ocracia lhe concede o m érito e a
sensatez do conselho o determ ina, tam bém despertou a atenção de P etrarca que, em no ta na
m esm a folha do m anuscrito, postula que, em assem bleias públicas, e apenas ali, é lícito dizer o
que se pensa, ainda que seja contra o rei, po r um direito de liberdade: rationabile est ut in
contione ubi de publico statu agitur quisque dicat libere quod sentit. etiam contra regem. quod
alibi non diceret. A liberdade de expressão e o direito de intervenções políticas estiveram entre
as grandes conquistas de P etrarca, que concedeu a si o m érito de dar conselhos a im peradores
e papas251.
250 Vidal-Naquet (2002) data os textos homéricos dos sécs. 9 e 8 AC., e a fixação desses textos, do séc. VI AC.
251 Lembrem-se, por exemplo, as 13 cartas familiares em que exorta o imperador Carlos IV a assumir o governo
de Roma; e a carta Sen. VII 1, ao papa Urbano V, em que o incita a trazer a sede da Igreja para Roma, e abandonar
Avignon.
525
E x em p lo do senso dem ocrático de P etrarca é um a defesa da liberdade co n tid a na
Invectiva contra quendam magni status hominem sed nullius scientie aut virtutis, contra um
certo Jean de C aram an, em que o hum anista, defendendo-se das acusações de viver sob a égide
da tirania dos V isconti em M ilão, propõe a vida m antida em d esprendim ento com o poder
público. D iz ele que está com os V isconti, m as não m ora com eles, habita o território deles, m as
não em suas casas, sugerindo que se dá o direito, a qualquer m om ento, de discordar da política
g) N o ta s de v a lo r m o ra l
E m geral, P etrarca absorve os versos da Ilíada com o form a de b u scar ali alguns valores
que lhe são caros, com o o elogio da honra e da virtude, o controle das paixões, o respeito a um a
ordem social hierárquica, o espírito nacionalista, a condenação dos vícios e a apologia de certos
sabedoria. É difícil ler as narrativas do O lim po e da guerra de T roia sob esse enfoque. D e
qualquer form a, o exercício de leitura que faz P etrarca parte de considerações assim , com o não
pod eria deixar de ser. P ara um exem plo, veja-se um a nota contida na f. 87r, em que o apostilador
para a revisão de seus erros. N o trecho, a em baixada que A gam êm non enviara a A quiles para
convencê-lo a v o ltar à guerra desiste de seu intento, dado o rancor incisivo do grande herói, e
Á jax lam enta o fato, dizendo que o triste A quiles escondeu no peito o espírito agreste e
m agnânim o252. P etrarca, vez ou outra, reprova a ira e a m ágoa de A quiles e, diante da
consideração de Á jax, com pleta que triste é aquele que age contra sua própria honra, m esm o
que seja rei: Miser est quisquis contra suum decus facit. etsi rex sit. M as po r honra, P etrarca
entende o conceito latino de virtus. A quiles não age contra sua própria honra, m as torna-se
miser pelas atitudes incom patíveis (aos olhos do estoicism o) com a tranquilidade da alm a. O
etsi rex sit do com entário de P etrarca revela ainda sua intenção de atribuir à honra e à virtude
valores m ais definitivos que a p rópria nobreza, seguindo u m a convicção senequiana sua, porém
O utras notas de v alo r estoico se espalham pelo texto, atribuindo a passagens do poem a
h om érico conteúdos que transcendem as suas intenções. N a ú ltim a cena do canto I, em que
H efesto consola a m ãe H era que se sente u ltrajad a pelos desm andos do m arido Zeus, e lhe pede
252 Leonzio Pilato traduz o verso por sed Achilles agrestem in pectoribus posuit magnanimum animum/ miser (f.
87r). A tradução de Haroldo de Campos (p. 365) diz: “Aquiles, no peito/ asselvajou seu coração de grande ânimo”.
526
paciência para suportar o fato, P etrarca extrai desse conselho o m áxim o v alo r da paciência (tão
recom endada pelos estoicos em suas consolatórias, e a que o próprio P etrarca se dedicara,
especialm ente no livro II das Familiares), e p o stula a sentença: patientiam suadet. ubi
remedium aliudnon est (f. 9v). N um discurso do canto V, em que L icaônio confessa que, num a
estratégia de guerra, não deu ouvidos ao pai, ainda que a inform ação seja brevíssim a, o
ap ostilador não perdoa a desobediência: multo esset utiliuspatri auscultare. A condenação dos
prazeres vãos, tem a de que P etrarca se ocupara em inúm eras cartas, aparece aqui em suas
anotações, num a curiosa cena em que A frodite vocifera contra H elena, que considerou
v ergonhosa a decisão da deusa de salvar P áris no fatídico confronto contra M enelau. A frodite
(ou V ênus, p ara os latinos) am eaça abandonar a bela e v o luptuosa H elena, prom etendo-lhe o
ódio em vez do am or. D ecifrando a m atéria m ítica com seu m étodo naturalista, P etrarca
acrescenta, em nota na f. 30v, que para quem viveu nos prazeres, durante a ju v en tu d e, ser
abandonado po r V ênus na velhice é a m orte: his qui vitam omnem veneri ac libidinis dedicarunt
nichil gravius quam ab his relinqui quod maxime accidit senectude. et ideo senectus est mala
mors talium.
O utras notas que condenam vícios, a p artir do olhar estoico, surgem ao longo do poem a
hom érico. N o canto V, fala-se que D iom edes abateu inúm eros troianos, e que seus bens tocaram
que herdam grandes feitos sem m erecer: Nota hic. quia sic vadunt sepe hereditates mortalium.
lippos oculos in longinqua tendentium. N o fam oso episódio do canto II, em que O disseu
repreende Tersites, acusando-lhe de um desejo gratuito de difam ar os grandes, Petrarca,
certam ente pensando no episódio recente de sua p rópria difam ação pública por parte de quatro
acrescenta a nota, na f. 14v: pro delectatione sola obtrectandique libidine absque alia ratione
maledictis assuetus.
3. C o n s id e ra ç õ e s fin ais
fragm entário e inconcluso, form am po r si só quase um livro à parte, em que se pode rastrear
um conteúdo im enso de ideais hum anistas que, àquele m om ento, reascendiam as concepções
retóricas e m orais outrora vividas pelo classicism o latino. P o r causa do grande volum e de notas
à disposição, j á que o m anuscrito 7880.1 foi abundantem ente apostilado po r aquele a quem
pertenceu, este trabalho revela conceitos do universo petrarquiano, a partir dos com entários que
527
parecem m ais significativos. É preciso salientar que, por m ais que as apostilas tenham sido
escolhidas segundo critérios m etodológicos, é possível que a seleção ten h a caído em opções
pessoais, o que revela que outras notas não m encionadas aqui podem apresentar significados
O códice 7880.1 não é u m a estrela ú n ica que b rilh a no acervo pessoal de P etrarca. H á
pesquisas disciplinadas, leituras atentas, opções estilísticas e trabalhos filológicos. M as não será
tare fa para um único pesquisador. A considerar os lim ites deste trabalho, cum pre esclarecer que
a intenção aqui não é a da filologia (trabalho a que Pertusi já se dedicou), m as tão som ente o
objetivo da leitura histórica e filosófica de notas fragm entárias e im precisas que, no entanto,
R e fe rê n c ia s
528
W IL K IN S, E rn est H atch. Petrarch’s correspondence. Padova: A ntenore, 1960.
W IL K IN S, E rn est H atch. Petrarch’sEight Years inMilan. C am bridge, M A : T he M edieval
A cadem y o f A m erica, 1958.
529
O CINEMA EM SALA DE AULA E A HISTÓRIA: O CASO DO FILME
APOCALYPTO E OS POVOS AMERÍNDIOS ANTES DA CHEGADA
DOS EUROPEUS
L U IZ E D U A R D O P IN T O B A R R O S * 253
N os tem pos atuais um dos grandes desafios para p rofessores de H istória e das C iências
H um anas no geral em turm as do E nsino B ásico (F undam ental e M édio), incluindo a E ducação
de Jovens e A dultos, é trazer para a sala de aula tem as que envolvam o cotidiano de seus alunos.
Segundo L eandro K arnal “ quanto m ais o aluno sentir a história com o algo próxim o dele, m ais
terá vontade de interagir com ela, não com o u m a coisa externa, distante, m as com o um a prática
que ele se sentirá qualificado e inclinado a exercer” (K A R N A L , 2008, p. 28). O exem plo da
serve com o ponto de p artida para as dem ais disciplinas das C iências H um anas.
N este cenário, trab alh ar com tem áticas envolvendo as relaçõ es sociais de form a geral
no cotidiano são relevantes p ara alcançar o interesse dos alunos. Isto pode ser percebido no
apontam ento de Y ves de la T aille ao m encionar que no espaço escolar atual com pete
Fazer lembrar em alto e bom tom, a seus alunos e à sociedade como um todo, que sua
finalidade principal é a preparação para o exercício da cidadania. E, para ser cidadão,
são necessários sólidos conhecimentos, memória, respeito pelo espaço público, um
conjunto mínimo de normas de relações interpessoais, e diálogo franco entre olhares
éticos. (TAILLE, 2003)
in strum ento em sala de aula, pois os film es perm item ao indivíduo te r a sua p ercepção do
m undo. P ara G ualtarri, os sujeitos não são apenas afetados apenas pelos personagens e pela
h istória do film e, m as que há inúm eras outras intensidades que têm essa capacidade de afetar,
S endo assim , os códigos se em baraçam sem que nenhum jam a is consiga ser sobreposto em
relação aos dem ais, “ sem constituir ‘su b stân cia’ significante; passa-se, num vaivém contínuo,
prim as para o processo de subjetivação, não é fácil considerar o sujeito individual com o não
divisível. A subjetividade em tal situação não é passível de totalização, pois com partilha várias
intensidades e se produz em m eio aos m ais variados encontros sociais. E m função disso,
P ara B aduy, C arvalho e Passini “ ainda que exista a pretensão de definir o sujeito a partir
que o h abita em função de sua constituição no coletivo” (2015, p.394). N o fragm ento que segue,
D ian te das possibilidades que o cinem a propõe para interpretar as diferentes ações e
reações dos sujeitos, u tilizar film es em sala de aula com o um dos m eios de p rovocar reflexões
em b u sca de cam inhos para a cidadania é algo m ais do que relevante, sobretudo, no presente.
S endo assim , nos próxim os parágrafos apresentam os um m étodo, experim entado em sala de
aula com alunos do E nsino M édio regular e na E d ucação de Jovens e A dultos, palpável de ser
trab alh ad o utilizando dois film es sul-am ericanos com enredos que possibilitam várias reflexões
no âm bito histórico, social e psicológico e que, ao m esm o tem po, cham am a atenção para o
público b rasileiro (e o restante da A m érica L atina) pelo fato de existirem películas de grande
531
relevância produzidas em seu próprio país e nos países vizinhos, dem onstrando a possibilidade
de, pelo m enos de vez em quando, assistir algo diferente do consagrado e b ilionário cinem a
hollywoodiano .
M e to d o lo g ia de tr a b a lh o co m film es em s a la de a u la
U m dos autores b rasileiros na área das C iências H um anas que dedica seus trabalhos
sobre a u tilização de film es em sala de aula é o h istoriador M arcos N apolitano. P ara ele “ o
cinem a é o cam po no qual a estética, o lazer, a ideologia e os valores sociais m ais am plos são
sintetizados num a m esm a obra de arte. A ssim , dos m ais com erciais e descom prom etidos aos
m ais sofisticados e “ difíceis” , os film es tem sem pre u m a possibilidade para o trabalho na
P ara o docente que pretende trabalhar com determ inado film e em sala de aula, seria
interessante que ele assista a m esm a película pelo m enos três vezes para ficar atento ao co n teúdo
e os detalhes que a produção pode oferecer p ara discussão. A o m esm o tem p o é im portante ficar
atento aos m ateriais para transm issão do film e na escola, com o datashow , televisão, caixas-de-
planejam ento de aula para facilitar a realização das atividades (N A P O L IT A N O , 2009). C aso
não seja possível que os alunos assistam o film e inteiro no m esm o dia, o m esm o pode ser
term inado nas aulas seguintes. Isso não significa que a p elícu la possa ser utilizada, por exem plo,
nos cinquenta m inutos de aula. M as sim, em vinte ou trinta m inutos. D eixando o tem po restante
para preparação do equipam ento e conversa com os alunos sobre o conteúdo do film e que foi
N este artigo, a proposta é trab alh ar com um film e j á observado em sala de aula e que
diante de situações que desafiam a racionalidade e o com portam ento para o bom andam ento
Sendo assim , dialogar com os conceitos de “ certo ” e “errado” nas relações hum anas
perm item abordar a tem ática sobre a “É tica” e relacioná-la a ordem social que é form ada pelos
532
princípio s básicos de solidariedade, subsidiariedade e participação. E stes possibilitam a
A ntes da apresentação dos film es, o docente pode tratar de cada um dos princípios
subsidiariedade que estim ula cada indivíduo aplique os m eios possíveis a fim de contribuir para
a edificação da sociedade em que vive. E finalm ente a participação que perm ite a liberdade dos
A etapa seguinte seria u tilizar alguns casos p ráticos em que estes três princípios são
necessários, tendo com o exem plo: a lim peza das cidades; a p reservação do m eio am biente; o
respeito as pessoas m ais necessitadas a determ inados tipos de atendim ento (portadores de
n ecessidades especiais, idosos, m ulheres grávidas e outros casos); a im p o rtân cia da arrecadação
de im postos pelo E stado para atender as dem andas sociais e econôm icas do país; a harm onia
nas relações de trabalho e outros casos. A p artir destes exem plos, o docente pode provocar os
alunos a responderem em quais situações tais princípios não ocorrem e quais são as
consequências para o indivíduo em sociedade. Isto p ossibilitará as m ais diferentes respostas que
devem ser colocadas na lousa. A p artir delas, o docente deverá fo car naquelas que ele identificar
estarem presentes nos dois film es. O u seja, o que os conteúdos das películas apresentam com o
dinâm ica social. F eito isto, os alunos serão aconselhados a anotarem em seus cadernos,
com portam ento hum ano” . É um a m aneira de p o ssibilitar um debate produtivo quando o film e
term inarem de serem exibidos para os alunos. E, depois de um prazo para entrega, elaborar um
relatório sobre a tem ática trabalhada e com o foi observada ao assistirem os dois film es. É um a
m aneira de estim ular a prática da escrita discente. N os prim eiros parágrafos os alunos deverão
elem entos e finalm ente apresentarem um a conclusão individual pensando no b em -estar dos
indivíduos.
533
O s M a ia s
chegada de C ristóvão C olom bo. O s europeus não tinham conhecim ento sobre estes povos e
P esquisas arqueológicas apontam que por v o lta de 4.500 a.C ás práticas agrícolas já
estavam sendo consolidadas na A m érica. O cultivo de m ilho, pim então, abóbora, tom ate e feijão
era predom inante. T am bém foi nessa época que os grupos nôm ades se sedentarizaram e
form aram os prim eiros assentam entos do continente. C om o passar do tem po o crescim ento
sociedade chefiada por apenas um líder. A os poucos, diferentes civilizações foram consolidando
P esquisas apontam que os olm ecas deram origem as civilizações m esoam ericanas entre
1500 e 400 a.C. M as pouco se sabe sobre seus aspectos étnicos. A partir dos olm ecas surgiu a
civilização m aia que, p o r v o lta de 1800 a.C, iniciaram um processo de ocupação de quase 500
m il quilôm etros quadrados na península de Y acután, no sul do M éxico atual, e em áreas onde
A civilização m aia não chegou a te r um a capital que sim bolizava a centralização política.
N o entanto, foi com posta por várias cidades-estados. D o ponto de vista social, no topo da
pirâm ide ficavam o chefe de E stado e seus fam iliares. E le acum ulava as funções de líder m ilitar,
civil e religioso. A baixo vinha a no b reza que ocupava os principais cargos adm inistrativos,
m ilitares e religiosos. E m seguida vinham os com erciantes que tinham im portantes funções.
A baixo estavam guerreiros, artistas e artesãos. E na cam ada inferior os cam poneses e a população
pobre. N a base da p irâm ide social estavam os escravos que, em geral, eram prisioneiros de guerra.
A religião dos m aias era politeísta e diversos sacrifícios hum anos eram feitos aos deuses.
Inúm eros tem p lo s e santuários foram construídos para hom enagear as divindades. C haac, deus
da Chuva, Itzam N a, deus do céu e da terra, e Ixchel, deus da Lua, eram aqueles que sobressaiam .
sem entes de cacau com o m oeda, os m aias com ercializavam com outros produtos com o peles,
O utro aspecto da civilização m aia foi à dedicação à astronom ia que m edia com precisão
o ciclo do Sol, da L ua e de V ênus. Isto tam bém resultou na criação de dois calendários: um civil,
de 365 dias; e um ritual, de 260 dias. E les tam bém criaram um sistem a num érico que incluía o
534
N o cam po da arte os m aias faziam trabalhos com cerâm ica, esculturas de barro e pinturas
N o período de m aior esplendor da civilização m aia, entre 250 e 900 d.C, grandes avanços
que chegaram a abrigar cerca de 60 m il pessoas. O s principais centros urbanos conhecidos são
E tzn á e U xm al. N o prim eiro foi construído um sistem a de canais para captação da água pluvial.
Já o segundo teve seu espaço preenchido com a construção de um grande conjunto cerim onial.
não existia m ais. P ouco se sabe sobre as razões pelos quais entrou em declínio. P o r v o lta de 900,
a p enínsula de Y acatán sofreu invasões de outros povos p rom ovendo inúm eras transform ações
na região.
A p o c a ly p to
E ste ficou consagrado no cinem a m undial com o ator por p rotagonizar film es de grande sucesso
com o a trilogia M ad M ax, a quadrilogia M áquina M ortífera, e outros film es com o: Sinais (2002);
O Troco (1999); Do que as Mulheres Gostam (2000) e Coração Valente (1995). E ste últim o
inclusive dirigido por ele e v en ced o r do Ó scar de M elh o r F ilm e e M elh o r D ireção em 1996. M el
G ibson ganhou notoriedade, tam bém , po r dirigir outros film es de grande sucesso com ercial e de
crítica com o Até o Último Homem (2016), o anteriorm ente m encionado Coração Valente (1995)
O film e A pocalypto recebeu críticas positivas na época de seu lançam ento por críticos de
cinem a e teve grande aceitação do público. A rrecadou nas bilheterias internacionais um pouco
grande sucesso, houve quem acusasse o film e de racism o, entendendo que a cultura m aia é
representada de form a “inferior” e que não ocorreu precisão histórica. Isto porque, alguns
pesquisadores especialistas em povos m aias apontam que a prática do sacrifício era rara nesta
civilização. A ntropólogos que opinaram sobre o film e apontam que os sacrifícios eram m ais
com uns entre os povos A stecas. O pro fesso r de antropologia K arl T aube argum entou: "Nós
sabem os que os astecas fizeram esse nível de m atança. Suas contas falam de 20.000".
exem plo de película para ser utilizada em sala de aula nas aulas de H istória. O autor deste artigo
535
teve a oportunidade de apresentar este film e para seus alunos de tu rm as dos 7° anos do E nsino
Fundam ental em u m a escola estadual e para alunos do 2° ano do E nsino M édio de um Instituto
Federal. A experiencia docente p erceb ia que a tem ática sobre os povos am eríndios, antes da
chegada dos europeus, no currículo não cham aria a atenção dos alunos. M as a possibilidade de
trab alh ar com o cinem a perm itiu que o film e fosse um instrum ento que cham asse a atenção dos
discentes. E podem os elencar aqui três m otivos: a ação, o suspense e o estranham ento. A s cenas
de ação colocam o espectador num a sensação de agonia, com o se tudo fosse dar errado. O
suspense, pois sendo um film e de 138 m inutos, ele pode ser passado em quatro aulas e sendo
pausado nos m om entos que o espectador está disposto a saber o que vai acontecer na cena
seguinte. C om o se fosse u m a série em tem pos de streaming. E finalm ente o estranham ento ao ter
contato com um a cultura distinta v ivenciada pelo espectador. A co m eçar pela língua. O film e é
legendado e falado com a língua m aia. A lém de todos estes elem entos, o film e possibilita tratar
de outros tem as com o: fam ília; religião; em patia; conflitos sociais e tradição cultural.
D urante a passagem do film e nas turm as de E n sin o Fundam ental e E nsino M édio, o
p rofessor estim ulou os alunos a debaterem sobre os acontecim entos e a suas im pressões. A
curiosidade discente foi m anifestada em to d as as aulas. O que dem onstra o potencial que o
É im portante acrescentar que o docente deixou claro que o film e era um recorte sobre o
M aias, a fim de diferenciá-los dos A stecas. E serviu de estím ulo para estudar os Incas, o conteúdo
seguinte.
O final do film e causou p olêm ica entre m uitos estudiosos do tem a. O significado tem ático
da chegada dos europeus é um assunto de desacordo e controvérsia. Traci A rdren (2006) escreveu
que os visitantes espanhóis eram m issionários cristãos e que o film e tin h a um a "m ensagem
flagrantem ente colonial de que os m aias precisavam ser salvos porque estavam 'podres por
dentro'". P o r outro lado, D avid van B iem (2006) questiona se os espanhóis são retratados com o
salvadores dos m aias, um a vez que são retratados de form a am eaçadora e Jaguar P aw decide
v o ltar para a floresta para se esconder. Independentem ente dos pontos de vista apresentados por
depararem com aqueles hom ens desconhecidos. E para relatar a experiencia docente, ao
q uestionar os alunos sobre a chegada dos europeus e o que seria daqueles nativos a resposta foi
536
C o n c lu sã o
subsidiariedade e participação. E lem entos fundam entais para a b o a convivência entre os seres
hum anos. E neste film e Apocalypto, m esm o se tratando de um film e com cenas violentas,
encontram os estes três elem entos. A capacidade de entretenim ento da película perm itiu que os
subsidiariedade e participação entre os povos m aias. A lgo que possibilita inúm eras reflexões
sobre a nossa civilização. E para a m aioria dos alunos, a cena final com a chegada dos europeus,
O exem plo do film e e da tem ática trabalhada neste artigo dem onstra que o cinem a é
relevante para ser trabalhado em sala de aula e grande in strum ento para estim ular a curiosidade,
R e fe rê n c ia s B ib lio g rá fic a s
ARCHEOLOGY. ORG
< h ttp s://archive.archaeology.org/online/review s/apocalypto.htm l> . A cesso em: 31.07.2022
N A P O L IT A N O , M arcos Francisco. Como usar o cinema em sala de aula. 5a ed. São Paulo:
C ontexto, 2013.
TA ILL E, Y ves de La. L im ites e E ducação. P sicologia B rasil, São Paulo, v. 1, n.1, p. 5-9, 2003
T IM E .C O M <https://web.archive.org/web/20080104225354/http://www.time.com/time/nation/article/0,8599,1570108,00.html> .
A cesso em: 08.07.2022
537
COMO A IMPRENSA DA PARAÍBA DISCUTIU A EPILEPSIA NO
SÉCULO XX
M A R IA G O R E T E O L IM PIO D O S SA N TO S
R e su m o : O presente ensaio, tem com o principal objetivo, problem atizar e analisar, com o a
im prensa paraibana apresentava para seus leitores a doença epilepsia no século XX. E, com o
esses discursos ficaram na m em ória individual e coletiva, interferindo assim nas produções
discursiva do diagnóstico da doença epilepsia. V am os p ensar a m em ória com o representações
discursivas que ultrapassam gerações. P ara tanto, vam os pensar os discursos p u b licad o s na
im prensa paraibana com o representação da m em ória. N este contexto, vam os dialogar com
Jacques Le G o ff (2003) e assim fazer um a análise discursiva através dos jo rn a is o N orte, A
união, o centro entre outros periódicos do século XX. V am os p roblem atizar o conceito de
m em ória, docum ento e m onum ento, problem atizando os conceitos e discussões acerca das
representações dos doentes.”
I n tr o d u ç ã o
m odernização, tanto na questão urbanística, com o tam bém de adequar os sujeitos que residem
naqueles espaços citadinos, considerados até então antigo e arcaico, desta form a constituem
assim , um novo pensam ento e m odelo de sociedade. U m a sociedade lim pa, m o d ern a e que
P ara construção desses sujeitos m odernos, lim pos e racionais, a im prensa paraibana foi
de sum a im portância para replicar e com bater os antigos hábito e costum es, considerados
páginas o novo estilo de vida que os cidadão e cidadã deveriam seguir, m o strav am em suas
páginas as novidades chegadas de Paris, F ran ça considerada a capital cultural da m oda e país
m oderno, o qual o m undo inteiro deveria adotar com o novo estilo de pensar, ser e com portar -
se.
lançam entos de veículos da volksw agem e os novos vestidos recém -lan çad o s de Paris,
incentivando assim , hom ens e m ulheres a consum ir e se adequar aos novos estilos da vida
A lem anha, gerando assim um a tendência a ser seguida no E stad o paraibano. E n tre os
consum idores dos produtos tid o com o m oderno, estava o gov ern ad o r da P araíba, João
Suassuna, este governou o estado paraibano pelo período de 1924 a 1928. É im portante
evidenciar que a m aio r parte dos consum idores que com pravam os veículos e vestidos
im portados, eram políticos e esposas dos políticos, ou um a pred o m in ân cia da elite, neste
aspecto, era a burguesia que consum ia esses b ens considerados m odernos e civilizatório. C om o
recém -lançado.
consum o.
de questões relacionada a saúde m ental, higiene e com portam entos adequado dos sujeitos
paraibanos. C onsiderado os padrões norm ais da época, no entanto, era um a das form as sutil ou
m esm a explicita de controlar os sujeitos e m odificar lós, de acordo com o pensam ento
O caderno recebia cartas de leitores que estavam acometidos por algumas doenças, e
o caderno, lia as cartas dos leitores e apontavam as soluções viáveis. Entre as doenças
apontadas nos jornais estavam a gonorreia, loucura, alienação mental, sexualidade,
forma correta de dormir e até mesmo parasitas. O caderno discutia os variados temas
relacionados com o bem-estar e a saúde dos paraibanos. Bem como comportamento
próprios e impróprios para o contexto histórico. O jornal da Borborema nos diz que,
“o leitor fala de ter se contaminado, no colégio interno com sua primeira gonorreia!
Ficarmos naturalmente interessados em saber como foi a contaminação: se em saídas
normais a cidade ou se em práticas no internato.” (Jornal diário da Borborema,10 de
janeiro de 1958).
O caderno receb ia cartas de leitores que estavam acom etidos por algum as doenças, e o
caderno, lia as cartas dos leitores e apontavam as soluções viáveis. E n tre as doenças apontadas
dorm ir e até m esm o parasitas. O caderno discutia os variados tem as relacionados com o b em -
estar e a saúde dos paraibanos. B em com o com portam ento próprios e im próprios para o
contexto histórico.
539
E m outra coluna do jo rn a l a B orborem a, um leito r faz u m a pergunta: qual é a m elhor
fo rm a de dorm ir de barriga p ara baixo ou para cim a? O colunista Á lvaro vieira responde ao
leito r com m últiplas explicações, até chegar à sexualidade e depois discuti a m oral.
A melhor maneira de se dormir, será de barriga para cima, posição em que vamos em
que vamos para o outro mundo.....Toda vez que a conduta sexual de uma criatura
foge do normal, a medicina rotula como perversão ou tara. Assim, existe um número
enorme de criaturas, de ambos os sexos que faz parte dos portadores de tara sexuais.
A doutrina admitida para tais comportamentos é a seguinte: não são anormais no
sentido médico legal, e seus crimes não são aliviados por esse motivo: também não se
cogita de saber qual é a sua perversão. Trata se de um assunto pessoal fora das
indagações. Entretanto, mesmo com essa cobertura sócio moral, não deixa de ser
repugnante um marido pretender que a esposa participe da sua perversão. (Jornal
diário da Borborema,10 de janeiro de 1958).
bem com o os questionam entos dos leitores dem onstrando um a necessidade de inclusão, nos
discursos v istos com o norm ais para a época. E ainda poderem os evidenciar o quanto a norm a,
os costum es e com portam entos privados eram vigiados e expostos com o dúvidas, levando ao
diálogo entre leitores e escritores. O quanto à im prensa discutiu o que considerava adequado,
É im portante salientar que m esm o quando a im prensa nega algo em sua linguagem
discursiva, ela afirm a tam bém , vejam os na segunda citação, quando o colunista diz: “ T oda vez
que a sexualidade foge do norm al, ela v ira perversão ou tara” . N este sentido se foge do norm al
é porque existe um padrão, e depois o colunista reafirm a, “A doutrina adm itida para tais
com portam entos é a seguinte: não são anorm ais no sentido m édico legal.” O que analisarm os é
que os conceitos norm ais e anorm ais são u tilizados para explicar um questionam ento sim ples.
E que esse tem a tem a ver com o nosso objeto? A im prensa paraibana tam bém replicou, publicou
e propagou, definiu o que era um sujeito norm al e o que era os sujeitos anorm ais.
D ese n v o lv im en to
as necessidades de esgotam ento sanitário, lim pezas urbanas, distribuição de com idas para os
dos loucos e desordeiros. E n tre esses loucos e arruaceiros, estavam os doentes com epilepsia
540
N a P araíb a os doentes diagnosticados com epilepsia eram percebidos e diagnosticados
com o incapaz, doente m ental, loucos e alienados, seguido os diagnósticos do B rasil, na Paraíba,
não foi diferente. T am bém seguia o m odelo de reclusão dos doentes. Q uando os doentes não
eram reclusos em asilos, sofriam preconceitos m últiplos, chegando ao ponto de com eter
m anchete:
Suicidou- se cravando o peito com um golpe de uma faca peixeira. Cenas deveras
impressionante correu as últimas horas da tarde de ontem, a rua Chico Maria, esquina
com Marcílio Dias, nesta cidade, onde o sr. Nelson Maia utilizando - se de uma faca
peixeira cravou a mesma contra o próprio peito, tendo morte imediata. A vítima, que,
segundo apuramos, vinha sofrendo há cerca de dez anos de moléstia incurável, ao que
se presume praticou o tresloucado ato que o levou a morte em consequência de um
estado mórbido produzido pela doença. (Diário da Borborema, (Sábado, 17 de maio
de 1958).
N este contexto da notícia com o poderem os identificar que o suicida, era realm ente
doente de epilepsia, a doença era tam bém cham ada de m al, de m oléstia, term os que os policiais
utilizam para identificar a consequência que levou o doente a com eter o suicídio. A epilepsia
tam bém foi identificada pelo m édico C esare L om broso e A frânio P eixoto, com o grande m al,
doença da gota, entre outras denom inações. P oderem os apontar tam bém que a epilepsia
refratária não tratada, leva a depressão e outras doenças que acom ete o psicológico do sujeito.
N este sentido a im prensa m ais u m a vez, expressa a doença com o um m al. E quem era doente,
pod eria assum ir ter a doença? D ian te de um contexto de reclusão, m edo e até discursos m édicos
divulgado pela im p ren sa que afirm avam que o destino do doente era a m orte.
A im prensa paraibana propagou vários discursos acerca da epilepsia, com o exem plo,
afirm ar que as m ulheres possuem u m a m aior possibilidade para adquirir a doença. R eplicado
os discursos de A frânio P eixoto, o m édico afirm ava que as m ulheres teriam m aior
sensibilidade exacerbada. O Jornal João pessoa, 13 de novem bro de 1990, diziam em sua página
central: “E p ilep sia afeta com m ais frequência as m ulheres.” H ouve u m a espécie de congresso
no hotel T am baú em João Pessoa, Paraíba, e o N eurologista, C arlos A lberto G uerreiro, afirm ava
que as m ulheres teriam m aior possibilidades de desenvolver a doença ainda destaca e ju stifica
As mulheres têm mais problemas relacionados com a epilepsia por ter mais tendência
a crise, principalmente em alguns casos, nos períodos menstruais’. Ele afirma que
mulheres epiléticas, possuem dificuldades para engravidar, em função dos distúrbios
hormonais, assim como tem a maior chance, apesar de pequena de terem filhos com
541
má formação congênita. (Carlos Aberto Guerreiro, chefe do departamento de
neurologista da UNICAMP, 13 de novembro de 1990).
m ulheres teriam m aior propensão a desenvolver a epilepsia, tam bém relacionava a doença ao
A priori devemos supor que o sexo feminino é mais predisposto ao mal caduco; com
efeito, o sistema nervoso da mulher é mais impressionável e mais excitável (...)
autores como J. Frank de Vienna, sustentam haver mais casos de epilepsia no sexo
masculino, Sandras, não admite a predominância de um sexo sobre outro, porém
acredita que o sexo feminino é mais predisposto, (Manso, p.47.1/d).
O m édico P edro Saches tam bém seguia esse pensam ento, afirm ando que o gênero
fem inino teria m aior predisposição a epilepsia, po r ser m ulher e ter um a fragilidade apurada.
chegou à civilização, porém o pensam ento m édico cam inha a passos lentos, não esquecem os
os discursos anteriores. P arecem que não se tem nada de novo, em bora tenha. N ão se discutem ,
nem se apresenta. C om parados os discursos dos m édicos dos séculos X IX e X X , não m udou.
J o rn a is : D o c u m e n to s e m o n u m e n to s
docum entos - m onum entos, para tan to utilizam os os conceitos de m onum entos e docum entos,
pessoas se organizavam de form a culturalm ente. N esse co n texto o autor contribui para
docum entos, propõe ao pesquisador saí de u m a visão m ais ingênua e propõe, um a visão m ais
542
crítica a docum entação histórica, partido da neutralidade para a h istória crítica, cham ado a nossa
atenção p ara as relações de poder. N este contexto a m em ória coletiva, seria um fator im portante,
pois, elas são escolhidas de acordo com o contexto social, cultural e político dos docum entos e
m onum entos produzidos que sobrevivem daquele passado, que foram escolhas daqueles
sujeitos e daqueles períodos históricos, ou sejam o que tem os acessos foram escolhas, filtragem
e recortem de outrem .
Le Goff, propõe aos historiadores que devem os fazer e tec e r críticas, m ateriais das
m em órias coletivas e que devem ser aplicadas aos docum entos tam bém , assim com o os
m onum entos.
S egundo L e G off, o conceito de m onum entos são obras com em orativa de estatura ou
escultura, um exem plo de m onum entos, estatuas de D om P edro I, em São Paulo. Esses
O conceito de docum ento vem do latim que tem sentido original de ensinar e depois tem
pensam os os jo rn a is enquanto docum entos/ m onum entos, pois o que chega até nós, são recortes
e escolha dos sujeitos do século X X , produzidos para os sujeitos daquele tem po e para o século
posterior. N este contexto seguindo o pensam ento de Le Goff, os que era publicado na im prensa
p araibana foi perm itido por um , ou m ais grupos que perm itiam o que deveriam ser publicados,
Segundo L e G off, o conceito de m onum entos são obras com em orativa de estatura ou
escultura, um exem plo de m onum entos, estatuas de D om P edro I, em São Paulo. E sses
O conceito de docum ento vem do latim que tem sentido original de ensinar e depois tem
pensam os os jo rn a is enquanto docum entos/ m onum entos, pois o que chega até nós, são recortes
e escolha dos sujeitos do século X X , produzidos para os sujeitos daquele tem po e para o século
posterior. N este contexto seguindo o pensam ento de Le Goff, os que era publicado na im prensa
p araibana foi perm itido por um , ou m ais grupos que perm itiam o que deveriam ser publicados,
Le Goff, nos cham am a atenção acerca dos docum entos que devem ser criticados da
m esm a form a que os m onum entos e com a revolução docum ental houve um alargam ento das
Segundo L e G off, o conceito de m onum entos são obras com em orativa de estatura ou
escultura, um exem plo de m onum entos, estatu as de D om P edro I, em São Paulo. E sses
pensam os os jo rn a is enquanto docum entos/ m onum entos, pois o que chega até nós, são recortes
e escolha dos sujeitos do século XX, produzidos para os sujeitos daquele tem po e para o século
posterior. N este contexto seguindo o pensam ento de Le G off, os que era publicado na im prensa
p araibana foi perm itido por um , ou m ais grupos que perm itiam o que deveriam ser publicados,
Le G off, nos cham am a atenção acerca dos docum entos que devem ser criticad os da
m esm a fo rm a que os m onum entos e com a revolução docum ental houve um alargam ento das
N este sentido pensado os docum entos/ m onum entos, identificarm os que esses
docum entos passaram a ser m onum entos, porém lançam os sob eles as críticas e os
H ouve um a preocupação de historicizar esses docum entos pois eles são produções
hum anas e representam o sentir, v iver e conviver dos sujeitos do século XX. T entam os tra ta r o
docum ento com o um m onum ento, po r serem frutos de u m a sociedade com intencionalidade e
N este sentido pensado os docum entos/ m onum entos, identificarm os que esses
docum entos passaram a ser m onum entos, porém lançam os sob eles as críticas e os
questionam entos, para pensarm os as m em orias coletivas, e então com preender as intenções da
H ouve um a preocupação de historicizar esses docum entos pois eles são produções
hum anas e representam o sentir, v iv er e conviver dos sujeitos do século XX. T entam os tra tar o
544
docum ento com o um m onum ento, po r serem frutos de u m a sociedade com intencionalidade e
C o n c lu sã o
C oncluím os, portanto, que os discursos publicados faziam parte de um contexto cultural
do século X X , porém os contextos culturais não estão passivos de críticas, nem tão pouco de
exclusão social. O s docum entos- m onum entos perm itiu nos com parar o quantos os discursos
produzidos p ara o século X X , ainda causa preconceito, m edo e principalm ente estigm as aos
doentes de epilepsia. D eixados assim os sujeitos de epilepsia com estigm a que ultrapassam os
séculos.
docum ento e m onum ento para se perp etu ar no p o d er e representar grupos que outrem
produziam cultura e todos os produtos que deveriam ser consum idos, baseado em um a
m entalidade de m odernidade.
R e fe rê n c ia
545
L E M O S, P edro Sanches de. E p ile p s ia . R io Janeiro-R J: T ipografia do D iário do R io de
Janeiro. 1872. p. 18.
O b r a do M ês - B ib lio te c a de O b r a s R a r a s Á tila A lm e id a
https://bibliotecaatilaalm eida.uepb.edu.br/category/obra-do-m es
546
“A DEMONSTRAÇÃO DO GRANDE SENTIDO NACIONAL DO
INTEGRALISMO”: A AÇÃO INTEGRALISTA BRASILEIRA E OS
CONGRESSOS NACIONAIS NAS PÁGINAS DE SUA IMPRENSA
MILITANTE (1933-1935)
M A R IA R IT A C H A V E S A Y A L A B R E N H A 254
I n tr o d u ç ã o
cam po político. E ntre a crise da hegem onia oligárquica da P rim eira R epública, e o fecham ento
político que resultou o E stado N ovo, houve “ [...] o surgim ento de projetos radicais e
inspiração fascista.
de direita, e a união de grupos precursores organizados por P lín io Salgado, consum aram -se na
fundação da A ção Integralista B rasileira (A IB). D entre estes grupos pioneiros, destacaram -se a
A ção Social B rasileira, um m ovim ento sem êxito, cujo program a se baseava na proteção da
T rabalho, ten d o com o expoente Severino Som bra, congregava a doutrina social católica
tradicional com elem entos fascistas; e, tam bém , o P artido N acional Sindicalista, que tin h a com o
representante seu fundador, O lbiano de M ello, sim pático ao fascism o, defensor da fundação de
aglutiná-los em torn o de si, até que em fevereiro de 1932, fundou a Sociedade de E studos
sim patizantes de tendências autoritárias (ST A N G E R , 2014). A A IB, po r sua vez, foi criada em
com setores de atividade em todo o B rasil, cujas finalidades eram funcionar com o centro de
254*Graduada em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM-PR). Mestranda do Programa de Pós-
Graduação em História da UEM. Bolsista CAPES.
547
cívica do povo brasileiro, e “ pleitear para o B rasil a im plantação de um regim en politico-social,
tão som ente b asead o na concepção do E stado T otalitário, ou E stado Integral” (A C Ç Ã O ..., 1933,
p. 1).
C onform e descreveu T rindade (1979, 2016), a estrutura da A IB, partindo do C hefe aos
m ilitantes de base, caracterizou-se pela hierarq u ia e burocracia, com funções, órgãos e papéis
sistem aticam ente previstos por estatutos e rituais. N esse contexto, entre fins de 1932 a 1934,
tem p o no qual Salgado am pliou sua liderança, a prim eira estrutura organizacional foi
interno do recém -proclam ado partido. E stava assim , constituído o E stado Integral em potencial,
sendo m ais do que um “ contra governo” . E le funcionava com o um verdadeiro E stado totalitário,
(m ilícia), além de u m a legislação própria, com regulam entos, resoluções e m edidas de censura.
m ovim ento que despertou, e continua a despertar, o interesse de historiadores. A lém de possuir
em bora longe de atingir seu esgotam ento. À vista disso, este trabalho teve com o o bjetivo
com preenderam as publicações dos anos 1933 e 1935 dos periódicos integralistas A Offensiva
Tal abordagem se ju stific a pelo fato do integralism o, com o prim eiro m ovim ento de
m assas estruturado nacionalm ente a ter grande expressão social, ter utilizado de um a grande
rede de jo rn a is e revistas com o propósito de expandir sua ideologia, atrair novos adeptos e
d o utrinar seus m ilitantes. A im prensa integralista, n esta conjuntura, tinha po r finalidade atingir
N o que diz respeito a utilizar-se de periódicos com o fonte histórica, tanto Luca (2008),
255 Os Projetos de Bolsa de Iniciação Científica (PIBIC/FA/CAPES) foram realizados entre os anos de 2018 a
2020, e foram intitulados de O Congresso de Vitória (1934) e as alterações na Ação Integralista Brasileira, e O
Congresso de Petrópolis (1935) e a construção do Estado Integral, respectivamente. Ambos os trabalhos foram
orientados pelo Prof. Dr. João Fábio Bertonha, e vinculados ao Laboratório de Estudos do Tempo Presente
(LabTempo/UEM) e à Universidade Estadual de Maringá (UEM).
548
questionam entos e reflexões que o historiador deve te r para com sua fonte. Isto é, a necessidade
público-alvo e os elem entos ideológicos presentes, um a vez que, os periódicos procuram atrair
o público, conquistar suas m entes e assim , atrair adeptos para sua causa.
P o r este viés, a análise dos periódicos trata-se de um terren o “ [...] m anancial dos m ais
férteis para o conhecim ento do passado, a im prensa p ossibilita ao historiador acom panhar o
percurso dos hom ens através dos tem p o s” (C A P E L A T O , 1988, p. 13). D e acordo com a autora,
ao ler a história do B rasil através dos periódicos é possível recuperar as lutas, interesses,
com prom issos e ideais, u m a vez que a im p ren sa não som ente registra, m as tam bém particip a e
um evento realizado no T eatro C arlos G om es, região central da cidade de V itória (ES). Sua
cobertura foi registrada pelo jo rn al Monitor Integralista e abarcou um período relativam ente
apontou a im portância do C ongresso, sendo este “ [...] um a dem onstração explendida da unidade
nacional e de força de idealism o da nossa raça” , e “ além de sua alta significação m oral
rum o à V itória (ES). E ntre seus passageiros havia centenas de m ilitantes e dirigentes, entre eles
Salgado, que ocuparam dois vagões enfeitados com bandeiras e letreiros alusivos ao congresso.
N a tarde de 28, a delegação chegou ao seu destino: os ocupantes do “trem -v erd e” foram
saudados por duas decúrias do núcleo local (FA G U N D E S, 2009). C om o intuito de agilizar os
trabalhos do evento, ainda naquela noite, ocorreram as prim eiras atividades. Foram nom eados
po r Salgado os dirigentes que com poriam as m esas dos trabalhos e indicados aqueles que
form ariam as com issões criadas p ara elaborar e sistem atizar as atividades.
ocorreu quando, nesta noite, iniciou-se a abertura oficial do C ongresso. A sessão com eçou com
palavra foi concedida a P línio, cujo discurso foi, constantem ente, interrom pido por aplausos
(FA G U N D E S, 2009). A leitura do m anifesto, previam ente assinado pelos delegados de todas
m ovim ento.
estatutos que seriam aprovados durante o evento, houve um a cerim ônia para reafirm ar a posição
de Salgado com o chefe suprem o. U m a um , os nom es dos chefes provinciais foram cham ados,
e ao escutar seu nom e o dirigente - com o b raço direito em posição de saudação - respondia
se a leitura de em endas e teses propostas pelos congressistas. T eses estas que poderiam tratar
de qualquer assunto dentro dos princípios da doutrina integralista - entretanto, não seriam
subm etidas à discussão, um a vez que aquele não se tratava de um “ congresso liberal” . P o r fim ,
na n oite de 3 de m arço, houve o encerram ento do C ongresso, aberto ao público. A sessão contou
A lguns de seus principais dirigentes, com o M iguel R eale e O lbiano de M ello, proferiram
R e p e rc u ssõ e s e d e s d o b ra m e n to s
E n tre os dois prim eiros anos de sua existência legal, a A IB ap resentava-se com o
associação nacional de direito privado. Seu propósito era o de servir com o centro de estudos de
do povo brasileiro. E m sum a, o integralism o antes do C ongresso de V itória alm ejava o E stado
organizacional do m ovim ento, que p erm aneceria em vigor até sua alteração em 1935. É possível
p erceber logo na edição do Monitor Integralista da prim eira quinzena de m aio de 1934 (logo
Séde - Fins” , constando apenas: “ im plantar no B rasil o E stad o Integral” . E m adição a isto, após
V itória, observa-se que houve a avaliação de que as únicas chances de atingir o p o d er eram pela
A tese do autor pode ser confirm ada ao lem brarm os que nas tiragens de agosto de 1934
E staduais e C âm ara Federal, foram determ inadas pelo C hefe e possuíam um propósito
essencialm ente tático, de propaganda das ideias e agitação da m assa popular. Isto, apesar da
O resultado do C ongresso de V itória que m ais cham ou a atenção foi a aclam ação de
P lín io com o o perpétuo e insubstituível C hefe N acional. N a sessão solene de abertura do evento,
“ [...] houve um m om ento de verdadeira angustia para o in teg ralism o brasileira, m otivado pela
attitude de P linio Salgado, renunciando a C hefia do m ovim ento” (A C H EFIA ..., 1934, p. 1 -2).
E m seguida, o ato de aclam ação foi um dos m om entos em que a política adquiriu características
m odelo de direção colegiada da A IB, e criar a figura do C hefe que, com o p assar do tem po,
adquiriu status de onipresença. O ju ra m en to serviu para autenticar dois traço s fundam entais que
E ntretanto, apesar de todos seus esforços em dem onstrar sua autoridade absoluta, o
C hefe não era im une a questionam entos, m ostrando-se até m esm o cioso com seu poder:
Plínio era muito cioso da sua autoridade é mais do que evidente. A ritualística
integralista tomava, como visto acima, um cuidado imenso para garantir a
preeminência da figura do chefe e, mesmo quando proclamando a sua modéstia ou
defendendo que os integralistas prestassem atenção às suas ideias e não a ele próprio,
é óbvio que Plínio considerava o movimento algo seu e que não permitiría, em
nenhuma circunstância, que sua autoridade fosse questionada (BERTONHA, 2018, p.
183).
exercido po r ele, por exem plo: “ A R T IG O 5° - É prohibido, sob pena de exclusão autom atica, a
qualquer integralista, com m entar qualquer acto do C hefe N acional, relativo ao ex ercicio de seu
(E ST A T U T O S..., 1934, p. 5). Sua estratégia consistia em u tilizar u m a tática aparentem ente
551
dem ocrática no plano de ação, resguardando sem pre a possibilidade de evocar a fidelidade à
doutrina p ara reform ular um ponto de vista contraditório ao seu (T R IN D A D E , 1979). P o r outro
lado, B ertonha (2018) destaca que é possível n o tar que o esforço de Salgado em proteger a sua
liderança ju rid icam en te foi tão nítido que revelou m ais sua fraqueza do que força. O u seja, um
v erdadeiro líder tem condições de im p o r a sua vontade e não necessita fundar seu poder em um
tex to legal.
A prim eira e m ais notável das dissidências que o C hefe N acional teve de enfrentar foi a
de Severino Som bra, que disputou o com ando logo no início da AIB, em 1932. Som bra desejava
m u d ar a instituição pelas b ases e a partir dela m esm a. A pesar da articulação realizada com
alguns sim patizantes, a tentativa de dividir com Salgado a liderança das hostes integralistas e
posteriorm ente conquistar a chefia nacional, frustrou-se no C ongresso de V itória. Sua saída,
criação de forças p aram ilitares constituídas para p roteger seus líderes e intim id ar os adversários.
O integralism o desenvolveu sua p rópria m ilícia, adm inistrada po r G ustavo B arroso. A análise
form ação técnico-m ilitar. Tal preocupação com a u n iform idade dá-se, especialm ente, após o
A A IB tam bém se utilizava de estratégias de prem iação com o m eio de disciplinar seus
quadros ao in cen tiv ar valores e procedim entos tidos com o dignos de serem im itados. N o I
C ongresso, foram instituídas quatro ordens honoríficas com o “ [...] intuito de revalorisar as
expressões m oraes, intellectuaes e civicas com pletam ente despresadas no B rasil de hoje; no de
restau rar o culto das forças espirituaes da N ação [...]” (SA L G A D O , 1934b, p. 7). E ram elas:
C ruz de A nchieta, para aqueles que revelavam alto v alo r m oral; E strela de G uararapes,
valores culturais, científicos e artísticos, e O rdem do Sigm a, a prem iar os que revelassem
P o r fim , é im portante m encionar o m odo com que a grande im prensa retratava as ações
dos cam isas-verdes. O jo rn a l O Globo caracterizava o m ovim ento com o “um a especie de
(PO N T E S, 1934, p. 3). OPaiz, por sua vez, priorizou as caravanas integralistas, cuja finalidade
era divulgar as ideias do m ovim ento, com o “ [...] correrias m ais ou m enos hilariantes po r alguns
E stados, e com um a despesa com transportes que o grande thesoureiro da O rdem j á deve achar
elevada em dem asia, diante da nulidade dos frutos colhidos” (D E S IN T E G R A Ç Ã O ..., 1934, p.
552
3). E m O Paiz, foi registrado que Salgado havia entregado “ [...]o ‘integralism o á N a ç ã o ’,
em phaticam ente, adivinhando os perigos do ridiculo que representa um partido retintam ente
Petrópolis, o C hefe N acional. E m P etrópolis, nas proxim idades do P arque C rém erie, um dos
pontos tu rísticos da cidade, aguardavam -no um a com itiva constituída pelo C hefe M unicipal,
R aym undo P adilha, e outras autoridades. A pós sua chegada, form ou-se um cortejo, ostentando
as flâm ulas do Sigm a, seguindo para o G rande H otel. N esta m esm a noite, ao centro da cidade,
cum priu-se, a prim eira das sessões preparatórias, presidida po r Salgado e com a cham ada dos
seus veteranos.
N o dia seguinte, o salão nobre do núcleo local sediou outras duas sessões preparatórias,
presididas pelo C hefe e pelo Secretário N acio n al da M ilícia, G ustavo B arroso. N elas,
sucederam -se a leitura das novas estruturações da Secretaria N acional de Justiça, do C ódigo
organização da m ilícia. O segundo dia do C ongresso tam bém foi m arcado por um protesto
106). A respeito disto, não há m enção nas m em órias do C ongresso veiculadas pelos periódicos
analisados. P elo contrário, na tiragem de 16 de m arço de 1935 de A Offensiva, consta que apesar
dos boatos, “ [...] a cidade am anheceu em inteira calm a. O povo de P etropolis olhava para os
cam isas-verdes com adm iração e sym pathia” (N O 2°..., 1935, p. 2).
o relato do M onitor, além dos congressistas, a p opulação local ocupava as frisas, galerias e
cam arotes. Ali, após a p rotocolar entrada do C hefe, e a saudação de três “ anauês” , a m esa de
trabalhos foi constituída e fez-se a cham ada dos delegados representantes dos estados. E m m eio
à leitura do expediente, Salgado ergueu-se, e declarou que fizera expedir u m a circular a todos
257A obra de Trindade (1979), referência para os estudiosos da AIB, sugere que o Congresso de Petrópolis tenha
acontecido em 1936, sendo esta data incorporada por muitos outros autores. Observamos, todavia, que o Congresso
ocorreu no ano de 1935.
553
os núcleos integralistas, para que àquela hora, onde quer que se encontrasse um cam isa-verde,
que tam bém m antivessem um m om ento de silêncio com o p en sam en to concentrado em D eus.
D isse então, as palavras que nos núcleos, naquele m om ento se repetiram : “ O Integralism o está
vivo; a N ação despertou, que D eus inspire o C hefe e conduza á v ictoria a sagrada b andeira do
N a m anhã de 9 de m arço, cum priram -se duas sessões ordinárias, presididas po r Plínio.
A prim eira tratou sobre reform as estruturais do m ovim ento; e a segunda, dos interesses da
S ecretaria N acional da O rganização P olítica, contando com a leitura dos relatórios e síntese de
D epartam ento E leitoral e Sindical. N a tarde desse m esm o dia, realizou-se o desfile de dez
L egiões de integralistas. N a ocasião, congressistas, m ilicianos e cidadãos locais tom aram parte.
determ inada, o C hefe N acional, com seu E stado M aior, passou em revista à tropa, dirigindo-se
depois para o pavilhão instalado em frente à C atedral d a cidade, onde um a guarda de honra
constituída pelo D epartam ento F em inino, prestou-lhe continência. D eu-se em seguida, o desfile
pelas principais ruas e avenidas, com o a A venida 7 de Setem bro, as ruas T iradentes, Ipiranga e
instalação que desde o fim do século XIX, abrigava exposições diversas. O M useu, p ara Plínio,
era um a “ [...] prova palpável das realisações integralistas, destinada a convencer pela força os
incrédulos, derrotistas e inim igos da P atria [...]” (A C T A ..., 1935, p. 1). N ele, encontravam -se
seções que m ostravam o m ovim ento desde sua gênese até aquele m om ento, com o cartazes,
F inalm ente, na noite do dia 10, novam ente no C apitólio, houve a sessão solene de
de projeção da sociedade - estes, não foram nom eados. In iciad a pelo secretário geral do
C ongresso, E veraldo Leite, sem a presença de Salgado nos prim eiros m om entos, fez a cham ada
das delegações. G ustavo B arroso, em seguida, relem brou em seu discurso os prim eiros passos
do integralism o e apresentou u m a visão pan o râm ica dos dias de C ongresso, salientando sua
A chegada do C hefe ocorreu durante a fala de um dos congressistas. Salgado, por sua
vez, apresentou suas considerações a respeito de Petrópolis. Suas palavras finais acentuaram a
relevância do C ongresso, po r ser ocasião de contato dos m ilitantes com os dirigentes. D ali em
diante, a palavra de ordem era a criação da m ística unidade da Pátria, recom endando aos
554
delegados um trabalho incessante. O H ino N acional foi, enfim , executado pela orquestra e, ao
térm ino, quatro anauês à D eus e três à revolução integralista foram entoados.
R e p e rc u ssõ e s e d e s d o b ra m e n to s
E m 1935, o integralism o de P lín io Salgado passou po r sua transição final: perm aneceu
com o associação civil, sediada em São Paulo; e, daquele m om ento em diante, era tam bém um
p artido político, com sede onde se encontrasse o Chefe. A ssim sendo, enquanto partido,
objetivava a reform a do Estado, po r m eio da form ação de um a nova cultura filosófica e jurídica.
E sta alteração determ inante foi ju stifica d a pelo próprio C hefe N acional em um a carta-circu lar
Em face da situação creada pela Lei de Segurança, que inclue nos seus dispositivos a
emenda apresentada pelo deputado communista Rodrigues, prohibindo organisações
militares com quadros e hierarquia, resolvi, para que a “Acção Integralista Brasileira”
continue a funccionar com seus superiores objectivos, reformar os nossos Estatutos.
[...] tive eu o cuidado de entrosar, em absoluta harmonia, os nossos Estatutos, a
Constituição de Julho, a Lei Eleitoral e a Lei de Segurança (SALGADO, 1935, p. 2).
A IB em m ostrar-se com o “ [...] um m ovim ento que objectiva a felicidade do P ovo B rasileiro,
dentro da ju stiç a social, dos princípios v erdadeiram ente dem ocráticos, garantindo a
intangibilidade dos grupos n aturaes [...]” (SA L G A D O , 1936a, p. 3). A inda, inúm eras
determ inações foram designadas para que fosse intensificada a qualificação eleitoral em todos
os núcleos do país. A ssim , m esm o com batendo a dem ocracia liberal, os cam isas-verdes
participaram , novam ente, do sufrágio universal nos âm bitos m unicipal, estadual e federal, com
a finalidade de alavancar o partido. M esm o aproveitando o clim a anticom unista instalado após
a Intentona de 1935, os resultados foram m edíocres devido ao poder das oligarquias e dos
P ara além disso, a dissolução da m ilícia tam bém configurou a reestruturação im posta
pela nova lei de G etúlio V argas. A S ecretaria N acional de M oral e F ísica substituiu a
organização param ilitar, ten d o com o finalidade fu n cio n ar com o órgão de educação física e
m oral, além de “funcionar com o orgão aliciador de elem entos que estarão a disposição do
SA L G A D O , 1935, p. 7).
555
A o evidenciar um a nova p ersp ectiv a acerca do redim ensionam ento da m ilícia, B ertonha
despontava: o próprio G ustavo B arroso. É possível que a disputa entre am bos ten h a sido
b asead a no privilégio do com ando e na estratégia para chegar ao poder. E nquanto chefe da
M ilícia, m enos interessado em com prom issos e m ais radical, B arroso poderia ter cobiçado a
conferência, B arroso sugeriu que um chefe que não é fiel à doutrina corria o risco de p erder sua
autoridade. D ias depois, com o resposta, Salgado fez um discurso realçando sua concepção de
ele se dem itiu da sua função de C hefe e abandonou o palco. O s líderes integralistas, aturdidos,
correram a p ed ir revisse sua decisão e B arroso deu explicações a Salgado, que aceitou seu cargo
O rem anejam ento da estrutura, propriam ente dita, da A IB configurou outro resultado de
P etrópolis. A p artir da resolução n° 165, de outubro de 1936, há a criação das C ortes do Sigma,
Provinciais, C onselho Jurídico, C onselho de B elas A rtes, entre outras. O u seja, os efeitos do II
C ongresso ressoavam não som ente em seu ano de realização. A instituição de tais órgãos
respeitáveis lideranças do Sigma: a título de exem plo, a C âm ara dos Q uarenta correspondia a
nacionais, com posto por líderes com o G ustavo B arroso, M iguel R eale e R aym undo P adilha
(O L IV E IR A , 2018). C om a form ação desses órgãos é possível observar u m a leve abertura por
parte do C hefe N acional, contudo, a palavra final sem pre seria a dele.
D esse m odo, ao passo que em 1934, no I C ongresso Integralista, a prim eira estrutura do
tin h a sua pré-figura no aparelho b urocrático interno, com seus rituais, protocolos,
556
procedim entos, censura e ideologia, forças arm adas (m esm o que enfraquecida e encoberta), e
um corpo de m agistrados. Pretendem os, a seguir, abordar u m a discussão ligeiram ente m ais
O E s ta d o I n te g r a l
leitores: “P ara onde vam os?” . E prossegue: “P ara um a república dem ocrática parlam entar? P ara
2009, p. 124). Tal pergunta baseava-se, de um lado, pela indecisão ideológica do G overno
P rovisório de V argas; e do outro, pelo fato do autor idealizar as b ases de um novo m odelo
político através das páginas do p eriódico em questão. P ara ele, a luta entre m aterialism o e
espiritualism o, representada pela oposição entre com unism o e regim es nacionalistas, seria
v encida não por dem ocracias, m as através de regim es de ditaduras, u m a vez que o m undo
P ara tanto, dedicou-se ao estudo do fascism o, chegando a afirm ar que “ [...] não é exatam ente
esse regim e que precisam os aí, m as é coisa sem elhante” (T R IN D A D E , 1979, p. 75). O u seja,
N esse sentido, para a instituição do E stado Integral, vários inim igos deveriam ser
com batidos, dentre eles a dem ocracia burguesa, o com unism o, e o capitalism o (cuja intenção
era apenas reform ar). A avaliação de P línio era de que o integralism o colocaria o país na
m odernidade representada pelo fascism o, especialm ente em sua versão italiana, e chegaria ao
totalitária, de m obilização popular, por ele defendida, foi u m a das m arcas centrais que im prim iu
à A IB (B E R T O N H A , 2018).
N o ta-se que desde sua fundação, a AIB concentrou-se em estabelecer estratégias para
conquistar o E stado, sozinha ou associada a outras forças. C om o m encionado previam ente após
o C ongresso de 1934, a p ercepção integralista era de que suas únicas chances de atingir o poder
seriam pela via eleitoral ou po r um golpe. A p artir de 1935, a incapacidade de u tilizar a força
557
estava clara e ressaltar o próprio pacifism o era essencial para a sobrevivência do recém
[...] Plínio se convenceu, no período entre 1934 e 1936, que a única alternativa de
poder para a Ação Integralista era se adaptar ao contexto vigente e, com a Intentona
Comunista dando, ao governo federal, poderes imensos de caráter repressivo que
poderiam se voltar contra ele, a opção insurrecional podia até continuar presente na
agenda, mas não era mais a realmente viável. É nesse momento, aliás, que ele
começou a ressaltar, em seus escritos, como a luta integralista era de ideias e que elas
não podiam ser paradas pelo terror ou pela força; que a sua luta era para renovar uma
nação e uma civilização e não para fins pequenos, como chegar ao governo
(BERTONHA, 2018, p. 197).
A Offensiva veiculou, em sua terceira página, um interessante com entário de G ustavo B arroso
acerca do evento: “ O C ongresso de P etropolis m ostrou que o E stad o Integral está form ado nas
(B A R R O SO , 1935, p. 3).
É possível que tal afirm ação constitua-se enquanto u m a ousadia, devido à sua larga
projeção. N o entanto, se aplicam os a um a dim ensão m ais lim itada - aos âm bitos da AIB,
propriam ente dita - , o pensam ento de B arroso possui validade. T rindade (1979) evidenciou que
em um m ovim ento fascista não se pode dissociar a ideologia e organização, u m a vez que há
u m a explícita relação entre a estrutura desta e o conteúdo da outra. D essa form a, as organizações
eficaz, seus m ilitantes. A organização integralista, não obstante, supera a função m eram ente
instrum ental: para além de u m a estrutura rígida e vertical, sob o controle de organism os de
tríplice função: fornecia ao C hefe N acional m eios para dirigir o m ovim ento; constituiu-se com o
N ovam ente, enfatiza-se que tanto o rem anejam ento ocasionado pelo C ongresso de
órgãos de cooperação com o C hefe N acional “perm ite caracterizar a evolução do integralism o
558
C o n s id e ra ç õ e s fin ais
Integralista em periódicos integralistas e pela grande im prensa, este trabalho teve com o objetivo
breves reconstituições dos eventos nas cidades de V itória (ES) e P etrópolis (RJ). B uscou-se
elucidar a ordem dos acontecim entos e seus principais desdobram entos nos âm bitos interno e
externo do m ovim ento integralista. E sta abordagem ju stifica -se porque entendem os que, apesar
dos estudos sobre o integralism o possuírem u m a am pla produção bibliográfica, seus dois
prim eiros congressos nacionais não são suficientem ente explorados pelo viés histórico.
constituíam um m om ento ím par para os cam isas-verdes por serem ocasião de definição de
estatutos, da estratégia para tom ada do poder e da form ação do E stado Integral. Isto é, tratavam -
se de u m a dem onstração da sua base bu ro crática-h ierárq u ica e em seus dois C ongressos iniciais,
a A IB foi (re)estruturada.
É possível verificar que o sistem a de organização burocrático -to talitário não foi um
produto de seu crescim ento, m as sim um form ato pensado desde suas origens e instaurado
po r sua vez, m arcou a transição para partido político, com um protótipo de sistem a pré-E statal.
forças lim itadas e ao entendim ento de que q uaisquer tentativas de golpe, por conta própria,
seriam inúteis. À vista disso, participaram do criticado sufrágio universal, com fins
essencialm ente táticos. E nquanto partido, u m a postura m ais incisiva foi adotada no tocante ao
processo eleitoral, visando, inclusive, à disputa presidencial prevista para o ano de 1938.
C ongressos, no intuito de refletir sobre a estratégia para atingir o poder, e o líder que g uiaria os
cam isas-verdes para tal fim . C aso Severino Som bra tivesse vencido, a A IB p o ssivelm ente teria
traço s proletários e sindicais. N o que tange a G ustavo B arroso, a m ilícia poderia te r sido
das vias dem ocráticas, tô n ica do m ovim ento até o C ongresso de V itória e ratificada em
P etrópolis. À luz do exposto, foi possível id en tificar que tal escolha evidencia a necessidade de
559
R e fe rê n c ia s d o c u m e n ta is
R e fe rê n c ia s b ib lio g rá fic a s
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39-61.
561
MEMES NO ENSINO DE HISTÓRIA:
UMA EXPERIÊNCIA ENTRE PRÁTICAS E SABERES
M E L IN A L IM A PIN O T T I258
In tr o d u ç ã o :
atravessado pelas transform ações, principalm ente no que tange as questões dialéticas entre
presente e passado. Pois, houve um m ovim ento no olhar historiográfico, que passou a enxergar
os tem as com o problem áticas. E, dessa m aneira, aos fatos históricos acrescentam os os
questionam entos. À luz dessa transform ação, a prática de ensino em H istória, tem com o
D entro da dinâm ica social atual, tornou-se um desafio para nós professores de H istória,
p rom over o interesse pelo estudo do passado, pois os alunos estão preocupados com o presente,
e po r m eio da internet têm acessos às inform ações de um a form a m uito sim ples e rápida. A ssim ,
é com um que durante as aulas de H istória, em bebidos pelo “ agora” , tragam à tona, perguntas
“Um primeiro desafio para quem ensina História parece ser a explicitação da razão de
ser da disciplina, buscando atender os anseios de jovens que ardilosamente fazem
perguntas aparentemente inocentes, como “Por que estudar História: Por que o
passado, se o importante é o presente? ” (BITTENCOURT, 1998, p. 11).
pro p iciar um conhecim ento que faça sentido para o aluno ao estudar o p assado? A s pesquisas
acerca do ensino de H istória têm respondido esses questionam entos lançando cam inhos, como:
é preciso possibilitar u m a percepção histórica que dê base para que o aluno, ao enten der o
m antendo u m a relação ativa com o passado. “ A voz do passado, captado ao vivo” . (FE B V R E ,
258c Mestra em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal da Grande
Dourados, na Linha de Pesquisa: Políticas, Instituições e Representações.
562
1989, p. 26). Portanto, estudar H istória, não é o m esm o que estudar o passado, e sim estudar
p ercebe que a m entalidade histó rica de cada época é quem define a com preensão da história,
sendo nesse sentido, o passado, um elem ento que não é estático, m as que pode ser interpretado
H istória, num a escola do estado de M ato G rosso do Sul. O objetivo da m in h a p rática foi
evidenciar que ideias e práticas do passado form am nosso presente. E, naquele m om ento, a
m etodologia foi para além de um a aula expositiva que culm inasse na análise de docum entos
conteúdos digitais navegavam nas redes sociais e produziam m em es259 com o expressão de suas
vivências. N esse sentido, ao dialogar com as suas práticas, encontrei nas T ecnologias D igitais
aprendizagem , sobretudo po r fazerem parte do universo dos jovens. D essa form a, no ensino de
social, de classe e de gênero no B rasil. A final, a H istória deve se interessar pela história dos
m ais variados sujeitos, entendidos na sociedade com o um todo, de m odo a p ro b lem atizar as
histórias e b u scar suas origens, visto que “ se não há problem as, não há histórias” (FEB V R E,
1989, p.31).
C o n te x to d a p r á tic a :
A p rática de ensino em H istória, relatada nesse artigo aconteceu em 2017, quando atuei
M édio, form adas po r cerca de 28 a 32 alunos. V ale ressaltar que a instituição é reconhecida na
região por seu desem penho escolar avaliado nos índices do Id eb ,260 aspecto que atrai um
259 São formas de linguagem que consiste numa imagem transmitida para viralizar na internet, geralmente vem
complementada com texto, compartilhando comentários pontuais sobre símbolos culturais, ideias sociais ou
eventos atuais.
260 Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, criado em 2007, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep), formulado para medir a qualidade do aprendizado nacional e estabelecer
563
contingente de alunos oriundos dos m ais diversos bairros da cidade e da área rural,
corroborando na form ação de um grupo esco lar diversos quanto a questão social e econôm ica.
H istória objetiva ser trabalhado com com prom isso social, no intuito de form ar cidadãos com o
pensam ento crítico, dar base para os alunos fazerem com excelência as provas externas, com o
o Ideb, o E nem e vestibulares, e p rom over diálogos com o m ercado de trabalho. O que podem os
considerar que são objetivos com uns quando o assunto é pensar o lugar da disciplina H istó ria261
no ensino. T am bém conform e o PPP, ficou estabelecido com o atribuição dos professores a
elaboração do planejam ento de aula, bem com o enviá-los à coordenação, num período
quinzenal ou m ensal, usando com o base o R eferencial C u rricu lar do E stado de M ato G rosso do
Sul e o calendário escolar. O cum prim ento dessa norm a conectava a coordenação e os docentes,
ten d o seu uso um caráter burocrático, e não intervia na autonom ia do professor para pensar suas
p ráticas e saberes.
inquietações quanto aos currículos262 de H istória, principalm ente quanto a suas elaborações,
que segundo A bud (2009), não considera a realidade dos sujeitos que pisam o chão da escola
po r serem “ produzidos por órgãos oficiais, que os deixam m arcados com suas tintas, po r m ais
que os docum entos pretendam representar o conjunto dos professores e os ‘interesses dos
a lu n o s’. (A B U D , 2009, p.29). N esse sentido, entendendo o currículo com o instrum ento de
p o d er do estado, busquei um a prática que o utilizasse com o ponto de partida, e não com o base
O utra problem ática que m erece destaque é a disposição dos conteúdos, que sugerem
estabelecida não pode ser com preendida, tendo o continente europeu com o palco principal dos
grandes acontecim entos históricos. E ssa divisão quadripartite da H istória, não é u m a edição
especial do currículo de M ato G rosso do Sul, pois segundo G uim arães (2012), se faz presente
desde a inclusão do ensino de H istó ria na escola fundam ental brasileira do século X IX , perpassa
metas para melhoria do ensino. O lugar da escola na avaliação do Ideb pode ser acessado no blog da escola.
Disponível em < http://blogescolanairpalacio.blogspot.com/> Acesso em 11 de outubro de 2022.
261 Para saber mais ler GUIMARÃES, Selva. Caminhos da História ensinada. 13° ed. Campinas/SP : Papirus, 2012.
262 A crítica ao Referencial Curricular do Estado de Mato Grosso do Sul para o Ensino Fundamental e Médio pode
ser lido no artigo “O lugar das temáticas africanas e afro-brasileiras no Referencial Curricular do Estado de Mato
Grosso do Sul: um olhar voltado para a disciplina História. Página 695. Disponível em:
<https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/113/o/Anais_I_F%C3%B3rum_25.11.pdf?1480531588>
Acesso em 11 de outubro de 2022.
564
as pesquisas históricas e é vista na disposição dos conteúdos em currículos de cursos superiores.
Desse modo, a história do Brasil, durante muitos anos, foi tratada nos programas de
ensino como pequeno apêndice da história universal. À medida que o país se
europeiza, deixa de ser “bárbaro”, “atrasado” e começa a se organizar “à imagem da
Europa”, ele começa a “entrar na história” e consequentemente passa a ser parte mais
significativa dos programas de ensino. (GUIMARÃES, 2012, p. 53).
D essa fo rm a, m ais do que m e aproxim ar das vivências dos alunos, o objetivo da m inha
prática buscou relacionar o conteúdo da E uropa com o B rasil, para que o aluno apropriasse o
ensino de H istória com o u m a lógica que explica o presente, e que ele se visse tão sujeito dessa
M e m e s no e n sin o de H is tó r ia d e n u n c ia m a d e s ig u a ld a d e n o B ra s il
pesquisadores de ensino H istória, e claro que, nem sem pre isso se dá de m aneira com o
idealizam os, pois, ao sairm os da zona teó rica para a prática, nela encontram os: salas lotadas,
falta de m aterial, alunos desestim ulados ou agitados, norm as e diretrizes e vários tantos
elem entos que atravessam o nosso plano de aula. É um cam po de disputa entre o ideal e o real,
e nesse sentido, é im portante o professor estar atento ao seu contexto escolar e o que nele é
possível.
A o citar R üsen (2011), utilizo a teo ria da D id ática da H istória, para fundam entar que: o
conhecim ento do aluno é em pírico, ou seja, to d a a sociedade produz algo sobre a história,
portanto, o aluno é preenchido por esse conteúdo que form a a sua m em ória. A ssim , a função da
H istória de co m preender o presente a p artir do passado, não é sim ples, pois é preciso, direcionar
essa cultura histórica para um conhecim ento razoável sobre o passado. O que torna o professor
de H istória um com batente do passado que, entre outras atribuições, precisa estar conectado
com o contexto do aluno. D esse m odo, a intenção é destacar quais os aspectos do período
h istórico estudado têm relação com o presente. A pergunta é: quais as raízes do passado que
social do Facebook, na página “ Q uilom bo In telectu al263” , tive a ideia de u sar a cultura digital
som ente um caráter engraçado, m as que po d eria servir com o um instrum ento de ensino-
aprendizagem , po r conter m ensagens curtas e rápidas, associadas à im agem . A lém disso, era
Nessa conjuntura de amplo fluxo de informações, o meme passa a ser um canal que
pode trazer a informação codificada para contextos escolares sobre um tema
específico e com melhor interpretação por parte dos alunos. (Ibagón, Echeverry,
Granados. 2021, p. 141).
E nsino M édio era a R evolução F rancesa historicam ente lem brada pelo lem a “ Igualdade,
ensino do tem a europeu com aulas expositivas, vídeos, textos e afins, preparei u m a aula
expositiva para relacionar docum entos oficiais que tem seus preceitos b asead o s na revolução.
não é m ais exclusiva da F rança e o conteúdo passou a se conectar com a realidade do aluno.
C onsiderando a m agnitude dos docum entos, procurei estabelecer lim ites, com foco em
p ro b lem atizar os ideais de igualdade previstos em am bos os docum entos e, levantar aspectos
da realidade social que nos tornam desiguais. Q uanto a C onstituição Federal utilizei o “ T ítulo
Art. 5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]. (BRASIL, 1988, p.
15).
A inda que nos tex to s a igualdade seja defendia por lei, é válido destacar que o projeto
de R ep ú b lica264 foi feito e pensado pela elite brasileira, que não considerou as m ulheres, os
de classe e de gênero, em purrando esses grupos p ara a m argem da H istória. P ara A rroyo, os
m odelos organizacionais da sociedade m antêm um a estrutura, desde o período colonial, que nos
pois “ inferiorizar os povos diferentes em etnia e raça foi um a estratégia para não reconhecer
264 Ler “Brasil Mito Fundador e Sociedade Autoritária escrito por Marilena Chauí, 2000.
566
A rroyo aponta que certos elem entos presentes em leis e políticas com pensatórias, funcionam
com o ocultam ento das estruturas que nos tornam desiguais, porque diferentes.
B rasil. E, a dinâm ica se deu da seguinte m aneira: organizei os alunos em duplas e registrei na
A tiv id a d e de H is tó r ia
V ocês irão p roduzir m em es! M as, isso não será engraçado. P ois terão que
d enunciar a desigualdade social no B rasil quanto à classe, gênero e raça.
P ara tanto, será preciso:
desigualdade;
✓ U n ir a frase à im agem ;
A s atividades foram iniciadas nessa m esm a aula, podendo ser entregue na próxim a
sem ana. D urante a prática, os alunos m e procuraram para sanar suas dúvidas, m ostrar as
pesquisas encontradas, p ed ir palpites de com o term inar a frase e tam bém p ara possíveis
envolvim ento dos alunos quanto a atividade. M as, tam bém deixou evidente suas dificuldades
frente a u m a atividade de produção de conhecim ento. Pois, não havia a possibilidade de copiar
um parágrafo, não havia um a resposta certa no livro didático. E les foram convidados a pensar!
E, p ensar de form a objetiva e significativa, um pensam ento com propósito de crítica em basada.
U m a vez que, após colher d ados de um a pesquisa, u m a frase curta e objetiva deveria ser escrita.
E m consonância com esse m ovim ento, F erreira e A ndrade descrevem o percurso do uso das
TICD :
567
No mundo virtual, vive-se num outro tempo e num outro espaço. As relações que nele
se estabelecem modificam as características de seus participantes, assim como,
paralelamente, a atuação dos alunos e dos professores também se modifica. Os alunos,
a quem tradicionalmente cabia receber a informação e processá-la, veem-se, no
mundo virtual, diante do desafio da autoaprendizagem, da administração do tempo,
da autodisciplina, da comunicação mediada pelas tecnologias. (FERREIRA e
ANDRADE, 2021, p. 34).
C onsiderando que para com pletar a atividade era preciso fazer uso do aparelho celular
e acessar a internet, a p rática se to rnou possível diante de alguns fatores: a atividade foi feita
em dupla, todos os alunos possuíam celular, na falta de internet m óvel para alguns, eu pude
ro tear a m inha, e quanto ao aplicativo para m o n tar o m em e, com o alguns alunos já tinham m ais
prática com o uso, foram por vezes solicitados para digitalizar a atividade.
E assim , entre os saberes e fazeres no ensino de H istória, as diferenças que nos tornam
desiguais foram evidenciadas em im agens e frases, form uladas com base em pesquisas
quantitativas que problem atizam questões de gênero, classe e raça, seja pela violência sofrida
568
A o todo, foram criados 55 m em es, sendo que 15 abordaram tem as relacionados a
salarial. Esse núm ero tem relação com o alto índice de m eninas nas tu rm as e seus interesses p o r
pautas fem inistas. E, tam b ém p o r ser a vio lên cia contra a m u lh er no tícia de grande repercussão
nacional, o que certam ente desperta o interesse p o r pesquisas e cam panhas que discutem o tem a.
C onsiderando que o ensino e aprendizagem não cam inham de m ãos dadas, é cabível
citar que alguns alunos n ão alcançaram êxito n a atividade, criando m em es sem as características
principais exigidas p e la atividade e com frases desconexas. E, observei que u m a resistência dos
569
V isib ilid a d e n a s m íd ia s sociais
C om o advento das redes sociais, a escola é u m a instituição que tam bém se faz notar
nesse universo digital. Portanto, fui orientada pela coordenação da escola a escrever um
com o título “P rofessora de H istória trab alh a a R evolução F rancesa através de m em e s265” o
trab alh o realizado nas turm as do 2° A no do E nsino M édio foi publicado no B log da escola. E,
o m aterial produzido pelos alunos foi escolhido po r m im e pela diretora adjunta para com por a
gênero.
tam bém divulgou o trab alh o em sua página da internet, no dia 04 de ju lh o . Com o títu lo
“E studantes do ensino m édio de N o v a A ndradina criam “m em es” em aula de H istó ria 266” . O
tex to da m atéria era igual ao escrito no b log da escola, acrescido de um a frase introdutória
acerca da m etodologia vo ltad a para o uso de m ídias. E, apenas um m em e foi usado de exem plo,
com a tem ática educacional em evidência. O títu lo da m atéria tirou o foco do sujeito
‘p ro fesso ra’, que foi substituído po r ‘estudantes, o conteúdo não foi m encionado, apenas a
disciplina. E, considerando que a m atéria seria divulgada com um a outra am plitude, optou-se
A pós a divulgação no site da SED a jo rn a lista M arin a L opes entrou em contato com igo
v ia W hatsA pp com a intenção de fazer um a entrevista acerca da prática de ensino com o uso
dos m em es. E, no início de setem bro, com o títu lo “ Sucesso nas redes sociais, m em es tam bém
com poram a m atéria, ju n to com m inha narrativa acerca de com o cheguei nessa ideia e qual a
M useu do M em e269 que tem um duplo objetivo: preservar a m em ória e refletir acerca do lugar
pude particip ar do C anal F utura na segunda tem porada da série “ Idade M íd ia” que apresentou
unid ad e de com unicação m ínim a, rápida e conectada à juventude. Será que ocupam um papel
v ariadas regiões do B rasil. C om o o período ainda era pandêm ico apenas um participante estava
presente no palco e a inserção dos dem ais se deu de form a rem ota. R ecebi a proposta de
duração de 1 m inuto em resposta a seguinte provocação: Q ual o poder dos m em es em nos ajudar
a derrubar estereótipos?
atualidade, principalm ente por te r caráter dinâm ico para expressar um a m ensagem curta que
assim ila texto com im agem . Portanto, o seu poder de derrubar estereótipos está ju stam en te na
sim ples e rápida, as singularidades dos sujeitos. A lém de ser um a ferram enta que aproxim a o
ensino e a aprendizagem dos alunos, ele tam bém é capaz de fazer v eicu lar os saberes e fazeres
A traj etória do trabalho com m em es que denunciam a desigualdade social teve diferentes
esteve vo ltad a para a prática entre saberes e fazeres de sujeitos que lidam com o ensino de
proporções nacionais pelo viés educacional com ênfase no uso e nas apropriações dos m em es.
O que fica evidente a observar os títulos das m atérias quando os sujeitos ficam subentendidos
b arreiras dos m uros escolares. A credito que a notória divulgação desse trabalho com os m em es
se deu em grande m edida, não pela sua característica de transposição didática, m as por se tratar
divulgação de trabalhos que apresentam novas m etodologias de ensino e aprendizado, estão sob
dois aspectos principais: p rim eiro porque quebram o paradigm a de que ap re n d e r H istória é
m onótono e exige apenas a prática da decoreba; segundo porque encoraja os docentes a criarem
fazia parte da vivência dos alunos. O u so das m ídias na m etodologia foi utilizado com o
estratégia para aproxim ar os alunos com o ensino de H istória, e ev id en ciar que às problem áticas
sociais devem ser considerados os processos históricos. A ssim , o ensino de H istória atua na
relação entre passado e presente, e a partir das problem atizações dos processos históricos,
R e fe rê n c ia B ib lio g rá fic a :
572
A R R O Y O , G onzález M iguel. O u tro s su je ito s, o u tra s p e d a g o g ia s. 2. ed. - P etrópolis, RJ:
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d e s n e c e s s á rio ? In: O ensino de H istória no B rasil e na E spanha: um a hom enagem a Joan
P agèn B lanch / A ntoni S antisteban Fernández; C arlos A ugusto L im a F erreira (orgs.) - Porto
A legre, RS: E d ito ra Fi, 2021. p. 19 - 46.
573
"MAIS SOFFREU CHRISTO”: O CASO DE AGRESSÃO CONTRA O
PADRE JUSTINO JOSÉ DE SANT’ANNA NA FREGUESIA DE
CANAVIEIRAS, BAHIA, PELO JORNAL “A RAZÃO” (1912)
O S L A N C O S T A R IB E IR O 271
O P a d r e J u s tin o e a F re g u e s ia de S ão B o a v e n tu ra do P o x im
A rquidiocese de Juiz de Fora, M G 272, nasceu no distrito de A ram ary, à época, pertencente ao
Sem inário C entral da B ahia, em 1898, e foi ordenado sacerdote em 1904, pelo arcebispo prim az
freguesias entre 1904-1912, na extensa A rquidiocese de São S alvador da B ahia, até então, a
ú n ica circunscrição eclesiástica católica em todo estado. D estacan d o -se em m eio aos outros
construção de novos tem plos, o arcebispo D. Jerônym o T om é da Silva, o nom eou vigário da
sua igreja m atriz, desde a época do Im pério. E m C anavieiras, ele tom ou posse em fevereiro de
1912, em u m a época de m uita conturbação entre a elite política local e a elite eclesiástica.
apostolado da im prensa, ferram enta pastoral m uito com um à época em preendida pelos padres,
ten ta r convencer os fiéis católicos a se despertarem para a causa da construção de nova igreja
m atriz de São B oaventura, que j á tin h a terreno dem arcado para o início das obras, cedido pelo
p o d er executivo m unicipal, e sacram entado em doação definitiva, por resolução aprovada por
u n anim idade pela C âm ara M unicipal, em ju lh o de 1912, sancionada pelo intendente João de
D eus R am os (1912-1915).
e região.
R epública, com o m ais u m a elite de poder. E m C anavieiras, essa conturbação era sim bolizada
antiga daquela urbe até então, e que com a chegada do P adre Justino, finalm ente a construção
passaram a fazer parte da nova D iocese de Ilhéus criada p elo P ap a São P io X em 1913, instalada
em 1915, com a posse do prim eiro bispo diocesano, D. M anoel A ntônio de P aiv a (1915-1927).
N a figura 1, foto de encerram ento do retiro espiritual do novo clero de Ilhéus em 1916,
sacram entando e conferindo a elite p o lítica da região cacaueira do sul da B ahia, um contato
m ais próxim o com um bisp o da Igreja, o que era visto com m uita predileção pela elite política
e econôm ica locais, que contem plavam na realidade de ser u m a sede diocesana, o coroam ento
Figura 1 Padre Justino José de Sant’Anna, em pé a esquerda da imagem do Sagrado Coração de Jesus, em
fotografia de encerramento do retiro do clero diocesano de Ilhéus, Bahia, em 1916.
575
U m p o u c o s o b re o jo r n a l “ A R a z ã o ” (1908-1912)
dizia propriedade de “u m a empreza” , tendo po r gerente João E spinheira da C osta, tendo por
lem a “Orgam político e noticioso” . E m 1909 denuncia abertam ente o negacionism o do poder
público m unicipal, que afirm ava a erradicação da epidem ia de varío la em C anavieiras, quando
o jo rn a l denunciou a m orte de m ais pessoas da m esm a doença, e ainda am eaçou provar diante
das autoridades o que havia publicado. E m 1912, ú ltim o exem plar encontrado, j á assum ia
tam bém , com o lem a “Orgam do P artido R ep u b lican o ” . T udo indica que políticos do partido
R epublicano, são o m esm o grupo partidário, m udando som ente de nom e, consequentem ente,
1911), depois, com prando e refundando o jo rn a l “ A R azão ” , a p artir de 1912, ano da sua ú ltim a
edição encontrada.
m as, devem os a ele a notícia m ais im portante das ações pastorais dos padres para
m ovim entarem os fiéis em prol da construção da nova m atriz que iria se iniciar em 1912. T rata-
se da m ítica noite de lua cheia, am plam ente relem brado pelos antigos m oradores, do descarrego
de pedras pela população, das canoas atracadas no cais do porto, para se levar ao terreno da
nova m atriz onde se iria dar início à construção de seu alicerce com as pedras doadas pelos
m oradores das m argens do R io Pardo, com o contribuição e adesão à cam panha liderada pela
E m sentim ento de festa, descarregaram e carregaram as pedras para o terreno que viria
ser doado efetivam ente p elo m unicípio som ente no ano seguinte, 1912, po r b o a parte da
p o pulação envolvendo a participação de hom ens, m ulheres e crianças, de várias classes sociais,
A Nova Matriz273
Para as obras da nova matriz que terão começo em o mez de Setembro do corrente
anno chegaram a esta cidade na tarde de quarta feira 19, cinco canoas com pedras,
obtidas no Rio Pardo, pelo revmo. missionário, d. Bertino. Aqui chegadas as canoas,
foram o revmo. d. Bertino e os canoeiros recebidos pela Commissão das obras do
novo templo catholico, aos quaes foram offerecido magnífico jantar, às expensas do
commercio desta cidade e da mencionada Commissão, durante o qual foram erguidos
vivas a d. Bertino, aos canoeiros, aos moradores do rio Pardo e de Cannavieiras ao
nosso commercio e à Comissão das obras do novo templo. Às 5 horas da tarde, foram
descarregadas e carregadas as pedras por grande multidão de pessôas, em cujo meio
vimos distinctas e respeitáveis senhoras, senhoritas, meninos e muitos cavalheiros do
Foi tam bém pelo “ A R azão ” que em 1911, foi fundada em C anavieiras a Sociedade de
São V icente de Paulo, que na cidade adotaram o nom e de Sociedade São B oaventura, com a
seguinte diretoria eleita: E ngenheiro João M arques de Souza - P residente; P harm acêutico
presidente; D eoclides G arcia - Secretário; e A stolpho F rança - T esoureiro. E ssa Sociedade São
B o aventura supostam ente, foi u m a associação m asculina religiosa criada para com eçar a
angariar fundos para a nova m atriz, pois a m aioria dos nom es citados eram dos m esm os que
com puseram a com issão criada por D. Jeronym o T om é da Silva, em sua segunda v isita pastoral,
em 1908.
P adre Justino e estado calam itoso da velh a m atriz? Seu redator ou proprietário eram católicos
com prom etidos com o se supõe através da narrativa jo rn a lístic a publicada? Luca (2015), nos
direciona conceitualm ente nessa indagação do cuidado do historiador que usa o trabalho da
A autora diz que G lénisson endossou as palavras de outro h isto riad o r P ierre R enouvin,
D evem os nos ater a criticidade às fontes h em erográficas da nossa pesquisa, para não
nos alienarm os a elas com o palavra final, verdade irrepreensível sobre u m a problem ática que
alm ejam os fazer a H istória. D evem os sem pre investigar. Os jo rn a is de C anavieiras não são
diferentes dessa preocupação levantada por L uca (2015), pois, os periódicos pesquisados eram
chefiados sim , por partidos políticos, grupos econôm icos anônim os, e po r personalidades de
grande vulto social na elite cacaueira de C anavieiras. E m cada discurso publicado poderá existir
577
u m a m ensagem sublim inar, e não querem os passar desapercebidos do cunho dessas intenções,
m aneira, influenciaram diretam ente no deco rrer do processo construtivo de u m a nova igreja
m atriz, por u m a cidade regenerada, um a cidade bela e m oderna. N esse caso, devem os pensar
tam bém na com preensão do lugar de recepção, para entenderm os qual o perfil de quem
Para compreender este lugar de recepção adequadamente, devemos pensar nos tipos de
leitores que têm acesso ao jornal - situando-os em sua condição social, econômica,
política, cultural - entendendo que o jornal também pode disputar com outros diferentes
faixas de público. O ‘alcance espacial’ - geográfico, mas também relativo aos espaços
de sociabilidade - também precisa ser indagado. Sobre o alcance propriamente dito,
será o território nacional? Um estado da federação? Talvez um município? Há alcance
internacional? Sobre os espaços de sociabilidade, em quais deles o periódico circula?
(BARROS, 2021, p. 416-417).
B arros (2021) nos indaga a questionarm os o outro lado da história, a partir de quem
consum ia o produto im presso publicado duas vezes po r sem ana em u m a p equena cidade do sul
da B ahia, de grande territó rio m unicipal, com seus distritos e vilarejos produzindo e vivendo da
produção cacaueira, de piaçava, coco, e outros itens de subsistência. P oliticam ente com andado
pelo grupo seleto de coronéis na m anutenção do seu curral eleitoral, e dos conchavos partidários
com Ilhéus, S alvador e R io de Jan eiro . U m a im prensa dom inada, m antida, e consum ida por
esses hom ens de p o d er em C anavieiras, m as, devem os nos aprofundar m ais na pesquisa sobre
essa h istória da leitura e dos leitores da im prensa local, pois, de 1903 a 1950, sabem os da
O caso de a g re s s ã o c o n tr a o p a d r e no j o r n a l “ A R a z ã o ”
espaço em seu editorial para dar voz à Igreja, que nesse período, buscava se im p o r com o um a
elite de poder na vida política dos m unicípios através das paróquias ali instaladas, reclam ando
o restauro de seu patrim ônio físico e espiritual tam bém . D ois m eses depois da posse do Padre
Justino, em plena Sem ana Santa, na época, cham ada de “ Sem ana M aior” , ocorreu o caso de
agressão física contra o padre Justino, nas celebrações litúrgicas da S exta-feira da P aixão, no
578
Segundo o jo rn a l “ A R azão ” 274, recolhida a procissão do Senhor M orto à antiga m atriz
na S exta-feira Santa de 1912, foi verificado dentro da igreja cheia de fiéis, um grupo de rapazes
“ nam oradores” que estavam fazendo parede a fim de coagir, senhoritas com as quais j á havia
um nam orico em consenso, às escondidas dos pais das m oças, obviam ente, foi apontado o nom e
de Jachonías B om binho entre os rapazes. E sse jo v em estava acom panhando sua nam orada na
igreja, enquanto havia grande núm ero de fiéis que se apertavam em filas no interior da nave,
para irem ven erar a im agem do Senhor M orto, que po r sinal, é um a bela obra de arte sacra ainda
“A R azão ” relatou que o rapaz estava no recinto sagrado som ente po r causa da
nam orada, pois, se percebia que o rapaz estava aquém do ato de piedade cristã que ali acontecia,
segundo a fonte. N isto, Jachonías B om binho se deparou com o tabelião Joaquim R ibeiro, com
o qual trocou algum as palavras. A sequência do relato do jo rn a l, afirm a que o tabelião Joaquim
R ibeiro, pediu a Jachonías o lugar dele na fila - j á que ele estava na fila por estar - para que o
tab elião e sua fam ília fossem b e ija r os pés da im agem do Senhor M orto, em sinal de veneração
pela Sagrada P aix ão e M orte de N o sso Senhor Jesus Cristo. Jachonías se irritou com isso, e o
padre Justino interveio tentando acalm á-lo, pedindo com m uita educação, para que ele deixasse
as fam ílias se aproxim arem do esquife do Senhor M orto, e o levando, segundo a fonte,
“ suavem ente pelo braço o conduziu até a sacristia” . Jachonías sentiu-se h um ilhado e
constrangido de sair assim , levado pelo braço por padre Justino na frente de sua nam orada.
O resultado foi que, Jachonías saiu da antiga m atriz revoltado com padre Justino,
achando que o vigário o h um ilhou perante sua nam orada, e foi levado para casa pelas suas
irm ãs. C hegando em casa de cabeça quente, v o ltou à antiga m atriz, esperou o esvaziam ento da
igreja, e ficou à porta da sacristia do lado de fora da igreja, e, quando padre Justino ia saindo,
Jachonías, transtornado, o surpreendeu pulando em cim a do vigário ferindo seu rosto com um
soco, “banhado em sangue o padre apenas murmura - mais soffreu Christo.”.275 Jachonías foi
pego po r populares que ainda estavam aos arredores da antiga m atriz, escapou deles, m as
[Esse]276 infeliz moço, que não mediu a extensão do seu crime que veio
entristecer sua família e um povo inteiro, acabando com as festas sacras e
offendendo a moral de um dia consagrado ao grande e extraordinário
acontecimento do Calvário. É o caso de dizermos como o Grande Mestre:
<<Perdoae-lhe Senhor, não soube o que fez>>. (A RAZÃO, Ano V, n° 211, de
13 de abril de 1912, p. 1).
ninguém dorm iu em C anavieiras, espantados, em torno da agressão física sofrida pelo padre
Justino. A confusão causada por Jachonías B om binho, tiro u a paz e envergonhou a todos, parece
que nesta situação, o espírito secularista que influía os canavieirenses no início do século X X
foi arrefecido. Segundo as fontes houve grande com oção e solidariedade ao padre Justino. U m a
m ultidão se reportou à casa dele até m ais de três horas da m adrugada lh e prestando atendim ento
Figura 2 A antiga igreja matriz de São Boaventura do Poxim, na cidade de Canavieiras, Bahia, na década de 1910.
Demolida em 1932, após a conclusão e inauguração da nova matriz no mesmo ano.
classes sociais, pois, de pobre a rico, todos estavam perplexos e envergonhados por C anavieiras
te r servido de cenário para um padre ter sido agredido, num dia tão sagrado para a fé católica.
N o livro de tom bo paroquial, o padre José G onçalves de O liveira, em 1949, com enta sobre este
caso de 1912:
Diga-se o que quizer, porém a voz do povo é a voz de Deus: depois que o Pe. Justino
José de Sant’Anna foi esbofeteado dentro da Matriz no dia de sexta-feira da Paixão,
indo para a Sacristia com o rosto lavado de sangue, nunca mais Canavieiras teve a
satisfação de ter um vigário que se ambientasse e vivessem longos anos em seu seio.
Praz a Deus, que o sangue de Pe. Justino seja semente de almas fervorosas que com o
580
seu zelo e amor de Deus apaguem esta mancha que tem a paróquia apezar de não ter
sido Canavieiras o berço do sacrílego.
Depois da saída do Pe. Justino, esta tem sido a média: De quatro em quatro anos um
vigário. (LIVRO DE TOMBO, vol. I, 1949-1960, p. 11).
interdição canônica da antiga igreja m atriz de C anavieiras po r tem po indeterm inado. D ias e dias
depois, os canavieirenses ainda com ovidos com o ato de v io lência contra o vigário,
constrangedora. Q uase dois m eses depois, D. Jerônym o rev o g o u a interdição canônica da antiga
m atriz, que voltou a abrir as portas para o culto divino. Se aproxim ava da solenidade de Corpus
Christi, e, o padre Justino trato u aproveitar a ocasião festiva, para realizar a b ên ção da terceira
e definitiva pedra fundam ental da nova m atriz a dia 6 de ju n h o de 1912, com o encerram ento da
C o n s id e ra ç õ e s fin ais
B uscam os nesse breve artigo, apresentar m ais detalhadam ente o que com unicam os no
sim pósio tem ático, sobre a n ecessid ade de nos aterm os m ais sobre a trajetória do Padre Justino
José de S ant’A nna na F reguesia de São B o aventura do Poxim , figura de grande im portância,
pois, foi ele quem enfrentou os sinais visíveis de transform ação da sociedade local em relação
p o d er na sociedade brasileira.
com que os bispos tom assem firm es atitudes, e m esm o, atitudes contraditórias ao seu m únus, e
questionáveis pela m oral católica da época, para resguardar o patrim ônio tem poral e espiritual
da Igreja nessa nova sociedade republicana, onde não m ais havia a figura do im perador, m as, a
Igreja conseguiu im p o r a figura do C risto “ que vive, reina e im pera na T erra de Santa C ruz” ,
adaptação nacional do lem a para o A no Santo Jubilar de 1900, proclam ado pelo P apa Leão X III
(1878-1903) para ser celebrado em todo o orbe católico em m em ória dos 1900 anos de
nascim ento de C risto, e que os bispos do B rasil u tilizaram para alicerçar e ju stific a r a
continuidade do exercício de seu poder espiritual sobre a fé e cultura religiosa cristã, m esm o
581
E m C anavieiras, o papel da im prensa foi de grande im portância para discutirm os essas
D iocese de Ilhéus em 1913, tendo na figura do prim eiro bispo diocesano, o olhar da águia que
cobre todo seu território eclesiástico, tendo po r base de sustentação elite cacaueira, principal
financiadora da form ação do patrim ônio tem poral da nova diocese instalada. E m C anavieiras,
essa m esm a elite resistiu em dar à Igreja um novo tem p lo condigno p ara o culto divino, em
conflitos e desacertos que se desenrolaram por vinte anos. D esses vinte anos, o Padre Justino
encarou doze, tendo seu em penho reconhecido pela Igreja, com o p rom otor da elite eclesiástica
em ergente no B rasil. C onseguiu pôr a nova m atriz em pé, com telhado concluído, faltando o
acabam ento. D eixou C anavieiras em 1924, por te r sido eleito pelo P apa P io XI, o prim eiro bispo
para a nova D iocese de Juiz de Fora, M G , sendo ele, o prim eiro padre do clero da D iocese de
E speram os ter alcançado o objetivo dessa com unicação, há m uito por fazer, pesquisar,
estudar e escrever. E speram os com o levantam ento das fontes da im prensa e da Igreja,
atingirm os os objetivos propostos na p esq u isa em andam ento. E stam os no início da pesquisa de
doutorado em H istória pelo P rogram a de P ó s-g rad u ação em H istória da U niversidade Federal
de G oiás (P P G H -U FG ), que neste ano de 2022 com pletou 50 anos de funcionam ento,
que nos concedeu a b o lsa de pesquisa para viab ilizar este doutoram ento.
R e fe rê n c ia s
A R a z ã o , C anavieiras, B A (1908-1912).
A ta s d a Sé A p o stó lic a (1913). A cervo do A rquivo da C úria D io cesan a de Ilhéus, B ahia.
L iv ro de T o m b o d a F re g u e s ia de S ão B o a v e n tu ra do P o x im de C a n a v ie ira s (D iocese de
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583
TROPAS EM MOVIMENTO: CAMPANHAS MILITARES
ESPANHOLAS NA CAPITANIA DE MATO GROSSO (1763-1767)
O T Á V IO V ÍT O R V IE IR A R IB E IR O 277
I n tr o d u ç ã o
G rosso (1748) foi estruturada pela defesa e a consolidação da fronteira oeste da A m érica
portuguesa. E ssa unid ad e adm inistrativa confinava com as capitanias de São José do R io N egro
e do G rão-P ará (rios M adeira, M am oré e G uaporé) ao N orte; com a capitania de São P aulo e a
P rovíncia do Paraguai (rios Paraguai e Jauru) ao Sul; com as m issões jesu íticas espanholas de
M ojos (rio G uaporé) e C hiquitos (rio P araguai) a O este e com a capitania de G oiás (sertões do
A capitania de M ato G rosso era com posta po r dois distritos: V ila R eal do Senhor B om
Jesus do C uiabá (1727), no rio Paraguai e V ila B ela da Santíssim a T rindade (1752), no rio
G uaporé, sendo esta últim a, a sua capital. O s seus adm inistradores ostentavam a patente de
A sua ocupação e povoam ento foram orientados pelas disputas geopolíticas entre as
C ortes ibéricas na A m érica (T ratado de M adri, 1750) e na E u ro p a (G uerra dos Sete A nos, 1756
1763). N a A m érica, a assinatura do T ratado de M adri (1750) encam inhou a dem arcação das
fronteiras entre os dom ínios portugueses e espanhóis nos extrem os norte e sul. A efetivação da
posse territorial - uti possidetis - evidenciou a extensão e os lim ites da expansão colonial
ibérica. A revogação do T ratado de M adri (1750) pela assinatura do T ratado de El P ardo (1761)
A G uerra dos Sete A nos (1756-1763) tensionou as relações políticas e com erciais entre
Portugal, E spanha, F rança e Inglaterra. A posse e a defesa das suas fronteiras na A m érica
condicionaram as políticas coloniais im plem entadas em tem pos de guerra. Franceses e ingleses
espanhóis lutavam pela m anutenção da posse da C olônia do Sacram ento e das ilhas caribenhas.
A integração destes territórios através de redes m ercantis intra, extra e tran s im periais tornaram
277 Doutorando em História (PPGH/UERJ) e Bolsista CAPES DS. E-mail: otaviovvribeiro @gmail. co m
584
a A m érica ibérica, um espaço de extensão do conflito geopolítico vivenciado na E uropa de
A cam panha m ilitar em preendida pelos ingleses no C anadá e nas ilhas de H avana e de
M an ila desencadearam o alinham ento diplom ático entre franceses e espanhóis na retom ada do
P acto de F am ília (1763) com o estratégia de com bate a um inim igo com um : os ingleses. N o
se tornou insustentável no q u adrante da guerra europeia devido aos acordos com erciais
estabelecidos com os ingleses e a defesa de suas fronteiras nos confins da A m érica (BRITO ,
2018, p. 109-112).
aos circuitos m ercantis atlânticos alcançaram o seu ápice com a eclosão de três cam panhas
(1763-1767).
Sendo assim , este texto tem por objetivo d iscutir as cam panhas m ilitares espanholas que
se sucederam na capitania de M ato G rosso, entre 1763 e 1767. P ara tanto, partim os da análise
(1765-1768).
P o r “ com unicação política” com preende-se um sistem a de inform ação que articulou a
integração política, adm inistrativa, com ercial, fiscal e m ilitar entre o R ein o e as suas conquistas
sendo definido pelo trânsito e o expediente da com unicação estabelecida entre os oficiais das
conquistas no âm bito das suas ju risd içõ es na A m érica portuguesa (C U R V E L O , 2 0 19, p. 38
39).
A docum entação analisada é de natureza adm inistrativa, sendo com posta por
2015, p. 151). A o todo, foram levantadas 25 correspondências que estão depositadas em cinco
capitanias de M ato G rosso, Pará, G oiás e R io de Janeiro, no A rquivo H istórico U ltram arino
585
A escrita epistolar dos governadores e capitães-generais da capitania de M ato G rosso
sistem atizar as estratégias m ilitares em pregadas na sua defesa territorial; fom entar o
estreitam ento dos seus vínculos político-adm inistrativos com os oficiais de outras capitanias e
articular o atendim ento das dem andas geopolíticas im periais na esfera de m ando local.
O texto está divido em três seções: na p rim eira, abordam os a constituição da fronteira
luso-espanhola no extrem o oeste da A m érica portuguesa, a p artir das disputas pelo controle
sobre a navegação do rio G uaporé entre as C oroas ibéricas; na segunda e na terceira, discutim os
O rio G u a p o r é e a f r o n te ir a lu so -e s p a n h o la
A m érica portuguesa. A sua navegação dem arcava a fronteira luso -esp an h o la ao norte da
capitania de M ato G rosso ao constituir um anteparo territorial com as m issões jesu ític as de
M ojos e C hiquitos e com por em conjunto com os rios M adeira e M am oré - m onções do norte
Segundo L oiva C anova, o rio G uaporé “ funcionou com o referência fundam ental na
configuração de um novo m odo de rep resen tar a fronteira naquela m argem ” ao ser interpretada
pelo governo colonial com o um “ sím bolo identitário da zona de lim ites” à oeste da A m érica
lu sa (C A N O V A , 2011, p. 209).
A ocupação e o povoam ento de suas m argens foram intensam ente disputados pelas
C oroas ibéricas no século X V III. O s espanhóis foram os prim eiros a se estabelecerem na região,
a p artir da fundação da P rovíncia de Santa C ruz de la Sierra - atual B olívia (1561) e das m issões
de M ojos (1680-1767) e C hiquitos (1690-1767). A sua expansão foi orientada pelo apresam ento
P lata (sede da R eal A udiência de C harcas) e as m inas de C erro R ico de Potosí (atual B olívia)
estava situada na m argem esquerda do rio G uaporé e servia com o um “ antem ural que deveria
278 O Estado do Grão-Pará e Maranhão (1751-1772/1774) era a sede do governo português na bacia amazônica.
Essa unidade administrativa era independente do Estado do Brasil e diretamente subordinada à Lisboa. A capitania
do Grão-Pará atuava como a “cabeça” de sua repartição e a sua jurisdição abrangia os governos das capitanias de
São José do Rio Negro, Maranhão e Piauí. A sua capital estava localizada na cidade de Belém.
586
proteger as m inas de prata de Potosí de possíveis investidas portuguesas” (L U C ÍD IO , 2013, p.
260).
form adas po r 25 reduções adm inistradas por je su íta s espanhóis subordinados ao V ice-rein o do
P eru e à A u diência de C harcas. E ssas parcialidades se estendiam pelo extrem o ocidental d o rio
B eni, o centro do rio M am oré e a m argem esquerda do rio G uaporé. A sua capital foi
estabelecida na m issão de S ão Pedro. P o r sua vez, as m issões de C hiquitos eram com postas por
N a prim eira m etade do século X V III, os espanhóis expandiram o seu raio de atuação no
rio G uaporé com a fundação de três m issões jesuítas: São M iguel (1725), Santa R osa (1743) e
São Sim ão (1744). E stas reduções im plicavam restrições à expansão lusa e o acesso às m inas
de C uiabá. Com a assinatura do T ratado de M adri (1750), o rio G uaporé se tornou o elo de
integração entre as partidas279 levadas a cabo entre os afluentes dos rios A m azonas e Prata. E m
hom ens arm ados no rio G uaporé com vistas a dar prosseguim ento “ aos negócios das
dem arcações” (A PEP, C orrespondência de D iversos com o G overno, C ódice 17, d. 26). A partir
que seriam realizados nas m onções do norte, no entanto, acabaram sendo frustrados por
E ste im passe territorial foi ratificado pela assinatura do T ratado de El P ardo (1761) que
anulou o T ratado de M adri (1750). A tensão im perial foi direcionada para a consolidação das
fronteiras oeste e platina da A m érica portuguesa. N a capitania de M ato G rosso, o seu clím ax
foi alcançado com o desencadeam ento de duas cam panhas m ilitares espanholas (1763-1767) no
279 As partidas, também denominadas tropas, eram subdivisões territoriais que abrangiam as bacias amazônica e
platina na América ibérica. Aos comissários portugueses e espanhóis cabia a realização de três expedições. As
partidas do Norte (Amazônia) ficaram a cargo do governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará, Francisco
Xavier de Mendonça Furtado (1751-1759) e de D. José de Iturriaga e as do Sul (Prata), ao governador e capitão-
general da capitania do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrada (1733-1763), conde de Bobadela e Gaspar Tello
y Espinosa, marquês de Valdelirios. Os pontos de encontro das comissões na Amazônia e no Prata foram o arraial
de Mariuá (rio Negro) e Castilhos Grandes (região próxima à costa do atual Uruguai). A capitania de Mato Grosso
articulava o encontro entre os eixos Norte e Sul, através dos rios Guaporé e Jauru, respectivamente. Ela foi
integrada ao circuito da terceira partida do Norte - monções do norte.
587
rio G uaporé. A reivindicação espanhola pela devolução das m issões de Santa R osa, de São
M iguel e de São Sim ão, ocupadas pelos portugueses na sua m argem oriental co locaram em
e s p a n h o la de 1763
se a retom ada do controle sobre o com ércio interno de gêneros, de carne e de ouro praticado
Tucum ã. E ssas relações com erciais foram sistem atizadas com a fundação da C olônia do
S acram ento (1680). N o século X V III, a intensificação do com bate ao contrabando de ouro e a
exploração da pecuária bovina no circuito Potosí - B uenos A ires - R io G rande de São P edro -
Santa C atarina - São P aulo - R io de Janeiro estreitou a posse territorial e a hegem onia com ercial
A ndrada, conde de B o b ab ela (1733-1763) passou a deter a ju risd iç ã o sobre os governos das
capitanias do in terio r (G oiás, M ato G rosso e M inas G erais) e do Sul (São Paulo, R io G rande de
São Pedro, Ilha de Santa C atarina, Santos e C olônia do Sacram ento) da A m érica portuguesa.
C om a am pliação ju risd icio n al, a C oroa portuguesa buscava canalizar a exploração das ja z id a s
E sse reordenam ento político e com ercial reduziu a captação de recursos, intensificou a
concorrência de m ercado entre lusos e espanhóis e redim ensionou o fluxo de bens, de gêneros
e de escravizados africanos no rio da Prata, nos quais, m uitos espanhóis atuavam com o m ão de
B uenos A ires, D. P edro de C evallos (1756-1763) em preendeu um a cam panha m ilitar no P rata
que resultou na tom ada da C olônia do Sacram ento, dos fortes de São M iguel e Santa T ereza e
da capitania do R io G rande de São Pedro, entre 1762 e 1763. A ocupação espanhola da fronteira
platina se estendeu até 1776 e acarretou u m a grave crise no com ércio de gado escoado para o
N a fronteira oeste, as ações espanholas foram inicialm ente direcionadas para o rio Jauru
(sul da capitania de M ato G rosso) onde principiaram dem olir os m arcos das expedições de
588
dem arcação referentes ao T ratado de M adri (1750) (C O R T E SÃ O , 1969). E sses m ovim entos
não passaram despercebidos ao prim eiro governador da capitania de M ato G rosso, D. A ntônio
R olim de M o u ra que se m anteve inform ado dos seus avanços e recuos, tanto no P rata quanto
E stad o do G rão-Pará. N este sentido, destaca-se a carta enviada a M anuel B ernardo de M elo e
rio G uaporé (A PEP, C orrespondência de D iversos com o G overno, C ódice 129, d. 75).
PE R E IR A , 2017, p. 98-99). O s seus anseios não eram infundados e logo tom aram form a com
Sierra, D. A lonso B erdurgo acerca da ilegitim idade da ocupação portuguesa da antiga m issão
je s u íta de Santa R osa. A través da retó rica epistolar, D. A ntônio R olim de M oura defendeu os
seus argum entos com base nas diretrizes do T ratado de M adri (1750) e na reafirm ação do direito
de posse luso - uti possidetis - sobre a m argem esquerda do rio G uaporé. C om a expansão
de com unicação - vias terrestre e fluvial - e das distâncias existentes entre a antiga e a nova
prazo de três m eses. D ad a a relutância de R olim de M oura, D. A lonso B erdugo com pôs um a
coalizão com os governos da R eal A udiência de La P lata e do V ice-R ein o do P eru para
encam inhar um a cam panha m ilitar no rio G uaporé (PA ST E L L S, 1949, t. 1, p. 667, 750).
A prim eira cam panha m ilitar espanhola na capitania de M ato G rosso teve início em 14
de abril de 1763 e se estendeu até princípios de 1764. E la foi estruturada po r dois m ovim entos:
a im posição de um bloq u eio fluvial no rio M am oré e a p o sterio r evacuação dos distritos de V ila
com unicação fluvial entre a capitania de M ato G rosso e o E stad o do G rão-P ará v ia m onções do
norte causaria um grande déficit no seu suprim ento m ilitar. P o r sua vez, desbancada a guarnição
do fortim de N o ssa Senhora da C onceição, os espanhóis iriam desobstruir o acesso à sua v ila-
capital e às m inas de C uiabá (A H U , M ato G rosso-A vulsos, cx. 12, d. 691, 700).
sua posição no rio G uaporé. O fortim de N o ssa Senhora da C onceição contava com apenas 61
m ilitares para defender o norte e o sul de M ato G rosso. E ssa guarnição estava d istribuída da
seguinte form a: um alferes; dois cabos de esquadra; 23 soldados D ragões, cinco A ventureiros,
589
dez P edestres; um capelão e um cirurgião. A lém dos m ilitares, engrossavam as fileiras do seu
destacam ento quatro agregados; 18 escravos africanos e índios provenientes dos antigos
aldeam entos jesu ític o s espanhóis de Santa R o sa e de São M iguel (A H U - M ato G rosso-
E stad o do G rão-P ará e da capitania de G oiás foi fundam ental para salvaguardar as pretensões
lusas no rio G uaporé. D e B elém , capital do E stad o do G rão-P ará, foram enviados pelas m onções
do norte m unições e arm as para reforçar o aparelham ento de suas tro p as (A PEP,
C orrespondência de D iversos com o G overno, C ódice 126, d. 6, fl. 11; C ódice 129, d. 75;
C ódice 17, d. 64, 67); e de V ila B oa, capital da capitania de G oiás, atravessaram pelas estradas
de terra, hom ens “brancos que assentaram praça voluntariam ente, alguns m estiços [e] os m ais
[que] vieram presos em levas” em conjunto com 18.000 cruzados p ara o custeio das operações
em M ato G rosso (A H U , G oiás-A vulsos, cx. 19, d. 1167; cx. 20, d. 1216).
form ada pela m issão je su íta de L oreto e as P rovíncias de Santa C ru z de la Sierra e de B uenos
A ires com pôs um destacam ento estim ado em 1.200 hom ens - na sua m aioria, indígenas
aldeados nas reduções de M ojos e C hiquitos - com andados pelo V ice-rei do Peru, D. P edro
A prim eira cam panha m ilitar foi constituída por dois com bates m ilitares efetivos. O
prim eiro se deu no rio M am oré, quatro m eses após D. A ntônio R olim de M o u ra tom ar ciência
da m ovim entação dos espanhóis na região. O segundo ocorreu no rio G uaporé, com o
M elo e C astro (1759-1763) da rendição de “ duas C anoas g .des” dos espanhóis no rio M am oré
po r tropas portuguesas. D urante o com bate, fizeram “fugir um a logo e a outra obrigue ao m esm o
depois de lhe haver m orta a m aior p.te da gente” . U m a parte do destacam ento espanhol recuou
e deixou o seu “ alojam .to e estacada queim ada e os esteios e paus derrubados” (A PEP,
D. A lonso B erdugo não desistiu e retom ou a m ovim entação no rio M am oré com um a
p arcela de suas tropas. E m sua interlocução ep istolar com M anuel B ernardo de M elo e C astro,
D. A ntônio afiançava-lhe que a sua perm anência só reforçava a “m á fé q ’ conosco tem praticado
sem pre na execução dos tratados [de M adri, 1750 e de El Pardo, 1761] pertencentes a este
continente” . C aso o cerco se m antivesse, argum entava que “m e será necessário v aler-m e ao
590
m enos em p.te do oferecim .to de V. E x .cia porque na m inha opinião continuar o bloqueio é o
M elo e C astro no governo do E stado do G rão-P ará, Fernando da C osta de A taíde Teive (1 7 6 3
1772) ele pontou que “ cada dia se vão confirm ando m ais as notícias de se haver retirado para
Santa C ruz de La Sierra, o G o v .or daquela capital com todas as T ropas que tinha nesta
F ronteira” . A retirada torn av a “ desnecessário [o envio de] T ropas com que o Snór M anoel
B ernardo de M elo e C astro m e havia socorrido desse E stad o [do G rão-P ará]” (A PEP,
O reforço das fileiras que com punham os destacam entos do fortim de N ossa Senhora da
para o seu sustento no rio G uaporé eram insuficientes. P ara contornar a situação, o furriel José
C orrea e alguns m ilitares foram ordenados subirem o rio G uaporé em busca de gado e de
provisões para o seu abastecim ento. A sua guarnição foi surpreendida por soldados espanhóis
e índios provenientes da m issão de São P edro que os auxiliavam nas rondas fluviais. José C orrêa
e os soldados que lhe acom panhavam foram feitos prisioneiros e os dem ais que estavam
dispersos pelas m argens do rio G uaporé conseguiram fugir e reto rn ar ao destacam ento de N ossa
105).
m al arm am ento das tropas espanholas favoreceram a v itória lusa. A m issão de São M iguel foi
destruída e os seus adm inistradores, os padres jesuítas espanhóis Juan R odriguez e F rancisco
E spí foram capturados. Q uan to às baixas, estim asse que m orreram 49 m ilitares, sendo 37
A assinatura do T ratado de Paris (1763) pôs term o a G uerra dos Sete A nos (1756-1763)
na E uropa. D. A ntônio R olim de M o u ra se valeu deste acordo diplom ático p ara dar cabo das
tensões vivenciadas no rio G uaporé em m eio aos com bates m ilitares com os espanhóis. A
(m ilitares portugueses e os m issionários jesu ítas Juan R odriguez e F rancisco E spí) entre os
governos de Santa C ruz de la Sierra e de M ato G rosso não arrefeceu o litígio territorial na
intensificadas pelo protesto de posse dos d istritos de C uiabá e de M ato G rosso. A sua
591
inviabilidade geopolítica to rnou im inente o desenvolvim ento de u m a nova cam panha m ilitar na
e x tr e m id a d e ” : a c a m p a n h a m ilita r e s p a n h o la de 1766
hom ens e fabricando arm as na m issão de São P edro (capital das reduções dos M ojos) para
com porem um a nova cam panha m ilitar no rio G uaporé (A H U - M ato G rosso-A vulsos, cx. 12,
d. 738).
A lo gística dos ataques poderia seguir por duas frentes: Santa C ruz de la Sierra-V ila
B ela da Santíssim a T rindade ou N o ssa S enhora da C onceição-P araguai-C uiabá. E stes circuitos
eram estratégicos, pois abrangiam to d a a extensão da capitania de M ato G rosso e a com posição
de um a am pla zona de fronteira ainda po r ser dem arcada na segunda m etade do século X V III
N a segunda cam panha m ilitar espanhola, as suas tropas se estabeleceram novam ente no
rio M am oré, m as não protagonizaram com bates efetivos com os portugueses. O plano era
descer para o rio G uaporé e sitiar a F ortaleza de N o ssa Senhora da C onceição. O seu efetivo
m ilitar era ainda m aior, sendo form ado po r 4.200 hom ens - espanhóis e indígenas provenientes
do P eru - sob o com ando do P residente da R eal A udiência de C harcas, D. Juan de P estan a e a
rio G uaporé, A ntônio A ym erich y V illajuana optou pela edificação de u m a fortaleza na m issão
da E x altação (barra do rio M am oré) com o u m a base p a ra o p o sterio r avanço espanhol (A PEP,
do rio G uaporé. A o avistá-los, o gov ern ad o r João P edro da C âm ara afirm ou estarem “todos
u niform em ente fardados de azul, com canhões encarnados e com m uitos bons arm am entos”
(A H U - M ato G rosso-A vulsos, cx. 13, d. 792). Inicialm ente, eles “ levantaram um a b ateria de
oito peças em Santa R osa, que fica duas léguas rio abaixo [e] pu seram outro igualm ente
592
num eroso às ordens de um oficial m aior” . P assados cinco dias, um desertor lhe inform ou de um
ataque surpresa ao destacam ento de N o ssa Senhora da C onceição com o apoio de índios das
m issões de São M iguel e de Santa R osa (AHU , R io de Janeiro-A vulsos, cx. 80, d. 7167).
P edro da C âm ara, o destacam ento do fortim de N o ssa Senhora da C onceição foi reforçado e
passou a contar com 498 hom ens. O s seus regim entos eram form ados por hom ens brancos,
m ilitares nas O rdenanças (38 brancos, 36 pardos e 16 pretos), oito A ventureiros e 215 escravos
africanos portando arm as de fogo e lanças (A H U - M ato G rosso-A vulsos, cx. 13, d. 783).
fundam ental para avolum ar as fileiras de defesa da capitania de M ato G rosso. D estacaram -se,
R io de Janeiro-A vulsos, cx. 78, d. 7067; cx. 80, d. 7176), soldados (A H U , G oiás-A vulsos, cx.
22, d. 1365) e artilharia para os destacam entos da F ortaleza de N o ssa Senhora da C onceição
D e B elém , o volum e foi m ais substancial e diversificado: índios aldeados nas povoações
R eal de M ato G rosso para subsidiar as despesas m ilitares (A PEP, C orrespondência de D iversos
com o G overno, C ódice 122, d. 52, fls. 200-202, 225; C ódice 127, d. 10,11,12,16).
A lo gística dos deslocam entos e a necessidade de se m anter livre a com unicação fluvial
com o E stado do G rão-P ará dificultava ainda m ais a recepção dos seus auxílios m ilitares.
D istintam ente dos cam inhos de terra e da navegação pelas m onções, po r onde se dava a
blo q u eio pelos espanhóis nas m onções do norte seria desastrosa para a sua defesa no rio
G uaporé.
in d isciplina e as deserções nas tropas; a logística de recrutam ento de indígenas nos aldeam entos
am bientais e clim áticas locais inviabilizaram o avanço das tropas espanholas sobre o fortim de
N o ssa Senhora da C onceição, entre 1766 e 1767. A resolução da disputa foi orientada pela via
diplom ática, tendo por base, as diretrizes do T ratado de P aris (1763) e a negociação entre as
593
A navegação fluvial e as circunstâncias governativas condicionavam o êxito do envio e
da recepção da artilharia necessária à defesa da capitania de M ato G rosso. E ste fluxo se deu nos
C o n c lu sã o
ocupação e o povoam ento territorial no rio G uaporé. A expansão das m issões espanholas pelos
rios M am oré e G uaporé acirraram as relações de poder e o litígio territorial na fro n te ira oeste
O s conflitos pelo controle de sua navegação estão diretam ente associados aos
desdobram entos da G uerra dos Sete A nos (1756-1763) na A m érica ibérica: a defesa e a
consolidação de suas fronteiras e a sua integração às rotas com erciais atlânticas. E ntre recuos e
avanços, a m anutenção da posição portuguesa no rio G uaporé foi assegurada pela intensificação
de B rag an ça (1769), e, posteriorm ente, ao R eal Forte P ríncipe da B eira (1776). A ex p an são de
povoações civis - V ilas e L ugares - fom entaram a subsistência de seus destacam entos e o
com ércio de fronteira entre o E stad o do G rão-P ará e a capitania de M ato G rosso e desta com os
dom ínios de E spanha via m onções do norte: Santa A nna, (1753, rio G uaporé); São José e São
João (rio M equéns, 1756); L eom il (rio G uaporé, 1760); N o v a A ldeia de São M iguel (rio
G uaporé, 1765); B alsem ão (rio M adeira, 1765) e L am ego (rio G uaporé, 1769) (C H A V ES,
reafirm ação do direito de posse português da fronteira oeste da A m érica na segunda m etade do
século X V III.
594
R e fe rê n c ia s b ib lio g rá fic a s
596
ENSINO DE HISTÓRIA SOBRE O HOLOCAUSTO DENTRO DO TEMA
DOS DIREITOS HUMANOS: UM TRABALHO COM BASE NO
CONCEITO DE CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
P A T R IC K D U T R A 280*
FÁ B IO B O R G E S R IB E IR O JÚ N IO R 281**
M IC H E L E G O N Ç A L V E S C A R D O S O 282***
I n tr o d u ç ã o
m igrantes que se estabelecem na região, com suas fam ílias, em b u sca de m elhores condições
de xenofobia e dem ais form as de preconceito no contato entre diferentes culturas. C ontem plada
280* Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC. Graduando do Curso de História. Bolsista do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência.
281** Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC. Graduando do Curso de História. Bolsista do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência.
282*** Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC. Doutora em História pela Universidade do Estado de
Santa Catarina, UDESC. Coordenadora do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência.
597
o program a em subprojetos. D esta form a, o S ubprojeto de H istória do P IB ID /U N E S C elencou
com o objetivo levar os acadêm icos do C urso de H istória a ter um p rim eiro contato com a
educação básica, por m eio de intervenções nas salas de aula acom panhadas pela professora
C riciúm a/SC .
F rente ao caráter de m ulticulturalidade que m arca o perfil social das escolas m unicipais,
o S ubprojeto de H istória do P IB ID /U N E S C teve com o objetivo central trab alh ar com o tem a
das m igrações e o ensino de H istória dentro do tem a dos D ireitos H um anos, p artindo do trabalho
com o conceito de consciência histórica, fenôm eno social de orientação individual frente a
realidade histórica dos sujeitos. A tu rm a escolhida para aplicar os trabalhos com estes tem as foi
um 9° ano do E nsino Fundam ental A nos F inais, espaço que possibilitou o desenvolvim ento do
projeto, com o tem a da Segunda G uerra M undial, discutindo especificam ente o H olocausto.
P ara isso, foi respeitado o planejam ento de ensino da professora supervisora da escola e
R e fe re n c ia l T e ó ric o
C riciúm a/SC , caracterizada por m últiplas existências e culturas, os acadêm icos do S ubprojeto
responsabilidade da sociedade para com a defesa e o cum prim ento dos D ireitos H um anos.
V isando com preender o que são os D ireitos H um anos e com o organizar o ensino em
defesa dessa tem ática, adotam os com o referencial teórico os escritos de M aria V ictoria
B enevides (2007) e de D ouglas O restes F ranzen (2015), que propõem o ensino de história a
p artir da com preensão dos D ireitos H um anos, apontando a im portância do desenvolvim ento de
dignidade da pessoa hum ana com o prática n o rtead o ra de u m a intervenção educacional, devendo
levar em consideração que os D ireitos H um anos são aqueles considerados inerentes a todas as
pessoas e essenciais à vida com dignidade. Tal form ação deve b u scar elim inar e desconstruir
preconceitos enraizados, form as de discrim inação, exclusão e não aceitação das diferenças.
598
F ranzen (2015) levanta aspectos legislativos referentes a educação e a efetivação d o s D ireitos
H um anos, propondo um projeto de ensino em sala de aula que aborde os tem as da R evolução
Francesa, D eclaração U niversal dos D ireitos H um anos e a C onstituição B rasileira de 1988, para
C om relação à C onsciência H istórica, Schm idt et al (2011) a define com o um fenôm eno
de organização m ental individual, que busca u m a orientação em relação ao tem po, perm itindo
ao indivíduo entender o lugar que ocupa em seu existir, a partir de narrativas históricas e
aprendizagem :
desenvolvem os duas atividades pedagógicas que buscaram articular o ensino de H istória com
M e to d o lo g ia
P ara atingir os objetivos propostos dentro do projeto com a turm a de 9° ano da escola
m unicipal de educação básica, foram realizadas leituras e discussões sobre o tem a dos D ireitos
H um anos, a partir dos escritos de B enevides (2007), que defende um ensino em defesa desta
tem ática, construindo relações com os estudos de Jorn R üsen sobre C onsciência H istórica,
segundo os quais, o indivíduo pode ser influenciado pela história e seu contexto, m as ele
tam bém é um sujeito ativo nela, u m a vez que estes teóricos abordam a consciência histórica
puderam desenvolver m ateriais pedagógicos para aplicação em sala de aula. N este sentido,
599
A prim eira atividade abordou a questão do antissem itism o no contexto europeu do
aprofund ado e institucionalizado pelo regim e nazista. A ssim , as perseguições antissem itas do
R eich foram apoiadas por grande parte do povo alem ão e das populações de países dom inados,
com o F rança e Polônia. N esse sentido, B runo G roppo (2015) destaca que os regim es ditatoriais
são sistem as que exercem dom ínio baseados na força e na violência, porém eles não se
sustentam apenas po r isso, m as tam bém precisam de um a base social e de apoio de parte da
p o pulação:
A ditadura nazista, por exemplo, gozou de amplo apoio popular que durou até o fim,
e que diminuiu apenas com a proximidade do fim da guerra: na Alemanha não houve
um movimento de resistência armado, uma guerra civil ou uma insurreição popular,
como foi o caso da Itália, e foi apenas a derrota militar que pôs fim ao regime. A
imagem de um regime nazista baseado exclusivamente no terrou e no controle policial
da população não corresponde, portanto, à realidade (GROPPO, 2015, p. 45).
Figura 1 - Recorte de página da História em Quadrinhos Maus: a história de um sobrevivente, com destaque
para a leitura do autor sobre o antissemitismo na sociedade polonesa.
de A rt Spiegelm an. N essa obra o autor conta as m em órias de seu pai, V ladek Spiegelm an, um
essa história, o autor representa as pessoas com rosto de anim ais, conform e as etnias (judeus
são representados com o ratos, alem ães com o gatos, poloneses com o porcos). P ara a atividade
cidadãos com uns com o regim e nazista, com o objetivo de refletir sobre a responsabilidade da
sociedade para com a defesa e o cum prim ento dos D ireitos H um anos. A p artir da leitura dos
D ireito s H um anos. N esse sentido, citando eventos recentes que trouxeram à to n a o assunto da
colaboração com os nazistas na P olônia, B runo G roppo discute sobre a dificuldade da sociedade
diante desse tipo de m em ória, que evoca a responsabilidade dos cidadãos diante de violações
europeia do período entre guerras com o holocausto ju d eu , utilizando a exposição Entre Aspas,
disponível v irtualm ente no M useu do H olocausto de C uritiba/PR . A exposição tem por objetivo
reu n ir depoim entos de pessoas que tiveram suas vidas atingidas pelas perseguições nazistas do
de B unia K ulish Finkiel, que precisou se esconder por m eses em um pequeno porão, ju ntam ente
com outros m em bros da sua fam ília, antes de ser capturada e enviada à A uschw itz-B irkenau.
estudantes sobre os períodos históricos de to talitarism os que levaram a Segunda G rande G uerra,
problem atizando a falta de condições básicas de existência im postas a pessoas que vivenciaram
históricos, realizam os u m a análise das privações que m ilhões de pessoas ainda passam na atual
realidade social brasileira, caracterizada pela desigualdade, m ostrando o aspecto hum ano no
EU MEMÓRIA
BUNIA FINKIEL
1922-2018
História:
Aos 14 anos, Chana R am foi capturada pelos nazistas. Seu pai, judeu ortodoxo, teve a
barba cortada e foi obrigado a segurar um porco para tirar uma foto. Marcada no braço
e pesando 19 quilos, foi liberada do complexo de extermínio nazista de Auschwitz-
Birkenau. No Brasil, reconstruiu sua vida e precisou lidar com outras perdas. Ainda vive
em Belo Horizonte.
Gazeta do Povo
de privações m ateriais básicos a que estão subm etidas partes da sociedade, utilizando esta
desum anização do H olocausto, fazendo um vínculo com o tem a dos D ireitos H um anos. Para
cidade de C riciúm a.
R e s u lta d o s
C riciúm a, a p artir da supervisão da professora titu lar de educação básica, foi possível
debates, partindo dos problem as sociais presentes nas realidades de privações básicas a que
estão inseridos m ilhões de b rasileiros com o im pulso aos estudos do passado. N a sequência,
602
foram desenvolvidas as sequências didáticas desenvolvidas pelos acadêm icos bolsistas, levando
Spiegelm an, foi proposto aos alunos que realizassem questionam entos em torno do tem a das
m igrações, diferenças étnicas e culturais e o papel que a sociedade deve assum ir em defesa dos
im postas a pessoas que vivenciaram a perseguição nazista e relacionar estas privações ao tem a
do D ireitos H um anos, com preendendo que os D ireitos H um anos são aqueles essenciais a todas
as pessoas, desde o princípio da liberdade e do direito à vida, até o acesso aos itens m ais básicos
sobre o ensinar história, o trabalho com as consciências históricas e o estudo sobre o ensino a
proporcionou aos acadêm icos do C urso de H istó ria o contato com a realidade da educação
básica, possibilitando u m a form ação ligada a prática e a teoria e contribuindo para a qualidade
C o n c lu sã o
P o r m eio das discussões teóricas e das orientações em grupos, foi possível construir
desenvolver u m a educação voltada aos D ireitos H um anos, visando um trabalho a p artir das
m últiplas consciências históricas que com põem o am biente das salas de aulas. O s trabalhos
foram realizados com os tem as dos totalitarism os e conflitos m undiais, tendo com o foco o
da sociedade para com a defesa e o cum prim ento dos D ireitos H um anos. C om a aplicação das
atividades didáticas na escola, foi possível desenvolver debates sobre m igração e diferenças
60 3
com preender que os D ireitos H um anos correspondem à garantia de condições b ásicas de
de aula, foi possível aos acadêm icos bolsistas a form ação v inculada à realidade de u m a escola
pú b lica da cidade de C riciúm a/SC N esse sentido, o P IB ID /U N E S C cum priu o seu papel com o
acadêm icos das licenciaturas a oportunidade de contatos com a educação básica ainda na
R E F E R Ê N C IA S
604
POLÍTICAS PÚBLICAS DE IDENTIFICAÇÃO, PROTEÇÃO,
SALVAGUARDA, VALORIZAÇÃO E DIFUSÃO DE BENS CULTURAIS: O
“ICMS - ÍNDICE DO PATRIMÔNIO CULTURAL” NO ESTADO DE MINAS
GERAIS.
P A U L O SÉ R G IO D A S IL V A 283
A N A P A U L A D A S IL V A 284
difusão de bens culturais. E m face da previsão legal de que 25% do Im posto Sobre O perações
Interestadual, Interm unicipal e de C om unicação (IC M S ) pode ser repassado aos m unicípios,
conform e regulam entação própria, M inas G erais im plantou um a legislação específica com o
estratégia de estim ulo para que governos m unicipais aderissem às políticas de patrim ônio
cultural, educação, saúde, m eio am biente, produção de alim entos, entre outros, a p artir da
edição da Lei E stadual 12.040/1995, popularm ente designada com o “Lei R o b in H ood” , que foi
Segundo ela, percentuais das receitas obtidas por m eio da arrecadação do ICM S
pertencentes aos M unicípios são distribuídos segundo critérios específicos, definidos em seu
A nexo I (art. 1°, caput). E ntre eles está previsto o do P atrim ônio C ultural: “relação percentual
entre o Índice de P atrim ônio C ultural do M u n icípio e o som atório dos índices de todos os
(Art. 1°, VII), estabelecido a partir dos seguintes atributos: N ú cleo H istórico (NH), C onjunto
U rbano ou P aisagístico (CP), B ens Im óveis (BI), B ens M óveis (B M ), R egistro de B ens
C ulturais Im ateriais (RI), Inventário de P ro teção do P atrim ônio C ultural (IN V ), E ducação
P atrim onial (EP), P lanejam ento e P olítica M unicipal de P roteção ao P atrim ônio C ultural e
outras ações (PC L) e F undo M unicipal de P reservação do P atrim ônio C ultural (FU ), itens nos
quais os m unicípios podem o b ter pontuações variáveis segundo intervalo m ínim o e m áxim o,
de acordo com sua com posição geográfica, populacional e dem ais condicionantes técnicos.
passaram a im plantar e desenvolver ações na área do patrim ônio cultural. A tuam seguindo as
2831 Universidade Federal de Uberlândia - Instituto de História, Doutor em História. E-mail: paulosilva@ufu.br
284 Universidade Estadual Paulista - UNESP - Campus de Franca/SP. Doutora em História. E-mail:
anapaulahistoria@vahoo.com.br
605
orientações definidas na Lei R obin H ood e guiam -se pelas determ inações conceituais e
esse órgão cabe a análise anual da docum entação po r eles enviada, com probatória da
im plantação e/ou da execução dessas políticas públicas, segundo os p receitos norm ativos
D esde a origem da previsão legal do índice do P atrim ônio C ultural, nas duas leis
anteriores e na atualm ente vigente, a 18.030/2009, foi atribuído o percentual de 1% das receitas
do IC M S a ser distribuído aos m unicípios por tal índice. À prim eira vista, tal porcentagem
p arece tratar de recursos de pouca m onta. C ontudo, desde sua im plantação, são valores
significativos, vide as transferências via IC M S - Índice P atrim ônio C ultural feitas aos
M unicípios m ineiros de 2002 a 2019, no gráfico abaixo, elaborado a p artir dos dados da
Fonte dos dados: Fundação João Pinheiro. Pesquisa dos Demonstrativos da Receita de ICMS / IPI-exportação pelo
ano e mês de referência - Critério do Patrimônio Cultural. (2002-2019). Disponíveis em <http://robin-
hood.fjp.mg.gov.br/index.php?option=com iumi&fileid=7&Itemid=70> . Acesso em: 04 nov. 2022.
Organização: Paulo Sérgio da Silva e Ana Paula da Silva
distribuído aos m unicípios m ineiros que fizeram ju s a pontuação nesse critério significou a
divisão de um bolo que foi de R $ 20.954.460,89 (vinte m ilhões, novecentos e cinquenta e quatro
m il, quatrocentos e sessenta reais e oitenta e nove centavos), em 2002 para R $ 100.356.775,15
(cem m ilhões, trezentos e cinquenta e seis m il, setecentos e setenta e cindo reais e quinze
606
dois m ilhões, novecentos e oitenta e nove m il, cento e quarenta e quatro reais e quarenta
e sessenta e cinco m il, quinhentos e oitenta e seis reais e noventa e três centavos).
N esse cenário, com recursos crescentes e de tal m agnitude, a m aioria dos m unicípios do
desenvolver ações na área do patrim ônio cultural, segundo as diretrizes definidas na Lei R obin
m odo tal órgão assum iu um papel essencial nos rum os das ações culturais dos m unicípios
públicas e ações voltadas para o patrim ônio cultural. T ornou-se, o responsável pela definição,
revisão e aprim oram ento das ações de proteção aos patrim ônios culturais m unicipais, num a
pelos m unicípios, com probatória da im plantação e/ou da execução dessas políticas públicas,
segundo os preceitos norm ativos estabelecidos po r aquela autarquia estadual via resoluções e
p o ntuação que será utilizada com o índice no cálculo do repasse do IC M S -P atrim ônio C ultural,
no ano seguinte ao da avaliação. O u seja, no final de 2021 o m unicípio enviou a docum entação
com probatória dos program as e ações desenvolvidos naq u ele ano; essa docum entação é
2023 o m unicípio com eça a receber repasses fin an ceiro s em seu exercício fiscal. E assim ,
sucessivam ente.
sistem ática e as diretrizes m etodológicas pelo IEPH A , to rn a-se interessante identificar a adesão
e a participação dos m unicípios m ineiros nesse novo m odelo de gestão e prom oção de políticas
607
Fonte dos dados: IEPHA/MG. Tabelas de pontuação definitiva - Exercícios de 1996 a 2021.
Elaboração: Paulo Sérgio da Silva e Ana Paula da Silva
participantes oscilou positivam ente na m aioria dos anos, com expressivos aum entos, entre os
exercícios 2002/2004, 2006/2011 e 2016/2021. L em brando que atualm ente no E stado existem
853 m u n ic íp io s, é significativo o fato de que a p artir de 2006, onze anos após a adoção da
estrutura trib u tária que previu o índice do P a trim ô n io C ultural, 593 m u n ic íp io s, ou seja, 7 0 %
políticas públicas locais voltadas para tal setor. Percentual crescente que chegou a
e x ercício 2021 de 9 9 ,7 5 % (noventa e nove virgula setenta e cinco po r cento), respectivam ente
O utra form a de v erificar o engajam ento dos m unícipios do E stado de M inas G erais na
política estadual de proteção do patrim ônio artístico, h istórico e cultural é por m eio da análise
do quantitativo dos bens protegidos pelo tom bam ento, com preendendo bens m óveis e im óveis,
conjuntos urbanos e paisagísticos e núcleos históricos tom bados pela U nião, E stad o e
H istórico e A rtístico), M inas G erais conta com 4.837 ( q u a tr o m il, o ito c e n to s e t r i n t a e sete)
b ens to m bados pela U nião, E stado e M unícipios, distribuídos nas categorias acim a referidas.
608
R esta identificar no conjunto de tais bens protegidos, quantos o são por interm édio do
to m b am en to m unicipal. A análise dos dados disponíveis perm ite a constatação de que entre os
alçados a essa condição a p artir da atuação de atores, ag en tes e gestores que estim ulados pela
política estadual do IC M S - P atrim ônio C ultural adotaram para tais bens a proteção conferida
4500 4403
4000
3500
3000
2500
2000
1500
1000
500
0
B e n s T o m b a d o s p e lo s M u n ic íp io s B e n s t o m b a d o s p e lo s U n iã o o u
E s ta d o
Fonte dos dados: IEPHA/MG. Relação dos bens protegidos por Tombamento.
Elaboração: Paulo Sérgio da Silva e Ana Paula da Silva
A análise dos dados dem onstra que, até no final de 2021, no conjunto dos bens
são por interm édio de to m b a m e n to s m u n ic ip a is , ou seja, 4.403 ostentam tal condição frente
ao total dos 4.837 protegidos por tal instrum ento. Portanto, apenas 434 são bens tom bados pelo
U n ião ou pelo E stado, sendo todos os dem ais protegidos na esfera m unicipal. S eguindo no
escrutínio dos dados, descobre-se que na proteção de seus bens artísticos, históricos e culturais
p o r c e n to ) dos m u n ic íp io s.
609
Fonte dos dados: IEPHA/MG. Relação dos bens protegidos por Tombamento.
Elaboração: Paulo Sérgio da Silva e Ana Paula da Silva
indução coordenada pelo governo de M inas G erais estim ulou e consolidou a m unicipalização
da política de patrim ônio cultural no E stado. F orm atou-se um sistem a de gestão m ediante a
progressiva na área do patrim ônio cultural, na m edida em que as ações foram sendo
estadual.
A dem ais, m ediante com pensação financeira, os m unicípios m ineiros foram estim ulados
a fo rm u lar e a im plantar políticas públicas de patrim ônio cultural, condicionadas aos critérios
estabelecidos pelo In stituto E stadual do P atrim ônio H istórico e A rtístico de M inas G erais
(IE P H A /M G ). P o r exem plo, estão sujeitos a estrita observação e satisfação aos itens
obrigatórios exigidos nos dossiês de to m bam entos e de registros m unicipais, os quais em bora
executados em âm b ito local encontram -se adstrito a análise e v alidação da autarquia estadual
educação patrim onial e da obrigatoriedade da criação dos F undos M u n icip ais de P atrim ônio
C ultural, destinados a aplicação obrigatória de determ inados p ercen tu ais dos recursos oriundos
610
N esse aspecto, foi significativo o fato de que na atualização da lei R obin H ood, a redação
da 18.030, de 12 de ja n e iro de 2009, em seu anexo II, passou a contem plar o p a trim ô n io
em desenvolver ações voltadas a tais bens, no to can te aos registros e/ou salvaguarda, com vistas
E fetivada a inserção do patrim ônio im aterial no rol de bens culturais contem plados na
serem observadas pelos m unicípios na m ontagem e no trâm ite dos dossiês de registro de bens
culturais im ateriais. A tualm ente, novem bro de 2022, nos term os da D eliberação N orm ativ a
vigente a D N 20/2018, entre os quadros de docum entações exigidas pelo órgão para o m unicípio
ser pontuado no critério IC M S -P atrim ônio C ultural, encontra-se o Q uadro II, que condensa,
entre outras coisas, as norm as a serem observadas para a com posição dos dossiês de registros
na esfera m unicipal.
artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as com unidades, os grupos e, em
alguns casos, os indivíduos reconhecem com o parte integrante de seu patrim ônio cultural” .
A rcabouço id entitário que é transm itido de g eração em g eração e constantem ente recriado pelas
com unidades e grupos em função do seu am biente, de sua interação com a natureza e história,
para o qual o registro é um in strum ento de proteção, cujo objetivo é valorizar tais grupos,
reconhecer a sua cultura com o parte do p atrim ônio cultural e oferecer m eios para garantir a sua
P ara obter pontuação relacionada ao P atrim ônio Im aterial, o m unicípio deve enviar cópia
ao órgão estadual do dossiê de registro de cada um dos seus bens culturais im ateriais protegidos.
E m tal processo são exigidos itens técnicos, tais com o: introdução, histórico, depoim entos
análise descritiva, docum entação audiovisual, docum entação fotográfica (m ínim o de 20 fotos
aos quais se som am um a série de docum entos adm inistrativos, a saber: p roposta de registro,
declaração de anuência da com unidade e/ou de seu representante, ata da reunião do C onselho
M unicipal do P atrim ônio C ultural que aprova o registro do bem im aterial, com provação de
611
publicidade da decisão sobre a aprovação do registro, eventuais im pugnações ao registro, se
do dossiê de registro m unicipal gera nota autom ática tão som ente no prim eiro exercício. N os
anos subsequentes, os p ercentuais atribuídos ao(s) b em (ns) cultural(ais) são definidos m ediante
um a com plexa engenharia que im plica a efetiva com provação, pelo M unicípio, via
docum entação enviada ao órgão, da execução do P lano de S alvaguarda do bem protegido pelo
registro, investim entos e despesas financeiras no bem cultural im aterial e ações de difusão
C om pete ressaltar, portanto, que o desafio do m unicípio não é som ente p ontuar via
docum entação enviada ao IE PH A /M G , m as m anter essa pontuação ao longo dos anos, sendo
registro ao órgão, 10 (dez) anos após a inscrição do bem cultural em um dos livros de registro
cultural, a partir da Lei 18.803 de 12/01/2009, gerou ações m unicipais ao longo do ano de 2010,
cuja docum entação foi enviada ao IE PH A /M G , no final daquele ano, analisadas e pontuadas
em 2011, gerando efeitos financeiros no exercício de 2012. O m apeam ento da relação entre os
m unicípios que pontuaram no IC M S -P atrim ônio C ultural, em sentido geral, e aqueles que
conseguiram obter pontuação relativa a bens im ateriais (seja pelo processo de registro e/ou por
execução de ações de salvaguarda e difusão), desde então e até o ano de 2020, resu lta na
seguinte configuração:
612
R epresentados graficam ente, observa-se a seguinte com posição:
Fonte dos dados: IEPHA/MG. Tabelas de pontuação definitiva - Exercícios de 2012 a 2020.
Elaboração: Paulo Sérgio da Silva e Ana Paula da Silva
crescim ento significativo no período analisado, especialm ente a partir do ex ercício de 2017,
746/805, aproxim adam ente 9 3 % , em 2020. O s dados indicam a consolidação da adesão dos
m unicípios m ineiros às políticas e ações patrim oniais voltadas ao patrim ônio im aterial, de
E stad o em relação a essa tipificação patrim onial. N o conjunto, a forte adesão e as ações culturais
patrim ônio e da agenda pública em relação à identificação, proteção, prom oção, salvaguarda e
C abe d estacar que nos últim os anos, em favor do reconhecim ento e salvaguarda do
relacionadas com a catalogação de determ inados segm entos e grupos culturais, com destaque
para três delas: o in v e n tá rio d a s F o lia s d e M in a s G e ra is (para fins de registro das F olias de
fazer e o to ca r com o patrim ônio cultural de M inas G erais, m ediante cad astro dos violeiros(as)
61 3
reconhecim ento de tais práticas e grupos com o patrim ônio cultural im aterial do estado, afim de
id en tificar tais bens culturais e articular a sua salvaguarda). E m tais ações coube as entidades e
aos m unicípios cadastrarem os seus respectivos grupos de folias de reis ou outras, ternos ou
grupos de C ongadas, luthiers e violeiros, sendo consideradas tais catalogações para fins de
p o ntuação no quesito patrim ônio im aterial. A ssim sendo, essas ações geraram im pactos na
contabilizar nas suas pontuações com itens de patrim ônio im aterial de reconhecim ento estadual.
no quesito patrim ônio im aterial, especialm ente a p artir do exercício 2017, não seria em virtude
da m era adesão dos m unicípios as três ações desenvolvidas pelo IE PH A /M G , acim a reportadas?
P ara afastar tal hipótese, um dado é essencial, recorde-se que o registro, enquanto instrum ento
de identificação, valorização, salvaguarda e difusão do patrim ônio cultural, pode ser conferido,
atribuído, decretado pelo m unicípio a um dado bem im aterial, unicam ente po r sua
representatividade local. E ntão, com pete identificar se existem e quantos são os registros
municipais e quantos municípios o utilizaram, no lim ite de suas com petências legais e
adm inistrativas aplicando-o aos seus bens culturais im ateriais de representatividade local.
IE PH A /M G , discrim inados na lista dos bens, protegidos pelo R egistro de B ens Im ateriais, pela
U nião, pelo E stado e pelos M unícipios, apresentados ao órgão p ara fins de análise e pontuação
G erais de 2.427 (dois m il, q u a tro c e n to s e v in te e sete) bens de tal categoria e sob tal nível de
proteção, ao final do ano de 2021. N esse conjunto, identificam -se 854 (o ito c en to s e c in q u e n ta
e q u a tr o ) b ens im a te ria is com r e g is tro m u n ic ip a l, ou seja, que são protegidos exclusivam ente
no E stado de M inas G erais, até o final de 2021, o são por re g is tro s m u n ic ip a is.
614
Bens com Registro (Patrimônio Imaterial) no
Estado de Minas Gerais (2021)
1800
1600 1573
1400
1200
1000
800
600
400
200
0
Registro pela União ou Registro pelo M u n ic íp io
Estado
Fonte dos dados: IEPHA/MG. Relação dos bens protegidos por Registro.
Elaboração: Paulo Sérgio da Silva e Ana Paula da Silva
m unicípios do E stados de M inas G erais adotaram políticas públicas de prom oção, salvaguarda
e difusão de seu patrim ônio cultural im aterial, m ediante re g is tro s m u n ic ip a is de tais bens, em
contraposição a outros 370 m unicípios que ainda não atuaram nesse nicho.
Fonte dos dados: IEPHA/MG. Relação dos bens protegidos por Registro.
Elaboração: Paulo Sérgio da Silva e Ana Paula da Silva
615
O s dados e as análises apresentadas nas páginas anteriores deixam claro que as políticas
difusão do patrim ônio cultural no E stado de M inas G erais, via recursos financeiros do IC M S -
P atrim ônio C ultural e orientação técnica, supervisão, acom panham ento e análise do Instituto
E stadual do P atrim ônio A rtístico e C ultural de M inas G erais (IE P H A /M G ) dem onstram a
efetiva incorporação e adoção de ações, projetos e program as voltados para o patrim ônio
cultural m aterial e im aterial, na grande m aioria dos 853 m unicípios do E stado. D em onstram o
p eculiares locais e o com ando estadual do IE PH A /M G , situação que resultou, não restam
dúvidas, na adoção de um a agenda técnica e política progressiva na área do patrim ônio cultural,
na m edida em que as ações foram sendo disciplinadas, adaptadas e readequadas via resoluções
e deliberações norm ativas do órgão estadual, ao m esm o tem po em que as ações e práticas dos
E videntem ente existem problem as que precisam ser discutidos e trabalhados, tais com o:
o excessivo apego aos resultados financeiros das ações po r p arte de algum as P refeituras, em
detrim ento do com prom isso efetivo com um a política de proteção, salvaguarda e valorização
do patrim ônio cultural; as descontinuidades nas práticas, projetos, ações, na gestão e condução
das políticas m unicipais relativas a tal setor, em virtude das repetidas m udanças de equipes nas
secretarias e/ou departam entos de cultura nos m unicípios devido a eleições e m udanças de
gestão; o surgim ento e a proliferação de em presas de consultorias, m uitas vezes com ex-
program as estranhos às reais dim ensões culturais locais e à efetiva participação social na
inúm eros resultados positivos da política patrim onial desenvolvida no E stado de M inas G erais,
adesão dos m unicípios m ineiros as políticas públicas estaduais voltadas para a identificação, a
616
R E F E R Ê N C IA S D O C U M E N T A IS
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617
A A S S IS T Ê N C IA A O S U L D O P IA U Í N O P O S T O D E H IG IE N E D E
F L O R I A N O ( 1 9 3 1 - 1 9 3 5 ) 285
R A K E L L M IL E N A O S Ó R IO S IL V A 286
JO S E A N N E Z IN G L E A R A SO A R E S M A R IN H O 287
O prim eiro governo V argas provocou avanços para as políticas sociais de saúde do país.
P ara a m udança desse panoram a, ainda em 1930, foi criado o M inistério da E ducação e Saúde
P ú b lica (M E SP), que visava a rem odelação dos serviços sanitários e a incorporação da po lítica
social para a população que não fazia parte da m edicina previdenciária, com o atribuição do
E stado, um a vez que essas m udanças j á estavam em um processo lento e contínuo desde o final
285 Este trabalho é resultado de uma pesquisa em andamento do projeto PIBIC CNPq, da Universidade Estadual
do Piauí- UESPI, com vigência 2021-2022, intitulado “Curar com ciência e prevenir com cautela: os postos de
higiene e a interiorização da saúde pública no Piauí (1930-1949)”, sendo orientado pela Prof.a Dr.a Joseanne
Zingleara Soares Marinho.
286 Graduanda do 7° Período em Licenciatura em História pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Bolsista
CNPq 2021-2022, membra do Núcleo de Estudos em Estado, Poder e Política- NEEPP e do Grupo de Pesquisa
em História das Ciências e da Saúde no Piauí (Sana). E-mail: rakellosorio@gmail.com.
287Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná- UFPR. Professora Adjunta da Universidade Estadual
do Piauí- UESPI. Docente do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História- ProfHistória. Professora
Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil (PPGHB) da Universidade Federal do Piauí-
UFPI. E-mail: joseannemarinho@cchl.uespi.br.
618
da década de 1910, com reform as e expansão do serviço de profilaxia rural e saneam ento, em
especial, no com bate de endem ias. N esse período, o quadro sanitário da capital, o R io de
Janeiro, ainda não grassava da form a desejada, m esm o havendo a concentração dos program as
presença de diversas doenças endêm icas e epidêm icas, tais com o: tuberculose, sífilis e doenças
Segundo H ochm an (2002), esse ideal de saúde pública foi im portante para a construção
nacional, especificam ente a p artir da década de 1920, pois foi p artilh ad a po r m édicos higienistas
e elites políticas, que visavam um B rasil m odernizado e, para isso, era necessária a incorporação
ro m p er com essa ideia do país com o “um im enso hospital” , advindo do discurso m édico de
M iguel P ereira, proferido em decorrência das endem ias que assolavam a região rural, tendo
repercussão persistente e decisiva, onde in fluenciou em políticas públicas de saúde na prim eira
O s resquícios da P rim eira R epública ainda estavam latentes no pós 1930, onde as
relações desiguais entre os estados se orientavam através das noções de privilégio e exclusão.
N esse cenário de constantes m udanças, em que as norm as foram feitas e desfeitas, e o E stado
passara a ser o principal prestad o r desses serviços, com um a forte cam panha de nacionalização
p autada na m odernização do sistem a político da união, a saúde pública seria delineadora desse
A s ações de saúde pública, antes b aseadas em sua totalidade na cura e tratam ento das
enferm idades, passaram a com binar de form a peculiar as m edicinas preventiva e curativa,
B elisário P en n a foram im portantes com o fo rm a de alerta sobre o saneam ento rural, sobre as
várias endem ias que atingiam essas localidades, com o a m alária e a febre am arela.
prioridades foram definidas, não se restringindo som ente a capital e o espaço urbano, v oltando-
se para o interior do país, com o o hom em do cam po e suas endem ias rurais, que se sobressaiam
antes m esm o do início da década de 1930, m as só nesse m om ento foram tratadas com o pautas
para debate.
A antiga natureza da saúde pública foi rem odelada em todo o país de form a gradual
pelos interventores federais designados pelo presidente p ara cada estado, pois não havia
através da gestão do interventor federal L andry Salles G onçalves, que foi responsável por
A ntes da década de 1930, no contexto político de P rim eira R epública, o Piauí passava
na condição secundária que a saúde pública se encontrava, com péssim as condições de higiene
in fraestrutura básica de abastecim ento de água potável e sujeira predom inante nas ruas das
capitais do país, contou com a instalação do prim eiro P osto Sanitário do estado, em 1921, no
P osto Sanitário C lem entino Fraga realizava vacinações e revacinações contra varíola e oferecia
serviços dom iciliários, com inspeções v isando a fiscalização dos doentes que não buscavam
tratam ento. (SIL V A , 2019). C om o a organização ainda estava em fase inicial, o estado
priorizava outras atividades em detrim ento da saúde e, dessa form a, a D iretoria de Saúde
P ública, que tin h a com o foco regular e organizar as atividades e serviços sanitários, atuava de
m esm o R elatório G overnam ental de 1922, o governador do estado João L uiz Ferreira apontava
que m esm o com algum as delegacias distribuídas pelo estado, pela falta de guardas sanitaristas
qualificados, o serviço se restringia a capital com cam panhas voltadas para as verm inoses, onde
o m apeam ento da cidade de T eresina era necessário para a m elh o r execução do serviço e m aior
de T eresina e Parnaíba, o A silo dos A lienados na capital e o hospital de F loriano, pois para o
620
E stad o era m ais viável fazer reparos e m elhorias em instituições j á existentes do que construir
A p artir da década de 1930, com a reorganização adm inistrativa efetiva e o planejam ento
p atam ar superior. O ideário de prevenção e am paro da saúde crescia de acordo com o abandono
saúde passaram a ser m aterializadas nas instituições, nos discursos m édicos, no tratam ento das
doenças venéreas, nas ações do governo piauiense direcionadas a população, fundam entadas
delegacias de saúde, que praticavam o tratam ento e a profilaxia dos doentes com m ais
organização e regularidade.
A pesar de o interventor federal do Piauí ser nom eado som ente em 1931, com a
instalação do G overno P rovisório, m edidas m ais abrangentes com relação à saúde pública já
estavam sendo tom adas pelo governador João de D eus Pires Leal, com o é retratado no R elatório
G overnam ental de 1930, apresentado à C âm ara L egislativa, onde m ostra ainda as dificuldades
cum prim ento das obrigações legais quanto as instalações higiênicas, p rincipalm ente no que
tange as cidades do interior, por conta da falta de verbas. C om a elevação do P osto S anitário
C lem entino Fraga em C entro de Saúde, houve u m a m udança no cenário do tratam ento das
doenças, possibilitando m aior suporte a população, pois era responsável pelo com bate às
verm inoses, m alária e doenças venéreas. A lém disso, tam bém foi criado o Posto A n ti-
tracom oso M o u ra B rasil e o P osto E sco lar A breu Fialho, que no geral eram responsáveis pelo
A p artir de 1931 foi possível n o tar m udanças graduais e m ais efetivas, até m esm o no
que tange aos R elatórios G overnam entais do E stado. D esde o in ício da P rim eira R epública até
o ano de 1930, o destaque para a saúde pública era m ínim o, se relatava m ais as dificuldades
enfrentadas na instalação de serviços públicos e na falta de verbas para custeá-los do que nas
m elhorias desem penhadas de form a regular. T odavia, com a intervenção federal de L andry
S alles, seu relatório m ostra o esforço em reo rg an izar a saúde pública, priorizando a
centralização e o controle da adm inistração pública. C ada serviço de saúde passou a ser descrito
de form a específica, para m ostrar a evolução no atendim ento e a dim inuição das doenças que
assolavam a região.
T am bém houve um aum ento significativo nas verbas destinadas p ara a saúde pública,
tan to pessoal quanto m aterial, pois a m aior dificuldade para o período anterior era a
621
insuficiência de verbas, de m odo que outros serviços eram priorizados, enquanto a saúde
antirrábico, ocasionando a dim inuição dos casos no estado através das pesquisas ex ecutadas;
Instituto Jenner, responsável pela produção da linfa antivariólica e o Instituto O sw aldo Cruz,
1935).
A p artir de 1933, m ais verbas foram destinadas para diversos serviços, com o: o
T eresina e a S ociedade F em inina de A ssistência aos L ázaros e proteção aos pobres de Parnaíba.
A ntes, m esm o a filantropia contando com os subsídios governam entais desde o século X IX , as
verbas eram insuficientes para suprir as necessidades da população po r todo o estado, por isso
som ente no governo de L an d ry S alles, com os aum entos de verbas houveram avanços
A D ireto ria de Saúde do estado do P iauí, antes desse período, atuava de m odo
de Saúde P ública, especializada no enfrentam ento de endem ias e epidem ias e um a seção
especializada em higiene escolar, que já m ostrava com o a proteção à in fâ n c ia com eçava a ser
m aterializada. (M A R IN H O , 2019).
governo, com a am pliação dos serviços, não se lim itando som ente a T eresina e Parnaíba, através
da dissolução das delegacias de higiene dessas duas cidades, onde se transform aram em
inspetorias dem ógrafo-sanitárias, de saneam ento, profilaxia rural, de m oléstias venéreas e lepra
e de higiene escolar, especialm ente do tracom a, que vinha acom etendo o estado, principalm ente
a capital, visando dar m aio r assistência para a população no tratam ento e prevenção das doenças
locais. A lém dessas m edidas, a reestruturação da Santa C asa de M isericórdia da capital foi
necessária, sua estrutura era precária e a assistência ho sp italar era ineficiente, sendo preciso ser
m édica a outros m unicípios, pois os postos e inspetorias da capital funcionavam regularm ente,
enquanto o in terio r do estado grande parte da p o pulação vivia em estado precário. A ssim , o
núm ero de D elegacias de Saúde foi elevado, contabilizando 15 unidades de atendim ento288,
onde cada delegacia abrangia um distrito adm inistrativo, exceto D avid C aldas, que era restrita
à C olônia, sendo aquelas responsáveis pelo tratam ento de doenças que assolavam a região,
com o: m alária, sífilis, verm inose e outras m oléstias ven éreas. A lém da instalação de um
dispensário no m unicípio de Parnaíba, com três m édicos e um outro em Floriano, com dois
m édicos. A lém disso, nesse m esm o ano a Inspetoria de H igiene Infantil é substituída pela
D ireto ria de P ro teção à M aternidade e Infância, onde a infância p assa a ser de im portância
governam ental.
C om base no R elató rio G overnam ental de 1931 a 1935, apresentado pelo Interventor
F ederal L andry Salles G onçalves ao presidente da república G etúlio V argas, foi possível ver
detalhadam ente o funcionam ento e atuação da D iretoria de Saúde P ública, com o q uadro
dem onstrativo do m ovim ento dos postos de T eresina e de distribuição de m edicam entos ao
interior.289
A pesar dessas m elhorias apresentadas, ainda não era suficiente para suprir a dem anda
do estado, podendo-se n otar o aum ento crescente das doenças, p rincipalm ente por im paludism o,
sífilis e outros tipos de verm inose, u m a vez que os postos de saúde e as inspetorias que
funcionavam regularm ente era som ente a da capital T eresina, enquanto os serviços de
saneam ento e as delegacias de saúde no in terio r do estado, deixavam a desejar. D esse m odo, os
códices de saúde da cidade de Floriano dem onstram com o os serviços se organizavam e de que
A cidade de Floriano está localizada ao sul do Piauí, e a partir da década de 1930, com
a reorganização e centralização da adm inistração pública pelo Interventor Federal, em 1931, foi
nom eado T heodoro F erreira Sobral com o P refeito da cidade, sem a ocorrência de eleição, em
virtude de vigorar o regim e im posto pela R evolução de 30. E m sua adm inistração, de ju lh o de
1931 a outubro de 1934, ele se preocupou em m odernizar a cidade, a partir dos calçam entos das
ruas para facilitar o trabalho das carroças que traziam consigo m ercadorias destinadas as casas
com erciais da cidade, além da criação de um a praça, um m ercado, um cem itério e um a igreja.
(D E M E S, 2002).
288 As delegacias estavam situadas em: Barras, Piripiri, Campo Maior, Oeiras, União, Amarante, Valença, Picos,
São João do Piauí, Bom Jesus, Uruçuí, Castelo, Joaquim Távora, Piracuruca e David Caldas. (RELATÓRIO
GOVERNAMENTAL, 1931-1935:41)
289 Os dados do ano de 1931 não constam nesses serviços.
62 3
N o in ício da década de 1930, a saúde pública no sul do Piauí se encontrava deficitária
M artins de A raújo C osta, responsáveis pela assistência m édica da cidade. O s serviços de saúde
de Floriano, am bos dirigidos pelo m édico Sebastião M artins, que ao longo dos seus anos de
trabalho, elaborou planos e m edidas para estruturar essas instituições de saúde e tratar a
p o pulação doente.
que datam de m arço de 1933. O s códices do posto possuem várias tabelas extensas, separada
po r idade, desde crianças com m enos de um m ês, até pessoas com sessenta anos ou m ais.
T odavia, apesar do n úm ero de habitantes ser de quase seis m il pessoas no período, segundo os
dados da própria tabela, poucos são os casos em cada m ês. O s códices de saúde, ainda em 1933,
passaram a ser padronizados e im pressos, e com isso, foi possível notar que a contabilização
dos casos com eçava som ente a p artir da décim a doença, tuberculose do aparelho respiratório,
enquanto doenças com o: febre tifoide e paratifoide, tifo exantem ático, varíola, saram po,
escarlatina, coqueluche, difteria, gripe ou influenza e peste não aparecem enum eradas em
nenhum m ês que foi analisado. Foi possível notar que as tabelas dos postos de F loriano são bem
im precisas, pois enquanto há dados de vacinação contra varíola e febre tifoide, não há
A p artir de ja n e iro de 1934, os boletins m ensais passaram a ser divididas de outra form a,
ao invés de todas as doenças serem organizadas com o no ano anterior, em idade e sexo versus
doença, agora passaram a ser distribuídos em: serviços de p rofilaxia de diversas doenças, sejam
elas contagiosas, venéreas ou helm intoses, separadas por m edicina curativa e preventiva;
núm ero de consultas no posto de saúde e em dom icílio, feito pelas enferm eiras visitadoras;
v acin ação e soroterapia contra varíola, tuberculose, peste, difteria, etc.; m edicação utilizada
contra essas doenças (injeções, com prim idos, sais, etc.), principalm ente as que m ais assolavam
a região, com o: verm inoses, sífilis, m alária e tuberculose; trabalhos epidem iológicos contra
essas enferm idades; serviços de saneam ento no m unicípio, com o: abastecim ento de água,
construção de fossas, poços e valas; serviços de educação e propaganda, com o o serviço escolar
(PIA U H Y , 1934).
D essa m aneira, foi possível n o tar a transição lenta e gradual de um a saúde pública
precária e deficiente na P rim eira R epública, com falta de verbas, sem instalações adequadas,
F ederal L andry Salles G onçalves, que rem odelou todos os serviços públicos, principalm ente no
624
que tange à saúde pública, através de verbas federais para a conservação desses benefícios
propostos pela D iretoria de Saúde Pública, com a reform a e centralização adm inistrativa, por
estabelecim entos hospitalares, com a distribuição de m edicam entos e vacinas, não restringindo
esses serviços som ente a capital Teresina, m as abrangendo outros m unicípios do interior, e
apesar dos serviços ainda serem deficitários, foi possível n otar o grande avanço da saúde pública
populações pobres, que antes viviam à m ercê quase que totalm ente da caridade e filantropia das
infantil e m aterna, po r conta do ideário de nacionalism o em voga, em todo esse período o E stado
elevou seu atendim ento através de serviços específicos visando o cuidado desde o pré-natal até
m ães a agirem de acordo com estudos científicos, to rnando-se fundam ental para a am pliação
Piauí, que rem odelou os serviços públicos a p artir de u m a política federal centralizada,
principalm ente no que tange à saúde pública, através de verbas para a conservação desses
b enefícios propostos pela D ireto ria de Saúde Pública, com a reform a e centralização
adm inistrativa, por m eio da criação de postos de higiene, dispensários, delegacias de saúde,
am pliação dos estabelecim entos hospitalares, não se restrin g in d o som ente a capital T eresina,
A pesar dos códices do P osto de Saúde de F loriano serem elaborados, ainda havia falhas
e dados incom pletos. A m aioria das tabelas não estavam preenchidas, só havia dados nos
atendim entos através da m edicina curativa, feitos no posto e a dom icílio e as m edicações para
o tratam ento das doenças. D essa form a, foi possível notar que apesar de contar com avanços na
saúde pública, ainda não havia um serviço reg u lar a fim de suprir as necessidades da população
do sul do Piauí.
R E F E R Ê N C IA S B IB L IO G R Á F IC A S E D O C U M E N T A IS
625
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626
O JORNAL ESTUDANTIL O BRADO UNIVERSITÁRIO COMO FONTE
DE PESQUISA SOBRE A RESISTÊNCIA À DITADURA MILITAR EM
MARINGÁ-PR
R E G IN A C É L IA D A E F IO L 290
I n tr o d u ç ã o
M aringá (U E M ) foi, ao m esm o tem po, fonte e objeto de estudo da p esquisa que resultou na
universidade, trabalho posteriorm ente publicado em livro no form ato e-book. A pesquisa
b uscou com preender a im portância da im prensa estudantil com o ação de resistência possível
no in terio r do país. O prim eiro passou foi entender, por m eio de um estudo bibliográfico, o
papel da im prensa alternativa, vertente da qual faz parte a im prensa estudantil, com o agente de
oposição e resistência ao regim e autoritário. P ara tanto, foi realizado um estudo com parando a
golpe de E stad o civil-m ilitar de 1964 e durante os prim eiros anos da ditadura.
E nquanto a grande im prensa foi um dos agentes políticos do golpe civil-m ilitar e apoiou
ou foi conivente com a ditadura no período anterior ao recrudescim ento da censura, a im prensa
2022, p. 47-48), denunciando abusos e crim es com etidos pelo regim e. C erca de 150 periódicos
1991). O s “ alternativos” iam m uito além de inform ar; nos períodos de m aior repressão foram
estudantil tam bém desem penhou relevante papel, especialm ente no m om ento em que as
m anifestações de protesto e os eventos tradicionalm ente prom ovidos pelos estudantes estavam
prim eiro dia de governo do general C astelo B ranco, a articulação estudantil foi atingida por um
duro golpe: em 1° de abril de 1964 a sede da U nião N acional dos E studantes (U N E), no R io de
Janeiro, foi incendiada e m etralhada. E sse episódio deixou claro que não haveria trégua para os
estudantes, que seriam alvo de várias operações com o objetivo de desarticular sua organização.
A o longo do prim eiro ano de ditadura houve perseguição e prisão de lideranças e os órgãos de
A inda assim , o m ovim ento estudantil continuou resistindo. N um prim eiro m om ento, a
luta era contra o m odelo de ensino que a ditadura p reten d ia im p lan tar no país, especialm ente
estudantes transform ou-se em um dos pontos de atrito com os m ilitares, o que colocou o
m ovim ento em confronto direto com a ditadura e seu m odelo de reform a universitária, que viria
ganharam força até esse ano, quando foram baixados o A to Institucional n° 5 (A I-5), que
cerceou as liberdades e estabeleceu estreita vigilância dos civis, e o D ecreto-L ei 477 (D L 477),
que transpôs para o am biente universitário as restrições e as punições im postas pelo A I-5.
desm obilizar a luta dos estudantes principalm ente em virtude do recrudescim ento da violência
u sad a pelos órgãos de repressão. Porém , pesquisas historiográficas têm dem onstrado que ,
628
m esm o com a d esm obilização das m anifestações de m assa e com a U N E na ilegalidade, os
estudantes não cessaram a luta e buscaram novos m eios de em preender as ações de resistência
A im prensa estudantil foi um dos cam inhos encontrados pelo m ovim ento para se m anter
na arena política. T am bém até recentem ente não eram com uns pesquisas sobre a atuação do
m ovim ento estudantil nas cidades do interior do B rasil. T rabalhos m ais recentes têm abordado
o tem a, contribuindo para o conhecim ento de com o se deram as ações de resistência à ditadura
O jo r n a l com o fo n te
E m seu clássico artigo História dos, nos e por meio dos periódicos, T ania R egina de
L uca assinala que a im prensa nem sem pre foi u m a fonte de prim eira grandeza para a
com outras disciplinas das C iências H um anas e a consequente renovação tem ática das pesquisas
tam bém foram fatores que contribuíram para que a historiografia voltasse o olhar para a
T ais m udanças levaram a um a am pliação do universo das fontes. A im prensa, antes vista
com desconfiança pelos críticos po r retratar os acontecim entos cotidianos no calor da hora, sem
o necessário distanciam ento tão caro à tradicional historiografia m etódica, passou a ser vista
definitivam ente a categoria de fonte historiográfica. E com o tal, oferece am plas possibilidades
para a form ulação das m ais diversas problem áticas p ara a busca de conhecim ento sobre as
anteriorm ente, a im prensa com eçou de fato a ganhar espaço com o fonte som ente a p artir da
década de 1970. Segundo T ania de L uca, “ ao lado d a H istó ria da im prensa e p o r m eio da
im prensa, o próprio jo rn a l tornou-se o b je to da pesquisa histó rica” (LU C A , 2008, p. 118, grifos
da autora).
291 Müller pesquisou as ações do movimento estudantil durante os “anos de chumbo” na UERJ e na PUC no Rio
de Janeiro, na USP de São Paulo, na UFMG, de Minas Gerais, na UFPE, de Pernambuco, na UFBA, na Bahia e
na UFRGS, no Rio Grande do Sul. A pesquisa resultou na tese de Dourado em História Social, defendida em 2010
e intitulada A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime ditatorial e o retorno da UNE à cena
pública (1969-1979).
629
V ários trabalhos publicados nos anos 1970 tiveram o jo rn a l com o fonte ou objeto de
estudo para abordar tem as variados nos m ais diversos períodos da h istória brasileira. T ania de
L uca destaca a im prensa operária com o um m anancial de fontes do qual derivaram diversos
trabalhos acadêm icos, em especial entre os anos 1970 e 1990. M esm o com características
m ilitantes e não por profissionais, im pressão artesanal e sem receita publicitária - , os periódicos
estudantil O Brado Universitário ocupou, sim ultaneam ente, o lugar de fonte e de objeto de
estudo. P o r registrar fatos, acontecim entos e tem as que m obilizaram os universitários, bem
com o dem andas do m ovim ento estudantil dentro da U niversidade E stadual de M aringá, foi
estudado enquanto fonte para acessar inform ações sobre o p eríodo de grande repressão da
ditadura m ilitar e de estreita vigilância dentro das universidades. P o r ter sido, ele m esm o, um a
estratégia de luta dos estudantes, que haviam sido silenciados pela legislação repressiva que
vigorava, o jo rn a l foi tam bém o objeto de estudo da pesquisa, p erm itindo com preender de que
a circular), que foram produzidas entre 1975 e 1976. O reco rte tem poral se deu por conta dos
exem plares preservados em arquivos particulares de dois ex-acadêm icos de D ireito que
E dilson P ereira dos Santos, cujos depoim entos tam b ém foram utilizados com o fontes, a partir
da m etodologia da H istória Oral. N ã o foi possível resg atar edições anteriores, do núm ero 1 ao
7, u m a vez que não existe um arquivo oficial do periódico. Porém , com o o núm ero de edições
pesquisa proposta.
630
Figura 1: Capa edição n° 8 Figura 2: Capa edição n° 9
631
Figura 4: Capa edição n° 11 Figura 5: Capa edição n° 12
interdisciplinaridade, que contribuiu decisivam ente para a renovação das perspectivas analíticas
da H istória P olítica nos anos 1980/1990, foi fundam ental. O referencial teórico p roduzido por
L uiz G onzaga M o tta (2007), jo rn alista, p rofessor e estudioso da narrativa jo rn alista, trouxe
a ideia de im parcialidade, seja na produção do historiador, seja nos docum entos/fontes legados
histo riad o r deve estar ainda m ais atento para evitar a arm adilha da objetividade criada pela falsa
baseou-se em algum as questões fundam entais para com preender de que m aneira esse
docum ento cham ado O Brado Universitário nos perm itiria lan çar um novo olhar sobre aquele
p eríodo da ditadura: P o r que seu conteúdo foi produzido? Q uais eram as relações entre os que
visual e estética, o uso da charge, os anúncios publicitários. C ada um dos exem plares do jornal
tabuladas de acordo com os tem as abordados. C o m o form a de norm atização, criam os F ichas de
A análise m ostrou que o jornal passou por períodos de oposição m ais m oderada ao
regim e, com o registrado nas edições 8 e 9, produzidas em 1975, m om ento em que era grande a
vig ilân cia do am biente u niversitário e a repressão ainda agia de form a violenta. C onsideram os
a hipótese de que tal postura pode te r sido u m a estratégia dos estudantes para m anter o jo rn al
em circulação, ten d o em vista que o periódico era m onitorado pela polícia política, conform e
ficou registrado em docum entos dos arquivos da D O P S -P R (D eleg acia de O rdem P olítica e
Social/P araná)292.
transform ações ao longo dos anos. A edição 8, de abril de 1975, foi im pressa em m im eógrafo
Diário do Norte do Paraná. A edição 9, inclusive, circulou com o encarte especial de O Diário,
fato que perm itiu a form ulação de u m a hipótese: os estudantes tentavam d riblar a proibição de
expressa no R egulam ento D iscip lin ar do C orpo D iscente. S ubm eter o conteúdo do jo rn a l à
A p artir da edição núm ero 10, produzida em m arço de 1976, o p eriódico passou a
co nfrontar abertam ente a ditadura, o que, concluím os, foi resultado de dois fatores: u m a nova
“ equipe” de acadêm icos de D ireito, que atuava na im prensa de M aringá, assum iu a produção
questões ligadas às lutas do m ovim ento estudantil, com o a gratu id ad e do ensino superior. O
jo rn a l tam bém publicou textos críticos sobre a vig ên cia do D L 477 e do A I -5, apesar das
prom essas de distensão do governo do general E rnesto G eisel. T em as que afetavam diretam ente
a vida dos estudantes tam bém ganhavam espaço nas páginas do jo rn al, m uitas delas com críticas
virulentas e que, po r essa razão, renderam a convocação dos responsáveis pelo jo rn a l para
p restar depoim ento na A ssessoria de S e g u ran ça e Inform ações (A SI). A s A S Is eram órgãos
subordinados às reitorias das universidades e sua função era assessorar os reitores “ em relação
a questões que se referissem à S egurança N acio n al” (D A E FIO L , 2022, p. 116). E ram ligadas
ao S istem a N acional de Inform ações (S N I) por m eio da D ivisão de S egurança e Inform ações
A m atéria que foi alvo da A S I fazia u m a forte crítica ao autoritarism o do v ice -re ito r da
U E M , contrário à criação do D iretório A cadêm ico de P rocessam ento de D ados. U m acadêm ico
do curso foi entrevistado pelo jo rn a l e contou que o vice-reito r teria aberto u m a reunião com os
estudantes com a seguinte frase: “Isso não é um diálogo, portanto, só eu falo” 293, não perm itindo
que os alunos lhe dirigissem a palavra. A lém disso, ainda de acordo com o estudante, o dirigente
teria afirm ado na m esm a reunião que “um professor, se tivesse que dar com o pé na cara do
aluno, ele teria todo esse direito de dar com o pé na cara do aluno” 294. A publicação desse
conteúdo foi um ato de ousadia naquele m om ento em que criticar abertam ente um a fig u ra
im prensa e pela im prensa alternativa. U m exem plo foi o tex to Lição das coisas, assinado pelo
cartunista Z iraldo, do Pasquim, que criticava a ação ilegal do E stad o brasileiro. A reprodução
do conteúdo aconteceu em um m om ento em blem ático. E stavam se com pletando dois m eses da
m orte sob tortu ra do m etalúrgico M anoel Fiel Filho, preso po r agentes do D O I-C O D I sob a
acusação de ser m em bro do P artido C om unista B rasileiro (P C B )295. O crim e ocorreu no m esm o
local e da m esm a form a brutal com o havia sido m orto o jo rn a lista V lad m ir H erzog no final de
1975. Z iraldo, em um texto m etafórico, responsabiliza o E stado brasileiro pelas m ortes nos
d an çar num baile em que você não com pareceu, te levam pra um a festa para a qual você não
foi convidado, botam você num a roda onde ninguém pode chegar prá te defender e, depois,
que trata de um discurso p roferido pelo então deputado federal em edebista C elso B arros, do
Piauí, na C âm ara dos D eputados. S egundo info rm a a m atéria, o tem a do discurso havia sido
política do país” (D A E FIO L , 2022, p. 122). N o m esm o tom crítico, o Brado reproduziu três
de 1976, que traziam detalhes da cassação de parlam entares em edebistas po r E rnesto G eisel,
num a dem onstração de que o discurso g o v ernista de “ distensão política” p assava bem longe da
A inda em relação ao conteúdo, a pesquisa tam bém analisou as charges que passaram a
ser publicadas a p artir da edição n° 9 com o “ elem ento discursivo para m arcar u m a posição
crítica, para opinar não apenas sobre tem as políticos e sociais daquele contexto, m as tam bém
sobre assuntos relacionados à vida acadêm ica na U E M ” (D A E FIO L , 2022, p. 176). A s charges
po r defender ideias, criticar ou fazer denúncia por m eio da sátira para d em arcar um
A s charges publicadas pelo Brado satirizaram tem as diversos, com o censura, custo de
vida, exploração do trabalhador, exercício do D ireito e tam bém questões ligadas ao am biente
O sentido dessa charge rem ete à defesa da gratuidade do ensino superior, tem a que
a universidade, inatingível para a m aioria dos estudantes brasileiros, que aparecem em baixo,
ten tan d o escalar para atingir o topo. A m ultidão tenta, sem sucesso, subir pelo próprio esforço.
A penas um a, com m uita dificuldade, se aproxim a do objetivo; lá em cim a aparecem os que têm
A lém do conteúdo, a pesquisa tam bém considerou aspectos com o o núm ero de anúncios,
que foi crescendo e se diversificando ao longo do período estudado, num indicativo de que a
publicação estudantil alcançava tam bém um público para além dos lim ites da universidade.
as críticas à ditadura se tornaram m ais agudas e abertas, a partir da edição n° 10, publicada em
m arço de 1976, o núm ero de anunciantes duplicou. E sse fato levanta a hipótese de que o
636
C o n s id e ra ç õ e s fin ais
A pesquisa perm itiu lan çar um novo olhar sobre a resistência à ditadura m ilitar na
1973 e 1976 pelo D iretório A cadêm ico N elso n H ungria (D A N H ), da F aculdade de D ireito da
defendendo posições que confrontavam a ideologia dos m ilitares, o Brado Universitário foi um
p arcela da sociedade, houve aqueles que resistiram sem em punhar arm as. C om o fonte e objeto
de estudo, o jo rn a l estudantil analisado ajudou a vislu m b rar essas ações de resistência para
R e fe rê n c ia s
637
M Ü L L E R , A. A re s is tê n c ia do m o v im e n to e s tu d a n til b ra s ile iro c o n tr a o re g im e d ita to r ia l
e o r e to r n o d a U N E à c e n a p ú b lic a (1969-1979). 2010. 267p. T ese (D o u to ra d o em
H is tó r ia Social). F aculdade de F ilosofia L etras e C iências H um anas da U niversidade de São.
São Paulo; Paris. 2010.
638
M8M: UMA PERFORMANCE EXPERIMENTAL COLETIVA DE
RESISTÊNCIA.
SA N Z IA PIN H E IR O B A R B O SA *
I n tr o d u ç ã o
O artigo é um estudo inicial sobre o M o vim ento 8 de M aio_M 8M . U m prim eiro olhar,
u m a aproxim ação desse coletivo de existência tão curta e intensa. U m a escrita introdutória que
tem com o ponto de partida, entrevistas realizadas com vários integrantes e o u tro s agentes do
sistem a de arte, que de algum a form a, dialogavam com o M 8M . E ssas entrevistas foram
realizadas no ano de 2021, por ocasião da produção de um vídeo docum entário sob a direção
da artista Pêdra Costa, p erform er e antropóloga visual. Foi possível p erceber os dois anos de
existência do M 8M , com o u m a p erform ance coletiva bastante experim ental, que trazia
inúm eras questões com o a autoria, a função da arte, e o esboço de algum as questões
contem porâneas que só a p artir de 2015, segundo B eatriz L em os, em p alestra na plataform a
m om ento onde destacam -se as dissidências sexuais, o fem inism o, as políticas identitárias e de
subjetivação, bem com o, o entendim ento sobre racialidade. N ão é nosso objetivo d iscutir neste
artigo, essas questões que se anunciavam nas práticas do M 8M . A creditam os que o presente
estudo contribui para o registro da h istória das A rtes V isuais do R io G rande do N orte, além de
cujos indivíduos tinham práticas artísticas m uito díspares. N o desenvolvim ento do texto
percorrem os algum as ações do M 8M , na ten tativ a de tec e r reflexões a p artir dos trabalhos
m ão de alguns trechos das entrevistas realizadas, ten d o em vista a produção do docum entário
M 8M , produzido em 2021. A lém das entrevistas, usam os tam bém com o fonte nesta pesquisa,
recortes de jo rn a is e fotografias.
O C o letiv o
todos e todas, artistas visuais. E xistiu entre 2004 e 2005 na cidade de N atal/R N . O s coletivos
proliferam no final dos anos 1990. O teórico R icardo R osas, aponta que isso era sintom a de
639
u m a m utação que aconteceu tan to na esfera tecnológica quanto na social. C olaboração,
cooperação, com unidade, interação e redes, são chaves de um a transform ação que acontece em
escala global. A inda que a tecn o lo g ia não seja o fundam ento básico destes grupos, é po r m eio
dela que se dá a dinâm ica de ação e propagação das atividades na vida real. Os coletivos
coletivos artísticos que não se lim itam apenas a questionar o lugar e a função da A rte. A lguns
realizavam ações em espaços públicos e artísticos, e eram bastante atuantes, com o por exem plo,
o C oletivo PO R O , form ado pela dupla de artistas: B rígida C am pbell e M arcelo Terça-N ada!
A tua desde 2002 realizando intervenções u rbanas e ações efêm eras, procurando levantar
questões sobre os problem as das cidades, através de u m a ocupação poética dos espaços; O
coletivo F rente 3 de Fevereiro, ativo desde 2004, é um grupo de pesquisa e ação direta, que por
especial, o racism o policial e o coletivo F ilé de Peixe, ativo desde 2006, intervém na econom ia
política da arte, agindo criticam ente sobre processos de recepção e circulação da arte enquanto
m ercadoria, as instâncias lim ítrofes entre objeto e produto, entre colecionism o e consum o. P ara
D an iela L abra (2009), os coletivos criticavam o sistem a institucional de m odo diferente das
organizações ativistas m ilitantes, alcançando o tom crítico, pela experim entação poética.
neoconcretistas, estavam m ais preocupados com a experim entação artística e com a exploração
de novas relações entre obra, artista e espectador. T anto o D adaísm o, o Situacionism o, com o
N eoconcretism o, são referência na atuação dos coletivos que surgem no alvorecer do século
XX I.
A lém de prom overem ações estéticas e políticas no espaço social, os coletivos tam bém
m ercado, caso do M 8M . D iante deste fato, realizavam exposições e vendas de seus trabalhos,
organizavam seus próprios eventos, escreviam seus textos, e anunciavam suas ações em blogs
e nas redes de relacionam ento que vão surgindo. D esse m odo, iam construindo seu próp rio
canal para a circulação de arte. P ara L abra (2009), no final os anos 1990 e início dos 2000, é
grande a diversidade de discurso e atuação dos coletivos artísticos que a crítica de arte n ão basta
A lguns dos entrevistados narram as inquietações, encontros, desejos de fazer algum a coisa na
cidade inerte. N o entanto, o m arco que inaugura a existência do coletivo, não habita a m em ó ria
640
dos entrevistados. T odos concordam que o seu surgim ento é provocado pela vontade de criar
eventos ou ações. O s m ais presentes eram , M arcelo G andhi, Sayonara Pinheiro, Jean Sartief,
G uaraci G abriel, P êdra Costa, E m anuel D uarte, R icardo San M artine, Jackson G arrido e
Josenildo Brasil. O s artistas não só discutiam as políticas públicas para as A rtes V isuais, com o
realizavam ações, audiências públicas, exposições, festivais de perform ances - e faziam m uito
baru lh o na cidade. Participavam em eventos culturais prom ovidos por instituições ou projetos
de produtores, às vezes com trabalhos individuais, outras vezes com obras coletivas. C om o a
perform ance Purificação, que tinha com o m aterialidade, sal e água dentro de sacos plásticos de
program ação, apenas orientações gerais. N esse caso, vestidas e vestidos com roupas brancas
deviam fu rar os sacos e jo g a r a água sobre suas cabeças, em um gesto de lavagem , purificação.
N ã o existia um m apa que definisse onde cada um deveria ficar, quanto tem po, ou qualquer tipo
de controle sobre as ações dos artistas. V ejam os o que diz M arcelo Gandhi:
641
limpando? A ideia era trabalhar com sal e água... a gente não sabia o que poderia
acontecer. Apareceu o desenho na montagem, a ação de estourar os sacos, tomar um
banho, cortar os sacos como se fosse um desenho, não havia nenhum tipo de roteiro.”
Áudio Marcelo Gandhi, Outubro 2022
Interessante que n essa fala, é possível perceber a dinâm ica do coletivo. T inha-se sem pre
um desenho geral, um a ideia daquilo que se pretendia realizar. Isso era o bastante para o
trabalho, para particip ar de u m a ação coletiva ou m esm o u m a p erform ance que envolvia a
na presença criadora do “ outro” . O que nos lem b ra a noção de am izade em M ichel F oucault
N a fala de M arcelo G andhi, tam bém aparece a questão da autoria m al resolvida entre o
coletivo, o que era m otivo de d esafetos. E ssa questão tam bém é citada po r G uaraci G abriel
(2021), “M e via podado de ideias para estar no coletivo. M as eu brigava pelo m eu espaço,
procurava estar em conjunto. E ra um agrupam ento. A id eia do coletivo, não era m inha, era a
id eia do coletivo M 8M ” . A inda sobre a autoria, José P inheiro (2021), integrante do coletivo,
reflete:
[...] a construção coletiva é muito complicada, porque somos todos diferentes, mas é
muito rica porque é um retalho que nós trazemos de cada um. Então essa experiência
também é da coletividade, do criar coletivo. [...] Quando eu encontro pessoas e sei
que aquelas pessoas todas têm uma identidade, mas que necessitam toda hora de estar
em relação com o outro e assim construindo ideias, construindo ambientes,
construindo arte, construindo a vida coletivamente. José Pinheiro, 2021
A ação Sem Esculturas, consistia em 100 (cem ) vasos sanitários espalhados na calçada
do T eatro A lberto M aranhão, com um certo distanciam ento, cada artista ocupava e fazia um
trab alh o no vaso. E ssa ação surgiu com o protesto à decisão da direção do teatro, em instalar
u m a escultura de autoria do artista plástico C ésar R evoredo, na calçada, em com em oração aos
100 anos do equipam ento cultural. O s artistas m obilizaram a im prensa e o M inistério Público,
direção do T eatro respondia dizendo ter sido um a doação do artista, apesar da prefeitura da
cidade ter financiado a produção da obra. Q uestionaram tam bém , o fato da escultura ser
pensada, sem nenhum cuidado com o patrim ônio arquitetônico, pois, não havia um diálogo
abril de 2004, a reportagem é finalizada da seguinte form a: “ essa é a prim eira vez, nos últim os
anos, que eles se posicionam de m aneira tão contundente diante de um fato isolado” . N o dia da
642
lim inar proibindo a presença do trabalho artístico na calçada do T eatro A lberto M aranhão, e a
E ssa perform ance coletiva, dem onstrou u m a im ensa força política através da
m obilização da im prensa, os vasos sanitários não se referem apenas à escultura indesejada. M as,
às inúm eras reform as irresponsáveis que o prédio h istórico era subm etido. A cidade com o
ação, estavam saindo de seus ateliers, de sua intim idade produtiva, para um a articulação com
da p rodutora C ida C am pelo, que reunia u m a vez no m ês, exposições, show s m usicais,
artesanato, livros etc. O evento tin h a um form ato de feira. N essa ação o artista P edro C osta,
hoje, P êdra C osta, que vive e trab alh a em B erlim , am arra seu corpo com papel film e no painel
destinado a ser suporte p ara exibição dos trabalhos de arte. P êd ra C osta é a criadora, ao lado de
P aulo Fraga, da ban d a Solange tô aberta de b atid a funk que surge em 2006. O projeto D om ingo
na P raça disponibilizou alguns painéis para exibir os trabalhos do coletivo. P ed ra decidiu expor
o corpo, pois, esse é o suporte da poética da artista, um corpo trincheira, com o ela m esm a diz.
C om papel film e e a ajuda de alguns artistas ou am igos que passavam , a artista perm aneceu na
prisão v o lu n tária po r 4 horas. Josenildo levou para o D om ingo na P raça, a perform ance que ele
sem pre fazia: pintado de verde e am arrado em cordas de agave, recitava versos de sua autoria
64 3
A c o m e m o ra ç ã o do 8 de M a io de 2005
intensa program ação constituída de u m a residência artística cham ada pelos organizadores de
A ssentam ento, curso de m ontagem com W alter W ag n er artista residente em João Pessoa/PB ,
conversa com Íbis H ernandez, curadora da B ienal de H avana, diálogo com L eonor A m arante,
C haves, que estava coordenador das A rtes V isuais na Funarte, conversa com L uiz C am illo
O sório, que na ocasião estava lançando o livro Abraham Palatnik, e m esa redonda com V icente
R io G rande do N orte. T udo isso aconteceu ao longo de 9 (nove) dias. O assentam ento/residência
M arian a Sm ith (CE), R odrigo B raga (PE), C larissa D iniz (PE), A slan C abral (PE), W alter
trabalhos e dialogavam , tro can d o inform ações e experiências. T odos com entavam a alegria e
L eonor A m arante (SP), participaram 31 artistas, que iam da arte n a if a perform ance art. O
equipam ento cultural ficou lotado, haviam várias obras de artes que solicitavam a participação
do público, além das perform ances que aconteciam . D entre as obras de arte interativas, havia a
L inhaM ental, trabalho de P êdra Costa, na qual a artista convidava o público a m ontar restos de
bo n ecas quebradas, velhas, adquiridas em brechós. P intar, vestir, arrum ar da form a possível!
C rianças, adultos e jovens, n aquela noite sentaram no chão com a artista, e a ajudaram em sua
com um collant rosa, sem elhante àqueles que os b ailarin o s usam em suas aulas de dança, com
bonecas, arrum ando-as com roupinhas e m aquiagens. D epois de m ontadas, as bonecas foram
am arradas entre si, em um único cordão, e exibidas no chão, no canto da parede. Foi um a
perform ance catártica para a artista! D urante a perform ance, P êd ra reviveu o m om ento em que
644
o pai arrancou um a boneca de sua m ão e a destroçou, quando a artista tin h a por volta de 2 anos.
W alter B enjam im , em seus estudos do brinquedo, diz que o adulto quando brin ca não
experim enta o m esm o prazer que a criança e nem revive a sua m eninice, m as, cria um a fenda
A P êd ra C osta sem pre perform ava nas ações do M 8M , contra a n arrativa do nosso m odo
de vida capitalista e a nossa m entalidade “ tis-h ete ro -p a tria rc al” . A artista trazia reflexões com
a força poética de um grito que vem do estôm ago! N a exposição coletiva realizada na Fundação
C apitania das A rtes, a artista tom ou um banho de cola e oferece seu corpo para o público colar
cópias x erocopiadas de suas próprias m ãos. U m banho de ág u a e cola b ran ca pelo corpo,
tran sfo rm an d o e seguindo. O corpo era a m uralha na qual o lam be estava tom ando curso,
delineando suas próprias form as, através das m ãos em papel. E ra a proposição condensada de
T ran sitan d o tudo ju n to na sua respiração ofegante, duelando com o silêncio de todos os que
assistiam . A quelas x erox das m ãos cobrindo sua face, criavam a ressonância de u m grito
Pêdra Costa
Sem título
(performance realizada na FUNCARTE)
2005
645
V oltando a coletiva Panorama 0.8, que ocorreu na P inacoteca, havia o trabalho
intitulado Crucifixo, de autoria de M arcelo G andhi. O artista fixou na parede, velas em form ato
de pênis e convidou as pessoas a brincarem , jo g an d o terços cor de rosa nos falos eretos e
acessos, convidando as pessoas para enlaçar os falos. O s pênis estavam pegando fogo, colados
Marcelo Gandhi
Crucifixo, 2005
Foto; Jean Sartief
houve protesto, am eaça de fechar a exposição. A face fascista do B rasil ainda estava no
subterrâneo. M arcelo G andhi tem com o ponto de p artida de sua poética, aquilo que lhe m arcou.
D esde a adolescência, desenvolve p esq u isa com sím bolos sagrados, runas, cartas de tarô,
artística, um a festa am bulante. E sse trabalho, essa perform ance coletiva, teve com o autor, A slan
C abral (PE). R ealizada ao m eio dia de um sábado, no centro da cidade. O s artistas dançavam
m úsica e da dança, os artistas passavam batom e beijavam as vitrines das lojas e bancos. E sse
646
gesto erótico provocou um alerta nos guardas que faziam a segurança das instituições bancárias,
determ inados a fazer arte. E xistia um a certa parceria entre o coletivo e as instituições que
atuavam no cam po da cultura, com o o S olar B ela V ista, v in culado ao sistem a S E S I-F IE R N ,
palacete que prom ove e recebe eventos e m ostra culturais, a F undação C ap itan ia das A rtes,
órgão responsável pela cultura na cidade do N atal e a F undação José A ugusto, responsável pela
cultura no E stado do RN . E ssas parcerias prom ovem u m a espécie de am biguidade nas críticas
que o coletivo produzia. A racy A m aral (2003), citando D ufrenne, diz que as críticas artísticas
livrem ente consentidas, podem significar a determ inação de se com prom eter na ação, sem
subordinar a prática artística. S ignifica saúde, u m a afirm ação de si, resistência, um poder de
a criação de todos. A relação era aberta, sem hierarquia, um espaço de convivência que era
constantem ente recriado. M ichel Foucault, na entrevista concedida ao jo rn a l Gai P ied em abril
de 1981, finaliza com a seguinte pergunta: “ o que se pode jo g a r e com o inventar o jo g o ? ” E ssa
pergunta estava, talvez de form a inconsciente no coletivo, que definiam as relações de am izade
cidade. A s questões m obilizadoras eram : quem tin h a u m a ideia? Q uem se afina com a ideia?
coletivo, as pessoas que viveram àquelas ações. H á um áudio de alguém que acabara de chegar
a cidade:
O movimento chegou pra mim de modo interessante, corroborando com uma coisa
que acredito muito, que é a força de um coletivo! Quando várias pessoas que divergem
em pontos específicos conseguem convergir para criar algo realmente efetivo e
transformador. A sensação que tinha era que o 8 de Maio vinha pra ficar e vinha pra
mostrar o quanto o coletivo é forte e pode apresentar soluções interessantes.
Tatiane Fernandes, abril, 2021
O coletivo M 8 M foi intenso, essa fala da produtora T atiane Fernandes, expressa a form a
com o o coletivo era visto p ela cidade e pautado pela im prensa. S a n d ra P esavento, ao p ensar as
sensibilidades, define com o aquilo que é anterior à reflexão, brotada do corpo, um a form a de
ser e estar no m undo. A autora aproxim a a sensibilidade do cam po da estética “ concepção que
647
entende a estética com o aquilo que provoca em oção, que perturba, que m exe e altera os padrões
O que apresentei aqui neste breve texto, está longe de dar conta da potência que foi o
M ovim ento 8 de M aio. U m nicho de pesquisa bastante fértil, tanto nas interpretações das ações
e obras realizadas, com o no entendim ento das relações construídas entre seus integrantes e as
diferentes dinâm icas que lançavam m ão para g arantir sua existência, além dos diferentes m odos
R E F E R Ê N C IA B IB L IO G R Á F IC A
648
A T R A J E T Ó R IA D O P O V O O F A IÉ : F O R M A S A T U A IS D E
P R O D U Ç Ã O D O C O L E T IV O E D A T E R R IT O R IA L ID A D E
SIM O N I SA N TO S S IQ U E IR A 297
1 - IN T R O D U Ç Ã O
com intuito de contribuir para os estudos sobre a com unidade O faié, sua territorialidade, suas
m obilidades, inquietações, além das disputas territoriais, doenças e am eaças sobrenaturais que
fizeram parte da sua organização social e da sua história ao longo dos anos, estando à
contribuiu p ara a form ação da territorialidade, iden tifican d o os eventos que provocaram a
desterritorialização, rem oções forçadas e de população, e a aliança m atrim onial com fam ílias
297 Mestre em Antropologia/UFGD, atualmente cursa doutorado em História pela Universidade Federal da Grande
Dourados/UFGD.
649
P o r m uito tem po os O faié foram considerados extintos, e isso só com eçou a m udar
quando C arlos A lberto dos Santos D utra, conhecido com o “ C arlito” conheceu A ntônio B rand
po r interm édio de D om José G om es, prim eiro presidente do C onselho Indigenista M issionário
in teressar pela questão indígena ainda no R io G rande do Sul, quan d o realizou um trabalho entre
os M byá G uarani, algum tem p o depois quando finalizava o curso de T eo lo g ia precisou realizar
um estágio no M ato G rosso do Sul, que foi interm ediado po r A ntônio B rand, que era secretário
com eçado o trabalho em 1981, nessa época a etnia tinha sido transferida para B odoquena.
D urante m ais de trinta anos a história dos O faié foi relatada e registrada em livros,
docum entos e com participação ativa nas retom adas de C arlos A lberto dos Santos D utra,
histo riad o r esse que foi essencial na construção do m eu trabalho de m estrado, e que sem ele a
h istória dos O faié talvez não tivesse sido trazida ao m undo, de form a que sua visibilidade fosse
conhecia C arlos A lberto dos Santos D u tra em um trabalho de pó s-g rad u ação que tam bém já
envolvia o tem a O faié, foi a via que precisava para dar continuidade a m inha pesquisa. P ouco
(P PG A nt/U F G D ), que m e trouxe algum as inquietações sobre essa etnia, com o o fato da
ausência de trabalhos sobre a m esm a, ou seja, era necessário ser olhada de um a form a m ais viva
A com unidade O faié tem um grande m arco quanto à questão territorial, foram diversas
disputas até a sua sedentarização, atualm ente a aldeia é dividida em um a prim eira área doada
no ano de 1997 pela C E SP devido a m otivos que abordarei logo m ais a frente, a segunda área
conquistada na ju stiç a em 2002, que está ligada a prim eira por u m a estreita faixa de terra, e no
ano de 2017 os O faié fizeram um a retom ada da terra tradicional que fica ao lado dessa segunda
área. N o entanto, essa área retom ada em 2017 ainda não foi dem arcada.
2 - F O R M A S A T U A IS D E P R O D U Ç Ã O D O C O L E T IV O E D A T E R R IT O R IA L ID A D E
A etnia O faié, grupo indígena da fam ília M acro-Jê, atualm ente habita a terra indígena
Sul, a u m a latitude 2 1 °1 5 '2 1 ” Sul e a um a longitude 5 2 °0 2 ’13” oeste, lim itando ao leste com o
rio Paraná. A aldeia está localizada no K m 10 da rodovia M S -040 que liga B rasilândia a Santa
650
R ita do Pardo. N a área que estão fixados reside além de O faié, não índios, G uarani e K aiow á.
Segundo Siasi298/Sesai (2014) o núm ero da população neste local era de 69 índios, atualm ente
A situação de conflito na terra O faié sem pre foi m uito presente, só foi m inim izada
quando a C om panhia E n erg ética de São Paulo (C E SP ) com prou u m a área destinada à criação
D isco rrer sobre o territó rio O faié, sem dúvida, configura algo com plexo e im põe a
grupos O faié e m uitos são os territórios apontados com o tradicionais e pertencentes a esse povo.
A ssim , C arlos A lberto dos Santos D u tra faz a divisão em duas grandes áreas onde incidem os
A trajetó ria da etnia O faié foi m arcada por lutas, perseguições e principalm ente pela
forte m arca de “extinção étnica” im putada ao grupo. M uitos cam inhos foram percorridos pelos
O faié ao longo de séculos, através dos rios Sam am baia, Três B arras, Serra da B odoquena, R io
298 Sistema de Informação da atenção à Saúde Indígena (SIASI) é composto de dados primários vindos da atenção
primaria à saúde prestada pelas Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) no Subsistema de Atenção
à Saúde Indígena (SasiSUS), gerenciamento pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério de
Saúde.
299 Desde o momento do seu aparecimento na documentação brasileira eles foram chamados de diferentes modos,
tendo seu nome grafado de varias e diversas maneiras: Opayé, Opaié, Ofaié, Faiá, Faié, Afaiá, Araés, Ypaié,
Xavante, Chavante, Shavante, Chavante-Ofaié, Chavante-Opaié, Kurura, Guachi, Wahéi, entre outros. Foram
chamados de Shavante provavelmente por viverem numa região de vegetação do tipo savana, onde havia
predomínio de arbustos (DUTRA, 2017, p.59)
651
P aran á e Sucuriú. É im portante ressaltar que a ausência de inform ação n o relato dos pioneiros,
bandeirantes e m onçoneiros, pode ser explicada pelo fato de que nesse período ainda se
encontrar bastante difundida, o que não era Tupi, era cham ado de Tapuia.
N esse contexto, por m uito tem po a etnia O faié foi confundida com outros índios, para
M an u ela C arneiro da C unha (2009) não era só o caso do B rasil. E sse foi um problem a de quase
N o im aginário dos conquistadores, o “ elem ento” indígena sem pre foi ent endido com o
conceitos que são im prescindíveis para fazerm os a distinção entre terra indígena, território e
territorialidade indígena.
pesquisadores há algum tem po. P o r um lado existem aqueles que se contrapõem a este ato, bem
com o aqueles que dependem dessa dem arcação para garantir seus direitos, com o é o caso da
P artindo desse pressuposto, M an u ela C arneiro da C unha (1993) conceitua que Terra
Indígena, em princípio, é um conceito ju ríd ic o b rasileiro que tem sua origem na d efin ição de
direitos territoriais indígenas. T ais direitos foram reconhecidos ao longo da h istória pelo E stado
[...] na própria Lei de Terras de 1850, como magistralmente demonstra João Mendes
Jr. (1912), fica claro que as terras dos índios não podem ser devolutas. O título dos
índios sobre suas terras é um título originário, que decorre do simples fato de serem
índios: esse título do indigenato, o mais fundamental de todos, não exige legitimação.
As terras dos índios, contrariamente a todas as outras, não necessitaram, portanto, ao
ser promulgada a Lei de Terras, de nenhuma legitimação (Mendes Jr., 1912, passim)
(CUNHA, 1998, p. 141-142).
Portanto, a dem arcação de terras indígenas é tida tão som ente com o um ato declaratório
falar em “ criação de terras indígenas” , m as tão com ente de seu reconhecim ento por parte da
652
“N o âm bito da FU N A I, em bora não haja nenhum a orientação expressa, a noção de
“ aldeia” é u tilizad a para denom inar os vários assentam entos existentes em u m a determ inada
É importante que se tenha em mente que “aldeia” e “terra indígena” não são conceitos
equivalentes e que uma terra indígena pode comportar vários assentamentos ou
núcleos sociopolíticos (“aldeias”) de um ou mais povos indígenas, como é comum
ocorrer em terras indígenas de maior extensão na Região Amazônica
(CAVALCANTE, 2013, p. 10).
fundam ental com provar a tradicionalidade da ocupação indígena. P ara a C onstituição Federal
de 1988:
São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a
sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (BRASIL,
1988).
h istórica e outra sim bólica, no conflito fundiário. C avalcante afirm a que: “ ao se falar em
territorialidade a ênfase recai sobre os aspectos sim bólicos. Significa que o território carrega
Ao falar de terras indígenas estamos, antes de tudo, nos situando no bojo de uma
definição jurídica materializada na Constituição Federal em vigor (art. 4°, parágrafo
4° e art. 198), bem como em legislação especifica (Lei n. 6.001/73, arts. 17 a 38).
Trata-se do habitat de grupos que se reconhecem (e se são reconhecidos pela
sociedade) como mantendo um vinculo de continuidade com os primitivos moradores
de nosso país. A noção de habitat aponta para a necessidade de manutenção de um
território, dentro do qual um grupo humano, atuando como um sujeito coletivo e uno,
tenha meios de garantir a sua sobrevivência (OLIVEIRA FILHO, 1998, p. 45).
E stado, ao qual conhecem os com o T erritorialização, ou seja, pertence à U nião, no entanto, com
Já no caso do T erritório Indígena, é tudo aquilo que foi construído ao longo dos anos
pelos povos indígenas. É m uito m ais do que um espaço físico; envolve elem entos religiosos,
A ló g ica dos povos indígenas vê o território com o um bem coletivo. N esse contexto,
pouco m aterial produzido po r pesquisadores, antropólogos e histo riad o res sobre tal etnia. F alar
sobre a territorialidade O faié é m uito m ais do que falar de um local habitado po r eles. Segundo
Paul L ittle (2002), a “ noção” territorial integra todos os grupos hum anos. P ara ele a
territorialidade é:
[...] o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar
com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu
“território” ou homeland. (cf. Sack 1986:19). Casimir (1992) mostra como a
territorialidade é uma força latente em qualquer grupo, cuja manifestação explícita
depende de contingências históricas. O fato de que um território surge diretamente das
condutas de territorialidade de um grupo social implica que qualquer território é um
produto histórico de processos sociais e políticos. Para analisar o território de qualquer
grupo, portanto, precisa-se de uma abordagem histórica que trata do contexto
específico em que surgiu e dos contextos em que foi defendido e/ou reafirmado
(LITTLE, 2002, p. 3-4).
Segundo João P acheco de O liveira F ilho (1998) caberia cham ar a atenção para a
diferença entre territorialização (um processo social deflagrado pela instância politico-estatal)
e territorialidade (um estado ou qualidade inerente a cada cultura e sua organização social).
territorial fixa se constituiu em um ponto-chave para a apreensão das m udanças por que ela
passa, isso afetando profundam ente o funcionam ento das suas instituições e a significação de
Territorialidade se relaciona com as form as próprias com que cada povo elabora suas
p ráticas socioculturais na interação da natureza com o todo que o cerca, inclusive o cosm os, ou
654
seja, um sentido m ítico que extrapola a noção geográfica de terra. Já o co n ceito de
territorialização rem ete para ação “ de fora para dentro” , geralm ente deflagrado pela instância
politica do E stado-N ação, gerando um profundo reordenam ento social, cultural, politico e da
R ogério H aesbaert:
A p artir da definição dos conceitos citados acim a, pode-se fazer u m a análise m ais
p rofunda da questão territorial que envolve a sociedade O faié. O processo de dem arcação do
território im em orial O faié teve início oficialm ente a partir da publicação, no D iário O ficial do
dia 2 de m aio de 1991, da P o rtaria n. 398, que instituiu um a C om issão E special de A nálise,
analisar e m anifestar-se conclusivam ente sobre os trabalhos de identificação e delim itação das
P o r m ais que o territó rio e territorialidade sejam um conceito geográfico, estão ligados
a “ espacialidade hum ana300” . N o caso da A ntropologia, destaca sua dim ensão sim bólica,
principalm ente no estudo das sociedades ditas tradicionais (m as tam bém no tratam en to do
“ neoliberalism o” contem porâneo). É a partir dos conceitos “ ato r-red e” e “território-rede” que
300 Alguns autores distinguem “espaço” como categoria geral de análise e “território” como conceito. Segundo
Moraes (2000), por exemplo, ‘do ponto de vista epistemológico, transita-se da vaguidade da categoria espaço ao
preciso conceito de território” (p.17).
655
andamento - com processos de tal território (psicológico) que designam o status do
relacionamento interno do grupo ou a um indivíduo psicológico (Gunzel, s/d).
(HAESBAERT, 2012, p. 38).
m ais diversas áreas, porém , parte de três vertentes que são elas: política, cultural e econôm ica.
“ A ssim , o que ele tem de perm anente é ser nosso quadro de v id a ” e “ o que faz dele objeto da
análise social” é seu uso, “ e não o território em si m esm o” (SA N T O S et al. 2000, p. 15).
R ogério H aesbaert afirm a que a rede perm ite conceber o caráter dinâm ico e m óvel do
território:
A inda para H aesb aert (2004) o territó rio e rede não são dicotôm icos, a rede pode ser um
elem ento constituinte do territó rio . A rede possui um duplo caráter territorializador e
desterritorializador:
Para nossos propósitos, a característica mais importante das redes é seu efeito
concomitantemente territorializador e desterritorializador, o que faz com que os fluxos
que por elas circulam tenham um efeito que pode ser ora de sustentação, mais ‘interno ’
ou construtor de territórios, ora de desestruturação, mais ‘externo’ ou desarticulador
de territórios (HAESBAERT, 2004, p. 294).
m arcad a pelo desenvolvim ento dos sistem as de transporte e com unicação que conectam e ao
m esm o tem po desconectam territórios, pois nem todos fazem parte do “ circuito fo rm a l” de
tro cas. M ais quem são os atores desses territórios, e para isso irem os continuar abordando a
P ara L atour (2012, p. 43): “há tan ta diferença nos dois em pregos da palavra “ social”
quanto entre aprender a dirigir po r u m a rodovia j á existente e explorar pela prim eira vez o
território acidentado em que u m a estrada foi p lanejada contra o desejo de m uitas com unidades
lo cais” .
Q uando se fala em “ social” , suas fronteiras e suas relações interétnicas que envolvem a
aldeia A nodhi, esses conceitos estão ligados ao território a que pertence essa com unidade, vale
656
ressaltar que o objeto desse trabalho é o território tradicional Ofaié. C abe falar da im portância
do conceito de desterritorialização, que “ está ligada à fragilidade crescente das fro nteiras,
especialm ente das fronteiras estatais - o território, ai, é, sobretudo um territó rio político”
(H A E SB A E R T , 2012, p. 35).
O povo O faié passou por diversas expropriações e rem oções forçadas até fixarem
território em B rasilândia, onde as uniões m atrim oniais com os G uarani, iniciadas ainda no
E star no cam po, realizar o trabalho de cam po é estar diante do social, das relações que
são construídas diariam ente e que definem a organização social daquelas pessoas. N a aldeia
O faié, foi à aliança com os K aiow á que organizou a aldeia. O s O faié em m eio a suas rem oções
quando recebem a terra doada pela C E SP devido ao incidente do alagam ento, e recebem 484
etapa da sua história. Q uando os O faié ainda estavam vivendo na R eserva Indígena K adiw éu,
n essa m esm a época alguns G uarani K aiow á foram enviados para essa região pela FU N A I.
Segundo A taíde que era cacique na época, os dois grupos se u niram para afastar os posseiros e
D urante o tem po em que estive em cam po na aldeia O faié conversado com os m oradores
m ais antigos, apontam o episódio descrito acim a por A taíde, com o o evento inicial da aliança
Q uanto a id a para a aldeia E nodi, A taíde era o cacique da época, e havia construído um a
b o a relação com G uarani K aiow á R oni E liandres na época da B odoquena, quando eles
finalm ente conseguem se fix ar na terra de B rasilândia em 1997, R oni E liandres vem para a
aldeia E nodi e com eça a trazer seus filhos, sobrinhos e outros agregados da fam ília, essa foi
outra aliança que prom oveu ainda m ais a v isibilidade dos O faié e organizar as relações sociais
657
na aldeia E nodi, assim , “ o social parece diluído po r to d a parte e por nenhum a em p articular”
(L A T O U R , 2012, p. 19).
A s relações entre G uarani K aiow á e O faié diante dos relatos descritos foram geradas de
diversos pontos, que perm aneceram e são reproduzidas durante décadas até a atualidade, e isso
nos leva a pensar, tanto na organização social, quanto no papel político desenvolvido na aldeia
A inda na entrevista concedida po r C arlito p ara m im neste ano de 2020, sobre a aliança
A “Aliança” com os Kaiowá, para quem olha de fora, pode se dizer que organizou a
aldeia, pois o “branco” não sabe distinguir quem é quem, tudo é índio, tudo é igual,
não atendo-se às diferenças culturais. Se, por um lado a aliança tácita, e não consentida
por muitos dos antigos Ofaié, deu aspecto e estrutura de aldeia, garantindo-lhe número
de pessoas, justificando até mesmo a presença da Funai (que nunca deu a mínima para
os Ofaié), por outro lado, tal situação decretou a morte da cultura Ofaié. Apenas um
exemplo: as mulheres Ofaié orientam seus homens Ofaié que são por natureza tímidos
e dóceis, nesta sua cultura matrilineares. Ao unirem-se com homens Kaiowá, de
regime patriarcal, as mulheres Ofaié têm sua identidade sufocada. No outro extremo,
homens Ofaié aos unirem-se com mulheres Kaiowá, eles esperam delas maior poder
de mando e ela espera dele autoridade maior, gerando conflitos na convivência.
(Entrevista, Carlos Alberto dos Santos Dutra, 2020).
D urante m eu trabalho de cam po pude acom panhar diariam ente a realidade da aldeia, no
entanto, m uitas questões não foram possíveis ser esclarecidas, u m a delas foi a convivência dos
O faié com os G uarani K aiow á, que pra quem olha de fora e acom panha a v ivencia diária é algo
que p arece bem tran q u ilo . N o entanto, na fala de C arlos A lberto dos Santos D u tra podem os
Inicialm ente quando os O faié tom aram posse dos 484 hectares de terra aos poucos os
casam entos entre O faié e G uarani com eçaram a acontecer. H á um pouco m ais de um a década
os casam entos eram um (a) O faié, pertencente à fam ília do cacique José u ne-se a um (a) G uarani,
que tin h a laços com o m arido da irm ã de José que era o R oni. N o entanto, a sucessão dos cargos
de liderança na aldeia m antinha-se exclusivam ente entre os O faié na época. N esse m esm o
G overno Federal, os quais são destinados aos projetos na área da agricultura, pecuária, e
piscicultura, essa associação era com posta, exclusivam ente, po r integrantes O faié. N o entanto,
os G uarani podiam até expressar suas reivindicações, m as as decisões políticas adm inistrativas
N essa época tam bém as residências constituíam -se de fam ílias nucleares, que conviviam
m oradores da prim eira área, podem os observar u m a cisão espacial entre os que m oram no norte
- espaço O faié por excelência - e os que habitam as casas ao sul, sudeste e sudoeste, onde estão
A segunda área era habitada exclusivamente pelos Ofaié - é constituída por três
famílias extensas, alocadas em sete residências. Duas dessas famílias têm parentes
consanguíneos morando na outra área. Os moradores da segunda área têm maior
autonomia de subsistência em relação à primeira área, pois estão próximos das roças
e das lagoas e não frequentam a escola da aldeia (BORGONHA, 2006, p. 97).
que atualm ente essa un ião que já se estende po r alguns anos entre os integrantes das duas áreas,
fez com que se m odificasse a divisão espacial, bem com o, casais de etnias diferentes se fixassem
em áreas exclusivas dos O faié, isso se deve tam bém a disponibilidade de residências na aldeia,
bem com o, a fam ília extensa a qual cada um pertence. L em brando que na atualidade tam bém
659
3 - C O N S ID E R A Ç Õ E S F IN A IS
com os O faié, p articipar dos seus diálogos e vivenciar diariam ente tudo que passaram para
chegar onde estão hoje através de diálogos reproduzidos na própria aldeia, é superar lim ites que
até m esm o a antropologia não explica. C onhecer um a com unidade que aos poucos teve que
ganhar visibilidade, renascer de onde foram considerados extintos, e a p artir dai co m eçar um a
nova história, sem deixar seus “traços diacríticos” e aprendendo à conviver com novos agentes
buscando o seu protagonism o indígena, onde o povo O faié ganha voz e luta pelo seu território
tradicional.
a etnia O faié estava visível, até porque até os O faié com eçaram a ter visibilidade m uito pouco
foi produzido sobre eles, de im ediato a via que m e levou até eles e po r m eio dela iniciei m eu
trab alh o foi C arlos A lberto dos Santos D u tra conhecido com o “ C arlito” já citado durante o
trabalho, que produziu vários livros sobre essa etnia, porém , na área da h istória; j á na área da
antropologia apenas o trabalho de M irtes C ristiane B orgonha foi p roduzido em 2005, de lá para
N o entanto, optar pelo trabalho de cam po foi u m a form a de saber m ais sobre os O faié,
e conhecer m ais sobre sua H istória, além de escrever m ais sobre ela, algo que só poderia ser
E star na aldeia O faié foi u m a experiência sem igual, co m preender as relações que ali
unem duas etnias diferentes, além de não índios foi im portante para com preender as redes que
form aram a organização social da aldeia, bem com o, os conflitos po lítico s ali presentes há
4 - R E F E R Ê N C IA S B IB L IO G R Á F IC A S
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B R A S IL E IR A N A S E S C O L A S P Ú B L IC A S D E A M A M B A I-M S
T H A IA N E SA LES B R A N D Ã O 301
IN T R O D U Ç Ã O
continente africano carrega é pejorativa e negativa. D essa form a, a lei 10.639 im plem entada no
dia 9 de ja n e iro de 2003 que im põe a obrigatoriedade do E nsino de H istó ria da Á frica e C ultura
A fro-brasileira na rede básica v isa p rotagonizar o grupo social e in flu en ciar na fo rm ação da
identidade dos alunos negros. A aprovação da referida lei está relacionada com a luta do
m ovim ento social negro. N o ano centenário do fim da escravidão, o B rasil passava pelo
negro atuou para g arantir políticas públicas para o grupo desde a constituição, assim foi
estabelecido no artigo 242 que “ o ensino de h istória do B rasil considerará as contribuições das
diferentes culturas e etnias p ara a form ação do povo b rasile iro ” e no ano de 2003 foi estipulado
N esse sentido, a im plem entação da lei de 2003 ju n to a com unidade escolar é de extrem a
urgência, visto que está associado a u m a educação das relações étnico-racial. C om o intuito de
entendem os sobre a execução da lei federal nas escolas realizam os um a pesquisa para v erificar
as ações e m edidas adotadas pelo m unicípio de A m am baí/M S. R efletim os a p artir dos seguintes
com professores, pesquisas e trabalhos voltados p ara a tem ática nas escolas E.E. D om A quino
C orrêa, E.E. V espasiano M artins e E.E. Cor. Felipe de Brum . A s escolas escolhidas para a
pesquisa atendem alunos do ensino fundam ental- anos iniciais e finais, ensino m édio e
E d ucação para Jovens e A dultos (EJA ), são escolas públicas e estaduais. São discentes de
diversas cam adas sociais com o indígenas e alunos de m unicípios vizinhos e fazendas. As
escolas estão localizadas nas áreas urbanas da cidade. A efetivação da lei nas escolas de
301 Acadêmica do curso de Hisória da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. Trabalho desenvolvido sob
orientação da Profa Dra Manuela Areias Costa (UEMS) - Orientadora do PIBIC e TCC desta pesquisa.
664
A m am baí é de extrem a relevância, u m a vez que encontram os alunos de diversas realidades
sociais e culturais.
D E S E N V O L V IM E N T O
C onform e argum enta A m ílcar A raújo P e reira (2012, p.118) o m ovim ento negro existe
no B rasil desde que os prim eiros seres hum anos escravizados chegaram a terras brasileiras. O
m ovim ento negro é fundam ental para entenderm os a luta po r sobrevivência da população negra
m ovim ento negro é im portante para o reconhecim ento da cultura afro-brasileira. P ortanto,
propom os analisar com o o m ovim ento proporcionou a v alorização da cultura africana e a fro -
diversos povos em solo brasileiro. O s africanos chegaram ao B rasil com o estrangeiros e direitos
fundam entais com o o de liberdade foram negados. A coisificação dos negros, o m ito da
dem ocracia racial e o branqueam ento da população foram alternativas encontradas para tentar
elim inar a presença africana após o fim da escravidão em 1888 e negar aos negros direito a
a organização dos negros foram essenciais para ten tar acabar com o projeto histórico de
exterm ínio do grupo. O s esforços constantes do m ovim ento negro são responsáveis pelas
políticas públicas que a com unidade negra tem atualm ente. D estarte, as conquistas dos
m ovim entos negros foram inúm eras, entretanto a pesquisa focará na lei 10.639/03 e as m edidas
herança, um a vez que silenciam a trajetória dos negros e indígenas (C E R E Z E R . 2015, p.202).
e cultura afro-brasileira e a lei 11.645/08 que to rna obrigatório o estudo de h istória e cultura
indígena e afro-brasileira na rede básica de ensino de todo o B rasil este cenário da educação
aos povos negros e indígenas com eçou a ser m odificado. K abengele M unanga aponta que “ O
B rasil oferece o m elh o r exem plo de um país que nasceu do encontro das diversidades étnicas e
665
culturais” (M U N A N G A . 2015, P.20). L eis federais que garantam a visibilidade das diversas
continentes tinham antes do contato com os colonizadores. D esco lo n izar o currículo escolar é
prim ordial para um país form ado de m ulticulturas com o a nação brasileira. A bordar a história
de cada povo, distinguir a com posição étnico-cultural e o contexto social global em que o país
b ases para a prom oção de um a educação das relações étnico-raciais. B aseado nas inform ações
expostas é possível perceber que existe um arsenal legal para a im plem entação da lei nas
escolas. A falta de fiscalização contribuiu na não aplicação nas instituições escolares, a partir
local entender as ações adotadas e com o influenciam p ara o com bate ao racism o e identidade
dos alunos negros. D essa m aneira, exam inam os oitos livros didáticos, P rojetos P olíticos
P edagógicos e entrevistam os com professores das E.E. D om A quino C orrêa, E.E. V espasiano
conquista sem precedente para a educação das relações étnico-raciais. E ntretanto, ao analisar
livros didáticos, PPP s e entrevistar com os p rofessores preparados para retratar um a história
descolonizada, notam os que a im plantação da lei apresenta diversos desafios. E ntre os desafios
estão os m ateriais m etodológicos utilizados pelos docentes da educação básica. M artha A breu
e H ebe M atos afirm am que, m uitas vezes, os b rancos são evidenciados com o benfeitores nos
livros didáticos, já as representações dos negros acontecem em tem po/espaço esp ecifico da
possuem um a tarefa desafiadora de não propagar m ais discrim inação e preconceito contra a
p o pulação negra, sobretudo porque o livro didático retrata o continente africano com “ Silêncio,
fundam ental - anos finais vigentes nas escolas públicas do m unicípio de A m am baí/M S de m odo
Teláris: E nsino F undam ental — anos finais, prim eira edição p u blicada em 2018 na cidade de
São P aulo pela editora É tica. O PN L D possui v igência de até 2023. O s livros exam inados dessa
coleção correspondem aos 7°, 8° e 9° anos e os autores são C láudio V icentino e José B runo
666
V icentino. A segunda coleção analisada é a H istória, sociedade e cidadania — E nsino
Fundam ental — anos finais, quarta edição p u blicada em 2018 em São P aulo pela editora FTD.
autor responsável é o A lfredo B oulos Júnior. A terceira coleção analisada é a Inspire - E nsino
Fundam ental - anos finais, prim eira edição p u blicada em 2018 em São P aulo pela editora FTD.
PN L D tem v igência até 2023. O s livros exam inados correspondem aos 8° e 9° anos. Os autores
u m a história da Á frica fragm entada. D os oitos livros analisados apenas um capítulo foi
destinado à h istória do continente por exem plar, enquanto a h istória do continente europeu
entendem os que além dos livros didáticos, os P rojetos P olíticos P edagógicos estão relacionados
D e acordo com O svaldo C erezer (C E R E Z E R . 2011, p.2) não existe m ais a possibilidade
de negar a participação dos negros e indígena na construção social do B rasil, lançando novos
desafios para a com unidade escolar que precisa urgentem ente prom over um currículo
cidadã e prom ulgação das leis 10.639/03 e posteriorm ente a 11.645/08 form am as
transform ações necessárias p ara um a educação das relações étnico-racial. T odavia, m esm o com
a iniciação das políticas públicas voltada para os grupos sociais m arginalizados pelo contexto
Portanto, analisar com o a escolas públicas e estaduais do m unicípio de A m am baí aplicam a lei
10.639/03 nos P rojetos P olíticos P edagógico (PPP) é fundam ental, sobretudo para entendem os
E d ucação N acional n° 9.394/96, e é um dos instrum entos que garantem a G estão D em ocrática
P o lítico P edagógico (PPP) é um docum ento obrigatório na rede de ensino e precisa propiciar
m edidas, os conteúdos e as m etodologias que as escolas u tilizarão para p rom over um espaço
inclusivo, descolonizado e diverso. O P PP precisa prom over a form ação de indivíduos com
p.633). M uito ainda precisa ser feito para a inclusão de conteúdos relacionados à H istória da
contribuindo para a legitim ação da h istória da pop u lação negra e indígena silenciadas pelo
pedagógicas u tilizadas pelos p rofessores em sala de aula para a integração da lei, u m a vez que
avaliam os que tais práticas coletivas ou individualm ente contribuem para o cum prim ento da lei
em sala de aula m esm o sem a presença no PPP. D estarte, exam inarem os com o os professores
da rede básica de ensino do m unicípio de A m am baí incluem conteúdos voltados para o tem a e
antirracista.
que cham a a atenção de pesquisadores, essencialm ente porque a lei torna obrigatório o ensino
de h istória da Á frica e cultura afro-brasileira na rede básica de ensino. Porém , nota-se a falta de
exigência de disciplinas ou conteúdos relacionados à tem ática nos cursos de form ação de
da lei.
executar m edidas que corrobore para que a lei seja im plem entada. E ntre as ações a form ação
de docentes preparados para trab alh ar com o ensino de H istória da Á frica, C ultura A fro-
obrigatórias nos cursos de licenciatura, u m a vez que a lei estará presente em todas as disciplinas
escolares, não apenas no ensino de H istória. D eve o correr cursos de form ação continuada para
os profissionais na área há alguns anos (essencial para professores que obtiveram um a form ação
A s análises dos livros didáticos dos P P P s escolares e das entrevistas com os professores
da rede básica de ensino e de quase duas décadas desde a obrigatoriedade do ensino de H istória
lei 10.639/03 proporcionou po r m eio da educação um avanço sem precedentes para grupos
m inoritários e excluídos. M as, a aprovação da lei não significa que esteja sendo cum prida no
problem as encontrados para a aplicação da lei em sala de aula. O s relatos dos professores
ressaltaram que a ausência da lei no P PP escolar está relacionada com a estrutura e organização
668
das escolas, evidenciado a identidade da instituição. M as, além das escolas, os docum entos
O utro ponto im portante ressaltado pelos docentes da educação básica está relacionado
à falta e quantidade de m atérias disponíveis para trab alh ar com a tem á tic a e a form ação de
professores, todos apontaram para a ausência de m atérias didáticos e de apoio para trabalhar
nas escolas, principalm ente porque existe um a diversidade de trabalhos acadêm icos voltados
para a lei e suas nuances, m as livros didáticos e m atérias que se com prom etam com o tem a
ainda são poucos, afirm am os professores. E m relação à form ação de professores qualificados
para trabalhar com a lei percebem os outra problem ática, os docentes entrevistados apenas um
teve contato com disciplinas específicas voltada para H istória da Á frica e C u ltu ra A fro -
brasileira. O problem a torna-se m ais grave se observam os que apenas um dos professores
form ou-se antes da prom ulgação da lei. O s dem ais graduados nos cursos de licenciatura em
q ualificou os professores que são os profissionais responsáveis p ela im plem entação da lei na
sala de aula através das práticas pedagógicas. P ercebem os que os PP P s infelizm ente não têm a
lei com o prioridade. C ontudo, os p rofessores das escolas adotam p ráticas e ações isoladas na
m ed id a do possível e dos recursos disponíveis para im p lem en tar a lei. E ntendem os a lei com o
u m a política pública que veio solucionar a exclusão, discrim inação e preconceito racial que a
p o pulação negra v ivencia desde o período escravocrata, porém após quase duas décadas de
existência o sentim ento de “precisam os fazer algo m ais” é latente. C onstatam os que as práticas
pedagógicas realizadas isoladam ente pelos professores da educação básica podem influenciar
p o pulação negra. Os m ovim entos negros inseridos no B rasil desde que os prim eiros seres
invisibilidade é um problem a que perpassa séculos e infelizm ente a lei 10.639/03 apontado por
diversos estudiosos com o um a reparação histórica não conseguiu p roporcionar aos afro-
A m am baí/M S. C onstatam os que o m aio r com bate dos negros no B rasil é de existir em um a
669
sociedade que nega essa existência constantem ente, a respectiva lei evidencia a existência e
resistência dos negros, porém , os m ecanism os sociais racistas silenciam a lei. D jam ila R ibeiro
(2018) argum enta que os negros no B rasil não querem ser objetos de estudos e sim sujeitos de
pesquisas. A lei 10.639/03 é m uito im portante para protagonizar os negros, as ações realizadas
pelos professores das escolas de A m am baí/M S são fundam entais, visto que a prática
pedagógica resu lta na aplicação da lei na sala de aula. M as as m edidas adotadas pela
com unidade escolar, docum entos norteadores e m ateriais didáticos apresentam “ C olonia lidade
R E F E R E N C IA S B IB L IO G R Á F IC A S
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NEGRA
TIA G O N IL S O N D A S IL V A 302
T E A C H IN G H IS T O R Y A N D O R A L H IS T O R Y : T H E V O IC E O F T H E B L A C K
W OMAN
A b s tra c t: T his article presents the reflections from the narratives o f a b lack w om an from the
neighborhood o f A rm ação da Piedade, in the m u nicipality o f G overnador C elso R am os/SC ,
about a cultural asset: the N o ssa Senhora da P iedade C hurch/SC . C larifying th a t the C hurch o f
N o ssa Senhora da P iedade, in G overnador C elso R am os-S C , w as listed fo r its cultural
im portance through D ecree N o. 3,458, o f 11/23/2001. T he objective o f th is article is to
articulate the m em ory, the experience o f a resident w ith the cultural heritage inserted in the
locality. T he m ethodology u sed w as oral history, carried out through interview s, dialoguing
w ith the concepts o f m em ory, experiences, narratives and heritage. W hen w orking w ith the
narratives o f th is resident, to com pose this article, I rely on the concepts o f m em ories, narratives,
experiences, sinkings in B enjam in (1994), B ondía, (2002), G agnebin (2014). M ethodologically,
the interview w as adopted as an instru m en t fo r collecting narratives, b ased on oral history,
inspired by A lberti (2005) and Porteli (2016). It is concluded th at through oral history it w as
possible to visualize a “forgotten” and subordinated and not problem atized m em ory in the
classroom and th at explode from the narrative o f a b lac k w om an in the m unicipality.
302 Mestrando no Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
E-mail: tiagonilson@yahoo.com.br
672
A s re la ç õ e s é tn ic o rra c ia is
cham ados “grande hom ens ou heróis” , historicam ente foram alicerçados num a perspectiva
eurocentrada, branca, patriarcal, na qual som ente são selecionados e visibilizados som ente os
grandes acontecim entos e fatos históricos da hum anidade, sobretudo da E uropa, em detrim ento
das narrativas e da história de outros povos dos m ais diversos continentes com o das A m érica,
Á frica e Á sia, histórias e narrativas estas que foram e continuam sendo m arginalizadas, quando
não com pletam ente invisibilizadas e om issas nos currículos de ensino nas esco las e
u niversidades. A ssim , parte significativa da população brasileira, com o negros e indígenas que
lutaram bravam ente nos grandes acontecim entos da H istória do B rasil não têm seus nom es
registrados nos livros de H istória utilizados nas escolas com o heróis ou heroínas da nação.
com pletam ente esquecidos e invisibilizados na form ação escolar de grande parte da ju v en tu d e
b rasileira.
Faz-se necessário ressaltar que foi por força dos m ovim entos negros contem porâneos
que a pauta do ensino de h istória e cultura africana e afro-brasileira foi incorporada no currículo
escolar por m eio da obrigatoriedade trazido pela lei n° 10.639/2003 e posteriorm ente, a lei n°
Nesse sentido, precisamos lembrar que as duas Leis (10.639/03 e 11.645/08) que nos
obrigam a trabalhar com história e cultura africana e afro-brasileira, ou história e
cultura dos povos indígenas não se originam nas universidades, nem tão pouco são as
escolas que fazem essa briga, que obrigam a transformação em lei. São os movimentos
negros, os movimentos indígenas que obrigam a colocar tais saberes e práticas na
nossa LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional] e obrigam a ensinar na
escola. (ANTONI, PAIM e ARAUJO, 2021, p.36)
apresenta-se à frente da lei, no sentido de que ela é de sum a im portância para relações m ais
positivas na escola, pois é po r m eio dela que m uitos educadores tentarão nas suas diversas
escolas e salas de aulas m inim izar e, se possível, dirim ir por com pleto o racism o, o preconceito
e a discrim inação que vitim iza as populações deste país, principalm ente a negra. P orém , para
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m uitos educadores e educadoras não é fácil realizar esta tarefa devido às estruturas de
dom inação ideológica presentes na sociedade brasileira e, principalm ente por falta de
conhecim ento desses tem as em suas form ações iniciais. A lguns outros/as ainda defendem que
não há nas escolas espaço para este tip o de discussão, vinculando este tip o de ensino e debate
M e m ó ria , n a r r a ti v a e e x p e riê n c ia s
com (G alzerani, 2012), a m em ó ria - raras vezes p roblem atizada com o objeto de estudos.
desinteressadas e seletivas, que carecem do o lhar vigilante da “ senhora - história” , para serem
sistem atizadas de form a escrita e apresentadas com o saber crítico, relativam ente ao passado.
P ara (G agnebin, 2014), o ato de lem brar na concepção de B enjam im , não se reduz à
acum ulação de dados, tornando um fardo que pode im p ed ir os vivos de agir com inventividade
e liberdade. Portanto, a crítica benjam iniana, incide ju stam en te nessa concepção de m em ória
“ neutra” , “ desinteressada” , que to d a essa faculdade hum ana com o um m ero instru m en to
reflexão sobre a narração. E as form as de narrar são os m eios fundam entais da construção da
identidade, pessoal, coletiva ou ficcional. Segundo ela, B enjam im define a narração a p artir da
oralidade (isto é, da relação ouvinte-narrador) e da transm issão. E ntão narrar não é apenas salvar
e conservar, m as é tam bém , poderiam os dizer, salvar tão com pletam ente que se possa deixar de
experiência, de acordo com (B ondía, 2002), é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos
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toca. O sujeito da experiência é tam bém um sujeito sofredor, padecente, receptivo, aceitante,
interpelado, subm etido. Se a experiência é o que nos aco n tece e se o saber da experiência tem
a v er com a elaboração do sentido ou do sem -sentido do que nos acontece, trata-se de um saber
A b o rd a g e m d e c o lo n ial
O processo social e p olítico de luta decolonial, segundo (T olentino, 2018), tem com o
p rojeto a transform ação social e política, com o tam bém a transform ação das estruturas do
A o a f ir m a r o p ro c e s s o p o lític o e s o c ia l d e c o lo n ia l [e m v e z d e d e s c o lo n ia l]. N ã o
p o d e m o s s im p le s m e n te d e s a r m a r, d e s f a z e r o u r e v e r te r o c o lo n ia l; o u se ja , p a s s a r d e
u m m o m e n to c o lo n ia l a u m n ã o c o lo n ia l, c o m o se fo s s e p o s s ív e l q u e s e u s p a d r õ e s e
m a r c a s d e s i s ti s s e m d e e x is tir. A in te n ç ã o é m esm o a s s in a la r e p r o v o c a r u m
p o s ic io n a m e n to - u m a p o s t u r a e a titu d e c o n tin u a - d e tr a n s g re d ir, in te rv ir, in s u r g ir e
in c id ir. O d e c o lo n ia l d e n o ta , e n tã o , u m c a m in h o d e lu ta c o n tín u o n o q u a l p o d e m o s
id e n tif ic a r, v is ib i li z a r e e s tim u la r “ lu g a r e s ” d e e x te r io r id a d e e c o n s tr u ç õ e s
a lte rn a tiv a s . (W A L S H , 2 0 0 9 , p. 1 6 -1 5 apud T O L E N T I N O , 2 0 1 8 , 12)
P ara construir outras narrativas p ara a construção de conhecim entos históricos, vários
V ani M aria G alo, m u lh er negra, nascida em 28/03/1959, filha de M anoel L im a dos Santos e
M aria A ntônia dos Santos, am bos residentes em A reias de B aixo, G overnador C elso R am os,
Santa C atarina.
am biente escolar que despreza narrativas não oficiais, pensam os na im portância das relações
Is s o n o s le v a a c o n c lu s õ e s d e q u e p a r a p r a tic a r m o s a e d u c a ç ã o p a r a a s r e la ç õ e s
é tn ic o r r a c ia is p r e c is a m o s n o s r e e d u c a r e r e e s tr u t u r a r n o s s o s p e n s a m e n to s e n o s s a
fo r m a ç ã o p r o f is s io n a l p a r a n ã o c a ir m o s n o s e q u ív o c o s e m e s m o s e r r o s c o m o e s t u d a r
a s c u ltu r a s a f r ic a n a s e a fr o b ra s ile ira s p e lo v ié s c o lo n ia l e e u r o c ê n tr ic o . P o r ta n to , fic a
a p e r g u n t a : é p o s s ív e l a o s d o c e n te s d a e d u c a ç ã o p ú b lic a e p r iv a d a p e n s a r o e n s in o
p a r a a e d u c a ç ã o d a s re la ç õ e s é tn ic o r r a c ia is e o e n s in o d e h is tó r ia e c u ltu r a a f r ic a n a e
a f r o - b r a s ile ir a p a r a a lé m d a m a triz c o lo n ia l e u r o p e ia e s u b v e r te r e s ta e p is te m o lo g ia
p o r o u tr a s , q u e c o n s id e re t o d o s e s s e s p o v o s e p o p u la ç õ e s s u b a lte r n iz a d o s p o r e s s e
p e n s a m e n to h e g e m ô n ic o a o lo n g o d o s s é c u lo s ? S e g u n d o o g ru p o d e p e s q u is a d o r e s
la tin o - a m e r ic a n o s d e n o m in a d o s “ m o d e r n id a d e /c o lo n ia lid a d e ” a r e s p o s ta é sim . É
p o s s ív e l. (S O U Z A , 2 0 1 8 , p .6 2 )
675
P a trim ô n io e E d u c a ç ã o P a trim o n ia l
A preservação dos m onum entos, de acordo com (Fonseca, 2005) e stá atrelada à
form ação dos E stados nacionais e data dos anos finais do século X V II, quando o E stado, na
E uropa, p assa a assum ir a proteção legal de determ inados b ens aos quais foi atribuída a
seguiu a ten d ên cia europeia, ligando-se intim am ente à ideia de form ação e afirm ação do E stado-
N ação. M as, para além disso, o desejo de p erten cer à civilização ocidental foi, provavelm ente,
o que configurou o processo de invenção de um p atrim ônio nacional no B rasil, com a criação
do Serviço do P atrim ônio H istórico e A rtístico N acional - o SPH A N (hoje IPH A N ), no ano de
1937.
A n o ç ã o d e p a tr im ô n io é la r g a m e n te u tiliz a d a n a s s o c ie d a d e s c o m p le x a s
c o n te m p o r â n e a e p r o p a g a - s e e m d iv e r s o s c o n te x to s s o c ia is. S itu a r, h is to r ic a m e n te a
e la b o r a ç ã o d essa noção, im p lic a d a na c o n s tru ç ã o e c irc u la ç ã o de p r á tic a s e
r e p r e s e n ta ç õ e s s o c ia is , c o n tr ib u i p a ra p e n s a - la com o o b je to de in v e s tig a ç ã o
a c a d ê m ic a , c o m o c a m p o d e a ç ã o s o c ia l e d a s p r á tic a s p e d a g ó g ic a s n o e n s in o d e
H is tó ria . ( P O S S A M A I, 2 0 1 5 apud C IA M P I ,2 0 1 5 )
P o r isso, ao pensar a interface ensino de H istória e patrim ônio, de acordo com (Ciam pi,
2015), urgente se faz problem atizar as diferentes apropriações sociais e culturais pelo
patrim ônio, retirando-lhe o seu estatuto sacralizado, considerando-o produto e v eto r de relações
sociais. Isso quer dizer que ter o patrim ônio com objeto de investigação dos estudos históricos
R e c e n te m e n te , p a s s o u a e x is tir u m d iá lo g o e n tr e o s e s p a ç o s d e m e m ó r ia e a s e s c o la s ,
e, a s s im , a s q u e s tõ e s d a m e m ó r ia e d o p a tr im ô n io a o s p o u c o s e s tã o se n d o in c o r p o r a d a s
a o s c u rr íc u lo s e s c o la re s . O p a tr im ô n io p a s s o u a c o n tr ib u ir “ p o te n c ia lm e n te n a
fo r m a ç ã o h is tó ric a , v is to q u e p e rm ite d a r c o n s is tê n c ia à s in f o r m a ç õ e s e a b s tr a ç õ e s d o s
te x t o s h is tó ric o s e p o r q u e c o n s tr ó i a p e r c e p ç ã o e a v is ã o h is tó r ic a d o te r r itó r io e d o
m u n d o . O e s c o p o é g e r a r o s e n tid o , o c o n h e c im e n to e o re s p e ito ao p a tr im ô n io ”
( M A T O Z Z I, 2 0 0 8 , p .1 4 9 apud P A I M e A R A Ú J O 2 0 1 8 ).
676
A seguir está a narração de V ani G alo sobre o P atrim ônio C ultural local entendo que
nos últim os tem pos, a definição de patrim ônio passou a considerar o que tem um sentido para
u m a determ inada pessoa ou grupo, isto é, p atrim ônio passa a ser, de acordo com (V arine, 2012,
p.43 a p u d Paim e A raújo 2018) todo bem “ [...] do m ais m odesto ao m ais notável, tudo o que
tem um sentido para nós, o que herdam os, criam os, transform am os e transm itim os é o
A igreja foi feita na época dos escravos. Foi uma época marcante. Para mim é bem
marcante. Os meus ancestrais foram os que construíram uma beleza tão rica.
Hoje em dia tem um monte de igreja. Eles levantam dos tijolinhos. Só tem luxo. Mas
aquela é uma igreja que foi feita com suor. A gente sabe dos tamanhos da pedra.
(GALO, Vani Maria. Entrevista. Junho de 2019).
N o ssa Senhora da P iedade, em G overnador C elso R am os-S C , que foi to m b ad a por sua
im portân cia cultural. S egundo a F undação C atarinense de C ultura (FCC ), a arm ação de baleias
m ais sete negociantes, que fizeram um contrato de arrem atação com a C oroa P ortuguesa por 12
anos. Foi nesse período que se levantou a A rm ação da P iedade, próxim a à ponta norte da Ilha
de Santa C atarina, onde, segundo (B oiteux, 1914), em 18 de novem bro de 1745/46, benzeu-se
a C apela. E la com eçou a ser construída em 1738 e concluída em 1745. E m estilo colonial
português, m antém as características das igrejas setecentistas, com frontão triangular. A igreja
foi to m b ad a pelo E stado pelo D ecreto N° 3.458, de 23/11/2001, é tid a com o a prim eira igreja
edificada em Santa C atarina, no século X V III, ainda utilizando óleo de b aleia na argam assa, e
localizada ao lado das ruínas da antiga A rm ação da P iedade. E m 1839, a A rm ação da P iedade
D e acordo com (Paim e A raújo, 2018) as pessoas só respeitam , adm iram , preservam e
se identificam com aquilo que conhecem . P ara que ocorra especialm ente a identificação (ou
não) com os bens patrim oniais, faz-se necessário pensar e construir possibilidades de educar
para o patrim ônio, a fim de que as pessoas conheçam e sintam -se pertencentes aos espaços, às
discussões, lugares de guarda e preservação dos diferentes bens patrim oniais. P ortanto, para
que efetivam ente ocorra u m a educação p ara o patrim ônio, não b asta falar em ou sobre
O s autores afirm am citando (Fonseca, 2003, p.250) que o trabalho de entrecruzam ento
das histórias, m em órias, patrim ônios e identidades, certam ente, contribuirá para a
“ com preensão do 'eu', a afirm ação da personalidade, situando o indivíduo no espaço, no tem po,
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na sociedade em que vive com o um sujeito ativo, capaz de com preender, construir e transform ar
essa sociedade, o espaço, o conhecim ento e a história” . P ara isto não podem os apenas apresentar
a h istória ou m em ória oficial; faz-se necessário apresentar as m em órias e histórias locais, dos
trabalhadores, dos cidadãos anônim os que tam bém fazem - e m uito - a história
C o n s id e ra ç õ e s F in a is
P atrim ônio C ultural, ou seja, que o apresente com o u m a construção, um processo que envolve
vários agentes, interpretações individuais e coletivas e que decidiu pela p reservação de um bem
segundo a autora, o ato de dessacralizar o acervo patrim onial, que consiste em desestabilizar as
certezas do patrim ônio, problem atizar os processos, indagar sobre seus valores, m ostrando que
o v alo r não está no bem em si, m as ao que foi atribuído a ele. E ssa proposição se relaciona com
o que (L acerda et al, 2015) cham ou de dim ensão da inform ação, citada anteriorm ente. Portanto,
a abordagem de E d ucação P atrim onial pensada aqui não b u sca a dim ensão puram ente de
2020, p.48).
R e fe rê n c ia s
679
W A L S H , C atherine. I n te r c u ltu r a lid a d e C r itic a e P e d a g o g ia D e c o lo n ia l: in - s u r g ir , re -
e x is tir e re -v iv e r. In: C A N D A U , V era M aria. Educação Intercultural na América Latina: entre
concepções, tensões e propostas. R io de Janeiro, Sete Letras, 2009, p. 12-42.
680
SOB OS “TIPOS” E FORMAS: REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS A
PARTIR DAS PUBLICAÇÕES DO JORNAL DO COMMERCIO (RJ) -
(1840-1855)
TÚ L IO B O T E L H O M O R E IR A D E C A S T R O 303
U m a coisa não se pode negar, a histó ria do B rasil sem pre foi m arcad a pelas
invisibilidades im postas aos povos indígenas e as suas histórias. A presença desses sujeitos e
suas trajetórias foram historicam ente sobrepostas po r outras narrativas entendidas com o m ais
relevantes a form ação do E stado N acional. N esse sentido, é com um encontrarm os m uitos
trabalhos a respeito da form ação nacional, surgim ento, solidificação e declínio do Im pério
B rasileiro, m as, ainda há pouco abordando os povos nativos no oitocentos. S erá que durante
X IX , que aqui será apresentado o recorte de u m a pesquisa em que se busca relacionar esses
representações que então foram construídas. A lém , pretende-se tam bém , fazer u m a reflexão a
respeito dessas representações con struída ainda no B rasil im perial e suas p erm anências na
contem poraneidade.
ao longo de sua trajetória receberam diversos atributos que em nada condiziam com o seu real
ser. Julgados com base no crivo eurocêntrico304, os povos nativos foram em m uitas vezes
reduzidos à in significância histórica. Tal perspectiva só com eçaria a m udar a partir da id eia de
u tilizar esses sujeitos, com uns ao território brasileiro, enquanto um sím bolo para unificação do
D urante o período im perial, os índios b rasileiros teriam o seu lugar relegado à história,
com o bárbaros, violentos e incivilizados, sem p o ssu ir qualquer reconhecim ento nacional.
Segundo F ernanda Sposito (2012), devido ao fato de os índios não serem considerados
3031 Bacharel em Humanidades e Licenciado em História pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e
Mucuri - UFVJM/Campus Diamantina, mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal da Grande Dourados - UFGD, com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - CAPES. E-mail: tulio.botelho@ufvjm.edu.br.
304 Aqui considera-se sobretudo a lógica adotada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, como fora
apresentado por Lilia Moritz Schwarcz na obra “O espetáculo das raças: cientista, instituições e questão racial no
Brasil - 1870-1930”, em que apesar de ser uma instituição nacional, acabava por adotar uma perspectiva científica
importada da Europa.
681
pertencentes à sociedade política e civil no início do século XIX, ju stifica v a -se a inexistência
C unha (2012) e João P acheco de O liveira (2006), destacam que a prim eira legislação
propriam ente dita indigenista no oitocentos só apareceria em 1845, com o R egulam ento de
M issões, que m ais u m a vez, b u scaria im por sobre os índios um princípio de “ civilidade” .
n ação brasileira se identificasse, o desafio seria grande. A dificuldade se daria m uito em razão
das narrativas com uns de inferiorização do indígena e tam bém pelo fato de que “ os índios
ocupavam terras, am eaçavam colonos, recusavam -se ao trabalho e lutavam para conservar suas
principais espaços para divulgação de estudos a respeito dos autóctones, assim com o de
expedições, estudos científicos, e, histórias regionais. L úcio T adeu M o ta (2006), aponta que a
R ev ista foi a difusora da proposta de m uitos dos ideais do Im pério, a exem plo de que os índios
deveriam p assar po r um processo civilizatório. E tal afirm ativa é evidenciada a partir de alguns
textos do C ônego Januário da C unha B arbosa, que foram publicados no periódico do IHGB
entre 1839-1846, em que defendia que os indígenas deveriam ser catequizados, para que então
se tornassem civilizados, assim com o de que seria a m ão de obra indígena a responsável por
suprir o trabalho dos africanos escravizados. A R IH G B , então, foi para o período, o espaço de
publicação de um a elite intelectual da Corte, fazendo com que as suas ideias e as do im perador
P ara além do Instituto H istórico, outros espaços deveriam se colocar enquanto cam po
haja vista as narrativas que nela foram difundidas. P ode-se assim afirm ar, que os índios ao longo
do tem p o se tornaram elem entos im portantes para h istória n acional, fossem pelos usos que
nos discursos da C âm ara e até m esm o nos periódicos. U m a vez que, foram nesses espaços de
pesquisa, política e divulgação, que os povos das m atas acabaram sendo recorrentem ente
narrados, o que fez assim , com que se construísse e divulgasse u m a representação a respeito
daqueles sujeitos. R epresentação essa, que surge com a finalidade de atender e legitim ar
determ inados com portam entos sociais, com o bem apresenta R o g er C hartier (2002).
682
O JORNAL DO COMMERCIO E SU A S M A R C A S N O I M P É R I O
A pesar do baix o nível de alfabetização no Im pério do B rasil, foi nas ações de leituras
públicas que m uitos dos analfabetos se inform avam a respeito dos assuntos que os jo rn a is
abordavam . N esse sentido, L úcia M aria de B astos N eves afirm a que, “ num a sociedade ainda
regida pela oralidade, as pessoas tom avam conhecim ento das novidades ouvindo as leituras e
participando das conversas e discussões sobre os acontecim entos po lítico s que ocorriam nos
lugares p ú blicos” (1995, p. 132). A ssim , fo ra no espaço público, e por m eio de ação indireta de
inform ação, que os sujeitos do Im pério passaram a alim entar o seu aspecto cultural, m esm o que
inteirassem dos assuntos, fosse sobre de política, ou até m esm o econom ia.
ten d o em vista que as publicações tom aram conta de diversos espaços de sociabilização da elite
im perial, tal com o cafés, academ ias e livrarias. N o entanto, as ruas tam bém foram palco de
acalorados debates a respeito de posições assum idas por determ inados artigos, acirrando os
ânim os da sociedade leitora. Foi nesse espaço de grande agitação social, que se viu o crescente
cotidiano, um a vez que buscavam p rom over a inform ação, o que de acordo com N eves (1999),
gerou a difusão de discursos cada vez m ais políticos e ideológicos do que culturais.
Commercio (RJ), se tornou im portante veículo que fora aos poucos sendo reconhecidos po r seu
trab alh o de inform ação, assim com o po r propor im portantes debates a respeito das questões
sociais que eram recorrentem ente apresentadas po r ele. M atías M olina (2015) destaca que o
assim , de pronto, j á pode-se im aginar o peso que elas tiveram para história da nação se que
form ava.
O Jornal do Commercio (RJ) foi fundado em 1827 pelas m ãos de P ierre P lan ch er e se
destacou po r se um dos jo rn a is m ais im portantes do R io de Jan eiro , assim com o um dos m ais
prestigiados e relevantes do Im pério. M o lina (2015) aponta que o do Commercio (RJ), foi tão
relevante nacionalm ente quanto o The Times foi para E uropa. C om destaque a respeito de
inform ações com ercias, notícias com piladas a p a rtir de jo rn a is internacionais, e pouco tem po
depois com apontam entos a respeito da vida política, esse jo rn al acabou aos poucos
conseguindo m ais público. A ssim , ao passo que se consolidava no cenário nacional, acabava
tam bém po r in serir em suas narrativ as alguns discursos criados pelos órgãos oficiais do Estado.
683
A pesar do grande alcance das publicações do jo rn al, M o lina destaca que “ o Jornal do
242). Logo, pode-se entender que as publicações realizadas pelo jo rn al, em parte poderiam fazer
com que a sociedade com ungasse com o que fora exposto em suas páginas. A ssim , ju stifica -se
tam bém a escolha do periódico dada a sua relevância ao período e as abordagens po r ele feitas.
necessário apresentar a ju stifica tiv a do recorte tem poral, reforçar a razão pela escolha do
escolhas im plicam diretam ente na construção deste. A escolha do espaço tem poral de 1840 a
1855 se deu em função de ser o p eríodo de m aior publicação do jo rn al, m as tam bém em que há
o m aio r núm ero de ocorrências que são de interesse do trabalho. Já a escolha pelo Jornal do
Commercio (RJ) se deu em função do seu alcance e im portância, sendo um dos m ais lidos e de
m aio r influência para sociedade im perial, com o aponta M o lina (2015).
tam bém , em razão de abranger o início das publicações do Revista do Instituto Histórico e
ocorrências passíveis de análise. D entro das 296 m enções, foi possível classificá-las em nove
categorias, no entanto as m ais relevantes a este trabalho são as que enquadram as publicações
com o discursos que buscavam colocar os indígenas enquanto sujeitos m arginalizados, assim
C abe destacar que, as categorias foram estabelecidas através do levantam ento e análise
das ocorrências nos periódicos. A ssim , foram criadas a partir de características encontradas que
perm itissem estabelecer u m a certa sim etria entre as narrativas, buscando então afinidades entre
e plausíveis a esta pesquisa, possibilitando então traçar as relações dos discursos da época.
S endo assim , a partir das leituras foi possível categorizar as ocorrências da palavra índio
personagens em poem as e folhetins. P ara além das seis classificações que foram estabelecidas,
cabe d estacar tam bém , que três outras categorias foram criadas, sendo elas: 1- o co rrên cia não
só foram criadas devido a necessidade de alocar um núm ero de ocorrências que não se
A R E P R E S E N T A Ç Ã O F E IT A A T IN T A : O ín d io m a r c a d o pelo tipo
discurso na segunda edição da R IH G B (1840), chegou a afirm ar que para tira r os índios da
situação de barbárie social, seria necessário catequizá-los, civilizá-los ou dom esticá-los, perante
culturais, sociais e religiosos e passassem a com ungar dos princípios que a sociedade im perial
b rasileira congregava.
qualquer sujeito, surgiria com a finalidade de viabilizar projetos que se buscavam construir.
N esse sentido, a representação do índio construída pelo IH G B , b u scav a viab ilizar o apagam ento
do índio “ real” , para dar vazão ao rom antizado e idealizado que se tentava colocar enquanto um
sím bolo nacional. O s jornais, acabaram assim contribuindo para esse processo que em grande
m edida, não serviu apenas para o apagam ento desses sujeitos da história, m as tam bém em
presença constante de debates, ou inform ações sobre os processos p ara civilizar e converter os
representação tip ificad a sobre esses povos. A respeito dessa tipificação, a edição de 1849,
núm ero 76 do Jornal do Commercio, evidencia que “ m ilhares de índios errantes estão pelas
m atas, m uitas delas próxim as a povoados, sem o m enor vislum bre de civilização, e entregues
ao m ais com pleto barbarism o e ociosidade [...]” (p. 1). A ssim , p erceb e-se que há no discurso
sociedade local.
tem áticas a respeito dos indígenas, deve-se p ontuar que m uitas das vezes essas não se deram de
685
fo rm a proporcional. P egando com o exem plo de com paração o Diário de Pernambuco305, foi
violento, m arginal e em sua m aioria figurando em notícias crim inais. Já o jo rn a l com sede na
C orte, acabou po r apresentar um m aior núm ero de publicações para a categoria que diz respeito
respeito ao processo de civilização que deveria ser aplicado aos povos indígenas. P ercebe-se,
que ele, cum pria assim o papel de difusor das propostas p o stuladas pelo Instituto H istórico
B rasileiro, ten d o em vista que nele o assunto quente do m om ento dizia respeito a essa prática.
aos povos nativos, sendo po r m eio de lutas arm adas, da catequização, de prisão e até m esm o de
m atrim ônio entre indígenas e europeus. A respeito do m atrim ônio entre os nativos e
estrangeiros, para aquele jo rn al, essa deveria ser tam bém um a prática aplicada com a finalidade
A inda a respeito das narrativas m uito presentes para o Jornal do Commercio (RJ), sobre
periódico. T odavia, cham a a atenção u m a fala que consta em edição de 1848, núm ero 246, que
diz, “ quanto a civilização dos indígenas, eu entendo que a hum anidade exige que o governo não
poupe m eios para os catequizar e civilizar, m as não devem os te r m uitas esperanças nesse
sistem a” (p. 2). A ssim , pode-se enxergar que m esm o que, a catequização e outros processos
com intuito de civilizar os índios fossem defendidas, não havia a confiança de que esses sujeitos
se renderiam ao m eio social do Im pério, que fora construído a partir de posições europeias.
nos m ais variadas edições e anos, em que os indígenas eram subordinados à condição de
crim inosos e prisioneiros. A ssim com o, foi possível tam bém encontrar diversas publicações em
que o índio aparecia na condição de violento, ladrão, e responsável po r atentados contra a ordem
social e ao E stado.
de aproxim adam ente 60 a 70 indígenas contra guardas da Corte. N o jo rn a l de núm ero 3, foi
divulgada u m a perseguição a um grupo de 7 índios, onde resultou a m orte de um , ferim ento de 305
305 O Diário de Pernambuco, surgiu em 1825 e foi um dos mais proeminentes periódicos do Nordeste. Sob o
mando de Miranda Falcão, o Diário se tornaria sucesso absoluto e se consolidaria como um dos jornais mais
longevos do Brasil, circulando até a contemporaneidade.
686
dois e prisão de 4 essa ocorrência, fez com que um grupo de nativos se m obilizassem para
perseguir os guardas envolvidos na ação. A pesar do confronto que resultou na m orte e nas
prisões, o jornal destaca o m otim dos índios, assim , p ercebe-se que o im portante não foi a
vio lên cia im posta, ou as prisões, m as sim, a im agem de selvagens que se construiu sobre ação
época, a tem ática indígena tam bém se encontrava em voga para discursos e assuntos
C ongresso. O Jornal do Commercio, para além de divulgar diversos anúncios, tam bém foi
responsável po r reproduzir em suas páginas alguns discursos proferidos nas assem bleias da
C âm ara e Senado, assim com o relatórios da P rovíncia do R io de Janeiro. A esses pontos, deve-
assem bleias se tornaram tam bém espaços de debates para assuntos im portantes a serem tratados
pelo Im pério. N esse sentido, destaco a fala de abertura da assem bleia provincial de A lagoas,
Sendo tem ática nas assem bleias, em discursos e em acalorados debates na C âm ara de
D eputados a exem plo do que consta no Jornal do Commercio (RJ), de 1845, edição 193. N e la
de obra e equipam entos da E uropa para serem usados na indústria agrícola. N esse quesito,
durante o debate há o questionam ento de: “P o r que razão não se apresenta um p rojeto de
catequese e civilização dos índios?” (p.1), em continuidade é expressado o apoio para tal
m edida, com pode-se visu alizar em “ [...] estou pronto para p restar o m eu voto a to d as as
m edidas legislativas que nos prom etam o grande benefício de c iv ilizar nossos índios, tirá-los
das m atas e aplica-los na indústria agrícola” (p. 1). A ssim , p ercebe-se que para além do aspecto
de civilizar os indígenas ser um tem a quente ao m om ento e a discussão, h á tam bém o apoio de
publicação 46 daquele ano, houve a defesa de que se liberasse para que alguns índios
trabalhassem na condição de m édico em algum as das m issões, haja vista que “ cada índio que
conhece bem a m edicina herbolária, m erece esse reconhecim ento” (1850, p. 2). A pesar das
687
eles ficavam atrás daqueles entendidos com o brasileiros, um a vez que eles tam bém dom inação
A inda em 1850, durante discurso no Senado que fora publicado pelo do Commercio, no
núm ero 160, os senadores H ollanda C avalcanti e Francisco Sá defendiam que aos índios fosse
apesar da avultada argum entação apresentada, nada foi feito para que o reconhecim ento se
efetivasse, a isso, pode-se atribuir a sociedade da época, que acreditava na inferiorização dos
O utra publicação que aqui pode ser destacada com o destoante da enviesada pela
1852. N as edições de núm eros 333 e 345, M orais apresentou um texto cujo título fora “ Os
índios do B rasil sem p ro teção ” , que ao contrário do que fora com um , ele colocava a necessidade
viverem em com unidade e a serem civilizados. N esses núm eros, foi possível p erceber um a
postura disruptiva, pois ia na contram ão das pregações na necessidade dos índios se curvarem
im perial. T am bém , torna-se evidente que eles foram responsáveis pela reprodução da narrativa
índio do século XIX, foi subm etido a u m a construção representativa que acabou o relegando a
um espaço m ais a m argem da sociedade, do que o que ele j á vivia. P assíveis a conversão, a
serem civilizados, bárbaro, hostil, violento, foram algum as das narrativas engendradas aos
difusão feita po r sua R evista, pelo jo rn al que aqui se b uscou analisar, e tantos outros, conseguiu
criar para esses sujeitos características que para aquela sociedade deveriam pertencer aos
indígenas, m esm o que essas não fossem reais. Sendo assim , o Jornal do Commercio (RJ),
exerceu o papel de linha auxiliar da instituição científica m ais im p o rtan te do Im pério, um a vez
que divulgou e que consequentem ente fez com que a sociedade do período passasse a ler os
P o r fim , m ediante a análise das 296 ocorrências, no Jornal do Commercio (RJ), pode-
se aqui afirm ar que o índio nacional foi m ajoritariam ente narrado a partir desse periódico
enquanto crim inoso, violento, bárbaro e selvagem . A construção dessa narrativa com o j á foi
podiam ser entendidas enquanto civilizados. Portanto, o IH G B foi responsável pela construção
de u m a representação indígena que seria am plam ente divulgada pelos jornais da época,
sobretudo pelo aqui analisado. A ssim , foi o Instituto H istórico, e o Jornal do Commercio os
responsáveis por criarem um im aginário a respeito dos povos originário que ainda no século
X X I é utilizado para representá-los, tal com o para legitim ar a constante v io lência em pregada
R e fe rê n c ia s b ib lio g rá fic a s
689
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F o n te s a p re s e n ta d a s
690
O S E L O G IO S F Ú N E B R E S C O M O M E C A N IS M O S D E C O N S T R U Ç Ã O
D A M E M Ó R IA C O L E T IV A
V IC T O R A U G U S T O M E N D O N Ç A G U A S T I306
em andam ento que visa com preender com o a publicação de elogios fúnebres a personalidades
personagens. Sendo as odes póstum as textos com uns desde a G récia A ntiga e m uito utilizadas
pelo C atolicism o R om ano para enaltecer seus santos, h á registros de sua utilização desde o
tem p o colonial. C ontudo, após o advento da Im prensa, elas se tornaram m ais com uns e
passaram a fazer parte dos ritos fúnebres da elite do B rasil Im perial. A p artir do estudo de caso
intencionalidade dos autores para enaltecer a trajetó ria dos falecidos e notabilizar suas vidas na
I n tr o d u ç ã o
O estudo sobre textos obituários vem ganhando grande espaço entre os pesquisadores
de jo rn alism o , em especial am ericanos e ingleses. N o B rasil, pesquisas sobre o gênero tam bém
estão surgindo, contudo, realizadas, em sua m aioria, por jo rn a lista s que se debruçam sobre a
arte dos escritos póstum os, focando em suas construções, influências e espaços nos periódicos.
participaram ativam ente da vida pública e política brasileira, em especial durante os anos de
P ara tal, partim os do estudo de linguagem política proposta por John P o co co k (2003) e do
306 Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, afiliado ao
Laboratório de História Poder e Linguagens, bolsista Capes.
691
P o cocok (2003, p. 28) aponta que os indivíduos circunscritos em um a determ inada
sociedade m anifestam -se por interm édio de locuções que, ao se ju n tarem a outras sentenças,
construção de um discurso político, que busca “renarrar” a vida e as ações de pessoas ilustres,
levando-se em conta os contextos capazes de lhes atribuir significados diversos. Logo, o texto
de duas m aneiras: u m a passiva e outra ativa. A fo rm a passiva é fruto da lem brança associada a
sentim entos no presente. A form a ativa é configurada com o que em u m a anam nese, que busca
o passado. Logo, a m em ória é u m a representação que ocorre no presente sobre algo ou alguém
que está ausente, m as que esteve presente e m arcou factualm ente e concretam ente o p assad o
suas ações e sua presença no passado e construir u m a lem brança ativa ao longo do tem po.
C om plem enta este argum ento a tese de M aurice H albw achs (2003, p. 29-30), na qual
afirm a que a construção da m em ória coletiva passa pela m em ória individual, pois “ [...] o
prim eiro testem unho a que podem os recorrer será sem pre o nosso” , e a m em ória coletiva se
caracteriza pela som a de vários testem unhos. E essa m em ória coletiva co nstruída é um
B rid g et F ow ler (2007, p. 3) analisa a construção dos obituários partindo da tríade capital
da aristocracia que, detentoras do capital cultural, retratam seus pares falecidos nas páginas dos
E essa análise vai ao encontro do conceito de H istória C ultural cunhado por R oger
C hartier (1990), que nos ajuda a p erceber o luto, os rituais fúnebres e os escritos sobre os ilustres
falecidos com o um a iconográfica de elem entos sim bólicos, que caracterizam a teatralização da
com preender a experiência dos indivíduos históricos para com a m orte de seus pares,
perm itindo assim ilar a realidade em que estavam inseridos. A ssim sendo, o m em orial publicado
em honra a um falecido transm ite o que foi sentido po r alguém , ou seja, é o uso da linguagem
(A N K E R S M IT , 2012, p. 244)
692
D esta form a, os elogios fúnebres têm po r objetivo constituir um a m em ória coletiva em
que o hom enageado seja lem brado a partir do que o autor do texto ju lg a ser im portante. E a
intencionalidade presente nesses textos vai ao encontro do que apontou Le G o ff (2013, p. 437),
quando afirm ou que “ [...] a m em ória, a qual cresce a história, que po r sua vez a alim enta,
p rocura salvar o passado p ara servir ao presente e ao futuro” . P o r conta disso, em vários
plurais e contraditórios - que dão significado ao m undo, os escritos sobre os m ortos nos ajudam
o luto. (C H A R T IE R , 1990, p. 20-27) A ssim , as palavras em pregadas no texto transm item o que
foi sentido po r alguém , orientando e determ inando a experiência de quem escreve e a m em ória
A m orte sem pre ocupou um lugar de destaque nas sociedades ocidentais, po r isso a sua
ocorrência sem pre foi perm eada de rituais. P o r m eio da escrita de epitáfios, legendas, elegias,
eulogias e panegíricos, a m em ória das figuras ilustres das m ais diversas sociedades eram
enaltecidas no m om ento de seu passam ento. Portanto, além do escopo religioso, a escrita sobre
a m orte tam bém p assa a servir com o um m eio de hom enagem e externalização do luto sentido
pelos vivos diante da perda de alguém im portante. C onsoante P ierre N o ra (1993, p. 13), os
fúnebres, outrora restritos às cerim ônias fúnebres e à divulgação da vida dos santos católicos,
conhecidos, surgiram na Inglaterra, em 1731, circulando prim eiram ente no The Gentleman’s
pelo term o obituário (obituary, em inglês), que é etim ologicam ente descendente do term o latino
obitus, que significa partida e/ou m orte. A p artir do século X IX , o term o obituário passou a se
693
co nfundir com o term o necrológico (necrology). Se o obituário prim itivo tin h a por objetivo
com unicar o falecim ento de um sujeito e traçar a sua biografia, a evolução para o necrológico
fez com que o texto evoluísse para um form ato rom ântico, que enaltecia os feitos em vida e
A na C ristina A raújo (2004, p. 117), ao pesquisar sobre os ritos fúnebres dos personagens
ilustres do Im pério U ltram arino Português, afirm a que esses elogios faziam parte das
celebrações denom inadas m orte-espetáculo. P o r elas, os vivos confirm avam ser herdeiros da
m em ória de seus antepassados, elev ando-os a u m a espécie de panteão invisível. Sendo pessoas
com distinção social, para além da liturgia fúnebre com um à Igreja C atólica no período, o
espaço era reservado a u m a apologética individual para com o falecido, que lhe dava um ar de
eterno.
que, aos olhos dos vivos, contribuíram para a fundação do B rasil, fossem enaltecidas. D esta
publicados em diversos jo rn ais. A quelas figuras p erten cen tes aos círculos de poder im perial
tam bém poderiam ganhar a honra de serem im ortalizadas nas páginas da R evista do Instituto
aponta que os term os obituários e necrológicos não foram am plam ente utilizados no século
X IX , m as, sim, expressões com o elogios fúnebres, ode aos passados, homenagem póstuma, e
eles eram assim. Isso m ostra que os textos dedicados aos falecidos b rasileiros eram com postos
pela som a de elem entos religiosos e m odernos.
reflexão sobre a m orte, com o elem ento im utável, e buscam resp o n d er ao luto dos vivos com as
prom essas de im ortalidade e ressurreição, típicas do cristianism o. Os elem entos m odernos, m ais
a figura hero ica a partir de um a história m onum ental. E, para a construção dessa biografia
escritor, com o sentim entos, sensações e projeções que só teriam lugar po r m eio de testem unhas
ou do próprio falecido.
M arcelino, tais questões ficam m uito evidentes. P o r terem som ado m uitos aliados ao longo de
suas trajetórias políticas e jo rnalísticas, seus desencarnes não passaram despercebidos. Januário,
posições de destaque entre os opositores do governo, não recebeu hom enagens no m esm o porte
de seu desafeto de longa data, m as duas odes em sua hom enagem foram publicadas por ex-
alunos de sua escola. À vista disso, os necrológicos escritos em hora dos dois sacerdotes nos
ajudam a perceber com o se deu a construção da m em ória coletiva sobre estes hom ens, com o
eles eram vistos e com preendidos pelos seus pares e a fo rm a com o seus ideais e escritos
A q u e le s a q u e m p re s ta m o s h o m e n a g e n s
adotado po r um tio que lhe proveu educação. O rdenou-se padre em 1803, term inando seus
estudos em C oim bra, e nom eado pregador da C apela Im perial por D om João IV, em 1808.
A pós o retorno da fam ília real a P ortugal, foi próxim o ao príncipe regente, contribuindo
Ledo, que defendia um a m onarquia constitucional, fato que o levou a ser acusado de
republicanism o por parte do grupo liderado po r José B onifácio. T ais acusações culm inaram em
acusações, retorna ao B rasil, onde é condecorado pelo Im perador com a Im perial O rdem do
C ruzeiro e designado cônego da C apela Im perial. É eleito D eputado Geral por M inas G erais na
leg islatura de 1826-1828. N ã o sendo reeleito, foi nom eado diretor da T ipografia N acional.
(B IT T E N C O U R T , 1938, p. 186-189).
liberais m oderados. P ara defender seu grupo político, além de ser o editor do Correio Official,
tam bém escrevia para os jo rn a is Aurora Fluminense e o Auxiliador da Indústria Nacional, bem
P aranhos (1937, p. 122), o C ônego Januário deixou cerca de quatrocentos serm ões, discursos,
m em órias, relatórios e escritos sobre assuntos m orais, políticos e religiosos. T am bém escreveu
o poem a épico Nitheróy (1823), a com édia satírica A Rusga da Praia Grande (1834), o poem a
695
Os Garimpeiros (1837), e constituiu a prim eira coletânea de poesias brasileiras na obra o
Parnaso Brasileiro (1831).
O outro sacerdote pesquisado é o padre M arcelino P in to D uarte R ibeiro. N ascid o em
1788, na então P rovíncia do E sp írito Santo, um a das m enores do país, foi obrigado pelo pai -
que tam bém era padre - a seguir a carreira eclesial. (C LA U D IO , 1912, p. 53-54) O rdenado por
v o lta de 1810 (SO U Z A , 2010, p.456) e dotado de grande erudição, logo iniciou u m a carreira
esteve em conflito com Francisco A lves R ubim , então presidente de província, sendo necessário
refugiar-se na corte. D esse episódio surgiu o p o em a Viagem de uma derrota ao Rio de Janeiro,
E steve envolvido tam bém nos m otins que levaram à abdicação de D o m P edro I e, após
esse episódio, alinhou-se politicam ente ao grupo dos Liberais E xaltados. M ud an d o -se para o
nom e O Exaltado (1831-1835). Foi um pasquim de im pressão irregular que, ao longo de suas
A sua grande produção de escritos, com o poem as, peças teatrais e artigos de jo rn ais, o
fez ser conhecido em sua terra natal com o o “ V irgílio capixaba” . B uscou-se im o rtalizar sua
m em ória conferindo a ele o patronato da cadeira núm ero um da A cadem ia E sp írito -san ten se de
M o rto s , m as n ã o e sq u ec id o s
que se encontrava na R u a dos P escadores, n° 86. O s ritos fúnebres e o sepultam ento ocorreram
O prim eiro discurso foi proferido po r M anuel José de A raújo P orto-A legre (1806-1879),
prim eiro e único barão de Santo  ngelo. A ntes que o ataúde do religioso fosse descido à m orada
final, o orador relem brou aos presentes que, no ano de celebrações dos 25 anos de fundação do
Im pério, entre aqueles que propuseram a D om P edro I o títu lo de Im perador, ali estava um ,
inerte diante dos olhos de todos. A quele corpo pertenceu ao hom em que enfrentou as baionetas
696
para ajudar a liderar o B rasil em direção à liberdade, que estava sendo am eaçada pelos grilhões
S endo um hom em que dividiu a sua v id a entre o altar de D eus e o altar da Pátria, M anuel
rem em orou que ele fora um operário idealista, que pelas penas ajudou a fundar e zelar pela
pátria. P o r isso, recebeu o reconhecim ento do m undo, ten d o seu nom e associado a diversas
academ ias científicas e literárias pelo m u n d o 307. A ssim , na trib u n a ou no púlpito, era possível
reconhecer sua erudição, com gestos finos e de grande sabedoria. Logo, no sepultam ento que
era feito, descia à m ansão dos m ortos um hom em na m adureza das ideias, coberto de louros e
agradecim entos.
P orém , o orador lem brou que Januário não era um a unanim idade e sofrera m uitas
críticas em vida, em especial dos seus adversários políticos. R ecordando que ele fora um
m odesto e virtuoso sacerdote, um firm e e convicto político e um jo rn a lista com prom etido com
“[...] homens sem religião, sem sistema e sem futuro abrasados por uma hidrofobia
insólita, mais de uma vez intentaram salpicar suas nobres cãs com o lodo do sarcasmo,
com o veneno da calúnia, e cobrirem sua fronte, onde resplandecia uma auréola de
glória, onde deveriam reverdecer louros, com o manto esquálido de sua miséria”
(JORNAL DO COMMERCIO, 1846, p. 1).
P o r fim , o orador ponderou que, quando o cônego foi preterido po r aqueles que tanto
ajudara no P arlam ento, quando fora vítim a das cabalas e dos jo g o s políticos, não se deu por
vencido, m as vingou-se erguendo o IH G B . E este instituto perdia seu m aior apoio, a coluna
m onum ental de sua fundação, o p iloto que dirigia as pesquisas, que apresentava os m apas e
revelava os tesouros históricos do B rasil. D ian te disso, todos ali presentes deviam chorar e
agradecer pelo ilustre b rasileiro com o qual tiveram a oportunidade de conviver e aprender.
F eito o ritual de sepultam ento, realizou-se o segundo discurso, p roferido pelo m édico
b uscou sintetizar o percurso político e jo rn a lístic o do cônego, ju n to aos m ais altos elogios à sua
pessoa. D e fronte ao túm ulo do sacerdote, convidou os presentes a chorar um pranto de dor e
de agradecim ento em reconhecim ento “ [...] à m em ória daquele que fora tão digno de nossa
A firm ava que aquela lápide seria um lugar de peregrinação, pois este é o destino que a
posteridade reserva ao descanso de celebridades; e o cônego fora um a celebridade de seu tem po,
sendo chorado e aclam ado por todo o povo. T am anha sua im portância que não era possível lhe
F rancisco M enezes tam bém lem brou, m esm o que indiretam ente, das disputas políticas
e jo rn a lístic a s travadas pelo cônego. E n q u an to falava da frieza de um corpo inerte que desce ao
jazig o , afirm ou aos presentes: “ [...] é hoje que a lápide do sepulcro em botaria o acicalado
estilete da calúnia e o aguçado dente da inveja que o v erdadeiro ju íz o dos hom ens acerca da
im portância daquele que transpôs a b arreira da vida, será definitivam ente acabado” (JO R N A L
Foi recordado com o um exím io parlam entar, que sem pre votava com sabedoria e
prudência, e um grande crítico literário com ím par dom ínio pelas letras. H om em que gastou a
sua vida pela em ancipação e pelo bem -estar do Im pério, sendo acusado injustam ente e
am argando anos no exílio. T am bém fora expressada suas incursões com o jo rn alista, poeta,
filósofo, m estre, literário e dram aturgo. C om entando a peça de teatro que ele escreveu - a que
objetiva nossa pesquisa - Francisco M enezes disse: “ [tam bém ] houve o teatro, em que seu gênio
P o r fim , escordou que de todos os espaços ocupados, o púlpito das ig rejas foi o lugar
discurso sustentando que a m aio r contribuição do cônego para com a nação foi a ereção do
C O M M E R C IO , 1846, p. 2)
Q uatorze anos após o passam ento do cônego Januário, deu-se o desenlace do padre
com 72 anos com pletos e seu sepultam ento ocorreu no cem itério do M aruí. N ão tem os
inform ações sobre com o ocorreram os ritos fúnebres do sacerdote, nem sobre a realização de
discursos em sua sepultura, m as foi possível encontrar cartas publicadas em sua m em ória.
U m a ode anônim a foi reproduzida no Correio Mercantil (1860, p. 3) dois dias após o
seu falecim ento. P rovavelm ente escrita por um de seus ex-alunos, a figura de M arcelino é
exaltada com o um grande padre-m estre, u m a “ [...] árvore frondosa p lantada po r C risto para
espalhar pela sociedade os frutos da sabedoria e à tu a som bra abrigar tantos infelizes” .
L em brado com o am igo e vigário devotado, o texto afirm a que m uitos foram os patrícios que
passaram po r suas m ãos, durante os m ais de 40 anos dedicados ao m agistério, e que servia com
ardor e am or à Pátria.
O texto fúnebre prossegue lem brando o sacerdote em sua atuação política, feita por am or
e não po r d esejo de subir nos degraus da fam a e da riqueza. T am anha sua crença e sua fidelidade
aos seus ideais, que ele m ais sofreu do que colheu louros em sua vid a pública, sendo “pregado
698
no m adeiro da infâm ia pelos pregos da desonra” (C O R R E IO M E R C A N T IL , 1860, p. 3). P o r
fim , o excerto intitula M arcelino com o “vigário m odelo dos v igários” , um hom em que, m esm o
m orto, teria seu exem plo, sua virtude e sua b o ndade guardados nos corações com o saudosa
lem brança.
anônim o foi publicado no jo rn a l Dezenove de Dezembro (1860, p. 2). N este texto, m ais um a
vez as qualidades do rebento da P ro v ín cia do E sp írito Santo são enaltecidas. G anha destaque o
seu talen to com as letras e sua longa carreira com o padre-m estre. Foi bem lem brado que
M arcelin o foi proprietário de um colégio frequentado por m uitos filhos das elites e que
recordada sua exaltada defesa das liberdades individuais e provinciais que, nas palavras do
autor, deveria ser desculpada, pois sua firm e defesa das ideias encontrou m otivação na defesa
do retorn o ao antigo regim e. E essa defesa levou-o a receb er diversas críticas e ataques dos seus
D E D E Z E M B R O , 1860, p. 2-3)
P o r fim , o obituário faz um breve resgate de suas ocupações políticas, seus títulos -
com o o hábito da O rdem de C risto e da O rdem da R osa - , e de sua produção escrita, recordando
os seus diversos jo rn a is políticos e seus livros de gram ática. T erm in a-se com um convite a não
deixar que a m em ória do sacerdote fosse esquecida e que as lágrim as, derram adas por todos os
1860, p. 3)
C o n s id e ra ç õ e s fin ais
A s quatro odes póstum as escritas em m em ória dos sacerdotes dem ostram com o estes
hom ens inscreveram seus nom es na H istória do B rasil e quão grande era o reconhecim ento que
contribuição de cada um dos sacerdotes com o cenário nacional. L em brados po r suas atuações
políticas, jo rn alísticas e literárias, os escritos não se privam de recordar, inclusive, que eles não
Januário, em celebrações pom posas e ricas de sim bolism os, foi ovacionado pelos seus
pares do IH G B , sendo sua sepultura, até nossos dias, lugar de encontros em sua m em ória. Os
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elogios fúnebres que a ele foram dedicados ocuparam -se m uito m ais em lem brá-lo com o
secretário perpétuo do que com o político. M arcelino, afastado do centro de poder e de sua
prática, recebeu hom enagens m ais singelas, sendo sepultado em um cem itério público e com a
sepultura perdida no tem p o 308. A s louvações publicadas em sua honra buscaram retratá-lo com o
um grande m estre e um padre devotado, fazendo poucas citações sobre sua trajetória política.
A ssim sendo, a escolha por dar m ais ênfase às atividades posteriores à vida pública dos
padres m ostra que a m em ória é m utável, sofre de flutuações e é construída sobre a projeção que
o autor realiza a p artir de outros eventos. P o r essa razão, a constituição da m em ória é resultado
Portando, a m em ória construída sobre am bos sacerdotes teve sucesso em seu objetivo.
E las conservaram inform ações pertinentes sobre seus objetos, garantindo que não fossem
totalm ente esquecidos. P o r eles, é possível p erceber quais im pressões dos padres foram ju lg ad as
aptas a serem eternizadas pelo texto. (LE G O FF, 2013, p. 387) E essas escolhas criaram um a
n arrativa sobre o tem po vivido, que podem os reco n stitu ir e analisar com os m étodos aqui
R e fe rê n c ia s B ib lio g rá fic a s
JO R N A IS
308 Afonso Cláudio (1924, p. 18) afirma que a sepultura do padre Marcelino já não podia ser encontrada no
cemitério de Maruí.
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B IB L IO G R A F IA
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