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XVI ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ANPUH-MS

XX SEMANA DE HISTÓRIA DA UEMS


V SEMINÁRIO DO PROFHISTÓRIA DA UEMS

“200 ANOS DE QUÊ? Soberania, existências e


resistências”

Amambai/Campo Grande, 18 a 21 de outubro de 2022

REALIZAÇÃO:

Associação Nacional de História (ANPUH) - Seção Mato Grosso do Sul


Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)
Mestrado Profissional em Ensino de História (PROFHISTÓRIA)

m U E M S
Universidade Estadual de Moto Grosso do Sul

PROFHISTÓRIA
MESTRADO PROFISSIONAL
EM ENSINO DE HISTÓRIA
FICHA TÉCNICA

Organização: COSTA, Manuela Areias; LOCASTRE, Aline Vanessa; ALBANEZ,


Jocimar Lomba.

Editoração/Diagramação: CIZESKI, Edson

Arte/Capa: ZILLI, Amanda

©Todos os direitos reservados ANPUH - MS. Permitida a publicação integral desde


que citada a fonte

2
XVI ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ANPUH-MS
XX SEMANA DE HISTÓRIA DA UEMS
V SEMINÁRIO DO PROFHISTÓRIA DA UEMS

“200 ANOS DE QUÊ? Soberania, existências e


resistências”.

ANAIS ELETRÔNICOS

Amambai/Campo Grande, 18 a 21 de outubro de 2022


ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA (ANPUH), Seção Mato Grosso do Sul
(Biênio 2020-2022)

DIRETORIA

Diretor/a: Manuela Areias (UEMS)


Vice-diretor/a: Aline Locastre (UEMS)
1° Secretário/a: Jocimar Lomba (UEMS)
2° Secretário/a: Tânia Zimmerman (UEMS)
1° Tesoureiro/a: Ilsyane Kmitta (UEMS)
2° Tesoureiro/a: Suzana Arakaki (UEMS)

CONSELHO FISCAL

Membros Efetivos:
Ana Paula Squinelo (UFMS/Aquidauana)
Leandro Hecko (UFMS/Três Lagoas)
Maria Lima Santos (UFMS/Campo Grande)
Membros Suplentes:
Fernando de Castro Além (UEMS)
José Carlos Ziliani (UFGD)
Marinete Rodrigues (UEMS)
CONSELHO CONSULTIVO
Carlos Eduardo Campos (UFMS/Campo Grande)
Éder Novak (UFGD)
Eudes Fernando Leite (UFGD)
Fabiano Coelho (UFGD)
Mariana Esteves (UFMS/Três Lagoas)
Jaqueline Zarbato (UFMS/Campo Grande)

COMISSÃO ORGANIZADORA

Manuela Areias (UEMS/Profhistória) - Coordenadora


Aline Locastre (UEMS/Profhistória) - Coordenadora Adjunta
Andrey Minin Martin (UFMS/Profhistória UEMS) - Organizador
Célia Foster Silvestre (UEMS/Profhistória) - Organizadora
Ilsyane Kmitta (UEMS) - Organizadora
Jocimar Lomba (UEMS) - Organizador
Jorge Ribeiro Diacópulos (SED-MS/SEMED/Campo Grande) - Organizador
Lucas Maceno Sales (UEMS)
Maria Larissa Montania Vera (SEMED/Campo Grande/UEMS/Profhistória) -
Organizadora
Maria Aparecida Lima Santos (UFMS/Profhistória UEMS) - Organizadora
Suzana Arakaki (UEMS/Profhistória) - Organizadora
Tânia Zimmerman (UEMS) - Organizadora
Luana Michaeli Escobar Kamphorst (Secretária)
Jussara Selhorst de Oliveira (Secretária)

COMISSÃO CIENTÍFICA

Aline Locastre (UEMS/Profhistória)


Ana Paula Squinelo (UFMS)
Carlos Eduardo Campos (UFMS/Profhistória UEMS)
Cláudia Delboni (SED-MS)
Dilza Porto (UFMS)
Éder Novak (UFGD)
Eudes Fernando Leite (UFGD)
Fabiano Coelho (UFGD)
Fernando de Castro Além (SED/MS)
Fernando Garcia (SEMED/Campo Grande)
Geovano Moreira Chaves (IFMS)
Gustavo Balbueno de Almeida (UEMS/Unigran)
Ilsyane Kmitta (UEMS)
Jaqueline Zarbato (UFMS)
Jocimar Lomba (UEMS)
Leandro Hecko (UFMS/Profhistória UEMS)
Leandro Seawright (UFGD)
Manuela Areias (UEMS/Profhistória)
Maria Celma Borges (UFMS)
Maria Aparecida Lima Santos (UFMS/Profhistória UEMS)
Mariana Esteves (UFMS)
Marinete Rodrigues (UEMS/Profhistória)
Monique Vargas (UFGD)
Paulo Roberto Cimó Queiroz (UFGD)
Rodrigo Cracco (UEMS/Profhistória)
Suzana Arakaki (UEMS/Profhistória)
Tânia Zimmerman (UEMS)
Vitor Wagner de Oliveira (UFMS)

5
SUMÁRIO

Alécio Gonçalves D a Si l v a ........................ .. 10

Alessandro Fe r n a n d e s ................................. .. 26

Amanda C outinho D e So u z a ........................ .. 41

Tânia R egina Z im m e r m a n n .......................... .. 41

Amanda M a m e d e ............................................. .. 49

A na L aura Galvão B atista ....................... .. 62

A na R oberta D uarte P iancó (Urca /U frn ) .. 77

A na Sara Cordeiro D e Al m e id a ................. .. 91

Juciene B atista F elix A ndrade ................... .. 91

A ndrey M inin M artin ................................... 100

Caio C obianchi D a Silva ............................. 110

Camila D e Almeida Sil v a ............................. 118

Carlos E duardo Ba r t e l .............................. 126

Carlos P rado ................................................. 139

Cláudia D elboni ........................................... 152

Claudia R egina N ichnig ................................. 169

Cleidiane D a Silva M orais ......................... 183

D aniel R incon Ca ir e s ..................................... 198

D arlise Gonçalves D e Gonçalves ............. 213

D ayane Cristina Guarnieri .......................... 225

D ouglas M artins L ima D e M oura .............. 231

E nrique D uarte R o m ero ................................ 239

Alexandre D e Souza C o rrea ....................... 239

F abian F ilatow ................................................. 255

F elipe Cromack D e Barros Co r r e ia .......... 264

F ernando D os A njos So u z a .......................... 275

Gabriela V iera D os Santos .......................... 291

Gabriella D e Souza D am ascen o ................ 303

Sérgio Luiz Gusmão Gimenes R omero ........ 303

G iovana E loá M antovani M ulza ............... 312

Gueise D e N ovaes Be r g a m a sc h in e ............ 320


Guilherme D e M attos Gründling . 330
H ellen Silvia M arques Gonçalves 340

Igor Campos Santos .......................... 356

I saac Cassemiro R ibeiro ................. 370

I sabela B arbosa R odrigues ........... 385

Carlos P rado ................................... 385

Iury Gabriel Amorim D e Ar a ú jo .... 400

Jackson James D e b o n a ....................... 409

Jane D e So u z a ....................................... 418

J oziane D e Azevedo Cr u z ................. 427

Julia Falgeti Lu n a .............................. 439

Juliana P ereira Ram alho ............... 450

Julio Cesar V irginio D a C osta ..... 461

An a Clara D e Sousa D uarte ............ 461

D aniel Leite Gonsalez M o t t a ......... 461

M aria E duarda Soares Sim õ e s ....... 461

Kevin F ranco D os Santos ............... 473

Lázaro D e Souza B a r b o s a ............... 486

Leandro M endonça B arbosa ......... 498

Letícia D a Silva Le it e ........................ 505

Luís A ndré N epo m u cen o ................... 514

Luiz E duardo P into B arros ........... 530

M aria Gorete Olimpio D os Santos . 538

M aria R ita Chaves A yala Brenha 547

M l i . i x a I. i m a P i \< >i t i ........................... 562

O slan Costa R ibeiro ........................... 574

O távio V ítor V ieira R ibeiro ............. 584

P atrick D u t r a ..................................... 597

F ábio B orges R ibeiro Júnior .......... 597

M ichele Gonçalves Cardoso ...... 597

P aulo Sérgio D a Silva ..................... 605

An a P aula D a Silva .......................... 605

Rakell M ilena O sório Silv a ............ 618

7
J OSEANNE Z INGLEARA SOARES M ARINHO....................................................................................618

R egina Célia D aefiol ................................................................................................................ 627


Sanzia P inheiro B arbosa ..........................................................................................................639

S imoni Santos Siq u eira ............................................................................................................... 649

T haiane Sales B ra n d ã o .............................................................................................................. 664

T iago N ilson D a Silva ................................................................................................................ 672

Túlio B otelho M oreira D e Castro ......................................................................................681


V ictor A ugusto M endonça G u a sti ........................................................................................ 691

8
Textos Completos
ESTAS TRADIÇÕES CONSTITUEM AS NOSSAS ORIGENS : O CURURU
E O SIRIRI EM MATO GROSSO FRENTE À MARGINALIZAÇÃO E A
RESSIGNIFICAÇÃO

A L É C IO G O N Ç A L V E S D A S IL V A 1*

V iajantes, exploradores e n aturalistas que passaram por C uiabá e outras localidades de

M ato G rosso, especialm ente no decorrer da segunda m etade do século XIX, deixaram

im portantes registros acerca da sociedade da época, para além de docum entações relativas ao

relevo, a flo ra e fau n a da região. R elatos sobre costum es, m úsicas, danças e dem ais práticas

culturais, que segundo F erreira (2017, p. 183), sob a ótica dos colonizadores, etnólogos,

folcloristas e viajantes estrangeiros, tem os acesso a certa docum entação, senão farta, ao m enos

nos sugere um vasto universo sim bólico associado às danças em terras brasileiras.

A ssim sendo, exploradores com o, Joaquim F erreira M outinho (1833-1914), K arl von

den Steinen (1855-1929) e M ax Schm idt (1874-1950) nos legaram significativas descrições

acerca da sociedade m ato-grossense entre 1860 e 1900.

O português Joaquim M outinho em sua obra Notícia sobre a província de Matto Grosso

publicado em 1869, observa entre outras coisas as práticas dançantes e de lazer da província, e

não obstante relata ter presenciado o canto e dança do Cururu 2, deixando expresso seu

estranham ento e reprovação, pois era praticado pela população pobre e m estiça, classificando-

o de:

[...] o m ais insípido e extravagante divertim ento a que tem os assistido


depois da dança dos bugres (índios). F orm am u m a roda de hom ens, um
dos quais to ca o afam ado cocho e volteando burlescam ente cantam a
porfia num a to ad a assaz desagradável de versos im provisados.
(M O U T IN H O , 1869, p. 19).

1 1Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande


Dourados (UFGD); Professor de História da Secretária de Estado de Educação de Mato Grosso (SEDUC-MT).
2 O Cururu é descrito pelos estudiosos Antônio Candido (1956) e Luís da Câmara Cascudo (2001) como uma
manifestação encontrada nos estados de São Paulo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; sendo uma dança de
caráter religioso, mas não somente, e provavelmente de origem ameríndia e introduzida nas festas cristãs pelos
missionários jesuítas. Os instrumentos musicais utilizados em Mato Grosso são a Viola de Cocho (Instrumento de
corda feita em um tronco de madeira inteiriço) e Ganzá (também chamado de reco-reco ou caracaxá, sendo um
instrumento de percussão feito geralmente com a taquara, medindo entre 40 e 70 cm). O Cururu é tocado e dançado
exclusivamente por homens que podem repetir versos memorizados ou improvisar toadas em tons de desafio.

10
O cururu dos cuiabanos, conform e M outinho (1869, p. 19), era um a dança do gosto de

“ classes baixas e da gente do cam po” . C onclui o relato dizendo que acha originais estes

folguedos, que sem pre se dão quando festejam algum santo, e não deixa de registar o batuque,

cuja descrição aponta com o u m a dança tão exageradam ente ruidosa e que “ desperta certo

fren esi” (M O U T IN H O , 1869, p. 20).

É im portante frisar que neste p eríodo relatado po r Joaquim M o u tinho e outros, práticas

das culturas populares, das classes baixas e das raças consideradas inferiores com o a dos negros

escravizados e indígenas, em consonância com os estigm as raciais, eram expressam ente

proibidas e m arginalizadas po r força de lei, principalm ente nas áreas urbanas. P rova disso são

os C ódigos de P o stu ra das vilas e cidades de M ato G rosso, que desde o século X V III

estabeleciam punições para os participes dessas práticas, que em grande m edida se davam com o

fo rm a de divertim ento individual e coletivo. N essas legislações, é possível observar a aversão

das elites dirigentes contra o que cham avam genericam ente de “ folguedos” , entre eles o cururu,

considerado um batuque de m arginais. C ódigos, com o o de V ila B ela, datado de 1752 e de

C uiabá e São Luiz de C áceres, de 1831 e 1888, respectivam ente, estabeleciam m ultas e prisões

para aqueles pegos nesses folguedos, em dias e horários não perm itidos, e no caso dos

escravizados sem prévia autorização de seus senhores.

K arl von den Steinen, cuja presença na região se deu po r volta de 1884, é outro

explorador a tec e r com entários sobre a m usicalidade dos cuiabanos, e assim com o M outinho,

testem u n h a celebrações oficiais, religiosas e populares regadas a m anifestações de canto e

dança, com o os chás e saraus das elites e os batuques dos m enos abastados. “A noite to d a a

cidade dançava” , relata K arl Steinen (1886, p. 92). Segundo F erreira (2017, p. 186), suas

descrições sobre o cururu, seguem a linha dos relatos de seus contem porâneos no que diz

respeito ao estranham ento. A ponta o cururu com o u m a dança p referida entre os habitantes do

M ato G rosso e a descreve com o um a dança de roda, na qual to d o s fazem parte da festa.

C am inhando para o início do século X X , o pesquisador de origem germ ânica, M ax

Schm idt, observa e descreve as p ráticas de cantos e danças em M ato G rosso, seja entre as

populações indígenas ou no entrem eio da sociedade local. A o estudar etnologicam ente índios

B ororos da baix ad a cuiabana, e G uatós, próxim o a fronteira bo liv ian a com C orum bá, n arra o

consum o de aguardente pelos indígenas e a execução de cantos e danças (cururus)

acom panhados po r instrum entos rudim entares (SC H M ID T , 1942). O etnólogo, do m esm o

m odo, presencia u m a festa em louvor à Im aculada C onceição na cidade de C uiabá nos idos do

m ês de dezem bro de 1900, e escreve:

11
[...] pouco depois fez-se um intervalo em que foi servida aguardente e, então,
agrupou-se em torno de altar certo número de dançantes, formando semicírculo para
começar a dança do “cmuru”, tão conhecida em Mato Grosso. Parte dos que
dançavam acompanhava na “viola” os versos ali mesmo improvisados pelos cantores.
Outra parte dos presentes seguia o ritmo por meio de um pau que roçava numa ripa
de bambu, instrumento que denominavam “caracaxá”. Os dançarinos dispuseram-se
em duas filas e, depois, em círculo fechado. Assim foi indo, cada vez mais
animadamente, até a madrugada, sendo apenas interrompido o movimento, de vez em
quando, para se afinar os instrumentos de corda e dar aguardente aos cantores, o que
lhes emprestava novas forças (SCHMIDT, 1942, p. 14).

C onform e o registro de M ax Schm idt (1942), o cururu, e o siriri3 eram m uito apreciados

em M ato G rosso, e eram dançados não só pela “ população escura” , m as por “ pessoas de todas

as gradações de cor” (SC H M ID T , 1942 , p. 13-14).

N o entanto, m esm o Schm idt descrevendo que essas m usicalidades e danças, faziam

parte das práticas sociais, não necessariam ente, exclusiva de negros e indígenas, nota-se que

essas m anifestações eram percebidas com olhar de exotism o e m esm o, reprovação,

principalm ente no que diz respeito às elites, os governantes e os visitantes estrangeiros. P ois as

m anifestações populares no B rasil, desde o período colonial foram alvo de intervenção,

regulações, repressões e perseguições. E ssas m anifestações com fins religiosos ou de sim ples

lazer raram ente foram espaço de consenso, sendo objetos de críticas internas e externas. A

ú n ica expressão artística/corporal perm itida e leg ítim a era a branca, de origem europeia e cristã.

Segundo L ylia G aletti (2012, p. 174), os viajantes que descreveram e analisaram a

região m ato-grossense e suas populações, entre fins do século X IX e início do X X , com o

M outinho, Steinen e Schm idt, com partilham em seus relatos a perspectiva etnocêntrica,

cientificista e evolucionista que dom inava a cultura ocidental nesse período. D e acordo com a

autora:

As representações sobre os habitantes de Mato Grosso nos escritos dos viajantes


estrangeiros, [...], não se apresentam separadamente das que se referem ao território
e às suas propriedades naturais. [...], os contornos e conteúdos das imagens dessa
gente se elaboram, justamente, com base na percepção de que sua natureza, hábitos e
costumes estão indissoluvelmente ligados à contingência do viver nessa lonjura,
imersa na rica imensidão tropical. (GALETTI, 2012, p. 121).

E m tom m eio jo co so narram os eventos e aspectos variados do cotidiano cuiabano e

m ato-grossense. E sses viajantes, que se veem com o representantes do estágio m ais avançado

3 Max Schimidt (1942, p. 14) é um dos primeiros exploradores a fazer menção direta ao “Cirirí” (Siriri).
Provavelmente porque registros anteriores viam a dança apenas como uma modalidade do próprio Cururu.
Segundo Câmara Cascudo (2001, p. 639), o Siriri é uma dança circunscrita à região mato-grossense, e é dançada
aos pares, homens e mulheres em rodas e fileiras, ao som de Ganzá, Viola de Cocho e uma espécie de tambor,
conhecido popularmente como Mocho.

12
da evolução, dificilm ente podem escapar do sentim ento de superioridade, m isturado, às vezes,

a certa indulgência ou indisfarçável repugnância (G A L E T T I, 2012, p. 125). C onfiguram a

cultura local enquanto um a espécie de caricatura da verdadeira civilização.

N o que diz respeito às relações locais, entre as classes altas e as m anifestações

populares, um exem plo de repulsa da aristocracia cuiabana pode ser encontrado em um a

m enção às danças nas páginas do jo rn a l O Matto Grosso, em cuja nota, o editor escreve

contundentes críticas ao então governador, po r te r perm itido que ínfimas camadas do povo

ocupassem os ja rd in s do palácio na noite de um baile oficial. Segundo a nota: [sic] o que nos

parece impróprio do logar, do promoter e aié mesmo altamente ridículo, foram as dansas da
arraya miuda, cururú, samba, siriri e não sabemos que mais, havidas no jardim, na noite do
baile e na seguinte 4 O tex to segue afirm ando: [sic] Aquillo não ficou bem ao sr. marechal
governador. S. Ex. parece procurar uma falsa popularidade, [...]. Quiz ser agradavel áquella
classe de gente que se diverte com taes folguedos, mas faltou ao decoro da sua posição, que
não lhe permitia tão exagerada democracia.45
É de se n o tar que apesar das críticas, da im posição p roibitiva da lei através da repressão

policial e risco de prisão dos b rincantes do cururu, isso não os im pedia de se insubordinarem

contra esses m ecanism os de controle do poder, e m esm o de ser u m a prática p o p u lar arraigada

na sociedade. E sses indivíduos davam v azão aos seus anseios e sentim entos, ao m esm o tem po

em que se constituíam com o sujeitos culturais ao prom overem o cururu e outras festas à revelia

de qualquer proibição, repressão ou crítica.

R esistências, negociações, reivindicações, estratégias e lutas p o líticas fizeram parte de

to d as as m anifestações populares m arginalizadas na história do B rasil, e em M ato G rosso não

foi diferente, pois os festeiros, prom otores de cururus, siriris e dem ais folguedos precisavam

de autorização, seja das autoridades policiais, ou dos senhores no caso do período escravagista,

para realizar suas festas e celebrações, m esm o que em épocas determ inadas com o nos m eses

dos santos de devoção, com o São João, São B enedito, Santo A ntônio, Im aculada C onceição e

outros (PIN TO , 2016, p. 138).

Se no século X IX e início do X X , m uitas dessas m anifestações eram m arginalizadas, vistas

com olhar de exotism o e perseguidas po r força de lei, no decorrer do século XX, essas práticas

passaram a ser ressignificadas e encaradas com o oportunidades, seja po r intelectuais,

4 O Matto Grosso, Anno XII, n. 585, Cuyabá, 13 de abril de 1890, p. 03. Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=716189&pesq=%22siriri%22&pasta=ano%20189&pagfi
s=51> acesso jul. 2021.
5 Ibidem

13
instituições ou pelo p o d er público, que viram nessas m anifestações populares a chance de dotá-

las enquanto folclore, tradição e m esm o sím bolos de um a dada regionalidade.

MATO GROSSO: UMA COMPLEXA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA

C onform e nos aponta O svaldo Z orzato (2000, p. 419), no B rasil, a regionalização do

p o d er foi historicam ente viabilizada quando parcela da população apropriou-se de extensos

territórios e as elites aí constituídas passaram a p ensar o espaço regional com o local da própria

brasilidade; daí se apresentarem com o paulistas, m ineiros, m ato-grossenses e etc., para o autor,

em conjunto com esta espacialidade, legitim ou-se u m a estrutura sociocultural, definindo-se

então os papéis a serem desem penhados pelos diversos segm entos sociais de cada região.

N o que diz respeito a M ato G rosso, a historiografia local se encarregou de construir não

apenas u m a representação desejada de sua origem , m as tam bém o papel histórico do que

considerou a b rasilidade m ato-grossense. D essa form a, a identidade alm ejada foi alinhavada a

p artir da seleção de m em órias pré-definidas que serviriam enquanto suporte para tal projeto,

pois a construção de u m a identidade é sem pre pautada na diferença, há sem pre o outro que fica

à m argem do ideal, que deve ser distinguido do que é, e do que não quer ser (SILV A ; H A LL;

W O O W A R D , 2015).

A historiografia local m ato-grossense desde o início do século X X , se encarregou de

construir não apenas narrativas e representações desejadas de sua origem , m as tam bém o papel

h istórico do que considerou expressivo e singular socialm ente. N esse sentido, para Z orzato

(2000), houve m últiplos objetos, no entanto, destes se destacam inicialm ente três eixos

tem áticos em torn o dos quais se constituiu, no âm bito da historiografia regional, a estrutura

identitária de M ato G rosso, sendo: a “ estruturação social e étnica” , que buscou resgatar um a

pretensa origem europeia, silenciando a p resen ça negra e indígena do E stado; a “ obra

civilizadora” , destacando a b iografia de hom ens ilustres que ajudaram a “ civilizar os sertões” ,

com o religiosos, m ilitares e engenheiros; e a “ defesa das fronteiras geográficas brasileiras” ,

reconhecendo-se enquanto sentinelas da fronteira, resguardando a integridade do território

nacional, sem pre alerta às am eaças estrangeiras. (Z O R Z A T O , 2000, p. 421-422)

A ssim sendo, o esforço em preendido nessa construção de um a identidade coletiva em

M ato G rosso, centrada a p artir da capital C uiabá, passaria, nas prim eiras décadas do século

X X , prim eiram ente pela exaltação a terra e ao hom em m ato-grossense, sendo este hom em

idealizado apenas na figura de alguns de suas personalidades históricos. A s riquezas naturais

14
do lugar e os heróis do passado, bandeirantes, m ilitares e políticos pioneiros constituir-se-iam ,

deste m odo, no m ote encabeçado pelo Instituto H istórico e G eográfico de M ato G rosso

(IH G M T )6 e a A cadem ia M ato-grossense de L etras (A M L )7, as duas instituições aglutinadoras

da intelectualidade local a consolidar um ideário baseado nestes sím bolos.

C onform e G aletti (2012, p. 368), as referências às m anifestações culturais populares,

com o o cururu e o siriri, ficam praticam ente interditadas nos discursos do Instituto H istó rico e

G eográfico de M ato G rosso (IH G M T ) nas p rim eiras décadas de sua fundação. S egundo a

autora,

[...] até porque eram manifestações tidas como coisa da ralé, identificadas com a
‘falta’ de civilização do mato-grossenses e, algumas delas, como o Cururu e o
batuque, eram proibidas na zona urbana e criminalizadas. Nos aos 30, observa-se um
apelo, ainda tímido, a estas manifestações como reveladora da “alma” mato-
grossense, correspondendo ao movimento de valorização das “raízes” culturais
brasileiras, que teve em Gilberto Freyre um de seus mentores. Na leitura regional,
esta valorização é favorecida pelo impacto das transformações urbanas que Cuiabá
sofreu após 1930 e pela tendência ao insulamento destas manifestações na área rural
e na periferia de Cuiabá. Por outro lado, deve-se considerar também que nos anos
1930 o discurso divisionista formulado pelos sulistas ganha maior densidade política
com a formação de uma liga sul-mato-grossense pró-divisão do Estado. (GALETTI,
2012, p. 368).

O s intelectuais nativos de M ato G rosso, assim , nesse início do século X X , se viram na

contingência de construir um a identidade m ato-grossense, num difícil diálogo com os que

vinham de fora e tinham o p o d er de definir, para eles e p ara o m undo, sua terra natal e sua gente

(G A L E T T I, 2012, p. 24). D esse m odo, p ara O svaldo Z orzato (2000, p. 419), o ano de 1904

p arece ter sido o ponto inicial de um a produção historiográfica local, pois é nesse ano que se

dá a criação e circulação das revistas O Arquivo (1904-1906) e Mato Grosso (1904-1914),

cujos autores de destaque do período serão E stevão de M endonça, José B arnabé de M esq u ita e

V írgilio C orrea Filho, intelectuais que em 1919 e 1921 figurariam entre os fundadores do

6 O Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT) foi criado em 1919 enquanto parte das
comemorações do bicentenário de Cuiabá. Conforme palavras de D. Aquino Corrêa, à época presidente do Estado,
e presidente de honra do IHGMT, a história “[...] já não será mais em nosso Estado, uma deusa sem altares”.
Para Galetti (2012, p. 355), isso evidencia a “nobre missão” do Instituto de tornar bem conhecidas a “grandeza e
a raça mato-grossense”, “[...] imortalizar os feitos dos que se foram [...], imortalizar heróis [...] escolher modelos
para o futuro”.
7 Originalmente Centro Mato-grossense de Letras, foi fundado em 1921. Reunindo grande parte do mesmo grupo
de intelectuais que havia fundado o IHGMT, o principal objetivo do Centro, segundo seus estatutos era “promover
e incentivar a cultura literária no Estado de Mato Grosso”. De acordo com Galetti (2012, p. 359), o Centro Mato -
grossense de Letras nasce enquanto expressão significativa do mesmo desejo que havia criado o IHGMT, produzir
uma memória coletiva capaz de gerar o sentimento de unidade nos habitantes do vasto Mato Grosso, que
especialmente neste período atravessava conturbadas crises políticas e de cunho divisionista. Em 1932, o Centro
passaria a ser denominado de Academia Mato-grossense de Letras.

15
Instituto H istórico e G eográfico de M ato G rosso (IH G M T ), e a A cadem ia M ato-grossense de

L etras (A M L), respectivam ente.

N esse perío d o se fez necessário construir p ara os pró p rio s m ato-grossenses um a

identidade que os unisse diante da am eaça que a chegada de m igrantes representava, e tam bém

no que diz respeito ao fato de que era preciso reagir às im agens negativas que circulavam sobre

M ato G rosso, enquanto “ estigm a da barb árie” 8. A exem plo de São P aulo e outros E stados do

sul do país, M ato G rosso no início do século X X , se propagava afirm ando a existência de

condições especiais com o intuito de atrair colonos e, sobretudo, investidores para o E stado.

C ontudo, ao m esm o tem p o que era desejável, a possibilidade da chegada destes investidores

era tem ida. Pois, em visto disso, som ente a u n ião dos naturais da terra poderia g arantir-lhes a

continuidade da “ prim azia do m ando” (ZO R ZA TO , 2000, p. 521). A lém de que, tão som ente,

com esta unidade se conseguiria reagir aos enunciados divulgados sobre M ato G rosso desde o

século X IX , enquanto um espaço atrasado, incivilizado e selvagem , dotado de u m a gente

sanguinária, avida por lutas fratricidas, vingativa, preguiçosa e ignorante (G A L E T T I, 2012).

O s intelectuais desafiados a construir um a m em ória e po r consequência a identidade

m ato-grossense, em geral, eram indivíduos que se diferenciavam na sociedade pelo grau de

instrução, sendo m uitos de nível superior e, de algum a m aneira pertencentes à classe dom inante

regional. C om o nos diz G aletti (2012, p. 282), a relação de pertencim ento destes para com

M ato G rosso se estabelece p ara além da naturalidade, m as principalm ente por u m a densa teia

de interesses econôm icos e políticos. A ssim , esses in telectu ais se apresentaram enquanto

produtores de bens sim bólicos, direta ou indiretam ente envolvidos nas relações políticas e de

p o d er regionais. A o m esm o tem po que inventam um a cultura e identidade m ato-grossense, se

inventam com o sujeito m ato-grossenses.

8 Ver: GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Sertão, Fronteira, Brasil: Imagens de Mato Grosso no mapa da
civilização. Cuiabá: EdUFMT/Entrelinhas, 2012.

16
PRÁTICAS POPULARES: REGIONALIZAÇÃO E FOLCLORIZAÇÃO9

N o B rasil, no decorrer da prim eira m etade do século X X , o nacionalism o e os

regionalism os vão se instituindo, paulatinam ente, por m eio de práticas e discursos, im agens e

textos. V ários discursos regionalistas j á haviam surgido no país desde pelo m enos m eados do

século XIX, à m edida que se dava a construção da nação e que a centralização política do

Im pério ia conseguindo se im por. Segundo A lbuquerque Júnior (2011, p. 53), esse antigo

regionalism o, inscrito no interior da form ação discursiva naturalista, considerava as diferenças

entre os espaços do país com o um reflexo im ediato da natureza, do m eio e da raça. A s variações

de clim a, de vegetação, de com posição racial da população explicavam as diferenças de

costum es, hábitos, práticas sociais, culturais e políticas. E xplicavam a psicologia, enfim , dos

diferentes tipos regionais.

“R eg ião ” , é, com o enfatiza B ourdieu (1989, p. 108), um a realidade que, em prim eiro

lugar, é representação, assim , lutas a respeito da identidade étnica ou regional são “um caso

particu lar das lutas das classificações, lutas pelo m onopólio de im p o r a definição legítim a das

divisões do m undo social e, por este m eio, de fazer e de desfazer os grupos” (B O U R D IE U

1989, p. 113).

P o r conseguinte, em term os nacionais, a partir das décadas de 1920 e 1930, m itos de

origem , tradições, heróis, fatos históricos singulares passam a ser rem em orados tendo com o

referência ju stam en te as regiões rem otas da nação, fosse porque a sua co n q u ista podia fornecer

elem entos im portantes para u m a narrativa nacional, ou pelo fato de serem m antidas

praticam ente à m argem da m odernização capitalista, podiam exibir traços de u m a cultura

autêntica, capaz de diferenciar e afirm ar u m a dada e assegurada nacionalidade (G A L ETTI,

2012, p. 29).

C onform e A lbuquerque Jú n io r (2011, p. 52), assistim os, na década de vinte, à

em ergência de novos regionalism os.

[...] não mais aquele difuso e provinciano do século XIX e início do século XX, mas
um regionalismo que reflete as diferentes formas de se perceber e representar o

9 Segundo Rocha (2009, p. 219), o termo “folk-lore” (folclore) surgiu em 1848 a partir de estudos do etnólogo
inglês William John Thoms. O termo folk-lore que quer dizer “saber tradicional do povo” foi usado para designar
os estudos das então chamadas “antiguidades populares”, práticas rurais, saberes, histórias, contos e performances
que incorporavam aspectos pagãos e cristãos, considerados antiquíssimos. Desde então, folclore tornou-se
sinônimo de “cultura popular”, embora nem toda cultura popular seja folclórica. Conforme Albuquerque Júnior
(2011, p. 91-92), a partir do século XX, o folclore vai ser entendido, especialmente pelos folcloristas, como a
expressão da mentalidade popular, uma estrutura ancestral e espectral da cultura de um povo. Sua utilização
enquanto parte das narrativas de identidade, nacionais ou regionais, facilitaria a absorção e integração das camadas
sociais na medida em que fizesse parte na defesa de autenticidade de um grupo.

17
espaço nas diversas áreas do país. Com mudanças substanciais no campo econômico
e técnico, como a industrialização, a urbanização, a imigração em massa, o fim da
escravidão, [...]. Somem-se a isso as novas formas de sensibilidade artística e cultural
trazidos pelo modernismo; os novos códigos de sociabilidade que aí se desenvolvem
mais intensamente; as novas concepções acerca da sociedade, da modernização e da
modernidade. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 52).

T ratando dos com ponentes dessa identidade regionalista em M ato G rosso, Z orzato

(1998, p. 8), destaca inicialm ente a elaboração de u m a “ m em ória de consenso” , onde todos são

apresentados com o pertencendo a um a m esm a fam ília, filhos do m esm o solo, com vistas a

forjar, fo rtalecer e dissem inar um sentim ento de pertencim ento ao grupo, sentim ento esse útil

não só para escam otear as desigualdades sociais existentes na sociedade local, m as tam bém

para u n ir facções políticas rivais, em torn o de um m esm o p ro jeto . A esse projeto

em inentem ente político, podem os, assim , defini-lo com o a construção de u m a identidade

coletiva, que nos dizeres de P ollak (1992, p. 207), n ad a m ais é que todos os investim entos que

um grupo faz ao longo do tem p o para dar a cada m em bro, q u er se trate de fam ília ou de nação,

o sentim ento de unidade, de continuidade e de coerência.

D essa form a, ainda conform e Z orzato (1998), os m ato-grossenses:

Passam então a se considerar como sentinelas avançadas da civilização no sertão. Ao


invés de “selvagens”, reforçam a origem paulista (bandeirante), quando não da
“melhor estirpe europeia”; e, ao invés de “sanguinários”, constroem as imagens de
“revolucionários”, “patriotas” e “destemidos”. No lugar de “preguiçosos”, colocam-
se como gente adaptada à rudeza do meio, amante do progresso, disposta ao sacrifício
em nome do “amor à terra natal”. Por fim, mesmo diante de situações adversas, se
dizem amantes das artes, da religião, cultuadores da ciência. (ZORZATO, 1998, p.
16).

N o to cante às referências das m anifestações da cultura p o p u lar de M ato G rosso, com o

o cururu e o siriri, um p rim eiro aceno para que essas p ráticas integrassem o rol dos sím bolos

da identidade coletiva, aparenta te r vindo da A cad em ia M ato-grossense de Letras, instituição

cujo estatuto de 1921, em seu sétim o e oitavo itens de doze diligências de finalidade, já

estabelecia:

VII - Estimular e amparar as tendencias regionalistas na literatura, pelo estudo dos


costumes, expressões artísticas e variantes dialetos em Mato Grosso;
VIII - Favorecer e propagar o estudo retrospectivo do folclore mato-grossense;10

N essa p erspectiva de valo rizar os costum es e o folclore regional, u m a produção

pioneira b asead a nessas ideias, tom ando as expressões populares com o folclóricas, p arece ter

10 Estatutos do Centro Matto-Grossense de Letras. In: Revista do Centro Matto-Grossense de Letras, Cuiabá, ano
I, n. 01, jan. de 1922. pp. 71-86.

18
sido a publicação em 1928 de O Cururu, p oesia de C arlos V andoni de B arros, corum baense

m em bro da instituição. A poesia p u blicada na revista da A cadem ia, fazendo referências a viola

de ximbuva (viola de cocho) e a trechos de toadas de cururu, faria V andoni de B arros alcançar
notoriedade no m eio letrado, sendo considerado e difundido com o um expoente do p ré-

m odernism o11 em M ato G rosso. N o entanto, esse tip o de objeto explorado pelo poeta, ainda

nesse contexto se configuraria enquanto tem ática vista com certa ap reen são pelos letrados,

sendo o cururu um a p rática p rópria dos espaços e das classes m arginalizadas. M esm o

classificando a poesia com o interessante, Jo sé de M esquita não deixa de assinalar que V andoni

de B arros “p refere os tem as do nosso interno ru ralism o ” 12.

P ara A lbuquerque Jú n io r (2011, p. 64), que pesquisou o processo identitário

regionalista no N ordeste, o m ovim ento m odernista, com o o que inspirou V andoni de Barros,

diferente do que se propaga, não tin h a com o tarefa o rom pim ento com a tradição, m as sim ,

(re)criar essa tradição, instituí-la. A identidade brasileira pensada pelos m odernistas, é aí

segm entada entre um espaço tradicional e um m oderno, m as não com o se isso significasse a

inibição de vir a nos constituir em civilização autônom a, construída a partir de elem entos

culturais populares. “ O que o m odernism o fez foi incorporar o elem ento regional a um a

visibilidade e dizibilidade que oscilavam entre o cosm opolitism o e o nacionalism o, superando

a visão ex ótica e pitoresca naturalista.” (A L B U Q U E R Q U E JÚ N IO R , 2011, p. 69).

C om o im pacto do m ovim ento m odernista, em term o s nacionais, a partir especialm ente

da década de 1930, é possível notar o desenvolvim ento de políticas que visavam o estudo e o

registro etnográfico das m anifestações folclóricas e culturais do B rasil, a exem plo das

expedições de M ário de A ndrade (1 9 3 6 -1 9 3 8 )13, e a própria criação do Serviço do P atrim ônio

H istórico e A rtístico N acional (S P H A N )14 em 1937. A s m anifestações consideradas

folclóricas, m oderadam ente com eçam a g an h ar destaque nacional com a criação da C om issão

N acional do Folclore, em 1947, resultante da Sociedade B rasileira de Folclore concebida no

início dos anos 1940. N os anos seguintes, as atividades dessa com issão se ram ificaram em

11 Ver: MENDONÇA, Rubens de. História da Literatura Mato-grossense. 3a. Ed. Especial. Cáceres-MT: Ed.
Unemat, 2015, pp. 152-153.
12 MESQUITA, José de. Conferência realizada no Congresso das Academias, Rio de Janeiro, 1936. Transcrita no
jornal “A Cruz”. Cuiabá, ano XXVII, n. 1238, 1936, p. 02. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=765880&pesq=%22cururu%22&pasta=ano%20193&pa
gfis=5034> acesso jul. 2021.
13 Ver Chuva (2011), p. 147-165.
14 Conforme Márcia Chuva (2011, p. 153), no primeiro número da revista do então SPHAN, a apresentação escrita
por Rodrigo Melo Franco de Andrade (1937) lamentava que a edição já tinha falhas, pois tratava exclusivamente
de obras arquitetônicas, como se o patrimônio cultural, histórico e artístico se reduzisse somente a isso.

19
diversos E stados, viabilizando em 1958, a criação da C am panha de D efesa do Folclore

B rasileiro (C D FB ), vinculado à época ao M inistério de E d ucação e C ultura (M EC).

E m M ato G rosso, a década de 1940, em consonância com o E stad o N ovo (1937-1945),

representou um m arco p ara a ressignificação e v alorização das m anifestações populares,

alçadas à condição de integrantes do folclore regional e brasileiro. P ara T hom pson (et al, 2011,

p. 167), o E stad o N ovo é o “ período ao longo do qual o E stado em penhou-se na construção de

política cultural no B rasil, na busca de consolidação da nação brasileira e na valorização dos

traço s tid o s com o autenticam ente nacionais” . Isto posto, intelectuais no cerne do IH G M T e

A M L, paulatinam ente m udam os olhares acerca das culturas populares, que passam a ganhar

m ais espaço em suas produções. Se em 1936, José de M esq u ita definiu a poesia de C arlos

V andoni de B arros com o inspirada apenas no interno ruralism o do estado, quatro anos m ais

tarde, em 1940 na R evista da A cadem ia M ato-grossense de Letras, M esquita seria apresentado

com o um dos autores que “rebuscando por entre as cam adas populares urbanas, e rurais,

ribeirinhas ou dos cerradões [...]” , lançam obras que “ se agigantam , com am or pelas cousas

regionalistas” .15 N esta m esm a edição da revista, José de M esquita, publicou um a poesia,

esteticam ente assem elhada a O Cururu de V andoni de B arros, cham ada de O Siriri16. C om o

B arros, M esquita p arece ten tar superar nos versos o aspecto pejorativam ente exótico e

pitoresco registrado pelos naturalistas do século X IX , buscando valo rizar um a m an ifestação

p rópria do bailad o e da m usicalidade popular presente em C uiabá e em outras partes do estado.

P o r conseguinte, é em 1942, a partir do In stituto H istórico e G eográfico de M ato G rosso

e A cadem ia M ato-grossense de L etras que m em bros dessas instituições criam no estado a

Sociedade M ato-grossense de F o lc lo re 17, incentivados diretam ente pela Sociedade B rasileira

de Folclore, então presidida po r L uís da C âm ara C ascudo. A Sociedade M ato -g ro ssen se de

F olclore representaria nos anos posteriores a referên cia intelectual incentivadora de registros e

produções acerca das m anifestações populares e folclóricas do estado, seja no âm bito da

literatura, historiografia ou artes plásticas.

C ontudo, m esm o que desde o E stado N ovo, em M ato G rosso se ten h a progressivam ente

afirm ado as questões e m anifestações regionais enquanto folclore e parte da cultura do estado,

ten d o o cururu, o siriri e dem ais m anifestações populares m arcado presença, po r exem plo, nas

15 CUIABANO, Ulisses. Folc-Lore Matogrossense, In: Revista da Academia Mato-grossense de Letras. Cuiabá,
ano VIII, tomo XV-XVI, 1940. p. 28.
16 MESQUITA, José de. O Siriri. In: Revista da Academia Mato-grossense de Letras. Cuiabá, ano VIII, tomo XV-
XVI, 1940. p. 18.
17 Em Mato Grosso, a Sociedade Mato-grossense de Folclore foi oficialmente fundada 1942, presidida por Ulisses
Cuiabano (1891-1951), então membro do IHGMT e AML.

20
com em orações oficiais dos 250 anos de C uiabá em 1969, conform e Siqueira (2002, p. 250),

até m eados da década de 197018, o estado ainda não tin h a conseguido efetivam ente estabelecer

um planejam ento estratégico de atuação no âm bito cultural, isso porque as questões culturais,

m esm o já possuindo certo reconhecim ento, ainda eram tratad as de form a secundária pelos

governantes locais, que não viam a necessidade de legislações e diretrizes específicas.

C onform e, A lbuquerque Jú n io r (2011, p. 46), a elaboração das tradições, parte indispensável

da identidade se dá no plano cultural e intelectual, m ais do que no político, m esm o que os dois

estejam quase que intim am ente interligados. A elaboração e ressignificação das p ráticas é

função do prim eiro, a legitim ação institucional, do segundo.

A ssim sendo, som ente em 1974 é definida um a p o lítica estadual de turism o, criando o

C onselho E stadual de T urism o e a E m presa M ato-grossense de T u rism o 19, e apenas um ano

depois, em 1975, é criada a F undação C ultural do E stado de M ato G rosso20, que daria origem

à atual Secretaria de E stad o de Cultura. É de se salien tar que essas políticas na esfera estadual,

aliadas a dem ais agentes, desem penharam um papel im portante no processo de ressignificação

do lugar ocupado pelas m anifestações populares com o o cururu e o siriri em M ato Grosso.

P olíticas m unicipais, estaduais, nacionais e internacionais voltadas p ara os bens culturais

provocaram dinâm icas nessas m anifestações populares. Tais ações políticas a partir desse

período de segunda m etade do século X X , procuravam resultados para as dem andas culturais

identitárias, m as tam bém cruzando-se intencionalm ente com o m ercado e o turism o,

aproxim ando a cultura do viés do desenvolvim entism o econôm ico (FO N SE C A , 1997 A pud

C H U V A , 2011, p. 159).

18 É de se frisar que a década de 1970 integra o período “auge” da ditadura militar (1964-1985), que por meio das
perspectivas ufanistas e de integração nacional, perpetrou substanciais mudanças e investidas na política cultural
do país como um todo, assunto este que não iremos adentrar significativamente neste artigo. Assim sendo,
conforme Chuva (2011, p. 156), nos anos 1970, novas divisões em relação não tanto ao desenvolvimento das
ciências sociais, mas principalmente pela tomada de decisões pelos agentes de poder da ditadura, sob a égide da
“integração nacional”, buscaram reavivar o mito da fundação do Brasil a partir dos três grupos formadores (o
branco europeu, o negro e o índio), assim buscavam-se objetos, práticas e bens que teoricamente sintetizassem
essas três matrizes, ao mesmo tempo em que empreendiam estudos da cultura e do folclore, cujos temas
privilegiados variavam a depender das regiões do país.
19 Ver: Lei Estadual n° 3.564 de 1974.
20 Ver: Lei Estadual n° 3.632 de 1975.

21
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo M arg areth R ago no prefácio da obra de A lbuquerque Jú n io r (2011), apenas se

iniciam , no B rasil, os estudos que problem atizam a produção histórica e cultural de u m a região

geográfica, a p artir da construção de sua identidade enquanto alteridade.

P ara refletir sobre essas construções identitárias, assim , é necessário p ensar a região

com o um grupo de enunciados e im agens que se repetem , com certa regularidade, em diferentes

épocas, com diferentes estilos e não pensá-la com o u m a hom ogeneidade, um a identidade de

antem ão presente na natureza (A L B U Q U E R Q U E JÚ N IO R , 2011, p. 35).

C onform e Z orzato (2000, p. 419), a respeito da construção de um a m em ória que serviu

de suporte para a identidade alm ejada em M ato G rosso, o estudo de alguns eixos tem áticos que

foram utilizados para tal, perm item -nos com preender não apenas o contexto histórico em que

surgiram , m as tam bém o sentido a eles atribuídos po r seus criadores e a finalidade a que

serviam . Pois, segundo W oodw ard (apud SILVA ; H A LL; W O O D W A R D , 2015, p. 11), “um a

das form as pelas quais as identidades estabelecem suas reivindicações é por m eio do apelo a

antecedentes históricos” . A ssim sendo, a p artir das prim eiras décadas do século X X em M ato

G rosso, buscava-se consolidar um a m em ória social po r m eio das narrativas históricas, e dessa

fo rm a estabelecer a identidade/unidade pretendida.

D e acordo com P ollak (1992, p. 201):

A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo,


próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos anos 20-30, já havia sublinhado que
a memória deve ser entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno coletivo e
social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a
flutuações, transformações, mudanças constantes.

D essa form a a intelectualidade local, po r m eio de instituições com o o Instituto H istórico

e G eográfico de M ato G rosso e A cadem ia M ato-grossense de L etras, buscou “ historiar” ,

procurando no passado referências que lhes serviriam com o fios da m em ória sobre os quais

construir-se-ia u m a continuidade entre presente e passado, p rojetando ao m esm o tem po um a

garantia de futuro (ZO R Z A T O , 2000, p. 433).

É im portante ressaltar, em conform idade com A lbuquerque Jú n io r (2011, p. 39), que o

regionalism o é m uito m ais do que um a ideologia da classe dom inante de um a dada região. “E le

se apoia em p ráticas regionalistas, na produção de um a sensibilidade regionalista, num a cultura,

que são levadas a efeito e incorporadas po r várias cam adas da população e surge com o

elem ento dos discursos destes vários segm entos.”

22
A construção de u m a identidade m ato-grossense tendo po r centro a capital, Cuiabá,

enquanto m arco na conciliação unificadora regionalista, foi transform ando no decorrer do

século XX, inclusive as p ráticas e m anifestações da cultura popular, buscando po r m eio delas

originalidade e autenticidade. D essa m aneira, som ente a p artir das décadas de 1920 e 1930,

com a crise dos paradigm as naturalistas, com a em ergência de novos olhares em relação ao

espaço social, com sensibilidades em relação ao que seria verdadeiram ente nacional, vai ser

possível a incorporação dessas diferentes m anifestações populares, a (re)invenção das

tradições, e a reelaboração das im agens e discursos que constituiríam o regionalism o.

A s produções e m esm o um a política de m em órias e identidade em M ato G rosso, tendo

as m anifestações de cururu e siriri com o personagens, foram gestadas em p ráticas que

lentam ente j á as registravam dentro do espaço regional m ato-grossense, seja por v iajantes e

exploradores ou pela intelectualidade local. O bviam ente m arcos e períodos foram

fundam entais p ara a ressignificação dessas p ráticas populares, com o: a criação de instituições

intelectuais de caráter regional, a exem plo do Instituto H istórico e G eográfico de M ato G rosso

(1919) e A cadem ia M ato-grossense de L etras (1921); o contexto de discussão nacional

prom ovida pelo E stado N ovo (1937-1945); e tam bém os conchavos políticos das elites

cuiabanas para a m anutenção da centralidade política e “ poder de m ando” em C uiabá, e nas

m ãos das velhas oligarquias.

O que m arginalizou as m anifestações populares, com o o cururu e o siriri no século X IX

e início do X X , foi terem sido identificadas enquanto um a expressão rural, afro-indígena,

m estiça, ligadas a grupos e um a região que era vista com o o espaço atrasado do país,

incivilizado, selvagem , “ estigm a da barb árie” . Progressivam ente, com o advento de novas

perspectivas essas m esm as m anifestações seriam tom adas com o a síntese da adaptação à

natureza regional, e da personalidade do hom em m estiço deste m eio, autenticam ente nacional.

E ssa vo lta para dentro de si de M ato G rosso, para b u scar e construir a sua identidade, o seu

caráter, dar-se-ia à m edida que o dispositivo da nacionalidade e a form ação discursiva nacio n al-

p o p u lar colocaram com o necessidade o apagam ento das diferenças regionais e a sua integração

no nacional.

23
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25
GUERRA AO TERROR E LAVAGEM DE DINHEIRO: EVOLUÇÃO DA
LEGISLAÇÃO BRASILEIRA APÓS ATENTADOS DE 11 DE
SETEMBRO

A L E S S A N D R O F E R N A N D E S 21*

INTRODUÇÃO

A G uerra ao T error declarada pelos E stados U nidos da A m érica apresentou um novo

vilão em um m undo que recentem ente tinha superado a divisão E U A x U R SS que existia desde

o final da segunda grande guerra, o terrorism o.

A o contrário de um confronto entre E stados, onde fronteiras determ inam o início e final

do território inim igo, as organizações terroristas não respeitam as dem arcações dos lim ites

entre as nações, operando principalm ente em regiões de fronteiras, tanto que as forças

am ericanas que varreram o A feganistão em busca de O sam a B in L aden som ente encontraram

seu b u n k er em A bbottabad, no vizinho Paquistão.

D e sta form a um a das principais form as de com bate a estas organizações deu-se por

m eio ao com bate e prevenção do ilícito de lavagem de dinheiro, estrangulando-as sem acesso

aos recursos financeiros para levar a cabo suas pretensões terroristas.

Porém , da m esm a form a que as organizações terroristas não respeitam fronteiras, este

com bate deverá tam bém dar-se de form a transnacional, unificando as form as de com bate,

im pedindo que existam paraísos financeiros em que os terro ristas po d eriam m ovim entar seus

recursos com m aior im punidade.

D e sta fo rm a este trabalho pretende analisar a evolução da legislação brasileira de

lavagem de dinheiro dentro desta nova realidade m undial, reforçando o papel de nova unidade

de in teligência financeira, o C O A F e realizando um breve resgate da evolução da G uerra ao

Terror, que já se desenhava antes m esm o do 1 1 de setem bro.

E ste trabalho se justifica pela necessidade de adaptar a legislação já existente a este

novo panoram a m undial, principalm ente em função de com prom issos assum idos pelo país em

organizações transnacionais.

21**Mestre em Gestão e Negócios/Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Especialista em História da


Guerra/Faculdade Venda Nova do Imigrante.

26
O trab alh o utilizou para tanto de um a pesquisa bibliográfica, acom panhada por um a

pesquisa docum ental focada na consulta dos tex to s legais relacionados ao te m a 22, bem com o

consulta dos com prom issos internacionais assum idos pelo Brasil.

GUERRA AO TERROR

O final da G uerra Fria, com a dissolução da U n ião das R epúblicas Socialistas Soviéticas

(U R SS) em 1991, determ inou a necessidade de um a reorientação estratégica da agenda de

segurança e defesa dos E stados U nidos e de seus aliados, um a vez que a ordem global b ipolar

entre as esferas de influência das superpotências capitalista e com unista, ruiu junto com a

C ortina de F erro23. A ssim , a principal am eaça para os E stados do b lo co O cidental deixava de

ser o inim igo estatal e subversivo representado pela superpotência soviética (PY T H IA N , 2009),

entretanto esta posição não v iria a ser autom aticam ente to m ad a por outros E stados, m as sim

por um tipo diferente de adversário, levando os E stad o s U nidos a um a G uerra A ssim étrica.

A chamada “guerra assimétrica”, que aparece nos debates estratégicos atuais


dos Estados Unidos consiste precisamente na capacidade desses grupos
armados não estatais de sustentar-se quase que indefinidamente em luta contra
o poder do Estado, nacional ou estrangeiro (HOBSBAWN, 2007, p. 87).

E ste m ovim ento retirou o com bate do com unism o do centro da agenda am ericana,

deixando espaço para um a agenda focada em u m a nova obsessão g lobal: a adoção de políticas

que garantam a segurança interna.

Segurança é o movimento que leva a política para além das regras


estabelecidas no jogo e enquadra o problema ou como um tipo especial de
política ou como estando acima da política. A securitização pode ser vista
como uma versão mais extrema de politização [Alguma coisa para ser
securitizada precisa ser] [...] apresentada como uma ameaça existencial, que
necessita de pelo artigo The Cold War, publicado no New York Herald Tribune
por Walter Lippmann em 1947 (MUNHOZ, 2020)medidas de emergência e
justifica ações fora dos limites normais do processo político [...]. Assim, a
definição exata e critério de securitização são definidos através do
estabelecimento intersubjetivo de uma ameaça existencial com resiliência
suficiente para ter efeitos políticos substanciais. A securitização pode ser

22 Em função da extensão proposta para o trabalho optamos por não analisar as circulares e resoluções expedidas
pelo Banco Central do Brasil, que regulamentam obrigações decorrentes dos compromissos assumidos em
decorrência da legislação nacional.
23
A expressão Cortina de Ferro foi imortalizada por Churchill no seu discurso de Fulton em Março de 1946, porém
tinha já sido usada anteriormente por Goebbels quando o Exército Vermelho chegou a Viena, ao avisar os alemães
para não deixarem de combater porque uma Cortina de Ferro cairia sobre este enorme território controlado pela
União Soviética (FENBY, 2008).

27
estudada diretamente; ela não precisa de indicadores. A maneira de estudar a
securitização é estudar o discurso e as constelações políticas (BUZAN et al,
pp. 23-25).

E fetivam ente os E stados U nidos seriam , p e la prim eira vez, atacados pela organização

terro rista que v iria a atingir seu territó rio ainda antes da virad a do século: a A l-Q aed a de O sam a

B in Laden. E m 1998, as em baixadas estadunidenses em D ar es Salaam , na T anzânia, e em

N airóbi, no Q uênia, foram alvos de ataques sim ultâneos e coordenados pela A l-Q aeda. D ois

anos m ais tarde, em 2000, o U SS Cole, destroier da M arinha dos E U A ancorado no porto de

Á den, no Iêm en, foi tam bém atingido po r um ataque orquestrado pela al-Q aeda, elevando o

cham ada “perigo v e rd e ” , identificado com o fundam entalism o islâm ico, ao posto antes

ocupado pelo “perigo verm elh o ” (B A N D E IR A , 2015; W R IG H T , 2006).

Subsequentem ente, em 11 de setem bro de 2001, os E stados U nidos foram palco do

m aio r ataque terrorista até então executado24. D ezenove terroristas da A l-Q aeda interceptaram

quatro aeronaves com erciais e as lançaram , em ataques suicidas, contra seus alvos: as duas

torres do W o rld T rade C enter, em N o v a Y ork, o P entágono, em W ashington D .C . e o C apitólio,

na m esm a cidade, ten d o sido este ú ltim o ataque frustrado pelos passageiros e tripulantes da

aeronave interceptada. Q uase três m il pessoas m orreram com o resultado dos quatro atentados

coordenados naquela data, caracterizando a m aio r falha do aparelho securitário estadunidense

na história m oderna, superando inclusive os desacertos que viabilizaram o ataque japonês a

base m arítim a de Pearl H arbor25 (A LLE N , 2013; W R IG H T , 2006), dem onstrando que “nenhum

p o d er m ilitar é suficiente para prevenir um terrorism o globalizado num m undo globalizado

com o o de hoje” (M IR A N D A , 2003, p. 68).

U tilizando de todos os m eios disponíveis sob seu com ando, o então presidente norte

am ericano G eorge W . B ush declarou, em 20 de setem bro de 2001, o início da G uerra G lobal

ao T error buscando derrotar a al-Q aeda e to d as as form as de terrorism o na esfera dom éstica e

internacional. R essaltando que não som ente a liberdade estadunidense estava em risco e que

esta não era um a guerra som ente dos E stados U nidos, m as sim da “ civilização” que acredita no

progresso, na pluralidade, n a tolerância e na liberdade, B ush convidou to d as as nações do

24 Os atentados terroristas ocorridos no dia 11 de setembro de 2001 contra a sede do Pentágono (Washington) e as
Torres Gêmeas do World Trade Center (Nova York) são considerados por muitos autores como o mais importante
marco histórico do início do século XXI (CHOMSKY, 2002).
25
O Ataque a Pearl Harbor foi uma operação militar surpresa do Serviço Aéreo Imperial da Marinha Japonesa contra
os Estados Unidos, na base naval de Pearl Harbor em Honolulu, no Território do Havaí, pouco antes das 08h00,
no domingo de manhã, 7 de dezembro de 1941 e que foi determinante para o ingresso americano na Segunda
Guerra Mundial (VILLALOBOS, 2019).

28
planeta para ju n ta rem -se a este em preendim ento26 (B U SH , 2001; L A M M E R H IR T : M E R O L A ,

2017).

C ertam ente nenhum outro evento ten h a tido repercussões tão am plas e decisivas sobre

a política m undial contem porânea desde o colapso da U R SS e o consequente fim da G uerra

F ria dez anos antes, im pondo um m om ento de inflexão tanto na h istória dos E U A quanto da

p rópria ordem m undial (B O O TH ; D U N N E , 2002). O s atentados coordenados e quase

sim ultâneos de 11 de m arço de 2004 contra o sistem a de trens suburbanos em M adrid, que

resultaram em 193 m ortos e m ais de 2000 feridos (R E IN A R E S, 2004), dem onstrou que

qualquer país pod eria ser alvo de novos ataques, reforçando a u rgência de adoção de m edidas

transnacionais.

P o r este m odo a com unidade internacional não dem orou a atender à convocação

am ericana, destacando-se a R esolução 1373 adotada pelo C onselho de S egurança da

O rganização das N açõ es U nidas em 28 de setem bro de 2001, apenas 17 dias após os A tentados

T erroristas de 11 de Setem bro de 2001, de j á relacionava à lavagem de dinheiro dos atos de

terrorism o internacional:

Reafirmando a necessidade de combater por todos os meios, em conformidade


com a Carta das Nações Unidas, ameaças à paz e à segurança internacional
causadas por atos terroristas, [...] Ressalta com preocupação a estreita ligação
entre o terrorismo internacional e o crime organizado transnacional, o
narcotráfico, a lavagem de dinheiro, o contrabando de materiais nucleares,
químicos, biológicos e outros materiais potencialmente mortíferos, e, nesse
sentido, enfatiza a necessidade de incrementar a coordenação de esforços nos
níveis nacional, sub-regional, regional e internacional de modo a fortalecer
uma reação global a essa séria ameaça e desafio à segurança internacional
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2001).

O próprio governo Suíço, conhecido pelo apreço e v alor ao sigilo bancário, alterou sua

legislação para g arantir a confidencialidade das transações financeiras som ente em casos que

versassem sobre sucessão patrim onial, divórcio e sonegação fiscal, reco n h ecid a com o m era

transgressão adm inistrativa pela legislação Suíça27 (S IL V A SÁ N C H E Z , 2009).

26 Uma expressão utilizada pelo presidente americano durante este discurso acabou se tornando fonte de
controvérsia: a criação de uma classe de países que seriam conhecidos como eixo do mal: Coreia do Norte, Irã e
Iraque (BERTONHA, 2005).
27 Desde 2009 as autoridades suíças estenderam a colaboração de intercâmbio de informações inclusive para os casos
de “mera” evasão fiscal (SILVA SÁNCHEZ, 2009). Já em 2018 a Suíça transmitiu às autoridades fiscais de
dezenas de países dados de cerca de dois milhões de contas nos bancos do país, pondo assim fim a quase um
século de sigilo bancário (NASCIMENTO; OLIVEIRA, 2021).

29
A exposição de m otivos da proposta de diretiva do P arlam ento E uropeu de com bate a

lavagem de dinheiro resgata a questão da necessidade do com bate ao fin an ciam en to ao

terrorism o, conform e trech o abaixo colacionado:

Os recentes atentados terroristas ocorridos na União Europeia e no mundo


sublinham a necessidade de a UE mobilizar as suas forças em todos os
domínios de ação para prevenir e lutar contra o terrorismo. As organizações
terroristas e a criminalidade organizada necessitam de financiamento para
manter as suas redes criminosas, recrutar novos membros e cometer os atos
terroristas. Eliminar as suas fontes de financiamento, fazer com que seja mais
difícil aos terroristas não serem detetados quando utilizam estes fundos e
explorar informações pertinentes a partir das transações financeiras são ações
que contribuem de forma crucial para lutar contra o terrorismo e a
criminalidade organizada (UNIÃO EUROPÉIA, 2016).

O governo B rasileiro logo aderiu a conjuntura de reprim enda ao terrorism o, conform e

anotou C elso Lafer, M inistro de E stad o das R elações E xteriores do governo b rasileiro à época

dos atentados, adotando iniciativas de precaução ao terro r no âm bito nacional, tais com o: “ o

controle m uito m ais rigoroso dos aeroportos, a fiscalização de operações financeiras que

possam estar ligadas ao terrorism o e a v ig ilância contra a hipotética presença de pessoas

vinculadas a atividades terroristas no B rasil” (LA FE R , 2003, p. 112). F ica claro ainda na visão

do então chancelar a necessidade de u m a cooperação m ultilateral no com bate ao terrorism o:

Não há dúvida de que a constituição de verdadeiras redes transnacionais de


criminalidade organizada diminui a eficácia de estratégias isoladas e não-
coordenadas. Estou convencido de que a luta contra o terrorismo, seus
responsáveis e aqueles que os abrigam e patrocinam requer uma ação efetiva
no âmbito multilateral. Os Estados têm, assim, um papel central na criação de
normas de mútua colaboração para lidar com as redes de crime organizado
(LAFER, 2003, p. 107).

E m b o ra originalm ente as políticas antilavagem de dinheiro tenham sido associadas ao

tráfico de drogas, para depois se estenderem ao com bate à corrupção, a guerra ao terro r levou

o B rasil e outros países a em penhassem em regulam entar as possíveis conexões entre lavagem

de dinheiro e terrorism o, configurando-se com o u m a resposta organizada e institucional a esta

nova am eaça (B O T TIN I; B O R G E S, 2021; SA M Y , 2006).

A globalização dos grupos terro ristas fez com que encontre enorm es facilidades para

obtenção do direito ilegal, frente a profusão de estruturas corruptoras e cooptadoras, presentes

dentro e fora das fronteiras estadunidenses, buscando u m a nova receita de ação, diferente do

m étodo vigente na política externa am ericana durante a guerra fria: repressão m ovida por

golpes m ilitares, tortu ra e desrespeito aos direitos hum anos (PR O C Ó P IO , 2001).

30
La lucha contra la criminalidad inter-nacional no se puede llevar a cabo con eficacia
mediante iniciativas estatales aisladas e internas, sino únicamente a través de la más
estrecha colaboración a escala internacional. La verdadera batalla contra el blanqueo,
pues, debe plantearse, principalmente, en sede internacional, puesto que el lavado de
dinero se orienta hacia países que no disponen de normas apropriadas para prevenir
y reprimir el reciclaje, e incluso han de contemplarse sancio-nes graves frente a los
estados que no se adecuen al estándar de efectividad establecido dentro del marco de
la concertación internacional en la lucha contra el blanqueo (SOUTO, 2001).

D esta fo rm a o com bate a lavagem de dinheiro surge com o ferram enta para asfixiar a

organização dos grupos terroristas, dificultando (quando não im pedindo) o fluxo de recursos

n ecessários para organização de seus atos de terro r.

O G rupo de A ção F inanceira (G A FI) é um a entidade intergovernam ental criada para

definir padrões e p rom over a efetiva im plem entação de m edidas legais, regulatórias e

operacionais para com bater a lavagem de dinheiro, o financiam ento do terrorism o e o

financiam ento da proliferação, buscando em colaboração com outros atores internacionais,

trab alh ar para identificar vulnerabilidades nacionais com o objetivo de p roteger o sistem a

financeiro internacional do uso in d evido. E m outubro de 2001, o G A FI expandiu seu m andato

para p o d er tratar tam bém da questão do financiam ento dos atos e organizações terroristas, e

deu o im portante passo ao criar as O ito (posteriorm ente expandidas para N ove)

R ecom endações E speciais sobre F inanciam ento do T errorism o28 (FA TF, 2019). E stas

recom endações serviram de base para o tex to final da Lei A ntiterrorism o, prom ulgada um

pouco antes da realização das O lim píadas do R io de Janeiro, quando o m edo de ocorrência de

ataques ao B rasil atingiu seu ponto m ais elevado (O L IV E IR A , 2017).

A recom endação G A FI de núm ero 5 estabelece as bases para n ecessidade harm onização

da legislação dos países signatários, conform e texto abaixo:

5. Crime de financiamento do terrorismo


Os países deveriam criminalizar o financiamento do terrorismo com base na
Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento do Terrorismo, e
criminalizar não apenas o financiamento de atos terroristas, mas também o
financiamento de organizações terroristas e terroristas individuais, mesmo na
ausência de relação com um ato ou atos terroristas específicos. Os países deveriam
garantir que tais crimes sejam considerados crimes antecedentes da lavagem de
dinheiro. (FATF, 2019)

28 As Recomendações do GAFI foram revisadas pela segunda vez em 2003, e essas, juntamente com as
Recomendações Especiais, foram adotadas por mais de 180 países, sendo reconhecidas universalmente como o
padrão internacional antilavagem de dinheiro e de combate ao financiamento do terrorismo .

31
E m 08 de dezem bro de 2000, na cidade colom biana de C artagena foi criada o G rupo de

A ção F inanceira para A m érica do Sul - G A FISU D , num a projeção regional da G A FI

agregando 10 m em bros (A rgentina, B olívia, B rasil, C hile, C olôm bia, E quador, M éxico,

P araguai, P eru e E quador) além de França, A lem anha, Portugal, E spanha e E stados U nidos na

condição de países observadores (A N S E L M O , 2010).

LAVAGEM DE DINHEIRO

O ilícito de lavagem de dinheiro in clui-se no rol dos cham ados crim es do colarinho

branco, definidos po r Sutherland (2015) com o crim es sem violência, com etidos em situações

com erciais e que buscam ganho financeiro. C aracterizam -se com o crim es de difícil percepção,

u m a vez que utilizam um a série de operações com plexas para esconder sua origem crim inosa.

O prejuízo destes crim es extrapola os danos financeiros, gerando im pactos sobre a m oral social

e sua organização em larga escala. (SU T H E R L A N D , 2014).

O term o “L avagem de D in h eiro ” tem sua origem nos EU A , na década de 1920,

período em que as m áfias estabeleceram um a rede de lavanderias para esconder a procedência

ilícita dos recursos recebidos em suas atividades ilegais, principalm ente do contrabando de

bebidas alcoólicas, ilegais aquele tem po. (TO N D IN I, 2006). A pesar de a denom inação adotada

te r u m a origem recente, sua prática parece ser bem m ais antiga. E xistem relatos de piratas que,

durante a Idade M édia, j á buscavam desvincular os valores derivados dos ilícitos atos de sua

procedência (C A L L E G A R I; W E B E R , 2017).

L avagem de dinheiro é um processo pelo qual se introduzem no sistem a econôm ico

recursos advindos de atividades ilegais e crim inosas, por m eio de artifícios que escondem e

dissim ulam sua origem , afastando-os de seu passado ilícito. E sse é um processo com efeitos

significativos e deletérios sobre o am biente econôm ico, e que envolve a realização de um

conjunto de operações com erciais ou financeiras que visam dar aparência lícita a estes valores,

iniciando-se na ocultação sim ples de sua origem e encerrando com seu retorno ao sistem a

com ercial ou financeiro com aspecto legítim o. (B A D A R Ó ; B O T T IN I, 2016; R IZ Z O , 2016;

SILVA ; M A R Q U E S; T E IX E IR A , 2011).

O delito da lavagem de dinheiro parte da ideia de que o agente que busca proveito

econôm ico na prática crim inosa precisa confundir a origem dos valores, buscando assim

desvinculá-lo de sua procedência delituosa, conferindo-lhe um a aparência lícita, a fim de poder

aproveitar os ganhos ilícitos (B A L T A Z A R , 2012).

32
U m a das m ais eficientes estratégias de com bate ao crim e organizado é Follow the

money, ou seja, seguir o dinheiro e identificar os seus cam inhos, blo q u ear bens, e fazer com
que a entidade delitiva m orra de inanição, sem dinheiro para pagar seus m em bros ou

funcionários públicos cooptados, u m a vez que o dinheiro é a alm a de qualquer organização

crim inosa. (B A D A R Ó ; B O T T IN I, 2016). E sse rastreio da origem dos recursos é necessário

u m a vez que o dinheiro não denota sua origem , valendo a m áx im a pecunia non olet (RIOS,

2010).

P ara controlar todos os atos financeiros e com erciais usados para m ascarar diversos

bens, o B rasil adotou um sistem a de colaboração com pulsória entre o setor público e o

p rivado29, em que profissionais e entidades que trabalham em setores m ais usados por

crim inosos para ocultação de recursos devem no tificar autoridades públicas sem pre que

tom arem conhecim ento de operações suspeitas, com o transações com altos valores em espécie

ou depósitos fracionados. E stes setores, onde em função de sua atratividade incluem as

instituições financeiras, são caracterizados com gatekeepers (torres de vigias), u m a vez que

atuam em setores econôm icos que servem de trilh a para o capital oriundo dos delitos

antecedentes (B A D A R Ó ; B O T T IN I, 2016; R IO S 2010)

L ogo, ainda antes da declaração de G uerra ao Terror, o tem a lavagem de dinheiro

alcançou grande destaque na agenda internacional, despertando preocupações que rem ontam à

idealização da C onvenção de V ien a pela O rganização das N ações U nidas, assinado em 20 de

dezem bro de 1988. C om este docum ento, o B rasil com prom eteu-se, ju n ta m e n te com outros

países, a com bater o tráfico de entorpecentes, crim e percursor do controle de lavagem de

dinheiro. C om o intuito de efetivar o acordo, diversas leis foram criadas pelo m undo

(A N S E L M O , 2010; M O T T IS , 2010).

A Lei 9.613 de 3 de m arço de 1998 dispõe então sobre o crim e de lavagem e a

prevenção da utilização do sistem a financeiro para dar aparência de lícita para recursos

provenientes das atividades ilícitas, em consonância com m ovim ento m undial que inclusive

antecederam o ataque de 11 de setem bro. Influenciado pelo direito norte-am ericano e alem ão,

optou-se pela adoção do vocábulo “lavagem de dinheiro” , em detrim ento a denom inação

“b ranqueam ento” , adotada pela B élgica, França, P ortugal e E spanha, po r sua conotação racista

e por não estar presente na linguagem form al de nosso país (JO B IM ; 2010; R IO S , 2010).

C om o advento da lei, o crim e de lavagem som ente era considerado se houvesse a

in cidência de algum dos cham ados crim es antecedentes arrolados pelo A rtigo 1° da Lei 9.613,

29 Mesmo modelo adotado na União Europeia, conforme Diretiva 91/308/CEE. (CORDERO, 2001).

33
em u m a relação exaustiva, aplicando o p rincípio da taxatividade, conform e percebe-se pela

leitura do texto abaixo colacionado:

Art. 1. Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição,


movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta
ou indiretamente, de crime:
I - de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;
II - de terrorismo e seu financiamento;
III - de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua
produção;
IV - de extorsão mediante seqüestro (sic);
V - contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para
outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou
preço para a prática ou omissão de atos administrativos;
VI - contra o sistema financeiro nacional;
VII - praticado por organização criminosa.
VIII - praticado por particular contra a administração pública estrangeira.
(BRASIL, 1996).

A existência deste rol taxativo de tipos penais que deveriam preceder os atos de

lavagem de dinheiro já dem onstrava um a evolução das legislações de com bate ao ilícito de

prim eira geração, quando som ente estaria tip ificad a a ocorrência do crim e se fosse p reced id o

de tráfico de drogas, porém apresentavam ainda alguns inconvenientes com o ferram enta efetiva

na G uerra ao T erro r. E m que pese a legislação tratar o terrorism o com o um crim e precedente,

som ente em 2016 a Lei 13.260 regulam entou o inciso X L III do artigo 5° da C onstituição

F ederal e criou um m arco legal para delim itar o entendim ento do term o T errorism o (S A A D -

D IN IZ , 2014). A lém do m ais caso os atos terroristas fossem financiados por recursos derivados

da sonegação fiscal, po r exem plo, não estaria enquadrado com o lavagem de dinheiro.

E ntão, respondendo a estas lacunas em decorrência a o m ovim ento internacional de

endurecim ento da legislação sobre o tem a nos dias posteriores aos atentados de 11 de setem bro,

as m udanças propostas pela Lei 12.683 de 09 de ju lh o de 2012 extinguiram o rol taxativo,

passando a considerar qualquer delito praticado com o crim e antecedente.

D esta fo rm a A lei 9.613/1998 resum iu, de fo rm a breve e direta, o conceito de lavagem

de dinheiro em seu A rtigo 1°, in verbis, j á com as alterações im postas pela Lei 12.683/2012:

Art. 1. Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição,


movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta
ou indiretamente, de infração penal (BRASIL, 2012).

34
CONSELHO DE CONTROLE DE ATIVIDADES FINANCEIRAS (COAF)

O C O A F, órgão principalm ente de prevenção (e não de repressão), foi criado pela Lei

no 9.613/98, com a finalidade de receber, exam inar e identificar as suspeitas de lavagem de

capitais; aplicar as penas adm inistrativas correspondentes e disciplinar a m atéria disposta na

lei, exercendo, papel crucial no com bate à lavagem de dinheiro.

A regulam entação, m onitoram ento e supervisão das instituições autorizadas para que

im plem entem políticas, procedim entos e regras de controle para detecção e prevenção a

lavagem de dinheiro e a com unicação das situações e operações suspeitas que envolvam seus

clientes ao C O A F cabe ao B anco C entral do B rasil, conform e detalhado na F igura abaixo:

F igura 1 - E ix o de A tuação do B A C E N n a P revenção à L avagem de D inheiro

C lie n te s

Fonte: B A C E N , 2019.

A criação do C onselho decorreu diretam ente de com prom issos internacionais

assum idos pelo B rasil nas convenções de V iena, P alerm o e especialm ente na de M érida,

ratificada pela O N U em 2003, que dedicou dispositivo específico ao com bate ao crim e de

lavagem de dinheiro, im pondo aos E stados signatários a instituição de rígidos controles

adm inistrativos sobre setores que estão no cerne dessa espécie de delito, assim com o a adoção

de m edidas de fom ento à cooperação internacional, conform e texto abaixo colacionado:

Artigo 14: Medidas para prevenir a lavagem de dinheiro


1. Cada Estado Parte:

35
a) Estabelecerá um amplo regimento interno de regulamentação e supervisão
dos bancos e das instituições financeiras não-bancárias, incluídas as pessoas
físicas ou jurídicas que prestem serviços oficiais ou oficiosos de transferência
de dinheiro ou valores e, quando proceder, outros órgãos situados dentro de
sua jurisdição que sejam particularmente suspeitos de utilização para a
lavagem de dinheiro, a fim de prevenir e detectar todas as formas de lavagem
de dinheiro, e em tal regimento há de se apoiar fortemente nos requisitos
relativos à identificação do cliente e, quando proceder, do beneficiário final,
ao estabelecimento de registros e à denúncia das transações suspeitas;
(...)
5. Os Estados Partes se esforçarão por estabelecer e promover a cooperação
em escala mundial, regional, sub-regional e bilateral entre as autoridades
judiciais, de cumprimento da lei e de regulame
ntação financeira a fim de combater a lavagem de dinheiro (BRASIL, 2006).

R ecentem ente, o C O A F foi vinculado ao B anco C entral e transform ado na U nidade

de Inteligência F inanceira (U IF) pela M ed id a P rovisória 893, buscando:

(...) o alinhamento à nomenclatura adotada nas recomendações internacionais,


assim como a superação de imprecisão de que se ressente a atual denominação
do COAF, no que se refere à essência do seu papel (...), a denominação
atualmente adotada parece sugerir papel de controle de atividades financeiras,
que não corresponde, precisamente, ao efetivo espectro de competências do
órgão (BRASIL, 2019).

Porém esta alteração de nom enclatura foi rejeitada pelo C ongresso N acional, no

m om ento da conversão da M ed id a P rovisória em lei, bem com o tam bém foi sua alocação no

âm b ito do M inistério da Ju stiça e S eg u ran ça P ú blica. A m aioria dos deputados decidiu po r sua

m anutenção com o originariam ente concebida, qual seja, na estrutura do M inistério da

E co n o m ia e com a nom enclatura C O A F.

CONCLUSÃO

A pós a realização da pesquisa proposta, conclui-se po r u m a aderência a legislação

b rasileira de com bate e prevenção a lavagem de dinheiro as m edidas externas, com andadas

claram ente pelos E stados U nidos da A m érica, num m o v im en to de harm onização das

legislações estrangeiras sobre o tem a, m esm o que a Lei 9613 anteceda aos atentados de 1 1 de

setem bro, evidenciando que o caráter de transnacionalidade do crim e de lavagem de dinheiro

dem onstra a necessidade de seu com bate através de instrum entos de cooperação internacional.

Porém não percebe-se que este m ovim ento decorra de u m a perda de soberania nacional

em legislação penal, um a vez que trata-se de um m ovim ento natural em um processo de

globalização, onde transações financeiras internacionais são facilitadas com o crescente uso de

36
aparelhos celulares (smartphones) com o canais de transações financeiras, im pondo ao m ercado

financeiro um grande im pacto do crescim ento da m obilidade, principalm ente pelo crescim ento

e consolidação de fintechs voltadas para o tem a, necessitando de um regram ento m ínim o

com um .

C onform e explicitam os na introdução não tratam os do tem a de regulam entação do

B anco C entral as Instituições Financeiras, um dos m ais im portantes gatekeepers no com bate a

este crim e, onde percebe-se de form a m ais clara a evolução do regram ento preventivo,

aplicando um ganho de m aturidade do sistem a, que m igrou de regram entos de conform idade

técn ica para um processo centrado na aferição de sua efetividade, determ inando que as

instituições financeiras avaliem a eficácia de sua política, dos procedim entos e dos controles

adotados e requer a elaboração de plano de ação que vise solucionar as lacunas identificadas

na avaliação de efetividade, restando este tem a com o sugestão para estudos posteriores.

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40
COLONIALISMO E CONSTRUÇÕES IMAGINÁRIAS DO FEMININO
NO BRASIL DO SÉCULO XVI: UMA LEITURA FEMINISTA E
DECOLONIAL

A M A N D A C O U T IN H O D E S O U Z A 30
T Â N IA R E G IN A Z IM M E R M A N N 31*

INTRODUÇÃO

A p artir do pós-estruturalism o e da virad a linguística, torn o u -se im portante rever

epistem ologias que consideravam a existência de um sujeito universal m asculino. Saberes até

então consolidados na academ ia com o de L evi-S trauss, F reud e L acan são questionados pela

epistem ologia fem inista (H A R D IN G , 1997). U m regim e de verdade fora posto por alguns

séculos e as m ulheres não eram sujeitos históricos. U m a bio lo g ia dos corpos (L A Q U E U R ,

2001) se in stitucionaliza a p artir do século X V III, ditando os padrões da norm alid ad e com

vistas a m an ter a hierarquia e subordinação das m ulheres e dem ais gêneros que não se

encaixavam . N essa biologia, as diferenças são traçadas e o binôm io m ulher natureza e hom em

razão se im põe. D aí os discursos da heterossexualidade com pulsória (W IT T IN G , 1992)

estavam espalhados na religião, no E stado, na fam ília e nas instituições de ensino até o

hodierno.

P ara entender essas im posições de saberes patriarcais e m isóginos, farem os um a

pesquisa b ibliográfica qualitativa com apoio teórico em discussões pós-estruturalistas e de

natureza interdisciplinar, focando na relação do colonizador com as colonizadas no B rasil

colonial e com o essas relações de p o d er incidiram sobre um a dupla natureza em relação a

sexualidade fem inina. A liado da m etodologia, estão os conceitos basilares com o gênero em

B u tler (2015), sexualidade em F oucault (1985) heterossexualidade com pulsória em W itting

(1992), colonialism o em M c C lintock (2010), raça e classe em Q uijano (1999). O encontro

entre civilizações nos trópicos revelou u m a dupla natureza a dom inar em solo brasileiro. A

natureza virgem igualava-se a virgem dos lábios de m el. T am bém se via a paisagem colonial

com o fem inina. P elos atributos da sexualidade, raça e classe inventadas pelos europeus

30Acadêmica do curso de História da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul.


31 Professora do curso de licenciatura em Química e da pós-graduação em Educação da UEMS. Orientadora do
PIBIC e TCC desta pesquisa.

41
assegurava-sea dom inação da população nos trópicos, elim inando signos de resistên cia com o

as m ulheres não brancas ancestrais depreciando-as.

DESENVOLVIMENTO

O colonialism o é utilizado com o m arcador determ inante da história, enquanto outras

culturas são caracterizadas apenas com o um a relação cronológica preposicional a um a era

eurocêntrica que acabou (pós) ou ainda nem com eçou (pré), subm etendo-as à linha do tem po

europeu e revelando um a resistência em abandonar o privilégio de enxergar o m undo através

de um a abstração singular e a-histórica. (M C C L IN T O C K , 2010, p. 30) O u seja, o fem inism o

se m ostrou incapaz na categoria “m ulher” , de diferenciar as várias histórias e os desequilíbrios

de poder entre as m ulheres, assim com o a categoria “pós-co lo n ial” pode ten d e r a ver o globo

através de form as genéricas e desprovidas de n uança política. (M C C L IN T O C K , 2010, p. 31)

A instabilidade do term o colonialism o do gênero é ainda m aior quando se trata das

m ulheres, tendo em vista que elas realizam dois terço s do trabalham e recebem 10% da renda,

além de serem proprietárias de m enos de 1% da propriedade. N enhum E stado pós-colonial se

preocupou em garantir que hom ens e m ulheres tivessem o m esm o acesso aos direitos e recursos

do E stado-nação. P elo contrário, as n ecessidades das nações pós-colonial têm sido

intensam ente voltadas para aspirações m asculinas, posto que a própria representação do poder

nacional se alicerça em construções prévias do poder do gênero, assegurando que hom ens e

m ulheres não vivam o pós-colonial do m esm o m odo. (M C C L IN T O C K , 2010, p. 34-35)

O colonialism o é utilizado com o m arcador determ inante da história, enquanto outras

culturas são caracterizadas apenas com o u m a relação cronológica preposicional a um a era

eurocêntrica que acabou (pós) ou ainda nem com eçou (pré), subm etendo-as à linha do tem po

europeu e revelando u m a resistência em abandonar o privilégio de enxergar o m undo através

de um a abstração singular e a-histórica. (M C C L IN T O C K , 2010, p. 30) O u seja, o fem inism o

se m ostrou incapaz na categoria “m ulher” , de diferenciar as várias histórias e os desequilíbrios

de poder entre as m ulheres, assim com o a categoria “pós-co lo n ial” pode ten d e r a ver o globo

através de form as genéricas e desprovidas de n uança política. (M C C L IN T O C K , 2010, p. 31)

R aça, gênero e classe não são fatores distantes ou isolados entre si. (C U R IE L, 2007)

E les existem em relação entre si e através dessa relação. N o m apa de H aggard, sobre a Á frica,

as m inas de diam ante correspondem especificam ente ao lugar da sexualidade fem inina -

42
reprodução po r gênero - , a fonte do teso u ro - produção econôm ica - e o lugar da disputa

im perial - diferença racial (M C C L IN T O C K 33, 2010, p. 19).

M apa 1 - “ A situação da terra”

In: MC CLINTOCK, 2010, p. 16

E m K ing S olom on’s M ines - A s M inas do R ei Salom ão - , há um m apa que é a cópia

de um outro, responsável por levar três ingleses brancos às m inas de diam ante de K ukuanaland,

em algum lugar localizado no sul da Á frica. A versão original foi produzida em 1590, por um

m ercad o r português, José da Silvestre, quando estava m orrendo de fom e no “ seio” de um a

m o ntanha cham ada Seios de Sheba. P o r m eio de u m a “ lasca de osso” alim entada do próprio

sangue do m ercad o r e restos de um linho am arelo arrancado de sua roupa, riscou o m apa

Silvestre. (M C C L IN T O C K , 2010, p. 15)

O m apa de H aggard se distingue dos dem ais m apas das narrativas coloniais po r ser

evidentem ente sexual, u m a vez que nele a terra é fêm ea e m apeada em fluídos corporais

m asculinos. A fálica de osso de Silvestre se to rna o órgão po r m eio do qual é legado o

patrim ônio do capital excedente a seus herdeiros brancos, oferecendo-lhes autoridade e poder.

D entro da h erança colonial m asculina, há u m a tro ca fundam ental: a h erança patrilinear branca

33 O uso mais intensivo deste texto deve-se as suas interlocuções entre psicanálise e o materialismo histórico e
suas abordagens permitem uma leitura feminista no continente ocidental africano e no Brasil colonial.

43
é garantida apenas com a m orte de G agool - "mãe, v elh a m ãe" e "gênio do m al da terra" - ,

vingando a m orte de Silvestre. Portanto, alude um a ordem oculta da m odernidade industrial: a

conquista da força sexual e de trabalho das m ulheres colonizadas. (M C C L IN T O C K , 2010, p.

17) O ra o que essa representação tem a ver com o B rasil? E sse im aginário de d o m inação é

incorporado em práticas discursivas na construção da conquista.

N o m ap a existe um paradoxo: po r um lado, retrata um trech o do cam po que os hom ens

b rancos devem atravessar até as riquezas das m inas de diam antes, e po r outro lado, se o m apa

fo r invertido, se transform a em um diagram a do corpo fem inino, que se encontra esticado e

incom pleto - as únicas partes desenhadas rem etem à sexualidade fem inina. N a narrativa, os

viajantes cruzarão o corpo a partir do sul, iniciando perto da cabeça, que é rep resen tad a pela

“ poça de água ru im ” encolhida - a sintaxe m utilada, substituindo o lugar da inteligência e

criatividade fem inina po r um a degeneração. (M C C L IN T O C K , 2010, p. 17) A degeneração

será um discurso constante do colonizador português no B rasil e depois adentra a

intelectualidade b rasileira no século X X com o P aulo P rado e G ilberto Freyre. (SW A IN , 1996)

N o centro do m apa, estão os dois picos de m ontanhas, os Seios de Sheba - dos quais as

cordilheiras se am pliam para am bos os lados com o braços sem m ãos. O com prim ento do corpo

rem ete ao cam inho real da E strad a de Salom ão, levando dos seios congelados até o um bigo

koppie direto com o um a seta ao m onte público, cham ado na narrativa de “ Três B ruxas” e

figurado po r um triângulo de colinas cobertas de “ escuras u rze s” , que aponta, sim ultaneam ente,

para as entradas de duas passagens proibidas e ocultas: a “b o ca da caverna do tesouro” - a

entrada vaginal, à qual os hom ens são levados pela m ãe negra, G agool - e atrás dela, a fossa

anal, pela qual eventualm ente os hom ens passarão com os diam antes, num ritual de nascim ento

m asculino, que causa a m orte da m ãe negra, G agool. (M C C L IN T O C K , 2010, pp. 17-18)

Os genitais fem ininos no m ap a são cham ados de Três B ruxas. E n q u an to as Três B ruxas

apontam a presença de forças fem ininas alternativas e noções africanas alternativas de tem po

e conhecim ento, H aggard se defende da am eaça de u m a força fem inina e africana resistente,

dispondo com violência a poderosa figura de m ãe na narrativa e colocando os quatro pontos

cardeais ao lado das Três B ruxas no m apa: ícone da “ razão” ocidental, da agressão técnica do

ocidente e da posse m asculina e m ilitarizada a terra. (M C C L IN T O C K , 2010, p. 18)

O logo da b ú sso la sim boliza a figura espalhada da m ulher, m arcada pelos eixos da

contenção global. N a escalada da m ina, carregando diam antes, os b rancos ingleses originam

três ordens: a ordem reprodutiva m asculina da m onogam ia patriarcal; a ordem econôm ica

b ran ca do capital m inerador; e a ordem política global do im pério. T anto o m apa quanto a

narrativa, revelam que essas três ordens estão relacionadas, posto que a aventura do capital

44
m in erad o r reinventa o patriarcado branco - especificam ente na form a de classe inglesa do

gentil hom em de alta classe m édia - com o herdeiro do "Progresso" im perial na chefia da

"Fam ília do H om em "- u m a fam ília que não adm ite a m ãe. (M C C L IN T O C K , 2010, p. 18)

O m ap a de H aggard incorpora o corpo fem inino com o um a geom etria da sexualidade

capturada sob a tecnologia da fo rm a im perial. N o entanto, tam bém m ostra que nenhum a leitura

do m apa está com pleta em si m esm a, pois cada um a evidencia a inversão representada por seu

outro lado reprim ido. S e olharm os com a autoridade m asculina da página im pressa, com os

pontos da bússola colonial e com os rótulos sangrentos, o m apa pode ser lido e o tesouro

alcançado, m as a m u lh er colonizada está de cabeça para baixo. Se, ao contrário, invertem os a

página im pressa, deixando em pé o corpo da m ulher, as palavras sangrentas em seu corpo - de

fato a aventura colonial com o um to d o - se tornam incoerentes. D esse m odo, um a versão não

existe sem a outra. (M C C L IN T O C K , 2010, p. 18)

A “fálica lasca de osso” de Silvestre, além de um a ferram enta da insem inação m asculina

e do poder patriarcal, sim boliza a despossessão racial. Portanto, gênero aqui é u m a questão de

sexualidade e subordinação do trabalho e pilhagem im perial. C oncom itantem ente, raça é um a

questão de cor da pele e de força de trabalho, in cubada pelo gênero. (M C C L IN T O C K , 2010,

p. 19-20)

D e fato, os hom ens europeus foram os agentes m ais diretos do im pério, tendo em vista

que lideravam os navios, m anuseavam os rifles dos exércitos coloniais, eram donos e

supervisores das m inas e plantações com escravos, com andavam os fluxos globais de capitais,

elaboravam as leis das burocracias im periais e ao final do século X IX dom inavam e

gerenciavam 85% da superfície da Terra. A inda assim , a relação entre gênero e im perialism o

foi desconhecida e desprezada até m uito recentem ente p elos teóricos do im perialism o e do p ó s-

colonialism o. (M C C L IN T O C K , 2010, p. 20-21)

A s m ulheres colonizadas no B rasil participavam da reorganização colonial através de

seu trab alh o sexual e econôm ico - escravas, trabalhadoras agrícolas, serventes dom ésticas,

m ães, prostitutas e concubinas. E las tinham que negociar a instabilidade das relações com seus

próprios hom ens e as severas regras e restrições hierárquicas que com punham suas novas

relações com os hom ens e as m ulheres do im pério.

D entro desse processo, as m ulheres coloniais experim entaram os privilégios e as

contradições sociais do im p erialism o de form a distinta dos hom ens coloniais. T ivessem elas

em barcado com o condenadas ou recrutadas - para a servidão dom éstica ou sexual - , casado

com oficiais coloniais - dirigindo as fronteiras do im pério e gerando seus filhos e filhas - ,

adm inistrado escolas m issionárias ou enferm arias de hospitais em postos rem otos, trabalhado

45
para seus m aridos - lojas ou lavouras - , as m ulheres coloniais não puderam to m ar decisões

econôm icas ou m ilitares no im pério, e poucas delas tiveram participação em seus in ten so s

lucros. (M C C L IN T O C K , 2010, p. 21)

L eis da propriedade, leis do casam ento, leis da terra, e todas as dem ais violentas

decisões m asculinas as am arravam dentro de padrões de gênero carregados de desvantagem e

frustração, um a vez que os hom ens brancos elaboravam e executavam as leis e políticas

atendendo aos seus próprios interesses. A pesar disso, os privilégios da raça colocavam as

m ulheres brancas em posição de p o d er sobre as m ulheres c olonizadas e os hom ens colonizados,

o que as tornavam cúm plices, tanto com o colonizadoras, quanto com o colonizadoras. (M C

C L IN T O C K , 2010, p. 22).

E ssas discussões sobre o im aginário do colonizador europeu aqui no B rasil estavam

eivadas de representações sobre o fem inino e sua sexualidade e estas serão usadas para

construir o dom ínio im perial português em suas colônias na A m érica, Á frica e Ásia.

E m 1493, navegando em b u sca das Índias, C ristóvão C olom bo escreveu para casa sobre

os antigos m arinheiros errarem ao acreditar que a Terra fosse redonda, pois a form a dela

correspondia a um seio de m ulher. A im agem de u m a Terra fem inina, na form a de um seio

cósm ico, não rem ete a b ravura m asculina do explorador na sua m issão de conquistar, m as ao

seu incôm odo, consequência da ansiedade m asculina, da infantilização e do desejo pelo corpo

fem inino. E ste últim o é retratado com o m arcando a fronteira entre os cosm os e os lim ites do

m undo conhecido, e tal com o os seios de S h eb a em H aggard, segue u m a tradição de viagens

m asculinas com o um a erótica do alum bram ento. (M C C L IN T O C K , 2010, p. 43) O p o n to de

vista de B acon sobre um conhecim ento m undial produzido pela E uropa envolvia u m a geografia

im perial do poder e um erotism o: "eu venho na verdade", proclam ou, "trazer a vós a natureza

com todos os seus descendentes para p ô-la a vosso serviço e to rn á-la vossa escrava"

(FA R R IN G T O N , 1966)

N essas fantasias, o m undo ganhava u m a conotação fem inina e aberta espacialm ente

para a exploração m asculina. P ara R e n é D escartes, a propagação do conhecim ento m asculino

equivalia a um arranjo violento de propriedades que tornava os hom ens “ senhores e possuidores

da natureza” , e os fazia acreditar que a conquista im perial do globo encontrava sua figura e

sanção política na prévia subordinação das m ulheres com o u m a categoria da natureza.

(D E SC A R T E S, 1968)

A o cruzar os perigos de seus m undos conhecidos, os hom ens europeus ritualisticam ente

tornavam fem ininas as fronteiras e os lim ites. F iguras fem ininas eram incorporadas com o

fetiches nos pontos am bíguos de contato, nas fronteiras e nos orifícios da zona de disputa. Os

46
m arinheiros fixavam im agens fem ininas de m adeira nas proas de seus barcos e b atizavam -n os

com nom es fem ininos, os exploradores cham avam terras desconhecidas de áreas “virgens” , os

filósofos figuravam a “verd ad e” com o “ fêm ea” e fantasiavam sobre retirar o véu. D e inúm eras

form as, as m ulheres serviam com o figuras m ediadoras e lim inares po r m eio das quais os

hom ens se orientavam no, com o agentes do p o d er e do conhecim ento (M C C L IN T O C K , 2010,

pp. 47-48).

P ara Sw ain (1996) e C uriel (2007), a apropriação im aginária dos corpos fem ininos

atravessados pelo gênero, raça e classe era a garantia de dom inação dos colonizados. Esses

conhecim entos postularam as m ulheres com o seres inferiores, alvos da subordinação e

dom inação colonial, pois a terra e o corpo fem inino são um a co isa só. N as m ulheres coloniais,

o corpo enquanto m ulher é um território sem direito ao próprio corpo e ao próprio território.

M as as p ráticas nativas revelavam tam bém u m a anticolonialidade, por isso, Sw ain entende que

“ Os estudos fem inistas têm a tarefa de rever o lugar das m ulheres e a partilha do poder entre

os gêneros em sua historicidade, logo, em sua pluralidade, na infinita re-criação do hum ano”

(1996, p. 24).

Os projetos de dom inação im perial portuguesa articulavam três categorias (gênero, raça

e classe) m esm o que as vezes de m odo contraditório e em conflito, m as tam bém recíprocas. O

gênero é u m a categoria constitutiva do colonizador distorcendo nas com unidades colonizadas

as suas próprias dinâm icas de gênero im pondo um novo conjunto de regras e restrições

h ierárquicas do im pério.

A vasta e fraturada arquitetura do im pério era eivada de gênero, raça e classe em

diferentes dinâm icas, com o po r exem plo m ulheres brancas estavam em m elhor posição de

p o d er do que os hom ens colonizados.A s m ulheres coloniais tam bém foram am biguam ente

situadas nesse processo, pois não tom avam nenhum a decisão nem colheram os lucros do

im pério.

A colônia brasileira se to rnou espaço de culto da dom esticidade e de reinvenção do

p atriarcado de prestígio, além do roubo das riquezas naturais. C om a v io len ta apropriação do

corpo, antes percebido com o espaço/território da autonom ia dos sujeitos, naquele período é

usurpado transform ando a v id a e a n atu reza em coisa. O colonizador inventa a biologização

das posições da raça e do gênero naturalizando os binarism os (hom em X m ulher; negro x

b ranco) na qual o universal se traduz no colonizador proprietário branco do norte com o natural

e inquestionável. O binarism o do um im plica nos outros com o alteridades defectivas e

dissidentes. A colonialidade introduz no p atriarcado a raça e o gênero biologizado, algo que

não havia antes.

47
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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U N B , B rasília, vol. 4, n. 2. 1996.

W IT T IN G , M onique. The Straight Mind and other Essays, B oston: B eacon, 1992.
D isponível em: < h ttp ://m ulheresrebeldes.blogspot.com .br/2010/07/sem pre-viva-w ittig.htm l>
A cesso em: 09 fev. 2021

48
O ENSINO DE ARTES VISUAIS DE CAMPO GRANDE-MS SOB UMA
PERSPECTIVA DECOLONIAL

A M A N D A M A M E D E 34

Resumo: O presente trab alh o propõe reflexões acerca do conhecim ento em artes visuais
corporificado no ensino da rede m unicipal de C am po G rande-M S, através um a análise de
conteúdo no R eferencial C u rricu lar da R ede M unicipal de E nsino (R em e) e na coleção didática
“P o r to d a pA R T E ” , da editora FTD , adotada pelas escolas da rede para o quadriênio 2020 -
2023. E ssa análise é realizada sob a perspectiva decolonial, p artir do m étodo h ip o tético -
dedutivo, com um a abordagem qualitativa e v isa com preender com o a lógica m oderna/colonial
estabelece hierarquias entre os referenciais europeus e estadunidenses, em detrim ento dos
latino-am ericanos. T ais hierarquias inscritas nas narrativas apresentadas pelos docum entos são
evidenciadas, nestas análises, a partir do diálogo entre as teo rias do currículo, os estudos
culturais em educação e a decolonialidade. N este cenário, destaca-se o papel da desobediência
docente com o alternativa possível ao enfrentam ento das estruturas opressivas de poder da
m odernidade/colonialidade, cujo reflexo no ensino de arte é a invisibilização dos referenciais
artísticos/culturais latino-am ericanos, ao passo que os euro-estadunidenses são privilegiados.

Palavras-chave: E nsino de arte; C urrículo; M anual didático; C olonialidade; A m érica Latina;


R epresentações.

Introdução

N o presente trabalho são apresentadas reflexões decorrentes dos resultados de um a

análise de conteúdo em recortes selecionados do caderno de L inguagens (V olum e 3 - A rte) do

R eferencial C urricular da R ede M unicipal de E nsino (R em e) da cidade de C am po G rande, no

estado de M ato G roso do Sul e da coleção didática “P o r to d a pA R T R ” , da editora FTD , que

foi adotada pelas escolas da rede m unicipal de ensino para o quadriêniio 2020-2023.

E stas reflexões são alicerçadas teórica e conceitualm ente na fortuna intelectual dos

estudos decoloniais e dos estudos culturais em educação, sob u m a perspectiva crítica aos

atravessam entos da m odernidade/colonialidade nos instrum entos curriculares pedagógicos. O

foco desta pesquisa são os conteúdos em artes visuais inscritos nesses instrum entos e a análise

de conteúdo, através de um a abordagem qualitativa fornece m eios de evidenciar com o a

34 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos


Culturais (PPGCult/CPAQ/UFMS). Licenciada e bacharel em Artes Visuais (FAALC/u Fm S). Bolsista da
Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul
(FUNDECT)

49
A m érica L atina é representada na narrativa da história da arte que os m esm os adotam . D este

m odo, objetiva-se, com estas análises, dem onstrar quais são os conhecim entos em artes visuais

corporificados no cu rrículo: são produzidos a p artir de qual lócus g eográfico e geopolítico?

E ssa pergunta abre m argens de interpretação acerca de qual narrativ a da h istória da arte o

ensino de artes visuais na rede m unicipal versa sobre.

A id entificação da narrativa (ou narrativas) ocorre através da investigação de pontos de

des/obediência (M O U R A , 2018), focalizando em desobediências possíveis, sem deixar de

com preender suas possíveis contradições e seus prováveis lim ites. C onform e o autor, a grafia

do conceito, separando o prefixo “ des” com u m a barra, é devido ao fato de que form ação e,

consequentem ente, a prática docente podem tan to contribuir para a m anutenção da

colonialidade, com o tam ém , através da desobediência, despertar a criticidade ao olhar sobre as

realidades socioculturais, históricas e artísticas com uns à A m érica L atina, objetivando

transform á-las através da arte/educação. (2018, p. 116)

A des/obediência docente concebida por M o u ra parte do conceito de “ desobediência

epistêm ica” , cunhado por W alter M ignolo (2007), ao referir-se ao que A níbal Q uijano (1992)

aponta com o o cam inho para a crítica ao paradigm a da m o d ern idade/colonialidade35, que é

traduzido no “ desprendim ento” de nossos vínculos racionais/m odernos com a colonialidade.

(Q U IJA N O , 1992, p. 19). O desprendim ento de Q uijano, a desobediência epistêm ica de

M ignolo e a desobediência docente de M o u ra versam sobre a assunção de um a postura política

e crítica frente às estruturas opressivas da colonialidade com o padrão de poder m undial.

(Q U IJA N O , 1992; M IG N O L O , 2004, 2007, 2014)

C onform e M ignolo, a colonialidade é um a estrutura de níveis entrelaçados “ atravessada

por atividades e controles específicos tais com o a colonialidade do saber, a colonialidade do

ser, a colonialidade do ver, a colonialidade do fazer e do p ensar [...]” (2014, p. 17) E o autor

argum enta a favor da opção decolonial com o desobediência epistêm ica (M IG N O L O , 2007, p.

12).
D este m odo, a decolonialidade designa a assunção de um a postura crítica e

questionadora e presum e a b u sca da superação e libertação das diversas form as de opressão,

35 Conforme Mignolo, a colonialidade “abre uma porta analítica e crítica que revela o lado obscuro da
modernidade e o facto de nunca ter havido, nem poder haver, modernidade sem colonialidade.” (2004, p. 670) O
período considerado moderno, pós-colonização europeia no território americano, não aconteceria sem as invasões,
sem a exploração, sem a escravização, sem o genocídio e o sem roubo desenfreado dos recursos naturais das
Américas durante o período colonial. Foram os recursos humanos traficados e escravizados que construíram a
modernidade, enriquecendo a metrópole e, simultaneamente, arruinando as terras, a natureza e toda vida que aqui
habitava. E ainda, além da ruína dos recursos naturais e humanos, a colonização fabricou fissuras que por vezes
parecem irreparáveis no imaginário da população latino-americana até a contemporaneidade.

50
subalternização e negação dos m odos de ser, conhecer, saber, fazer, sentir e produzir das

sujeitas e sujeitos habitantes de territó rios que, com o fim do colonialism o, encontram -se sob

a lógica da colonialidade. A opção decolonial possui um “ potencial crítico de denúncia dos

distintos padrões de poder nascidos com a m odernidade/colonialidade, com o o capitalism o, o

racism o, o patriarcado, a intolerância contra religiões[...]” (N ETO , 2016, p. 18) e essas form as

de opressão operam através de diversos m ecanism os de v io lência m aterial e sim bólica, que

refletem nos instrum entos curriculares pedagógicos.

Portanto, a desobediência docente e a opção decolonial na perspectiva dos estudos

culturais viab iliza a crítica e o enfrentam ento da m odernidade/colonialidade, sobretudo no que

diz respeito ao estabelecim ento de um reconhecim ento enquanto habitantes do Sul global e isso

é um ponto fundam ental nos processos de ensino-aprendizagem - o que envolve o currículo e

os m anuais didáticos. A través desse entrelaçam ento entre a decolonialidade os estudos

culturais é possível evidenciar as estruturas opressivas de poder da colonialidade, pois

conform e M arisa Costa, R o sa Silveira e Luis H enrique Som m er, os estudos culturais

constitnuem um a ressignificação do cam po pedagógico onde “ questões com o cultura,

identidade, discurso e representação passam a ocupar, de fo rm a articulada, o p rim eiro plano da

cena pedagógica.” (2003, p. 54) E tais questões, ocupando o prim eiro plano da cena pedagógia

sob u m a p erspectiva decolonial, fornecem ferram entas para a prom oção de u m a subversão da

organização do sistem a-m undo m oderno/colonial, que desum aniza das sujeitas e os sujeitos

não europeus, habitantes do Sul global.

T ais questões dialogam , tam bém , com as teorias críticas do currículo. C onform e T om áz

T adeu da Silva, “fazer perguntas sobre representação é, pois, um a das form as centrais de um a

estratégia crítica de análise do currículo. Q uais grupos sociais estão representados no

conhecim ento corporificado no currículo? [...]” (2013, p. 194). T ais representações são

atravessadas pelas estruturas da m odernidade/colonialidade pois essa organização do sistem a-

m undo em centro (N orte) e periferias (Sul) reflete na problem ática, quando m irada sob u m a

perspectiva crítica, do conhecim ento legítim o corporificado nos currículos ser pautado em

relações de dom inação-subordinação a partir do estabelecim ento de hierarquias

epistem ológicas que subjugam m odos de conhecer, ser, saber e p roduzir não europeus, com o

afirm am M iguel A rroyo (2011) e Jurjo Torres Santom é (2013).

51
Corpus documental: Referencial Curricular da Rede Municipal de Ensino (Reme) e
coleção didática “Por toda pARTE”

O recorte de análise do presente artigo corresponde às O rientações C urriculares de

artes visuais para os anos finais do ensino fundam ental apresentadas pelo caderno de

L inguagens (V olum e 3 - A rte) do R eferencial C urricular da R ede M unicipal de E nsino (R em e)

da cidade de C am po G rande-M S e às páginas da coleção didática “P o r to d a pA R T E ” , da editora

F T D que correspondem à U nidade T em ática A rtes V isuais. O bserva-se a inclusão de páginas

selecionadas cuja U nidade T em ática é A rtes Integradas, o que se justifica em razão das

linguagens e abordagens presentes nesses conteúdos - m ajoritariam ente referentes ao

h ibridism o entre as linguagens, sobretudo as que envolvem o audiovisual, a arte digital, a

perform ance, o happening e a instalação.

A coleção didática “P o r to d a pA R T E ” , da editora FTD , aprovada no E dital 04/2015 -

C G PL I (C oordenação-G eral dos P rogram as do L ivro), cuja divulgação ocorreu através da

P o rtaria n° 62, de agosto de 2017, com põe o P rogram a N acional do L ivro e do M aterial

D id ático (PN L D ) durante o p eríodo de 2020 a 2023 e foi adotada pelas escolas da R ede

M unicipal de E nsino de C am po G rande-M S para o com ponente curricular A rte para os anos

finais do ensino fundam ental. D este m odo, am bos os instrum entos pedagógicos podem

forn ecer um panoram a acerca dos processos de ensino-aprendizagem em artes visuais

desenvolvidos pelas escolas da rede m unicipal.

A s O rientações C urriculares de artes visuais são apresentadas com um texto

in trodutório com um e, em sequência organizadas em conteúdos/conhecim entos/habilidades de

cada ano do ensino fundam ental em form a de quadros, contendo três colunas, sendo: 1.

Conhecimentos e Especificidades da Linguagem ; 2. O bjetos de C onhecim ento e 3.


H abilidades R elacionadas, específicas para cada ano escolar e, ao final da tabela, um a seção

de R ecom endações que possui um a parte com um aos quatro anos e u m a parte específica para

cada ano. Os Conhecimentos e Especificidades da Linguagem , foco destas análises,

com preendem :

P ara o 6° ano: P ovos Pretéritos: A rte Paleolítica, A rte N eolítica, A rte R upestre, A rte

R upestre no B rasil e em M S, Idade A ntiga: A rte no E gito A ntigo, A rte M esopotâm ica e “A rte

G reco-R om ana” ; para o 7° ano: Idade M édia: A rte C ristã Prim itiva, A rte B izantina, A rte

G ótica, Idade M oderna: R en ascim en to (Itália, A lem anha e P aíses B aixos), M aneirism o,

A m érica P ré-C olom biana (M aias, A stecas, Incas e Povos Indígenas do B rasil) e R ococó; para

8° ano: Idade C ontem porânea: N eoclassicism o, N eo classicism o no B rasil, R om antism o,

52
R om antism o no B rasil, R ealism o, Im pressionism o, P ós-Im pressionism o, P ontilhism o,

E xpressionism o, E xpressionism o no B rasil, Fauvism o, C ubism o, A bstracionism o, D adaísm o,

S urrealism o e M odernism o no B rasil e para o 9° ano: A rte C ontem porânea: Op-Art, Pop-Art,

E xpressionism o A bstrato, H iper-R ealism o, A rte C inética, A rte C onceitual, T endências

C ontem porâneas e N ovas M ídias: G rafite, A rte Povera, Land Art, A rte C onceitual,

M inim alism o, Performances, Happenings, Média Art e Body Art e ao final, A rte

C ontem porânea: A rte C ontem porânea B rasileira e A rte C ontem porânea L atino-am ericana.

P ercebe-se que o currículo privilegia m ovim entos/conceitos/tendências artísticas

ouriundos da E uropa dos E stados U nidos da A m érica (E U A ) em detrim ento de

m ovim entos/conceitos/tendências de outras regiões. E m um a p ersp ectiv a quantitativa36, são

dezenove subitens de países europeus, dezenove dos E U A , seis do B rasil e cinco de outras

regiões geográficas/geopolíticas - que são E gito, M esopotâm ia, R ússia, as m anifestações da

A m érica P ré-C olom biana e a A rte C ontem porânea L atino-am ericana.

O docum ento tam bém orienta, na seção de R ecom endações, o estudo da história da

arte a partir da divisão cronológica da h istória “b asead a nos acontecim entos ocorridos na

E u ro p a” (C A M PO G R A N D E , 2020, p. 86, 93, 98, 99, 104) e essa orientação é bastante

problem ática, do ponto de vista do ensino de arte de viés decolonial. D este m odo, é bastante

lim itado conceber um a sistem atização de conteúdos em um a ordenação cronológica histórica

desde a E uropa e tal questão torna-se ainda m ais acentuada com a disposição dos itens e

subitens referentes aos m ovim entos/conceitos/tendências artísticas não europeus e

estadunidenses sem pre após os m esm os. P ara todos os anos, os subitens que abarcam a

produção brasileira, sul-m ato-grossense e latino-am ericana são apresentados apenas ao final,

por últim o.

E sse panoram a hieraquizado entre as produções em arte/cultura produzidos pelo N orte

e pelo Sul global tam bém é encontrado na seleção de referenciais da coleção didática “P o r toda

pA R T E ” . E m b o ra a produção brasileira seja bastante evidenciada ao longo dos quatro volum es

analisados, as produções artísticas/culturais de outros países do territó rio latino-am ericano são

neglicenciadas, sobretudo se com paradas às de países da E uropa ocidental.

N o recorte selecionado, para o 6° ano são apresentados quatro artístas/coletivos da

36 Cabe destacar que os subitens que compreendem a Arte Paleolítica, Arte Neolítica e Arte Rupestre não foram
tabulados neste levantamento quantitativo devido à dificuldade de poder afirmar uma “origem” precisa, no sentido
da possibilidade de poder se apontar de qual lócus geográfico e/ou geopolítico estas manifestações advém. No
entanto, não é incomum observarmos conteúdos de arte rupestre envolvendo as pinturas das cavernas de Lascaux,
na França, ou Altamira, na Espanha. Ademais, etimologicamente, ‘rupestre’ advém do francês rupestre, que se
refere à rocha/rochedo.

53
A m érica L atina (C uba e M éxico) e nove da E uropa (E spanha, H olanda, A lem anha, Portugal e

França); para o sétim o ano é exposto apenas um artista da A m érica L atina (A rgentina) e

dezessete coletivos do continente europeu (E spanha, A lem anha, França, R om ênia, Inglaterra,

S uíça, Á ustria, G récia, Itália, Irlanda e B élgica); para o oitavo ano, são três artístas/coletivos

da A m érica L atina (A rgentina e V enezuela) e doze da E u ro p a (Espanha, A lem anha, H olanda,

França, B élgica, Inglaterra, D inam arca, S uécia e B élgica) e, po r fim , para o nono ano não existe

nenhum artista/coletino do território latino-am ericano e são quatorze artistas/coletivos da

E u ro p a (Inglaterra, França, B élgica, Á ustria, Itália, S érvia e P o lô n ia ).

P ara estas análises, endende-se o livro didático com o um instrum ento com plexo que

possui m últiplas facetas, possibilidades e abordagens de análises. C onform e C irce B ittencourt,

o livro pode ser considerado um documento e, deste m odo, “ele p assa a ser analisado dentro de

pressupostos da investigação histórica e, portanto, objeto produzido em um determ inado

m om ento e sujeito de um a h istória da vida escolar ou da editora.” (2002, p. 86) É potente pensar

no livro didático com o objeto e tam bém com o sujeito, pois ele é um produto cultural, produzido

sob determ inados prism as do que é considerado o conhecim ento legítim o a ser apreendido

pelas/os estudantes, de acordo com determ inado tem po histórico e lócus geográfico; e tam bém

porque o livro didático é p ro d u to r (e/ou m antenedor) desse tem po h istórico e desse lócus

geográfico, que condicionam quais conhecim entos serão os legítim os, portanto, representados

em suas edições.

D este m odo, n esta pesquisa o livro didático é entendido com o fonte docum ental e de

conteúdos, suscetível à agência de terceiros, geralm ente professoras/es e estudantes, m as

tam bém com o agente, no interm édio das relações didático-pedagógicas, m etodológicas e

políticas. D ito de outro m odo, é com o o “fazer diferentes coisas e coisas dissidentes” com o

conhecim ento, a cultura e o currículo do qual Silva (2013, p. 188) discorre sobre. N essa

perspectiva, B ittencourt reflete que “ cabe ao p rofessor a tarefa de utilizar u m a m etodologia

que possibilite leitura e interpretação que despertem o sentido histó rico nas relações triviais da

sala de aula” (2002, p. 86)

N esta linha reflexiva, onde as/os autoras/es m encionados evidenciam a im portância da

agencia docente diante da m anipulação dos instrum entos didáticos curriculares, destacam -se

as potencialidades de se p ensar a form ação docente não apenas em sua dim ensão acadêm ica,

m as tam bém em um a dim ensão política e cultural. Isso ocorre devido ao fato de que a utilização

de m etodologias progressistas, po r exem plo, não é suficiente para o enfrentam ento das

estrututuras opressivas de p o d er da colonialidade. A p rática docente, em u m a perspectiva

decolonial, precisa ser versada em u m a postura crítica e com bativa aos cruéis m ecanism os sob

54
os quais as estruturas opressivas m odernas/coloniais subalternizam os conhecim entos em

arte/cultura produzidos fora do eixo euro-estadunidense.

Contestando o território do currículo através de uma mirada decolonial: a desobediência


docente entrelaçada às teorias críticas do currículo

T om az T adeu da Silva afirm a que apesar das narrativas serem atravessadas pelas linhas

do poder, elas não existem em cam pos tranquilos de im posição, pois

ao contar histórias contaminadas pelos significados dominantes, elas tentam


estabelecer e fixar identidades hegemônicas. Entretanto, as identidades e as
subjetividades sociais existem num terreno de indeterminação, num território de
significados flutuantes. Os significados produzidos e transportados pelas narrativas
não são nunca fixos, decididos de uma vez por todas. O terreno do significado é o
terreno da luta e contestação. (SILVA, 2013, p. 199, grifos da autora)

P o rtan to , adota-se um a p erspectiva crítica em diálogo com a decolonialidade e os

estudos culturais em educação, frente ao terreno do significado que Silva m enciona acim a.

D este m odo, tan to a desobediência docente (M O U R A , 2018), com o a evidenciação da cultura,

da identidade, do discurso e da representação de m odo articulado na cena pedagógica (C O STA ;

SILV E IR A ; SO M M ER , 2003) constituem cam inhos teóricos, conceituais, m etodológicos e

políticos diante do terreno da luta e da contestação acerca das relações de dom inação-

subordinação que se traduzem no estabelecim ento de hierarquias epistêm icas e epistem ológicas

que subjugam m odos de conhecer, ser, saber e produzir não europeus.

R efletir sobre as teo rias do currículo é bastante com plexo, pois seu saber específico,

conform e Silva, “não lida apenas com um conhecim ento sobre o indivíduo (com o a Psicologia),

m as com um conhecim ento sobre os nexos entre conhecim ento e indivíduo.” (2013, p. 187) Os

instrum entos curriculares, n essa perspectiva, não podem ser separados de seu caráter político

e histórico, ou seja, de sua construção sob determ inadas narrativas, pois essas narrativas, de

fo rm a explícita ou não, corporificam concepções particulares e específicas sobre o

conhecim ento, as form as de organização social e os diferentes grupos sociais.

Elas dizem qual conhecimento é legítimo e qual é ilegítimo, quais formas de conhecer
são válidas e quais não o são, o que é certo e o que é errado, o que é moral e o que é
imoral, o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio, quais vozes são
autorizadas e quais não o são. As narrativas contidas no currículo trazem embutidas
noções sobre quais grupos sociais podem representar a si e aos outros e quais grupos
sociais podem apenas ser representados ou até mesmo serem totalmente excluídos

55
de qualquer representação. [...] Assim, as narrativas do currículo contam histórias
que fixam noções particulares sobre gênero, raça, classe - noções que acabam
também nos fixando em posições muito particulares ao longo desses eixos. (SILVA,
2013, p. 190, grifos da autora)

N esse sentido, a concepção de arte e de ensino de arte corporificada no currículo da

R em e é reflexo nas narrativas inscritas nas estruturas da colonialidade; tais estruturas,

conform e Sim one R ocha de A breu, são traduzidas em “relações de poder que fizeram e

parcialm ente ainda fazem com que se repitam as definições de arte herdadas ou im postas pelos

países hegem ônicos com o se esses fossem im utáveis e universais” (2019, p. 951). C onceber

definições de arte com o im utáveis e universais, consequentem ente, dificu lta a busca pelo

conhecim ento em arte/cultura em relação às produções não euro-estadunidenses, bem com o a

p rópria produção desses conhecim entos. E m contrapartida, problem atizar essas definições

viabilizam cam inhos para o descortinam ento de um a agência p articu lar e situada diante das

convenções e definições no cam po da arte que vêm sendo perpetuadas com o universais,

hegem ônicas e excludentes.

P ortanto, com preendendo a construção social e política acerca dos conhecim entos

inscritos nas narrativas do currículo, considera-se a desobediência docente um a ferram enta

possível para “fazer diferentes coisas e coisas dissidentes com eles [...]” (SILV A , 2013, p. 188).

Isto é, a decolonialidade e a desobediência possibilitam descortinar os m ecanism os sob os quais

a m atriz de p o d er m oderna/colonial, que com preende o discurso ocidental europeu se pretende

universal sobre os m odos de ser, saber, fazer, entender, conhecer, sentir, produzir e existir não

europeus. T ais m ovim entos dentro da educação são urgentes e fundam entais visto que,

consoante ao que afirm a Silva, “ a distribuição desigual do conhecim ento, através do currículo

e da escola, constituem m ecanism os centrais do processo de produção e reprodução de

desigualdade social.” (2013, p. 185)

E sses processos de produção e reprodução da desigualdade social, consequência da

distribuição desigual do conhecim ento, através do currículo e da escola, encontram -se no seio

da “ contenda por interpretações e epistem ologias capazes de entender as contradições do social

e de fu n d am en tar outros projetos de sociedades, de cam po, de um viver m ais digno e m ais

hu m an o ” (A R R O Y O , 2011, p. 14) E na contenda a qual A rroyo se refere, Silva afirm a que

“ através das narrativas, identidades hegem ônicas são fixadas, form adas e m oldadas, m as

tam bém questionadas e disputadas” (2013, p. 199). A prática desobediente está inscrita no

âm b ito destes questionam entos e disputas e para M oura, o grande desafio de se pensar o ensino

de arte na contem poraneidade

56
como dimensão interrelacional dialógica, na perspectiva decolonial, está em
construir, desde a escola, como primeiro espaço democrático de produção do
conhecimento, olhares outros e, pela via antropofágica, deglutir o que não reflete a
imagem do que é a América Latina e seus povos, na busca da legitimação das imagens
que representam o que sempre foram. (MOURA, 2018, p. 26)

O autor evidencia, conform e enunciado acim a, que apesar de ser um desafio, o ensino

de arte em u m a p erspectiva decolonial possibilita o entendim ento da escola com o o prim eiro

espaço dem ocrático para a produção de conhecim ento versado em olhares outros e cita o

m ecanism o da antropofagia37 com o m eio para u m a seleção de conteúdos em arte/cultura que

desobedeçam à lógica colonial/m oderna em que os conhecim entos ditos “v erdadeiros” são

oriundos do N o rte global.

E ssa evidência do potencial de agência docente frente às estruturas opressivas da

m odernidade/colonialidade que perpetuam desigualdades sociais, raciais e de gênero é potente,

u m a vez que há um a estreita relação entre currículo e trab alh o docente. A rroyo levanta a

h ipótese de que o peso norm atizante atribuído aos currículos pode ser visto com o norm as e

diretrizes ao trabalho docente e “ aí adquire to d o sentido político a disputa dos profissionais no

território do currículo” (2011, p. 15). Isso ocorre, pois, conform e o autor, a form ação

pedagógica e docente gira em torn o da conform idade do profissional aos currículos, seus

conteúdos, norm as, diretrizes e avaliações e, sendo assim

não fomos formados-licenciados para o ensino de todo o conhecimento, mas


daqueles sistematizados e disciplinados nos currículos. Nos identificamos
profissionais desse conhecimento, dos conteúdos, de nossa disciplina que os
currículos e seus ordenamentos e diretrizes sintetizam como o conhecimento
legítimo. (ARROYO, 2011, p. 16)

D iante dos conteúdos traduzidos em m ovim entos/conceitos/tendências dos

Conhecimentos e Especificidades da Linguagem elencados pelo R eferencial da R em e e nas


nacionalidades das produções dos artistas/coletivos apresentados nas U nidades T em áticas

A rtes V isuais (e parte selecionada de A rtes Integradas) pela coleção didática “P o r toda

pA R T E ” , o exercício de um a prática pedagógica obediente à tais conteúdos diz respeito

exatam ente ao que A rroyo critica na citação acim a. A adoção de tais conteúdos, de form a

acrítica, sem o exercício da deglutição pela via antropofágica a qual O sw ald de A ndrade propôs

37 Para melhor compreensão do conceito utilizado, ver: “Manifesto Antropófago” em ANDRADE, Oswald de.
Obras Completas: do pau-brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. p. 11­
20. Disponível em <https://monoskop.org/images/9/94/Oswald-de-andrade-Obras_Completas-vol6.pdf> Acesso
em 30 out 2022

57
há quase cem anos e E duardo M o u ra referiu-se exatos noventa anos depois, reflete um a prática

político-pedagógica conivente com as estruturas m odernas/coloniais que prom ovem

hierarquias entre os conhecim entos em arte/cultura produzidos no eixo E u ro p a-E U A e países

do Sul global.

Portanto, levando em consideração a/o docente com o agente fundam ental para o

enfrentam ento dessas estruturas m o d ernas/coloniais que atravessam os processos envolvendo

os conhecim entos inscritos nos docum entos curriculares, é preciso cham ar atenção para a sua

form ação, não apenas acadêm ica, m as tam bém política e cultural. C onform e M oura, um a

prática docente política e cultural que busque rom per com a lógica m oderna/colonial associa-

se a u m a pedagogia de viés decolonial. (2018 p 116) E o horizonte do ensino de arte de viés

decolonial ancorado aos estudos culturais em educação, através da p rática docente m ediadora

tran sfo rm a “ o palco da escola em palco de negociações entre diversos saberes e variadas

culturas. D essa p erspectiva to d as as interpretações são im portantes, um a vez que revelam

h istórica e socialm ente os sujeitos culturais envolvidos.” (A Z E V E D O , 2003, p. 337)

A s breves discussões levantadas neste trabalho apontam para o entendim ento do

território do conhecim ento, dos significados e da interpretação com o passíveis de contestação

e desobediência. D este m odo, questionar, p ro b lem atizar e tensionar as narrativas

corporificadas nos instrum entos curriculares em diálogo com as perspectivas decoloniais é

im portante no sentido de concebê-los com o ferram entas potentes para conhecer e reconhecer

a(s) realidade(s) latino-am ericana(s), que é contrastante; e tam bém para desenvolver estratégias

e tra ç ar cam inhos possíveis p ara tran sfo rm ar essa realidade, rum o a subversão e ao

enfrentam ento da m atriz colonial, que é racista, classista, patriarcal e desum anizadora.

E m outras palavras, consoante ao que afirm am G óm ez e M ignolo, a perspectiva

decolonial propicia a construção de um cenário onde sujeitas/os habitantes de territórios

colonizados não aceitem a perm anência das relações de dom inação e controle e “ no solo

trab ajan para desprenderse de la colonialidad, sino tam bién para construir organizaciones

sociales, locales y p lanetarias no m anejables y controlables po r esa m atriz.” (2012, p. 8)

Perspectivas metodológicas

C onsiderando o fenôm eno da colonialidade do poder, do ser e do saber que atravessa

os processos educacionais, utiliza-se o m étodo dedutivo (R IC H A R D SO N , 2017, p. 28),

partindo da hipótese de que as vozes que ecoam a p artir do Sul são subalternizadas e

58
invisibilizadas nos currículos e processos de form ação docente em artes visuais, e som ente se

ouvem vozes im portadas do N orte. B usca-se, a p artir de u m a abordagem qualitativa, analisar

o conteúdo em recortes selecionados do docum ento curricular m unicipal e do livro didático

com o objetivo de aprofundar a com preensão e a discussão acerca dos m ecanism os sob os quais

o discurso construído com o dom inante, que com preende o sistem a m oderno/colonial, se

m antém hegem ônico e excludente nestes docum entos e práticas e se é realm ente possível, ou

até que ponto seria possível adotar um com portam ento desobediente frente à ordem de estru tu ra

social a qual tais docum entos produzem e tam bém são produto.

A análise de conteúdo visa aten d er aos objetivos que proprõem dem onstrar quais são

os conhecim entos em artes visuais corporificados no R eferencial da R em e e na coleção didática

“P o r to d a pA R T E ” para os anos finais do ensino fundam ental e, tam bém , apontar com o tais

conhecim entos corporificados no curriculo refletem nos processos e ensino-aprendizagem em

artes visuais de m odo a co ntribuir com a m anutenção das estruturas opressivas de p o d er d a

m odernidade/colonialidade.

Considerações finais

A p artir da análise de conteúdo realizada nos referidos recortes dos intrum entos

pedagógicos curriculares que orientam o ensino da rede m unicipal de C am po G rande-M S, é

possível concluir que am bos apresentam um viés obediente às estruturas opressivas de poder

da m odernidade/colonialidade. O u seja, a narrativa inscrita em seus conteúdos privilegia

conhecim entos em arte/cultura produzidos po r regiões do eixo E u ro p a-E U A e invisbiliza as

produções de países latino-am ericanos. Isso ocorre, principalm ente, através do aspecto

quantitativo, pelo núm ero de m ovim entos/conceitos/tendências de cada lócus geográfico

representados no R eferencial da R em e e pela quantidade de artistas/coletivos de países latin o -

am ericanos (com exceção do B rasil), que são m uito m enores quando com parados aos oriundos

de países europeus.

O R eferencial da R em e, além do privilégio de m ovim entos/conceitos/tendências

produzidos pela E uropa e pelos E U A em seus Objetos e Especificidades da Linguagem ,

tam bém recom enda o ensino de artes visuais a p artir dos acontecim entos históricos ocorridos

na E uropa. A coleção didática “P o r to d a pA R T E ” , apesar de evidenciar produções brasileiras

em arte/cultura, apresenta um a hierarquia entre as produções europeias e de outros países do

território latino-am ericano.

59
E ntretanto, o estabelecim ento do diálogo entre as teorias críticas do currículo, os

estudos culturais em educação e a decolonialidade torna possível, conform e apresentado ao

longo das discussões deste trabalho, a construção de um cenário de contestação das narrativas

que se pretendem hegem ônicas e universais inscritas nos instrum entos curriculares

pedagógicos. D estaca-se, portanto, o papel fundam ental de u m a agencia pedagógica versada

na perspectiva decolonial, que é traduzida em p ráticas de ensino desobedientes.

AGRADECIMENTOS

O presente trab alh o foi realizado com apoio da F undação de A poio ao D esenvolvim ento

do E nsino, C iência e T ecnologia do E stado de M ato G rosso do Sul (F U N D E C T ) e da

C oordenação de A perfeiçoam ento de Pessoal de N ível S uperior - B rasil (C A PES).

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61
CONFLUINDO TEMPORALIDADES: A MOBILIZAÇÃO CULTURAL DO
UNIVERSO RURAL ARGENTINO COMO ESTRATÉGIA DE
MANUTENÇÃO DO CONSENSO POPULISTA NO PRIMEIRO
PERONISMO (1946-1955)38

A N A L A U R A G A L V Ã O B A T IS T A *

Quem são os meus contemporâneos? — pergunta-se Juan Gelman. Juan diz que às
vezes encontra homens que têm cheiro de medo, em Buenos Aires, em Paris ou em
qualquer lugar, e sente que estes homens não são seus contemporâneos. Mas existe
um chinês que há milhares de anos escreveu um poema, sobre um pastor de cabras
que está longe, muito longe da mulher amada e mesmo assim pode escutar, no meio
da noite, no meio da neve, o rumor do pente em seus cabelos; e lendo esse poema
remoto, Juan comprova que sim, que eles sim: que esse poeta, esse pastor e essa
mulher são seus contemporâneos (GALEANO, 2002 - grifos do autor).

O trech o em destaque foi retirado da obra “ O livro dos abraços” do escritor u ruguaio

E duardo G aleano (2002), constituindo parte de um a sequência de pequenas crônicas que

tom am a figura do po eta e ativista argentino Juan G elm an com o personagem principal. M em bro

ativo dos m ovim entos de resistência de esquerda no decorrer da década de 60, sendo perseguido

por grupos de extrem a direita e obrigado a se exilar do país em 1975, G elm an lu tou contra o

regim e m ilitar ditatorial que se instaura na A rgentina com um golpe de E stado em 1976 e que

p erduraria até 1983. D entre as feridas que a ditadura deixa no argentino, as sessões de tortu ra

pelas quais sua filha h av ia passado e o assassinato de seu filho e de sua nora, que estava grávida,

alim entam os questionam entos que G aleano, em sua obra, atribui ao poeta.

A passagem em questão, a qual leva o títu lo de “ A arte e o tem p o ” , apresenta -nos a

relação entre essas duas dim ensões através da subjetividade do argentino, o qual, em seu

presente de dor e sofrim ento, identifica-se m ais com personagens de um outro tem po que

encontra em um poem a de um passado rem oto e que considera com o seus contem porâneos. A

arte, m ais especificam ente a poesia, parece possib ilitar o estabelecim ento de vínculos entre

duas experiências localizadas em dim ensões espaço-tem porais distintas e que, devido a

diversos fatores que perm eiam o presente do leitor, no caso G elm an, expressam a

“ contem poraneidade do não-contem porâneo” . E G aleano continua, na crônica seguinte,

38Trabalho elaborado como parte dos requisitos necessários para a avaliação da disciplina “Tempo Histórico,
Modernidade e Modernismo” vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História da UNESP-Franca/SP.
*Graduação em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP/Franca. O
presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

62
intitulada “P rofissão de fé” , afirm ando em nom e do argentino, que apesar dos m achucados da

vida “ [...] sem pre é possível encontrar contem porâneos em qualquer lugar do tem p o e

com patriotas em qualquer lugar do m undo” o que traria u m a espécie de alívio para continuar,

pois teria o hom em “ a sorte de sentir que é algo na in finita solidão do universo: algum a coisa

a m ais que um a ridícula partícula de pó, algum a coisa além de um m om entinho fugaz” .

(G A L E A N O , 2002).

A pesar do lirism o através do qual G aleano se refere à condição do poeta G elm an, a

escolha por iniciar este trabalho a partir das palavras do u ruguaio justifica-se pela concepção

de tem p o que nelas aparece. M ais especificam ente, pela im pressão transm itida de que esse

tem p o não é fixo, único ou linear, m as perm itiria conversões e deslocam entos, contatos entre

o passado, o presente e o futuro. A pesar das m últiplas interpretações possíveis, a grande

questão que se coloca é a que envolve o tem p o e o seu aparente caráter m últiplo.

A T eoria da H istória reserva u m a subárea específica para os estudos tem porais, o cam po

da M etafísica do T em po H istórico, o qual se ocupa das distintas form as e caracterizações que

a relação entre o presente, o passado e o futuro podem assum ir em um determ inado m om ento.

D entre as suas principais tendências, destaca-se a teo ria das “M últiplas T em poralidades” ,

ligada aos escritos do historiador alem ão R ein h art K o selleck .39

N a M etafísica koselleckiana, o tem po h istórico se constitui em m ulticam adas,

organizado a p artir de tem poralidades m óveis que apresentam velocidades diferentes e

convivem superpostas um as às outras. N esse sentido, qualquer presente sem pre é atravessado

por outros sedim entos do tem po que se m ovem em ritm os diferentes e se interferem

m utuam ente, o que denom ina de “ contem poraneidade do não-co n tem p o rân eo ” (K O S E L L E C K ,

2006, p. 196, 317). U m a noção de tem po m últiplo, a qual podem os relacio n ar com aquela que

G aleano (2002) nos apresenta tom ando G elm an com o seu eu-lírico e que possibilitaria

“ encontrar contem porâneos em qualquer lugar do tem p o ” .

A teo ria tem poral de K oselleck abrange tam bém o tratam ento do cam po dos “regim es

de tem poralidade” , os quais se referem à v ivência tem poral hum ana da articulação entre o seu

presente, o passado e o futuro. E ssa experiência histórica, de acordo com o historiador,

apresentaria dois im portantes balizadores tem porais por ele denom inados de “ espaço de

experiência” e “horizonte de expectativa” , localizados no passado e no futuro respectivam ente

39A discussão teórica envolvendo os trabalhos de Reinhart Koselleck e Stefan Helgesson aqui apresentada
constitui uma versão sintetizada da desenvolvida pela autora em Batista (no prelo).

63
(Ibid., p. 324). São esses m ovim entos em relação ao presente analisado que vão organizar em

regim es o tem p o histórico apresentado com o m ulticam ada:

Eles (o espaço de experiência e o horizonte de expectativa) constituem uma diferença


temporal no hoje, na medida em que entrelaçam passado e futuro de maneira desigual.
Consciente ou não, a conexão que criam, modificando- se, possui uma estrutura de
prognóstico. Talvez tenhamos ressaltado uma característica do tempo histórico que
pode indicar sua capacidade de se modificar (KOSELLECK, 2006, p. 313-314).

O final do século X V III, com o aponta K oselleck (2006), m ais especificam ente a partir

do desenrolar dos m ovim entos revolucionários na E uropa, teria inaugurado gradativam ente um

novo regim e de tem poralidade no O cidente: a M odernidade. A p artir de então, K o selleck

p ercebe o estabelecim ento de um novo horizonte de expectativa que deixa de apresentar um

caráter predom inantem ente teológico e assum e u m a fo rm a não espiritual (K O S E L L E C K , 2006,

p. 316-317). N esse sentido, diante dos progressos técn ico -in d u striais e da consequente

aceleração dos prazos e ritm os cotidianos, a era m oderna seria m arcada pelo distanciam ento

contínuo entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativa. C onform a-se, desse m odo,

u m a nova experiência do tem p o histórico, a qual se distanciar dos padrões repetitivos de um

passado determ inado pela palavra cristã, constituindo-se, assim , um regim e de tem poralidade

centrado no futuro, o qual deveria ser diferente tanto do passado com o do presente para se

confirm ar a expectativa do progresso (Ibid., p. 318).

E m produções m ais recentes, um a nova g eração de autores que se alinham à linhagem

k o selleckiana e reconhecem a im portância de seus conceitos, vem realizando trabalhos que

buscam v erificar em piricam ente esses aspectos teóricos no âm bito da experiência histórica.

D entre eles, um im portante nom e é o sul-africano Stefan H elgesson, tratando a questão do

tem p o a p artir do cam po da historiografia pós-colonial.

Os estudos tem porais de H elgesson (2014) partem de um a crítica direta à concepção

bin ária a p artir da qual m uitos pesquisadores identificados com a p erspectiva historiográfica

pós-colonial com preenderíam a ideia de tem poralidade. É visando superar essas interpretações

sim plificadas que restringem suas análises ou à especificidade local ou à força

hom ogeneizadora da m odernidade, que H elgesson (2014) realiza a sua atualização crítica da

teo ria koselleckiana. A pesar de responsabilizar negativam ente K oselleck por im posição da

experiência europeia de u m a m odernidade calcada no progresso a todo o O cidente, H elgesson

encontra um a possível solução ao rad icalizar a noção das m últiplas tem poralidades e as

categorias que a acom panham . D essa form a, elabora u m a concepção de tem po constituído

64
através de m ediações de diversas naturezas, o qual nunca seria exclusivam ente m oldado por

u m a tem poralidade hegem ônica, m as acom odaria diferentes ritm os conflituosos entre si.

R ecorrendo aos estudos do historiador indiano D ipesh C hakrabarty (2000), H elgesson

(2014) analisa obras literárias produzidas em distintos contextos p ós-coloniais as quais

dem onstrariam que, nessas sociedades, apesar da tendência ao sincronism o em relação ao

tem p o capitalista centrado no futuro e aos ritm os da m odernidade, existiriam tem pos locais

divergentes que conviveriam sim ultaneam ente com a tem poralidade hegem ônica do progresso,

dialogando com ela.

P ara H elgesson, as arenas coloniais e pós-coloniais, m esm o im ersas na tem poralidade

progressiva de K oselleck, produziriam dissonâncias à hegem onia da m odernidade europeia,

constituindo, assim , versões alternativas desse tem po m oderno linear e hom ogêneo

(H E L G E SSO N , 2018, p. 146). N o geral, H elgesson defende u m a m odernidade m ultitem poral,

m esm o que ainda eurocêntrica, incentivando a historiografia a detectar em outros discursos

coloniais ou pós-coloniais os conflitos entre essas distintas cam adas de tem po. N esse sentido,

pontua que a escrita literária apresentaria um potencial único de “ heterocronia” , em outras

palavras, u m a capacidade de conversão de experiências tem porais distintas em u m a m esm a

narrativa, utilizando-se, para isso, de form as reconhecidas no in terio r das redes discursivas

estabelecidas historicam ente (Id., 2014, p. 547).

N o presente trabalho, procura-se identificar a convivência e o conflito entre

tem poralidades dissonantes no caso da experiência histórica da A rgentina peronista (1 9 4 6 ­

1955), conjuntura que, apesar do deslocam ento espaço-tem poral, perm ite pensá-la com o um

exem plo de m odernidade alternativa nos term os de H elgesson. D esse m odo, p arte-se de

docum entos ligados ao projeto cultural do regim e que evidenciam o discurso populista do

peronism o e o que aqui se considera com o a sua capacidade de aproxim ar diferentes

tem poralidades, conversões que possibilitariam que o ím peto pelo progresso industrial e

técn ico da nação - para que esta se tornasse cada vez m ais u rb an a e m oderna - pudesse conviver

sim ultaneam ente com um universo rural e folclórico extensam ente veiculado pelas políticas e

propagandas oficias e pelos m eios de com unicação de m assa.

UM PROJETO CULTURAL “HETEROCRÔNICO”

A p ercepção de um a inserção p articular da m odernidade no caso do peronism o aqui

defendida deriva da conceitualização teó rica realizada po r E rnesto L aclau a respeito do

65
populism o. P ara L aclau (2013) o fenôm eno político em questão constitui um a form a específica

de articulação discursiva que perm ite constituir e organizar as relações sociais a p artir da

prom oção de determ inados sentidos com uns em sociedades fragm entadas em decorrência de

u m a crise de legitim idade. P ara que isso ocorra, o populism o operaria com o um conjunto de

ferram entas retóricas voltadas à articulação e à unificação sim bólicas das dem andas

insatisfeitas provenientes de diferentes setores sociais, buscando-se, assim , constituir um a

“ cadeia equivalencial” entre elas através da construção de um a identidade discursiva popular

(L A C L A U , 2013, p.97-103).

A prom oção de um a hom ogeneização ilusória dos valores, dos interesses e dos sím bolos

de um determ inado grupo social perm itiria resg atar u m a suposta unidade do corpo social, o que

se dá através da construção um aspecto sim bólico e afetivo transcendental capaz de representar

essa totalidade, alim entando um sentim ento de coesão social e de pertencim ento sim ultâneo a

um m esm o coletivo (IN C ISA , 1992, p. 982).

A s condições que tornam possível o surgim ento de governos populistas, sobretudo na

A m érica L atina, estão ligadas a m om entos de transform ação do cenário social de um

determ inado país, o que envolveria a decom posição de um sistem a social anterior. Tais

m udanças podem estar ligadas a processos de industrialização, im igração, urbanização, porém ,

com o coloca a historiadora M aristella Svam pa, o populism o não pode ser pensado com o um

m ero regim e de transição preso entre a tradição e a m odernidade, pelo contrário

O populismo é, antes, uma forma particular de inserir a "modernidade" no sistema


político latino-americano, [...] é, melhor dizendo, uma tentativa de articulação do
moderno com o tradicional [...] e a sua força advém precisamente da sua capacidade
de responder, do ponto de vista político, a esse anseio (e nostalgia) que atravessa toda
a modernidade e que consiste em reviver a "comunidade" no seio da "sociedade"
(SVAMPA, 2006, p. 282-283).40

A A rgentina da década de 30 é m arcada pelos processos de urbanização e de

industrialização de B uenos A ires, som ado ao aum ento da im igração para a capital de habitantes

das províncias do in terio r e de estrangeiros (SV A M PA , 2006, p. 271). N o âm bito político, o

país se encontrava sob o governo de oligarquias conservadoras que se m antinham no poder

através da corrupção e da com pra de votos. N este cenário, configura-se u m a crise de

legitim idade entre o sistem a institucional vigente e os grupos recém -chegados que se sentiam

excluídos da vida política e sim bólica da nação ao não terem atendidas as suas dem andas. Em

40Todas as traduções são traduções livres.

66
4 de Junho de 1943 um golpe sobre o governo argentino de R am ón C astillo dá início a um a

série de governos m ilitares que perdurariam até 1946 (C A PE L A T O , 2001, p.127-165).

D urante o período m ilitar, P erón atuaria na S ecretaria do T rabalho e S egurança Social,

criada em 1943, im plem entando um a política aproxim ada do cam po social, de abertura aos

trabalhadores. A aproxim ação com esses grupos recém -chegados e o atendim ento de algum as

de suas principais dem andas seria fundam ental para a conform ação da principal base eleitoral

que legitim aria a aliança nacio n al-p o p u lar proposta pelo peronism o e que apoiaria a sua eleição

em 1946 (M U R M IS; P O R T A N T IE R O , 2004, p. 178-179). D esde o início de seu governo,

P eró n procurou p rom over um a m aio r p articipação social e política desses setores, ao m esm o

tem p o em que em preendia diretrizes que visavam organizar e un ificar essa classe trabalhadora

de m odo a alim entar os discursos que tentavam aproxim á-la de sua figura e caracterizá-la com o

o suporte representacional da noção peronista de povo.

A perspectiva do progresso, sobretudo técnico-industrial, perm eia o discurso peronista

em seus alicerces fundam entais e o próprio P erón apresenta o seu governo com o u m a etapa

evolutiva rum o à “N o v a A rgentina” , a qual seria m arcada pela unidade, pelo bem -estar com um

e pela grandeza nacional. E m 21 de O utubro de 1946, na C âm ara dos D eputados da N ação,

P erón realizaria a apresentação geral do P rim eiro Plano Q uinquenal (PPQ ), planificação que

orientaria a ação governam ental durante o prim eiro m andato. N o evento, em discurso proferido

a políticos, funcionários públicos e convidados especiais, José Figuerola, então Secretário

T écnico da P residência da N ação, principal responsável pela elaboração do plano, afirm a que,

“ na atual etapa de nossa evolução econôm ica, a prom oção do b em -estar geral exige a propulsão,

m etódica e persistente, da industrialização do país” (S E C R E T A R IA T E C N IC A , 1946, p. 56).

O progresso tam bém orienta as deliberações a respeito da cultura e da educação na

A rgentina de Perón, as quais aparecem frequentem ente interligadas nos discursos oficiais. N o

C apítulo III da Constitución de la Nación Argentina (1949), o A rtigo n° 37 destaca a

C apacitação com o um dos direitos fundam entais dos trabalhadores, a qual, v isan d o “ o

m elhoram ento da condição hum ana e a proem inência dos valores do espírito” , reclam ava “ a

n ecessidade de propiciar a elevação da cultura e da aptidão profissional” (A R G E N T IN A , 1949,

p. 52). A ssim , caberia à sociedade civil “ estim ular o esforço individual de m odo a proporcionar

os m eios para que, em igualdade de oportunidades, todo indivíduo possa exercitar o direito de

aprender e de se aperfeiçoar^’ (Ibid., p. 52).

A s ações do M inistério da E ducação tinham com o alvo principal o ensino prim ário,

elaborando cartilhas que fom entavam u m a form ação predom inantem ente técn ica que

encam inhasse as crianças rum o ao cultivo da m oralidade e do patriotism o, utilizan d o -se do

67
sistem a educacional com o espaço de propaganda política e com o instrum ento para in cu lcar os

princípios do regim e nas fam ílias (G U T IÉ R R E Z , 2002, p. 5-34). A s políticas em preendidas

nas áreas da cultura e da educação visavam p rep arar o trab alh ad o r para o processo de

m odernização que o país vinha apresentando através da expansão territorial do sistem a

educacional argentino, incluindo-se as zonas rurais (SO R IA , 2010, p. 40).

M as as políticas culturais prom ovidas pelo governo peronista durante os seus dois

prim eiros m andatos, as quais ganhariam suporte através das iniciativas no âm bito educacional,

tam bém buscariam atender a um a outra dem anda que atingia a realidade do país e que pode ser

considerada de caráter tem poral, para além da n ecessidade de preparar e ordenar as m assas

rum o ao futuro da N o v a A rgentina. A análise dessas iniciativas culturais nos perm ite identificar

o contato e a convivênia entre distintos m odos tem porais que podem ser concebidas com o

“ heterocronias” indicadoras de u m a possível m odernidade alternativa.

C om o j á destado, as décadas de 1930 e 1940 na A rgentina são m arcadas pela

intensificação dos fluxos m igratórios internos de habitantes que, sobretudo devido à adoção de

políticas de substituição de im portações iniciadas pelos governos conservadores, deslocam -se

do in terio r provinciano para a capital B uenos A ires e passam a co m p o r o ainda incipiente

proletariado industrial da cidade. Segundo os dados apresentados po r T orcuato D i Telia, “ o

saldo im igratório interno, que até 1936 se m antinha em 8.000 (pessoas) anuais, salta

b ruscam ente para 72.000 po r ano entre 1936 e 1943, para chegar aos 117.000 anuais entre 1943

e 1947” , alcançando a proporção de 37 interioranos a cada 100 habitantes da capital (D I

T EL LA , 1983, p. 12, apud. SV A M PA , 2006, p. 271).

P ercebe-se, desse m odo, no d ecorrer dos processos de urbanização e m odernização a

p artir de m eados do século X IX , a conform ação de u m a população bastante heterogênea na

capital argentina, o que se intensifica às vésperas da eleição de Perón. E ntretanto, ainda

predom inava na cidade, sobretudo nas regiões m ais centrais e distantes das periferias onde se

estabeleceu a grande p arcela dos trabalhadores recém -chegados tan to do in terio r com o do

exterior do país, um im aginário liberal-oligárquico a partir do qual os portenhos se concebiam

com o u m a sociedade estabelecida, educada e ilustrada, a qual se orgulhava de ser cosm opolita,

b ran ca e europeia. (G R IM SO N , 2017, p. 112). N esse cenário, as populações provincianas, ao

se fazerem presentes no espaço urbano enfrentavam um a série de resistências, sendo

consideradas estranhas à realidade portenha e, consequentem ente, excluídas da vida política,

social e cultural da cidade.

C om a ascensão do peronism o, desenvolvem -se um a série de m elhorias no padrão de

vida da classe trabalhadora, passando esta a ter um m aior acesso a espaços públicos que até

68
então se restringiam a setores m ais abastados da sociedade argentina, com o salas de cinem a e

teatros. E ssa m aior convivência entre distintos segm entos é concebida pelas classes m édia e

alta com o um a v erd ad eira “invasão” provinciana das cidades, u m a am eaça ao estilo de vida

urbano e ao seu status social, recorrendo, assim , a processos de esteriotipização com o estratégia

de dem arcação de diferenças e de exclusão (B R E N N A , 2018, p. 8-9). D aí o uso recorrente

pelos anti-peronistas de term os pejorativos com o “ d escam isados” ou “ cabecitas negras” para

se referir aos m ilitantes peronistas, sobretudo no decorrer da cam panha para as eleições de

1946.

N esse m om ento, percebem -se os rastros deixados p ela histórica oposição entre

civilização e barbárie, frequentem ente evocada pelas elites liberais no século X IX para

defender a vitória daquela sobre esta, ou seja, o triunfo do m oderno sobre a tradição, do urbano

sobre o rural, do progresso sobre o atraso. N a urgente necessidade de se nom ear e classificar

aqueles “estranhos” apoiadores de Perón, criam -se term o s extrem am ente depreciativos que

com binavam em si referências ao debate político vigente no m om ento com noções classistas e

racistas. D esconsiderando-se a heterogeneidade dos tipos hum anos, os seus com portam entos e

os seus traços fenotípicos predom inantem ente m estiços eram utilizados tendenciosam ente para

se fo rjar qualificações que conferiam àquelas pessoas a ideia de atraso, de pobreza, de

indecência, de incivilidade e de incultura (G R IM SO N , 2017, p. 113).

É possível p erceber aqui o encontro e o contato direto existente entre distintas

tem poralidades e seus respectivos efeitos. O urbano e o rural, a m odernidade e a tradição, a

capital e o interior, experiências e ritm os tem porais convivendo sim ultaneam ente, em conflito

entre si, e interferindo diretam ente no destino político da A rgentina. E sse cenário de disputas

conform a o m om ento da eleição de Perón, o que acaba refletindo em divisões sociais de caráter

classista, étnico e identitário que não eram interessantes à articulação discursiva do populism o,

a qual recorre às elaborações n ecessárias para to rn ar possível a em ergência de u m sujeito

p o p u lar unificado. P ara lidar com essa conjuntura, seria necessário construir e prom over um a

cultura cotidiana considerada legitim am ente nacional que pudesse, no plano sim bólico,

alim entar u m a identidade p opular e colaborar com a m anutenção do co nsenso peronista em

m eio a um a sociedade tão heterogênea, hierarquizada e estrangeirizada.

É nesse sentido que o projeto cultural do peronism o tam bém prom overia a recuperação

e a difusão m assiva de elem entos característicos do folclore e das tradições cam pesinas ligados

aos setores populares recém -chegados à capital com o cam po estratégico para suas negociações

sim bólicas e, consequentem ente, para a m obilização de identificações com uns (G A R C IA ,

2015). N o docum ento oficial do PPQ , d efende-se que, a fim de se desenvolver u m a cultura

69
considerada em inentem ente nacional, “ o estudo das expressões folclóricas, da m úsica e das

danças populares, essência dos sentim entos de um povo, deve ser cuidado pelo E stado com o

expoente da cultura íntim a e p opular e com o base p a ra o desenvolvim ento de form as próprias

de expressão artística” (S E C R E T A R IA T E C N IC A , 1946, p. 167).

N essa esteira, é possível p erceber o peronism o realizando conversões tem porais no

âm bito do discurso em nom e da unid ad e e do consenso populistas. D e m odo a a te n d e r à m archa

progressiva rum o a u m a A rgentina que se pretendia u rb an a e industrializada, era necessário

elevar a m oral e o “ espírito” dos argentinos através de um a cultura considerada em inentem ente

argentina e peronista. Para construí-la, o olhar é direcionado para o passado, obviam ente não o

oligárquico, m as para o universo e a população de u m a tem poralidade rural m ais distante,

concebidos com o a verd ad eira essência da N ação argentina, cujas referências estéticas e m orais

teriam se perdido ou sido degradadas com o tem po devido à abundância de população

estrangeira som ada à proliferação dos centros urbanos e a sua m odernização.

D entre o conjunto de políticas culturais em preendidas oficialm ente pelo peronism o e

que tom am o universo rural e o folclore com o foco com um , destacam os o planejam ento e a

im plem entação da Encuesta Folklórica delMagistério, iniciada em 1951, projeto coordenado

pelo M inistério da E ducação da P rovíncia de B uenos A ires em parceira com o Instituto da

T radição a ele vinculado, o qual visava a identificação, o registro e a classificação das tradições

populares e dos elem entos folclóricos “ sobreviventes” encontrados nas regiões interioranas da

província de B uenos A ires a p artir do trabalho facultativo de professores do ensino prim ário

(B L A C H E , 1991, p. 56-66).

O recurso a essa iniciativa pelo peronism o em 1951 dem onstra o interesse do projeto

cultural do regim e em reu n ir to d a um a base de dados a respeito desse universo rural a fim de

com por um possível arsenal para suas propagandas e program as culturais baseados na

v alorização da nacionalidade argentina e na p ro teção do patrim ônio tradicional frente aos

efeitos culturais do im perialism o, principalm ente na capital. Para tal em preitada, B runo C.

Jacovella, então diretor do Instituto, elabora e publica um folheto oficial indicando os

procedim entos e as regras de observação, descrição, classificação e envio do m aterial coletado

para os organism os responsáveis, o qual deveria orientar o trabalho a ser realizado pelos

professores da província em suas respectivas regiões de atuação.

N a prim eira parte do Manual-guía para el recolector (1951), destinada a destacar os

tó picos a respeito da natureza do Folclore, da organização da Encuesta e das norm as técnicas

gerais a serem seguidas pelos colaboradores, encontram os a definição dos tipos de elem entos

e m anifestações considerados com o objetos da disciplina folclórica a serem coletadas pelos

70
professores.41 A dotando-se um a posição alinhada às tendências da folclorística de países

europeus no período, define-se que a disciplina argentina do Folclore, ao contrário do cam po

da E tnografia, seria responsável pelo estudo de to d a a cultura dos substratos civilizados da

sociedade. O u seja, deveriam ser recopilados apenas produtos, técnicas e tradições culturais

encontrados em grupos hum anos que necessariam ente estariam vinculados à organização da

sociedade nacional civilizada no tocante ao idiom a, à religião, à ética ou às instituições, o que

excluiria os povos originários do territó rio (M A N U A L -G U ÍA , 1951, p.2).

O s prim eiros critérios de seleção e delim itação do m aterial a ser recopilado pelos

professores já nos indicam um a divisão estratificada da cultura a p artir de padrões de um a

sociedade considerada civilizada, indicando um a profunda internalização da m odernidade

progressiva ocidental. D entro dessa perspectiva de análise, a prim eira sessão do folheto reserva

u m a parte específica para classificar os tipos de patrim ônio que conviveriam sim ultaneam ente

na A rgentina:

[..]
III) Patrimônio popular: Fugaz e comum a toda a sociedade, com centro de irradição
nas grandes cidades (modas);
IV) Patrimônio folclórico: Duradouro e próprio dos grupos regionais e do substrato
rural e aldeão no geral (MANUAL-GUÍA, 1951, p. 4).

A o m esm o tem p o em que estabelece u m a classificação rígida ao dem arcar

espacialm ente cada tipo de patrim ônio, o próprio folheto reconhece que os elem entos que

com põem cada um deles poderiam circular pela sociedade argentina, apontando-se, por

exem plo, que m esm o nas cidades m ais m odernas e distantes do cam po e ra possível encontrar

sobrevivências de elem entos catalogados com o folclóricos, estando eles presentes em

diferentes segm entos sociais, com destaque para as pessoas rústicas e aldeãs que integravam

b o a parte da classe trab alh ad o ra e do serviço dom éstico (M A N U A L -G U ÍA , 1951, p. 4). N esses

casos, o folclore se encontraria “ em grande parte latente, reprim ido ou sufocado por falta de

am biente com unitário e por um relativo isolam ento cultural” diante de um a sociedade

m arcadam ente cosm opolita (M A N U A L -G U ÍA , 1951, p. 4).

E m m eio às lutas por representação que se instauram no espaço cultural argentino nesse

m om ento e de acordo com os objetivos do presente trabalho, cham a a atenção a distinção que

se estabelece entre os P atrim ônios p opular e folclórico. N esse sentido, to m a n d o a taxonom ia

41A análise do documento em questão aqui apresentada constitui uma versão modificada de outra já publicada no
artigo Política cultural, folklore y tradición: las directrices oficiales de la Encuesta Folklórica peronista de 1951
(BATISTA, 2022, p. 184-207).

71
apresentada no m anual oficial com o referência, o discurso populista prom ovido por P erón

p arece se esforçar em deslocar os elem entos característicos do p atrim ônio folclórico argentino,

diretam ente vinculado à tem poralidade rural, para o âm bito do patrim ônio popular, com centro

de irradiação nas grandes cidades e de alcance de to d a a sociedade. U m a estratégia que pode

ser definida com o “heterocrônica” nos term os de H elgesson, visando a conform ação de um a

identidade nacional com um . T odavia, essa transform ação do patrim ônio folclórico argentino

em “ patrim ônio p o p u lar nacional” deveria ser acom panhada de procedim entos de adaptação:

Da mesma forma, deve-se observar que as formações do grupo III (modas), nas
grandes cidades cosmopolitas modernas, para serem admitidas por todo o
conglomerado social, até mesmo pelo substrato urbano [...], muitas vezes precisam
tingir-se de vulgaridade (MANu Al -GUÍA, 1946, p. 4-5).

A vulgarização, entendida no m anual com o um a estratégia estilística, seria fundam ental

para que o P atrim ônio p opular pudesse ser adm itido pelo conjunto da sociedade com o um todo,

não devendo ser entendida necessariam ente com o um procedim ento depreciativo. Logo, para

que os elem entos ligados a u m a tem poralidade rural pudessem ser introduzidos no cam po do

P atrim ônio popular, gerando identificações e sendo consum idos por outros estratos sociais das

zonas urbanas, eles deveriam ser form atados e adaptados ao am biente m oderno da cidade.

E m governos populistas, os m eios m assivos e o cam po do entretenim ento com o um

todo desem penham um papel fundam ental para a configuração de um a h egem onia política

nacionalista através da possibilidade de elaborar e difundir discursos constituintes de

representações capazes de p roduzir o sentim ento de pertencim ento a um território com um , a

u m a m esm a cultura, sob a liderança de um ú n ico condutor da N ação (M A R T ÍN -B A R B E R O ,

1997, p. 220-228). N o caso do peronism o, esses m eios de com unicação, para além de

representarem em si o avanço tecnológico pelo qual o país estaria passando, eram essenciais

em term os de propaganda política do regim e, sendo frequentem ente divulgados os progressos

sociais, técnicos e trabalhistas que o governo teria alcançado, m as, sobretudo, constituíam

instrum entos de transform ação de certas representações culturais em elem entos de um a

identidade nacional com um a todo o povo argentino, confluindo tem poralidades distintas.

E ra através dos program as de rádio, do cinem a, do teatro, da dança, da literatura, da

im prensa, dentre outros canais, que se em preendiam estratégias fundam entais para o

rom pim ento das resistências da cidade aos elem entos hum anos e sim bólicos provenientes do

cam po (L E O N A R D I, 2010, p. 73). A fo rm atação e adaptação deliberadas dessas

representações folclóricas de acordo com o ritm o acelerado dos m eios de com unicação, em

72
outras palavras, as operações de aproxim ação entre distintas tem poralidades - a m odernidade

u rb an a e a tradição cam pesina -, visavam o alargam ento da base de apoio do regim e,

p o ssibilitando que outros grupos tam bém se identificassem positivam ente com elas e fossem ,

assim , integrados ao consenso do povo p eronista (G A R C IA , 2021, p. 107).

N essa esteira, a S ubsecretaria de Inform ações e Im prensa, criada em 1943,

desem penhou um papel essencial para a m anutenção da coesão política e sim bólica do governo

de Perón. O órgão que passaria por um processo de am pliação e sofisticação a p artir da

reform ulação da C onstituição em 1949, estabelecendo-se, sob a direção de R aul A pold, toda

u m a estrutura h u m an a e m aterial que intensificaria a intervenção do E stad o nos m eios de

com unicação privados. E xem plo disso é a criação do grupo A L E A no m esm o ano, m onopólio

estatal que exerceu o controle sobre os m ais destacados jornais, em issoras de rádio e

publicações do país a partir da direção de C arlos Aloé. Sob o com ando do grupo, destaca-se a

editora Haynes, responsável pela publicação de um a série de periódicos com am pla circulação

nacional, dentre eles, a revista Mundo Radial.

O prim eiro núm ero publicado pelo periódico sem anal Mundo Radial data de ju n h o de

1949, configurando-se com o um a das típicas revistas de rádio que circulavam na A rgentina

desse m om ento. D e alcance nacional, a revista trazia em suas páginas notícias sobre o rádio, o

cinem a e o teatro, além dos últim os lançam entos da indústria fonográfica, publicidades e outros

tó picos m ais gerais, frequentem ente acom panhados de ilustrações ou fotografias (Ibid., p.103).

A p artir de seu sexto núm ero, Mundo Radial especifica u m a seção de seus conteúdos para o

universo de tem áticas folclóricas, denom inada Nuestro Folklore, a qual apresentaria u m a série

de artigos que, em tom claram ente doutrinário, saíam em defesa do folclore e da figura do

gaucho com o as verdadeiras e genuínas representações da cultura do povo argentino, além de


ressaltarem a necessidade do com prom etim ento dos m eios de com unicação de m assa com a

construção da nacionalidade (G A R C IA , 2021, p. 104).

D esse m odo, pode-se in ferir que a revista Mundo Radial constitui um conjunto

docum ental interessante p ara se p ensar as possíveis estratégias de form atação, atualização e

n acionalização em preendidas pelos m eios de com unicação para colaborarem deliberada e

ativam ente com a política peronista de inclusão da cultura provinciana no am biente urbano

cosm opolita, ten d o o universo do entretenim ento e as artes de espetáculo com o a m úsica, o

teatro e a dança um lugar de destaque nesse projeto.

E m respeito aos lim ites propostos a presente explanação, não será possível apresentar

os resultados p arciais das investigações em andam ento a respeito do referente docum ento, os

quais ficarão para um próxim o trabalho. T odavia, é possível perceber tan to no âm bito da revista

73
com o em um projeto cultural m ais am plo que, no processo de construção e m obilização do

“ povo” do peronism o, destaca-se com o principal referência a figura do gaucho, o típico hom em

do cam po a qual passa, no im aginário que alim enta as políticas culturais peronistas, a constituir

o m odelo síntese do típico cidadão argentino. A p artir desse processo de ressignificação, o qual

tam bém é perceptível nos tópicos apresentados na seção Nuestro Folklore da revista, o gaucho

é aproxim ado do m undo do trabalho, referência fundam ental para os discursos do presidente,

representando, assim , aquele hom em com um , até então excluído da vida da nação e que, a partir

do ju sticia lism o e dos avanços conquistados pelo peronism o, teria sido integrado política,

social e culturalm ente à ela (G A R C IA , 2021, p. 94-95).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

D e um m odo bem geral, p rocurou-se realizar um a reflexão que analisasse o caso

p o pulista do governo de Juan D om ingo P erón na A rgentina (1946-1955) a p artir da dim ensão

do tem po, identificando-se, no âm bito discursivo, as “h eterocronias” de H elgesson, em outras

palavras, as dissonâncias e as conversões tem p o rais que perm item que nos arrisquem os a

conceber a A rgentina peronista com o u m a m odernidade alternativa àquela de K oselleck.

O populism o de P erón desenvolve um m odo específico de constituir e de organizar as

relações sociais na A rgentina a p artir da m o bilização de pertencim entos com uns com o objetivo

de construir um a nova h egem onia em contraposição aos governos oligárquicos anteriores.

D essa form a, reco rrer a políticas que buscavam fo rm atar e difundir as referências culturais das

populações m igrantes provenientes do in terio r do país através da cultura de m assas torna-se

u m a estratégia de representação do povo peronista enquanto um a totalidade social. E m m eio

aos conflitos identitários que se instauram no espaço cultural argentino, sobretudo em

decorrência da grande presença desses interioranos na capital, o peronism o esforçava-se em

aproxim ar os espaços e as tem poralidades do rural e do urbano, confluindo os valores

tradicionais representados pela cultura do cam po e o progresso da vida m o d ern a na cidade.

L onge de optarem pela “barbárie” em detrim ento da “ civilização” , o discurso e a

propaganda peronistas procuravam confluir am bas as tem poralidades, garantindo, assim , o

consenso necessário para a m anutenção da h egem onia populista do regim e. A o ressignificar

essa im agem historicam ente dicotôm ica, buscando, de certa form a, superá-la, o discurso

p eronista se organizava em to rno da única divisão considerada aceitável no novo m om ento

v iv enciado pelo povo argentino: entre peronistas e anti-peronistas, entre o nacional e o

74
estrangeiro. A presentando-se com o um tem po de evolução, o peronism o não b u sca se opor aos

padrões e ritm os da m odernidade ocidental característica da época, pelo contrário, a N o v a

A rgentina deveria se constituir com o um a nação urbana de progresso e de riqueza.

D esse m odo, as políticas culturais em preendidas durante os governos de P erón

buscaram aproxim ar distintas tem poralidades que já conviviam sim ultaneam ente, apresentando

com o principal base de seu projeto os m eios de com unicação de m assa. Esses, p o r sua vez,

som ados ao universo do entretenim ento, desenvolveriam os m ecanism os necessários para a

realização de form atações e v ulgarizações capazes de enfraquecer as resistências dos citadinos

a essas referências interioranas cada vez m ais presentes no m eio urbano, procurando-se, assim ,

superar a fragm entação social e conform ar u m a cultura nacional e peronista que pudesse

abarcar todo povo argentino. C om um a B uenos A ires heterogênea, m arcada pela presença de

m igrantes do in terio r e de im igrantes estrangeiros e, ainda assim , profundam ente europeizada,

os conflitos entre “ contem porâneos” e “ não-contem porâneos” precisavam ser resolvidos em

nom e da unidade nacional.

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76
AS PRÁTICAS SOCIOEDUCATIVAS E RESISTÊNCIAS
DESENVOLVIDAS NA ALDEIA POÇO DANTAS DE UMARI, CRATO -
CE, QUE CONTRIBUEM PARA CONSTRUÇÃO DE UM MOVIMENTO
EDUCACIONAL INDÍGENA

A N A R O B E R T A D U A R T E P IA N C Ó (U R C A /U F R N ) *

SOBRE OS CAMINHOS QUE ME LEVARAM AO POVO CARIRI

A h istória do C eará e do C ariri é m arcad a pela violência, exclusão e invisibilidade dos

povos negros e indígenas42. D esde o passado escravista, o projeto colonizador foi incom patível

com as aspirações das populações negras e indígenas. T ais características foram herdadas pela

R epública, provocando na contem poraneidade, a negação de direitos básicos sociais a essas

populações, im possibilitando que gozem de u m a vida digna.

A ssim , a história desses sujeitos sociais é m arcada por lutas e resistências ininterruptas

contra to d as as form as de am bição e exploração que o capitalism o produziu nas m ais diversas

partes do território brasileiro. A região sul do E stado do C eará não fugiu a essa lógica e, na

virada do século X X para o século X X I esse processo passou po r recrudescim entos que

necessitam ser m elhor explicitados.

D iante dessa conjuntura, investigo as p ráticas socioeducativas e a organização dos

indígenas C ariris da A ldeia P oço D antas - U m ari, localizado no m unicípio de C rato - CE, pelo

reconhecim ento da etnia K ariri, após 147 anos da expulsão dos seus ancestrais do territó rio

caririense.

A dem ais, os indígenas que perm aneceram nos seus territórios de origem , foram

literalm ente coagidos a esconder suas identidades e adaptarem -se ao m odo de vida im posto

pelos grandes proprietários de terra das regiões m ais próxim as para conseguirem se proteger,

sendo m uitas vezes h eteroidentificados com o cam poneses, caboclos e/ou pequenos produtores

(Cf.: SILV A ; G O N Ç A L V E S, 2017).

42*Professora efetiva do curso de Geografia da Universidade Regional do Cariri URCA, Mestre em Geografia
(UFPE) Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade Federal de Rio
Grande do Norte-UFRN.
Utilizamos as expressões: povos indígenas, indígenas ou povos originários nesse trabalho para nos referir aos
nativos, indivíduos de vários grupos étnicos brasileiros, conhecedora das ambiguidades desta denominação, uma
vez que o termo índio foi criado pelos colonizadores europeus e se perpetuou ao longo do tempo. Balizada em
Oliveira (2003) “substitui-la nesse momento implicaria uma outra invenção”.

77
C ertam ente, a ocultação das suas ancestralidades e o m edo da identificação é um a

realidade às quais m uitos povos originários ainda estão sujeitos, com o é o caso do povo Cariri

da A ldeia Poço D antas - U m ari. A ssim , os “Indígenas C ariris” que perm aneceram na região do

C ariri, ficaram em silêncio, e em algum as ocorrências, chegaram a m udar de sobrenom e para

não serem identificados, tem endo represálias ou associação pejorativa sobre o “ ser ín dio” ,

sem pre relacionado com um a cultura atrasada.

[...] o longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a


resistência de uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais.
Ao Mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes
familiares e de amizade, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas
políticas e ideológica (POLLAK, 1989, p. 5).

A credito que foi a p artir daí a sociedade não índia foi forjando um a ideia de que era

u m a questão de tem po o fim da nação K ariri. T odavia, assim com o outras nações indígenas, os

K ariri não foram passivos aos obstáculos colocados pela sociedade de não ín d io s e nunca

pararam de resistir e (re) existir. O sentim ento de pertença a seus territórios e ou de querer

retom a-lo nunca parou.

A exem plo que pude observar na A ldeia Poço D antas - U m ari, aonde m esm o diante da

negação da não existência de povos da N ação K ariri no C eará e na R egião do C ariri, eles

criaram m ecanism os de resistência, cujo elem ento m ais im portante foi a luta pela preservação

da m em ória individual e coletiva, que resultou no tem po presente no M ovim ento de R etom ada

C ariri.

P atrício M elo (2017) afiança que o despertar do povo C ariri no processo de

autoafirm ação, aconteceu no ano de 2007, a p artir da visita de R osi K ariri que esteve no S ítio

P oço D antas U m ari a procura de parentes da etnia K ariri/C ariri no m unicípio de Crato.

D esta feita, o presente artigo tem po r objetivo analisar com o a retom ada das práticas

socioeducativas e resistências desenvolvidas na A ldeia P oço D antas U m ari (C rato/C E )

contribuem para construção de um m ovim ento educacional indígena na localidade. N o intuito

de alcançar tal m eta, delineei com o objetivos específicos: Id en tificar a história do tem po

presente dos povos indígenas da etnia no C ariri cearense e investigar o protagonism o fem inino

no processo de etnogênese em desenvolvim ento na A ldeia poço D antas U m ari tem colaborado

para o fortalecim ento da identidade, territorialidade e visibilidade da etnia Cariri.

78
AS ESCOLHAS DE DIÁLOGO SOBRE A HISTÓRIA DA IDENTIDADE DE UM
POVO INDÍGENA

O desejo de escrever a histó ria de um povo que b uscou recu p erar sua identidade após

todo um processo de desapropriação do território K ariri sofrida desde o período de colonização

no C ariri cearense, assim com o, pelas tentativas sistem áticas de etn o cíd io s43 m e levou a

defender com o argum ento de tese que a retom ada de práticas socioeducativas desenvolvidas

pelo povo C ariri da com unidade Sítio Poço D antas - U m ari devidam ente registradas em vídeos

e docum entários por eles e disponíveis em rede, contribuem para a construção de um projeto

de vida coletivo e o p ensar educacional indígena, especialm ente na criação da escola indígena

na com unidade.

P ara tanto, com o recorte espacial, elegeu-se p ara essa análise a A ld eia P oço D antas -

U m ari, que se encontra em processo de auto identificação com o indígena da etnia C ariri,

localizada no D istrito de M onte A lverne, no m unicípio de C rato - CE, po r apresentar elem entos

que sintetizam aspectos da luta dos povos indígenas no B rasil.

Já no que diz respeito ao recorte tem poral, optei po r in iciar a partir do ano de 2007,

ten d o em vista, ter sido o ano no qual receberam a visita de um a indígena C ariri que, na procura

por sua ancestralidade, despertou nos m oradores do Sítio P oço D antas o intuito de se auto

identificarem na etnia C ariri e 2020, para fin d ar essa pesquisa, po r te r sido o m om ento

responsável pelo início do M o vim ento Social de R etom ada Cariri.

A presento no presente artigo, fragm entos de resultados parciais da pesquisa: Os

C am inhos Interpretativos do processo de E tnogênese do P ovo C ariri de P oço D antas - U m ari,

F aço inicialm ente u m a breve apresentação da A ldeia, a partir da escuta e da fala das m ulheres

indígenas, no qual a proposta é p o ssibilitar u m a reflexão sobre o d espertar do protagonism o

fem inino no processo de autoidentidade indígena.

UMA BREVE APRESENTAÇÃO DA ALDEIA POÇO DANTAS - UMARI

A A ldeia P oço D antas - U m ari está situada no Sul do E stad o do C eará, no m unicípio

de Crato, m ais especificam ente no distrito de M onte A lverne, aproxim adam ente a 27

quilôm etros da zona urbana da cidade. F oco a apresentação da aldeia balizado no trabalho de

43 Utilizamos, Etnocídios como significando o extermínio sistemático de um estilo de vida dos povos originários
no Brasil, Ceará e Cariri, ARRUTI, Mauricio. Etnogêneses Indígenas. Povos Indígenas do Brasil.

79
Joedson N ascim ento (2021) ten d o em vista que, m elhor representa a com preensão do território

do povo C ariri de P oço D antas - U m ari, levando em conta que, P atrício M elo (2017) na sua

tese de doutoram ento, ao apresentar a com unidade, restringe a área onde residem algum as

lideranças da aldeia com o D o n a R osa, D o n a N ilza, D o n a A na, o C acique Pau, V ania Cariri,

dentre outras fam ílias que denom inam esse núcleo de M o rro . C om o caracterizou Joedson

N ascim en to (2021, p. 48): “ [...] P oço D antas é um conjunto form ado po r P oço D antas, M onte

A lverne, A reinha, T abocas, Toca do Índio e áreas do entorno do A çude U m ari - são habitadas

por cerca de 85 fam ílias” . V ejam os a im agem abaixo:

Imagem I - Distrito de Monte Alverne e os lugares e ocupação dos Cariris de Poço Dantas
- Umari.

Fonte: (NASCIMENTO, 2021).

O m ap a acim a explicita um a parte do território do povo da etnia K ariri na geografia do

C rato, destaco o relato de V anda Cariri (25 de jan e iro de 2022) que diz que o território indígena

C ariri não está restrito a área que habitam no tem po presente:

[...] A ocupação territorial indígena há milhões de anos atrás, onde nós não tínhamos
divisão territorial nós ocupávamos esse território transitavam íamos e víamos nessa
chapada do Araripe sem definição e sem delimitação, né? Nós só vivíamos dessa
forma é tanto que hoje dizem assim: “aí nós temos sítio arqueológico em tal local,
mas não tá no território”. Sim, todos esses territórios são território Cariri.

80
Im portante destacar que, nesse artigo reflito com o povo Cariri de P oço D antas - U m ari

a partir dos seus relatos, o desejo de se auto afirm ar indígena e investigo a m otivação e o

d espertar para form ação de u m a associação na com unidade.

P ara tanto, no presente trabalho, dialogo com as categorias de etnogênese indígena

(PA L IT O T , 2010), Identidade (H A LL, 2020) e (D A N IE L M U N D U R U K U , 2009) m em ória

(H A L B W A C H S, 2013), resistência (FO U C A U L T , 1998) e p ráticas educativas indígenas

(A R A U JO , 2018).

Sobre identidade, nos apoiarem os em Stuart H all (2020) quando diz que:

O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se
tornando fragmentado: composto não de uma única, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias ou não resolvidas.. .o próprio processo de identificação,
través do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais
provisório, variável e problemático. (Stuart Hall 2020, p. 11)

N essa perspectiva, esse processo produz o sujeito pós-m oderno, entendido com o não

ten d o u m a identidade ú n ica e perm anente. “ A identidade torna-se u m a celebração m óvel:

form ada e transform ada continuam ente em relação as form as pelas quais som os representados

ou interpelados nos sistem as culturais que nos ro d eiam ” (H A LL, 2020, p. 11-12).

D o ponto de vista de Stuart H all (2014), as histórias são realm ente contestadas e isso

ocorre, sobrem aneira, na luta política pelo reconhecim ento das identidades. N essa perspectiva,

o autor nos diz que há duas form as diferentes de se p ensar a identidade cultural:

A primeira reflete a perspectiva já discutida nesse capitulo, na qual uma determinada


comunidade busca recuperar a “verdade” sobre seu passado na “unicidade” de uma
história e de uma cultura partilhadas que poderiam, então, ser representadas, por
exemplo, em uma forma cultural, como o filme, para reforçar e reafirmar a
identidade-[...] A segunda concepção de identidade cultural é aquela que a ver como
“uma questão tanto de tornar-se quanto de ser”. Isso não significa negar que a
identidade tenha um passado, mas reconhecer que, ao reivindica-la, nós a
reconstruímos e que, além disso o passado sofre uma constante transformação. Esse
passado é parte de uma “comunidade imaginada “, uma comunidade de sujeitos que
se apresentam como sendo “nós” (HALL, 2014, p. 28-29).

A credito que a segunda concepção apresentada pode ser u tilizada por m im nesse

trabalho, um a vez que a A ldeia P oço D antas U m ari, tem buscado fortalecer o processo de

autoidentificação através das p ráticas cotidianas, m em órias e troca de saberes entre os anciões

e os parentes com a participação dos jo v e n s e adultos da aldeia, fortalecidos especialm ente,

após a criação da A ssociação dos Índios C ariri de P oço D antas - U m ari - A IC A PD U .

81
C ertam ente, im pulsionando o início do M ovim ento Social de R etom ada Cariri através

da criação de um a página no Facebook e a produção de docum entários e vídeos disponíveis na

página do YouTube com o objetivo de reafirm ar suas identidades.

A questão da identidade dos povos originários, especialm ente “ indígena” , é um assunto

m uito delicado de se tratar, devido a to d a um a construção social que nega, oprim e e desfalca

os elem entos da negritude e dos indígenas.

É em virtude dessa realidade que a luta pelo território é tam bém um a luta contra o

racism o, perpassada pela ressignificação e valo rização da cultura tan to indígena, quanto afro-

brasileira.

C om certeza, o m ovim ento de retom ada indígena representa um sím bolo de resistência

e de luta pelo direito à autonom ia desses povos originários, o que im p lica na apropriação do

território, conhecim ento e auto identificação.

C oncordo com B eatriz Silva e C láudio G onçalves (2017) quando sustentam que a

retom ada de territórios é um a das principais form as de resistência indígena, não se restringindo

apenas ao processo de reconhecim ento da terra com o sendo indígena, m as abrangendo tam bém

os lim ites estipulados para cada povo. A cultura e as r-existências das práticas tradicionais são

um dos principais m eios de resistência, transm itidos em am bientes diversificados.

B usco apoio em M ichel F oucault (1998) p a ra falar sobre resistência, quando ele afirm a

que as lutas surgem com o força dentro da p rópria relação de poder. D a m esm a form a que o

p o d er é um a relação com o tal, as lutas contra seu exercício ocorrem no interior de tal relação

(e não de fora).

P ortanto, a cada instante as relações adversas em um a sociedade, podem abrir espaço

para o em prego de m ecanism os de poder. P recisam os com preender que, na visão de M ichel

F o u cau lt (1982), o p o d er é u m a relação de forças em frequente em bate que essa relação se

espalha po r to d o o tecido social e dela ninguém foge.

O p o d er não é algo que se possui, nem um lugar que ocupa. D ecerto que o poder não

está concentrado no E stado, m as espalhado pela sociedade. E m outras palavras, o poder não

coaduna com violência, m as é correspondente da resistência.

A pesquisa visa, tam bém , problem atizar o conceito de território balizado em P o rto -

G onçalves (2006), entendendo que não é algo anterior ou exterior à sociedade. “ O território é

o espaço apropriado, instituído po r sujeitos sociais e ou grupos que se afirm am por m eio dele”

(PO R T O -G O N Ç A L V E S , 2006, p. 46). D essa m aneira, há territórios e territorialidades, ou seja,

processos sociais de territorialização podendo haver no m esm o território várias

territorialidades.

82
P ortanto, penso que, as práticas educativas to rn aram -se um a categoria fundam ental para

p erceber com o a educação servirá com o pilar para a reestruturação da tradição e cultura desse

povo.

P arto do princípio de que, os processos educativos tam bém podem ser identificadas

através das p ráticas tradicionais e cotidianas no qual os m ais velhos são detentores por

excelência, onde a socialização desses saberes e educação das novas gerações é feita através

da oralidade, e, por vezes, passaram a com petência de outros m ecanism os de educação, a

exem plo da escola, com o propõe E rcivaldo X erente (2016).

E les costum am se reunir debaixo de u m a grande m angueira, para receber pesquisadores

e visitas, onde a b o a prosa corre solta, os m ais velhos falam sobre o passado e o presente dos

P ovos C ariri.

C ertam ente, a partir do M o vim ento de R eto m ad a C ariri as práticas socioeducativas

estão sendo rem em oradas, ressignificadas e registradas em vídeos, especialm ente, atividades

do cotidiano do povo C ariri relacionadas ao trabalho, com o, práticas agrícolas e extrativistas,

receitas tradicionais, artesanato com o cipó, barro, v aran d a de redes, crochê, danças, rezas, ritos

e m itos que no tem po presente têm sido socializadas com as crianças, jo v en s e adultos da

A ldeia, visando fortalecer o processo de autoidentidade Cariri.

N essa reto m ad a C ariri no prim eiro m om ento deu-se in ício ao processo de

autoidentificação dos m oradores do Sitio P oço D antas - U m ari e o debate sobre a necessidade

de (re) conquista do território, principalm ente para práticas agrícolas e extrativistas, po r ser

recurso fundam ental para existência dessa identidade.

T hiago Silva (2021), destaca os sérios desafios que os povos indígenas enfrentam para

sua reprodução m aterial e sim bólica. D aí afirm ar a im portância do m ovim ento de retom ada: “ é

onde se estabelecem razões de ordem m aterial e cultural sobre o porquê lutar” (p. 233).

N essa perspectiva, para se chegar a algum posicionam ento, é im portante pesquisar a

h istória do tem po presente dos povos originários da etnia K ariri no C ariri cearense

possibilitando um a reflexão sobre a resistência, identidade, territorialidade e visibilidade nas

relações sociais nelas desenvolvidas, no intuito de construir conhecim entos que visem

fo rtalecer as subjetividades dos sujeitos sociais envolvidos na pesquisa, um a vez que esse

trab alh o é coletivo, construído com o P ovo C ariri de P oço D antas U m ari.

P ara tanto, faço u m a escrita da história do Povo C ariri de Poço D antas - U m ari voltada

ao tem p o presente, conform e explicita seus pressupostos R einaldo L ohn (2019) quando reflete

sobre a im portância de um a h istória com prom etida e questionada pelo presente, envolvendo

interações entre a narrativa histórica e cam po político.

83
SOBRE AS FORMAS DE PERCEBER UMA CULTURA E ESCREVER A HISTÓRIA
DE UM POVO

O percurso m etodológico da pesquisa constitui as etapas escolhidas para o seu

desenvolvim ento. A ssim , proponho para esse trab alh o um a abordagem qualitativa a p artir da

h istória oral, com o m etodologia e m étodo principal do trabalho. P osteriorm ente faço o

cruzam ento de diferentes fontes que utilizo na pesquisa com a intenção de prom over um a

aproxim ação entre o pesquisador e a realidade a ser investigada, assim com o refletir sobre

subjetividades do cotidiano dos sujeitos.

Seguram ente, que ao trab alh ar com a abordagem qualitativa para o objeto de

investigação social, o pesq u isad o r deve considerar que as pessoas envolvidas no processo da

pesquisa são “ [...] sujeitos do estudo, pessoas em determ inadas condições sociais, pertencentes

a um determ inado grupo social ou classe, com suas crenças e valores e significados”

(M IN A Y O , 1993, p. 22).

P o r certo, a história oral é constituída com o instrum ento bastante relevante na área de

ciências hum anas, o que possibilitará a coleta de inform ações estratégicas, de lideranças d a

tradicional com unidade indígena pesquisada, quando do relato através da oralidade de suas

p ráticas e costum e do passado e presente.

N essa perspectiva, a partir da escuta dos relatos e de leituras de trabalhos sobre A ldeia

P oço D antas U m ari m e detenho na história oral tem ática, um a vez que m e debruço no recorte

m uito p articular na vida dos entrevistados, especificam ente entre os anos 2007 - 2020.

N ão se trata de um a investigação sobre a tradição oral, pois não está ligada à um a

tem poralidade m ais distante p assada de g eração a geração. Portanto, o tem a bem delim itado e

o recorte tem poral definido m e im pulsionaram a esta escolha. N essa perspectiva, a história oral

b aliza-se na m em ó ria hum ana e na sua capacidade de revisitar o passado enquanto testem unha

do vivido.

C onform e A lessandro P ortelli (2016) nos diz:

Ao contrário da maioria dos documentos históricos, as fontes orais não são encontradas,
mas cocriadas pelo historiador. Elas não existiríam sob a forma em que existem sem a
presença, o estimulo e o papel ativo do historiador na entrevista feita no campo. Fontes
orais são geradas em uma troca dialógica, a entrevista: literalmente, uma troca de
olhares. Nessa troca, perguntas e respostas não vão necessariamente em uma única
direção. (PORTELLI,2016; p.10)

84
A propósito, n essa troca, a agenda do historiador/pesquisador deve adequar-se à agenda

do narrador, m as m uitas vezes o que o pesquisador quer saber pode não coincidir com que o

n arrador quer contar. C om o resultado, toda a agenda da pesquisa pode ser drasticam ente

revisada.

A ssim , ao utilizar a história oral com o fonte e m étodo, assum o o com prom isso de

socializar a sistem atização das transcrições das entrevistas e posteriorm ente do docum ento final

com a A ldeia P oço D antas U m ari, em conform idade com a orientação de M eihy & H olanda

(2017) no qual, enfatizam a im portância da devolução social, que:

Diz respeito aos compromissos comunitários requeridos pela história oral que,
sempre, deve prever o retorno ao grupo que a fez gerar. Seja em forma de livro,
exposição ou mesmo de doação dos documentos confeccionados, a devolução é
capital” (MEIHY; HOLANDA 2017, p. 31).

Im portante destacar o conceito de “um a autoridade com partilhada” de autoria de

M ichael F risch (2016) que ao u tilizar o exem plo da m etodologia da h istó ria oral pondera que

os pesquisadores não são os únicos intérpretes da história que investigam , nesse sentido, não

são os únicos autores.

M ichael F risch (2016) afirm a que o narrador (fonte entrevistado) estar m ediado por

perguntas e lugares próprios, p roduzindo não apenas respostas, m as um processo de

interpretação e estruturação de significados com partilhados no tem po presente.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

O s povos indígenas no B rasil, no N ordeste e no C eará atravessaram lentam ente da

invisibilidade engendrada nos séculos passados para o protagonism o duram ente conquistado

nos séculos X X e X X I a partir dos m ovim entos sociais, especialm ente, organizados pelos

indígenas, com apoio de outros setores da sociedade civil e O rganizações N ão G overnam entais

(O N G ’s), ao m ostrar a valorização dos sujeitos nos processos históricos experim entados pelos

próprios povos indígenas.

D aí concordar com P acheco O liveira (1998) quando diz que o processo de etnogênese

que vem ocorrendo no N ordeste nos últim os v in te anos, vem abrangendo tanto a em ergência

de novas identidade, com o a reinvenção de etnias já conhecidas.

85
P ara tanto, nesse trabalho, defendo o conceito de protagonism o indígena resultante das

lutas e resistência no qual configurou-se os m ovim entos sociais, especialm ente o m ovim ento

indígena que tem conseguido superar a dita invisibilidade e fortalecido o protagonism o.

A presento nesse artigo fragm entos dos resultados alcançados explicitado no prim eiro

capítulo da tese intitulada: O s C am inhos Interpretativos do processo de E tnogênese do Povo

C ariri de P oço D antas - U m ari, a partir da escuta e da fala das m ulheres indígenas, na qual a

proposta é possibilitar u m a reflexão sobre o despertar do protagonism o fem inino no processo

de autoidentidade indígena.

D urante as últim as décadas, as m ulheres indígenas tem conquistado visibilidade dentro

de m ovim entos sociais, na política, na m ídia, diante do e nfrentam ento nas lutas e reivindicações

por reconhecim ento da identidade indígena, po r território e especialm ente p e la vida.

P ercebo o protagonism o das lideranças fem ininas na defesa de pautas que lhe dizem

respeito. E ntretanto, conform e Joselaine da Silva (2021) a m aioria não se declara com o

fem inistas, tal qual, percebo nas falas e posicionam ento de m ulheres indígenas da A ld eia Poço

D antas U m ari. N esse sentido, nesse trabalho em v ez do conceito de fem inism o indígena, utilizo

o term o, “protagonism o fem inino indígena” .

O papel da m u lh er indígena na luta po r direitos, auto identidade e pela dem arcação dos

seus territórios originários já vem sendo travada há m uito tem po ju n ta m e n te com os hom ens.

U m a vez que, elas têm protagonizado m uitas ações em suas aldeias, sendo, portanto, um pilar

que tem sustentado não só a cultura, m as a luta po r território.

A ssim , ao ocupar os espaços institucionais as indígenas têm representado seu povo com

voz ativa, defendendo os interesses de todos. A driana Souza, Juvana Santos e E dileia O liveira

(2020) no artigo “A m u lh er indígena e o protagonism o da sua própria h istória de luta e

resistência” afirm am que, os pensam entos coloniais que adentraram nas com unidade indígenas

de form a v io len ta estão sendo aos poucos desconstruídos onde as m ulheres indígenas estão

quebrando paradigm as e estão participando/coordenando reuniões dentro da aldeia e fora dela!

C olocando seu corpo e sua alm a na luta ju n to com os hom ens.

D e diversas form as, as m ulheres estão traçan d o e am pliando sua participação em

organizações próprias, com o tem sido o caso das m ulheres indígenas de P oço D antas - U m ari,

que têm atuado desde 2007 com a chegada de R osi K ariri no m unicípio de Crato, se dirigindo

até o distrito de M onte A lverne a procura de parentes, estim ulando a organização e a

m obilização para o processo de autoidentificação da etnia Cariri.

R osi K ariri, filha de pais K ariri do Ceará, natural e residente em São Paulo, passa a

estabelecer contato com os povos indígenas da refe rid a etnia em C rateús, especialm ente com

86
T ereza K ariri a p artir do ano de 2005. A ssim , “ [...] essa relação possibilitou a identificação de

outras com unidades K ariri no C eará, até então articuladas ao m ovim ento indígena, os da A ldeia

G am eleira no m unicípio de São B enedito, na região da Ibiapaba e os de P oço D antas U m ari,

em C rato, R egião do C ariri” (N A S C IM E N T O , 2021, p. 40).

C onform e Francisco N ascim ento (2021) no ano de 2005, R osi K ariri funda a

A ssociação Indígena K ariri (A IK A ), na cidade de Jundiaí no estado de São P aulo e após to m ar

conhecim ento da existência de povos de E tn ia K ariri em C rateús, A ldeia M aratoã, resolve

v isitar lideranças no ano de 2006 e na ocasião convidou T ereza K ariri para participar de um

evento que ela estava organizando através da A IK A : o I Encontro do Povo Kariri em Jundiaí.

L uiz F erreira (2016) afirm ou que devido a sua relação com A ssociação Indígena K ariri

(A IK A ), sediada em São Paulo, a pesquisadora passou a coordenar o processo de articulação

política, cultural e identitária da com unidade P oço D antas - U m ari no período que corresponde

aos anos de 2007 a 2010.

Durante esse período, conseguiu apoio de diversas instituições, como a Universidade


Regional do Cariri-URCA, através da Pró Reitoria de Extensão PROEX, Instituto
Ecológico e Cultural Martins Filho - IEC, Casa Lilás, Conselho da Mulher, FUNASA
(Fundação Nacional de Saúde) e a Rede de Educação Cidadã- RECID que exerceu
papel fundamental importância na comunidade. Desde então, auxiliados por
lideranças externas, a comunidade passou a se organizar étnica e politicamente,
conseguindo significativos avanços na esfera política e cultural (FERREIRA, 2016,
p. 36).

V anda C ariri ao falar sobre a chegada de R osi K ariri no M u n icípio de C rato e ao Sítio

P oço D antas - U m ari, afirm ou que ela chegou po r interm édio de T ereza K a riri44, parente de

C rateús e que liderou o M ovim ento de retom ada Cariri nas cidades de C rateús e Independência.

C onform e M iscilane Silva (2021) ao chegar em P oço D antas, R osi K ariri despertou o

sentim ento de pertencim ento que estava adorm ecido no povo C ariri, dem onstrado nas falas dos

m ais velhos da com unidade, fortalecido devido a m aioria dos indígenas de P oço D antas

possuíam em seu docum ento oficial registrado em cartório, o sobrenom e Cariri.

E m outro m om ento da sua análise M iscilane Silva (2021) enfatizou que ao chegar em

P oço D antas, R osi “ [...] passa a ser vista po r eles prim eiro com o expressão de existência real

de que estes sujeitos sejam de fato indígenas e, segundo, com o possibilidade concreta que estes

44 De acordo com Francisco Joedson Nascimento (2021, p. 40) Tereza Kariri é natural do Crato. Migrou aos
dezessete (17) anos para Crateús. Após contato com Maria Amélia (coordenadora da Associação Missão
Tremembé - AMIT) e com povos indígenas da Região Metropolitana de Fortaleza, Tereza Kariri protagonizou o
processo de identificação e organização de povos

87
passem a ser reconhecidos com o tais para conseguirem alcançar determ inadas dem andas”

(SIL V A , 2021, p. 77).

E m consonância com M iscilane Silva (2021) que foi devido a interlocução de Rosi

K ariri ju n to aos Cariris, no m unicípio de C rato e em São B enedito no período de 2007 a 2010

que possibilitou que os C ariri passassem a viv en ciar o processo de territorialização e

fortalecim ento da autoidentificação indígena.

[...] o grupo passa a experimentar o processo de territorialização, do nosso ponto de


vista através de dois movimentos interdependentes, um ligado a um processo interno
do grupo mediante o fortalecimento do autoreconhecimento e de afirmação da
identidade étnica desses sujeitos e de uma afirmação coletiva necessária para
exteriorização, visibilização e alcance de políticas e reivindicatórias que os Cariri
vivenciavam naquele momento. E do outro movimento, ligado aos contatos e
partilhas com agentes mediadores de todo processo, como Rosi, outras coletividades
indígenas com as quais tiveram contato naquele período, bem como com outro
agentes externos a comunidade. (SILVA, 2021, p. 78).

L uiz F erreira (2016) explicita argum entos sobre o protagonism o de R osi K ariri no

processo de organização e etnogênese dos povos de etnia K ariri no C eará, Luiz F erreira (2016,

p. 36) alega que, “ [...] o ápice de organização política e identitária dos K ariri residentes em

P oço D antas no período de 2007 a 2010, o qual foram desenvolvidas inúm eras estratégias que

visavam fo rtalecer a ideia de auto reconhecim ento do povo K ariri h abitantes do P oço D antas.”

P o r fim , acredito na im portância do processo de etnogênese Cariri , no qual está sendo

denom inada po r eles de “M ovim ento de R eto m ad a C ariri” , am parado na tradição oral e

transm issão de conhecim entos e saberes ancestrais por m eio dos quais estão sendo retom ados

e valorizados, especialm ente pelo protagonism o fem in in o indígena visando o fortalecim ento

da Identidade C ariri e da autonom ia para o desenvolvim ento de aprendizagens funda-se no

fortalecim ento da r-existência a perm anência do povo de etnia K ariri na região do C ariri e no

m unicípio de C rato - CE.

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90
TRABALHADORES E TRABALHADORAS DAS FRENTES DE
EMERGÊNCIAS: AS FONTES DO DEPARTAMENTO NACIONAL DE
OBRAS CONTRA AS SECAS (DNOCS) E A CONTRIBUIÇÃO PARA UMA
HISTÓRIA SOCIAL DO TRABALHO (CAMPO GRANDE-RN, 1983 A 1984)

A N A SA R A C O R D E IR O D E A L M E ID A 45
JU C IE N E B A T IS T A F E L IX A N D R A D E 46

Resumo : A com unicação tem com o objetivo fazer u m a análise das fontes docum entais do
D epartam ento N acional de O bras C ontra as Secas (D N O C S), com sede regional na cidade de
A ssú, no R io G rande do N orte, e suas contribuições para pesquisas relacionadas a períodos de
estiagens e com o a referida docum entação ajuda a pensar a dim ensão do trabalho ou dos
trabalhadores. Justifica-se está com unicação po r colaborações aos estudos am plos sobre
trabalho. E m um p eríodo considerado de “ seca v erd e” , com preendido entre os anos 1983 a
1984, o D N O C S no vale do A çu, foi o órgão responsável pela contratação de hom ens e
m ulheres para trabalhos estruturais na região. O s docum entos aqui citados estão no arquivo da
sede regional do D N O C S. E specificam ente no arquivo encontram -se fichas de contratações de
trabalhadores em funções de operários e sistem atizam inform ações com o: lu g ar de residência,
profissão, se eram alfabetizados ou não, estado civil etc. O potencial dessa docum entação
relaciona-se a tem as com o: trabalho, h istória institucional e estiagens. M etodologicam ente,
seguirem os os seguintes cam inhos para análise docum ental: catalogação, digitalização e análise
das fichas de inscritos do período de 1983 a 1984. P ara tanto, irem os seguir os
encam inham entos colocados pelo autor C arlos B acellar (2008), sobre os usos e m anuseios de
arquivos, e o aporte teórico de E dw ard P alm er T hom pson (1981). Salientam os, que a pesquisa
se encontra em passos iniciais e com resultados prelim inares.

Palavras-chave
E stiagens, trabalhadores, A ssú, C am po G rande, D N O C S, fichas de inscrições.

INTRODUÇÃO

N os anos de 1983 a 1984 u m a seca atingiu grande parte dos m unicípios do R io G rande

do N orte, bem com o a m esm a estiagem abrangeu b o a parte dos E stados do N ordeste. N esse

contexto a população da Z ona R ural e das cidades interioranas, iniciavam suas in scriçõ es nas

F rentes de E m ergências, que tinham com o objetivo principal através do contrato da m ão de

obra dos trab alh ad o res e trabalhadoras, construir e ou reparar açudes, estradas e poços. U m a

instituição historicam ente que se destacava pelas elaborações de en genharia técnica e de

45 Mestranda do Programa de Pós-graduação em História do CERES na Universidade Federal do Rio Grande do


Norte. E-mail: saracordeirorn@gmail.com.
46 Professora do Programa de Pós-Graduação em História do CERES na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. E-mail:juciene.andrade@ufrn.br

91
construções hidráulicas neste período foi o D epartam ento N acional de O bras C ontra as Secas-

D N O C S, responsável po r inscrever a p o pulação nas cham adas frentes de trabalho.

O D epartam ento N acional de O bras C ontra as Secas - D N O C S se construiu em m eio a

tantas m udanças internas, na sua própria nom enclatura pode ser percebido essas

transform ações. E m 1909, ainda com o Inspetoria de O bras C ontra as S ecas-IO C S , essa

instituição era um as das principais a investigarem as terras “ desconhecidas” do N ordeste, e em

m eio a viagens aos sertões do norte, com os relatos dos engenheiros, técn ico s e topógrafos,

foram se arm azenando fontes essenciais para pesquisas historiográficas tanto da atuação da

p rópria instituição quanto da região N orte. K leiton M o raes (2018) em seu trab alh o O progresso

descobre o sertão: a inspetoria de obras contra as secas (1909-1918) pôde ev id en ciar com o
os engenheiros em m eio a tantas viagens técn icas m apearam as áreas localizadas com o sertão,

trazendo para os espaços sertanejos um a proposta de m odernização através de construções de

barragens, aberturas de estradas para circulação de pessoas e m ercadorias etc.

E m 1919, a Inspetoria Federal de O bras C ontra as Secas- IFO C S, assum iu um novo

objetivo com as construções de açudes, que essa política fosse perene, independente de

governos. D e 1919 até 1923, houve u m a injeção de recursos para a Inspetoria em virtude da

criação da Lei do decreto Lei n° 3.965 de 25 de dezem bro de 1919 que autorizava: “ a construção

de obras necessárias à irrigação de terras cultiváveis no nordeste b rasileiro e dá outras

p rovidências” .47 A ssim , ao p ensar na h istória institucional do D N O C S, ao longo do tem po

foram se avolum ando relatórios de obras, de m apas e im agens do que ocorria aos arredores de

suas obras. O s docum entos, que foram resultados das obras do IFO C S de 1919 a 1945,

possibilitam debates para u m a H istó ria Social dos sertões do N ordeste. N o R io G rande do N orte

a autora Juciene A ndrade (2020) em seus estudos sobre instituições, a p artir das análises dos

relatórios do IFO C S nos proporcionou um m elhor entendim ento do funcionam ento, por

exem plo, dos trabalhos em torn o das obras da Inspetoria.

N esse sentido, o D N O C S, em 1945, em ergiu com experiências técnicas acum uladas

anteriorm ente pela IO C S e IFO C S, e de estudos sobre as secas do N ordeste. A s obras

desenvolvidas durantes as frentes de trabalhos, em períodos de estiagens, podem nos evidenciar

u m a H istória Social do T rabalho, sobre os perfis dos trabalhadores e trabalhadoras que se

instalavam nas frentes. O D epartam ento N acional de O bras C ontra as Secas - D N O C S no V ale

47https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1910-1919/decreto-3965-25-dezembro-1919-571967-
publicacaooriginal-95102-pl.htmI

92
do A çú48, no R io G rande do N orte, foi responsável pelo desenvolvim ento de O bras em cidades

para além da região do V ale do Açu, atendendo algum as cidades do m édio-oeste potiguar. U m

desses casos é o m unicípio de C am po G rande-R N , que teve em suas com unidades rurais a

im plantação das obras no período de 1983 a 1984.

A s docum entações produzidas durante os trabalhos das frentes foram deixadas no

arquivo da sede regional na cidade de A ssú, grande parte das fontes ajudam a analisar um

período de trabalho não costum eiro pelos agricultores, e evidenciam u m a h istória do trabalho

no m unicípio de C am po G rande, assim , objetivam os no artigo expor as contribuições das fontes

do D N O C S p ara pesquisas relacionadas a períodos de estiagens e com o essa docum entação

ajuda a pensar a dim ensão do trabalho ou dos trabalhadores.

As fontes do DNOCS da cidade de Assú: por uma história social do trabalho na Campo
Grande-RN

A H istória Social nos últim os anos está passando por m udanças em suas estruturas,

favorecendo novas tem áticas para a área no século X X I. C om o nos esclarece B eatriz M oreyra

(2014) no trabalho E l revival de la historia social en laprimeira década del siglo XXI: iretorno

o reconfiguración?:

La historia social en vías de reconfiguración en lo que va del siglo XXI es


fundamentalmente política, porque supera la ingenua naturalización del mundo social
y rescata la dimensión política como un medio en el cual se reproducen, se negocian
y se resisten las relaciones de poder. [...] lo político e la política son elementos viateles
para que la historiografia social contribuya a hacer más inteligible el devenir de las
sociedades humanas. (2014, p. 184).

E sta reconfiguração trouxe p ara o debate questões da política, e neste alcance, a

tem ática do trabalho e trabalhadores ganharam novos capítulos na H istória Social. O leque de

fontes para esses novos debates é m útuo, a fonte oral contribui para se p ensar os sujeitos que

trabalharam em espaços coletivos de construções, m as para o que alm ejam os neste trabalho,

não irem os nos aprofundar nas potencialidades das fontes orais. Sidney C halhoub e P aulo

Fontes (2009) citam que este debate de m udanças em tem áticas está presente desde a década

de 1970 no B rasil:

48Microrregião do interior do Rio Grande do Norte, composta pelas cidades: Assú, Alto do Rodrigues, Carnaubais,
Jucurutu, Ipanguaçu, Itajá, Pendências, Porto do Mangue e São Rafael.

93
[...] a emergência da história social do trabalho como área especifica de investigação
acadêmica ocorreu no contexto das lutas pela redemocratização do país a partir de
1970. Como é sabido, a forte presença do movimento dos trabalhadores nesse
processo marcou decisivamente a nova história social do trabalho. (p. 220).

E ssas m udanças e am pliação da área contribuíram para novas tem áticas, a exem plo de

tem a de estudos relacionados a escravidão e a desigualdade social n a contem poraneidade. O

leque de novos objetos ocorreu devido a am pliação de fontes, é por isso, que buscarem os em

docum entos da instituição D N O C S , nas fich as de alistados, debater acerca de sua

potencialidade para o trabalho historiográfico com tem ática sobre o trabalho e trabalhadores.

A cidade de C am po G rande, no interior do R io G rande do N orte, detinha um a

p o pulação de 12.228 em 198349T rata- se de um espaço considerado com o sertão. É valido

adentrarm os em um debate acerca deste conceito, está espacialidade sertão pode ser entendida

com o um a categoria elaborada e delim itada pelos colonizadores portugueses para as terras

indígenas brasileiras, que neste m om ento o oposto ao litoral seria delim itado com o sertão,

com o explica Janaina A m ado (1995):

De forma simplificada, pode-se afirmar, portanto, que, às vésperas da independência,


‘sertão’ ou ‘certão’, usada tanto no singular quanto no plural, constituía no Brasil
noção difundida, carregada de significados. De modo geral, denotava “terras sem fé,
lei ou rei”, áreas extensas afastadas do litoral, de natureza ainda indomada [...] (p.
1948).

E sta form a de conceituar o sertão, de certo m odo, se atrelou a im agem de cidades

pequenas do interior, com o tam bém relegou à área rural o estereótipo de “atrasada” . N a cidade

de C am po G rande-R N , pode ser percebido os distanciam entos existentes entre o espaço rural

e o espaço citadino, na escrita de escritores do século X X , seus escritos distanciavam os

sujeitos, representam os habitantes dos espaços rurais com o sertanejos tradicionais, é caso do

tab elião da cidade de C araúbas-R N , po r nom e de H ugolino D ’O liveira, que escreveu alguns

relatos sobre a população de C am po G rande, ainda sob o nom e de A ugusto Severo:

Não obstante o uso, o abuso que a maioria da população vem fazendo do automóvel
e do caminhão para transportar, ainda se usa no município o carro de boi do tempo
colonial para transportar material de construção, viveres etc. Sertanejos há que não
esqueceram, ainda, os arreios de metal brusido (lustroso) com que enfeitam os
animais de sua montaria; e o transporte de mercadorias nas costas de animais é
também adotado. (OLIVEIRA, 1994, p. 21-22).

49 De acordo com o senso demográfico de 1983. Disponível em:


http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?ibge/cnv/poprn.def.

94
N esse sentido, a palavra sertanejos tom a sentido na análise do H ogolino D ’O liveira de

antigos, no sentido de que ainda não adaptaram -se às novas m odernidades do tran sp o rte com o

o autom óvel. A o frisar que os sertanejos não “esqueceram os arreios de m etal” e o “boi do

tem p o colonial” , os anim ais de m ontaria com o transporte, o autor aponta a separação entre o

urbano e rural/interior. C avaleiros, os vaqueiros, que definitivam ente estão ligados aos espaços

rurais, das fazendas e com unidades rurais, os escritos da cidade C am po G rande-R N distinguem

os espaços de seu m unicípio, com o tam bém seus habitantes. Portanto, questões sociais

relacionadas aos sujeitos rurais e trabalhos rurais foram deixadas de lado por um período de

tem po, m as as m udanças durante o século X X I nos m ostram que os graduandos da área de

H istória do m unicípio estão dando passos largos sobre questões sindicais e raciais a p artir dos

trabalhos p ro duzidos50.

T om ando com o base essas m udanças, nos debruçam os sobre as potencialidades das

fichas do D epartam ento N acional de O bras C ontra as Secas, regional da cidade de A ssú-R N ,

para u m a H istória Social do T rabalho do m unicípio de C am po G rande-R N . A s fichas presentes

no arquivo evidenciam a força de trabalho presente nas frentes de em ergências, com o ressalta

L ara de C astro (2020, p. 2), foi a p artir de 1 9 1 5 que o governo Federal juntam ente com o IO C S

articulou um am plo program a de em ergências, que desde esse m om ento se tornou o principal

program a p ara fix ar e ocupar os flagelados das secas, pois a preocupação com as m igrações

desgovernadas eram um problem as de se resolver.

M as a questão de ocupar e fix ar já era algo recorrente tam bém no século X IX , quando

levas de retirantes ocupavam os grandes centros urbanos, e os pobres “ atrapalhava” o lazer das

elites urbanas. F rederico N eves (2000) enfatiza:

Pensar em seca, portanto, não é mais pensar apenas na ausência de chuvas que causa
destruição das colheitas, mas é, prioritariamente, pensar na massa de retirantes
famintos e esfarrapados a invadir as cidades na busca de alimentos e trabalho (p. 50).

D iante deste contexto, foram se iniciando políticas públicas do governo, desta vez, com

a construção de obras que fossem no próprio território em que os trabalhadores residiam , para

evitar as levas de flagelados aos grandes centros urbanos. N a década de 1980, os trabalhos das

50 Questões essas percebidas em trabalhos como: MOURA, Rivelino. “Muita Terra Sem Gente e Muita Gente
Sem Terra”: Padre Pedro Neefs, a Teologia da Libertação e a Criação de Assentamentos Rurais em Campo
Grande (1980-1999). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História). UERN, 2017. BEZERRA, Maria
Daniele. Além dos Altares: A atuação de Padre Pedro Neefs em Campo Grande/RN (1979-1999). Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em História). UERN, 2013.

95
em ergências se davam em terras privadas e açudes públicos, os próprios em pregados e parentes

dos donos de terras se inscreveram nas obras.

E sses trabalhadores e trabalhadoras assum iam variadas obras, ou as obras com uns das

frentes de em ergências, construções de açudes e poços, seriam os “vaqueiros, lavradores ou

trabalhadores de diferentes atividades rurais durante as secas eram ocupados naquelas

atividades m enos qualificadas das obras” (C Â N D ID O , 2011, p. 177). A s fichas nos m ostram

às características dos trabalhadores, os perfis que a instituição procurava naquele m om ento de

1983 a 1984, com o podem os n o tar abaixo:

FIGURA 01: FICHAS DE ALISTADO

Fonte: arquivo do DNOCS, 2019.

P odem os n otar na im agem acim a, as características: a obra, nome, filiação, idade,

endereço, local designado, número de dependentes, se sabe ler e escrever, data de alistamento,
local designado e função. N o s cham a atenção a idade dos trabalhadores, local designado e as
funções que os trabalhadores e trabalhadoras iriam assum ir. E m um m unicípio de 12.228

habitantes, as obras poderiam ser distantes de suas residências, ou na m esm a localidade, o caso

acim a, evidencia que a obra seria na m esm a com unidade que o trab alh ad o r residia, m as

notam os que alguns iriam para obras em outras com unidades rurais, há tam bém casos de

m oradores pobres das cidades que se inscreviam e tinham que se deslocar até as áreas rurais.

S ão inform ações que possibilitam com preender o deslocam ento de trabalhadores em grupos

para essas localidades rurais ou afins.

96
A função dos trabalhadores e trabalhadoras tam bém dependiam de um a certa hierarquia

entre os m esm os, é o caso do feito r de obra, que seria escolhido para visto riar os pares, m as na

análise tam bém percebem os a presença de m ulheres feitoras, que iriam inspecionar as turm as

de m ulheres. Isso aponta para as questões de gênero nas frentes de trab alh o . C om o salienta

F rederico N eves (2000) havia u m a questão entre os pares nas turm as, um seria escolhido para

m o n ito rar o trabalho dos dem ais, averiguar se os sujeitos estavam executando com êx ito os

trabalhos, se os m esm os estavam com parecendo nos horários corretos, se haviam em bates ou

exaltação entre os grupos.

V oltando a análise das fichas das m ulheres, notam os outras funções presentes nas fichas

averiguadas, casos que nos cham a a atenção são as dom ésticas e as serventes, a prim eira está

relacionada às funções costum eiras e conservadoras de u m a m ulher:

FIGURA 02: MULHERES

Fonte: arquivo do DNOCS, 2022.

C om o notam os acim a, a função dessa m ulher é a de dom éstica, provavelm ente fazendo

refeições p ara suas colegas de turm as, ou m esm o exercendo a função de lim peza, o que nos

m ostra outras funções presentes nas frentes de em ergências e debates relacionados a m ulheres

em construções em períodos de em ergências para um avanço em pesquisas relacionadas a

trab alh o e instituições. O utra inform ação im portante na ficha é que a inscrita possuía 13 filhos

dependentes.

O utra questão encontrada nas fichas, são observações que os funcionários colocavam

para um a diferenciação dos sujeitos que estavam fazendo suas inscrições. P odem ser

encontradas observações “viúva”, “desamparada”, “casada e separada”, “arrimo de


fam ília”, “órfão” e “necessitada”, são casos que nos aproxim am do autor C arlos B acellar,

97
que em seu texto nos proporciona entender usos dos arquivos para pesquisas, pois as fontes

que irem os analisar carregam u m a finalidade para sua época, fichas que trazem em sua escrita

“ a opinião da pessoa/ou do órgão que o escreveu” (B A C E L L A R , 2008, p. 65), assim , as fichas

do D N O C S apesar de contribuírem para tem as historiográficos, elas tam bém contém em sua

form ulação a opinião de quem a redigiu, e não devem os deixar isso de lado, enxergar que

haviam um a finalidade para aquelas fichas, m as com o fontes elas nos perm item um a história

sobre a m u lh er nos cam pos de trabalho em inentem ente m asculinos. E ssas fichas possibilitam

que levantem os questões sobre a vid a dessas tantas m ulheres que aparecem inscritas. N ós

sabem os seus nom es, suas m oradias, a quantidade de dependentes e o desafio de enfrentar um

trab alh o difícil e de perfil m esculino.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A s fontes do D epartam ento N acional de O bras C ontra as Secas da cidade de A ssú,

perm item v isualizar u m a H istória do T rabalho p ara os m unicípios vizinhos da sede, pois além

de se terem fontes da cidade de C am po G rande/A ugusto Severo-R N , tam bém são encontradas

fichas da própria A ssú, São R afael, C arnaubais e Ipanguaçu, todas cidades que estão

localizadas no vale do Açu, nos sertões do Açu.

A s fichas são fontes docum entais que esclarecem os perfis dos trabalhadores e

trabalhadoras, dos adolescentes que se inscreviam , do núm ero de fam ílias no período de 1983

a 1984 inscritas nas frentes, u m a h istória que se contrapõem a própria escrita das cidades, e

aqui elencam os o caso de C am po G rande, que a partir das fichas pôde ser percebida um a

questão de trabalho naquele m unicípio, de sentidos m útuos.

A creditam os que neste breve texto, podem os co lo car pontos essenciais das fichas, que

serão im portantes p ara pesquisadores que desejem lev an tar questões sobre gênero, sobre carga

h orária de trabalho, sobre a ideia de infância e adolescência, sobre as leis trabalhistas e sobre

açudagem no interior do N ordeste com o m eio m odernizante. E destacam os a contribuição para

pesquisas que se adentrem às questões da H istória O ral, ouvir os trabalhadores e trabalhadoras

e suas m em órias sobre o cotidiano das obras.

98
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perseu/article/view /185. A cesso em: 13 de novem bro de 2022.

99
“TEMOS COMPROMISSO COM O PROGRESSO”: IMPRENSA E OS
USOS NA PESQUISA SOBRE O SETOR ENERGÉTICO

A N D R E Y MI NI N M A R T IN 510

Resumo: A s pesquisas po r m eio dos/nos p eriódicos a m uitas décadas j á se consolidaram com o


u m a das m ais im portantes fontes e espaços de debate na construção do conhecim ento histórico.
P ara além de um a historiográfica plural e profunda, m uitas são as tem áticas e abordagens que
contribuíram , e contribuem , no processo de renovação das pesquisas. N este aspecto os
trabalhos dedicados a percepção periódica ju n to a/para prom oção e estabelecim ento de projetos
de desenvolvim ento nacional e regional, e de fo rm a específica ao setor energético, ainda alçam
novas possibilidades para expansão de suas problem áticas, dialogando na ú ltim a década com
o surgim ento de novas possibilidades. A ssim , a proposta deste trabalho é apresentar algum as
considerações sobre as possibilidades de análise entre periodism o e projetos energéticos,
apresentando algum as considerações a partir de pesquisas realizadas na região de M ato G rosso
do Sul, bem com o alçando dialogar com exem plos de projetos abarcados por periódicos
regionais e nacionais.

Palavras-chave: Im prensa; Setor energético; M ato G rosso do Sul.

“ O s jo rn a is im pressos estão em crise, fadados ao desaparecim ento” . M áxim as com o

esta são cada vez m ais presentes em debates cotidianos e m esm o acadêm icos em nossa

sociedade, principalm ente em tem pos em que a busca p ela “notícia rápida” encontra em

espaços virtuais novas form a de difusão e consum o. E m tem po em que grandes conglom erados

buscam sobrevivência m igrando para plataform as e form atos digitais (B O C K O SK I, 2004)

en tender historicam ente o pode e força dos periódicos na sociedade podem contribuir para um

exam e de seu próprio futuro.

M esm o com tais m udanças, o cam po de estudos sobre as im plicações dos im pressos na

sociedade ainda reverbera. O conjunto de im portantes trabalhos desenvolvidos nas ú ltim as

décadas (C A PE L A T O , 1980; B O R R A T , 1989; M A R T IN S E LU C A , 2012) tem fortalecido e

am pliado as possibilidades e potencialidades do p eriodism o na com preensão de novos objetos

e tem áticas. P o r m eio dos “hom ens de im prensa” e seus conglom erados jo rn alístico s

transbordavam , e ainda transbordam , im pressões e representações de tem pos e espaços, d itam - 51

51 Docente na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Doutor em História pela UNESP.
andrey.martin@ufms.br

100
se ideias e necessidades, incluem -se e excluem -se fatos, anunciando hábitos, conceitos e

valores. Isso ocorre principalm ente porque, com o salienta M arcondes Filho:

O jornalismo, via de regra, atua junto com grandes forças econômicas e sociais: um
conglomerado jornalístico raramente fala sozinho. Ele é ao mesmo tempo a voz de
outros conglomerados econômicos ou grupos políticos que querem dar à suas
opiniões subjetivas e particularistas o foro de objetividade (1989, p. 11)

N a p erspectiva de A lzira A breu (1999) devem os entender que os periódicos,

principalm ente neste período em m eados do século passado, estabeleceram um duplo papel

entre inform ar, narrar os acontecim entos ocorridos e ab arcar as cam panhas e transform ações

em que a sociedade e o próprio p eriodism o se encontravam , induzindo e estabelecendo

diretam ente novas form as de p en sar e projetando seus valores e interesses durante este

processo.

E sta estreita relação, qual seja, entre o periodism o e suas relações históricas na

construção de im agens e representações sobre o desenvolvim ento do país pode sem

encontradas em distintos períodos de sua própria trajetória, m as que viriam a ser am pliada

principalm ente a partir de m eados do século XX. Isso po r que o contexto entre as décadas de

1940 e 1960 colocaria o B rasil em um novo ritm o de desenvolvim ento industrial e de relações

internacionais (D R A ID E , 2004; TO TA , 2000) e consequentem ente a aproxim ação com um

novo m odelo de desenvolvim ento, atrelado eixo econôm ico norte-am ericano, C onjuntam ente,

em m eio a acordos políticos, com issões e agências com o Office o f the Coordinator o f

InterAmerican Affairs (O C IA A ), verdadeiras “fábricas ideológicas” , nas palavras de A ntônio


T ota (2000), novas p ráticas culturais adentraram nosso cotidiano, conectadas pelos m eandros

do rádio, televisão e cinem a, que atuaram diretam ente nos desdobram entos de nossa indústria

cultural.

E tais atividades foram acom panhadas pelo p eriodism o nacional e regional com o se nos

anos 50, estivéssem os assistindo ao nascim ento de u m a nova civilização nos trópicos, que

com binava a incorporação das conquistas m ateriais do capitalism o com a persistência dos

traço s de caráter que nos singularizavam com o povo, dos vários ritm os de transform ação que

estavam perpassando o país. A nalisando um a g am a de periódicos que acom panharam as

trajetórias do desenvolvim ento perceberm os com o a m ídia im pressa articulou este

em preendim ento com o um a possibilidade presente e fu tu ra de crescim ento populacional e

econôm ico para um a grande extensão do país, to rnando-se um canal de expressão e

propaganda, u m a continuidade dos projetos desenvolvim entistas ali alicerçados.

101
É im portante ressaltar que este m ovim ento tam bém fora acom panhado pelo recorrente

uso e produção de vídeos e docum entários po r parte de governos e em presas, a fim de divulgar

suas m arcas, produzir suas m em órias ou m esm o difundir determ inadas ideais e fom entar

cam panhas. S obre os m ais variados tem as e form as celebravam m arcas e em presas,

engendravam opções políticas, revelavam disputas e acirram entos, prom oviam golpes.

C o ntando com novas técn icas e linguagens cinem atográficas alcançaram rapidam ente o

público, sendo exibido pelas salas de cinem a ou m esm o pela televisão, em am pla ascensão

neste contexto (M A R TIN , 2016).

E claram ente tal p ercepção abarca as relações políticas com a m íd ia em distintas form as.

Isso porque pode ser observado em todo este período com o o crescim ento da publicidade e da

m ídia im pressa acom panhou as necessidades de grupos e regim es políticos em am pliar seu

reconhecim ento social para fortalecim ento do capital político. Logo, u m a das p rincipais form as

de alçar tal conexão foi a prom oção e divulgação de grandes projetos. E o desenvolvim ento

energético logo seria v islum brado com o a apoteose para estas possibilidades.

E m um m om ento em que a crise energética e as constantes faltas de energia eram

correntes em todo país, a am pliação ou m esm o criação de um parque energético nacional foi

apreendida pelos setores da im prensa com o um dos principais cam pos de prom oção de

políticas, grupos e da representação de um novo país, industrial, m oderno e “ civilizado” que

nascia nos trópicos. M esm o esta abordagem ainda estando longe das potencialidades possíveis

de análise a literatura especializada a tem pos observa com o os im perativos energéticos

adentraram os periódicos com o um dos principais elem entos da m odernidade técnica. Peças

publicitárias podem ser encontradas desde o início do século X X , com um ente encom endadas

por em presas estrangeiras que atuavam em grandes centros, com o a Light e Amforp. D e form a

geral, com punham anúncios de divulgação da p rópria em presa, sobre a expansão e benefícios

da eletricidade, bem com o, na expressão de M aria de L ourdes E leutério, “ à serviço do

progresso” (2012, p.8) carregando consigo o signo de m ovim entos, com o a Belle Époque e o

narrar de um B rasil que “ civiliza-se” p o r m eio da instrum entalização técnica. Seja nos grandes

centros na virad a para o século X X ou adentrando as décadas de 1950 e 1960 em regiões no

in terio r do país, a chegada da energia elétrica estaria estam pada com o prom otora do progresso:

As novidades da ciência e da técnica pareciam não se esgotar, abrindo uma era em


que tudo parecia possível. A tração animal era substituída pelos bondes elétricos, os
primeiros automóveis invadiam as estreitas ruas das cidades, os postes de luz
substituíam os lampiões de gás, os apitos das fabricas marcavam o ritmo da vida
urbana (MARTINS; LUCA, 2011, p. 111)

102
G ildo M ag alh ães em seu trabalho “Força e L uz” (2000), ao discorrer sobre eletricidade

e m odernização na R epública V elh a destaca que a m entalidade de to rn ar-se m oderno,

apreendida po r nossa elite a p artir de fins do século X IX to m o u conta das novas relações que

se processariam a p artir do m om ento com regiões com o E u ro p a e E stados U nidos, e que, no

B rasil, perpassaria diretam ente pelo setor elétrico, fundado no aproveitam ento dos recursos

naturais, neste caso o hidráulico, proporcionando o crescim ento industrial e de outros bens

sociais.

E o n oticiar sobre os novos im perativos e necessidades de produção e aproveitam ento

energético iriam encontrar, nas próprias transform ações e b ases do periodism o nas décadas de

1950 e 1960, o trasb o rd ar de novos valores, m odelos e padrões de consum o que necessitariam

diretam ente de disponibilidade energética para sua am pliação. Logo, este novo m om ento

organizativo, tan to p ara expansão do setor energético, que encontraria no in terio r do B rasil um

terreno fértil para novos projetos, coadunaria com um im p o rtan te m om ento de reestruturação

e am pliação histórica do próprio periodism o nacional. E xpondo m aior diversificação e

circulação, assistiríam os ao surgim ento e, ao m esm o tem po, o fortalecim ento de grandes

conglom erados jo rn alístico s, m arcados por suas relações com projetos políticos, cam panhas

em presariais e eleitorais, projetando-se diretam ente no envolvim ento com setores

estratégicos para o crescim ento nacional, com o o setor petrolífero, projetos hidrelétricos e

setores de bens de consum o.

E este conjunto de transform ações em curso coadunaram para um novo olhar, dentre

outros possíveis, para projeção e, porque não, prom oção das potencialidades de espaços com o

o M ato G rosso do Sul. R egião fro n teiriça e historicam ente perm eada po r im portantes

transform ações que m odificaram suas paisagens, representações e conexões políticas com

regiões com o o estado de São Paulo, da passagem de telégrafos e trilhos no início do século

X X a frem ente M archa para o O este o Sul de M ato G rosso foi p rojetado por grandes m udanças

para o in terio r do país, ligadas principalm ente ao discurso progressista das elites locais, que

além de alterarem as relações político- econôm icas daquele contexto, trataram de conduzir de

distintas form a este controle e construção narrativa. Isto porque a chegada destes novos

elem entos técnicos e tecnológicos, com o a ferrovia e a energia elétrica, não significavam

apenas um a nova ordem espacial, m as tam bém a possibilidade de um a m elhoria m aterial para

população, gestando novas relações sociais e do próprio m odo de vida. A lém disto, tencionando

algum as relações deste discurso e o produzindo a partir de um grande com plexo hidrelétrico

ali instalado entre as décadas de 1960 e 1970, p ercebem os que estes projetos escondiam

interesses que vão além de saberes locais (LEITE, 2003; Q U E IR O Z ,2004; A R R U D A , 2000).

103
E assim , entendem os que o período de profundas transform ações que atravessariam esta

porção do B rasil, qual seja, a fronteira oeste, com um em aranhado de projetos de

desenvolvim ento, centralizados na criação de um grande com plexo hidrelétrico, cham ado de

U ru b u p u n g á,52 pode encontrar nas análise de jo rn a is e revistas deste contexto um a rica e

im portante fonte de análise, não som ente para o acom panham ento factual das notícias, com o

m uitos ainda projetam para esta tipologia de fonte, m as ju stam en te para apreender posições,

estratégias e grupos intim am ente organizados para atuar ju n to aos periódicos com o um dos

principais canais de prom oção de seus interesses.

S om ente para destacara algum as possibilidades observadas, durante pesquisa

realizada53 conseguim os m apear m ais de novecentas reportagens em 4 periódicos de circulação

nacional e regional de buscaram de algum a form a p roduzir m atérias referentes a região e o

processo de expansão energética que ocorria entre as décadas de 1950 e 1970 po r m eio do

com plexo hidrelétrico j á referido. D entre outros aspectos, os periódicos anunciavam a

integração da região por m eio daquele novo em preendim ento, de form a a gerir ganhos para

to d as as partes envolvidas, po r m eio da concretização de novas vias de transporte, produção

energética e integração econôm ica nacional. A o m esm o tem po, esta leitura de desenvolvim ento

tam bém está ligada a um sentido de dom inação e apropriação de um potencial que ainda estava

esquecido, pois a sua construção, com o dito, contribuiria para integração do país por m eio de

novas vias que seriam a “ solução única para os enorm es problem as de colonização do O este

brasileiro ” , com o pontuado pelo jo rn a l O Estado de São Paulo54, um sentido que, por vezes,

atrelava interesses, posicionam entos e disputas entre os sujeitos em aranhados em tal projeto.

E sta “ soldagem ” pensada pelo autor torn a-se elem ento condutor de valores,

principalm ente de um “ centro” articulador, a região Sudeste, a p artir do E stado de São Paulo,

para as áreas “ lim ítrofes” do país, de form a a fazer com que a ferrovia, assim com o a

h idrelétrica se tornem estes elem entos articuladores e desbravadores, com o fica evidente pelas

m atérias produzidas, pois a consolidação do projeto hidrelétrico é visto com o um a continuidade

52 Este projeto foi executado entre os anos de 1961 e 1978 na região fronteiriça entre os estados de São Paulo e
Mato Grosso do Sul no rio Paraná, originando duas hidrelétricas Jupiá e Ilha Solteira, que em seu período
correspondiam ao maior projeto hidrelétrico do mundo. Sua origem remonta uma seríe de reuniões interestaduas
iniciadads em 1951 por meio da criação da CIBPU.
53 Durante a pesquisa de doutoramento, concluída em 2016 pela UNESP, apresentamos alguns possibilidades de
análise da temática por meio de quatro periódicos de amostra: O jornal O Estado de São Paulo; a revista Visão,
ambos de origem paulista e o jornal Correio do Estado e a revista Brasil Oeste, pertencentes ao sul de Mato Grosso
(antes divisão). Neste momento este trabalho se encontra ligado a um novo projeto de pesquisa que busca dar
continuidade a este debate que não foi anteriormente aprofundado.
54 OESP, 30 maio 1958, p. 14. Nesta matéria fica evidente como o conjunto hidrelétrico encontra-se articulado
com outras necessidades governamentais.

104
da ocupação do “ sertão” nacional, com o era tid o estas regiões interiores, de form a a “incorporar

à nação novas áreas ricas, férteis e salubres” , que “ contribuirão p ara o progresso industrial e

agrícola da região” (O ESP, Jun. 1957).

Interessante observar que os periódicos e o m ote de análise organizado, ainda em

análise j á nos dem onstram um elem ento im portante: os periódicos não estavam intim am ente

articulados com determ inados interesses na expansão da m atriz energética durante a realização

da construção deste em preendim ento, m as ju sta m e n te organizaram novas estratégias de servir

com o um “cam po de preparação” para o que estava po r vir. E m pelo m enos 67 edições entre

1957 e 1960, m om ento anterior ao início física das obras, as notícias p ublicadas sobre a

construção da h idrelétrica produziam um am biente próspero de um futuro a ser tecid o pelo

desenvolvim ento produzido pelo projeto, am pliando as áreas condutoras do desenvolvim ento

econôm ico, m as tam bém am pliando as zonas de influência destes centros. A o m esm o tem po,

p ercebem os que estes lim ites, tam bém geográficos, antes não ultrapassavam alguns m arcos,

que iam do in terio r de São Paulo ao norte de M ato G rosso, m as que posteriorm ente seriam

expandidos pelos próprios periódicos. Segundo A rruda (2000), j á na década de 1940 a antiga

representação territorial em relação ao sul de M ato G rosso e O este do E stado de São Paulo, de

“ pouco explorado” , passam po r um novo processo de ocupação, que desde a política da M archa

para O este, estabelecida po r V argas, estabelece novos contornos com a consolidação da via

férrea, rodovias e que a partir da década de 1960 irá ser novam ente destacada com a

consolidação dos projetos hidrelétricos.

L ogo, os fios que conectariam diretam ente os grupos donos dos conglom erados

jorn alístico s, as em preiteiras e a condução política do projeto, encontrariam nos periódicos a

possibilidade de projetar a ideia de um novo m om ento econôm ico para o país, por m eio da

aprovação e desenvolvim ento de projetos calcados em setores industriais, com o energético e

de b ens de consum o. A p artir destes setores buscaram integrar o país em um projeto

m odernizador, que com o vim os, agregasse todas as regiões em um novo ritm o de

desenvolvim ento, que se ligava a um a transform ação territorial dos investim entos ju n ta m e n te

com m aciça m igração interna.

O utros aspectos podem ser diretam ente analisados pelas narrativas e representações

construídas pelos periódicos para este cam po de análise, que vão m uita além deste trabalho em

desenvolvim ento. U m deles, para tecerm os um exem plo, são as im agens sobre o m eio

am biente. A s representações da natureza, ou m esm o a m odificação de sua condição é um objeto

que tam bém perm eia própria existência dos periódicos nacionais. D os prim eiros cadernos

dedicados a análise da natureza brasileira a expansão do fotojornalism o na década de 1940,

105
com periódicos com o a revista O C ruzeiro, a natureza sem pre esteve presente ante a estes

projetos de desenvolvim ento, ressignificando não som ente suas necessidades, m as tam bém a

p rópria ideia de paisagem .

Sem a pretensão de aprofundar o debate entre h istória e natureza, j á am plam ente

consolidado (SC H A M A , 1996; L E O N A R D I, 1999; D E A N , 1996) to rn o u -se recorrente em

m eados do século X X um casam ento idealizado entre projetos de ocupação técn ica e

tecnológica, púbicos e privados e a cobertura m idiática perante os projetos em

desenvolvim ento. D a expansão férrea a nova capital federal, dos projetos para A m azônia, com o

T ransbrasiliana ou a rodovia B elém -B rasília, e a forte indústria da propaganda am pliada pelos

governos m ilitares a m ídia im pressa teria se tornado, parafraseando F rancisco F oot H ardm an,

um dos principais canais do “ espetáculo privilegiado da civilização capitalista na selva” (1988,

p, 35).
N o caso da produção energética, a exploração das potencialidades da

denom inada B acia do P araná-U ruguai tornara-se, antes da criação dos projetos energéticos, o

im perativo a ser vendido. P ortadora de grande potencial, a cham ada B acia do P araná

corresponde a am pla região que perpassa os E stados de M inas G erais, G oiás, de São Paulo,

M ato G rosso do Sul e Paraná, tendo com o afluente principal o rio Paraná, form ado pela ju n çã o

dos rios P aran aíb a e G rande, sendo considerada a segunda m aio r b acia de aproveitam ento

hidrelétrico do país. Tais ações para este desenvolvim ento energético rem ontam a um contexto

em que novas experiências de planejam ento regional surgiam no país, visando realizar o

aproveitam ento “integral” das potencialidades de bacias hidrográficas, com o a que se

encontrava o rio P araná e as corredeiras de Ju p iá e U rubupungá.

E ste m odelo de pensam ento no qual o desenvolvim ento territorial ocorre

principalm ente a partir da instrum entalização de técnicas e procedim entos nos quais se buscaria

“ ocupar” estes espaços denom inados “vazios” , se to rn ará cada vez m ais presen te a p artir da

década de 1950, com a consolidação do “P lano de M etas” e as transform ações que decorriam

desde o segundo governo V argas, no início da década de 1950. B uscou-se in v estir no

desenvolvim ento de setores que poderiam crescer e colaborar diretam ente com a criação de

u m a infraestrutura básica de form a a integrar o país neste sentido. O bservando a distribuição

das ações e investim ento do período, segundo Faro e Silva (2002), vam os observar que 43 %

dos investim entos estavam destinados a produção energética.

N este aspecto corroboram os com as considerações de A ndrade (2018) quando realiza

um paralelo em relação a cobertura periódica sobre a expansão am azônica na década de 1960:

106
Assim, a vitória sobre as condições naturais e o “efetivo domínio” daquelas plagas
reforçavam a vitória do Brasil sobre ele mesmo. Rememorando imagens da Marcha
para o Oeste, tratava-se do imperialismo brasileiro conquistando a si próprio. A
Marcha, programa de colonização criado por Cassiano Ricardo durante o Estado
Novo, foi pródiga em ressaltar o “espírito bandeirante” e a “conquista” das terras
brasileiras. Pouco efetivo, o programa criou ideias-forças que foram apropriadas
pelos presidentes tanto do período democrático quanto do período ditatorial pós-
1964, em especial na construção da rodovia Transamazônica. Dessa forma, as
imagens aqui apresentadas representam também a concepção construída por esses
agentes políticos e culturais sobre a região amazônica e seu processo de
desenvolvimento (p. 11)

O bserva-se assim que a im prensa de circulação nacional, po r m eio de periódicos com o

o Jornal O Estado de São Paulo e a Revista Visão, apresentava densa publicação de m atérias

dirigidas ao estabelecim ento do projeto hidrelétrico e seus eventuais ganhos futuros. Som adas

a estes, destacam -se as publicações de outros periódicos com o os j á m encionados Correio do

Estado e a revista B rasil-O este , que ju n to s articulam u m a teia de significações e ações


m odernizadoras para o país. C onstrói-se, dentre outros fatores, o interesse paulista em

assegurar que o em preendim ento logo se concretizasse, para evitar o déficit energético no

E stado, questão que era prevista para os próxim os anos, por problem as que já vinham

ocorrendo na década de 1950.

A o m esm o tem po, esta leitura de desenvolvim ento tam bém está ligada a um sentido de

dom inação, pois a sua construção, com o dito, contribuiria para integração do país por m eio de

novas vias que seriam a “ solução única para os enorm es problem as de colonização do O este

brasileiro ” . U m sentido que, po r vezes, estava atrelado principalm ente aos interesses paulistas

na região, ou tam bém , com o destacou o v ice-presidente João G oulart “ a hidrelétrica dava aos

paulistas a oportunidade de criar o im pério econôm ico, após no bandeirantism o, ter criado o

im pério político” (O ESP, Jun 1957).

A o longo das m atérias, tam bém pode se observar que o p esado investim ento o qual era

anunciado pela im prensa buscava leg itim ar u m a nova im agem para o Sul de M ato G rosso,

com o região atrativa para novos investim entos, centros industriais, calcados principalm ente em

atrair capital estrangeiro, assegurando que o em presário “ dificilm ente encontrará no m undo de

hoje onde com prar terras tão vastas, a preço tão acessíveis, sem o risco de conflitos políticos

com o povo da região ou de problem as raciais ” (V ISÃ O , Out. 1959).

Suas im agens e potencialidades tam bém seriam divulgadas, durante as décadas

subsequentes, com o resultantes das práticas e ações dos grupos que assum iriam o poder a partir

do golpe de 1964. Junto ao divulgar do andam ento do projeto, estariam presentes id eia s e

aspirações do regim e m ilitar, que com o “m arcas de um a m em ória construída” , com o assevera

107
A quino (1999) atrelaria os cam inhos do setor energético e desse em preendim ento a seus

interesses e necessidades, parte de sua estratégia de controle e dom inação, ligado à lógica de

exaltar o “B rasil-P o tên cia” que estava nascendo sob sua condução. E m outros m om entos, o

p eriodism o contribuiria p ara revelar determ inadas tensões e contradições entre os cam inhos do

projeto hidrelétrico e o próprio regim e.

É im portante ressaltar que as pesquisas sobre as relações entre os periódicos as im agens

construídas sobre o antigo Sul de M ato G rosso, especificam ente ante os projetos hidrelétricos

frem entes a partir da década de 1960 contribuem diretam ente para com preensão da im p o rtân cia

dada ao novo governo para criação de um aparato de propaganda que cuidasse da im agem

pú b lica do regim e, consolidando elem entos j á existentes m as que agiam de form a

desarticulada. E diretam ente as transform ações que ocorriam e outras que estavam em curso

nesta região do país, adentrariam o aparato governam ental de propaganda, assim com o

continuariam a alim entar toda u m a “teia de fatos” que eram replicados em jo rn a is e revistas de

circulação regionais e nacionais (V E SE N T IN I, 1997)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

C om o pontuado n esta breve análise as potencialidades a partir dos/nos periódicos a

m uito não são um a novidade para as ciências hum anas. N em m esm o análises aqui apresentadas

m ostram -se com o u m a novidade, podendo ser observadas em distintos espaços do país ao longo

das significativas transform ações que acom panham o estabelecer de projetos de

desenvolvim ento nacional e regional. Porém , nossa contribuição ju stam en te se em aranha na

ten tativa de observar que ainda são poucas as pesquisas que exploram as p o tencialidades destas

fontes para o setor energético, principalm ente se tratando de pesquisas em territó rio sul-m ato-

grossense. A s p roblem áticas e possibilidades que este conjunto de fontes possibilitam estão

postos, cabe a nós, pesquisadores, aprofundar na construção de novos diálogos.

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109
AS POTENCIALIDADES DO RPG NO ENSINO DE HISTÓRIA:
ALTERIDADE E EMPATIA

C A IO C O B IA N C H I D A S IL V A *55

E ste artigo apresenta as potencialidades do R P G para o desenvolvim ento da alteridade

e da em patia histórica. N ão apresento um a análise em pírica, m as em diálogo com a literatura

especializada e com a base teó rica proponho a construção de hipóteses.

R P G é a sigla u tilizad a com o abreviação para o term o role-playing game, que pode ser

traduzido com o jo g o de interpretação de papéis. G rosso m odo, pode-se entendê-lo com o um

jo g o no qual os jo g ad o re s interpretam personagens, com o em um teatro im provisado, e

precisam to m a r decisões e resolver situações-problem a criadas po r um n arrador conhecido por

mestre do jogo. É característico do R P G que as escolhas feitas durante o jo g o alterem o


d esenrolar da história e até m esm o o seu final, podendo ser trágico ou glorioso. N o decorrer da

tram a, o personagem vai sendo desenvolvido pelo jo g ad o r, sendo-lhe perm itido refinar suas

características m orais, equipá-lo com diferentes arm as e arm aduras, aprim orar seus atributos

(força, inteligência, destreza, etc.) e aprender determ inadas habilidades. A lguns R PG s

assum em tem as históricos com o pano de fundo da am bientação.

A credito que a construção e a interpretação dos personagens de R P G pelos jo g ad o res

dizem algum a coisa a respeito de sua identidade, afinal, eles escolhem um a raça entre outras

para interpretar, escolhem um a classe (guerreiro, clérigo, etc.), elaboram um a história de vida,

atribuem -lhes traços físicos e m orais e fazem outras tantas escolhas de acordo com suas

referências e preferências. A o m esm o tem po, ao terem contato com as experiências históricas

da contingência vivenciadas pelos personagens históricos apresentadas pela narrativa rpgística,

conjecturo que os estudantes possam constituir sua identidade histórica a p artir do

desenvolvim ento do pensam ento h istórico em um processo de em patia e alteridade. A ntes de

se aprofuntar no R PG , vejam os com o se dá a relação entre a instituição da identidade e o

pensam ento histórico.

Segundo R üsen, a vida hu m an a está condicionada a que cada pessoa, po r si e na relação

com as dem ais, possua um m ínim o de continuidade no processo tem poral de sua v id a cotidiana.

E ssa continuidade é a natural do próprio corpo (entre o nascim ento e a m orte), m as precisa ser

em oldurada num a duração cultural. O hom em precisa interpretar o m undo e a si m esm o para

55* Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), doutorando em História.

110
viab ilizar a vida. A resposta a essa carência de sentido é form ulada geralm ente na fo rm a de

u m a história. N ão se pode resp o n d er à pergunta sobre “ quem sou eu” , sem se contar um a

h istória sobre a própria vida. N essa história, a representação do fluxo tem poral inclui “ a

experiência de tudo o que se é ou foi, assim com o a expectativa de tudo o que se poderia ou

desejaria ser ou ainda se há de ser. A m bas, experiência e expectativa, fundem -se na unidade de

um direcionam ento tem poral de sentido da vida hu m an a” (R Ü SE N , 2015, p. 116). D essa form a,

o ato de narrar um a história sobre a própria vida aparece para o sujeito com o form a de expressar

suas carências de orientação ao m esm o tem po em que busca preenchê-las com sentido

v iab ilizad o r da vida.

H á que se n o tar que a unidade entre o que se foi, se é e se há de ser não é constituída

apenas por um a relação autointerpretativa consigo m esm o, m as tam bém pelo que os dem ais o

deixam ser ou pelo que se quer ser na relação com os dem ais. O s sujeitos procuram conciliar

as aspirações pessoais de v alo r próprio com as atribuições de outros, de tal m aneira que possam

m anejar-se no âm bito social. N esse sentido, a identidade, pessoal ou social, é sem pre a

diferença para com os outros. P o d er dizer “ eu” ou “ nós” pressupõe necessariam ente um “ não

eu” ou “não nós” . P ara R üsen (2014), a form ação da identidade se efetiva não só na som a das

autorrelações historicam ente interpretadas ou nas form as sociais de socialização e

pertencim ento, m as nas experiências de alteridade com potencial conflitivo.

D iante da necessidade de reconhecim ento e de m over-se no âm bito social, o sujeito

pode narrar histórias que lhe perm itam delim itar-se, integrando-se ao grupo ao m esm o tem po

em que exclui os outros. P o r outro lado, ele pode encontrar dificuldade em narrar histórias que

perm itam -lhe haver-se consigo m esm o, na m ed id a em que estas possam acarretar em exclusão

perante os dem ais.

D ito isso, acredito que por m eio do pensam ento histórico o sujeito possa narrar histórias

hum anisticam ente, de m odo a reconhecer a diferença cultural, fazendo v aler a dignidade de

diferentes form as de vida. A lém disso, essa form a de pensam ento lhe perm ite olhar para a

alteridade reconhecendo tam bém a sua própria singularidade, legitim ando a sua autoestim a. D e

acordo com R üsen (2007), ao intern alizar a alteridade das experiências do passado antes

desconhecida, os sujeitos passam a se situar na m ultiplicidade dos m odos de ser, sentir e viver

dos hom ens no espaço e no tem po. E xpandem seu horizonte de autocom preensão para a

hum anidade, conhecendo m elh o r a si m esm os.

E ntendo que a internalização da alteridade das experiências do passado deve vir

acom panhada de um processo de em patia histórica, caso contrário a alteridade pode ser

encarada com estranham ento, incom preensão e ju lg a m e n to arbitrário.

111
Segundo P eter Lee, a em patia histórica não pode ser alcançada quando um estudante

m antém u m a rejeição relativa às pessoas no passado e não as vê com o seres hum anos com

direito ao m esm o respeito que exigim os para nós. “ A consequência directa de os alunos não

com preenderem o passado é que este se torna num a espécie de casa de gente desconhecida a

fazer coisas ininteligíveis, ou então num a casa com pessoas exactam ente com o nós m as

absurdam ente to n tas” (LEE, 2003, p. 29).

A inda para Lee (2003), essa com preensão não pressupõe u m a faculdade especial em

que os indivíduos parecem particularm ente sensíveis aos sentim entos dos outros. A

com preensão histórica não é ela própria um sentim ento, um a partilh a de sentim entos ou

sim patia. N ão podem os sentir orgulho de u m a v itória m ilitar quando não possuím os os valores

daqueles que a ganharam . M as, podem os com preender os sentim entos que eles carregaram

consigo sem os sentir, aceitar ou partilhar. A co m p reen são histórica vem da m aneira com o

sabem os de que form a as pessoas viram as coisas, o que tentaram fazer e que sentim entos eram

apropriados àquela situação:

Por forma a compreender acções e práticas sociais os alunos devem ser capazes de
considerar (não necessariamente aceitar ou partilhar) as ligações entre intenções,
circunstâncias e ações. Não se trata somente dos alunos saberem que os agentes ou
grupos históricos tinham uma determinada perspectiva acerca do seu mundo; eles
devem ser capazes de ver como é que essa perspectiva terá afetado determinadas
acções em circunstâncias específicas (LEE, 2003, p. 20).

A ssim , ao olharm os para as pessoas do passado, passam os a com preender que elas não

agiram de determ inada m aneira porque foram bobas ou m alvadas, m as porque a p artir de

determ inados valores e determ inadas situações aquelas ações faziam sentido. A lém do m ais, é

a m udança de valores e o surgim ento de novas situações que nos levam a estranhar, partilhar

ou condenar valores e práticas do passado.

A em patia histórica constitui, portanto, um a realização inerente ao ofício do historiador.

Segundo M artins (2011), com o o ser hum ano sem pre atribui sentido àquilo que faz e àquilo

que padece, im porta reconstruir as influências presentes no plano intencional do a g ir: valores,

ideias ou interesses que o fundam entam e o orientam . O rigem cultural, estratificação social,

linguagem , religião e tantos outros elem entos consagrados nesse processo são definidos,

delim itados, interpretados e articulados em seu papel de influências, fatores e causas. E m certos

casos vêm a ser tam bém rejeitados ou recalcados, em função da experiência vivida no cam po

social.

112
B odo von B orries tam bém se dedica a entender a em patia histórica, considerando-a um a

tarefa cognitiva (causa das ações), m as tam bém com o aquilo que nos afeta. P ara o historiador,

olhar m etodologicam ente a história requer duas pernas para se sustentar: em patia histórica e

ju lg a m e n to histórico.

A em patia histórica seria o conhecim ento sobre o m undo exterior investigado através

da explicação via contextualização, o que exige m uita inform ação ou conhecim ento. P orém , a

em patia envolve tam bém com ponentes estéticos, m orais e afetivos. D aí que é preciso se atentar

à outra perna do m étodo histórico. O historiador não está interessado apenas na reconstrução

dos processos históricos, m as na situação de hoje. E le vive, escolhe, interpreta e escreve a partir

de percepções atuais. H istória é, pois, v inculação entre passado, presente e futuro. Para B orries

(2018), em patia sem ju lg a m e n to seria apenas um hobby e ju lg a m e n to sem em patia um a

arrogância m oral. C om binar os dois de u m a fo rm a intelectualm ente correta significa ganho

m ental e crescim ento.

N esse sentido, acredito que a prática de R P G com tem a histórico pode auxiliar os

estudantes a desenvolverem um olhar em pático (cognitiva e esteticam ente) a respeito da

alteridade dos sujeitos históricos. C om o lem brado por V asques (2008), os jo g ad o re s precisam

dispor de um a visão histórica que lhes possibilite reconhecer elem entos de alteridade, com o

ocorre, por exem plo, quando o R P G apresenta as vantagens e desvantagens sociais que os

personagens podem possuir. O livro-jogo O Desafio dos Bandeirantes, por exem plo, descreve

o estigm a sofrido pelos negros na sociedade colonial brasileira, fator que deve ser levado em

conta durante a sim ulação:

Os negros eram escravizados até fins do século XIX; os índios foram explorados e
perderam muito de sua cultura; e os brancos se sentiam superiores e donos da verdade.
Tudo isso faz parte de nossa História, e desprezar qualquer um desses fatos seria
descaracterizar a proposta deste RPG, que é, basicamente, a sua ambientação
inteiramente nacional (PEREIRA; ANDRADE; FREITAS, 1992, p. 5).

A inda que possa apresentar determ inados elem entos históricos de m aneira um tanto

quanto estereotipada, os personagens de R P G precisam ser entendidos a p artir de sua alteridade,

constituída em m eio a um dado contexto. É característico que os jo g ad o re s adotem ações

correspondentes com a raça e a profissão (ou classe) escolhidas para o seu personagem . Então,

diante da am bientação (cenário, tem ática, história) apresentada pelo livro -jo g o e, m ais

especificam ente, de determ inadas situações elaboradas pelo m estre de jo g o (por exem plo,

particip ar ou não de um a rebelião de escravos contra um senhor de engenho) é esperado que os

113
jo g ad o re s se indaguem : com o, po r exem plo, um guerreiro indígena ou um je s u íta reagiria a

essa situação?

C onjecturo que, ao terem contato com a alteridade dos personagens para exercer sua

interpretação ou interagir com outros deles, os estudantes/jogadores possam ser levados a

reconhecer seus próprios valores, questionar as suas próprias referências, localizar-se no tem po

h istórico e desenvolver sua consciência histó rica na constituição de sua identidade. C om o a

rebelião de escravos m e toca? S egundo Fronza, são os valores presentes nas narrativas

históricas - seus elem entos m orais, políticos, estéticos, cognitivos e ideológicos - que

possibilitam o envolvim ento dos jo v en s com o passado. N ão u m a linha tem poral abstrata, m as

sim o “ reconhecim ento ético da diferença entre os valores dos outros hom ens do passado com

os valores que os jo v e n s enfrentam na alteridade presente na vida p rática contem porân ea”

(2012, p. 63).

N esse sentido, m esm o os personagens ficcionais representam valores e possibilitam o

reconhecim ento da alteridade a partir das situações contingenciais e da am bientação fornecidas

durante a narrativa de R PG , podendo inclusive gerar pro d u ção de sentido. D e qualquer form a,

o conhecim ento histórico pode servir com o b aliza para a produção de sentido. Segundo Fronza,

a em patia possibilita o controle da fantasia e estética, sem contudo perder sua potencialidade

da produção de sentido. P elo contrário, “ a H istória é, por isso, um conjunto de narrativas

históricas que com unicam valores hum anos que fundam entam a m em ória social dos sujeitos

para afirm ar, im itar, criticar ou transform ar a trad ição cultural a que estão subm etidos” (2012,

p. 94).
A qui, posso ser indagado se os elem entos ficcionais do R P G não podem levar a um

abafam ento dos conteúdos experienciais apresentados, prejudicando o potencial de

constituição de sentido e de orientação tem poral na constituição da identidade dos jo v en s, que

deveria ocorrer a partir da articulação de um processo real de continuidade (passado, presente,

futuro) no tem po. O ra, pois, assum o esse risco. A ssim com o q uaisquer outros artefatos da

cultura jo v em - film es, m úsicas e quadrinhos - podem ser constituídos a partir de um

desequilíbrio entre intenções estéticas e elem entos cognitivos, o R P G tam bém pode. O objetivo

é ju sta m e n te entender com o os estudantes desenvolvem sua consciência histórica a partir desse

suposto desequilíbrio. Som ente conhecendo com o os jo v en s articulam suas operações m entais

em contato com os artefatos culturais é que podem os p rom over instrum entos para que as

aperfeiçoem de m aneira crítica.

Se a narrativa rpgística não dispõe de elem entos m etódicos com o aqueles próprios à

historiografia para e stabelecer conexões entre as circunstâncias históricas, os valores e as ações

114
dos hom ens no tem po, no m ínim o leva os jo g ad o re s à avaliação das ações de seus personagens

históricos não com o vazias de sentido, m as com o respostas a situações específicas, com o um a

escolha, entre outras, do que era plausível para aquele contexto.

Segundo V asques (2008), ao se utilizar referências ficcionais, a ambientação rpgística

pode perder, em princípio, sua ligação com fatos reais, m as não com conceitos reais, sejam eles

históricos, científicos, econôm icos, políticos, etc. M esm o quando a ambientação é totalm ente

criada sem utilizar algum m om ento histórico real com o referência, os jo g ad o re s assim ilam a

n ecessidade de pensar de fo rm a racional sobre a histó ria explorada pelo RPG . N a criação de

um personagem , por exem plo, o jo g a d o r to m a consciência ao decidir as características de seus

personagens levando em conta as lim itações culturais, científicas, m ateriais e econôm icas da

época a ser utilizada.

N esse sentido, ainda que seja por m eio de um contexto im buído de elem entos ficcionais,

no R P G com tem a histórico, o estudante pode operacionalizar conceitos substantivos

(escravidão, bandeirantism o, colonização) sem p erd er a conexão com questões epistem ológicas

(alteridade e em patia) ao reconhecer a singularidade do personagem representado e reconstituir

as condições de possibilidade de suas ações. N o jo g o , os conceitos são operacionalizados em

resposta a situações concretas e não com o abstrações. Segundo Schm idt e C ainelli, os

estudantes devem ser capazes de construir u m a grade de referência relacionada com a

com preensão orgânica da realidade social. “E n sin ar conceitos históricos não é im por o uso

abusivo de term os técnicos e definições abstratas nem de m em orização de palavras e de seu

significado” (2009, p. 85).

B raga observou que, ao se sentir responsável por outro alguém , no caso seu

personagem , o jo g a d o r lança m ão de todos os esforços para dar vida e continuidade a ele.

E nquanto os jo g ad o re s m ais inexperientes costum am descrever h istórias m ais curtas e sim ples,

os m ais velhos se expressam m ais detalhadam ente. A lguns jo g ad o res tom am o personagem

com o um ente tão im portante que são capazes de passar dias e dias pesquisando para com por

um h istórico bem próxim o de elem entos reais. A p artir da tem ática abordada, os rpgistas vão

ao encontro dos “ livros que podem lhes ajudar a entender e in terpretar a época em que vivem

no plano im aginário” (B R A G A , 2000, p. 03).

G ostaria de frisar que o R P G não pode ser confundido com um a narrativa histórica

científica ou m esm o com um a ferram enta didática através da qual o conhecim ento histórico

seria transposto para um a outra form a de linguagem . O R P G não segue, e não pretende, os

m esm os critérios da historiografia no processo de reconhecim ento da alteridade dos sujeitos

históricos, o que pode lim itar a expansão qualitativa da percepção das experiências históricas.

115
O que se coloca aqui são os potenciais que o R PG , to m ad o com o artefato cultural ligado à

cultura histórica e à cultura jo v em , possui no âm bito da aprendizagem histórica. A prendizagem

esta que é desenvolvida nas diversas esferas da vida dos indivíduos e que deve ser aperfeiçoada

ao longo do ensino form al.

D essa form a, apresento a seguinte hipótese a respeito da constituição da identidade dos

jo v en s a p artir do RPG: ao interp retar personagens históricos e terem contato com outros m ais

disponíveis no jo g o , os jo g ad o re s precisam reconhecer a sua alteridade, podendo assim situar-

se perante os diferentes m odos de ser e de agir; nesse m esm o processo, precisam reconstituir

os valores e intenções e reconhecer as condições por m eio das quais atuavam esses sujeitos

(am bientação), o que pode levá-los a se sensibilizar perante eles e desenvolverem a em patia

h istórica (cognitiva e em ocionalm ente).

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117
O ESTADO NA DITADURA CIVIL MILITAR COMO
MOBILIZADOR DO MEDO: ANÁLISE DO MUNICÍPIO DE SÃO
BORJA, FRONTEIRA OESTE DO RIO GRANDE DO SUL

C A M IL A D E A L M E ID A S IL V A 56

Resumo: A ditadura civil m ilitar brasileira m obilizou o m edo na população de diferentes


form as, a D o u trin a de S egurança N acional foi um dos m eios que p erm itiu m aterializar as bases
para a repressão e possibilitou a exacerbação de alguns entendim entos com o segurança,
desenvolvim ento, com unism o, subversão e inim igo interno/externo. C ontudo, a dissem inação
desse m edo não ocorreu de form a invariável para todo o B rasil, as regiões apresentaram as suas
particularidades e as dinâm icas locais tam bém estiveram presentes. N esse sentido, a cidade de
São B orja, fronteira oeste do R io G rande do Sul experim entou algum as estratégias que deram
robustez e expressaram os cam inhos adotados pela repressão para g arantir a suposta segurança
e o desenvolvim ento. P retendem os nessa com unicação tratar da im portância dos estudos das
particularidades da repressão durante a ditadura civil m ilitar no B rasil. P ara isso, explorarem os
dois episódios da repressão em São Borja. P rim eiram ente a perseguição à A lberto R ocha
B enevenuto, m édico, com unista, à época vereador, cassado em 1964, que posteriorm ente
recorreu ao exílio com o m eio de sobrevivência, em seguida, tratarem os do caso de D ino A ldir
do N ascim en to Lopes, na época, estudante de direito, professor de língua portuguesa, suplente
de veread o r e que sofreu pelas m ãos da repressão entre os anos de 1968 - 1971. P retendem os
tam bém , ao contribuir com o conhecim ento h istórico desse evento, evidenciar a im portância
em reconhecer o local com o integrante da to talidade e que conhecer nossa h istória perpassa
a m áxim a sobre as ditaduras: para que nu n ca se esqueça, para que nunca m ais aconteça.

Palavras-chave: ditadura-civil-m ilitar; São B orja; Fronteira; D outrina de S egurança N acional.

INTRODUÇÃO

A concepção de que a D itadura Civil M ilita r B rasileira fom entou o m edo é bastante

consolidada em nossa historiografia. O E stado, em parceria com a sociedade civil, grandes

em presários e associações de classe organizadas, orquestraram diferentes form as de reprim ir

aqueles que contestavam o golpe e a D itad u ra que se estabeleceu. C onhecem os m uito dessas

estratégias repressivas, contudo, ainda tem os um largo cam inho a percorrer, principalm ente

para que possam os com preender o interior do B rasil, os locais afastados dos grandes centros

urbanos, focalizado em cada um a de suas particularidades.

É nesse sentido que essa com unicação se coloca, b u sca evidenciar as particularidades e

as dinâm icas locais da cidade de São B orja, fronteira com a Santo T om é na A rgentina, oeste

56 Mestra em História, pela Universidade Federal de Pelotas - UFPel. Doutoranda pela Universidade Federal de
Santa Maria - UFSM, bolsista CAPES-DS. E-mail: casilva2015 @gmail. co m

118
do R io G rande do Sul. D e m odo geral, o conhecim ento sobre a ditadura nesse m u n icíp io foi

potencializado pelo trabalho da C om issão N acional da V erdade e pelo trabalho da C om issão

E stadual da V erdade. E ssa últim a, em seu relatório, apontou grandes lacunas, tanto no

conhecim ento da C om issão sobre os fatos que surgiam , com o da historiografia.

O relató rio da C N V apontou que no R io G rande do Sul haviam trin ta e nove centros de

prisão e tortura em dezesseis m unicípios: T rês Passos, F rederico W estphalen, P alm eira das

M issões, São B orja, A legrete, Santa M aria, São G abriel, Santa do L ivram ento, R io G rande,

G uaíba, P orto A legre, C harqueadas, C anoas, C axias do Sul, São L eopoldo e V iam ão, listando

dezenove agentes da repressão ligados ao aparato repressivo (C N V , 2014), em sua grande

m aioria, agentes atuantes nos grandes centros, possibilitando perguntar, quem foram os agentes

repressores do interior do estado?

E m 2014, C arlos G uazzelli, defensor público e coordenador da C om issão E stadual da

V erdade, explicitou em reportagem ao Sul 21, que no R io G rande do Sul ocorreram cerca de

2.800 casos de torturas, m uitas delas, não esclarecidas. E sse era o caso de D ino A ldir do

N ascim en to Lopes, desconhecido da C om issão, até aquele m om ento. O relato de D ino

representou o prim eiro fio para conhecer sua h istória e de dezenas de outros perseguidos pela

ditadura.

O núcleo da estratégia de repressão perpetrada, centrava-se na lógica da suspeição,

em pregando de form a refinada o terro r físico, psicológico e ideológico, que variavam de

intensidade e extensão, pretendiam de m odo geral, p unir os considerados “ subversivos” , extrair

inform ações de outros, u m a vez que a suspeição era a prem issa, e com isso, espalhar o m edo

pela sociedade (B A U ER , 2015).

D estacam os a distinção entre as fronteiras secas, sem acidentes geográficos e as

fronteiras “ separadas” po r rios. A ú n ica ligação rodoviária que une B rasil e A rgentina, entre as

cidades de São B orja-S anto T om é é feita desde o dia 7 de dezem bro de 1997, através da Ponte

da Integração. Já nas cidades de U ruguaiana-P asso de Los Libre, a ponte internacional foi

construída em 12 de outubro de 1945. N a região, a cidade de Itaqui é a ú n ica que até o presente

não possui ponte que a conecte com a cidade de A lvear, distante apenas 7 km , necessário que

o travejo seja feito po r um a balsa ou barco.

A s diferentes características das cidades que faziam fronteira com a A rgentina exigiram

atuações diferenciadas p ara a região, que foi to rn ad a área de interesse da segurança nacional

pela lei 5.449 de 1968, que fortaleceu um cuidado j á destacado pelo A to Institucional n° 3, de

5 de fevereiro de 1966, com propósito de estabelecer eleições indiretas para as capitais dos

119
estados e que os prefeitos seriam nom eados pelos governadores. A lei 5.446 incluis diversas

cidades do interior nesse m odelo.

D os 71 m unicípios brasileiros tornados áreas de in teresse a partir da Lei n° 5.449 de

1968, 24 estavam localizados em solo gaúcho, de m odo que, a B acia do P rata foi central para

g arantir prim ordialm ente condições de segurança, essas cidades foram : A lecrim ; Bagé;

C rissium al; D om Pedrito; E rval; H orizontina; Itaqui; Jaguarão; P ô rto L ucena; P ô rto X avier;

Q uaraí; R io G rande; Santa V itória do Palm ar; Santana do L ivram ento, São B orja; São N icolau;

T enente Portela; T rês Passos; T ucunduva; T uparendi e U ruguaiana. P osteriorm ente, em 1969

foram incluídas as cidades de C anoas, O sório e T ram andaí e em 1971 a cidade R oque G onzales.

O s P refeitos eram nom eados pelo G overnador do E stado, m ediante aprovação prévia do

P resid en te/D itad o r da R epública, além disso, o respaldo para essa intervenção nas cidades e

estados está presente na C onstituição de 1967, que possibilitou a intervenção federal nos

estados e m unicípios.

E sses cuidados com a região, indicam u m a preocupação do E stado e refletem a

experiência de vid a na fronteira, onde sujeitos tem a capacidade, adquirida com o tem po e ao

longo de suas histórias de “m an ejar as fro n teiras” , conceito elaborado por A driana D orfm an,

que expressa a articulação e o trânsito na diferença, m esm o inseridos em contradições, as

populações adquirem a capacidade de saber passar ou saber m an ejar o esp aço (D O R FM A N ,

2009).

A lém da condição fronteiriça, o estado do R io G rande do Sul historicam ente m anteve

fortes relações com os países vizinhos, o trânsito m ais facilitado e as experiencias dem ocráticas

e revolucionárias desses países fom entaram a p reocupação dos ditadores. Q uando pensam os

São B orja, que experenciou no seu passado as disputas territoriais entre portugueses e

espanhóis, foi tam bém palco da Farroupilha. T ais eventos projetaram u m a m aior preocupação

das autoridades. Sob a perspectiva da longa duração, é necessário olhar para essa região e

com preender sua constituição e sua história. Suas conexões tam bém estão na outra m argem do

R io U ruguai, incluindo o fato de que São B orja, Itaqui e U ruguaiana consolidaram -se enquanto

cidades m ediante o estabelecim ento de batalhões m ilitares, em função das estratégias políticas

no Prata, entre os séculos X IX e XX.

Os sujeitos que com põem esse período, de nossa h istória recente, são frutos dessa longa

historicidade, dessa relação com suas fronteiras, apoiados na capacidade de tran sitar pelo

espaço. São expressões da repressão perpetrada pelo E stad o brasileiro, contudo, envolto em

suas particularidades.

120
A DITADURA CIVIL MILITAR EM SÃO BORJA: ALBERTO ROCHA
BENEVENUTO E DINO LOPES EM FOCO

A lberto R o ch a B enevenuto foi um m édico, político, vereador, pai e m arido, que viveu

em São B orja, na V ila 13 de Janeiro, distrito do m unicípio. N ascid o em 24 de agosto de 1927,

faleceu no dia 28 de ja n e iro de 1978 em um acidente de trânsito na cidade de O sório, litoral

gaúcho, próxim o da capital P orto A legre onde estava vivendo ju n to após reto rn ar do exílio. A

fam ília, representada po r M arilia B enevenuto C hidichino, filha de A lberto, em depoim ento à

C om issão N acional da V erdade, destacou, que na época, o pedido de autopsia foi negado, com

a desculpe de que “ m édico não faz autópsia em outro m éd ico ” (CV N , 2014).

A desconfiança veio tam bém porque A lberto foi bastante perseguido pela repressão,

além disso, a notícia de sua m orte chegou à São B orja a prim eira vez a p artir de u m a m entira,

segundo M arília, não há dúvidas de que foi assassinado, p o r duas vezes sua m orte havia sido

recebida em São B orja, sem pre relacionada a um acidente de trânsito, tal com o m ais tarde

ocorreu de fato.

Sua morte materializou-se em janeiro, 1978. Mas, meses antes já havia sido
anunciada, por duas vezes correu a notícia que havia morrido em acidente de trânsito.
O MDB São Borjense reuniu-se, aguardando o corpo, era, no entanto, rebate falso,
até que, na terceira vez, o anúncio da destruição da vida de Alberto, infelizmente era
verdadeiro e morreu exatamente na forma como vinha sido noticiado: acidente de
trânsito (CNV, 2014).

A lberto, viveu em São B orja até 1964, foi o prim eiro atingido p ela repressão no

m unicípio, e ju n to dele, to d a sua fam ília foi afetada. Inicialm ente exilou-se na A rgentina, e

posteriorm ente no U ruguai. Foi abrigado a abandonar o cargo de m édico que exercia ju n to à

SA M D U - Serviço de A ssistência M édia D o m iciliar e de U rg ên cia e de seu cargo de vereador,

investido em ja n e iro de 1964, exercido até os últim os dias de sua perm anência em São Borja.

E ra originalm ente integrante do P artido C om unista, contudo, elegeu-se a p artir de um a

coligação cham ada U nião P o p u lar São B orjense, que aglom erava um grupo dissidente do PTB ,

além do PL, M T R , P S P e dissidência do PSD , com o o PC estava na ilegalidade, a sigla U PS

p arece ter aceitado candidatos sem partidos naquele m om ento, ou pode te r ocorrido a filiação

a algum desse partidos, com o objetivo da candidatura, contudo, não encontram os qualquer

inform ação que defina qual p artido p ertencia nesse período. O s docum entos produzidos pela

repressão sem pre o definiam com o ex-m em bro do PC e UPS.

121
N o curto período que esteve veread o r em São B orja defendeu que a casa se posicionasse

em defesa do João G oulart. A lém de defender, em algum as oportunidades, a V ila 13 de Janeiro,

seu local de trabalho e residência, levou até o prefeito, G eneral Serafim V argas, as dem andas

da vila, em especial, o conserto de um m o to r da u sina da região, que sofria com quedas de

energia frequentes, inclusive, essa ação foi m al interpretada entre os colegas edis, que

defendiam que essas dem andas deveriam passar prim eiram ente pelo L egislativo. Independente

dos desejos dos edis, A lberto foi defender o interesse de seus eleitores pelos cam inhos que

acreditou ter m elhores respostas.

A pós o C om ício da G uanabara, quando o país estava cada vez m ais polarizado e

ten sio n ad o pelo discurso anticom unista, na sessão do dia 16 de m arço de 1964, A lberto

B enevenuto e P edro T elem os de Sá encam inharam um a proposição solicitando a form ação de

u m a C om issão de Inquérito para apurar as denúncias realizadas pelos v eread o r José P ereira

A lvarez, em u m a reunião com a classe ruralista da cidade, com a presença do prefeito Serafim

V argas, quando disse que haviam sido desem barcadas arm as pelos cam pos de nosso m unicípio.

U m a acusação bastante preocupante, contudo, infundada. E ssa C om issão n u n ca foi

form ada. U m dos relatores, P edro de Sá, solicitou que seu requerim ento fosse votado na

p róxim a sessão, que ocorreria no dia 23 de m arço, não há m enção, nas atas disponíveis, dos

m otivos para tal decisão. P odem os im aginar que houve um esvaziam ento da ban cad a do

proponente, ou esvaziam ento geral da sessão. O que sabem os é que a sessão do dia 23 não

ocorreu, na ata consta apenas o nom e dos presentes, m as que, devido um a falta de energia foi

im possível dar seguim ento aos trabalhos. D estacam os, que na m aio ria das vezes as sessões

ocorriam durante a tarde, além de que, em nosso papel crítico de tensionar as possibilidades,

não há garantias de que a ata apresente a realidade do ocorrido. Sabem os que não houve sessão

ou não houve registro, nos perm itim os deixar em aberto essa questão.

Sabem os que, entre os dias 16 de m arço, sessão que ocorreu o pedido de form ação de

C om issão Investigativa, até o dia 23 de m arço, m uito eventos agitaram o B rasil, entre eles a

M arch a da F am ília com D eus pela L iberdade, que na época, deu o tom dos antagonism os. Se

o C om ício da C entral do B rasil, aglom erou sindicatos, ligas cam ponesas, estudantes. A M archa

da F am ília com D eus pela L iberdade, contou com apoio das classes produtoras, da F ederação

e do C entro das Indústrias do E stad o de São Paulo, do Instituto de P esquisa e E studos Sociais

- IPES, em sua idealização e financiam ento, m arcada para o dia 19 de m arço, em conform idade

com os preceitos da fé católica, “ dia de São José, padroeiro da fam ília e da Igreja U n iversal”

(PR E S T O T , 2010, p. 77).

122
D ino A ldir do N ascim en to Lopes, nasceu em 19 de ju n h o de 1941, faleceu em 2022 e

por m uito anos p artilhou suas m em órias entre seus círculos fam iliares e políticos. A repressão

se apresentou em sua vida em 1968, quando ficou preso po r cerca de 30 dias para averiguações,

em função de sua atuação do program a “M ach a para o P rogresso” da rádio F ronteira do Sul.

D epois disso, outras 3 prisões ocorreram , um sequestro, o exílio e por fim , o retorno para S ão

B orja para cum prir o 1 ano e 3 m eses de prisão. O ú n ico são-borjense condenado pela ditadura.

Progressivam ente, em cada nova prisão e inquérito, os m ilitares interseccionavam outros

tem as, outras atividades, esm iuçando b o a parte de sua vida, incluído suas outras atividades

profissionais com o subversivas.

D ino era p rofessor de português no C olégio E stadual São B orja, radialista da Fronteira

do Sul, estudante de direito em Santo  ngelo e v eread o r pelo M D B e todas essas atividades

foram interrom pidas em função da atuação do E stado. Foi exonerado do cargo de professor do

estado, obrigado a afastar da rádio e em função das inúm eras prisões, deixou o curso de direito

entre os anos de 1969 a 1971 e foi forçado a ren u n ciar a vereança, pleito de 1968, que ficou

com o suplente, contudo, logo ao assum ir em 1969, foi im pedido de perm anecer no cargo.

A segunda prisão, a que gerou seu prim eiro IPM , ocorreu em 7 de setem bro de 1969,

até 30 de ja n e iro de 1970, no 2° R egim ento de C avalaria M ecan izad a de São B orja, durante a

prisão m uitas perguntas sobre a vida do A lberto B enenenuto foram realizadas, ao que parece,

a todo custo, os m ilitares pretendiam associar as atividades consideradas subversivas no

m unicípio ao m édico. U m dos grandes orgulhos de D ino é te r resistido e nunca te r dado

qualquer inform ação sobre A lberto. D in o nunca gostou m uito de falar sobre as barbaridades

que ocorriam durante os “interrogatórios” , sem pre preferiu falar de si com um ser resistente.

C ontudo, sabem os que nesse período, perdeu com pletam ente a visão do olho direito, segundo

m aterial disponível no A cervo de L uta C ontra a D itadura, isso ocorreu em função de um traum a

durante o cárcere.

D epois desse período de prisão, sua soltura foi sim ulada, durante a m adrugada, recebeu

ordem para que fosse em bora, achou tudo m uito estranho, m as obedeceu ao oficial do dia,

pediu apenas que lh e acom panhasse até a guarita, afinal, estava escuro ainda, poderia ser

confundido com um fugitivo. M eio a contragosto, conseguiu ser acom panhado, contudo, o

oficial não foi até a frente do quartel, apenas fez um sinal para a sentinela de plantão,

autorizando a passagem de D ino.

N esse m om ento, assim que pisou na calçada de fo ra do quartel, D ino foi encapuzado e

colocado na traseira de um fusca, levado em direção ao rio U ruguai. N esse m om ento, pensava

que seria m orto no rio. A cidade é relativam ente pequena, m as a distância que percorreu, para

123
D ino parecia um a eternidade, a ú n ica coisa que tinha sentido é que o carro havia virado para o

lado do rio, e nada m ais. P assado algum tem p o o veículo para, e ao descer e ter seu capuz

retirado, D ino encontra dois outros presos, M iguel Paiani D urão e A m andio A m aral, que

tam bém estavam no 2 R C M ec e que tam bém haviam sido sequestrados. O s três foram levados

para o quartel dos Fuzileiros N avais, na beira do rio U ruguai, onde hoje é a P olicial Federal,

de lá, foram colocados em u m a cam inhonete, algem ados entre si e levados até Santa M aria.

D ia 31 de jan e iro dava-se início ao terceiro cárcere. Ficou p reso até 18 de fevereiro de

1970, no R egim ento da B rigada M ilitar Cel. Pillar. C ontou com a ajuda do advogado A delm o

G enro para conseguir sua liberdade provisória enquanto aguardaria sua sentença. A pós a

obtenção da liberdade provisória, D ino, tem endo pela própria vida decidi ir para o exílio. O nde

ficou to d o o ano de 1970. C ontou com algum as redes de solidariedade, com o a do am igo

M iguel P aiani, que trabalhava com o transporte pelo rio. C ontudo, m enos de 24 horas do

m om ento que iria atravessar, D ino teve m edo, de ser descoberto, dos F uzileiros atirarem para

m atar. P o r isso fez outro cam inho, um am igo o levou até A legrete, depois disso, a p artir de

redes, descobriu um taxista que o levaria de A legrete até Santana do L ivram ento, onde poderia

atravessar a pé para o U ruguai.

V iveu no U ruguai de m arço a dezem bro de 1970, sentia-se triste, não tin h a trabalho,

afinal, era p rofessor de Português, conseguia trab alh ar em R iv era dando aulas para aqueles que

desejavam aprender a língua, m as não era n ad a fácil. N esse período, enfrentou tentativas de

sequestro, de forças policiais tanto brasileiras, quanto uruguaias, quando, sem encontrar m elhor

solução, em 22 de dezem bro decidiu entregar-se, no 7° R egim ento de C avalaria de Santa do

L ivram ento, a fim de cum prir a sentença de um ano e três m eses de reclusão, conseguiu ser

transferido para São B orja, onde ficou preso até 22 de outubro de 1971.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A h istória de A lberto e D ino expressam dois grandes grupos atingidos pela repressão.

A lberto durante a O peração L im peza e D ino com o estabelecim ento do A to Institucional n° 5.

Suas histórias não cabem apenas nesse texto, m as dão o tom da repressão na região. D ino,

em bora eleito pela sigla do M D B , integrava anteriorm ente do P artido C om unista, era am igo de

A lberto e de sua fam ília, inclusive, contou com apoio de A lberto em seu envolvim ento com a

política.

124
A repressão preventiva em São B orja fom entou significativam ente form as de

resistência. O discurso anticom unistas foi b asilar para determ inar quem seriam os m ais visados,

aqueles, claro, pertencentes ao P artido C om unista, m as tam bém , aqueles que detinham cargos

públicos ou m esm o atuavam com m uitas pessoas, caso de A lberto, m édico e D ino, professor.

A m em ória de D ino, partilhada com igo, é tam bém a m em ória de A lberto, um pouco da atuação

de A lberto esteve sem pre na m em ória de D ino. Seja na v id a que tiveram ju n to s, seja nas

lem branças dos “ interrogatórios” onde era um a das principais perguntas.

REFERÊNCIAS

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L iberdade e o G olpe de 1964. In.: A construção social dos regimes autoritários. R io de
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[s.l.] M edianiz, 2015. v. 2 ed.

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E S T U D IO S H IS T O R IC O S - C D H R P- m ayo - 2009. A cesso em: 31 out. 2022.
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amarradas” . D isponível em: < https://sul21.com .br/50-anos-do-golpe-civil-
m ilitar/2014/04/com issao-estadual-da-verdade-encontra-novo-personagem -no-caso-das-
m ao s-am arrad as/> . A cesso em: 31 out. 2022.

125
HISTÓRIA DO POVO INDÍGENA XOKLENG/LAKLÃNÕ - SÉCULOS
XVIII e XIX

C A R L O S E D U A R D O B A R T E L 57*

INTRODUÇÃO

E m m eados do século X IX , u m a incursão de B atedores do M ato (conhecidos

popularm ente com o bugreiros), próxim o de P apanduva, pertencente hoje à Santa C atarina,

entrou em contato com um grupo de B o to cu d o s.58 O bugreiro M achado, que estava na

v an guarda da tropa entrou em luta corporal com os indígenas, um desses pulou sobre o bugreiro

que lhe desferiu um golpe com o facão “ abrindo-lhe o ventre. O infeliz quis com as m ãos

segurar os intestinos, porém caiu sobre eles no chão” . E m outro episódio, ocorrido em 1908,

relacionado à construção da E strad a de F erro BrazilRailway, que tin h a por objetivo ligar São

P aulo ao R io G rande do Sul, alguns B otocudos foram alvejados po r construtores da ferrovia,

ao “ exam inar os cadáveres dos bu g res” perceberam que “ dois ainda viviam e gem iam ” , porém ,

conform e inform aram , não puderam se ocupar “ com eles e para que não sofressem , o

engenheiro m andou m atá-los” (Apud W A C H O W IC Z , 1969).

C asos com o os descritos acim a, ocorreram em profusão ao longo do século X IX e são

fartam ente encontrados nos docum entos e fontes bibliográficas. A h istória do B rasil é repleta

de violências contra as m inorias sociais, e quando praticada contra os povos indígenas essa

v io lência é, po r vezes, n egligenciada pela historiografia. P o r outro lado, ainda que m uitos

avanços, em term o s de inclusão, conquistas sociais e dem ocracia, tenham ocorrido ao longo

dos duzentos anos de B rasil, de fo rm a cam baleante e descontínua é verdade, violências

57* Docente do Instituto Federal Catarinense (IFC), Doutor em História (UFRGS), carlos.bartel@ifc.edu.br. O
artigo decorre do Projeto de pesquisa, intitulado “Os Xokleng-Laklãnõ em Santa Catarina - séculos XVIII e XIX”,
desenvolvido no IFC, contou com o apoio do Campus Ibirama e com o trabalho da bolsista Maria Eduarda Loch,
estudante do Curso Técnico de Informática Integrado ao Ensino Médio.
58Nas fontes, os Xokleng/Laklãnõ eram denominados genericamente como Botocudos, devido usarem um adereço
no lábio inferior, o botoque. Por sua vez, o termo Xokleng, usado por estudiosos para classificação e distinção
desses indígenas, foi popularizado através das obras do antropólogo Sílvio Coelho dos Santos. Atualmente tal
nomenclatura vem sendo questionada e relativizada por estudiosos e, principalmente, pelos próprios indígenas,
que assumindo a condição de protagonistas também para narrar sua história, têm utilizado a expressão Laklãnõ,
termo que remete ao grupo sobrevivente que protagonizou o contato com os agentes do SPI, em 1914. Sobre a
revitalização da identidade Xokleng/Laklãnõ ver, entre outros, os trabalhos de Namblá Gakran e a dissertação de
mestrado de Walderes Coctá, para esta autora, muitos foram os nomes dado a esse povo, como “Botocudos,
Aweikoma, Xocrén, Kainkang e Bugres. Mas nenhum desses nomes são reconhecidos pelo povo, que atualmente
se autodenomina como Laklãnõ, que significa povo que caminha em direção ao Sol ou povo do Sol (PRIPRÁ,
2021, p. 16-17).

126
diversas, exclusão e preconceitos (e até m esm o genocídio) persistem e fazem parte do cotidiano

até os dias atuais, principalm ente quando falam os de povos in d íg en as.59

E m S an ta C atarina, e na região ocupada pelos B otocudos em especial, até o início do

estabelecim ento de im igrantes, italianos e alem ães em sua m aioria, os choques com as

rarefeitas populações locais existiam , m as em m en o r núm ero, se com parados com “a vio lência

que im perará, quando da chegada e da expansão da im igração europeia, na segunda m etade do

século X IX e início do século X X (W A C H O W IC Z , 1969, p. 476). N o territó rio dos B otocudos,

surgiram inúm eras colônias, B lum enau, Joinville, B rusque, R io do Sul, H am ô n ia (Ibiram a),

T im bó, S ão B ento, entre outras.

A ssim , genocídio e violências diversas se m ultiplicaram até a segunda década do século

X X , dim inuindo após o contato pacífico, ocorrido em 22 de setem bro de 1914 nas terras da

C olônia H am ônia, interior de B lum enau, entre representantes do Serviço de P roteção ao Índio

(SPI) e um grupo X okleng/L aklãnõ. P o r que o contato ocorreu neste local? às m argens do R io

P latê, onde foi criado o P osto Indígena D uque de Caxias, hoje Terra Indígena L aklãnõ (TIL).

R efletir acerca dessa pergunta pode (aparentem ente), parecer sem sentido, contudo, encontros

entre X okleng/L aklãnõ e não indígenas ocorriam desde o século X V III, m as po r que som ente

no início do século X X houve um a aproxim ação exitosa e perm anente? T anto o encontro,

quanto o local em que ele ocorreu, se deve m eram ente ao acaso ou existem aspectos que

expliquem as razões desse contato que ajudem a com preender essa história?

E studos, pesquisas e abordagens m ais sistem áticas sobre o povo X okleng/L aklãnõ são

produzidos desde a prim eira m etade do século X X , m uitos desses são excelentes trabalhos, que

com diferentes perspectivas se dedicaram a analisar o tem a e seus desdobram entos ao longo do

século XX. A ssim , m uito j á se escreveu e m uito se conhece sobre esses indígenas e sobre a

“ pacificação de 1914” .

E n tre estas abordagens, se destacam as produções de Santos (1987; 1997), W ittm ann

(2007), N am em (2020) e P rip rá (2021), entre outras, para ficarm os apenas com os estudos m ais

recentes. Igualm ente, em term os de qualidade, porém em m enor quantidade, foram abordados

aspectos relativos aos X okleng/L aklãnõ no século X IX e em períodos anteriores, com destaque

para contribuições advindas do cam po arqueológico. D essa form a, diversos estudos já

analisaram essa história, principalm ente após a “ pacificação” , descrevendo por vezes, tam bém

59 Abordamos a persistência e a continuidade das violências contra os povos indígenas em Santa Catarina em outro
local, ver BARTEL; MAFRA, 2020.

127
inform ações de contatos entre não-indígenas com “ os b o tocudos” em Santa C atarina no período

anterior ao contato, sem, no entanto, aprofundar o tem a.

P o r sua vez, estudos específicos sobre a trajetó ria X okleng/L aklãnõ ao longo do século

X IX , são m ais escassos. A ssim , o presente texto, um a contribuição para o estudo e a reflexão

sobre a trajetória desses indígenas, tem com o propósito m o strar e caracterizar os

acontecim entos anteriores à aproxim ação entre agentes do SPI e os X okleng/L aklãnõ, para fins

de com preensão tanto do passado, qu an to entender as m otivações que conduziram ao encontro

de 1914, a p artir de um a p erspectiva que privilegie a continuidade histórica.

C om preender a trajetória dos X okleng/L aklãnõ ao longo dos séculos X V III e X IX a partir

dos questionam entos que m otivaram a pesquisa constitui seu principal objetivo. P ara isso,

reconstruím os essa h istória em Santa C atarina através da seleção e cruzam ento de inform ações

e fragm entos citados em diferentes docum entos e obras bibliográficas. O bras atuais com o

artigos acadêm icos, teses e dissertações e outras produzidas desde o século X IX , algum as que

apesar de fazer m enção aos indígenas não os têm com o principal objeto de análise, com o por

exem plo, a obra que apresenta a “ Q uestão de lim ites entre o P aran á e Santa C atharina” (1887),

escrita po r A lfredo E rnesto Jacques O urique.

A m aio r parte das obras, fontes bibliográficas e docum entais foram localizadas no acervo

D igital da B ib lio teca B rasiliana G uita e José M indlin (B B M ) - U niversidade de São Paulo

(U SP), no acervo D igital da B iblioteca C urt N im u en d aju - línguas e culturas indígenas sul-

am ericanas, no acervo D igital da B ib lioteca N acional da F undação B ib lio teca N acional, no

acervo do C onselho Indigenista M issionário, além da B iblioteca p articular do autor e do acervo

das B ibliotecas do Instituto Federal C atarinense.

UM GRANDE CERCO DE VIOLÊNCIAS CONTRA OS “BOTOCUDOS

N o passado não havia por parte do povo X okleng/L aklãnõ a preocupação para m anter a

terra, viviam em um espaço que não era delim itado po r linhas ou divisas com o conhecem os

hoje, o território ocupado por esses indígenas se estendia do P araná ao R io G rande do Sul, era

vasto e sem fronteiras. Sabiam exatam ente onde encontrar alim entos e os recursos que

precisavam , bem com o onde fazer suas cerim ônias e rituais, m ontavam acam pam entos em

determ inados locais, nos quais perm aneciam po r dias ou m eses. P orém , com o p assar do tem po

e, principalm ente, no século X IX com o estabelecim ento das colônias europeias nos territórios

indígenas, esse povo foi “ sendo encurralado e em purrado para o A lto V ale do Itajaí, onde não

128
podiam m ais tran sitar de um lado para o outro. Presos, passaram a ter que se habituar a viver

de um m odo que lhe foi im posto po r m eio da força e da v io lên cia” (PR IPR A , 2021, p. 12).

N o sul do B rasil, os B otocudos eram sem inôm ades, praticavam um a sofisticada

econom ia bim odal, conform e expressão de C urt N im uendaju, ao referir-se aos grupos Jês,

com binavam assim períodos de dispersão e assentam ento em determ inados locais de acordo

com a estação clim ática, oferta de caça e alim entos em geral.

A té o século X V III transitavam , de m odo geral, po r um a extensa faixa de terras que se

estendia do P araná ao R io G rande do Sul, de P aranaguá, próxim o a C uritiba até P orto A legre.

N o sentido leste, seus lim ites eram a Serra do m ar e a oeste, um a faixa que se estendia de

P alm as no P araná até C am pos N ovos em Santa C atarina, região onde os X okleng/L aklãnõ

disputavam territórios com os K aingang, conform e m ostra o m apa abaixo.

Distribuição geográfica dos povos indígenas em Santa Catarina, em meados no século XIX
(Apud D’ANGELIS, 2017. p. 44).

O “grande cerco de paz” , conform e expressão usada por A ntonio C arlos de Souza L im a

(1995), serviu para que as terras indígenas fossem ocupadas sem m aiores conflitos. C ontudo,

as ações prom ovidas pelo SPI no século X X , foram precedidas por v iolências diversas que,

quando não exterm inavam os agrupam entos indígenas, os expulsavam de suas terras. Em

relação aos X okleng/L aklãnõ, o cerco e a redução do território pelo qual eles transitavam teve

início no século X V III, ao sul, seu m arco foi a abertura da estrada C am inho dos C onventos,

129
entre 1728 e 1730, que ligava o planalto catarinense ao litoral, isto é, a região de Lages a

A raranguá, e posteriorm ente a criação da V ila de Lages, em 1766.

A través do A lvará R eal de 9 de setem bro de 1820, D. João VI, po r razões de segurança,

desanexou a V ila de Lages da C ap itan ia de S ão P aulo e a incorporou a C ap itan ia de S anta

C atarina. C onsiderando que “ a V ila de L ages era a m ais m eridional das da P rovíncia de São

P au lo ” , devido a grande distância que se achava da C apital a V ila não pod eria ser prontam e nte

socorrida dos ataques efetivados por seus vizinhos, os indígenas selvagens que causavam danos

a L ages.60 A vançando na ocupação dos territórios indígenas no sul de Santa C atarina, em 1829

foi criada a colônia de São P edro de A lcântara, a prim eira colônia alem ã no estado. A colônia

dava suporte aos tropeiros que se deslocavam de L ages à ilha do D esterro (atual F lorianópolis).

C ontatos entre indígenas e não-indígenas ocorreram no território que hoje é Santa

C atarina, desde os prim órdios da presença de europeus no continente am ericano, porém esses

contatos se lim itavam a costa litorânea. Portanto, grupos diversos de não indígenas eram bem

conhecidos pelos indígenas, que sabiam das am eaças e perigos que representavam esses

grupos.

A p artir do século X V III, os ancestrais do povo X okleng/L aklãnõ passaram a ser

encurralados e a ver seu território tradicional dim inuído. N esse período, em sua grande m aioria,

já tinham sido expulsos do R io G rande do Sul, onde perm aneceram apenas pequenos grupos,

que se refugiaram entre a serra, a região de V acaria, e o litoral norte gaúcho, conform e

dem onstrou o pesquisador L auro C u nha em seus estudos (2012, 2017). Já nas prim eiras

décadas do século X IX , com o avanço da frente pastoril e através das tropas que conduziam o

gado do R io G rande do Sul para São Paulo, o com bate aos indígenas se to rnou m ais intenso:

...em 1808 os Xokleng (ou Botocudos de Lages) sofreram uma declaração de guerra
justa, assinada pelo Príncipe Regente, Dom João VI [...]. Como consequência das
ações daquela frente, respaldada pelo governo português, os Xokleng não tiveram
como resistir em seus campos, e migraram em direção às florestas da Serra Geral e a
Serra do Mar (D’ANGELIS, 2017, p. 44)

C om a criação da V ila de Lages, a abertura de estradas, seguidas da declaração de guerra

aos B otocudos e a presença de colonos europeus, criou um cerco ou um a b arreira que dificultou

sobrem aneira a circulação dos indígenas X okleng/L aklãnõ pelos territórios em direção ao R io

G rande do Sul e ao oeste de Santa C atarina, onde viviam tam bém os povos G uarani e K aingang,

60 “Alvará com força de Lei, pelo qual Vossa Magestade Ha por bem desannexar a Villa das Lages e todo seu
Termo, da Capitania de São Paulo, e encorpora-la na Capitania de Santa Catharina”. Impressão Régia, Rio de
Janeiro, 1820. Documento disponível no acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP.
Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/383, acesso em 14 de outubro de 2022.

130
por sua vez, o litoral já se encontrava ocupado por portugueses desde o século XV I, restando o

espaço da Serra G eral, que se estendia de Santa C atarina ao Paraná, bloqueado, em parte, com

a criação de B lum enau, em 1850, e Joinville, em 1851.

O processo de invasão, ocupação das terras e de exterm ínio dos indígenas, denom inado

eufem isticam ente de “ G uerra Justa” , ocorreu de m odo concom itante e foi im pulsionado por

m eio de um jo g o sem ântico que desum anizava os indígenas, representando-os através de

im agens depreciativas, id eia reforçada por teo rias raciais em voga naquele período e que, em

parte, ainda persistem no século XXI.

N esse sentido, a pesquisadora L aim a M esgravis referiu que nenhum dos cronistas dos

séculos X V I e X V II considerava os indígenas indolentes ou preguiçosos, as im agens e

descrições depreciativas que os classificavam com o selvagens, bestiais, ignorantes, foram

elaboradas “no século XIX, quando se quis explicar as razões de em pregar o negro no trabalho

escravo. A qualidade de trab alh ad o r obediente e subm isso atribuída ao negro foi contraposta à

preguiça, incapacidade e rebeldia do índio” (M E SG R A V IS, 2019, p. 43).

A ssim , no sul do B rasil, ao longo dos séculos X V III e X IX , ig ualm ente ao que o corria

em outras regiões do país, processos diversos atuaram de m odo sim ultâneo, caracterizados pelo

avanço das diferentes frentes de expansão sobre as terras indígenas, por políticas

assim ilacionistas e po r discursos ideológicos de desconstrução das id en tid ad es indígenas, que

consolidaram im agens negativas, racistas, preconceituosas e estereotipadas acerca desses

povos.

E m m eio a esses processos, no século X IX , o territó rio que hoje com preende o estado de

Santa C atarina passou por inúm eras transform ações relacionadas à sua geografia política. A

questão dos lim ites entre o P araná e Santa C atarina era im precisa e até o final do século, a

g eografia e a to pografia de grande parte do in terio r desses territórios era desconhecida.

Incursões exploratórias para desbravar o in terio r do território, cham ado de Sertão, foi

desterritorializando os indígenas, processo que se intensificou com a criação de colônias

europeias no estado.

A INTENSIFICAÇÃO DAS VIOLÊNCIAS AO LONGO DO SÉCULO XIX

O quadro de v iolências e ocupação do território indígena se agravou com a intensificação

da im igração europeia pelo in terio r de Santa C atarina. E ssa ocupação foi acom panhada por

u m a visão id eológica que difundia im agens extrem am ente negativas e estereotipadas dos

131
indígenas, as quais no dizer de M aria C elestino de A lm eida (2010, p. 68) “ incentivavam a

v io lência de colonos e m ilitares. A carta régia de 1808 foi finalm ente revogada em 1831, m as

as guerras indígenas continuaram no decorrer dos oitocentos” . N o ano de 1836, o G overno da

P rovíncia de Santa C atarina criou a T ropa de P edestres ou C om panhia de P edestres, que m ais

tarde daria origem aos grupos bugreiros e suas incursões belicistas pelas m atas.

P o r outro lado, analisar esses acontecim entos sob a p erspectiva de brancos e índios, com o

se fossem grupos hom ogêneos, pouco ajuda para o entendim ento da situação que apresentam os,

e até m esm o colabora para a não com pressão dos processos relativos à h istória indígena, pois

os vários atores sociais, incluindo os indígenas, que interagiam no B rasil, eram m ovidos por

diferentes interesses e objetivos, que se m odificavam com a dinâm ica da colonização e das

relações, entre eles. D essa form a, do século X V I ao X IX , os com portam entos e ações dos atores

sociais foram “ im pulsionados po r m otivações que se alteravam e podiam te r significações

diversas, conform e tem pos e regiões” (A L M E ID A , 2010, p. 26).

D a m esm a form a, tam pouco ajuda o uso genérico do term o “B o tocudo” , criado pelos

portugueses para classificar os grupos m acro-jê, que resistiam a sua dom inação.61 N o final do

século XIX, entre 1882 e 1884, o engenheiro A lfredo E rnesto Jacques O urique, foi designado

pelas províncias do P aran á e de Santa C atarina, para elaborar um p arecer que resolvesse a

questão dos lim ites entre as duas províncias, pois segundo ele o sertão ainda era m uito

desconhecido. A lgum as páginas de seu relatório, intitulado “ Q uestão dos lim ites entre o Paraná

e Santa C atharina” , publicado em 1887, foram dedicadas para analisar os povos indígenas.

Inicialm ente, o engenheiro considerava inapropriado o term o B otocudo para definir

alguns grupos que circulavam pelas províncias do sul do B rasil, afirm ação com partilhada pelo

“ indiozinho” que havia sido aprisionado e não desejava m ais v oltar para o sertão. D e nom e

Covi, foi b atizad o com o Felicio, segundo O urique ele tinha entre 7 e 8 anos e aprendeu a falar

o português. Covi, disse “ que ju lg a v a im p ró p ria a designação de botocudos dada a essa raça”,

pois esse qualificativo foi atribuído a certas “tribos b rasileiras” que usavam “ grandes botoques

que, pelo tam an h o e peso, lhes deform avam os b eiços e orelhas” , o que não se dava com os

B otocudos do P aran á e Santa C atarina, tam bém com o auxílio de Covi foi feito um pequeno

vocab u lário de palavras X okleng/L aklãnõ (O U R IQ U E , 1887, p 29), bastante preciso, conform e

pode se avaliar atualm ente.

61 Conforme Maria Hilda B. Paraíso “as primeiras notícias sobre os Botocudos, ainda chamados Aimorés ou
Tapuias, datam dos primeiros anos de tentativa de colonização do país” (1992, p. 413). Em nosso estudo, tendo a
nítida noção das limitações desse termo, usamos a denominação “Botocudos” apenas para designar os ancestrais
dos Xokleng/Laklãnõ, que transitavam no sul do Brasil.

132
Segundo O urique, esses indígenas eram “ indom áveis e nôm ades ao ú ltim o extrem o”

devido a contínua guerra im posta pelos brancos, assim , “ habitam , estes selvagens, u m a facha

(sic) de sertão cercada po r todos os lados de povos, vilas e cidades, conservando, entretanto,

no coração das m atas, quase virgens, seus hábitos prim itivos” . O engenheiro relatou tam bém

que, durante a incursão pelo território, sua equipe sentiu-se “ sem pre sob a v ig ilân cia do índio

sagaz e astuto, m as nunca o podem os ver, porque tam bém nunca dem os ensejo de se

m ostrarem ” (O U R IQ U E , 1887, p 24; 14).

H á m uitos relatos sem elhantes ao do engenheiro A lfredo O urique, tam bém são bastante

conhecidas as inúm eras tentativas fracassadas de contatos com os “B oto cu d o s” , realizadas ao

longo da segunda m etade do século XIX, com o po r exem plo, a criação de um aldeam ento em

P apanduva, cidade situada atualm ente ao norte de Santa C atarina. E m 1876, “ o presidente da

P rovíncia do Paraná, A dolfo L am enha Lins, criou o aldeam ento de São T om áz de Papanduva,

destinado aos índios B otocudos; porém , o m esm o não se desenvolveu e desapareceu, devido

às dificuldades encontradas” para estabelecer “ contato com o gentio” (W A C H O W IC Z , 1969,

p. 470).

A o longo do século X IX , foram feitas tentativas de contatos pacíficos e aldeam entos, as

quais não obtiveram êxito. O m otivo para esses fracassos se deve ao fato dos indígenas,

conhecedores do território, não desejarem o contato, pois conheciam bem as populações não

indígenas, as quais eram acom panhadas e observadas de perto. A ssim , conform e já

m encionado, sabiam dos perigos e dos riscos que corriam ao contatar essas populações.

N essa perspectiva, conhecedores dessas populações, os X okleng/L aklãnõ faziam a

distinção entre os grupos que desejavam contatá-los e suas diferentes m otivações,

identificavam com clareza se o contato tinha propósitos am istosos ou não. O p esq u isad o r Lúcio

T adeu M ota, ao analisar diferentes expedições que tentaram contatá-los após confrontos

ocorridos em 1868 na região de Passo R uim , divisa entre Santa C atarina e Paraná, m ostrou

com o os X okleng/L aklãnõ, agindo com o protagonistas, desenvolveram diferentes estratégias

de ação para lidar com a situação. U m a das estratégias utilizadas no trato com os invasores foi

a da invisibilidade, dessa form a, “ com base na avaliação que faziam do invasor, não se

expunham a ele” (M O TA , 2017, p. 184). C onform e o pesquisador:

...a história das relações dos grupos Xokleng com a população do entorno e com as
autoridades imperiais e provinciais é muito mais complexa que a simples reação à
invasão de suas florestas, campos e pinheirais. Os Xokleng desenvolveram formas de
lidar com os invasores que iam além da simples reação aos ataques que sofriam.
Tinham paciência para preparar meticulosas emboscadas, [...]; sabiam dissimular e
esconder os vestígios de suas caminhadas; faziam estruturas de proteção de suas

133
aldeias principais; examinavam cuidadosamente e conheciam os objetivos de cada
um daqueles que penetravam em seus domínios, traçando formas e estratagemas para
lidar com eles, o que se exemplificou com seu comportamento diferenciado diante de
duas expedições que foram à sua procura logo após o ataque praticado em Passo Ruim
(MOTA, 2017, p. 188).

C ontudo, com o avanço das frentes de expansão o cerco foi se fechando para os

X okleng/L aklãnõ que, por sua vez, buscavam fugir das agressões, passaram assim a se refugiar

num a região bastante conhecida po r eles, a região do R io Platê, território tradicional indígena,

que se transform ou num a região estratégica devido possuir cam inhos diversos (usados tam bém

com o rotas de fuga) para outras, que agora se encontravam ocupadas. S obre a im portância

desse território, L úcio M ota referiu que:

Na década de 1960, Walter Piazza realizou pesquisas arqueológicas na confluência


do rio Platê com o Itajaí do Norte, onde hoje estão a Terra Indígena Ibirama e o antigo
Posto Indígena Duque de Caxias, e lá identificou um sítio cerâmico onde coletou 215
fragmentos similares aos definidos pela arqueologia como Tradição Itararé e Taquara.
Esses vestígios de cultura material (enterramentos cremados e cerâmica) comprovam
a presença das populações Xokleng ou seus ancestrais na região há pelo menos 1.500
anos ou talvez mais, como supõem os estudos linguísticos. (MOTA, 2017, p. 173)

N o final do século X IX o avanço da im igração e colonização europeia e a definição dos

lim ites entre Santa C atarina e P araná fecharam as rotas pelas quais os X okleng/L aklãnõ

circulavam em direção ao norte do estado catarinense. E m vista da situação insustentável,

diante do exterm ínio e em busca de um espaço de sobrevivência, os X okleng/L aklãnõ

avaliaram a possibilidade de contatar e conviver com os não indígenas:

Os primeiros interlocutores no período do contato foram Vomble, Kóvi e Kamlem,


que viram como única esperança para o povo Laklãnõ se entregar, sair do mato. Em
uma conversa com a comunidade no mato tentavam encontrar uma solução para não
haver mais mortes, pois, muitas crianças estavam órfãs devido aos ataques dos zug,
conhecidos como bugreiros, matadores de índios. Mas o que eles planejaram para o
povo ao sair do mato, não saiu como o esperado, mesmo assim foram praticamente
dizimados, foram escravizados e muitos mortos com comidas, bebidas e roupas
envenenadas ou contaminadas por doenças (PRIPRÁ, 2021, p. 14).

N o rom ance histórico intitulad o “ O povo L aklãnõ e os outros” (2021), a situação

indígena que precedeu o contato foi descrita dessa form a:

Embora o grupo liderado pelo chefe Voble tenha sido drasticamente reduzido depois
dos ataques dos bugreiros, a fome e a sensação de privação de liberdade aumentavam
cada vez mais. Os índios passaram a comer toda a sorte de larvas e insetos para
sobreviver à escassez de carne que antes era o seu principal alimento. Além disso,
havia também a constante ameaça de ataques dos bugreiros, o que forçava o grupo a
mudar-se constantemente de lugar.

134
Diante dessa situação difícil, o líder sentiu uma crescente vontade de fazer contato
pacífico com os não-índios e encerrar o conflito que havia entre eles (CAMPOS;
GAKRAN, 2021, p. 82)

D essa form a, o contato derradeiro não ocorreu por acaso ou de m odo fortuito, foi

precedido por u m a longa h istória de violências, com o invasão e ocupação dos territórios, a

criação de estigm as e o exterm ínio. S e o S P I procurava contatar pacificam ente os indígenas

indo ao seu encontro, a decisão do contato partiu dos indígenas. U m a questão avaliada po r eles,

antes do contato foi o grande núm ero de crianças ó rfãs. E m algum as fotografias feitas anos

após 1914 é possível v er o enorm e n úm ero de crianças, em contraste com um grupo m enor de

m ulheres e poucos hom ens X okleng/L aklãnõ. O que retrata o exterm ínio e corresponde aos

relatos registrados nas fontes.

A ssim , a região do R io Platê, talvez ten h a sido o ú ltim o refúgio dos X okleng/L aklãnõ,

onde agindo com o protagonistas, avaliaram a n ecessidade de outras estratégias, com o, por

exem plo, fazer com o fizeram os K aingang que na visão deles tinham feito aliança com os

brancos. A ssim , se escolheu por estabelecer o contanto, aliança e o convívio com as populações

não indígenas, as quais por ocuparem suas terras e exterm inar o povo indígena, precisavam ser

pacificadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O contato pacífico de 1914, precedido po r um a longa história de violências, não ocorreu

por acaso, a situação foi avaliada pelos indígenas que escolheram igualm ente o local para o

contato, o território tradicional do povo L aklãnõ/X okleng, um a espécie de entroncam ento onde

havia conhecidos cam inhos e rotas que davam acesso a diversas localidades, po r exem plo, o

acam pam ento denom inado “Z ág Jo l” , antes de 1914, era um a rota para Taiózinho, Salete,

C açador, P residente G etúlio, Ibiram a, Taió descendo para R io do Sul (PR IPR Á , 2021, p. 59).

E m 1914 a região do R io P latê j á contava com a presença de agentes do SPI, essa presen ça

foi aproveitada pelos indígenas para “ pacificar” os não-indígenas, pois se tratav a de um local

estratégico (atual Terra Indígena Ibiram a), nessa região havia diversos acam pam entos usados

pelos X okleng/L aklãnõ para diferentes finalidades, m uitos dos quais continuaram sendo usados

m esm o depois do contato, “ eram lugares onde o povo L aklãnõ m uitas vezes se encontrava para

festejar ou até m esm o para dividir o grupo para a caça e coleta” (PR IPR Á , 2021, p. 54).

135
A ssim , para os X okleng/L aklãnõ, os não indígenas, que invadiram seus territórios e

praticavam o exterm ínio dos povos indígenas é que deveriam ser pacificados, não por acaso

José D eeke, D iretor da C olônia H am ônia entre 1909 e 1929, na obra intitulada “ O M unicípio

de B lum enau e a história de seu desenvolvim ento” (1995) a o narrar o episódio, ainda que de

acordo com a perspectiva do colonizador, tam bém enfatizou que do ponto de vista indígena,

eram eles que pacificavam os não-indígenas:

...os bugres tornaram-se sempre mais confiantes e dirigiam-se, com mulheres e


crianças ao Posto [do SPI].
Mas, subjacente essa sua confiança, praticavam as mais desmedidas ações de
desfaçatez e atrevimento, além de terem, acerca das coisas mais elementares, grandes
fantasias, porque se convenceram de que foram os brancos os ‘catequizados’ e não a
si próprios, julgando-se superiores e acima dos brancos e com insolência não
permitiam arma alguma nas mãos dos brancos do Posto, enquanto eles, ostensiva e
continuamente, mostravam suas armas sempre que podiam. (DEEKE, 1995, p. 252-
253).62

M ostram os aqui a trajetória e a desterritorialização do povo L aklãnõ/X okleng, iniciada

no século X V III e concluída (não sabem os) com a pacificação de 1914. C om preender essa

história, evidenciando os indígenas tam bém com o protagonistas, e não com o vítim as passivas

do processo desencadeado pelas frentes de expansão, é de sum a im portância, inclusive para

en tender os m ovim entos sociais indígenas e sua luta pela terra, pela identidade cultural e até

m esm o pela existência física, bem com o para um a m elhor com preensão tanto da história,

quanto do processo cham ado de pacificação.

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62A obra escrita originalmente em língua alemã foi publicada em 1917, nela, Deeke enfatiza aspectos diversos da
colonização no Vale do Itajaí, dedicando seu terceiro capítulo à “Questão Indígena”. A obra revela a visão de
mundo dos colonizadores no início do século XX, compartilhada pelo autor do livro.

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138
HISTÓRIA E IMPRENSA OPERÁRIA:
UMA ANÁLISE DO JORNAL A LUTA DE CLASSE

C A R L O S P R A D O 63

O G rupo C om unista L enine (G C L ) foi lançado oficialm ente em 8 de m aio de 1930, por

m eio da publicação do prim eiro núm ero do jo rn a l A Luta de Classe6 E sta organização foi

resultado de um processo de cisão no in terio r do P artido C om unista do B rasil (PC B ) e, com o

bem observou M arques N e to (1993), a origem deste grupo está relacionada a diferenças

políticas no in terio r do P C B que versavam sobre o regim e interno, a tática de alianças e a

orientação sindical. N ã o obstante, se a princípio estas questões parecem girar em torno apenas

de problem áticas nacionais, M arques N eto (1993) e C astro (1993), destacam que há sim um a

relação direta com os debates no in terio r do P artido C om unista da U nião S oviética (PC U S).

P o r conseguinte, foram as divergências sobre a interpretação da teoria revolucionária, a aliança

com a pequena-burguesia e a b urocratização do partido que aproxim aram os dissidentes

b rasileiros das teses tro tskistas.65

A pós a cisão, os oposicionistas b rasileiros não se organizaram de form a im ediata. Foi

apenas após o retorno de M ário P e d ro sa 66, que estava na E uropa, que os ex-m em bros do P C B

se reuniram em um a nova organização e, rapidam ente, estabeleceram contato com o

S ecretariad o P rovisório da O posição de E sq u erd a Internacional (O EI). N aquele m om ento a

pequena organização trotskistas era constituída por pouco m ais de um a dezena de m em bros,

63 Doutor em História pelo PPGH-UFF e professor da FACH-UFMS. Trabalha com temas relacionados à Teoria
da História e História do marxismo. E-mail: carlosprado1985@hotmail.com
64 Esperava-se que a primeira edição do jornal A Luta de Classe fosse publicada no 1° de maio, junto às
comemorações ao dia do trabalhador, mas o número inaugural só foi publicado na semana seguinte, no dia 8. O
jornal apresentava uma diagramação bastante simples, suas edições contavam com 4 ou 6 páginas. No seu
cabeçalho havia apenas o nome da publicação e a indicação “Órgão do Grupo Comunista Lenine”, seguido por
número, cidade e data.
65 O termo “trotskista” é utilizado aqui como referência aos membros da OEI. Todavia, é necessário esclarecer
que estes oposicionistas se autodenominavam “Bolcheviques-leninistas” num esforço para afirmarem sua
vinculação político-ideológica com a tradição revolucionária da Revolução de 1917. Nas décadas de 1920 e 1930,
marcadas por disputas no interior do partido russo e da Internacional, o termo “trotskista” foi utilizado de forma
pejorativa pela burocracia stalinista e remonta as críticas direcionada à Trotsky desde as primeiras divergências
em 1904. Apenas após o assassinato de Trotsky em 1940, o termo perdeu o caráter negativo e passou a ser aceito
pelos militantes que reivindicavam o seu legado teórico.
66 Membro do PCB desde 1926, Pedrosa havia sido enviado, em meados de 1927, para a Escola Leninista em
Moscou, mas, devido a uma enfermidade, parou na Alemanha, onde teve contato com a OEI. Foi na Alemanha e
na França que Pedrosa pôde se informar melhor sobre o que ocorria no interior do PCUS e sobre as articulações
da Oposição. Pedrosa não participou diretamente dos debates no interior do PCB. Mas, mesmo distante, ele
acompanhou as divergências por meio das correspondências. Assim, ao retornar ao Brasil, em julho de 1929, ele
se transformou numa das figuras centrais da organização dos dissidentes do PCB.

139
entre os quais, o próprio Pedrosa, L ívio X avier, R odolfo C outinho, João da C osta Pim enta,

W enceslau A zam buja, José N eves, O ctaviano du P in G alvão, entre outros. O grupo teve um a

existência curta, cerca de sete m eses, entre m aio e novem bro de 1930.

U m aspecto relevante que foi destacado por C astro (1993; 1999; 2000) é que o G C L

reuniu os quadros com unistas com a m elhor form ação teórica. Seus principais dirigentes,

Pedrosa, X avier, C outinho, parte deles advindos de fam ílias abastadas, eram intelectuais com

form ação acadêm ica e tinham dom ínio de línguas estrangeiras. A ssim , contribuíram para o

avanço da análise sobre a estrutura social brasileira, a p artir da qual construíram um a proposta

política alternativa ao PCB. O utra contribuição foi o esforço realizado na tradução e divulgação

pioneira de obras de M arx, E ngels, L enin e T rotsky (m uitas delas traduzidas po r X avier),

publicadas pela E d ito ra U nitas (do tam bém m em bro Salvador P intaúde).

A s fontes sobre esta organização são escassas. N ão há atas, resoluções ou outros

docum entos que nos forneçam inform ações m ais precisas sobre seu funcionam ento interno,

seus m em bros e etc. A ssim , a principal fonte sobre o G C L é o jo rn a l A Luta de Classe. E ntre

os m eses de m aio e outubro de 1930 foram publicados cinco núm eros. T odavia, apenas os

quatro prim eiros foram preservados, pois o quinto foi apreendido pelos aliancistas durante a

luta arm ada em outubro. P o r conseguinte, é m ediante a investigação destas publicações que

podem os analisar a atuação do grupo. A s edições do jo rn a l A luta de Classe estão disponíveis

no C entro de D ocum entação do M ovim ento O perário M ario P edrosa (C EM A P), que

atualm ente se encontram no C entro de D ocum entação e M em ória (C E D E M ) da U nesp.

C ada publicação do jo rn a l apresentava cerca de 1 dezena de artigos. E stes versavam

sobre vários pontos tático-estratégicos, político-ideológicos e teóricos. A s prim eiras

publicações buscaram caracterizar a própria organização, num esforço para esclarecer qual era

a posição do grupo diante do PC B . C abe d estacar que a m aio r parte dos artigos publicados

tinham com o objetivo a denúncia e a crítica aos com unistas brasileiros e à Internacional

C om unista (IC). O s tem as m ais frequentes versavam sobre a política nacional, o m ovim ento

operário, os sindicatos e o contexto internacional.

O G C L pensava a p u blicação a partir de um a perspectiva pedagógica. A publicação

de A luta de Classe seria o instrum ento para levar esclarecim ento e elevar a consciência dos

seus leitores, buscando am pliar suas influências, conquistando novos sim patizantes e

m ilitantes. Sobre o caráter pedagógico dos jo rn a is com unistas, Sousa (2015, p. 32) aponta que:

Para os editores dessas publicações, a leitura seria o caminho de emancipação desses


trabalhadores dos grilhões do sistema capitalista. Em seu projeto editorial, a imprensa
comunista objetivava converter os trabalhadores em militantes, que por meio da

140
cultura e da leitura, despertariam o seu espírito crítico em relação ao mundo - como
os lesender Arbeiter, idealizados pelo dramaturgo e poeta comunista Bertolt Brecht
(1898 - 1956) -, o que outorgaria à imprensa comunista uma função doutrinária e
pedagógica.

O presente artigo tem o objetivo de, a p artir da análise do jo rn a l A Luta de Classe,

apresentar e analisar a atuação teó rica e política do GCL. N um prim eiro m om ento, busca-se

evidenciar com o o grupo caracterizou o cenário nacional, destacando o caráter de fração da

organização, as críticas lançadas à direção do PC B e os debates em torn o da atuação de L uiz

C arlos Prestes. Posteriorm ente, investiga-se com o a organização se posicionou diante de tem as

internacionais, em especial, a publicação buscava esclarecer os leitores brasileiros sobre

processo de degeneração burocrática da U R SS, po r isso, privilegiavam a trad u ção de diversos

artigos e docum entos, entre os quais o “ T estam ento de L enin” e a carta de Y offe.

A L u ta de C lasse e o cenário nacional

Foi nas páginas de A Luta de Classe, que o G C L lançou as prim eiras críticas à

interpretação pecebista da estrutura econôm ico social do B rasil. T ratava-se de um a análise

ainda em desenvolvim ento, m as que já m ostrava alguns traço s essenciais. Segundo os

oposicionistas, a “linha” u ltra esquerdista adotada pelo PC B , m antinha em sua base a

concepção de que o B rasil era um país agrário e que, portanto, o caráter da revolução brasileira

era dem ocrático-burguesa, antifeudal e anti-im perialista. A ssim , destacaram desde o prim eiro

editorial que tinham o objetivo de m ostrar:

(...) a diferença fundamental que existe entre a concepção “retalhista” de Revolução


(por etapas ou a prestações) e a verdadeira concepção marxista do desenvolvimento
histórico, segundo a qual os acontecimentos se interdependem dialeticamente,
marchando com o ritmo que lhes é próprio e não dando jamais a possibilidade de uma
classe resolver os problemas da outra. (GCL, 2015, p. 43).

A crítica à concepção de u m a revolução em “ etapas” ou em “retalhos” , com o falavam

os oposicionistas, se to rnou a principal contestação teórica lançada pelo GCL. P ara o grupo, a

teo ria da revolução dem ocrático-burguesa se m ostrava contrarrevolucionária, pois m istificava

a realidade econôm ico-social ao apontar que a contradição fundam ental era entre o cam po e a

cidade, ou m elhor, entre os fazendeiros de café e a burguesia industrial.

P ara os trotskistas, tal concepção encobria o antagonism o entre capital e trabalho e não

tin h a com o objetivo o com bate à burguesia, m as o seu desenvolvim ento, a sua am pliação

141
m ediante o incentivo a u m a lógica industrializante. A ssim , o proletariado era d eslo cad o do

centro da lu ta revolucionária:

Como se sabe, tem-se pretendido vulgarizar a ideia abstrata de que o proletariado


primeiro deve resolver os problemas nacionais da burguesia, para depois realizar a
obra de sua libertação! A outra coisa, senão à traição mais evidente dos interesses
vitais da classe operária, não podia conduzir a concepção estreitíssima de que
Revolução deva ser feita a retalhos. (Ibidem).

D e acordo com a teo ria da “revolução em retalh o s” as tarefas socialistas não poderiam

se realizar, pois não havia ainda condições objetivas p ara o seu desenvolvim ento. D esde às

intervenções de T rotsky sobre a R ev o lu ção C hinesa, esta era um a das principais críticas

desenvolvidas pelos oposicionistas, que contestavam esta interpretação “m enchevista”

aplicada aos países de capitalism o retardatário.

N esse ínterim , o G C L lançou sucessivas críticas à teoria da revolução dem ocrático-

burguesa. O s trotskistas apontaram que m esm o diante dos desastres da experiência chinesa

entre 1925-1927, a “ ideologia kuom intanguista” persistia sendo aplicada nos países coloniais

e sem icoloniais e criticavam a interpretação do P C B sobre a atuação do im perialism o na

econom ia nacional: “ O im perialism o vai assim servir para apagar a luta de classes e m obilizar

o p roletariado indígena a serviço da p rópria burguesia n acional” . (Idem , 1930a, p. 1). E sta

interpretação questionava a tese de B randão que partia do pressuposto de que o setor agrário

era apoiado pelos investim entos ingleses, enquanto que o setor urbano-industrial estava

atrelado ao capital norte-am ericano e que am bos im pediam o florescim ento de u m a indústria

autônom a e nacional.

Os oposicionistas questionavam : “ O nde está a precisão m arxista? A ideia abstrata da

opressão nacional é a base do p ior confusionism o. (...) A ideologia “ anti-im perialista” concebe

o ju g o do im perialism o com o u m a ação m ecânica, única sobre as classes das colônias”

(Ibidem ). N essa perspectiva, denunciaram que a concepção em to rno de um antagonism o entre

o capital internacional e nacional era a base teó rica que sustentava a tática da revolução

dem ocrático-burguesa:

A oposição comunista nas discussões sobre a revolução chinesa, denunciou esse erro
grosseiro e, via-se logo, fatal. A luta revolucionária contra o imperialismo não cria
uma coesão de classe na colônia, mas é, ao contrário, fator de diferenciação política.
A força do imperialismo reside na ligação econômica e política do capital estrangeiro
com a burguesia indígena. (Ibidem).

142
P ara os oposicionistas não havia contradição entre a b urguesia nacional e a

internacional, m as apenas conciliação. N ão havia um interesse dos capitalistas nacionais em

com bater os investim entos e financiam entos do capital im perialista. A ssim , criticavam a

direção do PC B que a p artir desta teoria de com bate ao “ im perialism o” acabava por aproxim ar

os com unistas da b urguesia nacional, apresentando-a com o interessada e possível aliada na luta

pelo desenvolvim ento nacional. Tal concepção, extinguia o conflito entre capital e trabalho e

apresentava o capital internacional com o o grande adversário a ser com batido. N ão obstante,

estes p rim eiros artigos publicados pelo G C L representaram apenas o início do desenvolvim ento

de u m a crítica que se aperfeiçoou nos anos seguintes.

A inda sobre a po lítica nacional, o G C L não deixou de se p o sicionar sobre a espinhosa

questão em to rno de L uiz C arlos Prestes. Já no prim eiro núm ero de A Luta de Classe,

publicaram o artigo intitulado, “ C avaleiro da esperança... da b urguesia ou m ilitante

com unista?” . Im portante observar que este texto antecedeu a publicação do “M anifesto de

m aio ” de Prestes. N o artigo, os oposicionistas enfatizaram que havia se criado u m a m ística em

torn o do nom e de Prestes. P rincipalm ente a partir das ações da C oluna, p ercorrendo o interior

do país, o tenente apareceu nas publicações burguesas e até com unistas, com o um nom e envolto

de sim bologia que encontrou sua expressão no título de “ C avaleiro da E sperança” .

N esta perspectiva, diversos partidos que criticavam à b u rg u esia cafeeira encontraram

na figura de Prestes, um sím bolo que gostariam de atrair para angariar apoio das m assas. C om o

a ideologia e o program a do tenentism o era dem asiado genérico, ele passou a atrair diferentes

grupos: “ T odos faziam do C hefe da C oluna P restes a m enina política dos seus olhos” . (Idem ,

1930c, p. 1). N ão apenas o PC B , m as tam b ém os liberais, realizaram reuniões e encontros com

o líder tenentista, sem pre em busca de um acordo político.

Os trotskistas estavam interessados em desvelar quem era P restes e qual a classe ele

representava. E m prim eiro lugar, apontaram que o tenente tinha um program a eclético e não

assum ia nenhum a posição de classe, buscava ap arecer apenas com o um indivíduo interessado

num a reform a social e m oral:

Mas quem é afinal esse fabuloso “general” L. Carlos Prestes? Para nós - comunistas
- é apenas um nome individual. E nós não fazemos política com um indivíduo por
maior que seja. A nossa política é com as massas. E os indivíduos só valem
politicamente na medida em que são as direções representantes de uma classe, de um
partido. Carlos Prestes não é nada disso. (Ibidem).

B uscando d eterm inar a quem servia o program a tenentista, os oposicionistas apontaram

que P restes “ não é m em bro de nenhum a classe: não faz parte integrante nem da grande, nem

143
da pequena burguesia. É um com ponente do E stado. Serve aos interesses das classes

dom inantes, sejam quais forem , que detenham as rédeas do governo” (Ibidem ). A o contrário

da interpretação do PC B , que apontava P restes com o um líder da p equena-burguesia

revolucionária, os trotskistas afirm avam que seu discurso e seu program a o colocavam “ acim a

das classes sociais” , m as sem pre servindo às classes dom inantes e em b u sca do controle do

E stado. P o r conseguinte, concluíram que o chefe m ilitar da co lu n a se apresentava com o “um a

individualidade, um general de m ão no punho da espada, à espera do m om ento próprio a ação...

b o n ap artista” (Ibidem ).

Os m em bros do G C L foram os prim eiros a trazerem para o m arxism o brasileiro a leitura

de “ O 18 B rum ário de L ouis B on ap arte” de M arx. A ssim , introduziram no vocabulário

m arxista b rasileiro o conceito de “b onarpartism o” . P ara os trotskistas, P restes vinha

apresentando as características de um N apoleão. U m a figura com carreira m ilitar reconhecida,

que se apresentava com o indivíduo acim a das classes e que poderia ser ao m esm o tem po

aclam ado pelas m assas e apoiado pela burguesia:

Há vários anos que está no exilio, e até hoje ninguém sabe ao certo a posição política
que ocupa. (...) Não se conhece ato político seu, que o defina. Será que o “general”
tem medo de perder a popularidade alijando as simpatias que conta em grande parte
da burguesia liberal? (Ibidem).

Três sem anas após a publicação deste texto em A Luta de Classe, P restes lançou o seu

“M anifesto de m aio” , no qual b uscou um a aproxim ação com a classe trabalhadora e com o

PC B , e ainda apresentou u m a série de críticas ao tenentism o, especialm ente aos seus ex-

com panheiros que estavam apoiando a A liança Liberal. D iante da nova m anifestação de

P restes, o G C L apresentou um novo texto, no qual j á se nota m udanças im portantes na

avaliação p olítico-ideológica do tenentista.

A interpretação de que P restes era um potencial candidato à B onaparte foi deixada de

lado. E m “ O que dá e o que esconde o m anifesto do cam arada P re ste s” , os oposicionistas

afirm aram que o M anifesto apresentava um enorm e esforço do ex-chefe da coluna em se definir

politicam ente e que, po r isso, representava um im portante passo à frente. R essaltaram que

P restes havia abandonado o discurso bonapartista e buscou definir seu posicionam ento de

classe, se colocando ao lado das m assas populares, o que o afastou dos liberais e levou ao

rom pim ento com os dem ais líderes tenentistas. (Idem , 1930j, p. 4).

Sobre a interpretação econôm ica e social que o M anifesto apresentava sobre o B rasil,

os oposicionistas apontaram que era m uito sim ilar àquela apresentada e defendida por B randão:

144
“ parece até um decalque do A grarism o e Industrialism o” (Ibidem ). P restes rep ro d u ziu a

perspectiva dualista, enfatizou que o B rasil era um país agrário e feudal, dom inado pelo

latifúndio e pelo im perialism o e que lutava pela independência nacional. A principal crítica

lançada em A Luta de Classe é que Prestes tam bém subestim ou a lu ta entre capital e trabalho,

m enosprezou o desenvolvim ento da classe operária, das forças burguesas e do próprio

capitalism o:

Dessa análise é que parte o manifesto para declarar uma luta de morte, total, contra -
nomeadamente - os senhores da terra, fazendeiros, contra a burguesia agraria, vulgo
feudal, e contra o imperialismo. E é aqui que se revela em toda a sua gravidade, a
grande omissão sintomática do manifesto. (...) queremos nos referir a completa
ausência de referência á burguesia nacional das grandes cidades, a burguesia
industrial, a grande burguesia comercial e bancaria, que se nota no manifesto. Será
possível que o autor do manifesto negue a existência dessa burguesia? (Ibidem).

A interpretação do G C L aponta p ara u m a confluência entre a concepção pecebista e a

do tenente. P o r conseguinte, assinalou-se que o program a apresentado no “M anifesto de m aio”

era radical quando se dirigia contra as estruturas “feudais” e contra o im perialism o, m as era

conservador quando apresentava as reivindicações dos trabalhadores: “E nem um a palavra

sobre o program a verdadeiram ente p roletário-socialista. (...) A desproporção entre os dois

program as é assim evidente. A o p roletariado u rbano cabe assim no final do m ovim ento um

quinhão de parente pobre” (Ibidem ). A crítica era a de que a estratégia de P restes não garantia

aos trabalhadores um a política de independência de classe. O s operários estavam a reboque da

b urguesia porque a p erspectiva não era socialista, m as capitalista:

(...) o que se tende (embora inconscientemente) é - para a formação de um capitalismo


nacional, tendo por base no campo a pequena propriedade ao lado das grandes
empresas agrícolas, e na cidade, a burguesia industrial, senhora do governo, sob a
forma política democrática... ou fascista. (Ibidem).

A o receberem o M anifesto de Prestes, a direção do PC B o acusou de n eg ar a hegem onia

do proletariado na revolução v indoura e de não reconhecer o papel do partido com o direção,

m as não questionou a interpretação econôm ica e o program a. P o r sua vez, o G C L destacou que

os com unistas e P restes apresentavam a m esm a estratégia m enchevique, ressuscitada por

Stalin, da revolução em etapas. P o r conseguinte, denunciaram que, ao subestim arem o

desenvolvim ento do capitalism o no B rasil, am bos cam uflavam a luta de classe e adiavam as

tarefas propriam ente socialistas para um futuro indefinido.

145
E m A Luta de Classe n o 4, os oposicionistas publicaram m ais um artigo sobre Prestes.

N e sta edição a discussão girou em torn o do lançam ento da L iga de A ção R evolucionária

(LA R ). A liga era um a ten tativa de P restes rom per o isolam ento e, segundo o m esm o, era um

órgão técn ico -m ilitar para auxiliar os com unistas no processo revolucionário. D e acordo com

a publicação do G C L esta nova em preitada do “ cavaleiro da esperança” era u m a organização

cujos caracteres ainda não estavam claram ente definidos, m as apresentava u m a tendência a se

tran sfo rm ar num a am pla frente nacionalista, u m a nova versão do K uom intang: “P o r enquanto,

ninguém pode garantir que ela não seja de fato ou não tran sfo rm e em um sim ples partido

político, no caráter dessas m últiplas variações de K uom intang, que proliferam hoje po r volta

da IC, com o cogum elos do stalinism o” . (Idem , 1930d, p. 1).

V ale fazer referência a u m a entrevista à C arone, na qual P restes afirm ou que apesar de

te r desde o início se posicionado ao lado de Stalin e do PC B nas polêm icas acerca da condução

da revolução soviética e m undial, a construção da L A R foi u m a influência dos trotskistas:

Eu não admitia a crítica a Stalin, porque eu achava que Stalin era realmente o homem
que tinha conseguido iniciar a construção do plano... e concordava com as posições
dos documentos do Partido Comunista da União Soviética. Mas eles (os trotskistas
influíram numa coisa... no Manifesto da Liga de Ação Revolucionária tem uma
palavra de ordem que não era da Comintern, era dos trotskistas: era o poder ao
governo proletário, governo proletário. (PRESTES Apud Carone, 1989, p. 301).

A L A R não obteve o sucesso alm ejado por P restes e p ereceu depois de poucos m eses.

A ssim , para ten ta r exim ir-se da culpa, apresentou esta versão que identificava a L A R com o

trotskism o. P ed ro sa (Apud M arques N eto, 1993, p. 143) tam bém com entou sobre a L iga e sobre

a posição dos trotskistas, em entrevista ele afirm ou:

Eu era contrário a que ele fizesse um partido independente. Isso iria prejudicar
profundamente o Partido Comunista, pois com seu enorme prestígio iria arrastar
muita gente. O PC era um partido novo ainda, sem grande expressão, a não ser nos
meios operários mais adiantados. Opunha-se àquela ideia, porque ramos
bolcheviques leninistas. Como já disse, nosso objetivo era repor o partido em sua
verdade histórica leninista. Éramos todos fieis a esse princípio.

E sta declaração de P ed ro sa corrobora com a publicação de A Luta de Classe,

evidenciando que a L A R não foi in stigada pelos trotskistas. A ssim , a iniciativa de P restes

acabou ten d o um fracasso total, pois foi repudiada pelos tenentistas, pelos stalinistas e pelos

trotskistas, confirm ando o isolam ento do ex-chefe da C oluna.

146
A Luta de Classe e o cenário internacional

O G C L tam bém u tilizou as páginas de A Luta de Classe para p u b licar diversos textos e

docum entos sobre a conjuntura internacional, pois entre os com unistas b rasileiros as questões

debatidas internacionalm ente ainda estavam m uito obscuras. O objetivo era a cada edição

p u b licar artigos para esclarecer o leitor b rasileiro sobre o processo de degeneração burocrática

que ocorria nos diversos P C s ao red o r do m undo.

C onform e P ed ro sa observou em carta para L ívio X avier, era preciso trazer à to n a estas

problem áticas para só então b u scar um a aproxim ação e arregim entar novos m ilitantes:

Ninguém pode exigir dos outros que tomem partido por alguma coisa, sem ter o
menor conhecimento dela. Isso é besteira. Ninguém sabe nada da situação
internacional. Você pensa que o creta do Partido sabe o que é socialismo num país
só, questão chinesa, democracia na base, comitê anglo-russo, burocracia, centrismo,
direitismo, oposição, Stalin, Trotsky, etc. (...) Nós estamos agindo direito. Primeiro é
preciso dar a essa gente alguma coisa a respeito para ler, antes de exigir que tomem
posição. E é o que estamos fazendo, publicando de cada vez um documento com um
comentário simplesmente elucidativo e traduzindo também alguns para publicar em
folheto e espalhar. (PEDROSA [Carta] jun. 1930, p. 327).

P o r conseguinte, publicaram diversos textos criticando a direção soviética e a

construção do socialism o isolado na R ússia. T am bém denunciaram as orientações da IC e

destacaram o desenvolvim ento e a luta dos oposicionistas em diversos países. D essa form a, A

Luta de Classe se to rnou porta-voz da O IE, publicando traduções de T rotsky e outros textos
im portantes sobre o desenvolvim ento da luta dos trabalhadores ao red o r do m undo.

Já na prim eira edição de A Luta de Classe, em sua prim eira página, ao lado do editorial,

os oposicionistas publicaram trechos do “ T estam ento político de L enin” . V ale destacar que a

passagem divulgada era ju stam en te aquela nota acrescida em 4 de ja n e iro de 1923, que

solicitava o afastam ento im ediato de Stalin do cargo de Secretário G eral do partido. C om esta

nota, a nova organização já m ostrava claram ente a sua postura crítica à linha stalinista. N este

m esm o núm ero ainda foi publicado um trecho do tex to produzido por Trotsky, in titulado “ O

que é radicalização” , no qual ele lançou críticas às teses do V I C ongresso da IC, especialm ente

à política ofensiva do T erceiro Período.

E m seu segundo núm ero, A Luta de Classe tam b ém apresentou outro docum ento

h istórico que revelava e discutia o processo de degeneração bu ro crática do P artido

B olchevique. Sob o títu lo de “ O ú ltim o serviço à causa” , os oposicionistas publicaram a carta

147
que A d o lf A bram ovich Y o ffe67 escreveu à T rotsky antes de com eter suicídio em 16 de

novem bro de 1927. A longa carta de Y offe é um docum ento de denúncia à burocratização, no

qual ele buscou dem onstrar com o a sua trag éd ia pessoal estava relacionada à própria tragédia

da revolução:

Se é permitido comparar o que é grande como que é pequeno, direi a importância


imensa do acontecimento histórico que é a sua exclusão e a de Zinoviev, expulsão
que há de abrir inevitavelmente um período termidoriano na nossa Revolução, e o
facto que me reduzem depois de 27 anos de trabalho revolucionário nos postos
responsáveis do Partido, a uma situação, em que nada mais me resta a fazer do que
meter uma bala na cabeça, estes 2 factos, torno a dizer, ilustram um só e único regime
do Partido. (YOFFE, 1930, p. 3).

U m a das preocupações do G C L era p u b licar textos que abordassem o m om ento atual

que a revolução soviética vivia e um a das questões centrais no início da década de 1930 era o

P lano Q uin q u en al. O objetivo era contrapor a versão oficial da b u rocracia soviética, a qual

apontava que o plano e todo o cenário soviético era otim ista e de avanço inquestionável. A ssim ,

traduziram e publicaram outro texto assinado po r Trotsky, “ O P lano quinquenal e a

desocupação” , que havia sido publicado pelos oposicionistas franceses em La Verité, em m arço

de 1930. O texto assinalava que a principal problem ática em torn o do P lano era teórica, pois

indicava que era possível que a U R SS avançasse na construção do socialism o de form a isolada.

A rgum entou-se que não se poderia desconsiderar a relação de interdependência entre econom ia

soviética e a econom ia m undial e que as contradições internas da U R SS só poderiam ser

resolvidas com a revolução internacional.

A inda sobre a situação da R ússia Soviética, o G C L publicou a trad u ção de um tex to de

A. Senine, m em bro da O posição de E squerda (O E ) russa. O artigo intitulado, “ A ntes do X V I

C ongresso do P artido B o lchivique” , publicado originalm ente em La Verité, em ju n h o de 1930,

apresentou um a crítica à estrutura burocrática que dom inava o PC U S. D epois da expulsão dos

m em bros da O posição U nificada, o centralism o e o autoritarism o continuaram avançando no

in terio r do partido. D e acordo com Senine (1930, p. 4): “ O X V I C ongresso vai se realizar

67 Yoffe conheceu Trotsky em Viena quando o ajudou a dirigir o Pravda e ingressou no Partido Bolchevique em
1917, se tornando membro do Comitê Central. Ao lado de Trotsky, Yoffe atuou durante as negociações de Brest-
Litovsk e, posteriormente se tornou embaixador na Alemanha, sendo transferido para o Japão devido sua simpatia
pelas demandas oposicionistas. No início de 1927, retornou à Moscou gravemente debilitado pela tuberculose e
foi orientado pelos médicos a buscar tratamento no exterior. Trotsky solicitou a aprovação da liberação de Yoffe
junto ao Comissário de Saúde e ao Politburo, mas o pedido de tratamento que custava mil dólares foi recusado
sob alegação de ultrapassar o orçamento. Neste mesmo período, Yoffe recebeu uma proposta de um jornal inglês
para publicar suas memórias por 20 mil dólares, mas Stalin o proibiu de publicá-las, recusou seu visto de saída e
impediu a sua assistência médica. Sem vislumbrar nenhuma solução para o seu problema de saúde e diante da
expulsão de Trotsky do Partido, Yoffe apontou uma contra a própria cabeça e atirou.

148
debaixo do chicote do aparelho. A ju ste z a deste prognostico se confirm a pela discussão atual.

(...) centenas de cam aradas foram excluídos j á antes do C ongresso” .

Senine (1930) ainda afirm ou que m esm o com a exclusão dos p rin cip ais líderes

oposicionistas, as ideias divergentes perm aneciam proliferando entre os trabalhadores. A ssim ,

destacou que antes do congresso, a repressão tam bém atingiu os operários que dem onstravam

sim patias pelos oposicionistas: “N o s últim o s m eses m ilhares de operários foram presos nos

centros industriais da U R SS: em M oscou 450 operários foram presos po r sua atividade

oposicionista” (Ibidem ). A exclusão destes operários foi publicada no Pravda, que ju stifico u

afirm ando se tratar de sabotadores m encheviques e trotskistas. M as o que estes trabalhadores

reivindicavam , afirm ou Senine, era a discussão livre de suas propostas, um debate aberto com

to d as as ten dências ou linhas divergentes sobre todas as questões em torno da construção

econôm ica da U R SS.

A Luta de Classe tam bém destacou a atuação de grupos o posicionistas em outros países.
N esta perspectiva, publicaram um artigo sobre a L iga C om unista (O posição) de Paris, que

dirigiu um apelo a todas as organizações da O EI, denunciando a repressão sangrenta do

im perialism o francês ao m ovim ento de libertação da indochina (GCL, 1930i, p. 3). Os

revolucionários da indochina foram m assacrados pelo governo francês num a ação que executou

dezenas e ainda condenou outros a m orte e a prisão perpetua. D e acordo com os oposicionistas

franceses, era preciso denunciar e p ro testar contra esses crim es. O s revolucionários da

península indochinesa eram sim páticos a O E e lutavam denunciando a política de conciliação

da IC. P o r isso, os stalinistas perm aneceram em silêncio.

O G C L tam bém destacou que a O posição com eçava a se desenvolver na E spanha. D e

acordo com o artigo de A Luta de Classe, a base do P artido C om unista E spanhol (PC E ) havia

aprovado o reingresso dos m ilitantes oposicionistas expulsos do partido. M as a direção do

m esm o ao invés de reintegrar estes m ilitantes, m anobrou e excluiu outros m em bros

sim patizantes de T rotsky. N ão obstante, um a vez excluídos do PC , im possibilitados de luta

dentro do partido, os espanhóis organizaram um grupo oposicionista e deram início a

publicação do jo rn al, “ C ontra a corrente” . A inda sobre as atividades oposicionistas em outros

países, A Luta de Classe inform ou que estava surgindo um grupo na A rgentina.

149
Considerações finais

E m novem bro, os sinais de desgaste e p aralisação das atividades do grupo se tornaram

evidentes. A lgum as cartas descrevem este cenário de falência do GCL. E m correspondência de

R odolfo C outinho para Lívio X avier, fica clara a fragilidade na com unicação entre os m em bros

e a ausência de atividades, pois cada m ilitante p arecia cuidar de outros interesses. N este m esm o

período, dois dos principais articuladores do grupo adoeceram . P o r m otivo de saúde, P edro sa

e A zam buja ficaram im possibilitados de desenvolverem atividades políticas. C om o

afastam ento do principal articulador, o grupo se rendeu ao desânim o e praticam ente encerrou

suas atividades. Sob o nom e do G C L não foi p u b licado m ais nenhum núm ero de A Luta de

Classe e tam bém não se realizou m ais nenhum a intervenção pública.


N ão obstante, a partir de ja n e iro de 1931, o grupo se reorganizou e com o ingresso de

A ristides Lobo, fundaram a L iga C om unista (LC) que em outubro de 1933 adotou o nom e de

L iga C om unista Internacionalista (LCI) e atuou até finais de 1936. N o ano seguinte, os

trotskistas rem anescentes fundaram o P artido O perário L eninista (PO L) que atuou até 1939.

D urante to d o este período, o jo rn al A Luta de Classe perm aneceu sendo publicado, afinal havia

u m a continuidade teórico-program ática entre os diferentes grupos. A o todo foram publicados

45 núm eros, dos quais 34 foram preservados e até hoje configuram um im portante docum ento

h istórico para pesquisadores da H istória da Im prensa O perária e H istória Política.

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151
AZALEIA, ROSA E DÁLIA: A LUTA PELA TERRA NA ESTRUTURA DO
PATRIARCADO

C L Á U D IA D E L B O N I*

E ste trabalho constitui-se num recorte da pesquisa de doutorado desenvolvida entre os

anos de 2013 e 2017, quando realizei a análise da história oral de vida de nove m ulheres

assentadas no m unicípio de Sidrolândia, no E stad o do M ato G rosso do S u l.68 A zaleia, R o sa e

D á lia participaram das ações na luta pela terra, prom ovidos pelo M ST, de tal m odo que se

instalaram em baixo das lonas preta no ano de 2005 e im provisaram a produção da vida

dom éstica da fam ília, na expectativa de conquistarem a m orada. T ornaram -se assentadas rurais

no ano de 2007, nos assentam entos João B atista e E rnesto Che G uevara.

R ecorri ao uso da h istória oral de vid a com o opção teórico-m etodológica, na m edida

em que a narrativa das m ulheres assentadas m ostrou-se com o estratégia p ara a produção de

docum entos. D esse m odo, form ulei algum as perguntas para a construção de suas histórias de

vidas enquanto m ulheres assentadas: O nde e com o viveram a infância e adolescência? P o r que

ingressaram na luta pela terra? A condição de proprietária do lote possibilitou um a m aior

equidade de p o d er diante dos m aridos?

P ara a análise das narrativas fem ininas e m asculinas utilizei da perspectiva da

h istoriadora M ichelle P errot:

Assim, os modos de registros das mulheres estão ligados à sua condição, ao seu lugar
na família e na sociedade. O mesmo acontece com seu modo de rememoração da
encenação propriamente dita do teatro da memória. Por força das coisas, ao menos
para as mulheres de outrora e para o que resta do passado nas mulheres de hoje (e que
não é pouco), é uma memória do privado, voltada para a família e para o íntimo, aos
quais elas estão de certa forma relegadas por convenção e posição. (PERROT, 2005,
p. 39)

A s lem branças fem ininas estavam repletas das recordações da vida íntim a e da unidade

dom éstica, lugar que foram socialm ente responsabilizadas. N as narrativas elas teceram as

relações sociais nas quais estavam inseridas e assum iam seu ponto de vista. T am bém , os

estudos de P ierre B ourdieu foram fundam entais para refletir sobre os poderes sim bólicos, um a

68* Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul. Doutora em História, CAPES/CNPQ,
Tese de Doutorado defendida no ano de 2017, com o título História de Mulheres do Assentamento Ernesto Che
Guevara e João Batista na luta pela terra em Sidrolândia/MS: consentimentos, rupturas e continuidade,
defendida no Programa de Pós-graduação de História (PPGH), na Faculdade de Ciências Humanas da
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

152
espécie de cerco invisível que operam nas relações de gênero. U m a econom ia de trocas

sim bólicas que encerram os sujeitos em papéis a serem desem penhados socialm ente. As

m ulheres são partícipes de um sistem a de relações que as deslegitim a no protagonism o de suas

histórias e, em contrapartida, reconhece o papel da virilidade atribuída aos hom ens, cuja força

resu lta na tutela dos seus cam inhos, bem com o na superioridade m asculina, nas hierarquias de

poderes. O m undo social que constrói corpos m asculinos e fem ininos. (B ourdieu, 2010, p. 39)

Rosa e Dália: na docência da luta pela terra

N o contexto da pesquisa R osa tin h a sessenta e quatro anos de idade, era casada e m ãe

de quatro filhos. N asceu no m unicípio de R io V erde de M ato G rosso e com quatorze anos

m igrou p ara a cidade de C am po G rande, onde viveu a ju v en tu d e ocupada pelo trabalho de

em pregada dom éstica. C asou-se com dezoito anos, teve quatro filhos e interrom peu os

trabalhos assalariados, período que viveu para os cuidados da fam ília. E m fins da década de

1990 divorciou-se, casou-se novam ente e ingressou no M ovim ento N acional de L uta pela

M o radia (M N L M ) n a capital C am po G rande. N a luta pela m oradia conheceu o M S T e integrou-

se à luta pela terra, na qual se firm ou com o professora no acam pam ento e em preendeu um a

m obilização para a construção da E sco la João B atista, no espaço do assentam ento.

D ália é filha de R osa, nasceu na cidade de C am po G rande, no ano de 1983. V iveu a

infância e a adolescência na periferia da cidade, nas casas construídas e v endidas pelo pai. A pós

inúm eros desarranjos fam iliares e diversas m udanças nas periferias de C am po G rande, viveu a

condição de v io lên cia que o pai subm eteu a m ãe no processo de separação quando foram

im pedidas de se encontrarem . N um processo de resistência tecid a ju n to com a m ãe, retom aram

a convivência e ju n ta s ingressaram no M ovim ento N acional de L uta pela M o radia (M N L M ).

E ngravidou aos quinze anos de idade e assum iu sozinha a m aternidade, quando retom ou os

estudos, casou-se, trocou o M N L M pelo M o v im ento dos T rabalhadores R urais Sem Terra

(M ST ) e seguiu para o acam pam ento João B atista em Sidrolândia. N ele, estreitou os laços à

organização, a p artir do Setor de E ducação tornou-se professora e ainda liderou as m ulheres

para a construção da escola João B atista, na qual perm anece com o professora, na ten tativa de

conciliar a produção do lote com a profissão da docência.

M ãe e filha, na condição de vizinhas de lote, estabeleceram no assentam ento E rnesto

C he G uevara e, unidas ao M ST , conduziram a m obilização da E sco la João B atista, onde

153
paulatinam ente im plantaram o E nsino Fundam ental I e II o E nsino de Jovens e A dultos (EJA )

ao longo de um a década, com o recordou D ália:

A escola continuou andando e graças a Deus foi aumentando. Cada ano que passava
aumentava uma série, tínhamos até o quinto ano, depois aumentou o sexto, o sétimo
ano e agora se Deus quiser vai aumentar o oitavo. Mas a história da escola é enorme
teria que ter um tempo só para contar sua história, que acompanhou a minha trajetória,
quando me tornei professora. 69

C onduzidas pela certeza da necessidade de alfabetização das fam ílias assentadas, que

em sua m aioria tinham baixo nível de escolaridade, seguiram as orientações educacionais

pensadas e form uladas pelo M ST , po r m eio da participação dos E ncontros e discussões

patrocinadas pela organização.

A E sco la João B atista foi criada no acam pam ento e conduzida p elas m ulheres

assentadas do E rnesto C h e G uevara as quais seguiram as diretrizes form uladas em cursos e

encontros do M ST. D esse m odo, a escolarização dos pais e filhos torn o u -se objetivo principal

de D á lia e R osa, que percorreram os assentam entos para coletarem assinaturas das fam ílias

interessadas na m atrícula. C om o abaixo assinado em m ãos, elas pressionaram a p refeitura de

Sidrolândia para a abertura das salas, e conform e as turm as se firm avam elas conquistaram

todo o ciclo do E nsino Fundam ental II e o E nsino M édio no program a do E JA . C om eçaram

com um a turm a no acam pam ento, depois de sete anos no assentam ento acum ularam um total

de vinte e oito salas.

A través da escola as m ulheres acessaram seu espaço de fazer política. A luta pela sua

edificação perpassou pelo apoio a form ação das m ulheres, que eram orientados para ocuparem

os cargos das escolas. D essa m aneira, D ália estim ulada pela possibilidade de trabalho, junto

com um grupo de m ulheres pressionou a S ecretária para reconhecer os Sem Terra, enquanto

responsáveis pela escolarização dos assentados. A escola tornou-se fonte de renda p ara algum as

fam ílias engajadas na escolarização, prim eiro das crianças com o E nsino F undam ental I, depois

dos adolescentes e adultos no E JA .

A escola tornou-se espaço de sociabilidades p ara os assentam entos E rnesto Che

G uevara e João B atista. A necessidade de transporte coletivo resultou em arranjos

proporcionados pelas professoras que buscaram m eios de superarem a distância entre o lote e

a escola. D a m esm a form a, prosseguiram na negociação ju n to à S ecretaria de E d ucação do

69 E N T R E V IS T A , D ália, (Á udio - M P 3), Produção: Cláudia D elb on i. Sidrolândia, 2hs:10m in.

154
m unicípio, a qual trazia outra concepção de escola, orientada e direcionada pelos valores

urbanos e não em conform idade com as necessidades da vid a no cam po.

A m paradas po r esse viés, D á lia e R osa engajaram n a construção de um a escola do

cam po e não no cam po, com um a prática pedagógica que levasse em consideração a realidade

da com unidade. O protagonism o fem inino na construção da escola despertou a resistência dos

assentados, que com entavam que elas queriam co n stru ir um puteiro no assentam ento. A

dom inação m asculina perpassou pela consciência de que a escola era um espaço de fazer

política.

A escola tornou-se um in strum ento im portante para as m ulheres que nasceram na roça

ou nas periferias das cidades, que não a frequentaram por diversos m otivos, m as acim a de tudo

era resultado da relação de gênero, um a vez que o direto de escolarização havia sido negado,

em sua m aioria pela figura do pai. E sobre esse tem p o a m aio r lem brança de R o sa foi a escola

negada aos doze anos, quando com pletou a quarta série e o pai encerrou sua vida escolar. S obre

isso narrou:

Meu sonho era estudar, mas o meu pai falou, minha filha agora é época de você
parar! Tem suas irmãs e irmãos que são abaixo de você e que precisam estudar
também, você vê que só o pai trabalha. Aí eu chorei, chorava, chorava muito... Meu
sonho era estudar. Cresci com a vontade de querer estudar e nada.70

A lem b ran ça de sua infância na cidade de R io V erde não foi fácil de ser rem em orada,

na m ed id a em que foi u m a h istória de privações e, talvez, a falta da escola fosse a m aio r delas.

R o sa repetiu enfaticam ente o choro quando o pai, enquanto chefe responsável pela fam ília,

anunciou-lhe o fim da escola. A educação form al fazia parte do im aginário fem inino, j á que

m uitas passaram a infância e a adolescência nos serviços dom ésticos da casa, ou com o

em pregadas dom ésticas. O sonho da escola não era som ente para as crianças, m as tam bém para

as m ulheres adultas. A lém do que, a escola resultou em possibilidades de trabalhos para aquelas

que haviam acessado a universidade e conseguiram u m a fonte de renda exercendo a docên cia .

O núcleo fam iliar de D ália, além da parceria com o M ST, tam bém estabeleceu relações

com o IN C R A (Instituto N acional de C o lo n ização e R eform a A grária). E ste apareceu nas

narrativas perm eado pelos conflitos resultantes das negociações para a regularização do lote,

tal com o um a entrevista realizada pelo técnico que insinuou que ela e o m arido não tinham

70 E N T R E V IS T A , R O SA . (Á udio M P 3). Produção: C láudia D elb on i. Sidrolândia, 1 3 /1 2 /2 0 1 4 , 4 0 min.

155
pretensões de perm anecerem no assentam ento, m as desejavam o lote para vendê-lo, e ainda

profetizou o prazo de um ano para que isso ocorresse.

C ontrariando as expectativas do fu ncionário do Incra, ela perm aneceu no lote e

conciliou à docência com a ten tativa de ocupação da terra, u m a vez que o salário de professora

possibilitou pequenos investim entos na produção de alim entos. P rim eiro gradeou o solo,

plantou m il ram as de m andioca e não nasceu uma mandioca para contar história! D epois,

investiu em um a horta, que não prosperou, som ente com a análise téc n ica do solo constatou

seu desgaste, to m ad o pelos cupins, cuja correção exigiu investim entos que a fam ília não

possuía. D ália ainda investia na sua form ação escolar, ressaltado nas lem branças:

Não tínhamos condições de comprar toneladas de adubo para fazermos a correção do


solo, nunca tivemos condições para isso, porque eu sempre continuei estudando,
mesmo depois que terminei a faculdade, fiz a Pós-Graduação em Educação Especial,
depois em Gestão. Eu sempre foquei nos meus estudos, não tinha como escolher, ou
eu comia e investia no lote; ou estudava e investia no lote. Essas coisas me causaram
muito medo, porque plantamos mandioca e não deu, plantamos milho não deu, então
tinha que fazer correção do solo e não tínhamos condições. 71

A n arrativa da insegurança foi com um na fala das assentadas, resultado da incerteza de

estarem num espaço desconhecido, em m eio a inúm eras relações contratuais que

desconheciam , e ainda com o com prom isso de satisfazerem as expectativas do E stado, da

fam ília e da sociedade de m odo geral: D ália teve medo de naufragar na travessia. E la viveu o

dram a do ajustam ento, no qual contou com precários recursos, para v iver u m a situação

com pletam ente alheia à sua experiência, num a configuração social com pletam ente diferente de

tudo o que ela conhecia.

U m a estratégia para desvencilhar-se da falta de recursos foi o abandono da produção na

agricultura, que exigia capital para a correção do solo. D esse m odo redirecionou os recursos à

produção da pecuária, um a vez que o M ST estim ulou a criação de um a cooperativa de leite.

D esse m odo, acessou os recursos do E stado destinados ao fom ento de projetos por m eio do

IN CR A :

Depois pegamos o Programa de Nacional de Fortalecimento da agricultura familiar


(PRONAF) e cometemos alguns erros. Hoje falo para as pessoas que não façam o que
eu fiz, porque os meus erros foram graves: comprei um monte de poste, arames e
apenas cinco vacas. Foi a maior bobeira da minha vida, eu tinha que ter comprado
vacas! Mas eu comprei tudo errado, porque investi em poste, arame, barracão,
triturador, ordenhadeira que não me dariam leite. Eu tinha que ter investido em vaca,
em pasto e não nessas coisas, que eu podia ter comprado com o próprio leite que eu

71 Idem, Ibidem.

156
fo sse vender. 72

O evento rem em orado levou-nos a reflexão sobre os desencontros entre o planejam ento

do estado e as reais necessidades dos assentados. R ecebeu as p arcelas do recurso e nenhum a

assistência técnica, um a reform a agrária pautada em contratos que hom ogeneízam os sujeitos

e os im pedem de perceberem suas reais necessidades. P ela falta de experiência de viver no

cam po, acrescido pelo desconhecim ento da pecuária, esqueceu-se de investir no gado e

preocupou-se em adquirir o aparato tecnológico para a m ontagem do pasto. D esse m odo,

faltou-lhe recursos para com prar as vacas leiteiras, as q uais poderiam lhe render recursos

econôm icos para sanar as p arcelas do em préstim o ju n to ao P ronaf.

(R e)agregação da fam ília tornou-se prioridade para D ália, na m edida que a experiencia

vivida na periferia de C am po G rande havia resultado na separação dos pais. D esse m odo

com binou diversos tipos de projetos, com distintas m ediações para assegurar possibilidades de

u m a vida m enos difícil. A pesar dos esforços conjuntos, não conseguiu lucrar com a produção

do leite, pelo contrário: Quando começamos a colocar no bico da caneta todos os gastos,

descobri que estava tirando dinheiro do meu salário, para comprar ração para elas. As vacas
não me devolviam o lucro, com a produção do leite. 7273
C ontudo, da m esm a m aneira que as fam ílias reform ulavam os projetos, estes tam bém

(re)significava a vida em fam ília. D iferente da infância, na qual o pai decidia pelos destinos de

todos os m em bros, na condição de titu lar do lote, seu núcleo fam iliar reunia-se para decidir

novas estratégias:

Neste momento, sentamos e refletimos sobre o que estava acontecendo e o que


desejámos fazer. Eu falei, bom, ir embora daqui eu não vou! Porque eu amo esse
lugar, amo estar aqui nesse silêncio, nessa tranquilidade, de não ter carro e moto
passando o tempo todo em frente da minha casa, gente correndo, gritando e sendo
esfaqueadas. Eu queria a vida daqui, de tranquilidade, de ouvir o passarinho cantar,
de ouvir a galinha, de ouvir o porco, a vaca, o boi e não os hábitos da cidade. Então
concluímos que não conseguimos sobreviver apenas aqui, não dava para tirar nosso
sustento daqui. Assim, meu esposo resolveu trocar a categoria da carteira de
habilitação para a classe D e poder trabalhar de motorista da escola, porque era a
única saída, não tinha como ficar esperando, sem trabalhar. Estávamos precisando de
dinheiro e tudo que eu tinha eu investia na minha profissão.74

A opção pela escolarização jam a is saiu do com puto da econom ia dom éstica da fam ília,

ela tin h a o acordo, que era prosseguir nos estudos, acordo este que antecedeu ao pacto do

72 Idem, Ibidem.
73 Idem, Ibidem.
74 Idem, Ibidem.

157
casam ento. Sua form ação profissional contou com a presença do m arido, que form ulava

questões sobre os ensinam entos de Piaget, Vigotsky, Fanon e Emília Ferreiro para p repará-la

para as avaliações realizadas no curso da U niversidade E stadual de M ato G rosso do Sul

(U EM S). N o tran sco rrer da organização fam iliar, não viveu a interdição da escola, experiência

com um na vida conjugal, o arranjo fam iliar levou em consideração as necessidades de co n ciliar

a vid a no assentam ento com sua form ação profissional, que por sua vez, im pulsionou o retorno

do m arido aos bancos da escola.

D ália percorreu um cam inho diferente da m ãe: R osa não conseguiu im por seu desejo

de retornar à escola durante duas décadas da relação m atrim onial. P ara além das dificuldades

econôm icas da fam ília, enfrentou a oposição do m arido, que enquanto chefe decidiu a

econom ia m onetária da casa, com a qual sustentou duas fam ílias e não viu necessidade dos

estudos da esposa.

E n q u an to assentada, através da luta pela escola, D ália conseguiu a estabilidade de

professora efetiva no m unicípio e, consequentem ente, propiciou segurança alim entar para a

fam ília diante das incertezas da reform a agrária. T am bém , po r m eio da educação encontrou a

inserção no assentam ento com a garantia do lote, o qual foi titu lad o em seu nom e. Q uando

perguntada sobre a relação entre a regularização do lote no nom e da m ulher e sua participação

no assentam ento, respondeu-nos:

Eu percebo que isso ajuda muito! Por exemplo, quando eu e meu esposo fomos pegar
o PRONAF entramos num acordo. Então, eu não posso dizer que foi uma imposição
do meu esposo ou uma imposição minha. Não! Mas será que se o lote não tivesse no
meu nome, teríamos esse acordo? Eu não sei! Porque isso ainda está muito embutido
ali, o homem que manda, é ainda o homem quem decide. Ainda tem hoje tem isso.75

“ Se” é um a palavra que não existe no instrum ental do historiador, m as sem pre

arriscam os os perigos de pensar nas encruzilhadas que encontram os na tra v e ssia do cotidiano

vivido. D ália no m om ento da entrevista não tin h a certeza se o m arido levaria em consideração

seu posicionam ento na hora de decidir pela aplicação dos recursos vindos do IN C R A , acaso

não existisse a lei, pois era parte do habitus social o p o d er m asculino, está muito embutido que

é o homem quem manda nas palavras dela. E la som ente tinha a certeza de que seu nom e
constava no docum ento da terra e que foi ouvida no m om ento da aplicação dos recursos

recebidos.

75 Idem , Ibidem .

158
O acesso à terra é um elem ento im portante para o empoderamento da mulher, expressão

em pregada po r C arm en D ianna D eere e M agdalena L eón para ex p licar o poder nas m ãos das

m ulheres:

O empoderamento da mulher desafia relações familiares patriarcais, pois pode levar


ao desempoderamento do homem e certamente leva à perda da posição privilegiada
de que ele desfruta sob o patriarcado. Isto porque o empoderamento ocorre quando
houve uma mudança na tradicional dominação da mulher pelo homem, seja com
relação ao controle de suas opções de vida, seus bens, suas opiniões ou sua
sexualidade. Pode se observar quando as decisões unilaterais não são mais a norma
dentro da família. (Deere; León, 2002, p. 54)

O em poderam ento das m ulheres assentadas passava pelo acesso a bens. A posse da terra

com o instrum ento de em ancipação fem inina atravessou os m ovim entos sociais de luta pela terra,

que pressionaram o E stado para a criação de políticas públicas que atendessem às dem andas das

trabalhadoras rurais. E n tre 2003 e 2007, o Incra publicou a P o rtaria N° 981/2003 e a Instrução

N o rm ativ a N °38/2007, cujo conteúdo alterou a regulam entação da reform a agrária ao efetivar o

direito das m ulheres à terra e os procedim entos p ara a sua inclusão.

A pós sete anos de assentam ento, D ália sentia-se tranquila, não se arrependeu pela

adesão ao M ST, pelo contrário reconhecia sua dedicação pela transform ação social. A despeito

dos prejuízos econôm icos nos em preendim entos agrícolas que a desanim aram , ainda se

identificava com o lugar e os ideais da organização. P ercebeu que a produção do leite m al

pagava os investim entos na ração para alim entarem as vacas leiteiras, m as acreditava na

m ontagem da cooperativa com o estratégia para sobressair dos infortúnios da agricultura

fam iliar, especialm ente na distribuição do alim ento, assim narrado:

Falta ter uma cooperativa, falta ter uma associação que de fato tenha essa linha, de
você produtor, negociar com o mercado de forma justa. Os atravessadores vêm com
a caminhonete, pagam quatrocentos reais num bezerro que vale setecentos e a pessoa
vende! Por que vai fazer o quê? Ela precisa ganhar, precisa de dinheiro. Então, a
pessoa planta melancia e vende a preço de banana, banana vende a preço de nada. 76

A produção nos lotes esbarrou nos entraves da circulação e distribuição dos alim entos,

nas dificuldades das fam ílias de negociarem no m ercado os alim entos produzidos na roça por

um preço ju sto , de m aneira que rem unerasse os investim entos, tal com o o trab alh o das

assentadas. D á lia já havia visto fam ílias perderem roças de m elancias, ou conform adas em

negociá-las a p artir de valores irrisórios, a preço de banana.

76 Idem , Ibidem .

159
A s inseguranças na produção individual abateram sobre suas expectativas. N o m om ento

da pesquisa ela aguardava a liberação dos recursos do P ro n a f M ulher, com o qual pretendia

investir na cooperativa de leite para conseguir viver do trab alh o no lote que tanto desejava,

apesar de reconhecer-se enquanto professora na luta pela terra.

V ivia para a escola João B atista que ela cham ava de minha, a qual se constituiu no foco

de suas ações, que se iniciou com coleta de assinaturas e no final da pesquisa tinham

conquistado a regularização do E JA para o E nsino M édio. E la torn o u -se espaço de

sociabilidade entre os diferentes assentam entos, onde duas festas aconteciam e os assentados

confraternizavam o encontro de diferentes experiências. T am bém no seu espaço acontecia

atividades dos sem terrinha, as quais eram organizadas pelos professores ligados a organização

e direcionadas aos filhos das fam ílias assentadas.

N o m om ento da pesquisa D ália ocupava o cargo de coordenadora do E JA do E nsino

M édio. N o am biente escolar ela acom panhou as trajetórias das fam ílias dos alunos, percebeu

as tensões oriundas das incertezas da reform a agrária, cujo percurso conduziu os hom ens para

os trabalhos fora do assentam ento e as m ães p ara os trabalhos de em pregadas dom ésticas.

Lá é onde se reflete as coisas, eu tenho a maioria dos meus alunos, ou mora com a
avós, porque o pai e a mãe foram para cidade pra trabalhar. Ou mora com os pais,
mas ele permanece a maior parte do tempo na cidade trabalhando, porque é mais fácil
homem ganhar dinheiro na cidade do que a mulher. O homem lá faz bico de servente,
é pedreiro, ganha dinheiro e trás, já mulher na maioria das vezes tem que ser uma
empregada doméstica.77

A falta de políticas públicas para apoio da refo rm a agrária de m aneira estrutural,

desem bocou no espaço da escola, onde as crianças no processo de letram ento, apresentavam

os sinais de desam paro diante da ausência dos pais, que buscam na capital a possibilidade de

em prego. A s fam ílias precisaram desenvolver estratégias híbridas para se estabelecerem no

assentam ento, a perm anência nos lotes dependeu da com binação com o trabalho assalariado

nas cidades, que apresentavam m aiores oportunidades de trabalhos tem porários aos hom ens, já

para as m ulheres, o conhecido trabalho de em pregada dom éstica.

D essa m aneira, a vida de assentam ento seguiu m arcad a pelas relações de gênero que

perm eiam a sociedade de um m odo geral. M uitas m ulheres perm aneciam sozinhas nos cuidados

dos filhos, desdobrando-se no trabalho de ocupação do lote, enquanto aguardavam o retorno

dos m aridos com o auxílio m onetário, indispensável p ara a sobrevivência das fam ílias.

E xistiam poucas opções de trabalho rem unerado no assentam ento para as m ulheres, segundo

77 E N T R E V IS T A , R O SA . (Á udio M P 3). Produção: C láudia D elb on i. Sidrolândia, 1 3 /1 2 /2 0 1 4 , 4 0 min.

160
D ália, ou dirigia-se para a escola, vai trabalhar na saúde, porque são os dois pontos

financeiros que saem dinheiro aqui.


C om a notícia do P ro n a f M u lh er algum as m ulheres estavam organizando grupos

coletivos. R osa j á tin h a assinado o contrato e reuniu-se com um grupo que discutiram a

possibilidade de um em preendim ento que não fosse a cooperativa de leite, possivelm ente de

artesanatos. R o sa assim resum iu a v id a no assentam ento:

Agora tem seis anos que estou pre assentada, minha casa já foi construída, agora já
tem forro, já tem piso. E eu dou muito graças a Deus por isso, o lote está quase bem
plantado, tem mangueiro, tem pomar, tem pasto, já consegui minhas vaquinhas com
o PRONAF: tenho porcos, galinha, papagaio, periquito e também tenho ninhos de
canarinho na varanda, tenho comedouro deles, tenho uma égua, uma potra, eu
agradeço muito a Deus por isso.78

D iferente da instabilidade vivida na cidade, R o sa havia conquistado a m orada, a

propriedade do lote, assim com o concretizou o sonho de ser professora. P lantou m uitas árvores

no lote e fazia questão de salientá-las com o um a conquista, era sim bologia da ocupação da terra

de m aneira definitiva, u m a estratégia de criar raízes. Seu lote estava localizado entre D ália e o

ex-m arido que, durante a pesquisa de cam po, perdeu a esposa, vítim a de um câncer.

E m b o ra R o sa estivesse assentada, utilizou o term o pré assentada para definir sua

condição atual, talvez porque considerava que o lote ainda estava quase bem plantado, um a

vez que o curso do assentam ento ainda era um território em construção, aberto a m uitas

intervenções e proposições de futuro. N ão se to rnou agricultora e com sessenta e um anos

considerava o trab alh o pesado devido aos problem as de coluna, assim com o o seu m arido, que

paulatinam ente ocupava o terreno ao redor da casa. N o lote tinha um a diversidade de anim ais

de criação, além das vacas leiteiras, cujo leite utilizava para a produção de queijo. T odavia, o

que m ais se orgulhava na trajetória da luta pela terra, foi a conquista do exercício da docência

que o assentam ento lhe possibilitou.

P o r fim , a fam ília não alcançou a prosperidade desejada, os prejuízo nos investim entos

deixaram m arcas no seu percurso , po r isso D ália aconselhava os assentados que não repetissem

seus erros na produção, hoje falo para as pessoas que não façam o que eu fiz, porque os meus

erros foram graves. A m em ó ria da transição para o assentam ento estava entranha pelo
sentim ento de solidão e culpa pelos erros, contudo, eram sintom as intrínsecos a reform a agrária

que foi im plantada. E sta, circunscrita à distribuição, sem reform as estruturais na política

fundiária, e ainda vo ltad a para os interesses dos grandes p roprietários rurais.

78 Idem , Ibidem .

161
P o r outro lado, o objetivo da luta foi cum prido, em to rno dos lotes as três fam ílias - a

da D ália, a da m ãe e do pai -, estavam novam ente unidos, depois do tenso processo de divórcio.

A lém disso o assentam ento propiciou a m orada, para recepcionar e extensa parentela:

Hoje os meus parentes veem na minha casa, hoje eu vou para a lagoa com eles. Hoje
a gente assa a carne junto, então eu estou resgatando aquela vida que eu tinha, quando
eu tinha minha avó. Aquele estar junto com um monte de gente. Eu gosto disso, eu
gosto de ter um monte de gente em casa. Todo mundo comer junto, ir tomar banho
na lagoa - amo tomar banho na lagoa.79

N o assentam ento, D ália agregou a extensa parentela que conviveu durante a infância na

casa dos avós, nas férias, assim com o reintegrou a fam ília e am enizou a situação de

precarização m aterial vivida na cidade. É na perspectiva de José de Souza M artins que

entendem os o processo de consolidação da reform a agrária im plem entada nos últim os trinta

anos:

A pesquisa trabalhou com a suposição alternativa de que mais do que mera


sobrevivência (o que certamente não justificaria uma reforma agrária), essas
populações buscam sobreviver com dignidade, com base na não-dispersão da família
e na esperança de assegurar um futuro aos filhos. Estamos, portanto, falando em
populações que lutam por um projeto de vida e não de populações que apenas lutam
por sobrevivência, como querem os que têm uma concepção pobre dos pobres. A
fome dos pobres vai muito além de três refeições ao dia. (MARTINS, 2003, p.41-2)

P o r fim , as lem branças de D ália e R osa sobre a luta pela terra trouxeram a certeza de

que seu ingresso na organização trouxe-lhe som ente coisas boas, na m edida que conquistou a

terra e a escola e consolidou a fam ília, que experim entou a precarização m aterial na década de

1 9 9 0 na capital do E stado, a cidade de C am po G rande.

A z a le ia : o d iv ó rc io , a c o n q u is ta do sítio e o acesso à u n iv e rs id a d e

N ascid a em A quidauana/M S, sua h istória de vid a revelou um a infância m arcad a por

sucessivas de m igrações pelas fazendas até a m udança para a vila de A nhanduí, onde o pai

trab alh o u na em presa R odocon. V iveu a infância e adolescência ocupada com em pregos

dom ésticos: prim eiro na casa dos outros, depois num restaurante. E m m eio a década de 1980

79 Idem, Ibidem.

162
casou-se no intento de livrar-se da desvalorização do trabalho assalariado, m udou-se para

C am po G rande e ocupou-se da unid ad e dom éstica e reprodução da fam ília, teve três filhos.

A pós vinte anos no cuidado da fam ília, sentiu se desvalorizada no casam ento, tanto que

em 2005 ingressou na luta pela terra ju n to ao M ST, para reconquistar o m arido. E le não aceitou

sua participação no acam pam ento, e diante da pressão para desistir da estadia nos barracos de

lona, ela colocou fim ao m atrim ônio e assum iu a luta pela terra, ju n to com a filha de cinco anos

de idade.

E m 2007, ela conquistou um lote no assentam ento João B atista. E n q u an to assentada,

tom ou a escola com o lócus central na construção da sua profissão, bem com o espaço para

consolidação da m orada. C om o titu lar do lote, paulatinam ente ocupou a terra conquistada,

denom inada de sítio. A travessou inúm eros desafios desde a chegada ao lote definitivo, quando

tratou de fazer a m udança do barraco de lona para o lugar definitivo, ju n to com a filha de cinco

anos de idade, rem em orado com um m isto de alegria e tristeza pela solidão do acontecim ento.

“ C onseguim os as terras definitivas, então m udam os p ara um lugar ainda m ais longe. E u não

tin h a carro, não tin h a dinheiro para pagar carro para levar as m inhas coisas. C om o eu iria?

F om os a pé e de bicicleta. L evam os cada tom bo de b icicleta.” 80

Sozinha nos trab alh o s do lote, precisou reco rrer ao trab alh o assalariado em um m ercado

do assentam ento, enquanto retom ou os estudos. C onquistou a casa de alvenaria e os recursos

do Pronaf, com o qual increm entou a aquisição do rebanho, que cham ava de minhas vacas. A os

poucos, dedicou-se aos trabalhos inform ais para a geração de renda e desse m odo produziu

doce de leite no quintal e o com ercializou nas feiras de Sidrolândia, agregando v alor ao leite

produzido no sítio. Individualm ente, ela construiu um a cadeia produtiva que perpassou pela a

criação do gado, a ordenha da vaca, o cozim ento do leite e, po r fim , a com ercialização do doce.

Sobre a condição de estar sozinha na luta pela terra resum iu da seguinte m aneira:

Porque eu passei muito sofrimento por estar sozinha, pois o povo não respeitava a
gente, porque era mulher solteira, se você pedia para um homem fazer alguma coisa
para você, ele já ia com outras intenções, porque você era sozinha, eles achavam que
tinha que aceitar. É nesse sentido que não foi fácil.81

E nquanto habitus social, o casam ento era socialm ente valorizado e a sua condição de

divórcio, to rnou-a vulnerável para satisfação dos desejos m asculinos, porque você era sozinha,

eles achavam que tinha que aceitar. E m consonância com os valores do patriarcado, as

80 Idem, Ibidem.
81 ENTREVISTA, AZALEIA, (Áudio - MP3), Produção Cláudia Delboni - Sidrolândia, 20/03/20014, 40 min.

163
m ulheres eram percebidas com o dependente de um hom em , o qual exerceria o papel de chefia.

C aso contrário, eram vistas com o m ulheres afeitas à satisfação dos desejos sexuais im posta

pela dom inação m asculina, ele já ia com outras intenções.

R esponsável pela unid ad e dom éstica e pela produção do sítio, desdobrou-se em várias

frentes de trabalhos: assalariada, cozinheira, com erciante, estudante, além da produção do lote

e dos quintais, especialm ente na criação de gado leiteiro com o as dem ais assentadas. T odavia,

sofreu um revés na condição de assentada, quando a filha m udou-se para C am po G rande, para

cuidar da neta que havia nascido e a filha sem acesso a creche, contou com ajuda da irm ã para

reto rn ar ao trabalho. E ste evento foi narrado com profundo sentim ento de dor por A zaleia:

Porque a minha filha precisou da outra para ir para Campo Grande porque ela teve
uma filha e precisava trabalhar. Então, ela me pediu que deixasse a caçula ir para que
ajudasse a cuidar da neta. Eu fiquei muito triste, porque eu precisava sair para
trabalhar e estudar e a minha filha ficava sozinha naquele lugar. Era triste! Eu queria
que ela ficasse comigo, mas não tinha outra saída, pois eu precisava arrumar alguma
coisa para gente prosperar no assentamento, porque sozinha e só ali dentro você não
consegue. Tinha que ter uma, duas ou três pessoas - um ficava no sítio e o outro
trabalhava fora. Ou então, sobrevivia daquilo que produzia, mas eu ainda não tinha
isso, não tenho até hoje, a gente está devagarzinho. Ela tinha doze anos e eu a mandei
para Campo Grande, ela precisava fazer curso, estudar mais.!82

A saída da filha representou-lh e um golpe para o seu projeto de assentada. P rim eiro o

sentim ento de solidão foi difícil de ser superado, ainda que perm anecesse m uito tem po fora do

sítio, contou com a parceria da filha deste os cinco anos de idade. L ogo en co n tro u um

com panheiro, tam bém assentado no João B atista, que apesar de viverem u m a condição de

união, cada um trabalhava no seu lote. T alvez tivessem receio de que a condição de casam ento

resultasse em questionam entos da com unidade da existência de u m a fam ília e a posse de dois

lotes.

P o r isso, ela não se apresentou com o casada, po d eria com plicar sua trajetória de

conquista no assentam ento. T alvez isso fosse u m a dificuldade das m ulheres solteiras,

divorciadas e viúvas no in terio r da com unidade assentada: o m edo de assum ir u m a nova relação

de casam ento com um assentado, diante da possibilidade da perda da concessão de uso da terra.

E m segundo lugar, a saída da filha abalou seu projeto para o futuro do sítio, na m edida

que planejou deixá-lo de h erança para ela, que participou da sua luta. E ra um a m aneira de

com pensá-la pelo trabalho prestado, com o um direito assegurado pela difícil luta nos

82 Idem , Ibidem .

164
acam pam entos. U m dos b arracos de lona foi m ontado no dia de seu aniversário de cinco anos,

entre as lágrim as de criança, na resistência ao difícil trabalho de estar na luta pela terra.

D iante da necessidade da filha m ais velha, A zaleia não encontrou argum entos para

negar o seu pedido. A filha não queria ir, m as A zaleia convenceu-a devido a necessidade do

m om ento, com o argum ento de que na cidade teria m ais possibilidades de estudos, além do que

ficava m uito tem po sozinha no barraco de lona devido a diversas tarefas que precisou

desdobrar-se. C ontudo, o que A zaleia não esperava é que nesta trajetória ela se adaptasse ao

m undo urbano e não se interessasse m ais pelo sítio: o espaço do acam pam ento tornou-se

pequeno p ara os sonhos da filha. Sobre a m udanças no com portam ento da filha A zaleia

lem brava com profunda tristeza:

Mas depois que ela foi para lá não quis voltar. Então, ainda hoje eu falo para ela voltar
e fazer uma faculdade como estou fazendo aqui, mas ela disse que não quer mais sítio
de jeito nenhum, quer a cidade, quer shopping, esse negócio de tecnologia. Nem me
visitar ela vem. Eu falo para ela, minhafilha, você se lembra da vida que levamos? E
ela responde que por isso mesmo que não quer mais, diz que sofreu muito aqui.83

T odos os conflitos vividos no assentam ento pareceram m enores diante da saída da filha.

A zaleia viveu as contradições intrínsecas ao espaço do assentam ento, im pelida pela

n ecessidade de estabelecer-se, sim ultâneo ao sofrim ento resultado da p erd a de única herdeira

de sua luta. D urante o dia trabalhava no m ercado e à noite retornou a escola do João B atista,

desse m odo sentiu-se culpada pela sua não presença no cotidiano do assentam ento e viu a

partida da filha para a capital com o estratégia para que a situação melhorasse.

E ntretanto, o distanciam ento da filha a im possibilitou na transm issão dos valores do

cam po, baseados nos valores de uso da terra, o sítio é a melhor coisa . A traída pelos valores de

consum o da cidade, a filha não se interessou m ais pelo assentam ento, quer shopping, esse

negócio de tecnologia. A interrupção do convívio no assentam ento resultou no distanciam ento


do cotidiano vivido na terra, desse m odo A zaleia não conseguiu assegurar para a filh a a

m em ória de sua luta, a qual foi percebida não com o conquista, m as com o lugar de sofrim ento.

E la, que apostou na possibilidade de escolarização da filha fora do assentam ento, contribuiu

para distanciá-la dos laços identitários que as firm avam enquanto Sem Terra, desse m odo

aproxim ou-a do m odo de vida urbano e a desvalorização do cam po.

83 Idem, Ibidem.

165
P ara com preender a saída da sua filha buscam os as reflexões antropológicas de E lisa

G uaraná sobre a saída dos jo v en s, especialm ente as m ulheres, dos assentam entos rurais do

E stad o do R io de Jan eiro , assim escreveu sobre o assunto:

Em Eldorado “ficar” ou “sair” apresenta-se como paradoxo. Os mesmos adultos/pais


que tratam como problema a “saída dos jovens” do campo por meio de expressões
como Os jovens estão indo embora! apontam a justeza de buscarem um futuro
melhor. Este discurso também é traduzido em estratégias familiares de manutenção
do lote, que envolvem formas de “sair” ou de associar trabalho no lote e atividades
externas. De um lado, os pais/adultos tecem críticas à falta de responsabilidade do
jovem com o trabalho na roça e com a terra da família, e, de outro, sonham com um
futuro melhor para seusfilhos.84 (CASTRO, 2006, p. 251-252)

T al com o no assentam ento E ldorado, A zaleia viveu no assentam ento Jo ão B atista o

paradoxo da partida da filha, ela que aceitou a sua m udança agora estranhava seu interesse pela
tecnologia, pelos shoppings e culpava-a pela falta de interesse pelo sítio. O sonho de um futuro

melhor para a filha resultou no abandono do sítio conquistado com lágrim as. D essa m aneira,
contrariou as expectativas da m ãe, deixando-a p rofundam ente entristecida, o choro no

m om ento da entrevista foi expressão desse p aradoxo. P o r fim , A zaleia percebeu na trajetória

construída a negação dos seus anseios, u m a vez que o acesso à universidade não se apresentou

para a filha no cenário urbano, m as sim para ela que perm aneceu na consolidação do

assentam ento.

A opção pela escola acom panhou sua trajetó ria de na consolidação do assentam ento,

quando cursou o E JA e ao térm ino do terceiro ano do E nsino M édio assistiu a oferta dos cursos

de licenciatura pela U niversidade Federal da G rande D ourados (U FG D ), no espaço do

assentam ento, assim narrado:

Terminei os meus estudos e agora estou fazendo a faculdade, que não era a coisa que
eu queria, meu sonho era fazer engenharia civil, mas não tive essa oportunidade. A
professora Célia me incentivou dizendo que através dessa faculdade eu poderia pegar
outras coisas e depois decidiria pelo que realmente queria fazer. O curso era na área
de formação de professores e para mim seria bom, porque para gente conseguir
alguma coisa, era necessário ter feito uma faculdade. Então, percebi que poderia ser
bom para mim, já que não pagava nada, também ficaria somente quinze dias na
faculdade e isso era bom por causa do meu sítio. Eu agradeço a professora Célia,
porque estou gostando muito.85

N o cotidiano da escola, A zaleia foi orientada pela professora de m atem ática86 para que

84
85 Idem, Ibidem.
86 A professora Célia era a freira, moradora no assentamento Eldorado II e desenvolvia um trabalho de pastoral
junto os diversos assentamentos da região.

166
aproveitasse a oportunidade da presença de u m a universidade pública, m esm o não sendo o

curso alm ejado, depois de ingressar na universidade ela poderia repensar o futuro. A zaleia

agradeceu pelos conselhos recebidos, pois eles foram valiosos na sua trajetória no

assentam ento, ela passou no v estibular e estava satisfeita com o curso. E m b o ra tenha

dispendido poucas inform ações sobre processo de form ação, ele foi fundam ental para assegurar

o trab alh o no assentam ento que desejava. A ntes da conclusão do curso conseguiu u m a carga

de aula na escola João B atista, quando estava cursando o ú ltim o ano no curso em L icenciatura

do C am po.

Se por um lado a trajetória de A zaleia não serviu de exem plo para a filha v o ltar p ara o

sítio e cursar a universidade, por outro lado, ela tornou-se m odelo a ser seguido po r algum as

jo v en s e m ulheres do assentam ento, que durante as entrevistas m encionaram o seu ingresso

com o possibilidade de novos tem pos.

C o n s id e ra ç õ e s fin ais:

U m elem ento de destaque nas histórias de vidas das m ulheres assentadas foi a ênfase

na conquista do lote no assentam ento, que foi resum ido em poucas palavras, m as com

profundos significados. A s narrativas sobre o assentam ento vieram acom panhadas de

realizações que o tem p o do acam pam ento não perm itiu. A conquista dos lotes possibilitou a

m obilização pela E sco la João B atista, o acesso aos recursos do Pronaf, a casa de alvenaria e a

criação das vaquinhas. E las encerraram suas narrativas salientando o assentam ento com o

espaço de realização de um sonho, que foi arduam ente conquistado, com histórias recheadas

de p ercalços, de coisas boas e ruins. O assentam ento era o espaço da contradição, de realizações

e indefinições: era um espaço em construção, ainda por fazer.

A conquista dos lotes em seus nom es possibilitou que se desvencilhassem da

vulnerabilidade econôm ica que se encontravam , assim com o possibilitou m aior poder de

participação no interior da fam ília, um a vez que poderiam acessar os recursos públicos

destinados à elas para realização de seus projetos.

A posse da terra é um a condição necessária para assegurar os direitos básicos para a

sobrevivência da fam ília e assim continuarem os esforços em busca de relações equivalentes

entre hom ens e m ulheres no in terio r dos assentam entos. D esse m odo, conquistaram a

escolarização, um a m aior autonom ia na condução dos casam entos e asseguraram a liberdade

de participarem ou negarem os projetos coletivos, conform e os anseios de suas fam ílias.

167
A s m ulheres assentadas p erm aneceram com panheiras de luta nos assentam entos, com o

foram nos acam pam entos, quando coordenaram as panelas das ocupações e asseguravam a

alim entação das fam ílias. A ocupação da escola pelas m ulheres foi o cam inho pelo qual elas

produziram a vida nos assentam entos, sem que isso resultasse num a participação m enos

politizada, quando com parada as ações realizadas pelos hom ens nos espaços públicos das

m obilizações e das assem bleias.

P o r fim , a m aneira de fazer política das m ulheres assentadas perpassou pela m obilização

de seus corpos, de suas vidas na luta pela escola, pela saúde, pelo transporte, estratégias nas

quais suas dem andas foram incluídas na pauta da luta pela terra. D esse m odo, no processo da

refo rm a agrária, a luta e a conquista da terra possibilitaram o acúm ulo de forças para

reorganizarem suas experiências de vida e interferirem , efetivam ente, em suas histórias, na qual

a m igração, o trabalho tem porário, o em prego dom éstico, a violação de seus corpos e de m uitos

de seus direitos por ora foram afastados de suas trajetó rias de vidas, pois afinal, as lutas

continuam po r outras form as de existências e (re)existências.

R E F E R Ê N C IA S B IB L IO G R Á F IC A S :

ABRAM OVAY, M irianR U A , M aria das G raças, Companheiras de Luta ou


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168
INSURGÊNCIAS E ENFRENTAMENTOS ÀS VIOLÊNCIAS
PELAS MULHERES GUARANI E KAIOWÁ: DEBATES SOBRE
RE(EXISTÊNCIAS) E POLÍTICAS DE GÊNERO

C L A U D IA R E G IN A N IC H N IG 87

R e su m o : O presente artigo tem com o objetivo analisar estratégias de enfrentam ento às


violências de gênero a partir dos docum entos finais produzidos pela G rande A ssem bleia de
M ulheres Indígenas G uarani e K aiow á, dos anos de 2019 e 2020, no M ato G rosso do Sul. As
narrativas im pactantes das m ulheres indígenas sobre as v iolências sofridas em suas relações
fam iliares e conjugais, denotam com o as relações fam iliares sejam elas, partilhadas nas aldeias
ou nas cidades, tam bém são para as m ulheres indígenas m arcadas po r em oções e violências.
A o se organizarem em coletivos indígenas, com o as assem bleias, as m ulheres indígenas e as
lideranças fem ininas com partilham seus am ores, suas em oções e de que form a podem
coletivam ente b u scar um a vida sem violências, sendo esta participação um a fo rm a de
re(existência).

O presente artigo tem com o objetivo analisar estratégias de enfrentam ento às violências

de gênero a p artir dos docum entos finais produzidos pela G rande A ssem bleia de M ulheres

Indígenas G uarani e K aiow á, dos anos de 2019 e 2020, no M ato G rosso do Sul. A s narrativas

im pactantes das m ulheres indígenas sobre as violências sofridas em suas relações fam iliares e

conjugais, denotam com o as relações fam iliares sejam elas, partilhadas nas aldeias ou nas

cidades, tam bém são para as m ulheres indígenas m arcadas por em oções e violências. A o se

organizarem em coletivos indígenas, com o as assem bleias, as m ulheres indígenas e as

lideranças fem ininas com partilham seus am ores, suas em oções e de que form a podem

coletivam ente b u scar um a vida sem violências. Se um a cultura política legalista e a busca pela

proteção do E stado são alm ejadas por essas m ulheres, que estratégias atravessam suas

dem andas das m ulheres indígenas quando as legislações e o E stado não alcançam seus

clam ores? Q uais são as estratégias e as problem atizações propostas pelas m ulheres indígenas

em relação às violências de gênero e as form as de enfrentam ento, percebendo as violências de

gênero que ocorrem no âm bito dom éstico e fam iliar com o um a form a de desnaturalizar da

fam ília com o o lugar do acolhim ento e da proteção? A s percepções sobre as violências sofridas

87 Professora Visitante no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados


- UFGD. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina
- UDESC. Doutora em Ciências Humanas - Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.

169
e suas estratégias de enfrentam ento, que afetam a corporalidade e o psicológico de m eninas e

m ulheres nas suas experiências, em oções e vivências são o objeto de análise deste artigo.

A nalisar as estratégias de enfrentam ento às violências de gênero a partir dos

docum entos finais produzidos p ela G rande A ssem bleia de M ulheres Indígenas G uarani e

K aiow á, e as narrativas im pactantes das m ulheres indígenas sobre as violências sofridas em

suas relações fam iliares e conjugais, apresentadas durante as assem bleias, são o objetivo do

artigo. A p articipação das m ulheres indígenas nas assem bleias aponta que as relações fam iliares

são m arcadas po r em oções e violências. A s assem bleias e os coletivos de m ulheres indígenas

são espaços em que as m esm as com partilham com os presentes suas em oções, seus

sentim entos, bem com o as violências que são acom etidas. M as tam bém são espaços de agencia

e enfrentam ento. São espaços que o verbo resistir e esperançar são um a constante, j á que

buscam coletivam ente u m a vida sem violências. Se um a cultura política legalista e a busca pela

proteção do E stado são alm ejadas por essas m ulheres, que estratégias atravessam suas

dem andas das m ulheres indígenas quando as legislações e o E stado não alcançam seus

clam ores? Q uais são as estratégias e as problem atizações propostas pelas m ulheres indígenas

em relação às violências de gênero e as form as de enfrentam ento, percebendo as violências de

gênero que ocorrem no âm bito dom éstico e fam iliar com o um a form a de desnaturalizar da

fam ília com o o lugar do acolhim ento e da proteção? E stas questões serão abordadas neste artigo

que trata das estratégias de enfrentam ento às v iolências sofridas de fo rm a coletiva, as quais

afetam a corporalidade e o psicológico de m eninas e m ulheres indígenas.

A G rande A ssem bleia de M ulheres G uarani e K aiow á acontece desde 2006 no E stado

do M ato G rosso do Sul, de fo rm a anual desde 2 0 1 2 ,88organizada po r lideranças fem ininas as

quais convidam m ulheres indígenas de diferentes tekohas p ara participem da assem bleia, para

que ju n ta s com partilhem as denúncias e pensem estratégias de enfrentam ento. O convite para

particip ar da assem bleia busca a discussão conjunta de pautas específicas para as m ulheres

indígenas, principalm ente para hom ens, m ulheres não indígenas e autoridades é para que sejam ,

sobretudo, escuta daquelas que em outros espaços são silenciadas. A Kunangue Aty Guasu

trata-se de um im portante espaço de fala para as m ulheres indígena, em que lideranças

fem ininas se form am e são form adas, M esm o que questões com o a dem arcação das terras

indígenas e a pro teção dos territórios sejam consideradas dem andas im portantes, percebo com o

a reflexão sobre resistência de m ulheres indígenas em contextos de enfrentam ento às

88 Participei como professora e pesquisadora do VII Kunangue Aty Guasu, realizado entre os dias 16 e 20 de
setembro de 2019, no tekohá Ivy Katu Potrerito atuando como facilitadora de uma das oficinas sobre violências.

170
violências, não som ente no âm bito privado, m as tam bém em am bientes públicos, evidenciam

as m ulheres e seus corpos com o territórios v iolentados po r hom ens (indígenas ou não) e

tam bém pelo próprio E stado. A ssim , trago com o parâm etro para a análise deste artigo as

denúncias realizadas por m ulheres indígenas provenientes de diferentes tekohas reunidas em

assem bleia, que para as quais “não existe Lei M aria da P en h a para as M ulheres In d íg en as” , o

que está expresso no docum ento “R elatório Final da V II K unangue A ty G uasu” . Se a lei traz

em seu b o jo que to d as as m ulheres devem ser protegidas pela legislação b rasileira que visa a

proteção das violências de gênero acom etidas contra as m ulheres, efetivam ente quais m ulheres

são dignas de proteção do E stad o ?

L ívia F onseca analisa as políticas brasileiras em relação as populações indígenas e

evidencia que “pensar o E stad o b rasileiro na atualidade nos provoca a p ensar de qual m odo as

colonialidades e o patriarcalism o ainda se encontram em suas estruturas” (FO N SEC A , 2016,

p.58), o que faz que os m ovim entos indígenas através da agência destas m ulheres discutam

com o as legislações específicas para o enfrentam ento das violências, com o a Lei M aria da

P en h a não atinja a realidade das m ulheres indígenas, pois com o j á denunciou a pesquisa da

autora, eis que a legislação “não tinha sido pensada em diálogo com as m ulheres indígenas e

com o se lid a com a realidade de diversidade cultural de com preensões dos papéis d e gêneros

no contexto de 305 (trezentos e cinco) povos indígenas que habitam o B rasil. (FO N SEC A ,

2016, p. 59).

A o enfocar as discussões e dem andas do m ovim ento K unangue A ty G uasu a proposta

é analisar a agências destas m ulheres quando as politicas são in ex isten tes ou insuficientes para

aten d er as indígenas que sofrem violências em seus relacionam entos conjugais e afetivos.

A criação de um a legislação específica que tem essa abrangência plural, traz com o

expectativa a proteção para todas as m ulheres, o que nem sem pre se traduz nas realidades

enfrentadas pelas m ulheres que vivem fora das cidades, em áreas indígenas que são

distanciadas das cidades e do atendim ento ju ríd ic o e policial. N o caso das m ulheres G uarani e

K aiow á, a existência de u m a legislação pro tetiv a e o fato da população indígena ter

conhecim ento de que esta pode ser aplicada visando a punição de hom ens infratores, faz com

que a b u sca pela aplicabilidade da legislação protecionista para as m ulheres vítim as de

violências seja perseguida pelas lideranças indígenas, através de seus docum entos e relatórios.

A lei se tran sfo rm a em um horizonte de expectativa, algo que pode ser alcançado e que possa

ser u m a fo rm a de proteção e punição, bem com o traz em seu bojo um a visível intenção

pedagógica, de ensinar e p ropor com portam entos que devam servir de exem plo para hom ens

autores de violências.

171
A ssim , se as m eninas e as m ulheres indígenas adquirem u m a “consciência ju ríd ic a de

classe” e buscam o cum prim ento da legislação tam bém para as m esm as, as denúncias so bre as

deficiências da sua aplicabilidade para m ulheres que vivem fora da cidade, m as precisam ente

em reservas indígenas, áreas de retom ada e territórios já regularizados, os quais são na m aioria

distantes da presença do E stado, dem onstram tanto as d ificuldades para a realização das

denúncias, com o a as dificuldades na sua aplicabilidade pelas autoridades policiais e judiciais.

C om o exem plo, as m edidas protetivas que visam o afastam ento dos hom ens autores de

violências de suas ex-m ulheres ou ex-com panheiras e/ou seus filhos, m uitas vezes não chegam

a ser entregues, ou porque esses hom ens não são localizados ou porque essas intim ações são

entregues p ara os cham ados “ capitães” das aldeias, que fazem esse papel de relação entre os

indígenas e o E stado, m as que m uitas vezes interferem nas decisões judiciais.

“U m a cultura política legalista com um ” em que os políticos b rasileiros se sentiam

“ atraídos pela sim bologia política a respeito das leis avançadas e progressistas, ainda que pouco

se preocupassem com a sua real im plem entação.” (FR EN C H , p. 387). F azendo um a

com paração com a legislação protecionista aos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros,

aproxim o estas afirm ações ao caso que abordo.

Indicando para a improcedência de certas explicações comparativas, John French


aponta para uma abordagem que enxerga na Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT) o sopro de um paternalismo latino-americano: eco da herança colonial. Esse
eco teria sido reelaborado na forma de paternalismo estatal, com o governo agindo
como benfeitor, favorecendo uns de maneira arbitrária ou clientelista, ou
respondendo a outros em função de pressões corporativas (em prejuízo do bem-estar
da maioria) (NEGRO, 2004, p. 20)

O autor analisa esta proteção legal em relação aos trabalhadores com o um

“ paternalism o latino-am ericano, um eco da h erança colonial” . M esm o que não se refira a

m esm a questão especificam ente, estam os diante de relações de p o d er hierárquicas e desiguais,

entre patrões x em pregados e m ulheres x hom ens, pois é de conhecim ento que existem

desigualdades nestas relações e que as legislações protecionistas visam desigualar essa

desigualdade de fato. M as se o E stad o protecionista dá com um a m ão e tira com a outra, no

sentido que um a educação para a igualdade e para o respeito, o não entendim ento que m ulheres

são propriedades, tam bém foi considerado pelo E stado com o correto quando tratava de form a

desigual as m ulheres e especialm ente aos indígenas, não os considerava com o sujeitos de

direito, devendo portanto, ser tutelados pelo E stado, o que som ente foi m odificado com a

C onstituição Federal de 1988.

172
P o r outro lado, u m a legislação protecionista em relação às m ulheres vítim as de

violências pune hom ens infratores, fazendo com que o E stado punitivo atue nos casos em que

as relações conjugais e fam iliares são m arcadas po r violências. D esta form a, o fato de serem

autores de violências, a consequente denúncia e a punição do E stado, afasta hom ens indígenas

que estariam ao lado das m ulheres em outras pautas, com o a luta pelo territó rio tradicional,

transform ando suas vidas em “ caso de polícia” . A ssim , as violências com etidas em âm bito

dom éstico e fam iliar não só aflige as m ulheres, as crianças, m as tam bém enfraquece o

m ovim ento indígena. P ara French, “ o caso de polícia expressava sua convicção de que a

v io lência e a repressão do E stado, contra as lutas revolucionárias era um a característica de

todos os governos b rasileiro s” (FR EN C H , 2006, p. 405). C om o p erceber e encarar esse

paradoxo, de um a legislação que ao proteger as m ulheres e crianças, pune h o m en s infratores,

os transform ando em caso de polícia, sendo que ao m esm o tem p o enfraquece as reivindicações

coletivas dos povos indígenas, po r direitos as suas terras tradicionais, sua cultura e sua língua?

N a pesquisa realizada por L ívia F onseca em que entrevistou lideranças indígenas

brasileiras, estas “ apontaram de form a bastante firm e que as suas dem andas estão vinculad as

com as de seu próprio povo e que o “ reco rte” de gênero não pode ser feito de um a form a

desconectada” (FO N SE C A , 2016, p. 59), o que q u er dizer que as questões específicas das

m ulheres se relacionam com as lutas dos povos indígenas e que, portanto, as contradições e os

em bates se fazem presentes. P o r esse m otivo, a escolha m etodológica da autora foi analisar as

políticas gerais dos povos indígenas, pensando com o as m ulheres foram abrangidas nestas

políticas, e em um segundo m om ento problem atizar as políticas específicas para as m ulheres

indígenas.

M as percebo que o enfrentam ento as violências contra as m ulheres e m eninas, assim

com o as sofridas por m ulheres não indígenas, ocorridas no contexto fam iliar e dom éstico,

enfraquecem e destroem as relações afetivo e conjugais, trazendo sérios e irreversíveis danos

a todos e todas as/os envolvidos.

A agência e os m odos de fazer política das m u lh eres indígenas G uarani e K aiow á.

M esm o que a ocupação de cargos políticos seja alm ejada por m ulheres indígenas, durante os

encontros prom ovidos pelas m ulheres G uarani e K aiow á um m odo de fazer política tam bém

prom ove debates e b u sca através de estratégias diversas o alcance de direitos e proteção do

E stado. N esta discussão pretendo enfocar a busca das m ulheres indígenas pela proteção de seus

territórios e de seus corpos (com o corpos territórios), alçando o conceito de cultura política.

P ara esse debate, aproxim am os a h istória da antropologia, que tem com o intenção “ encontrar

valores hum anos a partir da diversidade” (K U S C H N IR , 2005, p30). A ssim , o “ conceito de

173
tem p o da política para designar os períodos em que a população percebe a política e os políticos

com o parte da sua vida social” (K U S C H N IR , 2005, p.8), p ara as populações indígenas

anteriorm ente tuteladas pelo E stado, m as agora alijadas dos direitos concedidos e previstos na

C onstituição Federal de 1988, o tem po da política integra a h istória do tem po presente, pois

essas p opulações propõem através de suas organizações e estratégias próprias, questões que lhe

são caras, com o os conflitos vivenciados para a p ro teção de seus territórios, corpos e

subjetividades.

É na percepção das necessidades de seu povo e do abandono po r parte do E stado

(sobretudo nos últim os dois anos em que o E stad o negligencia os direitos indígenas de form a

contundente, de form a expressa até pelo próprio P residente da R epública que autorizou um a

desestruturação das políticas públicas indígenas de saúde, dentre outras), as m ulheres assum em

a frente e a função de lideranças, apontando suas próprias agendas e o respeito dos direitos

com o indígenas e com o m ulheres, considerando suas especificidades de etnia e gênero, sendo

que aí as trajetórias individuais se relacionam com a prática coletiva, fazendo um enlace da

“ m ultiplicidade de percepções e valores associados à prática política” (K U SC H N IR , 2005,

p.9). P ortanto, as trajetórias destas lideranças indígenas que organizam o Kunangue Aty Guasu,

relacionam dim ensões políticas b uscadas por estas m ulheres e suas trajetó rias individuais

naquilo que a antropologia entende com o “u m a preocupação perm anente em não iso lar a

política das dem ais dim ensões da v id a em sociedade, sendo que a própria noção de p o d er não

está relacionada apenas às instituições explicitam ente políticas. (K U S C H N IR , 2005, p. 14). O

fazer coletivo e o fazer po lítica destas m ulheres está im bricado em suas próprias trajetórias, é

preciso se defrontar com “ as concepções de p o d er e p o lítica que aprendeu com o cidadão e

estudante em sua própria sociedade?” (K U S C H N IR , 2005, p. 23). A o estudar as trajetórias das

lideranças indígenas das organizadoras da assem bleia Kunangue Aty Guasu e as propostas

coletivas do grupo, percebo que as questões individuais, com o um a carreira acadêm ica ou a

participação na política partidária, não se sobrepõem as decisões coletivas, propostas pelo

coletivo indígena, aí som ando os coletivos de m ulheres e os coletivos m istos. E star diante desta

diferente concepção e de um diverso m odo de vid a indígena, que prioriza a coletividade, em

detrim ento de questões individuais, e envolvem diretam ente o fazer política, im plica em “lidar

com m últiplas configurações históricas e espacialm ente constituídas” (K U S C H N IR , 2005, p.

29), pois a cultura política que estão im bricadas as m ulheres indígenas buscam atingir

propostas e projetos da coletividade e da com unidade, em detrim ento de questões individuais.

174
A a g ê n c ia d a s m u lh e re s in d íg e n a s n a p r o d u ç ã o de d o c u m e n to s e re la tó rio s

A Kunangue Aty Guasu trata-se de um im portante espaço de fala para as m ulheres

indígena, em que lideranças fem ininas se form am e são form adas, sendo o relatório final um

resum o das discussões, propostas e encam inham ento da assem bleia. A s organizadoras do

encontro de 2019 ressaltam a participação de diferentes gerações de pessoas, que participam

com “ seriedade e reconhecim ento da luta das M ulheres indígenas” 89. A s discussões sobre

violências contra as m ulheres foi um dos m otes da assem bleia, com a realização de oficinas e

diferentes form as de enfrentam ento propostas nos encam inham entos finais. T am bém fizeram

denúncias de conhecim ento de violências obstétricas sofridas po r elas m esm as ou po r suas

irm ãs e fam iliares, bem com o o tratam ento pouco respeitoso recebido em alguns espaços

públicos.

M esm o que questões com o a dem arcação das terras indígenas e a proteção dos

territórios sejam consideradas dem andas im portantes, percebo com o a reflexão sobre

resistência de m ulheres indígenas em contextos de enfrentam ento às violências, não som ente

no âm b ito privado, m as tam bém em am bientes públicos, evidenciam as m ulheres e seus corpos

com o territó rio s violentados por h om ens (indígenas ou não) e tam bém pelo próprio E stado.

P ara analisar as principais agendas trazid as ao debate p elas m ulheres indígenas

provenientes de diferentes tekohas reunidas em assem bleia, apresento alguns aspectos da

produção e da circulação do docum ento “R elatório Final da V II K unangue A ty G uasu” . O

docum ento é datado 20 de setem bro de 2019, ú ltim o dia do evento, o que significa que foi

redigido durante a realização da assem bleia, durante o p eríodo em que estiveram reunidas no

Tekohá Yvy KatuPotrerito, localizado no m unicípio de Japorã, E stado do M ato G rosso do Sul.
A través do trabalho de relato ria realizado pelas lideranças da assem bleia, concluo que o

relatório foi redigido por m u itas m ãos, não trazendo a assinatura de apenas u m a liderança,

ju sta m e n te po r se tratar de um a organização horizontal. E ntretanto, podem os destacar a

liderança exercida po r Kunã Aranduhá, Jaqueline G onçalves e a atuação e participação das

nhande sy, responsáveis po r ancorar as jo v en s lideranças na assem bleia. A p artir do docum ento
final é possível p erceb er que a circulação das propostas, encam inham entos e agendas, ocorre

através do envio para diferentes autoridades presentes no cabeçalho, inclusive para o presidente

da R epública, Jair M essias B olsonaro, e diferentes autoridades federais, estaduais e m unicipais,

89 Documento final produzido pela Organização da VII Kunangue Aty Guasu - Grande Assembleia das Mulheres
Kaiowá e Guarani.

175
principalm ente dos P oderes E xecutivo e Judiciário. M as a circulação e a divulgação do relatório

acontecem de form a efetiva através das redes sociais e dos debates prom ovidos em diferentes

espaços, propostos pelas próprias lideranças indígenas, pesquisadores/as, indigenistas,

professores/as, bem com o apoiadores/as da causa indígena. Kunã Aranduhá afirm ou na

assem bleia realizada virtualm ente em 2020, que apesar das lideranças do Kunangue terem

enviado a todas as autoridades listadas no docum ento, pouco ou quase nenhum retorno recebeu

dos órgãos públicos para os quais o m esm o foi encam inhado, conform e declarou m esa de

encerram ento da V II assem bleia, no dia 30 de novem bro de 2 0 2 0 .90

A o analisar os discursos produzidos p elas m ulheres indígenas im põe que “to d a a

realidade é m ediada pela linguagem e pelos textos, portanto toda a pesquisa h istó rica é

dependente da reflexão sobre o d isc u rso ’ um a definição que lhe dá G erard N oiriel, que

contestou a esse m ovim ento a suprem acia da n arrativa” (R O U SSO , 2016, p.227). Portanto, irei

refletir sobre o discurso escrito por m ulheres indígenas, que carrega a força das denúncias de

violências sofridas e propostas das m esm as diante da ausência do E stad o no enfrentam ento das

violências.

E c o a r V ozes: c o m p ro m isso ético d a p e s q u is a d o ra

T razer o debate das m ulheres indígenas na histó ria do tem p o presente é pensar um a

pesquisa com as m ulheres indígenas e não sobre elas, sendo que estou entendo a assem bleia

com o um espaço de construção coletiva. A pesquisadora D aphne Patai propõe enfocar questões

éticas da pesquisa fem inista realizada com m ulheres, na qual analisa principalm ente as

narrativas pessoais de m ulheres trabalhadoras brasileiras. A autora alerta para as trocas entre

pesquisadora e sujeitos de pesquisa, principalm ente quando se trata de situações

estruturalm ente assim étricas, as quais podem ser consideradas com o exploração ou form a de

tira r proveito das interlocutoras ou colaboradoras, term o utilizado no texto. “M in h a vida é m eu

ingrediente. E u sim plesm ente não posso deixar você u sá -lo ” . (PA TA I, 2010, p. 82) é o que

u m a de suas colaboradas afirm a sobre a possibilidade da pesquisa fazer uso da narrativa destas

m ulheres. S e a pesquia de D aphne Patai nos ajuda a p ensar sobre o uso de fontes orais, em

90 O ano de 2020 foi marcado pela da pandemia de coronavírus que assolou o Brasil e o mundo, afetando
diretamente os povos indígenas. Diante da impossibilidade de deslocamento e a obrigação do distanciamento
social, a assembleia foi realizada de forma online, utilizando a página do facebook. Disponível em:
https://www.facebook.com/kunangueatyguasu. Acesso em: -7.12.2020..

176
relação a sua produção, finalidade e form a.

A análise do docum ento não retira o protagonism o destas quando expõem suas

conclusões e necessidades de fo rm a direta, através de discursos orais, m as entendo o

docum ento im portante para refletir sobre duas im portantes questões: as dificuldades e a

superação destas m ulheres para redigirigem e se adaptarem a um a língua que não é a sua língua

m aterna; a dificuldade de sintetizar e agrupar em quinze páginas inúm eras reivindicações

específicas, bem com o as em oções vividas durante esse encontro realizado de form a presencial

em u m a terra indígena. Q uan d o a h istoriadora D aphne Patai fala da devolução que um a

pesquisa realizada por pessoas ou grupos fem inistas deve o correr em relação às pessoas

pesquisadas registra que “ alguns grupos fem inistas no B rasil (bem com o pesquisadores de

outros contextos) tem argum entado que a pesquisa deve ser ‘devolvida” (PA TA I, 2010, p.84),

de algum a form a para as pessoas que tornaram possível a realização do trabalho de pesquisa.

Patai “ sugere um a série de escolhas que não pode ser as de costum e dos acadêm icos” (PA TA I,

2010, p.84), com o a entrega de um livro ou cópia da publicação. N o caso das m ulheres

indigenas há um a necessidade visível da im plicação pessoal da pesquiadora com o grupo, ou

seja, não há que se aproxim ar de um grupo visivilm ente vulnerável e excluído social, política

e historicam ente, e que atualm ente é v ítim a de um genocídio orquestrado p e lo E stado

B rasileiro, sem se po sicio n ar de form a evidente a assum ir u m a postura ética que envolve a

devolução que deve im plicar u m a atuação e apoio ju n to as diferentes frentes dos m ovim entos.

D aphne Patai sugere em sua pesquisa auxiliar um a “ fundação apoiada por m ulheres” (PA TA I,

2010, p.85). A ssim , no caso da assem bleia e do relatório analisado esse apoio pode se dar

através da divulgação das pautas e agendas específicas das m ulheres indigenas G uarani e

K aiow á e do auxílio financeiro da form a que for possível, seja de form a direta, com o indireta

através da ven d a de produtos, artesanatos ou divulgandos nos grupos pessoais buscando auxílio

para as diferentes form as de arrecadação de auxílios. A ausência e o descaso do E stad o com

essa população fazem com que eles próprios se organizem ou requeiram o apoio da sociedade

civil para questões b ásicas relativas a serviços essenciais que deveriam ser fornecidos pelo

E stado, com o acesso àgua, saúde, educação e alim entação. O que estou entendendo que esta

pode ser um a espécie de atuação política em que a presença das m ulheres, as quais falam de

suas experiências e de que form a projetam e executam as propostas retiradas em assem bleia. A

escuta po r parte das participantes, convidadas e autoridades presentes se faz im p o rtan te porque

este é um espaço específico para que as m ulheres indígenas sejam ouvidas e busquem

alternativas em cojunto. N este espaço, ser escuta de histórias sensíveis perm item que afetos e

em oções se entrelacem , aflorando sensibilidades e desejos de tran sfo rm ação que se dá

177
coletivam ente.

A s m ulheres indígenas afirm am em assem bleia que elas são as protagonistas e nós

som os apenas “ escuta” . A o analisar um dos docum entos que é fruto de um a reivindicação

coletiva de m ulheres indígenas percebo que assim com o “ os velhos, as m ulheres, os negros, os

trabalhadores m anuais, cam adas da população excluídas da h istória ensinada na escola, tom am

a palavra” (B O SSI, 2003,p.15) e nos fazem ser escuta. A to m ad a da palavra e a agência destas

m ulheres é um processo que perm ite outras narrativas possíveis, pois a “ história que se apoia

u nicam ente em docum ento oficiais, não pode dar conta das paixões individuais que se

escondem atrás dos episódios” (B O S SI,2003, p. 15). A ssim , um relatório produzido e pensando

coletivo, escrito através da força das em oções de um encontro, traz tan to a força de seus

discursos com o das im agens, produzidas a p artir das experiências com partilhadas naquele

espaço coletivo.

A realização de u m a assem bleia anual que “ não é um espaço só de m ulheres” , m as que

é organizada po r elas, faz m enção à necessidade da escuta dos hom ens indígenas e das

autoridades diante das questões levantadas pelas m ulheres indígenas. C lassifico com o as

principais tem áticas discutidas na assem bleia: a descrição das diferentes form as de violências

sofridas por m ulheres e crianças indígenas em território, as form as de enfrentam ento e a

ausência de políticas públicas, na reserva indígena de D ourados, nas diferentes áreas de

retom ada e na reserva indígena de D ourados - R ID ; a situação das m ulheres que vivem

especialm ente na R ID que as p articipantes descrevem no docum ento final com o u m a fo rm a de

“ confinam ento” ; tem as com o o m eio am biente, saúde e adoecim ento; com destaque a m edicina

tradicional e o cuidado com gestantes, puérperas e crianças.

O relató rio entende as violências contra as m ulheres de um a form a bastante abrangente,

incluindo “todos os pacotes de leis que ferem os nossos corpos, nos violam , nos assassinam e

retiram o nosso direito à v id a” , o que in terpreto com o u m a form a de perceber a intervenção do

E stad o sobre os corpos das m ulheres com o um a form a de violência, o que é entendido com o

v io lência institucional e que estrutura a sociedade brasileira. O relatório tam bém afirm a a

perspectiva m ultiplicadora das agendas e denúncias feitas na assem bleia e descritas no

relatório, que afirm a que o espaço do encontro pretende estar “à disposição para ecoar as vozes

das m ulheres que queiram falar sobre a vio lên cia” (R E L A T Ó R IO final, 2019, p.7). D esta

form a, o relatório condensa e articula “ as dem andas das m ulheres indígenas após essa escrita

acim a que é um pedido de socorro à V ID A das M ulheres G uarani e K aiow á” 91(R E L A T Ó R IO

91 As palavras escritas em caixa alta foram assim destacadas no próprio relatório final analisado.

178
final, 2018, p.8), evidenciando o caráter de ser um espaço e canal de denúncia principalm ente

para as m ulheres que vivem em regiões não regulam entadas, com o as áreas de retom ada, que

estão distantes da cidade e do acesso às políticas de proteção acessadas diante das violências

sofridas no contexto fam iliar e dom éstico. E stas m ulheres usam o espaço da assem bleia para

d enunciar pois “a vio lên cia nos fere cotidianam ente, e avançam com m ais

fo rças” (R E L A T Ó R IO final, 2019, p.6), dem onstrando que o ano de 2 0 1 9 92 configurou-se com o

um am biente bastante hostil para os povos indígenas brasileiros, especialm ente para às

m ulheres. N este espaço político, as m ulheres indígenas denunciam que as violências

aum entaram a partir de 2018 e que m uitas das lideranças que apoiam outras m ulheres tam bém

foram vítim as de violências e sofreram perseguições. E stes fatos foram denunciados tan to nos

relatórios, com o nas falas nas assem bleias de 2019 e 2020. O fato das lideranças sofrerem

violências po r conta de suas atuações políticas trazem sentim entos de revolta para m uitas das

m ulheres, pois acreditam na im portância e na necessidade da agência individual e co letiv a das

m ulheres, sendo que as lideranças exercem um papel de sum a im portância.

M u lh e re s in d íg e n a s e a L e i M a r ia d a P e n h a : reflex õ es s o b re c o rp o s v u ln e rá v e is

E m relação à legislação específica de enfrentam ento às violências contra as m ulheres,

a Lei M aria da P en h a93, estou articulando com o conceito de cultura política, a partir dos

conceitos de K arina K uschnir, percebendo as m eninas e m ulheres G uarani e K aio w á e a

reivindicação de im plem entação da Lei M aria da P en h a no contexto indígena. D urante a

Kunangue Aty Guasu, que estou entendendo com o um espaço político im portante p ara estas
m ulheres e para as políticas indígenas, o debate sobre as relações desiguais de gênero e as

agendas do enfrentam ento às violências são pensadas a partir da agência das pró p rias m ulheres

indígenas. A s legislações existentes, a atuação do estado protecionista e a agência das m ulheres

indígenas através da realização de suas assem bleias, podem ser pensadas com o um a cultura

política legalista que se entrelaça com o debate de gênero.

92 Com a eleição de Jair Messias Bolsonaro em 2018 e sua posse em 2019, diferentes políticas para as mulheres
foram extintas, inclusive a Secretaria de Política para as Mulheres, a qual realizava diferentes política de
enfrentamento as violências contra as mulheres, inclusive com um recorte interseccional, destacando as mulheres
indígenas.

93 Conhecida como Lei Maria da Penha, a Lei 11340/2006 visa coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil 03/ ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em:
02.12.2020.

179
A id eia de um a cultura política com perspectiva de gênero está inserida no debate

realizado sobre a aplicação da lei, que traz em seu bojo o cum prim ento de um a igualdade form al

entre hom ens e m ulheres, m as que de fato ainda não ocorre em m uitas relaçõ es afetivas e

conjugais que são m arcadas po r desigualdades, m as principalm ente po r violências. P ara

corrigir e enfrentar essas situações de violências traz consequências para os agressores, que se

inserem num a lógica punitivista, m as tam bém a lei traz um cunho pedagógico, que propõe

ensinar relações respeitosas e calcadas na igualdade entre os parceiros. A bordar as form as com o

as m ulheres G uarani e K aiow á percebem a aplicabilidade (ou não) da lei M aria da P en h a em

relação as suas próprias dem andas, m as tam b ém que propõem um a agência e um a atuação

direta, possibilitando form as de resistências individuais e coletivas, m ulheres em m ovim entos

que se encontram e se articulam através da Kunangue Aty Guasu.

E m relação ao relatório final da assem bleia este dem anda que “ haja um parágrafo que

atenda às nossas especificidades com o m ulheres indígenas” (R E L A T Ó R IO final, 2019, p.6),

pode ser caracterizada com o u m a form a de denúncia de que esta legislação específica que se

traduz em inúm eras políticas públicas não consegue alcançar as m ulheres m arcadas po r sua

etnia e por estarem localizadas em regiões periféricas. A s especificidades em relação às

m ulheres indígenas se refere ao distanciam ento geográfico, o que tam bém é u m a problem ática

debatida por m ulheres em contexto rural, m as tam bém traz explícita a ausência de políticas

públicas e sociais em relação à população indígena brasileira, a com pleta ausência do E stado

em relação ao enfrentam ento das violências nos espaços das aldeias, reservas e áreas de

retom ada. A ausência do E stad o se traduz em ausência de políticas públicas de segurança, m as

tam bém no não acesso a fornecim ento de água, energia elétrica e sinal de telefone que podem

ser considerados serviços públicos essenciais, po r envolverem a satisfação de necessidades

b ásicas para as pessoas, o que traduz a situação de extrem a vulnerabilidade social em que vivem

as populações indígenas brasileiras, situação esta acentuada em relação às m ulheres e crianças.

P o r esses m otivos, a articulação se m ostra tão necessária, com o finaliza o relatório “E m nossa

aldeia não há sinal de telefone, inclusive para com unicar o descum prim ento de m edidas

protetivas, com o irem os denunciar se as delegacias estão distantes e no cam inho podem os ser

m ortas?” (R E L A T Ó R IO final, 2019, p.6).

A análise destes docum entos e os relatos das m ulheres indígenas que participam das

assem bleias e as lideranças, que organizam os encontros, atuam ativam ente e coletivam ente

em diferentes espaços. A agência destas m ulheres no enfrentam ento as violências aco n tece de

form as variadas j á que continua, m esm o após as assem bleias. A atuação das lideranças é ativa,

antecede e precede a realização das assem bleias, o que as to rn a referência para as dem ais

180
m ulheres indígenas. A o atuarem em nom e do coletivo de m ulheres indígenas, as representavam

em espaços públicos e políticos, m as atuam diretam ente, intercedendo ju n to às m ulheres

indígenas acom etidas po r violências que apelam para as lideranças, m as tam bém em outras

situações. A ssim , as lideranças se tornam referências dentre as m ulheres de suas com unidades,

atuando em diferentes frentes. L idando com as em oções de outras m ulheres, são fortalezas pois,

tam bém elas são, por vezes, acom etidas po r violências diante da sua atuação política.

A lg u m a s conclusões

A apresentação de questões trazidas pelas próprias m ulheres indígenas coletivam ente

em suas assem bleias m e perm ite concluir que estas são agentes ativas e, portanto,

im prescindíveis para refletirm os sobre política, relações de gênero e o tem po presente. S ão

sujeitas de sua p rópria história e as fazem diariam ente de form a coletiva e ativa. A o analisar as

estratégias de enfrentam ento às violências de gênero a p artir dos docum entos finais produzidos

pela G rande A ssem bleia de M ulheres Indígenas G uarani e K aiow á, dos anos de 2019 e 2020,

no M ato G rosso do Sul percebo que suas articulações são parte do presente e dem onstram sua

agência individual, m as sobretudo coletiva. S ão exem plos de resistência diante das

adversidades e m esm o diante das inúm eras violências e desrespeitos, o que nos faz sentir e

p erceber é que suas dores nos corpos tam bém são dores na alm a, m as que a resistência e a

persistência diária, sobretudo p ara a sobrevivência diante das inúm eras violências, as tornam

exem plos de vida e de fortaleza para todas, to d es e todos nós brasileiros.

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182
A INSTRUÇÃO PRIMÁRIA EM PAUTA: A ATUAÇÃO DE
FRANCISCA CLOTILDE NO CENÁRIO EDUCACIONAL DA
FORTALEZA OITOCENTISTA

C L E ID IA N E D A SIL V A M O R A IS 940

R e su m o : O presente trabalho busca investigar, no recorte tem poral do C eará das últim as
décadas do século X IX , a atuação de m ulheres professoras pela co n q u ista do espaço público
letrado ocupado em m aior proporção por figuras m asculinas. A investigação se deterá na
trajetó ria da escritora, jo rn a lista e professora F rancisca C lotilde, cuja atuação no âm bito
educacional se deu no ensino prim ário e na E sco la N orm al, atentando sem pre para a dinâm ica
conflitual que envolveu sua atuação no cenário intelectual, à época. S uas posturas ora
constituíram reverberações do conservadorism o católico, ora foram se m odificando, m esm o
quando os papéis sociais tentavam in cutir o contrário. E sta professora tom ou as ideias vigentes
que lhe designavam as atividades no espaço dom éstico, na tentativa de te r reconhecida sua
im portância na ordem e harm onia da estrutura social. N esse sentido, defendeu a im portância
das funções po r ela realizada no in terio r do lar e da fam ília, inclusive com o base e suporte
im prescindível para se direcionar os próprios rum os da educação de seus filhos e alunos. A ssim ,
reivindicou sua com petência para tratar dos assuntos educacionais em voga, e participou
ativam ente, seja com o colaboradora de jo rn a is dentro e fora do C eará, ou m esm o no próprio
cotidiano escolar, das principais questões que direcionaram o estado de coisas àq uela época,
com o as discussões em torno da necessidade de m udanças no currículo do ensino de nível
prim ário, assim com o os m étodos de ensino que m elhor atenderiam às especificidades da
instrução pública. R essalte-se que a investigação se deu nos relatórios de inspetores da
Instrução Pública, nas sessões da A ssem bleia L egislativa Provincial e n o s artigos de autoria de
F rancisca C lotilde publicados nos principais periódicos que circulavam em Fortaleza. A busca
pelos indícios da trajetória e atuação desta professora, assim com o as questões e conjecturas
form uladas, perm itiram levantar problem áticas pertinentes à H istória das M u lh eres e da
E ducação.

P a la v ra s -c h a v e : F rancisca C lotilde; educação; instrução m oral e religiosa.

O s debates em to rno da necessidade de reform ar o ensino público na P rovíncia do C eará

ganham m aio r fôlego na década de 1880, isto porque à adm inistração da Instrução P ú b lica9495

seria apresentado, logo no prim eiro ano, um R elatório produzido por A m aro C av alcan ti96 com o

resultado de sua viagem aos E stados U nidos, com o fim de reu n ir inform ações sobre a instrução

94* Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará - UFCE.
Membro do Grupo de Estudos de América Latina (UFCE). Atualmente desenvolve tese de doutorado financiada
pela agência de fomento Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FUNCAP.
E-mail: cleidimorais2010@hotmail.com

95 Órgão do Governo da Província responsável pelo ensino público e particular.


96 Amaro Cavalcanti ocupava o cargo de Inspetor Geral da Instrução Pública.

183
prim ária, o ensino norm al e seu m ovim ento de fiscalização e inspeção. E m 7 de setem bro de

1881, o Cearense, folha político-partidária que representava os interesses do partido Liberal,

daria início à publicação do referido docum ento produzido po r um sujeito apto a discutir

questões concernentes à difusão do ensino, visto te r ele próprio testem unhado o que havia de

m ais m oderno no âm bito educacional, no que dizia respeito a currículo, m étodos, form ação e

avaliação de professores, com o reiteravam costum eiram ente seus colegas n aquela época.

N o R elatório, a educação m oral e religiosa e a form ação para o que C avalcanti cham ou

de “v id a ativa” ganham , sem pre num a p ersp ectiv a de correlação com a ideia de trab alh o e

disciplina, lugar de destaque. Tal espaço reservado à dim ensão religiosa, naquela época, se

devia, especialm ente, ao contato com as principais discussões sobre o ensino laico e a

secularização dos program as escolares que j á se faziam na E uropa e nos E stados U nidos e

ganhavam , ainda que de form a lenta, adeptos no Im pério do B rasil. U m a tarefa nada fácil para

aquele inspetor, advogado e tam bém p rofessor de latim foi, certam ente, a p artir das

inform ações coletadas, concluir o fim principal da instrução prim ária e apontar possíveis ações

a serem im plem entadas no ensino cearense. L evando em conta as especificidades da Província,

C avalcanti se depararia com altas taxas de analfabetism o; períodos de seca, sobretudo nos anos

finais da década de 1870 e inícios da seguinte, e com o em pobrecim ento constante,

características do cotidiano das cam adas pobres a quem a instrução p rim ária era direcionada.

De fato: educar não é somente desenvolver, pelos exercícios regulares da ginástica,


por uma nutrição abundante ou pelas lições da higiene, as forças, a boa composição
e a saúde do corpo; nem tão pouco, dar exclusivamente, esmerada cultura às
faculdades do espírito pelo estudo frequente das artes, das letras e das ciências. Os
primeiros meios se oportunamente empregados fariam com certeza um indivíduo são
e robusto ou mesmo uma criatura formosa, mas não educado; os segundos formariam
provavelmente um espírito versado ou instruído; e ambos os meios bem combinados
já dariam, sem dúvida, à família e à sociedade um membro assaz prestimoso, porém,
talvez ainda assim, não perfeitamente educado. Há uma condição ulterior, um outro
requisito na obra imensa da Educação, que, não sendo convenientemente preenchido,
privará a esta de seus melhores e mais abundantes frutos. A par dos meios regulares
que operam o bem-estar do corpo, de pari-passu com a instrução que dá saber e
engrandece o espirito, deve igualmente seguir a luz, sempre pura, da moral e da
religião, que guia o homem ao dever, ao bem, à verdade e à virtude por entre as
veredas tortuosas dos erros, vícios e crimes da frágil humanidade. Enfim: reunidos
esses três meios, combinados seus vários processos, e aplicados com a inteligência à
direção e cultura da natureza humana, todo esse grande conjunto de ordem e trabalho
fará certamente o que entendemos por Educação, de cujo seio portentoso vemos,
todos os dias, sair, para a família, para a sociedade e para o Estado, membros - sãos,
robustos e belos, industriosos, sábios e probos. (CAVALCANTI, 1881a, p. 3)

A m aro C avalcanti parecia representar com b o a desenvoltura a tarefa que lhe foi

incum bida com o intelectual da causa da instrução. S uas posições representam tam bém os

184
interesses religiosos, aspecto observado nas iniciativas de inspetores e diretores, visto

considerarem as b ases de caráter religioso com o as m ais adequadas à explicação da própria

estrutura e organização do ensino. O exercício da função de padre e páro co por parte desses

“ funcionários” da Instrução P ública, assim com o as boas relações estabelecidas com a elite

eclesiástica na P rovíncia, tam bém reverberaram sobre suas posturas acerca do universo

educacional.

N a tarefa de apresentar suas análises quanto ao ensino estadunidense para as

autoridades dirigentes e para os cearenses preocupados com os m eios necessários à difusão e

desenvolvim ento do ensino, A m aro C avalcanti dedicou m aior im portância à religião e sua

relação com a instrução prim ária. N aquela época, tal questão conquistaria m aio r entusiasm o,

especialm ente pelos debates no cenário político e letrado, a bem dizer, as discussões que

tam bém envolviam o trono e o altar, representadas pela laicização e secularização do ensino

que, na prática, significavam a destituição do ensino religioso da escola reservando-o à fam ília

e à igreja.

O Inspetor Geral da Instrução P ú b lica m ostrou-se, portanto, adepto da form ação

“ com pleta” no nível prim ário de ensino, que com preendia o tripé corpo, espírito e m oral. N essa

definição, de nada adiantaria form ar a dim ensão física e o espírito com a ginástica, as lições de

higiene, o estudo das letras ou das ciências e das artes, se os princípios religiosos não fossem

incutidos. U m a clara tensão saltava do assunto, com o m edida p a ra se estabelecer possíveis

direcionam entos relativos à instrução pública: para se fo rm ar sujeitos instruídos, robustos e

sãos, a instrução religiosa constituía dim ensão indispensável. O b em -estar do corpo parecia

vincular-se às virtudes e à m oral e vice-versa.

N aq u ela época, a educação da parte física do sujeito, tem a discutido quando se

pensavam os requisitos indispensáveis à difusão do ensino público, com preendia questão

fundam ental às necessidades do trab alh o livre. P ara as elites ilustradas e dirigentes, a saúde do

corpo agiria contra os vícios, os m aus hábitos e com portam entos, som ente se aliada à disciplina,

à m oral e à religião. C onform e G om es (2002, p. 400), tais discussões indicam um a m aior

atenção às necessidades do m undo capitalista, u rb an o e industrial, e a um desejo de progresso

do sujeito alfabetizado. N o s projetos para a instrução pública, pensados pelas cam adas letradas,

na perspectiva de O linda (2004), o ensino prim ário está diretam ente vinculado à

disciplinarização e ao controle de si, aspectos que se acreditava apontarem para a regeneração

m oral e progresso m aterial.

E m seu relatório, C avalcanti parecia desejar convencer o leitor da im portância das

pautas levantadas, bem com o de suas indicações para que tais dem andas fossem efetivadas na

185
prática escolar, especialm ente po r reiterar, de form a exaustiva, seus posicionam entos atinentes

à parte religiosa. A o tem a da form ação “com pleta” para a “vida ativa” , C avalcanti ju n to u o

debate acerca da secularização do ensino, apresentando sua desconfiança frente aos

b urburinhos que circulavam em terras cearenses e j á garantiam defensores da ideia de que a

educação religiosa deveria reservar-se à fam ília.

Jamais deve esquecer: que dar somente cultura e desenvolvimento ao físico e ao


intelecto, sem atenção as faculdades Moraes, é o mesmo que polir e afiar belos
instrumentos, que serão em breve gastos pela ferrugem, à falta de necessária e regular
aplicação.

[..]

É facto que os espíritos cultos tem procurado demonstrar a conveniência de não dar-
se ensino religioso na escola, invocando em apoio ao que chamam liberdade de culto.
Alegam que o ensino da religião na escola pública ou comum levará ao resultado
injusto de obrigar o discípulo aos exercícios de um credo, muita vez diverso e oposto
ao seu próprio; e que, por isso, importaria, uma injuria aos direitos da consciência
individual.
Para os brasileiros, que felizmente ainda professam uma mesma crença, o argumento
perde toda força e importância relativa; portanto, nos seja licito passar além sem
darmos especial refutação, tanto mais quando, sem ocasião oportuna, teremos ainda
de tocar sobre o mesmo argumento.
Não se separe um só instante, o ensino da religião e da moral - é nossa humilde
opinião, aliás todo aquele será infrutífero, ou talvez pernicioso.
Na alma tenra e cândida da criança, nesse coração puro, onde somente sorria
inocência, as primeiras lições, que se deve gravar, são, sem dúvida: o amor de Deus,
de seus pais, de seus semelhantes e da virtude. E nada disto se poderá conseguir,
desde que se separar totalmente do ensino os preceitos sublimes da verdadeira
religião. (CAVALCANTI, 1881c, p. 3)

N a década de 1880, na capital do Ceará, a dim ensão educacional p arecia ganhar novos

ares especialm ente pela inauguração da E sco la N orm al em 1884 - possibilitando às m ulheres

a am pliação de sua educação para além do nível prim ário - , pela produção de novos

regulam entos para a instrução pública, ou m esm o pela m aio r atenção, ao m enos no cam po

discursivo, à difusão do ensino prim ário entre as cam adas pobres. N esse m om ento, foram

fundadas escolas noturnas e bibliotecas pelas sociedades propagadoras da instrução e gabinetes

de leitura, ainda que os grandes beneficiados tenham sido as classes ilustradas. A o longo dessa

década, as discussões nos círculos políticos e letrados tom am com o pauta indispensável ao

progresso da Província, de fo rm a ainda m ais incisiva, a v in cu la çã o da instrução à religião

católica, num m ovim ento visto ora com o necessário, u n indo-as de fo rm a essencial, ora com o

irrealizável, pois a parte religiosa seria um entrave a esse vínculo.

N a esteira desses debates, um a professora pú b lica prim ária e posteriorm ente integrante

do quadro de m estres da E sco la N orm al teve seu nom e envolvido em diversos m om entos

186
im portantes da história do C eará Im perial, com destaque para as questões educacionais.

C earense de Tauá, região do Sertão dos Inham uns, F rancisca C lotilde B arbosa de L im a, nascida

em 1862, reuniu em sua trajetória a extensão do que havia de m ais contraditório para um a

m u lh er naquele m om ento, se pensados os papéis destinados às m ulheres e hom ens na sociedade

oitocentista, por ter transitado com desenvoltura nos m ais diversos círculos letrados de en tão 97.

C om o professora, seu itinerário não se reduziu ao m agistério público prim ário ou à

E sco la N orm al. Se dedicando tam bém a m in istrar aulas particulares de várias m atérias, das 4

horas às 6 da tarde, em sua residência, situada na P raça do M arquês de H erval, n. 41, em m arço

de 1886, era possível adquirir instrução pelo v alo r de 3.000 réis m ensais (LIM A , 1886, p. 1).

A vida de F rancisca C lotilde parecia ser bastante anim ada pelas diversas discussões

com que prontam ente se envolveu no cenário letrado fortalezense, seja nas sociedades e

agrem iações literárias, ou m esm o nos jo rn a is e revistas de m aio r circulação e representativos

das principais forças políticas, com o o Libertador, órgão da Sociedade C earense L ibertadora e

o Cearense, folha que representava os interesses do partido Liberal. A lém desses jo rnais,

conform e Studart (1910) e A lm eida (2008), C lotilde colaborou em publicações com o A

Quinzena; Revista Contemporânea; A Evolução ; Gazeta do Sertão ; Ceará Ilustrado ; Iracema;


O Combate; A República ; A Fortaleza ; Folha do Comércio; O Domingo ; A Cidade; A Ordem
e o Almanach do Ceará, ten d o seus textos tam bém publicados no Almanach das Senhoras

(B razil/L isboa). D edicando-se à prosa, à poesia, contos, crônicas, crítica literária, teatro e

traduções, sua influência chegaria até outras províncias do Im pério, a contar pela contribuição

em diversas outras folhas, entre elas O Lyrio , de R ecife; O Bathel, da Paraíba; Paladino , do

A cre; A Família, de São P aulo e R io de Janeiro; e A Mensageira, tam bém paulista.

F rancisca C lotilde foi sócia do C lub L iterário, agrem iação que reuniu intelectuais da

causa abolicionista na Província. E m A Quinzena, revista que representava os interesses dessa

agrem iação, escreveu dois im portantes artigos quanto às questões que envolviam ensino e

religião naquele m om ento: “ A educação m oral das crianças na escola” e “A m u lh er na fam ília” .

C orroborando com o m ovim ento do cenário das letras, a professora da E scola N orm al

apresentou suas posições quanto aos tem as que j á vinham sendo discutidos desde o R elatório

de C avalcanti em 1881.

97 Em junho 1882, com exatos 20 anos de idade, Francisca Clotilde entra para o magistério público cearense,
exercendo a função de professora primária, como é possível acompanhar nas correspondências produzidas pela
Instrução Pública, órgão responsável pelo ensino público e privado na Província, e trocadas entre professores,
inspetores, diretores e presidente.

187
A religião e a moral - esses dois elementos indispensáveis para a formação do caráter
podem ser infiltrados nos corações infantis da maneira mais simples. Um passeio à
beira-mar, uma manhã de estio, uma flor que desabrocha, uma ave que canta, uma
abelha que fabrica o mel, uma borboleta que esvoaça, podem trazer à criança a ideia
do autor dessas cousas que tanto enlevam e arrebatam sua imaginação pueril, e o
professor terá ensejo de auxiliar-lhe o espírito de observação, infundindo-lhe ao
mesmo tempo o amor às ciências naturais. (LIMA, 1887a, p. 22)

O trech o acim a corresponde ao artigo “ A educação m oral das crianças na escola” ,

publicado n'A Quinzena no dia 15 de fevereiro de 1887. A professora da E sco la N orm al se

ju n ta v a ao tim e de colaboradores de renom e dessa revista, form ado po r figuras com o José de

B arcelos, Justiniano de Serpa e Juvenal G aleno, intelectuais que se envolveram nas questões

educacionais, seja exercendo funções no in terio r da Instrução P ública, ou produzindo

com pêndios destinados ao ensino, ou m esm o escrevendo sobre o assunto nos periódicos que

circulavam na P rovíncia.

C o m o m u lh er inserida em seu tem po, por sua im portante p articipação na dinâm ica

política e literária, F rancisca C lotilde estava inteirada dos principais debates que envolviam a

educação no Im p ério . Inebriando-se dos referenciais pedagógicos discutidos à época pelos

sujeitos m ais célebres do cenário político e educacional, no referido artigo a autora travou

em bate, com o quem respondia aos que buscavam , ao m enos nessa parte, fo rm ar dividendos

pelas posições a favor da separação da religião do ensino, resultado tam bém dos conflitos entre

a Igreja e o E stado na segunda m etade do século XIX. C lotilde, portanto, trazia a religião e a

observação, respectivam ente com o o conteúdo e o m étodo m ais acertados para um a instrução

prom issora, nos m oldes estabelecidos por aqueles que se declaravam capacitados para legislar

sobre o ensino ou m esm o p rescrever o que seria m ais “ adequado” no plano educacional.

P o r m eio da observação e aguçam ento dos sentidos, os ensinam entos m orais e

religiosos seriam incutidos nos “ corações in fan tis” . M o strando-se inserida no m ovim ento

letrado que defendia a inclusão de novas m atérias no currículo escolar prim ário, F rancisca

C lotilde arvorava-se nu m a form ação do espírito e do corpo pautada na dim ensão da fé, da m oral

e da religião. O aprendizado das ciências naturais se daria por m eio da observação e intuição

das coisas que rodeiam as crianças, a própria natureza representada po r anim ais e plantas. N a

m ed id a em que “ a ideia de criação do m undo” fosse apresentada por m eio desses elem entos,

as ciências naturais seriam infiltradas.

P ara C lotilde, a instrução m oral e religiosa tin h a sobre as dem ais m atérias um a

“ incontestável superioridade” , pois debelava vícios e purificava hábitos e costum es, sendo a

dim ensão m ais im portante, dentro do program a escolar, a ser direcionada pela escola. Tais

questões foram tom adas po r um o lhar que com preendia os saberes a serem ensinados na

188
instrução prim ária a partir de u m a hierarquia de valores que adm itia a im portância do tripé

espírito, corpo e m oral, a ser trab alh ad o ora em diálogo, ora identificando a religião com o a

dim ensão m ais necessária à form ação escolar.

E m seu segundo artigo “ A m ulher na fam ília” , dado à apreciação do público cearense

em 15 de m arço do m esm o ano de 1887, F rancisca C lotilde trataria logo de discu tir qual

“ instituição” , entre a escola e a fam ília, efetivaria ou ficaria responsável pela dim ensão da

m oral e da religião na instrução infantil. T ais questões não deixaram de responder, sobretudo

quando analisadas posteriorm ente pelos historiadores, às principais dem andas daquele estado

de coisas, a dizer, as discussões, ainda que tím idas, acerca da laicização e secularização do

ensino público, com preendidas com o a transferência da instrução m oral e religiosa para a

dim ensão dom éstica e ou responsabilidade do credo religioso.

N essa época, as tensões entre as experiências que fugiam às norm as e leis estabelecidas

- fossem elas de caráter religioso, pedagógico e higiênico, im pulsionadas pelo em pobrecim ento

das cam adas pobres - e u m a “ perspectiva racionalizadora de entendim ento dos sujeitos” ,

cresciam de fo rm a cada vez m ais expressiva (V E IG A , 2011, p. 400). A instrução foi tom ada

com o principal m eio para se alcançar os m odos do “ m undo civilizado” , vinculado às tentativas

de controle que se im prim iam sobre a população, passando pela norm atização dos corpos e

rem odelação dos hábitos e costum es. N esse m ovim ento, surgia u m a questão latente para a qual

convergiriam todas as outras: a n ecessidade de se p ensar quanto a que tipo de instrução deveria

ser aplicada no ensino prim ário e quem se encarregaria de efetivá-la.

F rancisca C lotilde, de fato, disputava “ lugar de fala” no cenário letrado, fazendo-se ser

ouvida e acreditada, especialm ente pelo com prom etim ento com que se envolveu nas questões

de seu tem po, considerando-se a quantidade de periódicos em que veiculou seus escritos. Tal

questão lhe rendeu, inclusive, credenciais tanto na dim ensão educacional, na própria instrução

prim ária e n a E sco la N orm al, com o na fundação, em m om entos posteriores, de estabelecim ento

de ensino, com o o E xternato Santa C lotilde, nos p rim eiro s anos da década de 1890 e revistas,

com o a Estrella, em 1906, nu m a conjuntura em que a participação das m ulheres na própria

cena pública ilustrada ainda era ínfim a.

N esse cenário, a elite política na P rovíncia reunia “m em bros do governo e da alta

adm inistração, chefes m ilitares, e, em alguns casos, fam ílias politicam ente im portantes e

diretores de em presas econôm icas” (PA IV A , 1979, p. 28). P arte significativa dos que exerciam

os cargos da estrutura político-adm inistrativa, conform e P aiva (1979, p. 58), era h erd eira dos

potentados rurais. R ealizando sua form ação secundária em colégios com o o L iceu e o A teneu

C earense, logo após os preparatórios, ingressavam no E n sin o S uperior em cidades com o

189
R ecife, Salvador ou R io de Janeiro. O repertório de leitura e base político -filo só fica que

direcionaram suas ações foram form ados tam bém a partir do contato com experiências

intelectuais realizadas fo ra do território cearense. A o reto rn ar à Província, ju n tav am -se às

afeições políticas e intelectuais de outros sujeitos levando à fundação de jo rn ais, sociedades,

gabinetes e agrem iações literárias. D e acordo com O liveira (1998, p. 42), o universo letrado

atuante na capital na década de 1880 entre jo rn alistas, docentes, políticos e literatos era form ado

por esse m ovim ento de estudantes que faziam seus preparatórios na P rovíncia m esclando-se

aos que retornavam dos cursos superiores.

E ra esse o universo letrado em que F rancisca C lotilde estava inserida. N o início daquela

década, em 1881, a questão do ensino religioso nos debates da 37- A ssem bleia L egislativa do

C eará e publicados na Gazeta do Norte em setem bro do m esm o ano, ocupou lugar de destaque

nas preocupações dos deputados provinciais. A s vozes que se levantaram na sessão, divididas

entre João L opes F erreira Filho, Te. Cel. A ntônio P ereira de B rito Paiva, Pe. A ntero José de

L im a, Dr. F rancisco R ib eiro D elfino M ontezum a, Pe. V icente Jorge de Souza, Dr. Francisco

B arbosa de P au la P essoa e Pe. João A ntônio do N ascim en to e Sá, defenderam o ensino m oral

e religioso com o responsabilidade que deveria p esar sobre a Igreja, na figura do padre, e não

sobre o professor. E ste ensino constituía um “ direito m aterno” , um “ sagrado direito da fam ília” ,

com o afirm ou João Lopes:

Nesta questão, senhores, o meu voto seria contra o ensino religioso nas escolas, ainda
que eu fosse crente fervoroso e já o disse; por amor da religião, em respeito ao sagrado
direito da mãe de família. Senhores o ensino religioso nas escolas é de todo ponto
ineficaz; qual de vós tem no espírito crenças religiosas bebidas nos bancos escolares?
Qual de vós teve desenvolvidas ou acentuadas pelo professor as noções que levou do
lar para os bancos da escola primária? Nenhum, certamente, ao passo que todos
conservais indeléveis os ensinamentos que recebemos na primeira infância, ungidos
ainda da sinceridade com que impregnaram os lábios maternos. O ensino religioso é
uma disciplina naturalmente confiada aos cuidados da família; a mãe é o único mestre
que possui bastante eloquência para o incutir no ânimo da infância. (GAZETA DO
NORTE, 1881, p. 1)

E m b o ra os deputados provinciais se apresentassem enquanto sujeitos que professavam

a religião católica, reconheciam que a m atéria religiosa na in stru ção elem entar, aplicada por

m eio da m em orização de assuntos dos C atecism os da D outrina Cristã, im pedia as crianças de

se tornarem “m ais conhecedoras e am antes de D eus” . A profissão de fé católica na experiência

dessa classe, não estava relacionada m eram ente ao exercício de um a liturgia, doutrina ou fé,

m as de participação da elite dirigente no seio de um a instituição que, ao longo dos anos, esteve

190
v inculada ao E stado e direcionou a legislação educacional, assim com o a própria construção

da estrutura política e social.

S egundo Jo ão Lopes, esse ensino servia apenas para p unir os alunos que incorressem

em erros quando inquiridos sobre as definições do catecism o nos exam es. T ratando a questão

do ensino religioso de m aneira cautelosa, visto tal m atéria do currículo escolar reservar lugar à

Igreja na própria organização do ensino, dois instrum entos estavam postos em questão: o

catecism o da doutrina cristã e os afagos da m ãe no lar.

E sse assunto, no âm bito das questões educacionais, perpassou to d a a década de 1880,

especialm ente pelos conflitos que se arrastavam desde o início da segunda m etade do século

X IX entre a Igreja e o E stad o Im perial. N os escritos de F rancisca C lotilde, a fam ília tam bém

ganhou centralidade quando se discutiu sobre o lugar reservado à educação m oral e religiosa

na form ação dos sujeitos. O artigo “ A educação m oral das crianças na escola” apresenta a figura

da m ãe com o a prim eira educadora dos filhos, de m odo que seria no am biente dom éstico que

os prim eiro s ensinam entos seriam infiltrados. A s noções de caráter, ensinadas po r m eio da

dim ensão religiosa, pois baseada na doutrina cristã católica, seriam os prim eiros e m ais

im portantes ensinam entos po r onde todos os outros deveriam ser im pressos.

Não deve esquecer nunca que dela dependem a felicidade e o futuro das tenras
criaturas que nela se reveem como em um espelho que deve refletir as mais belas
puras imagens; que lhe cumpre velar incessantemente para desenvolver o bem
n’aqueles corações ingênuos e inexperientes, procurando todos os meios para
depositar neles o gérmen que deverá produzir no decurso bons e salutares frutos.
(LIMA, 1887b, p. 40)

N o lar, u m a atm osfera clara estava definida: seria a figura p atern a quem designaria os

princípios pelos quais a fam ília seria educada, cabendo à figura fem inina - a m ãe - g arantir o

exercício de tais princípios na prática cotidiana. C aso os filhos se desviassem dos trilhos da

ordem e da disciplina, a culpa, que era sobretudo religiosa, recairia sobre a função m aternal,

pois “ o m enino m olda-se à sua vontade, à sua influência e guiado pelo am or solícito e desvelado

que ela lhe dedica cresce nas m elhores disposições” (LIM A , 1887b, p. 47). Sobre tal questão,

os esclarecim entos de June E. H ahner são indispensáveis à com preensão dos papéis designados

a esses sujeitos no século XIX.

Na lei, como nos costumes, a ideologia da supremacia masculina era prevalente. As


ordenações Filipinas, compiladas em Portugal em 1603, que basicamente
permaneceram efetivas no Brasil até a promulgação do Código Civil de 1916,
designavam especificamente o marido como “cabeça do casal”, e somente com sua
morte a mulher podia ocupar tal posição. De acordo com a estrutura do sistema de
direito civil brasileiro no século XIX, uma extensão das Ordenações Filipinas, as

191
mulheres eram perpetuamente menores. (E o Código Civil de 1916 não mudou
realmente a questão). Uma mulher casada tinha que se submeter à autoridade do
marido nas questões relativas à educação, criação e local de residência dos filhos. A
lei negava às mulheres casadas o direito de envolver-se no comércio, de alienar bens
imóveis por vendo ou doação, e, ainda, de administrar a propriedade sem o
consentimento de seus maridos. (HAHNER, 2003, p. 44)

A s m ulheres das classes m ais abastadas, isto é, as herdeiras de grandes potentados,

acum ularam em si, ao longo da segunda m etade do século X IX , to d a a extensão do que se

designava com o papel para a m ulher na estrutura social: ser m ãe, esposa e dona de casa. P o r

outro lado, as m ulheres letradas, em bora exercendo tal tripé, com o foi o caso de F rancisca

C lotilde, transgrediram os níveis de instrução designados p ara sua condição na sociedade.

Inseriram -se, po r sua desenvoltura com as letras, com os livros ou m esm o com aquela

am biência dirigida e ocupada m ajoritariam ente po r hom ens, em quadros de colaboradores de

jo rn a is e revistas. O cuparam tam bém im portantes postos de discurso n a conjuntura oitocentista,

com o as questões abolicionistas, com o, m ais u m a vez, observa-se quanto à participação de

Clotilde.

N o s escritos de F rancisca C lotilde, suas posições m ostram u m a educação voltada ao

público infantil ainda dem asiadam ente alicerçada no conservadorism o católico - cujas bases

de form ação foram construídas desde há m uito tem po pela Igreja C atólica - , tom ando a figura

m aterna com o a principal propulsora da educação dos sujeitos desde tenra idade. N essa parte,

a questão prim ordial a se destacar é que, em bora atendendo a essa dim ensão, inúm eras

m ulheres não cercearam seu horizonte de expectativas à vontade das figuras m asculinas da

estrutura política e social. D esejaram e, de fato, conseguiram construir um a trajetória de busca

incessante pela realização de seus planos e projetos, sem pre num a correlação com as principais

questões de seu tem po.

N esse ínterim , não é que C lotilde continuasse a cristalizar o papel reservado às m ães,

u m a “m issão” da qual dependeria o futuro da pátria, pois as progenitoras “m oldariam ” futuros

trabalhadores, ordeiros, disciplinados e am antes da religião. C ertam ente, fugir a essa

responsabilidade dita “ m aternal” se tornava ainda m ais difícil, especialm ente pela vigilância e

fiscalização im pressa às experiências fem ininas, sobretudo daquelas que reuniam m u lh eres-

m ães, professoras e católicas. A ssim , não se trata som ente de com preender F rancisca C lotilde

com o voz dissonante, “ indisciplinada” frente à sociedade que lhe designava os “ recônditos do

lar” , principalm ente quando se pensa as m ulheres das cam adas m ais elevadas, m as de

com preender com o, ao longo do século X IX , as posturas dessas m ulheres professoras foram

m odificando-se, m esm o quando o discurso vigente tentava in cutir o contrário. C om o essas

192
m ulheres responderam , po r m eio de suas ações, à legislação educacional, m atrim onial,

fam iliar, questões que se dão, quando se tra ta de valores religiosos, num a perspectiva de “ longa

duração” . Isto é, as m udanças ocorrem dentro de um tem p o histórico m ais longo, num a

dinâm ica que se desenvolve a p artir de perm anências, desvios, rupturas e ressignificações. Os

argum entos de F rancisca C lotilde, em seu artigo “A m u lh er na fam ília” , publicado n ’A

Quinzena em 15 de m arço de 1887, concorrem para se concluir algum as questões:

Não será mil vezes mais glorioso desempenhá-lo e fazer da criança um homem útil à
pátria e à família do que sentar-se nos bancos de academias em busca de um
pergaminho, ou acompanhar os vaivéns da política, duende fatal que deve amedrontar
até os animais varonis? (LIMA, 1887b, p. 40)

A o leito r m enos atento, pode parecer que a professora da E sco la N orm al via com certa

apatia os bancos das academ ias ou o exercício de funções na vida política. P orém , Francisca

C lotilde, no trecho acim a, certam ente tentou convencer o leito r da im portância das atividades

exercidas pelas m ulheres no am biente dom éstico, em um m om ento em que se reservava um

v alo r m ais baixo às tarefas no lar, na hierarquia das funções na sociedade oitocentista. C lotilde

destacava a figura da m ãe e da professora com o as m ais aptas a cuidarem do ensino religioso,

devendo esta dim ensão ser m in istrad a no in terio r dom éstico e na escola. E sta tarefa, para

C lotilde, não deveria ser conduzida apenas pela fam ília e igreja, com o defendido àquela época

nos debates políticos e intelectuais. A im portância que esta professora dava ao papel das

m estras na condução da instrução religiosa constituía m ais um a via de participação das

m ulheres na cena pública.

C onform e as investigações de P erro t (2020, p. 187), concebiam -se, nesse período, as

funções destinadas aos sujeitos a partir da com preensão do que se d en om inou “vocação

natural” , discurso com partilhado, inclusive, po r filósofos notáveis com o Fichte, H egel e

C om te. A educação foi dim ensão por m eio do qual esse discurso se fez produzir e reverberar

de m aneira notável. P o r considerarem as m ulheres possuidoras de virtudes com o paciência,

abnegação e sentim ento de cuidado, a educação dos filhos, questão m ais ligada à form ação do

caráter do que à som a dos conhecim entos, foi-lhes designada, ainda que posições contrárias se

tenham feito presentes. R econhecia-se essa tarefa com o essencial à form ação de um estado

ordenado e “h arm onioso” , todavia reservava-se pouco v alo r frente ao papel destinado aos

hom ens: p rovedor e direcionador dos princípios em que a fam ília deveria ser educada, se

pensarm os os sujeitos das cam adas m ais abastadas. É im portante ressaltar que tal aspecto não

cabe às circunstâncias vividas pelas m ulheres e hom ens das cam adas pobres. N a perspectiva

193
de D ias (1995), o em pobrecim ento constante fazia com que essas m ulheres, desde cedo,

estivessem circulando pelas ruas exercendo as m ais diversas atividades para sustento de sua

fam ília. O serviço dom éstico constituiu, na segunda m etade do século X IX , a “ principal

categoria de em prego urbano fem inino” (H A H N E R , 2010, p. 319).

C O N S ID E R A Ç Õ E S F IN A IS

D ian te das problem áticas em análise, pode-se concluir que os escritos de F rancisca

C lotilde, m ais especificam ente os dois artigos publicados, em 1887, na revista A Quinzena, “ A

educação m oral das crianças na escola” e “ A m u lh er na fam ília” , constituem fontes

historiográficas im prescindíveis ao estudo dos conflitos que envolvem , no século X IX , as

relações entre religião98 e o ensino oficial, assim com o suas reverberações nas experiências

fem ininas. D etid o a esses escritos, observa-se que os papéis sociais das m ulheres da época não

se restringiam ao am biente dom éstico, com o esposas, m ães e donas de casa. P o r vezes,

extrapolavam o espaço do lar, com o professoras e escritoras. V id a particular e pública,

portanto, m isturavam -se e alim entavam -se um a à outra, com o foi o caso da trajetória de

F rancisca Clotilde.

N essa investigação, partiu-se da análise dos escritos dessa professora e escritora,

sem pre em associação à sua participação na cena pública e privada, pois acredita-se que, por

m eio desse trânsito, do espaço letrado ao do lar, da função de m ãe à professora, à escritora e à

colaboradora de periódicos, é possível lev an tar questões pertinentes à H istó ria das M ulheres e

da E ducação, especialm ente po r se tra tar de u m a dinâm ica conflitual que continua o cupando

lugar de destaque na conjuntura educacional e no cenário político-social atual.

A s relações entre religião e ensino, nessa época, m otivaram debates, especialm ente,

entre figuras do universo letrado ou daquele m ais diretam ente vinculado à Instrução P ú b lic a

com especificidades e dem andas próprias de sua am biência. N esse m ovim ento, o lugar

reservado à dim ensão religiosa na instrução p rim ária está claram ente associado às funções

m aternais. A satisfação e o vigor m aterno, características “naturais” ao “ ser fem in in o ” na

sociedade oitocentista, seriam correspondidas pelo dever quase sagrado de conduzir a infância

pelas sendas da religião.

98 Nesse caso, a religião é representada pela Instrução Moral e Religiosa, matéria pertencente ao programa escolar
primário.

194
O cum prim ento dessa tarefa, aparentem ente, não gerava insatisfações entre as

m ulheres, com o se vê pela postura de F rancisca C lotilde, quando, inclusive, com preende o

ensino religioso com o a m atéria m ais im portante do currículo escolar prim ário. M ais do que

“vozes dissonantes” , essas m ulheres professoras presas ao conservadorism o católico

constituíram , por suas ações, sujeitos que ao atender às exigências de um a sociedade patriarcal

e paternalista, puseram em destaque a im portância dos papéis que lhes foram designados com o

sendo de caráter “natural” ou religioso (“vocação” ), po r m eio dos quais suas ações eram

silenciadas na dim ensão da experiência, do fazer cotidiano.

E ssas m ulheres, esposas, m ães, professoras, escritoras, donas de casa, católicas e m uito

m ais, foram m odificando suas posturas, em bora ainda tivessem seus ideais fortem ente

arraigados no catolicism o de m atriz conservadora, baseado na obediência às autoridades

constituídas e à organização social vigente com o dim ensão do dever do ser cristão. Para

F rancisca C lotilde, os tem pos não teriam m udado, porém , parecia não se adm itir m ais lugar

para conform ism os ou silenciam entos. D efin in d o e redefinindo suas práticas, seus projetos

seriam o horizonte a ser perseguido, pois reconhecia estar ali em jogo sua felicidade, a dizer

suas realizações e propósitos. O ptou, portanto, po r seguir seus desejos baseados em suas

experiências e form as de agir e pensar em determ inadas condições, m esm o quando o discurso

da época, efetivado na legislação educacional, fam iliar e m atrim onial afirm ava o contrário.

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197
UM NACIONALISMO SERTANEJO: CRIAÇÃO DE
TRADIÇÕES, PATRIMÔNIO E MEMÓRIA99

D A N IE L R IN C O N C A IR E S

A o longo das prim eiras décadas do século X X observou-se um m ovim ento decidido de

reavaliação da produção cultural realizada em solo brasileiro. N o in terio r desse processo,

m uitos dos antigos pintores, escultores e construtores que produziram obras utilizadas no

contexto dos ritos católicos foram reenquadrados, passando a ser com preendidos com o artistas,

e sua produção, com o obras de arte. M ais ainda, sua produção passou ser vista com o vestígio

do processo de nascim ento e evolução da genuína arte b rasileira e, com o tal, digna de ser

estudada, interpretada, recolhida de um suposto ocaso, protegida po r legislação específica,

exibida no am biente racional, pedagógico e controlado dos m useus. E m outras palavras, as

im agens de santos católicos em pedra-sabão e m adeira policrom ada, os altares-m ores, teto s de

capelas e os próprios edifícios que abrigavam os tem p lo s m igraram para o cam po do

patrim ônio, dos m useus e coleções ao passarem a ancorar novos significados, m uito além

daqueles que carregavam originalm ente. Santeiros e m estres, construtores e talhadores foram

adquiridos pela h istória da arte, devidam ente catalogados e qualificados, inseridos em arranjos

cronológicos e alocados em periodizações, arranjados em esquem as narrativos fo rm a n d o fila

ordenada e apontando o processo de evolução das artes. T ornavam -se descendentes e, ao

m esm o tem po, antepassados.

E sse foi o destino do santeiro goiano José Joaquim da V eiga V alle (1806-1874) e das

obras sacras atribuídas a ele. A p artir da prim eira passagem de um técnico do Serviço do

P atrim ônio H istórico e A rtístico N acional (SPH A N ) pela cidade de G oiás, em 1940, V eiga

V alle foi incorporado ao panteão dos artistas brasileiros, alinhado a outros representantes da

arte “ colonial” ou “barro ca” - apesar de, a rigor, não se enquadrar em nenhum a dessas

categorias - com o Jesuíno do M o nte C arm elo, M estre V alentim e A ntônio F rancisco Lisboa.

O s santos de m adeira policrom ada atribuídos a V eiga V alle passaram a atrair o interesse de

colecionadores que, p o r m eio de “viajantes antiquários” , os procuravam incorporar a suas

coleções, enquanto que alguns elem entos locais faziam esforços para evitar sua dispersão, já

99 Os textos apresentados nas citações tiveram sua grafia atualizada, exceto nos títulos.

198
que estavam tam bém convencidos do papel sim bólico recém -descoberto nas im agens, agora

vistas com o provas da existência de um a cultura goiana ancestral, autóctone e valiosa.

O que se pretende neste tex to é apresentar as linhas gerais de um ideário que,

desenvolvendo-se entre os intelectuais b rasileiros desde o final do século X IX e atravessando

o cham ado m ovim ento m odernista, perm itiu que esse grande reenquadram ento conceitual

ocorresse, chegando finalm ente a consolidar-se com o política de estado no m om ento da criação

do SPH A N . O contato com as fontes parece apontar que os letrados b rasileiros de diversas

regiões com partilhavam um substrato de ideias com uns, ideias que perm eariam a reconstrução

da história, a fundação de tradições e a criação e celebração de m em órias. Interessa apontar a

fo rm a dessas ideias em suas m anifestações m ais antigas e, m ais especificam ente, encontrá-las

e dem onstrá-las em uso entre os letrados goianos do início do século X X e nos textos

fundam entais dos intelectuais que prom overam diretam ente o reenquadram ento da cultura

brasileira, com o A fonso A rinos, R icard o Severo, M ário de A ndrade, entre o u tro s100.

O n acion alism o sertan ejo

E m linhas gerais, a ideia fundam ental que parece perm ear as reflexões de m uitos dos

intelectuais brasileiros nas prim eiras décadas do século X X pode ser resum ida na proposição

de que o caráter b rasileiro genuíno se encontra nas realidades étnicas, sociais e culturais

encravadas em seus interiores geográficos onde, por conta de um favorável isolam ento, o

processo de caldeamento dos elem entos originais pôde se desenvolver de m aneira com pleta. O

que significa tam bém , considerando-se a ideia pelo avesso, um ju ízo negativo sobre as

influências ex te rn as101. E ssa p rem issa perm ite u m a inversão de interpretações nas m ais

100 A ideologia dos intelectuais goianos será analisada quase exclusivamente a partir dos escritos que deixaram na
revista mensal A Informação Goyana, que circulou entre 1917 e 1935. A leitura dos seus 213 exemplares
demonstrou alguns padrões discursivo s consistentes que indicam a produção e a circulação de determinados tropos
interpretativos significativos para a compreensão do processo de reorientação ideológica que nos interessa
observar. A Informação Goyana foi minuciosamente analisada na tese de NEPOMUCENO, 1998.
101 O nacionalismo sertanejo funciona de maneira similar ao conceito de cultura conforme apresentado por
Norbert Elias, em oposição ao de civilização. Nesse recorte, cultura é o núcleo identitário original, associado ao
passado de um povo, essência verdadeira da raça, As influências estrangeiras, entendidas como civilização,
apareciam nesse esquema num papel negativo, como interferências alienígenas deletérias ao caráter de um povo.
Essa compreensão do processo histórico, conforme demonstrado por Elias, era observável em outros contextos
culturais contemporâneos ao estudado aqui, como na Alemanha; cfe. ELIAS, 1994.

199
variadas áreas. P ara criar um a term inologia que p erm ita referência direta a essa ideia geral

propõe-se o term o nacionalismo sertanejo102.

E m term os étn ico s, essa perspectiva perm ite rejeitar a profecia que condenava a raça

b rasileira a um a inevitável decadência, lançada por eugenistas do século XIX. T orna-se

possível construir o argum ento de que a m iscigenação, ao invés de condenar o b rasile iro à

degeneração, é fonte de força, criando o hom em perfeitam ente adaptado ao m eio, p ortador das

m elhores qualidades de cada um a das raças contribuintes.

E uclides da C unha fix a em Os sertões m uitas das ideias que seriam retom adas e

cultivadas nas décadas seguintes. Identifica um a região onde se apresentam as condições ideais

para o isolam ento e o caldeam ento da raça brasileira, o curso m édio do R io São Francisco, que

recebe vaqueiros, jesuítas e bandeirantes e perm ite um prim eiro povoam ento duradouro no

interior. O m esm o m eio que os atraía os guardava: “ sem os perigos das m igrações e dos

cruzam entos” , “inteiram ente divorciados do resto do B rasil e do m undo” aparece “u m a raça de

cruzados” que com põe “ o cerne vigoroso da nossa nacionalidade, os “ curibocas p u ro s” (“ quase

sem m escla de sangue africano” , garante), que form am a essência nacional, onde foram

“ caldeadas a índole aventureira do colono e a im pulsividade do in d ígena” (C U N H A , 1905; p.

98-99).

A inda perm anecem m uitos preconceitos contra aqueles considerados não-brancos, que

seguem em geral sendo posicionados em lugar in ferio r na escala evolutiva com que se m ed ia a

hum anidade. Tal perm anência determ ina u m a relação am bígua com o outro nos discursos dos

letrados: os m am elucos do passado colonial, o caboclo ou caipira do presente eram

representados ora com o o hom em em estado puro com quem com partilhavam raízes, ora com o

o inculto, atrasado e arcaico que deveria ser resgatado, reform ado e superado. Tal am biguidade

é presença constante nos escritos dos in telectu ais goianos que às vezes os descrevem com

tern u ra e nostalgia - com o griots da cultura legítim a da região - ora com o atrasados, explorados,

m iseráveis e incultos, aguardando a redenção pela pedagogia ou pela força.

U m exem plo da prim eira vertente aparece em tex to de João G oyano publicado em 1918.

P ara ele, a cultura sertaneja confunde-se com a própria expressão da nacionalidade:

102 Ferreira propõe o termo caboclismo para esse fenômeno, descrevendo-o como um sentimento nativista
alimentado “[...] na ideia de pesquisar as fontes vitais da regeneração da vida nacional na tradição, na história e
na cultura popular rural, como antídoto ao cosmopolitismo exacerbado, ao vício do homem urbano de copiar
padrões culturais das nações decadentes”; cfe. FERREIRA, 2002, p. 220.

200
“Tem-se repetido que Goiás, como pitoresco ‘hinterland’ e como porção inicial da região brasileira, é a
‘Arca de Noé da primitividade do Brasil’; diremos mais: abrigado das revoluções sociais generalizadas
e das influências alienígenas que transformaram o litoral em subúrbios ultramarinos da Velha Europa, é
uma caldeira interessantíssima de fusão dos restolhos raciais meio puros, impregnando na sociedade
alguns ‘itens’ reservados dos vícios da colônia, ou as mais recentes transformações étnicas” (GOYANO,
1918. p. 157).

A inda que se observe algum a ruptura com o m odelo de interpretação anterior, restam

vestígios dos princípios cientificistas que orientavam as antigas concepções. N ão é pela

refutação da ideia de determ inism o biológico que se reabilita a “raça b rasileira” , m as pelo uso

desse m esm o determ inism o para provar que, na equação das raças, a estrangeira ocupa o posto

de decadente.

H enrique Silva, m ilita r goiano form ado na E sco la M ilitar da P raia V erm elha, fundador

e principal colaborador d ’A Informação Goyana, defendeu em vários textos a ideia de que o

m elh o r do país e a m ais genuína expressão da raça se encontrava no interior do território. O

isolam ento aparece com o fator prim ordial na produção e conservação das qualidades essenciais

do brasileiro. C om parando o C entro-O este b rasileiro aos E stados U nidos, acreditava no destino

manifesto da região, que “traz no seio a v irtualidade de um alto destino social e hum ano no
irrad iar da futura civilização sul-am ericana” (SILV A , 1924, p. 67). Ali com põe-se o hom em

ideal, onde “ se encontraram as três raças distintas que, am algam adas e fundidas sob o sol do

sertão, produziram um tip o inteiram ente novo - o m estiço, que po r transform ação fisiológica,

será o b rasileiro do am anhã” 103.

M as talv ez seja nos textos de H ugo de C arvalho R am o s que se encontre o m ais típico e

bem caracterizado exem plo desse interesse da elite letrada pelos elem entos populares da região

de Goiás. E m um a vertente de sua produção o autor adota a p erspectiva do sertanejo e incorpora

sua linguagem , produzindo contos em que a prosódia local em bala um vocabulário pontuado

de expressões colhidas da b o ca dos sertanejos e produz um a visão de m undo cen trad a nos

valores de um suposto hom em sim ples do cam po. A ntecipando autores da cham ada geração

m odernista, R am os concedeu estatuto literário ao vernáculo c ab o clo 104.

E m outros m om entos, R am os adota o registro intelectual, m arcando um a distância em

relação ao seu objeto. N esses textos, p rocura colaborar com a reinterpretação do caráter do

habitante local de form a que se pretende objetiva e científica. E m O Interior Goyano, por

103 Contrapõe ao “tipo do vero sertanejo” o “depauperado jagunço, pária da zona estreita da Bahia vizinha do
litoral e em contato com o elemento estrangeiro, que nos vai desnacionalizando pelo cosmopolitismo crescente”,
idem, p. 67.
104 Nesse papel, é tido pelos seus contemporâneos como “o mais lídimo artista da palavra escrita que nos dá a
impressão exata, fidelíssima dos cenários sertanistas do Brasil Central”, comentário do redator ao texto Caminho
das Tropas, com que Ramos inicia sua contribuição com a folha, cfe. RAMOS, 1918a; pp. 92-93.
201
exem plo, coleciona descrições dos tipos hum anos encontrados no in terio r de G oiás. D entre

todos, destaca a figura dos vaqueiros que, levando v id a livre e nôm ade, são para o autor os

autênticos sertanejos, resu ltad o de um a espécie de decantação racial (R A M O S, 1918b; pp. 35).

E m Populações Ruraes, R am os contrapõe-se ao racism o que decretava a inferioridade natural

e inevitável das populações m estiças, especialm ente as que tinham em sua com posição o

elem ento não-branco; aponta com o causa do “ atraso” a inércia governam ental que segrega as

populações interiores das benesses da ciência e da tecnologia (R A M O S, 1919; p. 99). P ara ele,

as constatações das “ classes p arasitário-diretoras das capitais” são construídas p o r um olhar

superficial, afastado do contato com a realidade sobre a qual vaticinam . R egistra tam bém a raiz

social das m azelas que assolam o habitante do interior, descrevendo a exploração a que os

trabalhadores sem terras são subm etidos pelas fam ílias m ais ab astad as105.

O ideário delineado acim a configura-se nitidam ente com o um a ideologia, na m edida

em que representa um a visão de m undo instrum ental para que determ inados grupos sociais

reorganizem as narrativas de m aneira auspiciosa aos seus interesses. N essa tarefa, além de

rem o d elar as interpretações a respeito dos habitantes do interior, v alorizando-os com o os

elem entos genuínos da nacionalidade, os m em bros das elites letradas do hinterland lançaram -

se à tarefa de revisar a história nacional. Intelectuais interioranos com batiam as velhas

interpretações históricas “litorâneas” que, a seu ver, teim avam em silenciar sobre o papel dos

sertanejos na construção do p a ís106. H enrique Silva m ilitou nessa direção em diversos textos

publicados n'A Informação Goiana. A firm ava que a “id eia de G oiás nasceu nos cam pos de

P iratininga - essa com o que nova Sagres continental na A m érica do Sul, de onde tantos

visionários fitariam os ínvios sertões procurando com os olhos da im aginação riquezas ocultas”

(SIL V A , 1927, p. 49-51). Sucessões de “ descobridores” se fazem notar nesse discurso: os

prim eiros, portugueses, que atravessaram o A tlântico no século X V I, os segundos, os

bandeirantes, consolidando e aprofundando os feitos daqueles, m archando ainda para oeste,

para o in terio r “ desconhecido” do país; os terceiros, os intelectuais da década de 1920, que se

colocavam com o seus continuadores.

105 “O nosso pequeno lavrador, invariavelmente, não possui terras; aluga o braço, faz-se jornaleiro, ou, quando
muito, torna-se arrendatário nestas alturas”. Idem, p. 99.
106 Nesse aspecto, os esforços dos intelectuais goianos se assemelham notavelmente aos dos membros letrados da
elite cafeeira de São Paulo que, segundo demonstrou Ferreira, adotaram estratégias muito semelhantes em busca
do reconhecimento da importância histórica de seus antepassados. Nesse processo, a figura dos bandeirantes será
fundamental: eles serão reabilitados e incessantemente promovidos como os verdadeiros fundadores da nação,
responsáveis pela expansão e consolidação do território. Esses esforços seriam institucionalizados nos órgãos da
imprensa, nas academias literárias e, principalmente, nos Institutos Históricos locais que se erguem para combater
a visão “litorânea”; cfe. FERREIRA, op. cit..

202
R e a b ilita ç ã o do b a rro c o /c o lo n ia l

E sse m esm o espírito de valorização daquilo que se desenvolve no in terio r intocado do

território, longe das influências externas, seria aplicado às narrativas sobre os fenôm enos

culturais. A tradicional m aneira de com preender a história da arte b rasileira seria desafiada por

novas interpretações. P ode-se argum entar que a ideia do caldeam ento protegido pelo

isolam ento geográfico é tran sferid a da análise das “ raças” para a análise da “ cultura” , pois para

os m odernistas, assim com o para outros grupos desse m om ento, a cultura genuinam ente

b rasileira é aquela que se desenvolve de m aneira autóctone, no interior do território, longe da

influência daninha do estrangeiro. E ssa inversão cria condições para a rejeição da cultura

“ cosm opolita” , enfraquecendo o im perativo da busca pelos padrões da E uropa. N esse aspecto,

é notável a m aneira com o os ju íz o s sobre a produção colonial brasileira foram alterados.

A situação inicial dem onstra um v alo r negativo sobre a arte colonial brasileira, com o

aquele encontrado nos escritos de M anuel A raújo P orto A legre (1806-1879), intelectual

form ado na tradição neoclássica. P ara ele o b arroco - brasileiro ou não - aparecia com o

m anifestação típ ica de um tem po de abandono dos padrões desejáveis. N u m a com preensão da

trajetó ria da arte que reconhecia apenas três m om entos de esplendor - a antiguidade clássica, a

R en ascen ça e o N eoclássico francês - P orto A legre aninha o barroco no intervalo entre os dois

últim os, qualificando-o com o “ am aneirado” (G O M E S JÚ N IO R , 1998; p. 4 1 )107. E m trabalhos

realizados ju n to ao IH G B , refere-se aos exageros e delírios das artes do p eríodo colonial, em

especial da arquitetura.

A s condições para o exercício de um olhar positivo sobre o barroco, com o dem onstra

G om es Júnior, seriam estabelecidas apenas no final do século X IX , especialm ente po r conta

dos trabalhos de H einrich W olfflin (1864-1945), crítico de arte que a partir de sua obra

Renascimento e Barroco, de 1888, qualificou-o com o um m ovim ento estético dotado de


princípios próprios, situado nos séculos X V I e X V II, desfazendo a noção de que se tratava

m eram ente de um tem po de decadência m arcado po r u m a arte resultante da degradação dos

m odelos clássico s108. E ssa revisão do caráter da arte barroca perm itiu que os intelectuais

b rasileiros envolvidos no p rojeto de refundação das tradições pudessem enquadrar os tem pos

coloniais sob um a luz favorável. L ibertados do apego aos padrões “ clássicos” - que os obrigava

107 Nesse minucioso mapeamento da trajetória do conceito de barroco, Gomes Júnior adverte que Porto Alegre
não chegou a empregar propriamente o termo barroco para se referir à arte colonial brasileira, ainda que esteja
presente a ideia que mais tarde será nomeada por ele.
108 Em suas palavras, “o barroco não representa nem o declínio nem a perfeição do clássico, em razão de que ele
é, desde sua própria origem, de caráter fundamentalmente diverso” (apud GOMES JÚNIOR, p. 19, nota 7).

203
a co ndenar tudo o que fosse desviante - podiam colher no passado colonial b rasileiro as

sem entes da essência nacional.

U m m om ento apontado com o sem inal no estabelecim ento dessa valorização dos

tem pos coloniais é o da m ontagem da p eça O Contratador dos Diamantes, de A fonso A rin o s109.

C o m o afirm ou M árcia C huva, a peça de A rinos instituiu um a determ inada im agem dos tem pos

coloniais e fez com que o tem a chegasse aos olhos dos paulistas da elite dos anos 1920 e seus

epígonos, com o M ário de A n d ra d e 110 (C H U V A , 2017. p. 91). A rede de relações de A rinos

contribuiria para que o tem a fosse encam pado pela intelectualidade e ganhasse estatuto

institucional nos órgãos de preservação do p atrim ônio e nos com pêndios de h istória da arte.

C om o exem plifica Chuva, R odrigo M ello F ranco de A ndrade - futuro direto r do S P H A N - era

sobrinho de A rinos, conviveu com o tio durante seus anos de form ação e visitou com ele as

cidades históricas de M inas Gerais.

A leitura da peça revela outras particularidades da reinterpretação histórica efetuada por

A rinos. N a tram a, um ouvidor enviado pelas autoridades portuguesas chega a T ijuco (atual

D iam antina) com a finalidade oculta de investigar um a suposta sublevação. E le deveria

desbaratar um m ovim ento inconfidente. H á descontentam ento na m etrópole com a atuação do

adm inistrador local (F elisberto C aldeira B randt, o C ontratador, herói da peça), que seria

condescendente com os trabalhadores locais: “ vieram reagir contra o m odo cristão de tratar

estes povos; vieram firm ar de novo no sangue, com ferro e açoites, o despotism o” (A R IN O S,

1973, p. 9.). O passado sertanista do C ontratador - desbravara terras de G oiás - granjeou

sim patia da m etrópole, que esperava lucrar com novos achados auríferos.

A o tran sfo rm ar os acontecim entos históricos em dram a, A rinos delineia um a narrativa

nativista na m edida em que m arca os personagens “b rasileiro s” com os sinais clássicos dos

heróis e reserva aos em issários do R ein o o papel de vilões da tram a. A autoridade brasileira é

d escrita com o benevolente e to leran te para com os garim peiros, pequenos com erciantes e povo

em geral do Tijuco, abstendo-se de ap licar algum as m edidas fiscais perm itidas. A rinos

qualificou a elite colonial brasileira com o afável e benéfica aos habitantes locais, resistindo aos

im pulsos exploratórios da M etrópole e lim itando a carga de exigências que recaía sobre os

trabalhadores, m esm o sob risco de represálias. D escrita com o tutora benevolente das classes

109 Sevcenko dedicou grande atenção à repercussão resultante da montagem desta peça, evento que funcionou
“como catalisador de uma fermentação nativista” em andamento nos anos 1920; cfe. SEVCENKO, 1992; p. 247.
110 Mário de Andrade faria uma espécie de versão retórica da peça de Arinos no segmento inicial de sua
conferência sobre a Arte Religiosa no Brasil, e citaria o autor mineiro como uma de suas fontes de informação.
Na abertura de seu discurso, Andrade descreveu minuciosamente aquilo que Arinos chamou de “luxo pesado” do
tempo colonial.

204
trabalhadoras, reafirm a-se seu direito de m ando, direito que a elite paulista que assistia à peça

desejava m anter. A o m esm o tem po, assinala-se o passado “ paulista” e “bandeirante” da classe

dirigente, com o que se oferece um a identidade aos m em bros da elite paulista.

O utro m om ento im portante do processo de reabilitação das expressões culturais

coloniais brasileiras seria proporcionado pelo arquiteto R icardo S ev ero 111. N u m a conferência,

editada na R evista do B rasil em 1917, ele reuniu argum entos que forneceriam um arcabouço

para a reinterpretação da trajetó ria cultural brasileira.

N um cenário de intensa busca pela identidade pátria, Severo defende, ao contrário do

que propunham m uitos “nativistas” , que fossem aceitas com o partes integrantes do caráter

nacional as contribuições “ ocidentais” , ou seja, aquelas l egadas pelos elem entos de origem

eu ro p e ia 112. D eterm in a haver u m a linha de continuidade entre a tradição “ ocidental” , - em

especial a greco-rom ana - com o presente am ericano, ainda que m arcada po r um a coloração

especial, num a espécie de tradução lusitana. Sua tese central é a de que conquistadores

portugueses plantaram na A m érica as “ essências espirituais da alm a nacional” , alm a que

to m aria sua form a definitiva pelo “ caldeam ento” , gerando “um a m estiçagem de firm e

adaptação ao m eio” (SE V E R O , 1917, p. 399).

E co an d o as ideias de W olfflin, Severo faz um desagravo ao barroco, que “ dizem ser

u m a decom posição avariada do neoclassicism o” . P ara ele, “ aquele estilo é, com o o gótico, das

m ais belas expressões artísticas dum a época e dum m eio social, tem u m a legitim idade tão legal

quanto o dogm a clássico das ordens arquitetônicas dos panteões g reco-rom anos” (SE V E R O ,

1917, p. 412). C om isso, reabilita igualm ente a arte do período co lo n ial113.

O utra contribuição duradoura de Severo apresentada neste texto seria a nova proposta

de periodização da história cultural brasileira. P ara ele, no com eço do século X IX , observa-se

a interrupção do processo de constituição de u m a arte nacional ou, em suas palavras, “ perdeu -

111 Ricardo Severo (1869-1940) arquiteto lisboeta, exilou-se no Brasil na década de 1890 após envolver-se em
movimentos anti-monarquistas em Portugal; ver SANTOS; SILVA; DANTAS, 2012.
112 Ver, por exemplo, a proposta de Carlos Maul, resumida em seu manifesto Do Titanismo, como base de uma
estética nacionalista (1917), em que defendia uma cultura nacional expurgada tanto das contribuições africanas
quanto das adições europeias, especialmente as de origem portuguesa. Sobre Maul e suas propostas estéticas ver
CAIRES, 2018.
113 “Não temos que ir buscar muito longe a origem dos estilos em que foi construída a maioria das igrejas no
Brasil, as quais datam do século XVII, XVIII e XIX. Nelas se manifesta a influência de todas as fases da arte
portuguesa da Renascença, tomando como fundo o estilo pseudoclássico, do tempo do reinado dos Felipes, em
que se enxerta o barroco italiano e o churrigueresco, mas em que se reflete uma original fantasia, como sucedeu
ao romano-bizantino no Norte do país e ao gótico na sua modalidade do manoelino, que tomou em Portugal foros
de estilo nacional pela sua extraordinária e brilhante originalidade. O português deu sempre um cunho particular
à arte que importou, e este fenômeno que é notado pelos mais ilustres historiadores da arte portuguesa, sobressai
também no Brasil-colônia onde o barroco, dito jesuítico, tomou expressões de modesta singeleza, mas de um
cunho local digno de nota”; Idem, p. 401-402.

205
se com pletam ente o fio trad icio n al” . E le assinala o ano de 1822 com o data lim ítrofe desse

processo e indica o ím peto nacionalista com o causador: “ a febre de criar um a nacionalidade

nova, diferente da colônia e da m etrópole, provocou a degeneração da arquitetura colonial” .

Tal situação, para Severo, p erm anecia vigente até os tem pos da R epública, onde “persiste a

d esorientação artística provocada pela diversidade de elem entos m igratórios” 114.

Severo chegava assim , afinal, à intenção que m ovia toda sua argum entação: estim ular

a religação do presente com o passado colonial, num a retom ada do processo de

desenvolvim ento de u m a arte nacional partindo do “fio interrom pido” .

“Acompanhando a orientação universal de todos os velhos países, segundo o princípio das


nacionalidades, surge também no Brasil uma nova reação popular de nacionalismo, movimento
centrípeto de concentração, que procura equilibrar o efeito dispersivo e desnacionalizante do moderno e
utilitário cosmopolitismo. É impulsionado este movimento por intelectuais brasileiros de talento e
prestígio, e fundamenta-se no estudo etnográfico do povo brasileiro, na revivescência do seu folclore, no
renascimento da tradição que é a alma da nacionalidade, o laço invisível que reúne em torno do lar
sagrado da pátria, que é um só, toda a família brasileira que deverá ser sempre uma e inseparável sobre
a terra e através do tempo” (SEVERO, 1917, p. 417).

M ário de A ndrade reto m aria parte dos argum entos de R icard o Severo em sua prim eira

incursão pelo terreno da “ arte religiosa” brasileira. E m conferência realizada na C ongregação

de Santa E figênia em 1919 - p u blicada no ano seguinte em q uatro partes na R evista do B rasil

- A ndrade reforçaria a noção de que a cultura autóctone brasileira foi desenvolvida no

isolam ento colonial. C om o ideia de fundo, A ndrade rep etia Severo, condenando o ecletism o

“ cosm opolita” da arquitetura religiosa contem porânea e insistindo na religação com os padrões

coloniais.

N aq u ela altura, A ndrade acom odava em sua teo ria estética alguns traços do pensam ento

cientificista, aceitando a determ inação dos fatores m esológicos sobre o desenvolvim ento da

cu ltu ra115. C om o acredita que a iconografia de u m a época registra “ o espírito, os sentim entos,

114 Idem, p. 415. A periodização que se tornaria canônica na história da arte brasileira, consolidada pela geração
modernista e seus continuadores, acataria a ideia de interrupção do “fio tradicional” mas elegeria outro evento
causador: a atuação da Missão Francesa. Nesta ótica, a Missão Francesa aparece como influência estrangeira
nociva, sobrepondo procedimentos exógenos a uma arte nacional que se estruturava, interrompendo o processo
de formação de manifestações legítimas e autóctones; cfe. CHIARELLI, 2010; p. 126. Severo, por sua vez, poupou
a Missão Francesa dessa falta, apontando-a apenas como inócua. Apesar de ter propagado “a gramática da arte, a
técnica perfeita do desenho”, a Missão e a Academia fundada por ela “não encontrou eco no sentimento popular,
nem podia acomodar-se ao meio físico e social da época, devido à imperturbável rigidez dos seus moldes
clássicos”; p. 413.
115 “Geralmente a nascença dos estilos se origina ou das necessidades características de cada povo, pelos materiais
mais acessíveis, pela natureza do solo ou do clima, ou então por um desses fortes movimentos espirituais que
modificam a situação do homem em face da cousa pública, dando-lhe novas necessidades e deveres...”
(ANDRADE, 1920b, p. 96). Segundo JARDIM, o pensamento estético de Mário de Andrade formou-se a partir
da combinação de diversas doutrinas, que ele enumera: “Na formação do pensamento estético de Mário de
Andrade, o expressionismo aglutinou-se com outras doutrinas. A incorporação de propostas das vanguardas

206
a consciência religiosa” , lam enta que o tem p o presente expresse essa desorientação.

A dm oestava a arquitetura das igrejas recentem ente construídas no B rasil, que desprezavam a

trad ição e o estilo “b rasileiro” e se erigiam “ [...] estranhas e exóticas transplantadas para o

nosso m eio, flores enferm iças de estufa, sem outro odor que o da esquisitice, perturbando a

alm a católica n acional” . E le v oltaria a este ponto na parte final de seu texto:

“Não vos assusteis com a ousadia desta afirmativa, vós que vedes a nossa Paulicéia recobrir-se de
matrizes novas, infelizmente feitas com tanta rapidez! Estas poderão ser boas matrizes, poderão mesmo
ser belas, mas — insisto — não são brasileiras. A própria Minas, aliás, já rechaça as suas tradições! Nesse
encantado reino do silêncio que é Belo Horizonte a matriz será gótica e a atual igreja de que se servem
os cidadãos não vos poderei dizer o que é, porque resume todos os estilos. Orgulha-se com a pedanteria
de ser uma enciclopédia...” (ANDRADE, 1920b; p. 98).

E ssa indiferença quanto ao v alo r da cultura b rasileira autóctone derivava, segundo

A ndrade, do desconhecim ento. F altava um trabalho sistem ático de descoberta, catalogação e

divulgação do “teso u ro abandonado” da arte religiosa brasileira, “ onde os nossos artistas

poderiam ir colher m otivos de inspiração” 116. Essa, afinal, é a intenção de A ndrade: com eçaria

ali o trabalho de h istoriografar a arte colonial brasileira que consum iria parte de seus esforços

nas décadas seguintes. N essa prim eira incursão, ele se v aleria principalm ente de leituras e de

docum entos, u m a vez que a m aio ria de suas viagens pelos interiores do B rasil ainda estavam

por v ir 117.

A ndrade partia para sua análise m unido de certos conceitos prévios sobre a m aneira

adequada de abordar as m anifestações culturais e artísticas. E m consonância com a tradição da

h istória da arte e consciente das suas m ais novas viragens, ele p ro cu rav a classificar as

construções religiosas coloniais em “ estilos” e, ao m esm o tem po, estabelecer um a id eia de

“ fases” sucessivas e cum ulativas de desenvolvim ento. N o interior de cada “fase” aninhava os

produtores culturais posicionando-os uns em relação aos outros de acordo com o grau de

excelência de seus trabalhos. A ndrade institui dessa fo rm a um a sequência e u m a hierarquia que

p arece in spirada na leitura das interpretações canônicas da h istória da arte (com o a de V asari,

que estabelece a clássica im agem de progresso do trecento ao cinquecento e que constrói a

francesa, alemã e italiana, da poesia de Walt Whitman, de aspectos da filosofia católica e do evolucionismo se
deu no contexto brasileiro, onde se travou o embate com os chamados passadistas.”; interessa aqui chamar atenção
para a presença do que Jardim denomina “evolucionismo”, que é a aplicação de princípios científicos na análise
da arte, na tradição do século XIX, começando talvez por Taine; cfe. JARDIM, 2015.
116 “É um fóssil, necessitado ainda de classificação”; 1920b, p. 96.
117 Segundo HORTA, Mário teria viajado a Minas Gerais em quatro ocasiões: primeiro em 1919, quando visita o
poeta Alphonsus de Guimarães; em 1924 na chamada “Viagem de Descoberta do Brasil”, com Oswald de
Andrade, Nonê, Tarsila do Amaral, René Thiollier, Olívia Guedes Penteado, Godofredo Telles e Blaise Cendrars;
e de novo em 1939 e 1944; cfe. HORTA, 2014, p. 120-122.

207
im agem de um a lenta e contínua ascensão que culm inará no ápice, M ichelangelo). A o falar de

D om ingos P ereira B aião, po r exem plo, A ndrade o caracteriza com o “ o T iepolo da escultura

b aian a (no sentido de ser grande e assinalar um d eclínio)” (A N D R A D E , 1920b, p. 102).

O autor vai rep licar esses artifícios ao longo de to d a a sua exposição sobre a “arte

religiosa no B rasil” : recolhendo e organizando o que se havia escrito sobre o tem a até então e

em com binação desse m aterial com o arcabouço de leituras de histórias da arte da E uropa, ele

p arece ter a am bição de construir um a m etanarrativa da história da arte brasileira, indo além da

descrição e do com pêndio, instituindo relações de causalidades, estabelecendo p eriodizações e

decantando desses exercícios u m a interpretação dos sentidos da trajetória cultural.

A ssim , divide as m anifestações culturais que estuda em três tipos principais de acordo

com a região de produção: B ahia (barroco m enos sincero e m ais erudito), R io de Janeiro (onde

os aspectos externos são m enos im portantes e m ais se investe nas decorações internas) e M inas

G erais (“ a suprem a glorificação da linha curva, o estilo m ais característico, dum a originalidade

excelente” ). P ara cada local estabelece u m “ m estre” : C hagas, o C abra, na B ahia; m estre

V alentim , no R io de Janeiro; A ntônio Francisco L isboa em M inas G erais.

A ndrade defende que os tem plos edificados no B rasil seguiram “um a certa ordem de

estilos arquitetônicos que, tendo-se vulgarizado po r todo o B rasil, tom aram u m a feição

fortem ente acentuada, donde bem se poderia originar um estilo nacional” . E sse estilo nacional

estaria m ais perfeitam ente desenvolvido em M inas G erais. G eograficam ente isolada do litoral,

e assim das “influências de P ortugal” , pode ali florescer “um estilo m ais uniform e, m ais

original, que os que abrolhavam podados, áulicos, sem opinião própria nos dois outros centros” .

A contribuição original do barroco m ineiro estava no fato de que o inesperado, o contorcido e

a linha curva não se resum iam a aparecer apenas na decoração superficial dos edifícios, m as os

m arcava estruturalm ente, desde “ o risco” . A ndrade considerava esta um a característica única

na arte m undial e declarava “ m otivo de orgulho bem fundado que isso se ten h a dado no B rasil” .

A o tra tar da figura de A ntônio F rancisco L isboa, - “ o ú n ico artista b rasileiro que eu

considero genial” - A ndrade recorre ao expediente de interpretar a obra a p artir das

configurações psicológicas de seu autor, recurso bastante utilizado na crítica de arte m oderna.

“ Insulado na dor de ser feio e repelente” L isboa procurava na escultura “um eco das am izades

que lhe recusara o m undo” ; sem acesso à form ação artística dos grandes centros, produz um a

“ arte rudim entar” da m esm a categoria que a dos artistas pré-históricos, onde abundava sua

potência criadora, “ dum realism o incorreto” , m as dotada de enorm e carga expressiva: o

escultor “pôs um a alm a dentro de cada pedra que desbastou” .

208
N o te-se que, no esquem a narrativo esboçado po r M ário de A ndrade, calcado naquilo

que críticos e h istoriadores da arte faziam na E uropa, os artistas coloniais b rasileiros ocupariam

posição análoga àquela dos ‘p rim itiv o s’, ou seja, à dos elem entos p ré-m odernos que produziam

m ais genuinam ente porque não toldados pelas restriçõ es im postas pela civilização. As

vanguardas do com eço do século X X , que tinham com o princípio a rejeição das am arras

civilizacionais - sim bolizadas pelas “im posições acadêm icas” - requisitariam um a identidade

estética com estes supostos prim itivos, assim co m o fez A ndrade em relação aos artistas

coloniais b rasile iro s118.

O SPH AN

O processo de institucionalização oficial de um a m em ória nacional, levado à frente pelo

S P H A N em articulação com produtores regionais de interpretações históricas, era a

culm inância de algum as décadas de construção de tradições coletivas. A s disputas em torn o da

delim itação de um a identidade nacional inform aram o processo de constituição oficial de um

patrim ônio, que se consolidou nos anos 1930 e culm inou na fundação do SPH A N . E sse órgão

assum iu a tarefa de criar u m a “b iografia” da nação, capaz de conferir unidade identitária aos

habitantes do território.

A proposta central dos cultores do nacionalismo sertanejo foi encam pada pelo órgão:

os rem anescentes das m anifestações coloniais foram os prim eiros elem entos a serem

classificados com o patrim ônio nacional. A seleção, reconhece-se hoje, se realizou de acordo

com um a visão tendenciosa do processo histórico, num jogo de ênfases e silenciam entos que

determ inou um a im agem b ran ca e elitista do passado, em que se ocultaram a exploração e a

v io lência sob o m anto da unidade. P ara Chuva, esse projeto de m em ória nacional é “um

exercício de v io lência sim bólica” m arcado p ela arbitrariedade das escolhas, “representadas e

reconhecidas com o naturais, pelos agentes sociais envolvidos no jo g o ” (C H U V A , 2017, p. 60).

A o chegar à cidade de G oiás, em 1940, o SPH A N articulou-se com m em bros da elite local que

já vinham se dedicando há anos à tarefa de reinterpretar o passado e representar a tra jetó ria

local de m aneira que seus interesses fossem preservados e que certos tem as inconvenientes

118 “O que foi revelado nas andanças por Minas, imbuídas de curiosidade histórica e sensibilidade estética, foi que
o primitivismo estético, então valorizado pelas vanguardas europeias, não se encontrava em lugares distantes e
exóticos, mas sim inseridos dentro do próprio tecido social brasileiro. O que a Europa buscava como referência
estética para a renovação artística fora de suas fronteiras, no Brasil estava presente em seu próprio território”; cfe.
BORGES, 2021, p. 28.

209
fossem evitados ou apresentados de m aneira edulcorada. E m conjunto, os dirigentes do

SPH A N e estes elem entos locais estabeleceríam “ [...] alianças e trocas que, nacionalm ente,

levariam à im posição de valores civilizatórios, estéticos e m orais, ao construírem um

‘patrim ônio n acio n al’” (C H U V A , 2017, p. 25).

V ê-se que a “ descoberta” de V eiga V alle é um acontecim ento que se aninha no contexto

de form ação dessa narrativ a b io g ráfica nacional, controlada pelos intelectuais a serviço do

E stado, em que elem entos rem anescentes do passado são selecionados e costurados a um a

n arrativa biográfica nacional, forjando um a identidade coletiva específica.

Q u e stõ es fin a is

A historiografia construída entre nós reconhece de form a unânim e que vários m om entos

de transição resultaram de arranjos e disputas entre os integrantes das elites locais, que

disputavam entre si o controle do “trabalho de dom inação” (M IC E L I, 2001, p. 200). N a sr

C haul, po r exem plo, aponta que as dissidências agudas entre os m em bros das elites goianas no

início do século X X não resultavam de nenhum a discordância em relação à condução dos

assuntos econôm icos e sociais, m as apenas do desejo de rotatividade no poder. T odos eles

“velejavam no m esm o barco e desejavam parte do lem e, sem perder de todo a trip u lação ”

(C H A U L, 1999, p. 35).

O que leva a questionam entos quanto ao papel dessa reordenação do sistem a de valor

cultural descrita ao longo deste tex to no pro cesso de to m ad a de controle do lem e. N ão seria a

reabilitação do “ sertanejo” - o m estiço caldeado no in terio r do processo histórico autóctone - e

da cultura “ sertaneja” - o barroco, o colonial, o p opular - parte central dessa estratégia de

to m ad a de poder? E nesse processo - ainda que nom inalm ente se esboçasse repulsa ao

“ cosm opolita” , ao estrangeiro, à v elh a e decadente E uropa - não teriam as elites locais não só

m antido, m as ocupado posições vantajosas no interior de u m a constelação de valores e

categorias coloniais? A com preensão m ais aprofundada dos processos de recalibragem das

narrativas sobre a trajetória cultural b rasileira parece m ais auspicioso quando considerada no

in terio r dos processos de lutas sociais e políticas. P arece haver um claro esforço p ara que se

m antenham as “ assim etrias da sociedade colonial” (PO LO N I; FU N A R I, 2022, p. 3). As

dom inações culturais são tão im portantes p ara a m anutenção do status quo quanto o dom ínio

m ilitar, político e econôm ico.

210
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212
NO BANCO DOS RÉUS AS NOSSAS ESTÁTUAS: A PROBLEMÁTICA
DOS PASSADOS SENSÍVEIS E O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

D A R L IS E G O N Ç A L V E S D E G O N Ç A L V E S 119

R e su m o : A oficina “N o banco dos réus as N O S S A S estátuas” , é a reflexão de um a prática


possível para conduzir o ensino de histó ria local na educação básica. A m esm a faz uso da
h istória local enquanto m etodologia e conteúdo a ser abordado nas aulas de história para o
ensino fundam ental. Para tan to o presente tex to se divide em dois m om entos. P rim eiram ente
trarem o s um a breve reflexão acerca do local ocupado pelo ensino do passado que é N O S S O ,
bem com o, dos tem as sensíveis que nos afetam diretam ente enquanto sociedade em nossas
salas de aula. P o r fim , ao lançarm os m ão da história local enquanto recurso didático facilitador
da aprendizagem de tais tem áticas, apresentarem os u m a sugestão de atividade pedagógica que
visa tra z er a problem ática das estátuas, extrem am ente d iscutida em 2020, para o nível do local
e regional, propondo com o eixo central um “ju lg a m e n to ” das estátuas pelas quais
cotidianam ente passam os em nossas cidades.

P a la v ra s -C h a v e : E nsino de história, tem as sensíveis, h istória local.

O L u g a r do e n sin o de h is tó r ia lo cal n as no ssas sa la s de a u la : R eflexões p re lim in a re s e

p r á tic a s possíveis p a r a a a p re e n s ã o de p a ssa d o s sensíveis

N o s últim os anos, com o destaca a pesquisadora C irce B ittencourt, vem ocorrendo

significativas transform ações no perfil do público escolar, dem andando um a necessidade de

adequação do ensino às dem andas do m ercado fazendo com que a sociedade de consum o

transform e o “ saber escolar, em m ercadoria” (B IT T E R N C O U R T , 2002. p. 15) esvaziando o

ensino da sua função crítica e em ancipatória.

E ntretanto, se os hom ens fazem sua história em contado uns com os outros e com o

m undo a sua volta, atuando no m undo. P erceber-se enquanto agente histórico e conscientizar-

se no sentido m ais F reiriano que esse verbo possa conter, é ainda um a das principais fu n çõ es

da história. E m sua Pedagogia do Oprimido P aulo F reire nos assinalou que os hom ens pouco

sabem de sí e essa m áxim a gera sua enorm e inquietação po r saber m ais sobre seu lugar no

m undo. C onstatar essa inquietude desvela o grave problem a da desum anização enquanto um a

119 Mestra em História pela Universidade Federal de Pelotas e colunista do projeto História da Ditadura.

213
realidade histórica, pois a escola nem sem pre nos prepara para despertarm os essa com preensão,

que nas palavras do autor, é u m a vocação inerente à condição de ser hum ano:

Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto,


objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua
inconclusão. Mas, se ambas são possibilidades, só a primeira nos parece ser o que
chamamos de vocação dos homens. Vocação negada, mas também afirmada na
própria negação. Vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão, na
violência dos opressores. Mas afirmada no anseio de liberdade, de justiça, de luta dos
oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada. (FREIRE, 1970. p. 19).

C ad a vez m ais vivem os um a despolitização do ensino de história, despindo esse de sua

carga crítica. E esse m ovim ento afeta diretam ente a capacidade do individuo desenvolver sua

consciência histórica, conceito esse que varia de acordo com a grade de leitura que o apresenta

gerando distintas form as de apreensão desta. Q ue antes m esm o de ser algo ensinado ou

pesquisado, a conciência histórica está ligada diretam ente a historicidade que é própria à

condição da existência hum ana. A ssim , o que varia são as form as de apreensão dessa

historicidade pelas distintas populações.

A ssim , um a h istória criticam ente problem atizada acaba po r fornecer os instrum entos

n ecessários para que aqueles grupos excluídos da cham ada “ história oficial” se

instrum entalizem teórica e politicam ente p ara tran sfo rm ação da sua realidade opressora. P o r

outro lado, quando não há reflexão e apenas preocupação com o “ se passar conteúdo” a história

acaba por configurar-se em um instrum ento de m anutenção do status quo de um a sociedade

excludente.

E ssa preocupação “ conteudista” foi um dos principais pontos de críticas de profissionais

da educação e entidades com o a A N P U H quando nos foi apresentada a nova B ase C om um

C urricular (B N C C ) em 2015. F elizm ente após m u ita pressão tal instrum ento norm ativo foi

revisto e substituída pela B N C C de 20 1 7 . E videntem ente que a m esm a ainda contém severas

lim itações, m antendo ainda em partes o seu viés conteudista, e, sobretudo, diante da política

contida em am bas de um ideal de unificação do currículo de ensino de história, o que em u m

P aís com a vastidão cultural e espacial com o o B rasil é um sério problem a.

E m linhas gerais esses docum entos “ definem o conjunto orgânico e progressivo de

aprendizagens essenciais que to d o s os alunos devem alcançar” (LIM A , M U N IZ , 2020, p.266).

A ssim , são neles indicados as com petências, habilidades e conhecim entos que devem ser

adquiridas durante o processo de escolarização em cada um a de suas fases. N esse estudo vam os

nos deter ao ensino fundam ental, u m a vez que a disciplina de história praticam ente desapareceu

da grade curricular do N ovo E n sin o M édio.

214
L ogo, em nossa B N C C há u m a dilatação do espaço conform e os anos letivos vão

avançando. Isso quer dizer que a orientação para o prim eiro ano do fundam ental é “ desbravar”

o m undo pessoal da criança. A ssim partindo do M EU : lugar no m undo; grupo social e tem po

em b u sca de um autoconhecim ento de seu entorno para que no ano seguinte lhe seja

apresentada a visão do O U TR O . E “ indo além do espaço escolar e fam iliar apresenta-se a

‘co m u n id ad e’ com o elem ento prim ordial a ser trabalhado n essa etapa” (LIM A , M U N IZ , 2020,

p.269). N o terceiro ano essa percepção de entorno se am plia e com plexifica. N esse m om ento

“ explora-se as relações políticas e os sujeitos históricos regionais ganham significado no

currículo” (Idem ), trata-se então da cidade com o parte da F ederação e nas unidades tem áticas

são contem pladas questões com o “A s pessoas e os grupos que com põem a cidade e o

m unicípio” , “ O lugar em que se vive” e “A noção de espaço público e privado” . E dentre os

objetos de conhecim ento deve-se d estacar a ideia de “ a produção de m arcos de m em ória” , pois

esta dem andará do educando certo grau de abstração crítica ao “identificar os registros de

m em ória na cidade (nom es de ruas, m onum entos, edifícios, etc.), discutindo os critérios que

explicam a escolha desses nom es” (B R A SIL , 2017, p. 410-411).

A p artir dai as discussões se am pliam para a história nacional e geral. Logo, a

regionalidade, a localidade e a v id a cotidiana se apresentam para os anos seguintes a p artir de

um esforço interpretativo que deve ser em pregado pelo professor:

Embora muito bem centrada, esta questão na BNCC (2017) inicia e se encerra no
Ensino Fundamental dos anos iniciais, etapa de educação que só é possível ensinar
elementos básicos da vivência histórica do aluno. Dessa forma, nas fases de maior
desenvolvimento de criticidade do aluno, o cotidiano e a história regional são
substituídos abruptamente por um ensino de História Geral. Assim, o cotidiano do
aluno foi posto como um “degrau” mais simples de se compreender a realidade e no
seu auge de criticidade apresenta-se a ele a tão discutida forma conteudista de ensino
em círculo concêntrico (LIMA; MUNIZ, 2020, p. 275-276).

D iante de tal problem ática deslocarem os nossa análise para o R eferencial C urricular

G aúcho (R C G ) de 2018. D o cum ento de caráter norm ativo que dialoga com as h abilidades e

objetos nacionais, m antendo sua organização de espaço tem po dilatada ao longo dos anos

escolares. E n tretan to o m esm o aprofunda e am plia em diferentes tem áticas as discussões

presentes na B N C C (2017) ao acrescentar a estas as particularidades da história do R io G rande

do Sul e principalm ente os principais aspectos da cultura gaúcha. T odavia, se o regional passa

a ser relativam ente contem plado, o local é o problem a em questão no R C G . P ois essa dilatação

do tem p o faz com que discussões referentes à realidade local e a história do cotidiano,

sobretudo no que tangem os tem as sensíveis, não sejam contem pladas enquanto realidade do

215
entorno, sendo apresentadas enquanto discussões distantes, de um passado que não é nosso.

E videntem ente que tal exercício de deslocam ento de tais problem as para u m a realidade que é

N O S S A se to rn ará possível diante da sensibilidade do docente de ler além das entrelinhas do

R C G na hora de p reparar seu plano de aula.

D ando seguim ento a nossa análise do R C G , nos três prim eiros anos do ensino

fundam ental as tem áticas e discussões presentes em suas habilidades não diferem m uito das

presentes na B N C C . N o terceiro ano ocorre um acréscim o da regionalidade de um a form a m ais

expressiva quando são indicadas nas habilidades desse docum ento que sejam apresentados aos

educandos os principais povos indígenas que habitavam esse espaço antes da chegada

portuguesa e da ocupação jesu ítica, e, po r fim , quando orienta-se o conhecim ento dos principais

aspectos da R evolução F arroupilha (RIO G R A N D E D O SUL, 2018, p. 127).

N o quarto ano a B N C C se afasta da noção de “local” , entretanto o R C G , em bora

acom panhe a norm ativa nacional m antem ainda sutis conexões com o entorno quando na

unid ad e tem ática “ T ransform ações e p erm anências nas trajetórias dos grupos h um anos” aponta

enquanto u m a das habilidades a serem desenvolvidas a relação entre os tem pos locais com os

m arcos da h istória da hum anidade (R IO G R A N D E D O SUL, 2018, p. 131). A s h ab ilid ad es da

unid ad e tem ática seguinte “ C irculação de pessoas, produtos e culturas” tam bém tecem

conexões com o regional e o local, m ediante um esforço interpretativo do docente, apontando

para as trajetórias das distintas “ com unidades tradicionais que constituem a form ação do R io

G rande do Sul” (R IO G R A N D E D O SUL, 2018, p. 132). N a m esm a unidade, atrelada ao objeto

do conhecim ento “A s rotas terrestres e m arítim as e seus im pactos para a transform ação das

cidades e as transform ações do m eio natural” o docum ento estabelece em suas habilidades

pontes de articulação m ais nítidas entre as escalas tem p o e espaço, indicando o m ovim ento de

relacio n ar o entorno do educando a processos m ais am plos a p artir do cotidiano das cidades e

de suas conexões possíveis com seu passado e tam bém com outras localidades através das

diferentes form as de circulação de m ercadorias e pessoas (Idem ).

P ara o m esm o ano tam bém é destacado a im portância do conhecim ento da com posição

étnica do estado, assim com o, os processos m igratórios (forçados ou não) ocorridos na região

e a h erança cultural desses povos na form ação da cultura estadual. Sendo nesse aspecto um a

das habilidades a serem desenvolvidas “observar a presença ou não de im igrantes em sua cidade

ou região na atualidade, buscando conhecer sua cultura e os m otivos do seu m ovim ento

m igratório” (R IO G R A N D E D O SUL, 2018, p. 135).

N o quinto ano se tem a continuidade de discussão a respeito da questão m igratória e

dos povos originários na com posição étnica e cultural do estado, bem com o, a contribuição

216
destes nas m ais distintas esferas da vid a social. E as tem áticas se am pliam para q u estõ es éticas

do viver em sociedade de um a form a m ais geral. A ssim , é pensada a religião e suas distintas

m anifestações, a constituição dos poderes que regem o país, a ideia de cidadania e as diferentes

relações de poder ao longo da história. A o m esm o tem po, são apresentados conceitos e

prem issas básicas para o fazer h istórico com o a noção de tem po, po r exem plo. E a h istória local

volta a aparecer atrelada a ideia de patrim ônio, em u m a estreita relação com a preservação da

m em ória e do im aginário local. Q ue deve ser acionado enquanto fio condutor para a

com preensão da ideia de P atrim ônio H istórico Im aterial.

N o sexto ano a com preensão tem p o espaço se alargam por com pleto e as conexões com

o entorno dos educandos se apresentam apenas nas habilidades que se vo ltam para aspectos

éticos e históricos da cidadania e do direito. A ssim , a R C G aponta para a im portância de:

“ C onhecer os m ecanism os para a participação cidadã em sua com unidade, cidade e escola” ; e

tam bém de “viv en ciar e desenvolver atitudes cidadãs, relacionando a antiguidade clássica com

as p ráticas atuais na escola e na sociedade” (R IO G R A N D E D O SUL, 2018, p. 150).

P ara o sétim o ano quando a tem ática a ser abordada é a expansão portuguesa e

espanhola para a A m érica, o docum ento estabelece em suas habilidades conexões desse

processo global com as vivencias e resistências dos povos nativos da região, destacando os

conflitos de terras que dem arcaram as fronteiras sulinas. E, po r fim , indica a im portância de se

“ com preender as diferentes form as de organização social e econôm ica e as com posições étnicas

m iscigenadas, conform e as áreas ocupadas (região nordeste, sudeste e sul)” (R IO G R A N D E

D O SUL, 2018, p. 160). Sendo essa a referência m ais próxim a a um a abordagem local da

história.

U m a das habilidades previstas para o oitavo ano indica a necessidade de se “ analisar de

fo rm a crítica o legado da escravidão no B rasil e na sociedade local” (R IO G R A N D E D O SUL,

2018, p.171). E ntretanto não aprofunda o entendim ento do que seria essa perspectiva local, que

analisando o conjunto discursivo do docum ento pode-se in ferir que diz m uito m ais sobre um

caráter regional do que local. U m a vez que no docum ento esses conceitos são intim am ente

relacionados a u m a ideia de espaço geográfico. P o r fim , no nono ano quando se discute o

nascim ento do B rasil R epublicano o R C G propõe em u m a de suas h abilidades “ listar elem entos

da história local ou regional que perm itam relacionar com aspectos da R epública B rasileira no

período até 1954” (R IO G R A N D E D O SUL, 2018, p.175-176). Sendo essa a ú n ica referência

direta a u m a abordagem local.

A inda que para os anos finais esse docum ento não traga explicitam ente m uitas

referencias à abordagem histórica a partir de um viés local, alguns de seus tem as apresentados

217
abrem m argem para tais reflexões em sala de aula. É um exem plo disso os indicativos p ara o

sexto ano, pois m esm o que o objeto de conhecim ento “ o papel da m ulher na G récia e em R om a,

e no Im pério M ed iev al” seja transcendido para u m a perspectiva m ais am pliada nas habilidades

do R C G , o docum ento se lim ita apenas indicar conexões com a realidade atual na luta pelos

seus direitos sem fazer m enção aos problem as cotidianos enfrentados pelas m ulheres nas

com unidades nas quais os educandos se inserem . O utro exem plo que deve ser m encionado são

as discussões sobre etinicidade e heranças culturais de outros povos em n o ssa cultura que estão

presentes no sétim o ano, tem ática esta que tam bém abre m argem para um espiral de discussões

que p odem ocorrer, inclusive, a partir de um a perspectiva local. P o r fim a tem ática das ditaduras

no B rasil, que são objetos de conhecim ento do nono ano, podem te r m uitas de suas nuances

am pliadas a partir de um a ótica analítica que enfoque as vivências e resistências dos diferentes

atores nos diversos espaços do território gaúcho.

D ian te desses exem plos, que não são os únicos tem as possíveis de serem abordados

por esse viés, devem os ressaltar que os currículos escolares em bora tenham po r base tais

norm ativas federais e estaduais devem ser vivos e contem plar às distintas realidades d as

com unidades escolares ao longo do País. Sendo assim , po r que não nos atentarm os para a

h istória das N O S S A S m ulheres, quais são os problem as enfrentados po r elas em nossas cidades

e bairros? P orque não olharm os para a nossa com posição étnica enquanto bairro, escola,

com unidade e b u scar com preender as nuances dessa ancestralidade assim com o os problem as

que interferem diretam ente no cotidiano dessas pessoas hoje, e consequentem ente no nosso

enquanto sociedade, quando o assunto é intolerância religiosa ou racism o? E a partir daqui

devem os p ensar qual o lugar dos tem as sensíveis ou controversos em nossas salas de aula?

Q ual a im portância atribuída para se problem atizar os problem as que afetaram diretam ente o

nosso entorno im ediato? E m que m om ento estam os estabelecendo pontes entre o passo

apresentado no livro didático e a realidade prática e cotidiana de nossos educandos?

D iante desses questionam entos as linhas que aqui se apresentam são m uito m ais

reflexões possíveis do que respostas prontas. A ssim , para refletirm o s a respeito dessas

inquietações devem os p artir do principio: O que afinal é um tem a sensível? C om o um tem a

sensível pode se relacio n ar com a história local? E qual pode ser a abrangência possível para o

conceito de local dentro dessa perspectiva?

Sabe-se que a problem ática de gênero, sexualidade, raça, m em órias difíceis, traum as

nacionais e tan tas outras têm se convertido em tem as “ espinhosos” no chão de nossas escolas.

Sendo esse um claro reflexo da sociedade que vivem os hoje e do m ovim ento de radicalização

política que vem sendo experienciado, e que foi agutizado com o G olpe de 2016. A ssim , diante

218
disso, com o abordar questões sensíveis/ vivas / traum áticas, sobretudo aquelas ligadas à

h istória do tem po presente que são objetos de tensões entre diferentes grupos, sem esbarrar em

generalizações, negacionism os ou vitim izações e sem chocar os educandos? O sociólogo

B enoit F alaize (2014), define um tem a de ensino enquanto vivo a p artir de dois fatores

principais, o prim eiro está relacionado à v ivacidade em to d a sociedade do tem a abordado,

especialm ente se esse está presente nas m ídias e é objeto de disputas e controvérsias. O segundo

está relacionado diretam ente a debates interiores à disciplina.

Se tom arm os o prim eiro aspecto apresentado po r Falaize e o transportarm os para a

realidade local tem os ainda m ais um “ agravante” a essa equação, que é a proxim idade entre os

envolvidos direta e indiretam ente com tais tem áticas. V am os to m a r com o exem plo para esse

raciocínio o período ditatorial brasileiro, e as viv en cias e experiências ocorridas durante esse

em um a cidade interiorana qualquer onde os atores daquele período, que estiveram de am bos

os lados, ainda vivem ou possuem descendentes diretos. Isso faz com que na m aioria dos casos

as m em órias desse passado sejam “incom odas” e objetos de disputas no cam po das relações

im ediatas. A ssim , se transportados esses debates para dentro de um a aula de história terem os

“um encontro com um passado vivo [que] consiste num m ovim ento de aprendizagem ética que

im plica u m a relação consigo m esm o” (PER E IR A ; SE FFN E R P, 2018. p. 17).

E ntretanto, conform e destacou V erena A lberti, “ o p roblem a dos tem as sensíveis é que

eles não são fáceis de tratar em sala de aula - aliás, em lugar nenhum ” , pois “ estam os no terreno

das m em órias em disputa, que tem na escola um dos seus palcos políticos talvez m ais

evidentes.” (A L B E R T I, 2014. s.p.). D ian te disso, se faz necessário que “ os professores e a

escola estejam dispostos a co rrer riscos. A lém disso, é preciso que professores e alunos tenham

tem p o e vontade para entender um assunto com plexo, para sair da facilidade do preto-e-branco

e entrar num a zona cinzenta.” (A LB ER T, 2014, s.p.).

P ara tanto, a autora aponta alguns cam inhos a serem percorridos pelos educadores com o:

uso de fontes atraentes e estim ulantes capazes de incentivar a reflexão crítica por parte dos

educandos e colocar em xeq u e ideias p ré-concebidas de lugares com uns; enfatizar a

diversidade de experiências diante da tem ática abordada nos perm itindo fazer frente a um a

ten d ên cia da h istoria oficial de hom ogeneizar os grupos e, tam bém , respeitar as vítim as de

situações lim ites e os educandos que tom am contato com esses tem as não sendo necessário

choca-los.

Portanto, com o apontado pelo sociólogo francês B enoit Falaize, se seguirm os a Paul

R icoeur, que atenta para a necessidade de um a “ju sta m em ória” , talvez seja pertinente e de

extrem a u rgência pensarm os em um a “ju sta pedagogia” da h istória v o ltad a para a construção

219
de “u m a história crítica sem subestim ar a força social da m em ória em jo g o , que possa ser fiel

ao passado sem renegar a verdade e ser fiel à verdade acadêm ica, sem retirar nad a da dignidade

das pessoas inseridas na história.” (FA LA IZ E, 2014. p. 250).

E p ara alcançar tal finalidade, o ensino de h istória a partir de um a persp ectiv a local pode

se configurar em um m étodo pedagógico potente ao despertar sensibilidades, em patias,

curiosidades e reforçar identidades e pertencim entos. E ntretanto vale destacarm os que o ensino

da h istória local encerrada em si acaba por esvaziar-se do seu potencial estratégico para a

form ação do pensam ento histórico nos educandos. R esidindo nesse ponto a im portância do

estabelecim ento de interconexão das vivências e experiências que circundam os estudantes

àquelas desenvolvidas em contextos m ais am plos. E, nessa perspectiva “ o estudo da h istória

local passa a ser concebido com o um a estratégia pedagógica capaz de viab ilizar a transposição

didática do saber histórico para o escolar” (LIM A , C A V A L C A N T E , 2018, p.3).

C olaboram para essa ideia de u m a b o a transposição didática argum entos de G asparotto

e Padrós que cham am nossa atenção para a necessidade de estabelecerm os pontes de conexão

entre passado e presente, visando m elhores resultados de apreensão dos processos históricos

por parte dos educandos. S egundo os autores,

A intenção de conectar passado e presente encontra paralelo com uma perspectiva


muito cara para muitos dos que se debatem com temas da História Recente,
particularmente envolvendo experiências traumáticas, que está implícita na
necessidade de estabelecer pontes entre gerações. Por um lado, aqueles que
vivenciaram e sofreram as consequências daquela experiência; por outro, as gerações
posteriores que, sem sabê-lo, são vítimas da ação residual indireta daquele processo
ou alvo direto dos efeitos do silêncio e das políticas de esquecimento e apagamento
projetadas sobre elas (GASPAROTTO; PADRÓS, 2010. p.183).

T endo em vista que a m em ória é um dos pilares b ásico s para a construção de identidades

individuais e coletivas, perm itindo que cada g eração esteja ligada às anteriores e futuras. A

aprendizagem do local pode ser apontada enquanto um dos m eios de solidificação desses

vínculos, a p artir do ensino form al. E ntretanto alguns cuidados devem ser tom ados: C irce

B itencourt, destaca que essa p rática de observação do entorno im ediato do educando ao ser

encarada enquanto ponto de partida para a aprendizagem histórica, não deve ser confundida

com u m a sim ples “ excursão escolar” . P ois a m esm a trata-se de “um m om ento específico de

aprendizagem m ais dinâm ica e significativa” (B IT E N C O U R T , 2009, p. 273), dado ao fato de

pro p iciar o trabalho com realidades m ais próxim as às experienciadas pelos educandos.

E stabelecendo assim , pontes que aproxim am tem poralidades e vivências, facilitando a

com preensão desses processos. U m a vez que, esta abordagem perm ite, tam bém , que o

220
p rofessor parta das histórias individuais e dos grupos, gerando um exercício de reflexão crítica

acerca da realidade social, o que possibilita a com preensão do entorno, in serindo-o em

contextos m ais am plos, identificando assim , passado e presente nos vários espaços de

convivência.

Tam bém é fundam ental que o professor possua um a base teórica e m etodológica
consistente, para não cair na m era reprodução ufanista desses passados. Sabe-se que há em muitos
casos um a séria dificuldade de se encontrar m aterial bibliográfico a respeito de algum as cidades,

sobretudo, devido à escasses de produções acadêm icas que versem sobre os interiores de nosso
país. E esse pode ser apontado enquanto um obstáculo que interfere negativam ente na prática

pedagógica. Outro aspecto relevante para essa problem ática é que ainda existe “um a forte

presença da ideologia dos grupos dom inantes tan to no currículo e program as escolares quanto

no livro didático que acaba influenciando as práticas de ensino” (LIM A, CA VA LCA NTE, 2018,

p-11)-
C avalcanti Ju n io r (2016) e Jelin (2002) nos cham am atenção para o fato de que as

im agens e narrativas apresentadas nos m ateriais didáticos e paradidáticos são perm eadas por

discursos de poder, e, nesse sentido, são escolhas, não sim ples representações da realidade.

A ssim , é a p artir da sistem ática repetição que determ inados discursos se im põem , e, desta

form a, ao vincularem m ajoritariam ente fatos e im agens referentes ao eixo R io - São P aulo os

livros didáticos funcionam enquanto um “ente m ultiplicador^’ (C A V A L C A N T I JU N IO R ,

2016) das relações de p o d er que silenciam a m ultiplicidade de passados, restringem

determ inados acontecim entos a determ inadas espacialidades e assim sonegam a biografia de

atores periféricos. E ssa sonegação da história da “gente comum ” tam bém pode estar presente, por

exemplo, nas cartilhas de divulgação turística das prefeituras que perm eadas por relações de poder
intentam transm itir um a história linear rumo ao progresso, m ítica e idealizada.
D iante dessa conjunção de fatores, comum ente o ensino do local acaba sendo pautado na
m era reprodução vazia de datas comem orativas, vultos históricos, festas cívicas e religiosas.
Aspectos que em sua m aioria enaltecem apenas a um a parcela da sociedade, um a elite branca e
abastada. A ssim ao representar o passado da cidade de um a m aneira idealizada, nossa prática é
despida de toda criticidade necessária para fazer com que os educandos se percebam no espaço,
reconheçam os problem as de ontem e hoje, as rupturas e perm anências que os circundam. Aspectos
fundam entais para que esses possam desde a mais tenra idade debater possíveis estratégias para

sanar os problem as que os afetam enquanto sociedade.

221
E ntretanto, nem só de problem as se faz nossa prática, existem para esses algum as

soluções possíveis. A s pesquisadoras H ild a Jaqueline Fraga e Jesianne P ereira D elfino,

pontuam que atualm ente são inúm eras as discussões no cam po do ensino que am pliam as:

possibilidades reflexivas a cerca do patrimônio cultural, na interpretação das cidades


para além dos seus traços urbanísticos, estéticos e contornos narrativos da história
oficial [...] ao tornarem a cidade um lócus privilegiado para aprendizagens baseadas
no exercício analítico de seus percursos históricos e memoriais (FRAGA; DELFINO,
2013. p. 163).

D iante do exposto até aqui, questionar-se a respeito de quais m em órias têm sido

esquecidas, quais experiências sociais foram silenciadas, que atores e pro tag o n istas foram

renegados ao “um bral do esquecim ento histórico” é um dos focos centrais dessa “reeducação

do olhar” a respeito da história local que aqui nos propom os a fazer. L evando então nossos

educandos a conhecerem outros espaços da m em ória das nossas cidades para além daqueles

vinculados a histó ria oficial destas.

N esse sentido, é im portante usufruir criticam ente dos diferentes espaços urbanos de
sociabilidade e convivência nos quais os educandos estão inseridos ou pelos quais passam
cotidianamente. N esse ponto, reside a problem ática das estátuas: quem são os indivíduos ali
retratados? Em que período viveram ? Que papel ocupavam na sociedade em questão? Essas e

outras questões são abordadas durante a oficina “N o banco dos réus as N O SSA S estátuas” ao

p ropor com o eixo central um “julgam ento” das estátuas pelas quais cotidianam ente passam os em

nossas cidades.
Tal atividade não se configura em um a “ receita de bolo” pronta e engessada, ela é apenas
um desfecho possível para colocarm os em prática todos os pontos que viem os refletindo até aqui.
Assim, m etodologicam ente, a atividade divide a turm a em três grupos, que irão com por as três
partes de um tribunal, acusação, defesa e júri. D ependendo do número de educandos acusação e
defesa poderão ser divididos em outros pequenos grupos. Estes deverão se aprofundar em questões
referentes a trajetória das personagens retratadas pelos m onumentos, por eles escolhidos com
m ediação do professor, e assim defender a perm anência ou retirada/ ressignificação destas estatuas
do espaço público.
Esse exercício visa fom entar o debate e a reflexão crítica entre os educandos de uma

m aneira que eles se apropriem ativam ente da construção do saber. A ssim , não existe certo ou

errado (logicam ente que dentro do que é eticam ente perm itido), a ideia é que eles “ponham a

cabeça p ara funcionar” e que possam com preender o passado não com o algo distante de si, m as

222
sim com o algo que nos to ca e nos form a com o sociedade, estabelecendo conexões do entorno

com contextos m ais am plos.

C o n s id e ra ç õ e s fin a is

A creditam os que o ensino de h istória enquanto alicerce à form ação de seres críticos e

autônom os não deve estar apoiado apenas no u so de m étodos tradicionais, contidos em livros

e teses. E le deve se expandir a ponto de apreender a dim ensão hum ana dos processos. A ssim ,

com intuito de gerar u m a aprendizagem m ais significativa dos conceitos trabalhados em aula,

a p artir de um a educação crítica em acordo com as prem issas básicas de respeito à diversidade

e a pluralidade de nossa sociedade, defendem os a p ersp ectiv a de que partindo de nosso entorno

podem os chegar à com preensão de processos m ais am plos, e que se a h istória possuir um

sentido prático e próxim o a N O S S A realidade ela deixará de ser apenas m ais u m a disciplina, e

se converterá em m ais um elem ento de auxilio a construção de um a consciência cidadã.

R e fe rê n c ia s :

A L B E R T I, V erena. O p ro fe s s o r de h is tó r ia e o e n sin o de q u e stõ e s sensíveis e


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224
UMA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO A PARTIR DOS PERIÓDICOS

D A Y A N E C R IS T IN A G U A R N IE R I
D outo ran d a em E ducação
U niversidade E stadual de L ondrina, L o ndrina - Paraná/B rasil

A im prensa possuía suas tendências políticas, interesses econôm icos e sociais que se

agregavam a sua form a de relato. Sendo assim , essa parcialidade não é um em pecilho para a

pesquisa vigente, m as corrobora para o processo de com preensão da com plexidade do

pensam ento e do com portam ento educacional.

E x istem pesquisas na área da educação que efetivam um m ovim ento de aproxim ação e

identificação com o cam po da história, que po r sua vez, se abre para os tem as educacionais

(W A R D E , 2018, p. 134). A o b u scar novos objetos e problem as, a “história cu ltu ral120 abriu

para os educadores um m anancial inesgotável de novas fontes” (W A R D E , 2018, p. 137).

N a g le 121 (2018) expõe que na década de 1960 ainda era recente o interesse em estudar

a educação brasileira, por m eio, da perspectiva histórica. M as a partir da década de 1970, com

a institucionalização dos program as de pós-graduação as pesquisas em educação e histó ria da

educação adquirem im pulso (SA V IA N I, 2008). A ssim , logo surgem inúm eras pesquisas que
privilegiam a história geral da e d u cação 122.

A H istó ria N o v a - novos objetos, novos problem as e novas abordagens - atinge a área

da H istória da E d ucação que se renova, principalm ente a partir da década de 1990. D e acordo

com A raújo (2002) a “H istó ria da E ducação deverá ser com preendida com o o resgate do m odo

pelo qual os hom ens produziram sua existência, seja ensinando ou aprendendo aquilo que

circula na cultura” , portanto, educar-se é aprender o que circula no in terio r de um dado grupo

hum ano.

O cam po de conhecim ento da H istó ria da E d ucação se expande, po r m eio, de

pesquisadores que, além de se dedicarem aos seus program as de pós-graduação se em penham

em dissem inarem suas pesquisas em revistas acadêm icas e fo m en tar estudos em grupos de

pesquisas que tam bém difundem p u b licaçõ es123 para fortalecer essa área de estudo, exem plo

120“O âmbito da História Cultural relaciona-se a diálogos interdisciplinares mais específicos, envolvendo as
relações da História com outros campos de saber”. (BARROS, 2011).
121 Parte da tese Nagle (2018, p.166) analisa o entusiasmo pela educação na década de 1920, fruto das reformas
do Governo Federal e dos Governos Estaduais nos vários graus e modalidades de ensino.
122Romanelli (1978), Ribeiro (1978), Xavier, Ribeiro e Noronha (1994).
123 Dentre os trabalhos podemos citar o de Carvalho (1989; 1995; 2000), Saviani (1983;2005), Monarcha (1993;
1996; 2007), Nunes (1995; 1996) e Warde (1984; 1990; 1998. Os artigos de Nunes e Carvalho (1991), Nunes

225
disso são: o Instituto N acional de P esquisas E ducacionais (IN EP), a A ssociação N acional de

P ós-graduação e P esq u isa em E ducação (A N PE d), a A ssociação Sul-R io-G randense de

P esquisadores em H istória da E ducação (A SPH E), o G rupo de E studos e P esquisas H istória,

Sociedade e E ducação no B rasil (H IST E D B R ) etc.

A im p o rtân cia da fonte periódica no cam po da H istó ria da E d ucação foi destacada por

F aria F ilho (2002), que rev ela sua potencialidade de com preender as práticas de estratégias

educativas, diante da “ construção de consensos, de propaganda política e religiosa, de produção

de novas sensibilidades, de m aneiras e costum es” (F A R IA FIL H O , 2002, p.134).

A pesar de saber que o uso da im p ren sa não pedagógicas, não é algo novo para o estudo

da h istó ria da educação, os periódicos não educacional, são fontes que tem contribuído para

am pliar a p esquisa histórico-educacional, dando-lhe contornos e vitalidade, exem plo disso, são

os estudos que abordam a grande im prensa com o a tese de C astro (1997); a im prensa operária

trab alh o publicado por G iglio (1995); a im prensa alternativa em pesquisa apresentada por

R am os (2016) e, principalm ente, a grande quantidade de estudos com im prensa regional:

Sim ões (2005), M onteiro (2011), T hom é (2018) e Tardelli F ilho (2019).

D e acordo com V ieira (2007), a partir de 1980, o cam po da história da educação se

consolida, por m eio, de dissertações e teses e em 1990 passa a problem atizar a historiografia

educacional e suas fontes, atualm ente ela sofre a am pliação tem ática tem poral e docum ental.

A ssim o processo de ressignificação do conhecim ento está em pleno curso na h istória da

educação, o que coloca a reflexão sobre a fonte e suas potencialidades.

A obra, História da educação pela imprensa, organizado po r S chelbauer & A raújo,

(2007, p. 5, 6) ressalta a im portância de u tilizar os periódicos com o fontes e objetos de estudos:

“ a educação é um a prática social que se estrutura a p artir do que é veiculado pela cultura, a

im prensa tem seu lugar na educação dos hom ens em sociedade” .

P o r sua vez, M agaldi e X avier (2008), apontam que a fonte periódica ganha destaque

na h istória da educação, por p erm itir acessar u m a sociedade brasileira m ultifacetada, pautada

por problem as sociais e po r políticas educacionais. A crescente representatividade da fonte, é

fruto da am pla variedade de veículos existentes no país desde o século XIX.

(1991) e Catam e Faria Filho (2002) elaborados a pedido da ANPEd. Os textos de Nunes (1998), Alves (1998),
Greive e Pintassilgo (2000), Xavier (2001) e Araújo (2006), foram produzidos para o Congressos Brasileiros e
Luso-brasileiros de História da Educação. Os artigos de Faria Filho e Vidal (2003), escrito a pedido da Revista
Brasileira de História; os textos de Saviani, Sanfelice e Lombardi (1998; 2001), elaborados para o Grupo de
Pesquisa HISTEDBR. A obra organizada por Araújo, Basto e Gatti Júnior (2002) é resultado das atividades do
núcleo de estudos e pesquisas em história e historiografia da educação da faculdade de educação da UFU,
vinculado ao (HISTEDBR) Grupo de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil.

226
A palavra escrita que percorre a história, pode ser resgatada no futuro e u tilizada com o

docum entação na construção de interpretações históricas. M esm o com o direcionam ento

ideológico, cabe ao historiador utilizá-lo com o fonte para a recuperação de um determ inado

período histórico, aguçando o seu olhar crítico para os fatores que influenciaram a sua

construção (G O N Ç A L V E S N E T O , p. 2002).

T ransform ar o p eriódico em fonte para h istória da educação significa com preendê-los

com o um objeto de pesquisa contextualizado na história, e que assim com o os dem ais

indivíduos que integram a sociedade tinham seus interesses particulares e coletivos que

perm eavam as páginas im pressas. E ssa fonte de acordo com C am pos (2012, p. 67) é “u m a das

m aneiras m ais eficientes utilizadas pelos h istoriadores da educação que estudam os séculos

X IX /X X , tem p o em que os im pressos ocupavam um processo civilizador no B rasil” .

A utilização da im prensa com o fonte e objeto da pesquisa histórico-educacional, é para

P asquini e T oledo (2014, p. 265) u m a contribuição, tanto p a ra a análise da realidade de um a

época, quanto para a utilização de objetos e pesquisas aparentem ente desvinculados com o

educação e im prensa, assim , essa ju n ç ã o perm ite a “ análise de diferentes grupos representantes

de determ inadas forças de poder, sejam elas expressas nas questões políticas, religiosas ou

educacionais” .

A im prensa contribui para h istoricizar o pensam ento educacional, pois tendo o

conhecim ento com o um instrum ento de força m aterial o socializa. Sua ação vai além da

educação form al, pois reflete a própria contextualização da educação, revelando a

m ultiplicidade própria do processo, perm itindo a análise das relações construídas socialm ente.

“ A im prensa tornou-se objeto de referência para a apreensão e com preensão da h istória da

educação. P o r ela em ergem novas interpretações” (P A S Q U IN I & T O L E D O , 2014, p. 266).

C o n s id e ra ç õ e s fin ais

N ão se pode m encionar, a influência nos padrões de com portam ento, no exercício de

controle e na form ação das em oções, sem autom aticam ente pensar nos m eios de com unicação,

pois atuam a p artir das inform ações que circulam na sociedade e m obilizam os sentim entos e

ações que m ovim entam a história. A pesar de selecionarem os eventos sociais que estarão em

evidência, fica registrado em sua linguagem o diálogo com os diversos seguim entos sociais e

processo social e cultural, no qual, estão inseridos. A ssim , eles tam bém são atingidos pelos

padrões de com portam ento que refletem . D essa form a, ao u tilizar os periódicos com o fonte

227
para analisar as percepções sobre o âm bito educacional se observa nele o reverberar das tensões

sociais, esse conteúdo das práticas cotidianas se transform a em fonte p ara o trabalho do

histo riad o r da educação, que precisa articular seu objetivo de pesquisa aos m ovim entos sociais

e conflitos gerados na luta pelo controle político, econôm ico e cultural.

R E F E R Ê N C IA S

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230
MIGRAÇÃO E MEMÓRIAS DE NORDESTINOS EM VICENTINA:
UMA LEITURA A PARTIR DA MIGRAÇÃO CEARENSE E
PERNAMBUCANA.

D O U G L A S M A R T IN S L IM A D E M O U R A 124

N o presente artigo propom os com base no estudo de caso que estou realizando no

P P G H da U F G D m odalidade de m estrado, que tem com o objeto de estudo a M em ória de

m igrantes nordestinos no m unicípio de V icentina interior do estado de M ato G rosso do Sul,

um projeto que está em andam ento que tem com o m etodologia a h istória oral e busca através

de entrevistas com m igrantes, com preender m ais que o p ro cesso de m igração com o um todo,

m as trazer para discussão tem as novos com o as subjetividades e em otividades que perpassam

os deslocam entos populacionais, com a m etodologia de h istória oral de vida, os sujeitos (as)

são o centro do nosso projeto e de nossa pesquisa. N esse sentido a m em ória aparece com o um a

expressão da histó ria oral de vid a. Portanto, suas m em órias são individuais, m as tam bém

coletivas, tendo em vista que falam de si, m as tam bém de um a h istória partilhada, sobre a égide

da com unidade nordestina, em especial da com unidade nordestina, em especial nesse estudo

de cearenses e pernam bucanos.

Sendo assim o objetivo deste trabalho será analisar a m igração nordestina e suas

m em órias, v erificando que na citada localidade a com unidade nordestina deixou legados para

as m ais diversas gerações e possui influencias na identidade das pessoas, bem com o para a

construção desse lugar que v iria m ais tarde se to rn ar o m unicípio de V icentina. C om preende a

análise da trajetória de hom ens e m ulheres que chegaram ao m unicípio de V icentina/M S, a

p artir da investigação da m em ória oral desses sujeitos, entender as form as de trabalho, as

relações fam iliares, as experiências do que é ser m igrante nordestino, e da influência da cultura

n o rdestina no m unicípio de V icentina/M S, ao n arrar suas histórias, retratam a fala de um a

h istória que em escala m aior abrange o território nacional, que é a m igração de nordestinos

para to d o s os cantos deste país. P ortanto, suas m em órias são individuais, m as tam bém

coletivas, tendo em vista que falam de si, m as tam bém de um a história partilhada, sobre a égide

da com unidade nordestina, em especial da com unidade nordestina, em especial nesse estudo

de cearenses e pernam bucanos.

124 Graduado em Geografia pela UFGD (2013). Mestrando em História pelo PPGH da UFGD.

231
A m igração nordestina para o Sudeste, bem com o para o C entro-O este foi intensa,

devido vários fatores, talvez os m aiores sejam a b u sca de um a m elhor vida social e a fuga da

seca e da fom e, que m uitos dos nossos entrevistados relataram no decorrer do projeto. O

m unicípio de V icentina po r fazer parte da C A N D (C olônia A gríco la N acional da G rande

D o u rad o s) foi povoado por u m a diversidade de povos, m esm o estando num a região de forte

presença indígena que é a região de D ourados, pelos relatos e estudos já realizados, o território

onde se encontra o m unicípio de V icentina era um territó rio despovoado, se resum indo a p oeira

e m ata, e neste aspecto entra a figura do m igrante, com o sujeito que iniciou o processo de

povoam ento daquela m ancha territorial, m esm o assim não podem os atribuir som ente a questão

da seca a essa m igração. A o ouvir as histórias de nossos colaboradores, entendem os que outras

questões tam bém influenciaram nesse processo e que a seca e a fom e poderiam ser um

pream bulo, m as que a m igração é um processo m ais com plexo. D estaco que no decorrer do

projeto, a m igração fam iliar se destacou, com a vinda em conjunto com outros fam iliares.

Sobre o processo de (i)m igração, (M E Y H E , 2019, pg. 302):

Antes de tudo, é necessário definir este campo e este lugar chamado imigração, bem
como as pessoas envolvidas nesta jornada. Sujeitos em trânsito, diaspóricos,
deslocados, dispersos, exilados, retornados, pendulários, apátridas, repatriados,
refugiados têm sido conceitos neófitos para se juntar aos já tradicionais conceitos de
migrações, imigrações e emigrações. Da mesma forma, às razões mais comumente
apontadas para estes movimentos populacionais, sejam as questões econômicas, as
razões pessoais, os fatores de repúdio e de atração, juntam-se as explicações
decorrentes de conflitos civis, políticos, étnico-religiosos, conflitos armados,
violência generalizada e violação massiva dos direitos humanos, e mesmo de caráter
ambiental como são entendidas as questões relacionadas à fome, à pobreza e aos
desastres naturais. O que fica evidente é que estudar as imigrações no contexto atual
é tratar do fenômeno numa complexidade que está além da mudança de uma região
para outra e numa perspectiva diferente dos movimentos migratórios ditos históricos
ou tradicionais como os ocorridos em grande escala entre o final do século XIX e
meados do século XX.

A s histórias dos lugares, as paisagens, a influência da religiosidade, algo que está

presente ainda no nosso cotidiano e não precisam os ser “n o rtista s125” p ara com preender que as

relações sociais são pautadas tam bém pela religiosidade, a p resen ça de figuras lendárias

im bricadas de m uitas representações, podem os citar L a m p iã o 126, herói ou bandido, vários

autores trabalharam sobre tal figura, que é algo recorrente na m em ória dos m igrantes

nordestinos... ah, m eu avô conheceu L am pião... ah, o bando de cangaceiros... R ecorrentem ente

nos deparam os no decorrer das entrevistas com tais reflexões, lem branças resultantes de

125 Forma carinhosa como o Nordestino é chamado.


126 Líder do movimento chamado de cangaço, ocorrido no sertão nordestino no fim do século XIX e início do
século XX.

232
m em órias individuais com o tam bém coletivas, de perspectivas im aginárias em m uitas vezes,

de tradições e costum es que são passados de geração a geração. A s festas ju n in a s fam iliares e

da com unidade são um grande exem plo de tradição inventada e transm itida de geração para

geração, além de m uitas receitas culinárias, com o a rapadura, o cuscuz, o b aião de dois, o

acarajé, com idas tradicionais do N ordeste. A m úsica tam bém tem m uita influência,

principalm ente através do forró, que foi popularizado po r nom es com o Luiz G onzaga,

D om inguinhos e Sivuca, e que os nordestinos de todo o país adm iram , além de cantar sobre o

cotidiano do nordeste, eles divulgam a cultura de tal região para todo o país e o m undo.

A histó ria oral é um processo im portante nos estudos m igratórios, pois as entrevistas

orais p erm item o acesso a um a fonte que m uitas vezes não u tilizada nas consideradas as “fontes

oficiais” , com o os livros, os sites oficiais das prefeituras, os m useus, entre outras fontes, que

trabalham com história. A h istória oral perm ite u m a m aior subjetividade no processo, nas falas,

em entender o processo e ver o lado do outro, contado por ele próprio, bem com o a

possibilidade das em oções fluírem nas falas e nos gestos.

O processo de colonização da E ra V argas, E stado N o v o 127, iniciou-se a p artir da

cham ada M arch a para O este, iniciada no fim dos anos 30, e que se intensificou no início dos

anos 40, V argas tentou realizar a integração nacional com a ocupação dos cham ados “vazios

dem ográficos” e ao m esm o tem po V argas buscou im plem entar um sentim ento nacionalista ao

povo brasileiro, e a inserção e valorização da figura indígena, processo iniciado j á em 1934

com a instituição do D ia do índio, m ais a frente na década de 1940, V argas foi o prim eiro

presidente a v isitar u m a aldeia indígena, na Ilha do B ananal, ao m esm o tem po em que parte de

integrantes do seu governo consideravam o índio de form a hom ogeneizada, ou seja, todos os

índios são iguais, e tam bém tu telan d o o índio, considerando serem incapazes de seu próprio

destino frente a sociedade.

N esse am biente de alianças e desavenças que V argas com andava a sociedade, foi

pensado e planejado a M arch a para O este, regiões com o N o rte e C entro-O este foram as m ais

im pactadas com tal projeto, e a região da G rande D ourados está inserida nesse processo, que

trouxe u m a grande leva de m igrantes, gaúchos, paulistas, catarinenses, m ineiros, jap o n e se s e

claro, nordestinos. N esse aspecto, a presença nordestina se intensificou a p artir da M archa para

O este, em b u sca de um a nova p ersp ectiv a de vida, prom essas de novas oportunidades, com

terras “ férteis” e produtivas.

127 Período que durou de 1937 a 1945, Vargas deu um golpe de estado e permaneceu no poder durante tal período.

233
V argas preocupou-se nesse processo de interiorização que j á era um a antiga

reivindicação do m ovim ento tenentista, que via um in terio r m eio “ escanteado” , na qual o

E stad o brasileiro não olhava e assistia tal população, então V argas com preendendo a dem anda,

ju n ta n d o com a ideia da política de dinam ização da econom ia principalm ente da econom ia

interna, realiza esse processo de colonização, pensando territorialm ente na ocupação e defesa

de áreas vazias, bem com o na dinam ização do m ercado interno para aquecim ento da econom ia

brasileira, que havia sofrido m uito com a C rise de 1929 e a derrocada da econom ia cafeeira.

A s m edidas de nacionalizar e colonizar foram parte da form a encontrada de b arrar o

latifúndio e o poder exercido por m eio da C om panhia M ate L aranjeira, que dom inava

politicam ente o sul de M ato G rosso, p o d e r esse exercido, desde o fim da G u erra contra o

P araguai, em que o B rasil anexou parte do território que estam os discutindo em nossa pesquisa.

Sobre a C om panhia M ate L aranjeira, (N A G LIS, 2014, pg. 29):

A Companhia Mate é referência pelo fato de ter exercido não somente poder
econômico e político, mas, sobretudo, pela grande concentração de terras devolutas
sob seu domínio. Assim, o sul do Estado de Mato Grosso, desde o período pós-Guerra
do Paraguai, ficou sob o virtual monopólio econômico da Companhia Mate Laranjeira
por meio da exploração da erva-mate nativa, havendo grande concentração de terras.

O utro aspecto é que a M ate L aranjeira ocupava m ais m ão de obra de paraguaios, o

que significava que além de ocupar um vasto espaço territorial e lucros m uito grandes, gerava

em prego e renda para a população paraguaia, o que ia contra a ideia nacionalista de V argas, de

dinam izar a econom ia e integrar o território com a ocupação de brasileiros, reforçando a ideia

da identidade nacional brasileira.

N esse processo de relações entre diversos atores políticos e econôm icos, a C A N D

surge com o política integracionista e de identidade nacional. A inda sobre o processo de

colonização, O L IV E IR A (2013):

Os lotes eram doados a cidadãos brasileiros, maiores de 18 anos, reconhecidamente


pobres e aptos aos trabalhos agrícolas, que se comprometessem a morar nos lotes
rurais. A preferência era dada para as famílias com maior número de filhos. Os
agricultores, além da terra, receberam outros benefícios. Os lotes, rurais ou urbanos,
não poderiam ser vendidos, hipotecados, alugados, permutados, alienados ou
transferidos, antes da expedição do título definitivo de posse. Colonos imigrantes
estrangeiros poderiam, excepcionalmente, ser aquinhoados, quando os seus
conhecimentos especiais agrícolas servissem como exemplo [...] Seriam excluídos
dos lotes os colonos que desvalorizassem a terra com excessivo desmatamento, ou
não seguissem os critérios estabelecidos no interior do projeto. Cada agricultor era
responsável pelo zelo da limpeza de vales, valetas, além de contribuir para
conservação de estradas e caminhos mais próximos. Os títulos definitivos seriam
expedidos pela Divisão de Terras e Colonização, com dados de individualização e
assinados pelo Presidente da República (OLIVEIRA, 2013, p. 24-25).

234
N esse contexto, V icentina com o núcleo populacional inicia sua form ação, no ano de

1951, o senhor M anoel N on ato (in memorian) m igrante n ascido em A ssaré/C E , havia chegado

em V icentina, conform e relato de fam iliares e de colaboradores da pesquisa. N ão foi possível

entrevistar ele devido à idade e ao estado de saúde, e no decorrer da pesquisa o m esm o

com pletou 100 anos de idade e posteriorm ente acabou falecendo.

A inda sobre a m em ória e as recordações de V argas, se fazem presente nas entrevistas

com nossos colaboradores. O historiador R O U S S O trab alh a esse conceito:

A memória, para prolongar essa definição lapidar, é uma reconstrução psíquica e


intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um passado
que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num
contexto familiar, social, nacional (ROUSSO, 2000, p. 94).

A m em ória varguista é sem pre re(vista) por m uitos historiadores e no nosso caso por

m uitos colaboradores, quando alguns colaboradores o classificam com o “hom em de v e rd a d e ”

em suas palavras, bem com o quando em m eio a entrevista observam os a im agem de V argas

em sua estante, m ostra a representação da figura de V argas não só para ele, m as algo que

coletivam ente atinge a um a am pla gam a de fam iliares, vizinhos, entre outros sujeitos.

A inda sobre a m em ória, H A L B W A C H S defende:

Toda a arte do orador consiste talvez em dar àqueles que ouvem a ilusão de que as
convicções e os sentimentos que ele desperta neles não lhes foram sugeridas de fora,
que eles nasceram deles mesmos, que ele somente adivinhou o que se elaborava no
segredo de suas consciências e não lhes emprestou mais que sua voz (HALBWACHS,
1990, p. 47).

D iante dessa perspectiva de analisar a cidade de V icentina, a p artir da m igração bem

com o de suas im bricações históricas, consideram os que tal análise depende do conhecim ento

da trajetória e experiência social dos m igrantes nordestinos, e de com o esses m igrantes se

articulam em suas p ráticas com a sociedade local, nas igrejas, escolas, centros culturais, e ainda,

com o a cidade é pensada pelo pesquisador enquanto objeto de pesquisa, o que vai ao encontro

das ideias defendidas po r (SA M U E L , 1989, p. 220):

A história local requer um tipo de conhecimento diferente daquele focalizado no alto


nível de desenvolvimento nacional e dá ao pesquisador uma ideia muito mais
imediata do passado. Ele a encontra dobrando a esquina e descendo a rua. Ele pode
ouvir os seus ecos no mercado, ler o seu grafite nas paredes, seguir suas pegadas nos
campos.

235
C ada local possui suas idiossincrasias, porém , a cultura com o algo m utável e em

constante transform ação, se inventa e se reinventa dentro e fora das m últiplas sociedades,

influenciando cada local de um a form a, nesse contexto a cultura da com unidade nordestina, em

especial a com unidade cearense e pernam bucana, trouxe consigo diversos fatos a serem

considerados, as estórias do sertão, as lendas urbanas, a religião, a m úsica, as poesias, as

com idas tradicionais, traços culturais que se entrelaçam com outras realidades, de outros

m igrantes, japoneses, paulistas, m ineiros, sulistas e das populações originais com o os

indígenas, através das relações entre as diversas culturas citadas, podem os com preender o

processo da criação e da form ação do m unicípio de V icentina.

A com unidade nordestina possui u m a riqueza pujante e suas m em órias estão

presentes, não só nos antepassados, bem com o nos descendentes que dão continuidade aos

costum es de seus prim órdios, bem com o sua influência é de extrem a proem inência, tendo em

vista os espaços sociais ocupados pelos nordestinos, desde o início do povoam ento da região.

C om os parâm etros de um projeto em histó ria oral, a m em ória de expressão oral a partir

desta m anifestação da m em ória de integrantes da com unidade nordestina em especial de

m igrantes oriundos do C eará e do Pernam buco, é utilizada para entender com o essa m em ória

influencia diretam ente nas tradições e costum es da com unidade local, e quais lem branças,

traum as, recordações, sentim entos essa m em ória traz consigo. A esse respeito, retorno ao

pensam ento de (BO SI, 1994, pg. 39):

A memória é um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento.


Frequentemente, as mais vivas recordações afloravam depois da entrevista, na hora
do cafezinho, na escada, no jardim, ou na despedida no portão. Muitas passagens não
foram registradas, foram contadas em confiança, como confidências. Continuando a
escutar ouviriamos outro tanto e ainda mais. Lembrança puxa lembrança e seria
preciso um escutador infinito.

A p artir da rem em oração de hom ens e m ulheres e do cruzam ento de trajetórias de

vidas, distintas e plurais, que se encontraram no m unicípio de V icentina/M S, podem os

com preender que o processo m igratório em sua quase totalidade foi influenciado por um a

decisão conjunta, que envolve laços parentais, há sim a m igração individual, m as essa é m ais

difícil, ela pode ocorrer em casos traum áticos, de revolta, m as a grande m aioria dos casos

m igratórios são u m a decisão que é influenciada pelos pais, pelo casal, que b u sc a novos

horizontes em suas vidas. C om esse trab alh o com a com unidade de destino nordestina, o

entendim ento de com o as m em órias são cíclicas é m uito instigante, o aqui e o lá, as recordações

da terra natal, as recordações da paisagem de quando chegaram , aos que puderam reto rn ar a

236
terra natal, as lem branças de quando retornaram e as novas paisagens que lá encontraram

sem pre estão presentes, são m em órias que seletivam m om entos seja pelo am or ou pela dor,

seja pelo esquecim ento e a am nesia de outros m om entos, sem pre tentam organizar suas falas,

porém , o sentim ento de alegria, tristeza, angustias, m uitas vezes estão presentes não som ente

nas falas, m as tam bém nos gestos de cada colaborador/a.

C om respeito a história oral de vida, (SE A W R IG H T , pg. 64, 2020):

História oral de vida, portanto, apoia-se na memória dos emitentes e obedece a


comandos derivados de decisões pessoais - daí o nome “história oral de vida” - e
versa sobre aspectos selecionados da experiência dos colaboradores que decidem as
soluções de suas narrativas; tudo é feito quando os interlocutores escolhem passados
e prescindem lembranças ao relega-las às margens da memória por meio do
esquecimento.

M ais que u m a h istória da m igração nordestina, nosso objetivo é valo rizar a figura do

m igrante nordestino, dos hom ens e das m ulheres, valorizando sua história de vida,

evidentem ente, não rom antizando, m as fazendo análises e desdobram entos que trazem consigo

os im pactos históricos das m igrações em suas vidas e de suas fam ílias, bem com o das

com unidades que passaram a fazer parte no decorrer de suas trajetórias de vida, trajetórias essas

que se encontraram no m unicípio de V icentina, com o os vai e vens da m em ória, as trajetórias

se entrecruzam e entrelaçam na m edida que as relações são construídas socialm ente em um

dado tem p o histórico e um determ inado lugar. A cultura nordestina se fez e ainda se faz

presente, basta andar alguns passos para encontrar alguém que seja descendente de nordestinos,

alguns com m ais orgulho outro com m ais pudor, porém , os laços são dados, as em oções são

postas e as vidas são reescritas, pelo encontro de m uitos povos, entre eles, os nordestinos que

m antem sua estreita relação com o m unicípio de V icentina/M S.

R E F E R Ê N C IA S B IB L IO G R Á F IC A S

B O SI, E cléa. M em ória e sociedade: lem branças de velhos. São Paulo: C om panhia das Letras,
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237
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219-242. V. 9, n.° 19, set. 1989 / fev. 1990.

238
RELAÇÃO TRABALHISTA NA ATIVIDADE DE PASTOREIO NO
PANTANAL, FINAL SÉCULO XIX E PRIMEIRAS DÉCADAS DE XX

E N R IQ U E D U A R T E R O M E R O 128
A L E X A N D R E D E S O U Z A C O R R E A 129

R e su m o : O principal objetivo deste artigo é analisar as relações de trabalho existentes na


atividade pecuária pantaneira nos finais do século X IX e prim eiras décadas do XX. N o B rasil,
a escravidão foi abolida form alm ente em 1888 e isso consistiu num m arco para M ato Grosso.
N a atividade pastoril, j á havia diversos regim es de m ão -d e-o b ra durante a v igência da
escravatura e, com a abolição, continuaram sem m odificação radical. O lim ite tem poral
estabelecido pelo Im pério funciona com o parâm etro para ser levado em conta no P antanal, m as
nem todos cum priram essa lei, porque a escravidão continuava após a prom ulgação da “Lei
Á u rea” . N a “lida do gado” o regim e com pensatório ao trab alh ad o r acontece das m ais variadas
form as. A p eriodicidade de recebim entos por parte da m ão-de-obra assalariada em nada se
assem elha aos praticados na indústria, no com ércio ou outra atividade econôm ica, na qual
rem uneração era basicam ente m ensal. O s em pregados, eram diaristas ou m ensalistas, m as não
recebiam m ensalm ente, e sim quando necessitavam . P ara o seu controle o fazendeiro dispunha
de um livro de C ontas C orrentes, em que cada vaqueiro tem sua conta especial onde estava
registrado o D eve e o H aver das suas despesas e créditos. A relação com os p roprietários era,
de form a geral, caracterizada po r laços de fidelidades pessoais, am pliadas ao longo dos anos
por interm édio de relações de com padrio construídas com o extensão da confiança adquirida,
após longo período de trabalho nas fazendas. Sobre a apro p riação de gado po r parte dos
em pregados outros autores registraram essa ocorrência, e alguns m udaram m esm o de classe
social se levarm os em conta a divisão de classes. P ara a elaboração deste artigo reco rreu -se a
docum entos oficiais tanto em C orum bá com o em C uiabá, assim com o os R elatórios dos
P residente do E stado, assim com o outras fontes, os considerados de fontes secundárias.

P a la v ra s -c h a v e : P asto reio ; R elação de trab alh o ; M ão de obra escrava, indígena e livre.

A b s tra c t

T he m ain objective o f th is article is to analyze the lab o r relations existing in the Pantanal
livestock activity in the late 19th century and early decades o f the 20th. In B razil, slavery w as
form ally abolished in 1888 and this w as a m ilestone for M ato G rosso. In pastoral activity, there
w ere already several lab o r regim es during the period o f slavery and, w ith the abolition, they
continued w ith o u t radical change. T he tim e lim it established by the E m pire w orks as a
p aram eter to be taken into account in the P antanal, but n ot everyone com plied w ith this law,
b ecau se slavery continued after the enactm ent o f the “Lei Á urea” . In the “ cattle handling” , the
w orker's com pensatory regim e takes place in the m ost varied ways. T he frequency o f receipts
by salaried labor is nothing like those practiced in industry, com m erce or o ther econom ic
activities, in w hich rem uneration w as basically m onthly. E m ployees w ere day laborers or
m onthly w orkers, b u t they w ere not paid m onthly, b u t w hen they needed to. For his control,

128 Doutor. Professor do Curso de Ciências Econômicas da FACE-UFGD (Faculdade de Administração, Ciências
Contábeis e Economia da Universidade Federal da Grande Dourados). E-mail: enriquero mero @ufgd. edu.br
129 Doutor. Professor do Curso de Ciências Econômicas da FACE-UFGD (Faculdade de Administração, Ciências
Contábeis e Economia da Universidade Federal da Grande Dourados). E-mail: alexandrecorrea@ufgd. edu.br

239
the farm er had a b o o k o f C urrent A ccounts, in w hich each cow boy has his special account
w here the M ust and H aver o f his expenses and credits w ere registered. The relationship w ith
the landow ners w as, in general, characterized by bonds o f personal loyalty, ex panded over the
years through cronyism relationships b uilt as an extension o f the tru st acquired after a long
period o f w ork on th e farm s. R egarding the appropriation o f cattle by the em ployees, other
authors have registered this occurrence, and som e have ev en changed th eir social class i f w e
tak e into account th e division o f classes. F o r the elaboration o f this article, official docum ents
w ere u sed both in C orum bá and C uiabá, as w ell as the R eports o f the P resident o f the State, as
w ell as other sources, th o se considered to be secondary sources.

K e y w o rd s: L ivestock activity; W o rk relationship; Slave, indigenous and free labor.

I n tr o d u ç ã o

N esta Província, os processos de criação eram m uito prim itivos. A criação do gado, de

acordo com M iguel A rrojado R ib eiro L isb o a 130, era solto no cam po som ente cercados em suas

divisas extrem as. O gado era obrigado a v ir ao curral para consum ir sal, nesse m om ento recebe

do criador que o revista, lim pa e cura.

N o M ato G rosso, o trab alh o escravo foi estabelecido ao longo do século X V III na

atividade m ineira. C om o declínio da m ineração, o sistem a perm aneceu no E stado, pois os

escravos m igraram para os engenhos de açúcar organizados na tradicional fo rm a escravista.

Q uando a lei do fim da escravidão foi prom ulgada no M ato G rosso, existia em torno de

5.000 escravos de um total populacional de 90.000 habitantes aproxim adam ente, o que

representa 5,56% da população sendo que a m aior parte estava concentrada em Cuiabá. As

condições de trabalho escravo não diferiam m uito das do resto do país. O estabelecim ento de

quilom bos tam bém foi característica no E stado.

C om o existe dificuldade em se estabelecer o regim e de trab alh o praticado na atividade

pecuária m ato-grossense e pantaneira, a m ão de obra indígena foi am plam ente utilizada, m as

sem o estabelecim ento de um único regim e. O seu papel foi de destaque na form ação das

fazendas no cuidado do gado. P ertenciam às m ais diversas tribos com o G uaná, K inikinau,

T erena, G uaicuru, entre outras. A ssim , o crescim ento da atividade criatória u tilizou-se do

trab alh o indígena com o m ão de obra de baixo custo.

130 LISBOA, Miguel Arrojado Ribeiro. Oeste de São Paulo, Sul de Mato Grosso. Geologia, Indústria Mineral,
Clima, Vegetação, Solo Agrícola, Indústria Pastoril. Rio de Janeiro, 1909.

240
Os índios pertencentes à tribo guaicuru têm a fam a de serem os m elhores vaqueiros;

antes de se estabelecerem nas terras pantaneiras, j á preexistia, anteriorm ente, m ão de obra

indígena.

O peão quando residia na fazenda, além de vaqueiro, era tam bém com panheiro dos seus

filhos, existia, pois, a v alorização pessoal, “até o fato de contar um causo e ser ouvido pelo

patrão o peão já se sentia prestigiado”. M as, enquanto “o criador pantaneiro é reverenciado


pela sensibilidade preservacionista, lá no ermo pantaneiro está o peão, sem perspectiva e sem
imaginar a própria valia. É igual ao boi que só vive para as sustentações, com futuros estreitos
e implacáveis”. M as, o que prevalecia era a dualidade na relação com o criador.
A pesar da existência de trabalhadores livres em M ato G rosso as relações de trabalho

criaram vínculos de dependência entre proprietários e trabalhadores, m esm o onde havia

rem uneração m onetária, u m a vez que não era caracterizada com o um a fo rm a de trabalho

assalariado. A lém do trab alh ad o r indígena em pregado no trabalho vaqueiro, a m ão -d e-o b ra de

origem paraguaia foi em pregada com frequência nas atividades pastoris.

D e form a geral, a relação com os proprietários era caracterizada por laços de fidelidades

pessoais, am pliadas ao longo dos anos p o r interm édio de relações de com padrio construídas

com o extensão da confiança adquirida, após longo p eríodo de trabalho nas fazendas. S obre a

apropriação de gado por parte dos em pregados outros autores registraram essa ocorrência, e

alguns m udaram m esm o de classe social se levarm os em conta a divisão de classes.

M é to d o

D entro da relação capitalista de produção envolvem outros sistem as com o escravidão,

sem iescravidão e econom ia de subsistência presentes n a econom ia m ato-grossense em todo o

tem p o do estudo. N as asseverações de (B E R T R A N , 1988, p. 5) a “introdução regional ao

capitalism o, quando este na verdade j á estava por trás, em plano global, da m ão do prim eiro

garim peiro ou do fazendeiro que vinha otim izar, econom ias naturais, que de naturais só

possuíam a condição de ainda não terem sido explorado” .

A fo rm a p ela qual se processou a acum ulação de capital foi m ediante o dom ínio do

com ércio p ela m etrópole; a função da colônia está p ré-definida em ser consum idor de produtos

industriais e fornecedor de m atérias-prim as. A opção de com ercialização da colônia era

exclusiva com a m etrópole e as possibilidades de p roduzir qualquer produto que poderia

concorrer com a m etrópole se não vedada era bem lim itada. A té o transporte de m ercadorias

241
deveria ser realizada pelo país colonizador. Q uem observa de form a esp ecífica é E sselin na

seguinte afirm ação:

“A produção colonial, a não ser em casos esporádicos, não deveria ser transportada
em navios estrangeiros, especialmente quando se tratasse de carga a ser vendida em
outro país, e as mercadorias não produzidas na metrópole também não deveriam
chegar às colônias em navios estrangeiros.” (ESSELIN, 2011, p. 129).

A lgum as das coletas foram realizadas nestas instituições:

i) R egistro de E scrituras e P u b licaçõ es da Inspetoria C om ercial de M ato G rosso de 20

de M arço de 1899 à 04 de N ovem bro de 1904;

ii) R egistro de E scrituras, C ontratos C om erciais e O utros D ocum entos da Inspetoria

C om ercial de M ato G rosso de 15 de Julho de 1910 à 08 de Janeiro de 1913;

iii) R egistro de E scrituras e C ontratos da Inspetoria C om ercial de M ato G rosso de Julho

de 1914 à Setem bro de 1919;

iv) D ocum entos avulsos que contém tanto C ontrato e D istratos Sociais na Junta

C om ercial de M ato Grosso;

v) R egistro de 1913 à 1914 na Inspetoria C om ercial de M ato G rosso, especificam ente

de 25 de Janeiro de 1913 à 09 de Julho de 1914;

vi) A tos C onstitutivos, O fícios, P rocurações, P edidos do L ivro N° 02 da Inspetoria

C om ercial de M ato G rosso de 29 de agosto de 1912 à 12 de ju n h o de 1917;

vii) L ivro N° 01, R egistro N : 001 à 426 da Inspetoria C om ercial de M ato Grosso.

E a concentração m aior da v isita foi realizada ao A rquivo P úblico de M ato G rosso de

onde foram coletados os seguintes docum entos das diversas repartições do E stado:

- R elatórios de P residentes do E stado de M ato G rosso enviados à A ssem bléia

L egislativa P rovincial desde o ano de 1871 a 1888. A p artir de 1892 a denom inação p assa a ser

de M ensagens, estes docum entos foram coletados até 1915. E stas fontes são fundam entais para

esta pesquisa pela contribuição, j á que são elem entos com probatórios dos fatos relacionados

na análise desta tese.

O enfoque deste artigo se relaciona m ais com a h istória econôm ica e o tratam ento tende

m ais a u m a perspectiva socioeconôm ica que política e cultural. D aí a necessidade de utilização

dos recursos de ordem quantitativa para a obtenção de um conhecim ento dos m ovim entos da

econom ia m ato-grossense. M esm o reco n h ecen d o que as estatísticas tenham um a m argem de

erro, ainda assim será utilizado este m étodo pela capacidade de m ensuração.

242
D IS C U S S Ã O E R E S U L T A D O S

R e la ç ã o T r a b a lh is ta no P a s to re io

N o B rasil, a escravidão foi abolida form alm ente em 1888 e isso consistiu num m arco

para M ato G rosso. N a atividade pastoril, j á havia diversos regim es de m ão -d e-o b ra durante a

v igência da escravatura e, com a abolição, continuaram sem m od ificação radical. O lim ite

tem poral estabelecido pelo Im pério funciona com o parâm etro para ser levado em conta no

Pantanal, m as nem todos cum priram essa lei, porque a escravidão continuava após a

prom ulgação da “Lei Á urea” . N a “ lida do gado” o regim e com pensatóri o ao trabalhador

acontece das m ais variadas form as.

Os trabalhadores nas propriedades de criação de gado no P antanal poderiam trabalhar

em atividade de vaqueiro. E sta consistia, de um a fo rm a geral, na condução e trato do gado, era

u m a m odalidade de trabalho desenvolvida, tam bém , por livres pobres, m as isso não isenta a

presença de cativos. P ara D ivino M arcos de Sena, as fazendas de gado j á eram presentes em

M ato G rosso na segunda m etade do século X V III, e sua expansão aconteceu no decorrer da

prim eira m etade do X IX , com a gradativa exportação de gado proveniente das regiões de V ila

M aria, Poconê. assim com o do P resídio de C oim bra, A lbuquerque, M iranda, e Jaurú nas

proxim idades dos rios São L ourenço e Jaurú e no planalto sul M ato G rosso, o que não excluía

a presença de fazendas de criação em outras partes da Província.

M ã o de o b r a e s c ra v a

A leixo, apud B orges (2001), destaca um efeito lim itado do fim da escravatura na

econom ia m ato-grossense, não só na atividade pastoril, com o podem os v erificar no trecho

tran scrito abaixo:

Logo após a chegada à Província, da notícia da abolição, os negros se viram num


estado de euforia deixando o seu trabalho, vagando durante os dias seguintes pelas
cidades sem ocupação ou rumo certo. Porém, logo em seguida, foram aceitando
trabalhos ocasionais. Alguns ocuparam-se na extração ou, simplesmente dedicaram-
se à pesca e à parca lavoura de subsistência. Mas, como ocorre em todo o Brasil, os
libertos continuaram marcados pela herança da escravidão, marginalizados,
enfrentando sérios preconceitos, despreparados para concorrer como trabalhador livre
no mercado de trabalho, tendo que enfrentar o ônus da liberdade. (BORGES, 2001,
pp 103 - 104).

243
N o M ato G rosso, o trab alh o escravo foi estabelecido ao longo do século X V III na

atividade m ineira. C om o declínio da m ineração, o sistem a perm aneceu no E stado, pois os

escravos m igraram p ara os engenhos de açúcar organizados na tradicional form a escravista.

Q uando a lei do fim da escravidão foi prom ulgada no M ato G rosso, existia em torno de

5.000 escravos de um total populacional de 90.000 habitantes aproxim adam ente, o que

representa 5,56% da população sendo que a m aio r parte estava concentrada em C uiabá

conform e tab ela a seguir:

T abela 1.1: E scravos em M ato G rosso e 1882

L ocalidade N ú m ero de escravos


C uiabá 4.984
P oconê 396
C áceres 499
D iam an tin o e R osário 198
C orum bá 199
M iranda 200
S ant’A na do P aran aíb a 338

Fonte: ALEIXO, Lucia Helena Gaeta. Mato Grosso: trabalho escravo e trabalho livre (1850 - 1888), 1980, p. 92.

D e acordo com o R elatório da S ecretaria da P rovíncia de M ato G rosso, as condições de

trab alh o escravo não diferiam m uito das do resto do país. O estabelecim ento de quilom bos

tam bém foi característica no E stado. A ssim o retrata o R elató rio da Secretara da P o lícia de

C uiabá, datado de 1877:

Além do quilombo já conhecido do Rio Manso e de outros que há dessiminados no


interior do Termo da Villa do Diamantino, cuja extincção tem sido à policia defficil
conseguir na continuação das suas deligencias, por avisos, segundo consta, que
prestão conniventes aos quilombolas, com quem commerceião lucrativamente, diz-
se haver um outro em maior escala nas imediações da povoação de S. Mathias na
Província de Chiquitos pertencente à República de Bolívia, não longe do
destacamento da Corixa, districto da Cidade de S. Luiz de Cáceres, onde, não só
escravos fugidos do império, como desertores e criminosos em grande numero se tem
reunido.131

N as referências bibliográficas utilizadas para este artigo não se m encionam a presença

da m ão-de-obra escrava negra na atividade pastoril, o que não nos autoriza a afirm arm os a sua

(in)existência neste tip o de atividade econôm ica no Pantanal. M as foram encontrados relatos e

131 R elatório da Secretaria da P o lícia da P rovíncia de M ato G rosso em C uyabá em 13 de abril de 1877, p. 05.

244
inform ações de que os índios, das m ais diversas tribos, tenham sido subm etidos a este regim e

de trabalho.

A m ão de obra africana foi u tilizada m uito m ais na atividade de m ineração do que na

atividade pecuária, aponta-se aqui a constatação realizada po r M o u ra 132 quando assevera da

seguinte m aneira:

“A utilização da mão-de-obra desses africanos livres levou a Sociedade de Mineração


e Diamantino a um favorável desenvolvimento. Diamantino pareceu retomar o
impulso da gênese de sua formação, uma vez que seu nome e origem se devem à
abundância de diamantes, mineral que marcou a sua prosperidade. No entanto, ao
registrar o progresso dessa região, a historiografia não conta a história desses
trabalhadores que foram denominados de “livres”, mas que na prática,
(aparentemente), foram como tantos outros africanos, escravizados.” (SILVA, 1993,
p. 05).

C ontrastando com esta asseveração encontram -se os apontam entos da M aria do C arm o

B razil que registra a existência da m ão de obra cativa em algum as fazendas com o a do B arão

de V ila M aria, M ajo r M etello e F irm iniano Firm ino F erreira, am bos grandes p roprietários de

fazendas. Segundo a m encionada autora “ O B arão de V ila M aria po ssuía 39 escravizados

cadastrados na ju n ta de m anum issão, entre pretos e pardos. José C aetano M etello possuía 34

cativos e F irm iniano C ândido detinha propriedade possuía 2 1 escravos que executavam

trabalhos no cam po” 133. C om isso, fica registrado que houve m ão de obra escrava nas fazendas

pantaneiras.

M ã o de o b r a in d íg e n a n a p e c u á r ia

C om o existe dificuldade em se estabelecer o regim e de trab alh o praticado na atividade

pecuária m ato-grossense e pantaneira, a m ão de obra indígena foi am plam ente utilizada, m as

sem o estabelecim ento de um único regim e. O seu papel foi de destaque na form ação das

fazendas no cuidado do gado. P ertenciam às m ais diversas tribos com o G uaná, K inikinau,

T erena, G uaicuru, entre outras. A ssim , o crescim ento da atividade criatória utilizou-se do

trab alh o indígena com o m ão de obra de baixo c u sto .134

132 MOURA, Zilda Alves de. LIVRES PARA O TRABALHO: os africanos livres do Mato Grosso - 1852-1864.
4o. Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Curitiba: 13 a 15 de maio de 2009.
133 BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai. O “Mar Interno” Brasileiro. Campo Grande, 2014, p. 263.
134 LEITE, Eudes Fernando Marchas na história: comitivas e peões boiadeiros no Pantanal. Dourados, 2003, p.
60.

245
Os índios pertencentes à trib o guaicuru têm a fam a de serem os m elhores vaqueiros;

antes de se estabelecerem nas terras pantaneiras, j á preexistia, anteriorm ente, m ão de obra

indígena, com o já citado por F igueiredo (1994):

É curioso observar que de certo modo, o guaicuru preparou o terreno para a pecuária
e os fazendeiros já encontraram, principalmente na planície pantaneira, a tradição
campesina. De alguma forma, o peão já estava lá, entre os cativos dos senhores
guaicurus, e estes desaparecendo, foi transferida aos fazendeiros a suserania.
(FIGUEIREDO, 1994, p. 88).

O que perm itiu o aum ento da população indígena em terras pantaneiras foi a sua riqueza

natural, consistente na v ariedade de fauna e aves, que passaram a incorporar em sua dieta,

m esm o que a base de sua dieta não fosse a carne. O hábito alim entar era com posto de frutas,

m el, insetos de todo gênero e rép te is.135

C om o surgim ento da grande p ropriedade para o criatório bovino adotou-se basicam ente

a m ão de obra indígena e a relação de trabalho era de sem iescravidão. O indígena foi

expropriado das suas terras, dos seus gados, seus bens e sua gente.

O regim e colonial ao qual o país foi subm etido tem sua continuidade no in terio r do país,

quando houve u m a “ recolonização” . E sta foi a relação existente entre os grandes proprietários

da criação de gado com as diversas tribos, habitantes prim itivos da região do P antanal. O

aborígene, ao ser expulso das suas posses, e ao o ptar po r não se subm eter ao novo regim e,

sofreu estas consequências. A alternativa foi o retorno ao estágio m ais prim itivo da econom ia,

caçar e pescar para sobreviver, com um agravante: sem a possessão de terras.

A população nativa foi sendo aos poucos expropriada das suas terras e de seu gado e
sistematicamente reduzida à condição de servidão. Empobrecida, à medida que ia
sendo desapropriada dos seus bens, juntaram-se em bandos, perambulando pelas
fazendas, mendigando por um local onde pudesse se fixar, desenvolver lavouras de
subsistência e caçar. (ESSELIN, 2011, p. 193).

Os índios se abasteciam dos donos das fazendas, que praticavam preços abusivos com

eles, e suas dívidas cresciam com o decorrer do tem po, perpetuando a relação de dependência

entre em pregado (com prador) e patrão (fornecedor) a fim de retê-los nas fazendas. E os

produtos que a propriedade não produzia com o roupas, calçados, aguardentes etc. eram

fornecidos a preços m onopolistas.

135 ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária bovina no processo de ocupação e desenvolvimento do Pantanal sul-
mato-grossense (1830 - 1910). Dourados, 2011, p. 90.

246
Os terenas são muito procurados pelos fazendeiros, contentavam-se com pequena
remuneração, sendo em geral, por êles explorados. Raramente se encontrava um
camarada terena que não devesse os cabelos da cabeça ao fazendeiro, seus serviços
não eram pagos pelo que valiam e, nas fazendas efetuadas pelo patrão, eram
tristemente roubados. Daí, uma escravidão de nova espécie, porque nenhum
camarada de conta poderia deixar o patrão antigo sem que o novo se responsabilizasse
pela dívida. E se tivesse a ousadia de fugir, correria os maiores riscos de vexame e
até de morte, porque nos povoados e vilas, estava a polícia sempre em mãos dos
fazendeiros. (VIVEROS, 1958, pp. 179 - 180).

A m ão de obra indígena era responsável por quase to d as as tarefas que se realizavam

nas fazendas e nas vilas, tais com o a agricultura de subsistência e outras atividades produtivas

que estavam sob sua responsabilidade.

Os índios aprendião varios officios e trabalhavão em olarias, perfeito remeiros e


pilotos, empregavão auxílio não só ao commercio, como camaradas das canôas que
transportavão generos de Corumbá a Cuyabá, como ainda nas fazendas de cultura e
criação, onde seus serviços erão apreciados. (MOUTINHO, 1896, p. 137).

O s índios tam bém tinham um a função dentro da estrutura social e produtiva. E sselin

aponta que as jo v en s índias recebiam os b o n s p rin c íp io s 136 da form ação ocidental cristão para

tornarem -se em pregadas dom ésticas, cozinheiras, para realizarem todos aqueles serviços que,

por u m a razão ou outra, eram considerados pouco dignos de serem realizados pelas fam ílias
oligárquicas, que com eçavam a se fo rm ar no P antanal sul.136137138

D e acordo com descrição, m uito generosa do autor a seguir, no que se refere ao

tratam en to dispensado às jo v e n s ín d ias pela B aronesa de V ila M aria, assim ela é retratad a por

M outinho:

As índias, entre as quaes se contavão 20 a 24, de 14 a 16 annos, serão na maior parte


afilhadas da bondosa e caritativa sra. baroneza de Vila Maria, que lhes tributava
extrema affeição, e as protegia muito138. Vinhão regularmente ao seu sitio onde
passavão dias, e ella as recebia sempre em sua casa, infiltrando-lhes bons princípios,
que seguião pela índole naturalmente boa, os índios ouviam missa e resavão todos os
dias no oratório do missionario. Havião escholas de primeiras lettras e musica, onde
estudavão com muito aproveitamento. As índias empregavão-se nos arranjos de suas
casas e em suas costuras. (MOUTINHO, 1896, p. 137).

M as as índias que escapavam ao tratam ento m aternal e de afeto da B aronesa de V ila

M aria, conform e M outinho, enfrentavam outra realidade. E ra prática com um entre os

fazendeiros tirarem as índias bem novas das fam ílias para lhes fornecer u m a m elhor educação.

136 Grifo nosso.


137 ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária bovina no processo de ocupação e desenvolvimento do Pantanal sul-
mato-grossense (1830 - 1910). Dourados, 2011, p. 197.
138 Grifo nosso.

247
D esde a chegada à casa dos patrões eram colocadas nas tarefas do dia a dia, assim com o divertir

aos filhos e netos dos coronéis na condição de babá, geralm ente sem ganho nenhum , a sua

rem uneração era a h o n ro s a c o n d iç ã o 139 de serem partícipes do círculo m ais íntim o da fam ília

e obterem um casam ento arranjado pela condição de protegida do c o ro n el.139140

E m Figueiredo, verificam os que a pecuária pantaneira foi a única capaz de absorver o

talen to da m ão de obra indígena com suas habilidades e técnicas que atendiam perfeitam ente

às exigências tanto nas secas e nas cheias. A o in co rp o rar os braços do guaicuru e do paiaguá,

se apropriaram de excelentes cavaleiros, exím ios canoeiros, que dom inavam com precisão o

conhecim ento da rédea e do rem o, o que lhes garantiu seu estabelecim ento estável no Pantanal,

m oldando o peão pantaneiro nessas duas tarefas esp ecíficas.141

M esm o após a G uerra da T ríplice A liança, a m ão de obra preponderante para a pecuária

continuou sendo o indígena. M as, a m ão de obra paraguaia passará a ser incorporada bem

depois, qu an d o levas de im igrantes atravessaram a fronteira, em procura de trabalho, não

encontrando m uita dificuldade, porque eram , conform e a q u alificação do autor a ser citado,

exím ios v a q u e iro s142. A lém disso, sua utilização não se lim ita na atividade criatória, outros

setores econôm icos passaram a adotar esta m esm a força de trabalho, com o na agricultura,

colheita e preparo da erva-m ate e da ipecacuanha, b o rrach a e nos transportes pela sua

reconhecida capacidade de rem eiro s.143

D urante o ciclo ascendente das águas, a condução dos rebanhos nas áreas não alagáveis

constituía um trabalho de difícil execução, po r dem andar vaqueiros habilidosos, com

conhecim ento e perícia n essa atividade. Q uem pôde atender a esta especificidade fora a m ão

de obra indígena, po r isso, eram m uito disputados pelos fazendeiros da região. E m particular,

os guaicurus, que j á estavam acostum ados ao ciclo das águas, levando e trazen d o seus rebanhos

para aproveitar a renovação das pastagens e lhes oferecer um a m elhor alim en tação .144

N a relação entre os colonizadores e os índios existiu u m a interdependência; os

indígenas precisavam das ferram entas do seu colonizador, sem as quais não conseguiriam

produzir. O colono precisava do alim ento que o prim itivo produzia. M as apesar desta

139 Grifo nosso.


140 ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária bovina no processo de ocupação e desenvolvimento do Pantanal sul-
mato-grossense (1830 - 1910). Dourados, 2011, p. 197.
141 FIGUEIREDO, Aline. A propósito do boi. Cuiabá, 1994, pp. 187 - 188.
142 ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária bovina no processo de ocupação e desenvolvimento do Pantanal sul-
mato-grossense (1830 - 1910). Dourados, 2011, p. 253.
143 Idem, p. 247.
144 Ibidem.

248
am bivalência, contra o indígena era com um , n essa região, ser praticado todo tip o de

arbitrariedade, inclusive a e scrav id ão .145146

L am entavelm ente, m esm o após um a década de ab o lição da escravidão, no M ato

G rosso, a prática continuava a pleno v ap o r e, sob os auspícios do G overno P rovincial, o

ressurgim ento das p ráticas anteriores de escravização dos índios. A lém da escravidão, os

colonos praticavam alguns atos de crueldade contra os índios, "não contentes com os
assassinatos promovidos, abriam os ventres das índias que se achavam em adiantado estado
de gravidez”146. O s novos dirigentes do P antanal sul, com m étodos n ad a ortodoxos, foram
quebrando a resistência dos indígenas estabelecendo sua própria o rd em 147148e o que se verificou

n essa relação de trabalho alguns traço s de escravidão.

R ousseau (2002, p. 13) afirm ava que “a violênciafe z os primeiros escravos, mas a sua

covardia os perpetuou”. E ssa referência era aos negros africanos; tran sportando essa realidade
aos índios do Pantanal, percebe-se que um a eventual atitude de v alen tia perante o colonizador

não tin h a a possibilidade de reverter a sua condição porque to d a a estrutura legal, social, bélica

estava com o colonizado

M ã o de o b r a liv re

O peão quando residia na fazenda, além de vaqueiro, era tam bém com panheiro dos seus

filhos, existia, pois, a v alorização pessoal, “até o fato de contar um causo e ser ouvido pelo

patrão o peão já se sentia prestigiado”. M as, enquanto “o criador pantaneiro é reverenciado


pela sensibilidade preservacionista, lá no ermo pantaneiro está o peão, sem perspectiva e sem
imaginar a própria valia. É igual ao boi que só vive para as sustentações, com futuros estreitos
e implacáveis”148. M as, o que prevalecia era a dualidade na relação com o criador.
A pesar da existência de trabalhadores livres em M ato G rosso as relações de trabalho

criaram vínculos de dependência entre proprietários e trabalhadores, m esm o onde havia

rem uneração m onetária, u m a vez que não era caracterizad a com o um a form a de trabalho

145 ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária bovina no processo de ocupação e desenvolvimento do Pantanal sul-
mato-grossense (1830 - 1910). Dourados, 2011, p. 248.
146 RONDON, Cândido Mariano da S. Missão RONDON, apud ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária bovina no
processo de ocupação e desenvolvimento do Pantanal sul-mato-grossense (1830 - 1910). Dourados, 2011, p. 257.
147 Ibidem.
148 FIGUEIREDO, Aline. A propósito do boi. Cuiabá, 1994, pp. 187 - 188. Grifo nosso

249
assalariado. A lém do trab alh ad o r indígena em pregado no trabalho vaqueiro, a m ão -d e-o b ra de

origem paraguaia foi em pregada com frequência nas atividades p a sto ris.149

Q uem registra tam bém a presença da m ão de obra paraguaia é M aria do C arm o Brazil

quando aponta que com o fim da G uerra da T ríplice A liança houve a im igração paraguaia,

dentre eles se encontravam exímios 150 vaqueiros que j á estavam acostum ados a diferentes

regim es de vida e incorporados às atividades extrativas e c ria tó ria s.151

O trab alh ad o r não necessariam ente deveria residir na propriedade do seu em pregador.

O s “ cam aradas” 152 na criação de gado vacum podiam m orar, ou não, na propriedade do patrão,

os que não residiam nos locais do trabalho recebiam salários. Já os que m oravam nas

propriedades do patrão; além de em pregados tam bém estabeleciam dom icílios nestas terras.

P ara estes cam aradas era dada certa quantia em dinheiro e alim entação, estes cam aradas

poderiam trab alh ar de vaqueiro, a função do vaqueiro está na condução e trato do g a d o .153

O utra fo rm a de rem uneração, a p artir da ótica do próxim o autor, era a perm issão aos

em pregados dos proprietários de fazendas no P antanal de criarem seu próprio gado, ao lado

dos donos das fazendas, sendo por estes custeadas as criações do “rebanho” pertencente ao

vaqueiro da faz e n d a .154

A periodicidade de recebim entos po r parte da m ão-de-obra assalariada em nada se

assem elha aos praticados na indústria, o com ércio ou outra atividade econôm ica, na qual

rem uneração era basicam ente m ensal. O s em pregados, eram diaristas ou m ensalistas, m as não

recebiam m ensalm ente, e sim quando necessitavam . P ara o seu controle o fazendeiro dispunha

de um livro de C ontas C orrentes, em que cada vaqueiro tem sua conta especial onde estava

registrado o D eve e o H av er das suas despesas e c ré d ito s.155

E ste autor e fazendeiro, na sua descrição explícita, tran scrita abaixo, a firm a que não

exerciam o papel de m onopolistas perante seus em pregados. Isso porque valorizaram os

em pregados m ais antigos, havendo interesse em dim inuir a rotatividade dos trabalhadores, para

aum entar a produtividade e m anter u m a relação de confiança entre patrão e em pregado.

149 BORGES, Fernando Tadeu Miranda. Do extrativismo á pecuária, algumas observações sobre a história
econômica de Mato Grosso. 1870 - 1930. São Paulo, 2001, pp. 105 - 106.
150 Grifo nosso.
151 BRAZIL, Maria do Carmo. Terra e trabalho no sul de Mato Grosso - considerações sobre superação do
escravismo, luta pela terra, economia pastoril e advento do trabalho livre - séculos 19 e 20. História: Debates e
tendências - v. 7 n. 2. Jul/Dez. 2007, pp. 82 - 100. Passo Fundo, 2008.
152 O termo camarada é muito utilizado para fazer referência ao trabalhador de uma forma geral. O autor a ser
citado só se refere ao trabalhador com este termo.
153 SENA, Divino Marcos de. Livres e pobres no centro da América do Sul, um estudo sobre os camaradas (1808
- 1850). Dourados, 2013, pp. 123 - 124.
154 NETTO, José de Barros. A criação empírica de bovinos no Pantanal da Nhecolândia, São Paulo, 1979, p. 38.
155 Op. Cit. p. 90.

250
Na grande maioria das vezes, o fazendeiro não dispõe de armazém fornecedor, de
modo que as compras dos empregados, à exceção de gêneros alimentícios e algum
medicamento fornecido em um almoxarifado chamado ‘despensa’, são feitas sob a
forma de ‘encomendas’ à cidade, quando o patrão ou capataz a ela se dirige. Quase
sempre roupas, lanternas, calçados, etc. são os artigos mais pretendidos. Com os
empregados mais antigos, as necessidades de aquisição frequentemente não são
apreciadas relativamente quanto ao seu débito. Ou seja: o patrão não costuma levar
muito em conta a situação financeira do empregado, em relação á fazenda, mesmo às
vezes tratando-se de bens supérfluos. (FIGUEIREDO, 1994, p. 188).

A relação com os proprietários era, de fo rm a geral, caracterizada po r laços de

fidelidades pessoais, am pliadas ao longo dos anos po r interm édio de relações de com padrio

construídas com o extensão da confiança adquirida, após longo p eríodo de trabalho nas

faz e n d a s156. Sobre a apropriação de gado p o r parte dos em pregados outros autores registraram

essa ocorrência, e alguns m udaram m esm o de classe social se levarm os em conta a divisão de

classes.

Era comum termos na fazenda Taboco pequenos criadores, quase que em regime
patriarcado, ou melhor, de comunidade, que iam crescendo, aumentando a sua
criação, e depois o próprio patrão legalizava para eles ou os auxiliava na compra de
glebas para se tornarem fazendeiros. (RIBEIRO, 1984, p. 33).

M as esta p rática não é exclusividade do pantaneiro, um a vez que na época da

colonização das A m éricas, especialm ente anglo e francesa, o dono que vin h a sem capital

assinava um contrato cuja cláusula estabelecia quem seria dono de um a parte da criação após

um determ inado p eríodo de tem po. O que prevaleceu nestas análises foram os dados

qualitativos com o C elso Furtado (19 8 4 ) fez no seguinte registro:

À semelhança do sistema de povoamento que se desenvolveu nas colônias inglesas e


francesas, o homem que trabalhava na fazenda de criação durante um certo número
de anos (quatro ou cinco anos) tinha direito a uma participação (uma cria em quatro)
no rebanho em formação. Tudo indica que essa atividade era muito atrativa pra os
colonos sem capital. (FURTADO, 1974, p. 59).

O elo m ais forte entre o fazendeiro e o seu rebanho é o peão, ou cam arada, pois deste

dependia b o a parte do crescim ento quantitativo e qualitativo do boi. E não se pode desprezar a

relevância dos seus principais aliados e com panheiros: o cavalo e/ou bu rro ; a esse respeito,

156 LEITE, Eudes Fernando. Marchas na história, comitivas e peões boiadeiros no Pantanal. Dourados, 2003, p.
111.

251
construíram -se as m ais diversas representações, m arcadas po r suas relações com seu m eio, ou

seus instrum entos de tra b a lh o 157.

C onform e descrição de José de B arros N eto, o pantaneiro e o vaqueiro têm estas

p eculiaridades:

Ao encilhar o cavalo demonstra toda sua afeição ao animal. Principalmente passa as


mãos sobre o lombo como que assentando os pêlos e acariciando o amigo; baixeiros
e carona bem acomodados sob o arreio arcão de ferro, cuida para não maltratar seu
‘montado’ com um aperto demasiado da cincha. Coloca pelego, ‘badrana’ e sobre-
cincha, esta suficientemente reforçada para sustentara presilha do laço da cinchada
do orelhano. Uma palmada na ‘badrana’ como para certificar-se de que tudo está
certo, nos seus devidos lugares. Jamais deixa de levar o laço na garupa tem-no assim
como a ‘Carta de vaqueiro’. Encilhado está a sua disposição um amigo que, dócil, ali
está à espera de que o monte. O autêntico vaqueiro pantaneiro estima sua terra, assim
como sua família; ama seu cavalo, assim como estima seu cão. Há que procurarmos
preservar esses sentimentos o homem o campo, antes que seja tarde. É preciso
atentarmos para o problema da sua emigração antes que ele se avolume e chegue a
um ponto irreversível”. (NETO, 1978, p. 98).

A p ecu ária d escrita acim a nos leva a perceber certo gosto pelo detalham ento, que

dem onstra um v erdadeiro sentim ento de adm iração pelo trabalho do vaqueiro pantaneiro, e que

se estende até os tem pos atuais, com provada em diálogos inform ais sobre suas atividades com

alguns dos seus com ponentes.

O peão pantaneiro convive tanto com a aridez e a seca, assim com o com as enchentes,

e os anim ais sob sua guarda, além da sua própria condição social. O trabalhador se vin cu la ao

universo da fazenda, envolvido no cotidiano rude da pecuária, em que os valores m orais,

com binados às habilidades no trabalho, constituem o principal aspecto de suas relações de

fidelidade com o patrão, considerada com o seu p rotetor. Sob esta perspectiva, este

relacionam ento social encobre relações econôm icas e sociais, que posicionavam patrões e

em pregados em esferas bem diferentes. A s relações de trabalho na atividade pastoril podem ser

consideradas com o regra geral, em sua é p o ca.158

A base da alim entação no grande latifúndio pantaneiro era a m an d io ca com carne.

C ultivava-se a m andioca, tão valorizada, e extraía-se a farinha, o polvilho para fazer o bolo e

o pão de queijo. A lém da m andioca, p lantava-se tam bém o feijão já que os solos eram propícios

ao desenvolvim ento dessa cultura, assim , seu p lan tio não dem andava m uita água, além do seu

produto ser de arm azenam ento fácil, no estoque pode du rar algum tem po. A lém destas culturas,

157 LEITE, Eudes Fernando. Marchas na história, comitivas e peões boiadeiros no Pantanal. Dourados, 2003, p.
115.
158 LEITE, Eudes Fernando. Marchas na história, comitivas e peões boiadeiros no Pantanal. Dourados, 2003, p.
119.

252
o m ilho era u m a cultura obrigatória, dele se obtinha a farinha, a canjica, o curau, a pam onha e

m uitos outros quitutes apreciados pelos pantaneiros. O m ilho tam bém era arm azenado no paiol

para alim entar os porcos que, além da carne, favorecia sua b a n h a .159

C o n c lu sã o

A o concluirm os este artigo, v erificou-se que o gado foi a p eça decisiva na constituição

da econom ia e sociedade pantaneira, porque tornou-se o m o to r dos m eios de transporte, tração

na agricultura e indispensável à alim entação, desde o couro vacum até o vestiário, habitação e

im portante artigo de exportação. E ste conjunto harm ônico de circunstâncias pro p icio u o

processo de desenvolvim ento da pecuária pantaneira, que chegou ao seu auge nas prim eiras

décadas do século XX.

N as relações sociais de trabalho, o que prevaleceu foi a dualidade, que perm itiu avanços

a alguns e um a exploração à m aior parte dos trabalhadores, passando do escravism o

principalm ente indígena, até a m ão de obra assalariada. O Pantanal, desde o início do processo

de colonização no século X V I, esteve estreitam ente ligado à pecuária. A s dificuldades naturais

foram superadas e contribuíram de form a decisiva à articulação da região com todo o território

nacional.

N a cidade portuária de C orum bá, que recebia com frequência m ercadorias vindas de

C uiabá, apesar da pequena distância entre o porto e os outros pólos e da facilidade em se fazer

o percurso via fluvial, havia um fato r lim itador: só produziam um a pequena parte tanto para o

consum o local para a exportação (produtos prim ários). O s produtos que a P ro v ín cia im portava

tam bém atracavam no P orto de C orum bá devido à lim itação que a via fluvial im p u n h a para

chegar à capital, e outra fo rm a de transporte não havia. C om isso, C orum bá foi se form ando

com o entreposto com ercial, pois, foi a p artir dela que as exportações eram realizadas, e

recebiam as im portações para sua posterior distribuição para o m ercad o regional, dados estes

que ju stificam , por isso, a análise específica do capítulo a seguir, o cam inho das águas.

C onstatou-se a presença de todo tip o de m ão de obra para a lid a na atividade pastoril,

desde a m ão de obra escrava africana, que alguns autores o denom inavam de C ativa à m ão de

obra indígena com o tam bém m ão de obra paraguaia e bo liv ian a e até a m ão de obra contratada

com salários, os assalariados.

159 ESSELIN, Paulo Marcos. A pecuária bovina no processo de ocupação e desenvolvimento do Pantanal sul-
mato-grossense (1830 - 1910). Dourados, 2011, p. 189.

253
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254
A IMPRENSA COMO FONTE PARA O ESTUDO DO MOVIMENTO
SOCIORRELIGIOSO DOS MONGES BARBUDOS (RS, 1935-1938)

F A B IA N F IL A T O W 160

I n tr o d u ç ã o

O m ovim ento sociorreligioso dos M onges B arbudos ocorreu entre os anos de 1935 e

1938, no m unicípio de Soledade, interior do R io G rande do Sul. Sua origem está associada com

a figura do santo m onge João M aria, conhecido no sul do B rasil. E ste personagem teria estado

na localidade e dado instrução para a criação de u m a nova religião. R eunindo um significativo

núm ero de m em bros o m ovim ento despertou a atenção da com unidade local e das autoridades

que recorreram ao u so da força m ilitar para reprim i-los.

O conflito ocorreu durante o ano de 1938, quando o grupo com posto po r cam poneses

se reuniu na capela de Santa C atarina com o propósito de esperar o retorno do santo m onge. A

repressão deixou um saldo de m ortos e feridos, além do m edo e da proibição da prática

religiosa. Inseridos num contexto político com plexo foram acusados de com unistas. E sse fato

contribuiu para legitim ar a ação repressiva orquestrada pelo E stado.

A construção do inim igo p olítico pode ser evidenciada tam bém através da im prensa, na

qual foram publicadas diversas reportagens sobre o conflito envolvendo os cam poneses e os

soldados da B rigada M ilitar. Podem os identificar a existência da acusação de que os m em bros

do grupo religioso teriam algum a ligação com u m a doutrina política estrangeira, sendo, assim ,

enquadrados com o am eaça com unista à nova ordem in staurada com o recente golpe do E stado

N ovo.

N este sentido, os M onges B arbudos foram reprim idos tam bém devido ao contexto no

qual estavam inseridos, sendo u tilizados politicam ente para dar estabilidade ao regim e iniciado

em 10 de novem bro de 1937. E nfim , a análise da construção do outro nas páginas dos jo rn a is

contribui para m elh o r com preenderm os os m otivos, reais ou im aginários, que contribuíram

para a repressão im posta aos M onges B arbudos.

160 Prefeitura Municipal de Esteio (RS). Doutor em História (PUCRS).

255
A lg u m a s n o ta s s o b re o m o v im e n to so c io rre lig io so dos M o n g e s B a rb u d o s .

O m ovim ento dos M onges B arbudos ocorreu entre 1935 e 1938 no m unicípio de

Soledade (RS). Sua origem está associada ao m onge João M aria, o qual teria estado na

localidade e in struído a nova religião. R eunindo um significativo núm ero de m em bros o grupo

despertou a atenção da com unidade local que recorreram ao uso da força para reprim i-los.

O conflito ocorreu no ano de 1938 quando os religiosos se reuniram na capela de Santa

C atarina à espera do retorno do santo m onge, que ocorreria na sem ana santa daquele ano. A

repressão deixou um saldo de m ortos e feridos, além do m edo e da proibição da prática

religiosa. Inseridos num contexto político com plexo foram acusados de com unistas, fato que

contribuiu para legitim ar a ação repressiva orquestrada pelo E stado. O s M onges B arbudos

foram reprim idos pelo contexto no qual estavam inseridos. Foram u tilizados politicam ente para

dar estabilidade ao regim e iniciado em 10 de novem bro de 1937.

I m p r e n s a e H is tó ria : o jo r n a l com o fo n te p a r a o e s tu d o d a H is tó ria .

A im prensa com o fonte de pesquisa, assim com o as dem ais fontes u tilizadas nas

pesquisas históricas, não é inocente, com o bem lem brou Jacques Le G o ff (1996, p. 110),

devendo ser analisada criticam ente.

T ânia R egina de L uca (2008) d estacou que até m eados da década de 1970 eram poucos

os trabalhos que utilizavam jo rn a is com o fontes para a pesquisa histórica. Segundo a autora,

“ não era nova a preocupação de se escrever a H istória da im prensa, m as relutava-se em

m obilizá-los para a escrita da H istória po r m eio da im prensa” . (LU C A , 2008, p. 111).

C om o m ovim ento historiográfico que se pautava po r u m a histó ria-p ro b lem a e

hipóteses, iniciado pelos Annales (REIS, 2000), tem o s a inclusão do jo rn al com o fonte para as

pesquisas históricas. D estacam os seu u so no cam po da histó ria política, principalm ente a partir

do trabalho intitulado Por uma história Política, sob organização de R ené R em ond (2003).

O papel desempenhado por jornais e revistas em regimes autoritários, como o Estado


Novo e a ditadura militar, seja na condição de difusor de propaganda política
favorável ao regime ou espaço que abrigou formas sutis de contestação, resistência e
mesmo projetos alternativos, tem encontrado eco nas produções contemporâneas,
inspiradas na renovação da abordagem do político. (LUCA, 2008, p. 129)

256
Segundo C láudio P ereira E lm ir (1995), a consulta a um periódico não pode ser feita

sem u m a análise criteriosa. F az-se necessário o cotejam ento com outras fontes e docum entos,

não estudando a fonte im pressa de m aneira iso la d a .161 P ara D erocina C am pos Sosa, “ aquilo

que aparece escrito deve ser lido em dois tem pos: um objetivo que interpreta o texto escrito

efetivam ente e outro subjetivo que precisa entender aquilo que não aparece escrito, m as é

possível identificar à luz do contexto histórico” . (2007, p. 11-12).

A autora destaca tam bém que “ o estudo da im prensa necessita do reconhecim ento do

que está em to rno dela, já que essa m esm a im prensa está invariavelm ente atrelada ao seu tem po

histó rico ” (2007, p. 12). A creditam os que esta percepção contribui para com preenderm os a

repressão im posta aos cam poneses de Soledade e as notícias publicadas nos jo rn a is sobre a

ação m ilitar orquestrada pelo E stado N ovo (1937-1945).

N esse sentido, é im portante relem brar que cabe ao historiador realizar “os

questionam entos às fontes para extrair um significado, retirando de sua linguagem os elem entos

capazes de representarem determ inado m om ento h istórico” (SO SA , 2007, p. 16; 19).

C om o alerta M árcia Janete E spig, “ a im prensa não info rm a a história, sim plesm ente, e

não basta ao pesquisador retirar de suas páginas os dados referentes ao período desejado para

que possa considerar seu trabalho concluído” . (1998, p. 274), necessitam os realizar u m a leitura

interna, m eticulosa e exaustiva dialogando com outros docum entos e com o contexto no qual

foi produzida esta notícia, que na época, estava in serid a no cotidiano.

N esse sentido faz-se necessário atentar para o conceito de representação, o qual nos

conduz ao m odo com o u m a “ determ inada realidade social é construída, pensada, dada a ler” .

(C H A R T IE R , 1990, p.17). Som ando-se a esta orientação conceitual tem os o im aginário, com

o qual designam os o conjunto de representações e ideias-im agem através das quais as

sociedades legitim am -se, criam um a identidade, elaboram m odelos form adores para seus

cidadãos. (B A C ZK O , 1991, p. 8).

N esse sentido,

Os imaginários sociais são referências importantíssimas dentro do sistema simbólico


que produz a comunidade e através do qual se elaboram suas finalidades. Através
deles, reconstitui-se parte do passado da comunidade, designa-se sua identidade e
elabora-se sua representação sobre si mesma; distribuem-se papeis e funções sociais,
expressam-se crenças comuns e fixam-se modelos de comportamento. (ESPIG, 1998,
p. 75).

161 Neste artigo, devido ao espaço e objetivos propostos, estamos analisando especificamente as notícias
publicadas referentes aos Monges Barbudos nos jornais impressos, porém, na tese de doutorado (FILATOW,
2015) realizamos o debate incluindo outras fontes documentais, como processos crimes, documentos policiais,
documentos eclesiásticos e documentos da administração pública de Soledade.

257
C om o salientou E SPIG , “ a im prensa deve (...) ser pensada com o um a representação

construída sobre o real, sobre o qual incidem determ inados filtros deform adores que cabe ao

histo riad o r determ inar e equacionar em suas análises” (1998, p. 276). E ste é o caso dos M onges

B arbudos, o que foi noticiado na im prensa teve u m a representação construída sobre um a

realidade histórica, as disputas políticas no p eríodo de consolidação do E stado N ovo, porém

foi apresentada com o um a ação fanática que am eaçaria a própria ordem nacional, sendo

n ecessária sua repressão.

N este sentido, o objetivo do presente trabalho é dem onstrar as possibilidades da

u tilização da im prensa com o fonte de pesquisa para o estudo dos M onges B arbudos.

O s M o n g es B a rb u d o s n a im p re n s a : a a m e a ç a p o lític a .

A análise da construção do outro nas páginas dos jo rn a is contribui para m elhor

com preenderm os os m otivos, reais ou im aginários, que contribuíram para a repressão im posta

aos M onges B arbudos. N a im prensa localizam os entrevistas, relatos e dados sobre os ocorridos

em Soledade. Segundo o jo rn a l C orreio do Povo, era “um grupo de fanáticos, superior a m il,

inclusive m ulheres e crianças, invadiu os m unicípios de S oledade e S obradinho, apossando-se

da igreja Santa C atarina” (C O R R E IO D O PO V O , 21/04/1938, p. 16) e “ aquele povo estava

to m ad o do fanatism o religioso.” (C O R R E IO D O PO V O , 27/04/1938, p. 14). Foram

representados com o violentos, “ alarm avam as populações de S obradinho e Soledade” .

(C O R R E IO D O PO V O , 27/04/1938, p. 14). O capitão R iograndino da C osta e Silva, num a

entrevista concedida após m issão de reconhecim ento no local, assim os descreveu: “barbas

com pridas, cabelos grandes, com grande devoção religiosa, naturalm ente deturpada. E sse

sentim ento religioso inculcado naquelas pessoas ignorantes (...). (C O R R E IO D O PO V O ,

27/04/1938, p. 14)

N o jo rn a l K olonie, publicado em língua alem ã em Santa C ruz dos Sul, localizam os a

publicação de um a carta enviada de Sobradinho. N e sta tem os: “ m ais um a vez chega ao nosso

conhecim ento um exem plo do fanatism o gerado pela credulidade de nossa população cabocla

no m ato e no cam po, ainda hoje absolutam ente esquecida no que tange à escola e à educação” .

A s causas da ocorrência dos M onges B arbudos estariam associadas ao fato de serem

“ caboclos” , gente do “ m ato” e do “ cam po” , de serem portadores de “ credulidade” . O caboclo

é descrito com o tendo um a “ aparência selvagem , ainda que de b o a índole” . (K O L O N IE,

258
27/04/1938, p. 2)

Identificam os a presença da teoria da falta, ou seja, construção argum entativa na qual a

ju stifica tiv a utilizada para explicar a ocorrência de diferentes m ovim entos sociais estaria

atrelada à ausência do E stado. E ssa seria expressa na deficiente assistência social, restrito

acesso à educação, no precário serviço de saúde pública, na falta de am paro religioso etc. Tal

interpretação desconsidera a existência de u m a longa tradição cultural presente na constituição

desses grupos sociais, não considerando suas crenças populares e religiosas com o expressão

cultural de determ inada localidade ou reg iã o .162

A carta oferece contribuições sobre alguns fatos do conflito. “H á algum tem po, tem -se

ouvido rum ores e notícias m ais sérias sobre a aparição de um “ santo” ou “ m onge” na região

fronteiriça, especialm ente no 6° distrito do m unicípio vizinho de Soledade” . C onfirm a a

relevância do santo m onge no p rincípio do m ovim ento. “ C onhecida com o um a região em si

não m uito tran q u ila (...)” provavelm ente referindo-se aos conflitos políticos que agitavam o

m unicípio e a prática da v io lên cia existente na região. (K O L O N IE , 27/04/1938, p. 2)

D em onstram os a existência de sinais e indícios no sentido de C arlo G inzburg (1989, p.

143-179). A o serem questionados e interpretados esses sinais e indícios contribuem para a

construção de saberes e de inform ações. P ara G inzburg, “ o que caracteriza esse saber é a

capacidade de, a partir de dados aparentem ente negligenciáveis, rem ontar a um a realidade

com plexa não experim entável diretam ente” . (1989, p. 152).

U m a publicação oriunda de S an ta M aria inform ou o envio de tropas para com bater os

M onges B arbudos: “ desta cidade seguiu, para norm alizar a situação, um a força de quarenta

praças do 1° R egim ento da B rigada M ilitar” . (C O R R E IO D O PO V O , 21/04/1938, p. 16)

N o C orreio do P ovo datado de 27 de abril de 1938, localizam os u m a reportagem

intitulada Osfanáticos alarmavam as populações de Sobradinho e Soledade. N esta reportagem

tem o s um a página contendo fotografias dos m onges presos e um a entrevista concedida pelo

capitão R io g ran d in o da C osta e S ilva relatando sua m issão em Soledade. H á dados sobre a

rem essa das tropas, im pressões do capitão sobre os M onges B arbudos, o trab alh o de

doutrinação, os m otivos, que, segundo o entrevistado, teriam contribuído para os

acontecim entos, os conflitos ocorridos e a pacificação da região. D estacam os a im portância das

im agens, o que nom eam os de “ a fonte dentro da fonte” , ou seja, tem os acesso a raras im agens

dos M onges B arbudos presos pelos policiais. V isualizam os as ações de repressão ao

162 Essa forma interpretativa foi rebatida por WITTER (2001 e 2007). Segundo a autora, o curandeirismo não
ocupava um espaço deixado pelo branco, mas sim ocupava o espaço que sempre ocupou.

259
m ovim ento, o tratam ento e a hum ilhação a que foram expostos. C ontribui para a singularidade

desta fonte visual é sua inexistência nas dem ais fontes consultadas. A través da im prensa

tom am os conhecim ento de que “no m esm o dia em que se dera o fato, (...), o governo foi

cientificado de tu d o o que ocorria, em virtude de com unicação recebida dos delegados de

polícia de Soledade e de S obradinho” . (C O R R E IO D O PO V O , 27/04/1938, p. 14) A inda nesta

reportagem tem os que o interventor federal C ordeiro de Farias contribuiu para a ação: “ a

P refeitu ra de S obradinho, po r interm édio do respectivo prefeito m unicipal, sr. Santo Carniel,

tam bém cooperou bastante no sentido de facilitar a ação do delegado auxiliar de acordo com

as instruções recebidas do interventor federal” . R etornando para P o rto A legre R io grandino da

C osta e Silva relatou ao capitão A urelio Pi (chefe de polícia) e ao interventor o que observou

fazendo um am plo relatório verbal. (D IÁ R IO D E N O T ÍC IA S , 27/04/1938, p. 5)

R iograndino inform ou ainda a ocorrência de um segundo confronto entre m ilitares e os

M onges B arbudos. A pós o velório prolongado e o enterro de T ácio Fiúza, um dos líderes do

m ovim ento religioso, os “ denom inados fanáticos” dispersaram -se p ara diversas regiões. E stes

reapareceram no distrito de Jacuizinho, em Soledade. N essa lo calidade se encontrava um a

escolta com o delegado de polícia de Soledade. N esse encontro ocorreu um novo conflito,

resultando em um m em bro do m ovim ento religioso ferido. T am bém relatou as providências

tom adas com o propósito de evitar futuras reuniões do grupo religioso.

Para evitar que possam abandonar suas habitações e fazer reuniões em outros pontos
o cap. José Rodrigues da Silva vai espalhando pela região destacamentos montados
ou motorizados, que terão a vigilância de toda a zona, no sentido de não permitir
mesmo que, amanhã ou depois, se possam repetir as reuniões em outros pontos
diferentes. (...) Para maior eficácia desta ação, ainda vai dirigir o serviço policial nos
dois municípios, dispondo para isso não só dos destacamentos locais como também
dos reforços que foram enviados de Santa Maria e de Passo Fundo. (CORREIO DO
POVO, 27/04/1938, p. 14)

H á inform ações de que alguns M onges B arbudos foram trazidos para P orto A legre.

“ C hegou, preso, ontem , m ais um M onge” (...) “ (...) detidos alguns chefes, e enviados para esta

capital, ju n tam en te com a Santa C atarina” . (D IÁ R IO D E N O T ÍC IA S , 04/04/1938, p. 4)

Frei C lem ente era pároco de Soledade e fez u m a incursão ao reduto dos M onges

B arbudos a pedido do capitão chefe de polícia. V indo a P orto A legre relatar suas im pressões

para o capitão A urelio P y e para C oelho de Souza, então secretário da E ducação, concedeu um a

entrevista na qual tem os seu relato sobre os M onges B arbudos. P odem os id en tificar o m edo de

um novo C anudos, “ dir-se-ia algum novo A ntônio C onselheiro a reu n ir b andos arm ados e

alucinados, a fim de oferecer resistência à ação legal de repressão e disciplina” . D eclarou existir

260
abusos de poder naquela região: “ essas autoridades m unicipais queriam fazer u m a farra, dando

ensejo aos perseguidores daquela gente sim ples, (...) para saqueá-la, espancá-la e m assacrá-la

com o até aqui tinha acontecido” . C om plem entando disse que “ a força arm ada já estava pronta

em Soledade para serem recom eçadas as m esm as atrocidades de outrora” . Sobre os m onges

pesava a acusação de serem com unistas. Sobre isso o frei declarou que “ os m onges da colônia

das T u n as eram acusados de com unism o, saques, im oralidade, aversão ao trabalho e não

pagam ento de im postos” . Q uanto ao com unism o disse “não há vestígio algum que a

fundam ente. (...) proclam am obediência absoluta às leis do B rasil e aos princípios gerais da

R elig ião ” . (C O R R E IO D O PO V O , 23/12/1938, p. 5)

A p o n ta m e n to s fin a is.

P odem os identificar a presença das questões políticas que vigoravam naquele período,

o contexto político nacional. A ssim , acreditam os te r dem onstram os ser possível id en tificar nas

páginas dos jo rn a is o im aginário, os estereótipos e representações a respeito dos M onges

B arbudos. A s publicações destacam a im agem do inim igo, do caboclo indolente, do ignorante,

de pessoas desprovidas de cultura. V isões que contribuem para legitim ar a repressão que foi

im posta aos cam poneses na Sem ana Santa de 1938 e nos m eses que se seguiram , com a

p roibição e caça aos rem anescentes do m ovim ento que m antinham sua fé na figura

tau m atúrgica do santo m onge.

L o c a is de p e sq u isa .

M useu da C om unicação H ipólito José da Costa. P orto A legre - RS.


C entro de D ocum entação da U N IS C - C E D O C - U niversidade de Santa C ruz do Sul. Santa
C ruz do Sul - RS.

F o n te s p e sq u isa d a s.

C O R R E IO D O PO V O (1934-1938).
D IÁ R IO D E N O T ÍC IA S (1934-1938).

261
K O L O N IE , Santa C ruz do Sul (A bril de 1938).

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263
NOVAS QUESTÕES E PERSPECTIVAS À DECOLONIALDADE: AS
INFLUÊNCIAS DOS ESTUDOS SUBALTERNOS E DA HISTÓRIA
CULTURAL

F E L IP E C R O M A C K D E B A R R O S C O R R E IA 163

1. IN T R O D U Ç Ã O

O conceito de decolonialidade surge a partir da final da década de 90 com a em ergência

do grupo m odernidade/colonialidade em v irtude de d estacar e denunciar a continuidade de

p ráticas coloniais de opressão de gênero, raça e classe nos dias atuais. A s influências p ó s-

coloniais e provenientes dos grupos de estudos subalternos são indiscutíveis na trajetória da

form ação do grupo, porém , a b u sca por um lócus enunciativo próprio da A m érica L atina

acarretou, po r vezes, em u m a negligência às leituras do N orte global e u m a separação dos

cânones hegem ônicos por u m a “ superação” da colonialidade (B A L L E ST R IN , 2013). N esse

sentido, a H istória Social e da C ultural de Thom pson, D avis, G eertz, D arnton, C hartier e Barth,

em diálogo com os estudos subalternos de Spivak, C hakrabarty e G uha, nos possibilitam pensar

em form as novas de nos relacionar com o m undo - ou novas lentes para form as antigas de se

relacio n ar com o m undo negligenciadas por u m a geopolítica do conhecim ento - polinizadas

nas p ráticas quilom bolas, capazes de im p o r questões latentes às epistem ologias decoloniais.

D esse m odo, o objetivo deste texto é traçar, a partir das influências dos estudos subalternos e

da H istória Social e da C ultura, novas questões e perspectivas não aprofundadas po r um a visão

segregacionista ainda existente em estudos decoloniais, capazes de p otencializar p ráticas de

rom pim ento com as am arras da colonialidade.

N o tex to América Latina e o giro decolonial (2013) de L uciana B allestrin, no qual a

autora faz um b alanço h istoriográfico da criação do grupo M odernidade/C olonialidade,

B allestrin im põe questões ao grupo que ainda não parecem claras quando analisam os as

epistem ologias decoloniais. U m a destas questões, e a que será debatida e desenvolvida neste

tex to foi: “ é possível ro m p er com a lógica da colonialidade da m odernidade sem que

163Graduado em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), mestrando em
História Social e da Cultural pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO) e bolsista
C A PES.

264
abandonem os as contribuições do pensam ento ocidental/europeu/ilum inista - especialm ente,

liberalism o e m arxism o - para a própria decolonização?” (B A L L E ST R IN , 2013, p.112).

D esse m odo, p en sar de que fo rm a as experiências e teorias provindas do N orte global

podem lap id ar e aprim orar nossas lentes analíticas do Sul G lobal para nossa realidade

am efricana é a questão central a ser debatida. A lém disso, as form as pelas quais estas teo rias e

p ráticas serão utilizadas, a fim de não reatualizar a colonialidade do saber, ou seja, esta

g eo política do conhecim ento que p rioriza e concede m aior im portância as teorias vindas da

E uropa-E U A , fará parte da prática contra-colonial desta escrita. P o r fim , a hipótese de

B allestrin de que ao separarm os o N orte do Sul, ao não lerm os e escreverm os confluindo com

estes outros saberes num a escrita decolonial apenas recriam os um novo “ saber m elhor” , está

de acordo com a ideia, ainda em estado de g erm inação neste texto, de que após duas décadas

do surgim ento do conceito da decolonialidade, a busca po r conexões culturais que confluam

com saberes que potencializem o d esm antelam ento da colonialidade/m odernidade, seja estes

tan to do N orte com o do Sul global, está cada vez m ais aceita e frequente nos estudos

decoloniais dentro e fora do am biente acadêm ico.

2. A S O R IG E N S D A R E S IS T Ê N C IA E R E -V IV Ê N C IA D E C O L O N IA L

A s análises profundas conferidas não só aos m ecanism os coloniais que desvalorizaram

saberes e povos, m as tam bém às práticas cotidianas de resistência e re-v iv ên cia que

perm anecem organizando relações sociais, políticas e econôm icas dissem elhantes ao m undo

capitalista ocidental, são as b ases das epistem ologias decoloniais. A origem da decolonialidade

não está vinculada ao m om ento em que o term o é cunhado pelo grupo

m odernidade/colonialidade na passagem dos anos 90 para o novo m ilênio. P elo contrário, o

início de suas práticas de desm antelam ento e desprendim ento das form as coloniais de m undo

estão presentes, para W alter M ignolo, desde a colonização das A m éricas. A o pontuarm os a

existência da colonialidade, ou seja esta inserção europeia no que se cham ou posteriorm ente

de A m éricas com p ráticas violentas que se sedim entaram até hoje em instituição, práticas

sociais, na p o lítica e na econom ia, na qual a A m érica L atin a foi o epicentro deste projeto de

hegem onia, j á estam os discursando ju n to a estas epistem ologias decoloniais.

D e form a m ais específica, para M ignolo (2010), é possível p erceb er a m arca decolonial

na denúncia ao colonialism o peruano desde W am a P om am de A yala em 1616. A yala foi um

intérprete indígena no projeto de colonização do P eru que produziu o prim eiro docum ento

265
híbrido conhecido, sua crônica, a qual excedia suas perspectivas pessoais ao abordar

ideologicam ente as questões coletivas. A ssim , este integrante do vice-rein ad o peruano

incorporou as form as ocidentalistas discursivas de escrita, a fim de reivindicar um “buen

governo” . P o r m eio da denúncia das práticas da inquisição, W am a P om am de A yala nas

palavras de G iane L essa “inaugurou um gênero híbrido que, acim a de tudo, representou um ato

de resistência e subversão à ordem colonial que se estabelecia.” (LESSA , 2009, p. 1). Sua

crônica intitulada “N ueva C orônica y B u en G obieno” com 1200 páginas foi e nviada ao Rei

F elipe III, a fim de forn ecer u m a outra versão da “ conquista” hispânica, colocando em destaque

na h istória os povos indígenas e m ostrando u m a form a de governo possível sem as atrocidades

e desigualdades do colonialism o.

O m om ento em que W am a P om am de A yala se conecta ao objetivo deste tex to é ao

encontrarm os as análises decoloniais de W alter M ignolo, um dos fundadores do grupo

M odernidade/C olonialidade. N esse sentido, ao tratar das práticas decoloniais, M ignolo elabora

o conceito de desprendim ento, “ o giro decolonial é um projeto de desprendim ento epistêm ico

na esfera do social” (M IG N O L O , 2010, p. 15). E ste corte das am arras proposto pelo autor, que

W am a P om am buscou em sua crônica, é fundam ental a fim de desm antelarm os a m atriz de

p o d er colonial e não perpetuarm os a colonialidade, com posta p ela colonialidade do poder,

saber e ser.

A ssim , para M ignolo, o p rim eiro passo para aprender e fazer ru ir o sistem a-m undo que

p erpetua opressões, hierarquias e desigualdades do colonialism o é d esaprender e,

posteriorm ente, re-aprender. A o p ensar em desaprender, rem ete-nos ao desprendim ento dos

m ecanism os coloniais de poder que constituem a colonialidade, e ao m esm o tem po, a

m odernidade. D esaprendendo a dividir povos, segregar saberes, n egligenciar corpos e

d esum anizar indivíduos, serem os capazes de re-ap ren d er com outras totalidades não universais,

m as pluriversais (M IG N O L O , 2010). P o r isso, para M ignolo, aprender com saberes de outras

epistem ologias, políticas, éticas, cosm ogonias e cosm ologias apenas será possível po r um

pensam ento fronteiriço, o qual ultrapassa a m onocultura do saber da geopolítica do

conhecim ento eurocentrada do sistem a-m undo/colonial.

A ssim com o a prática decolonial de W am a P om am de A yala, para M ignolo, “ o

desprendim ento, portanto, não significa negar e ig norar o que não se pode negar, m as saber

u tilizar as técnicas e estratégias im periais com propósitos descoloniais” (M IG N O L O , 2010, p.

39, trad u ção m inha.). D iante disso, para M ignolo - e, possivelm ente, um a resposta à B allestrin

- não devem os negar os saberes do norte global, m as os utilizar de u m a form a contra

hegem ônica, capaz de p o tencializar a escuta e o aprendizado com outras epistem ologias

266
apagadas, negadas e relegadas ao ostracism o por um a história lin ear e eurocentrada. L uciana

B allestrin com plem enta ao detalhar o m ovim ento não in iciad o pelo grupo

M odernidade/C olonialidade de decolonizar a geopolítica do conhecim ento:

O processo de decolonização não deve ser confundido com a rejeição da criação


humana realizada pelo Norte global e associado com aquilo que seria genuinamente
criado no Sul, no que pese práticas, experiências, pensamentos, conceitos e teorias.
Ele pode ser lido como contraponto e resposta à tendência histórica da divisão de
trabalho no âmbito das ciências sociais (Alatas, 2003), na qual o Sul Global fornece
experiências, enquanto o Norte Global as teoriza e as aplica (Connell, 2012). Nesse
sentido, é revelador que ao esforço de teorização no Brasil e na América Latina
caibam os rótulos de “pensamento” e não “teoria” social e política. Atualmente,
diversos autores e autoras, situados tanto nos centros quanto nas periferias da
produção da geopolítica do conhecimento, questionam o universalismo etnocêntrico,
o eurocentrismo teórico, o nacionalismo metodológico, o positivismo epistemológico
e o neoliberalismo científico contidos no mainstream das ciências sociais. Essa busca
tem informado um conjunto de elaborações denominadas Teorias e Epistemologias
do Sul (Santos e Meneses, 2010; Connell, 2007), as quais procuram valorizar e
descobrir perspectivas trans-modernas, no sentido de Dussel, para a decolonização
das ciências sociais. Assim, as vozes do M/C acabam somando-se a um movimento
mundial em curso de refundação e descolonização epistemológica (BALLESTRIN,
2013, p.109)

3. P O S S ÍV E IS A P R O P R IA Ç Õ E S D A H IS T Ó R IA S O C IA L E D A C U L T U R A

A H istó ria Social inglesa e a H istória C ultural francesa possuem a tarefa essencial de

to rn ar possível as descrições m inuciosas da H istória, a partir da dim ensão sim bólica de cada

ação. A o contrário de b u scar generalizações e form as de pensar universais, estes cam pos, que

se conectam atualm ente, analisando a H istória à contrapelo e resgatando o “ pobre tecelão de

m alhas” de E dw ard P alm er Thom pson, ao passo que nos perm item tam bém enxergar os

códigos e sentidos produzidos pelos indivíduos que dão sentido ao m u n d o . E m constante

diálogo com a antropologia, a H istória Social e a H istória C ultural colocam em destaque não

as respostas às velhas perguntas, m as as diferentes respostas que foram feitas “ apascentando

outros carneiros em outros vales — e assim incluí-las no registro de consultas sobre o que o

hom em falou” (G E E R T Z , 1978, p. 21). D esse m odo, por um viés decolonial, não devem os

b u scar a teoria eurocentrada para aplicar na A m érica L atina, pois estaríam os reproduzindo a

m esm a geopolítica eurocentrada do conhecim ento. T am bém não é possível negar a existência

deste cam po de saber e suas produções relevantes para a h istória “vinda de b aix o ” . D evem os,

por outro lado, nos apropriarm os das leituras e práticas deste cam po, em v irtude de desm antelar

e denunciar a colonialidade. A ssim , perm itindo-nos encontrar form as de viver, resistir, nos

267
relacio n ar e organizar que o sistem a-m undo m oderno/colonial - o qual não devem os esquecer

os locais em que se estabeleceram seus laboratórios n ecropolíticos,- ainda procura exterm inar.

E m Folclore, antropologia e história social(1997), E dw ard P alm er T hom pson se

conecta às preposições de N atalie D avis e R o b ert D arnton, ao m ostrar que o estím ulo

antropológico não está na produção de padrões, m as na construção de novas lentes analíticas

para problem as antigos, enfatizando o que foi deixado de lado po r um a historiografia que não

olhou para os rituais, as festas, os costum es e os sím bolos. A historicização da cultura é,

certam ente, um dos artifícios que a decolonialidade deve trabalhar, m esm o que não centrado

som ente nas disputas de classes, com o o fez T hom pson, po r suas b ases m arxistas:

A cultura conservadora da plebe quase sempre resiste, em nome do costume, às


racionalizações e inovações da economia (tais como os cercamentos, a disciplina de
trabalhos, os “livres” mercados não regulamentados de cereais que os governantes,
os comerciantes ou os empregadores querem impor. (THOMPSON, 1998, p. 19)

A s diferentes form as de resistir às m udanças da m odernidade nos perm ite realçar, a

p artir de Thom pson, que a universidade e as ciências ocidentais não são as únicas produtoras

de saber, m esm o que a todo m om ento sejam colocadas, pela colonialidade do saber, neste

patam ar. C om o nos m ostra D o n n a H araw ay “ a ciência é um texto contestável e um cam po de

poder” (H A R A W A Y , 2005, p.11). O conhecim ento, a erudição e a ciência estão diretam ente

ligados ao p o d er e à autoridade racial epistêm ica. C hakrabarty pontuará que a universidade não

pode ser o lu g ar de surgim ento de u m a pensam ento contra-hegem ônico, pois será im possível

desvirtuar desta ideia im portada de E uropa “E nquanto continuar operando dentro do discurso

da “história” produzido na sede institucional da universidade” (C H A K R A B A R T Y , 2020,

p.124). A h istória nada m ais é do que um a disciplina dentro do sistem a de conhecim ento que

se b aseia tam bém no E stado-nação. A ssim com o cita A lthusser no início de seu texto, podem os

com preender o porquê para o autor a universidade faz parte das ferram entas que perm item os

jo g o s de verdade dos E stados-nações, pois para A lthusser é um aparelho ideológico do E stado.

P o r isso, ao recorrerm os as teses de D avis poderíam os nos apropriar de seus estudos

sobre as abadias e desgovernos, a fim de lapidarm os nossas com preensões sobre as resistências

“ na vida com um ” às opressões coloniais, as quais se perpetuam no cotidiano do Sul G lobal.

E m Razões do desgoverno (1990), D avis busca h istoricizar o desgoverno a p artir de grupos de

jo v en s e suas práticas na sociedade do século X V I até o século XIX. A experiência das abadias,

para a autora, não era apenas um a escapatória da realidade turbulenta da m odernidade, m as

perpetuava valores e provocava grandes abalos à crítica política da época. V isto que a

268
experiência é esta inter-relação do ser social e u m a resposta em ocional ou m ental espontânea

que surge pelas suas indagações ao m undo (T H O M P SO N , 1998). A in teligência na desordem

é v ista tam bém em O grande massacre de gatos (1986) de D arnton, cuja tese principal do autor

pode ser sintetizada pela existência na vida com um de estratégias e inteligibilidade, m esm o que

sob a ótica da desordem . T odavia, esta escala reduzida dos pertencim entos sociais, valores e

sím bolos que nos perm item enxergar as estratégias e interações deve, para G inzburg (2007),

rejeitar u m a h istória única, linear e universal, ou seja, contrariar o etnocentrism o e a teleologia.

D iante disso, as elaborações da H istória Social e da H istória C ultural podem ser

apropriadas pelas epistem ologias decoloniais, principalm ente na recuperação de histórias,

representações, costum es e valores que excedam o ocidente capitalista. A dem ais, c o m o nos

m ostra B arth (2005) o resultado das inter-relações do ser social, ou seja, o resultado das

experiências, é a cultura. P orém , “ A cultura está sem pre em fluxo e em m udança, m as tam bém

sem pre sujeita a form as de controle.” (B A R TH , 2005, p. 22). D e outro m odo, as influências da

H istória Social e da cultura nos perm item aperfeiçoar nossas análises sobre os apagam entos,

controles e silenciam entos culturais, bases da colonialidade. Possivelm ente, e esta é um a das

prem issas da decolonialidade, a prática de relem b rar outras cosm opercepções de m undo e de

d enunciar as desigualdades e hierarquias que continuam a d esum anizar e m atar determ inados

grupos, perm ita-nos fazer ru ir o sistem a m undo-colonial.

4. IN F L U Ê N C IA S D O S E S T U D O S S U B A L T E R N O S N A D E C O L O N IA L ID A D E E
SU A S R E L E IT U R A S

O Subaltern Studies foi um grupo criado na década de 1970, no sul asiático. F orm ado

por diversos intelectuais, reuniu as teses de estudos da teoria e filosofia política de P artha

C hatterjee, da classe operária indiana de D ipesh C hakrabarty, da subalternidade de Gayatri

C hakrabarty Spivak, da h istória do cam pesinato de Shahid A m in, dos cam poneses na índia do

N o rte de G yanendra P andey e da h istória da transição do Im pério m ongol para o Im pério

b ritânico de G uatam B hadra. P roveniente do m arxism o indiano e im erso nas teorias pós-

coloniais de Franz F anon e A lbert M em m i, concom itante à escrita do orientalism o de E dw ard

Said e do encontro colonial de Talal A ssad, a form ação do grupo ocorre no interior do C entro

de E studos de C iências Sociais (C SSC ) de C alcutá. Se reconheceram , assim com o os A nnales,

reunindo-se em torn o de um a revista, o Subaltern Studies, de ten d ên cia m arxista, liderados por

R an ajit Guha. O grupo tin h a a finalidade de investigar a historiografia eurocentrada colonial

269
in d ian a analisando a insurgência de cam poneses e buscava “reescreve r o desenvolvim ento da

consciência da nação indiana” (SPIV A K , 2010, p. 61). P ara eles, a p rodução da subalternidade

é fruto de um projeto im perialista, partindo do princípio que a subalternidade não é um a

categoria m orfológica, m as u m a perspectiva e po sição social. (DAS, 2008). O conceito de

subalterno de A ntonio G ram sci foi apropriado pelo grupo, ao criticar os ideais pós-

estruturalistas (Foucault, D errid a e D eleuze), o que é evidenciado na problem atização de

Spivak sobre a subalternidade. E m sum a, as teo rias pós-coloniais do grupo de estudos

subalternos estão vinculadas a um processo de historicização radical do lócus de enunciação.

A ssim , com o um a posição de crítica que surge dentro da elite, trouxeram um a grande revisão

historiográfica da Índia colonial po r um viés in terd iscip lin ar histórico-antropológico que

abordaram o colonialism o, suas resistências e suas relações de poder. D essa form a, tinham o

objetivo de criticar e criar u m a alternativa à h istória nacionalista tradicional, neoim perialista e

m arxista da Índia m oderna, por m eio da recuperação da “voz” subalterna que se aproxim a da

“H istória vista de b aix o ” , criticando a hegem onia de um a h istória capitalista global que não

olhava para determ inados grupos.

A s proposições deste grupo do sul asiático inovaram ao tra z er a perspectiva subalterna,

realocando o sujeito que fala contra um a análise eurocentrada. N esse sentido, a experiência

colonial é fundam ental para a produção da subalternidade, a partir das desigualdades e

hierarquias que com põe a situação colonial. O grupo enxerga a(o) subalterna(o) com o atriz/ator

da m udança história, por m eio de um a reapropriação da representação do colonialism o indiano.

N este ponto que os intelectuais que com põe este grupo se divergem de G ram sci, pois m esm o

utilizan d o seu term o, pensam na autonom ia dos subalternos, algo que para G ram sci não existia.

T odavia, não devem os b u scar u m a unid ad e no grupo inexistente, visto que a heterogeneidade

e a diversidade com punham a realidade do grupo de estudos subalternos (G U H A , 1987). C om o

exem plo, com exceção do em blem ático caso de C handra analisado por R anajit G uha, o

prim eiro volum e dos estudos subalternos não possui elaborações sobre as questões de gênero

e suas intersecções com a subalternidade, com o anos depois se enxerga com os escritos de

G ayatri Spivak (2010).

A ssim com o Spivak, G uha em La muerte de Chandra (1987) contraria o anti-

hum anism o de F oucalt que enxerga o poder apenas a partir de suas práticas, negligenciando o

sujeito e generalizando as condições de poder. A subalternidade, com o um processo e um a

posição social, é vista no texto de G uha na resistência do B agdís (casta m ais baixa) às fortes

consequências das transgressões sexuais fem ininas, com o no caso de C handra. E sta

som atopolítica da vigilância e opressão sobre o corpo fem inino que C handra reage, com prova

270
as opressões do regim e colonial na sociedade rural indiana em m eados do século X IX e

im possibilita a plenitude de um a h istória que descreve linearm ente e de form a ordenada o

passado, visto a fragm entação da H istória causada pela experiência subalterna. E ste registro de

vozes anteriorm ente apagadas, com o no caso de C handra, p erm ite-nos questionar o que fazer

ao olhar para outros povos e culturas. Sob u m a ótica decolonial, influenciada diretam ente pelos

estudos subalternos, para pensar a situação de C handra e da m u lh er na sociedade de castas em

suas partes m ais em pobrecidas da Índia, não se deve olhar com um pensam ento fem inista

ocidental branco, exportando um a fo rm a de com bate e luta fem inina. P elo contrário, devem os

adentrar no estudo sobre o contexto cultural dos sujeitos envolvidos, em v irtude de

com preender seus valores, sím bolos e representações, visto que para G uha (1987) olhar os

sujeitos da ação e seus contextos socioculturais

D iante disso, as influências capazes de potencializar o olhar contra-colonial dos estudos

subalternos nas epistem ologias decoloniais são as que partem da restauração da condição de

ser histórico das tribos, castas e outros grupos subalternizados. A o retirar a passividade

atribuídas a estes grupos po r um discurso eurocêntrico, iniciam os um processo de

desm antelam ento do sistem a m undo colonial/m oderno. A s histórias subalternas em contextos

diferentes podem ser apenas histórias, m as saber colocá-las em seus contextos de assim etrias

de p o d er e dom ínios coloniais nos perm item restaurar seus poderes. P ara isso, não devem os

descartar as ideias que não provém de um lócus de enunciação da A m érica L atina por suas

b ases na colonialidade do saber que ainda privilegiam leituras do N orte G lobal, m as

com preender que nas nossas relações com estas experiências que nos oprim em , tam bém as

deslocam os e as transform am os. C om o P om am de A yala, ao nos apropriarm os e

ressignificarm os o discurso e estas epistem ologias, com o os estudos subalternos, devem os

trazer estas ideais para nossa realidade am efricana a p artir de estratégias e ferram entas com

intenções decoloniais.

5. P R Á T IC A S IN S U R G E N T E S

Precisamos de uma rede de conexões para a Terra, incluída a capacidade parcial de


traduzir conhecimentos entre comunidades muito diferentes - e diferenciadas em
termos de poder. Precisamos do poder das teorias críticas modernas sobre como
significados e corpos são construídos, não para negar significados e corpos, mas para
viver em significados e corpos que tenham a possibilidade de um futuro.
(HARAWAY, 2005, p. 16)

271
A s ideias de H araw ay estão em constante diálogo com o cosm opolitism o insurgente de

B o aventura de Souza Santos, o qual parte de u m a ecologia de saberes que devem fertilizar a

im aginação. N ão à toa, ao discursar sobre esta transição p aradigm ática - a qual poderia não ser

cham ada de transição, m as de quebra, visto que a tran sição evoca o conceito lin ear de

substituição po r a lg o - Santos propõe três ferram entas estratégicas. A prim eira é a apropriação

contra-hegem ônica, na qual as form as de pensar, agir e se relacio n ar devem q uebrar a

m entalidade do colonizador, com o elaborado no decorrer deste tex to e visto na experiência de

W am a P om am de A yala. A segunda são as zonas liberadas, estas necessidades de buscarm os

laços que pensem além , com o as com unidades de p articipação livre e total, sem hierarquias e

dicotom ias e com um a dim ensão educativa. U m exem plo de zonas liberadas são os quilom bos,

os quais para B eatriz N ascim en to “não significa escravo fugido. Q uilom bo quer dizer reunião

fraterna e livre, solidariedade, convivência, com unhão existencial” (N A S C IM E N T O , 2015, p.

263). O quilom bism o, com o prática de libertação e protagonism o na h istória é capaz de

m o b ilizar grupos relegados ao estado periférico por raízes culturais, histórias e de experiências

afrodiaspóricas. A luta po r terras faz parte de u m a séria de conquistas, disputas e negociações

ancestrais que por caracterizar um a prática contra-colonial, com o denom ina N ego B ispo, capaz

de denunciar e sobreviver a colonialidade, é tam b ém decolonial. A lguns quilom bos já foram

legalizados, com o “essa rede de associações, irm andades, confrarias, clubes, grêm ios, terreiros,

centros, tendas, afoxés, escolas de sam ba, gafieiras” (N A S C IM E N T O , 2015, p. 255). P o r

últim o, possivelm ente o m ais próxim o das ideias de quebra de Jota M o m b aça propostas em seu

livro Não vão nos matar agora (2018), Santos dialoga sobre as ruínas sem entes, nas suas

palavras:

Quando tudo parece estar em ruína, não há outra alternativa senão procurar nas ruínas,
não só a memória do que já foi melhor, como sobretudo a desidentificação com o que
no desenho das fundações contribuiu para a fragilidade da edificação. (SANTOS,
2021, p. 257)

E stes sím bolos, resistências, cosm ologias e cosm ogonias dos subalternizados se

perpetuam apesar da opressão do capitalism o, colonialism o e patriarcalism o. C ontrários as

m onoculturas do saber, tem p o e classificação social, atrelados às zonas liberadas, ruinas

sem entes e apropriações contra-hegem ônicas fazem parte do que Santos cham ou de Sociologia

das em ergências. Práticas insurgentes que denunciam o sistem a m undo m oderno/colonial,

assim com o D ipesh C hakrabarty acentua que devem os q uestionar “ m ediante quais processos

históricos - sua “razão ” , que nem sem pre foi evidente para todos, tem sido apresentada de

272
m aneira que se vê com o “ obvia” para além dos terren o s em que se originou”

(C H A K R A B A R T Y , 2020, p.124). E perm item -nos explorar outras form as de nos relacionar

com o m undo, po r outros saberes organizações políticas, sociais e econôm icas. “ A alternativa

ao relativism o são saberes parciais, localizáveis, críticos, apoiados na possibilidade de redes de

conexão, cham adas de solidariedade em política e de conversas com partilhadas em

epistem ologia.” (H A R A W A Y , 2005, p. 22) P rovincializar a E uropa, praticar quilom bism os,

ressignificar discursos hegem ônicos com o A yala são form as de d esm antelar a colonialidade,

m esm o que por m eio de influências da H istória S ocial e da C ultura e dos E studos Subalternos.

P o r fim , não é necessário d itar o que estar po r vir, m uito m enos desacreditar em nossas ações,

m as escrevendo sobre as assim etrias de poder da m odernidade, q uestionando a linearidade e a

u niversalidade do capitalism o ocidental e estabelecendo conexões culturais com outros saberes

- de povos originários e afrodiaspóricos, pretos, m ulheres e suas intersecções - som os capazes

de desprenderm os da geopolítica do conhecim ento e fazer ruir esta form a de m undo hierárquica

e desigual.

B IB L IO G R A F IA

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274
COLUNAS EM MARCHA PELO MATO GROSSO: APROXIMAÇÕES
ENTRE A RETIRADA DA LAGUNA (1867) E A COLUNA MIGUEL
COSTA - PRESTES (1925)

F E R N A N D O D O S A N JO S S O U Z A 164

1 C o n s id e ra ç õ e s in ic ia is

E ste artigo focaliza a R etirada da L aguna (1867) e a passagem da C oluna M iguel C osta

- P restes (1925), cam panhas bélicas desenvolvidas na porção sul do A ntigo E stad o de M ato

G rosso, região correspondente ao E stad o de M ato G rosso do Sul, a ser especificada neste

trab alh o pela abreviatura SM T.

A R etirad a da L aguna está inserida na G uerra da T ríplice A liança (1864-1870). Em

dezem bro de 1864, as tro p as do Paraguai invadiram e ocuparam parte do território brasileiro,

atualm ente equivalente ao E stado de M ato G rosso do Sul. P ara desalojá-los, o governo im perial

organizou u m a expedição m ilitar que, em 21 de abril de 1867, adentrou ao território paraguaio,

atravessando o R io A pa em B ela V ista, e em 1° de m aio, alcançou a Invernada da Laguna,

assim denom inada pela existência de um a lagoa em sua área, distante cerca de v in te e poucos

quilôm etros da fronteira. A s tro p as im periais buscavam encontrar gado bovino para

alim entação. E ncontraram apenas o lugar arrasado e devastado. C om a falta de m antim entos e

a am eaça da fom e im inente, em 8 de m aio decidiu-se pela retirada.

E m 11 de ju n h o de 1867, os retirantes, após cerca de 230 quilôm etros percorridos em

35 dias de m archa, alcançavam o P o rto C anuto, no lado esquerdo do rio A quidauana. D urante

a operação m ilitar, estam pada na F igura 1, percorreram , desde O uro Preto, origem do

m ovim ento das tro p as m ineiras, 3.927 quilôm etros, segundo G uim arães (1999, p. 194). O

percurso encerrou-se dois anos e dois m eses depois de ser iniciado, não com putando o

prosseguim ento da m archa pelos sobreviventes para C uiabá e R io de Janeiro.

T enentism o ou M ovim ento T enentista são denom inações p ara um conjunto de levantes

ocorridos na P rim eira R epública (1889-1930), liderados por oficiais de nível interm ediário,

com predom inância dos tenentes, secundados por capitães.

164 Doutor em História. Militar da Reserva Remunerada, prestando tarefa por tempo certo no Comando da 4a
Brigada de Cavalaria Mecanizada (Dourados/MS).

275
Os m ilitares revoltosos, unidos com setores dissidentes da oligarquia dom inante,

prom overam levantes em São P aulo e R io G rande do Sul. U nificados em torn o do objetivo de

derrubar o presidente A rthur B ernardes, procuravam a recondução do sistem a político aos

parâm etros ju ríd ico -p o lítico s im plantados pela C onstituição de 1891.

F igura 1 - E x p edição ao Sul da P rovíncia F igura 2 - A C am panha de M ato G rosso da


de M ato G rosso e a R etirad a da L aguna C oluna M iguel C osta P restes

Is*0 PAULO

Campinas
SáaPau

UniãolAnia

Legenda

Pontos
Hidrografia Grosso revolucionário

Divisão Estadual Marcha de destacamentos

Limite Internacional

Projeção Geográfica SIRGAS2000


Fonte: Malha Municipal - IBGE. 2013.
Ver fonte do intinerário.
Edição: RIBEIRO, A.F.N., 2018

Fonte: Acervo da Diretona do Patnmônio Fonte: Prestes (1991, p. 186). Elaborado por Angelo Franco
Histórico e Cultural do Exército, autoria de do N. Ribeiro (2018)
Valdemar Franciscehtti (2019)

A fração paulista, duram ente reprim ida, m archou em direção ao E stado de M ato G rosso,

chefiada po r M iguel C osta, e, em seguida, b uscou a ju n ç ã o com os revoltosos gaúchos. A

B rig ad a gaúcha, após diversas derrotas, cam inhou rum o ao N orte, com andada por L uis C arlos

Prestes. A ju n ç ã o ocorreu em 12 de abril de 1925, em Santa H elena/PR . Form aram a 1a D ivisão

R evolucionária, tam bém conhecida com o C oluna M iguel C osta - Prestes. E m m archa, a coluna

cruzou o território do Paraguai e penetrou no SM T.

A vanguarda da C oluna M iguel C osta - Prestes, com andada pelo coronel João A lberto

L ins de B arros, penetrou no SM T em 30 de abril de 1925. A coluna percorreu um a faixa a leste

276
da Serra de M aracaju, quase central na região, e seguiu ao final com u m a ligeira inflexão para

leste, até o ingresso no E stado de G oiás, após 53 dias de m archa, em 23 de ju n h o , pela serra de

Santa M arta, na região do B aús, ao norte do atual m unicípio de C osta R ica, conform e

visualizados na Figura 2.

C om o desenvolvim ento de operações pelo in terio r do B rasil, a C oluna M iguel C osta -

P restes teria percorrido cerca de 25.000 quilôm etros. C om putando-se a data da internação em

território boliviano, 3 de fevereiro de 1927, e a saída de São P aulo pela C oluna P aulista rum o

ao M ato G rosso, em 27 de ju lh o de 1924, a coluna esteve po r dois anos e seis m eses varando

os sertões brasileiros. O D estacam ento com andado por Siqueira C am pos, com 65 com batentes,

separado do grosso da C oluna, internou-se no Paraguai, po r B ela V ista, no SM T, em 24 de

m arço de 1927, segundo C arrion (2014, p. 18).

T aunay (2006, p. 48) m enciona a organização da F orça E x p edicionária ao Sul da

P rovíncia de M ato G rosso na cidade de U beraba, em ju lh o de 1866, com a reunião das tropas

vindas de M inas G erais, e utiliza o adjetivo expedicionária, qualificando a tropa que m archaria

para a C am panha de M ato G rosso. A dotou-se neste trabalho, em consequência, a denom inação

coluna para as duas tropas que m archaram pelo território m ato-grossense, diferenciando-as,
porém , pelos adjetivos expedicionária e revolucionária.

O trab alh o está baseado em pesquisas bibliográficas. Sobre a R etirad a da Laguna,

utilizou-se as obras do A lfredo d ’E scragnolle Taunay, o V isconde de Taunay, integrante com o

tenente da C om issão de E ngenheiros. Sobre a passagem da C oluna M iguel C osta - Prestes pelo

território do M ato G rosso, os livros de T ávora, M oreira L im a e P restes serviram de fontes para

as análises realizadas. P o r serem obras escritas por testem unhas das cam panhas, adquirem o

caráter m em orialista e são destinadas a preservar a m em ória coletiva. P o r isso, com o

fundam entação teórica na análise das obras, as observações de N o rá (1993), B ourdieu (2006),

P o llak (1989) e R icouer (2007) foram im portantes. E las alertam ao historiador sobre os

m onum entos com o lugares de m em ória, a seleção nos relatos autobiográficos de certos

acontecim entos significativos, dando-lhes coerência, e, ainda, sobre os m om entos de silêncio

e de esquecim entos nas m em órias.

C om o objetivo de identificar pontos de convergência e divergência entre as duas

epopeias bélicas, são apresentados neste texto os acontecim entos considerados im b ricad o s em

am bas: a existência de m ulheres entre os com batentes; a conduta com os canhões conduzidos

nas C olunas; os principais com bates realizados; o em prego de cavalos com o m eio de

locom oção e a obtenção de alim entos; a travessia de cursos de água; e as im p licaçõ es

econôm icas decorrentes.

277
2 A s m u lh e re s em m a r c h a n a s C o lu n a s: e n fe rm e ira s , c o m b a te n te s e a v e n tu r e ir a s

A presença das m ulheres e crianças, entre os retirantes da L aguna é m encionada por

T aunay (1960, p. 136). A pós a saída de U beraba, m ais de duzentas m ulheres acom panharam

os soldados, algum as com crianças, nascidas durante a m archa. E, durante a R etirada da

L aguna, setenta e um a persistiam acom panhando a tropa.

U m a m ulher de soldado é apontada com o heroína na R etirada da Laguna. S egundo

T aunay (2006, p. 108 e 133), ela cuidava, com o enferm eira, dos inúm eros feridos no com bate

de N handipá, travado a 11 de m aio de 1867. O reconhecim ento da participação das m ulheres

na C oluna E xpedicionária constata-se pela estátua denom inada “A na M am u d a” , com um a

criança sendo conduzida pelas m ãos, no M o num ento aos H eróis de L aguna e D ourados, erigido

na P raia V erm elha no R io de Janeiro.

A s m ulheres na C oluna M iguel C osta - P restes totalizavam no m áxim o cinquenta, cerca

de trin ta seguiam as tro p as paulistas e vinte as gaúchas, segundo P restes (1991, p. 179). E las

podem ser consideradas com o vivandeiras e aventureiras. A s vivandeiras, nom e adotado por

M oreira Lim a, incum bido de redigir o diário dos revolucionários, são aquelas que m archavam

junto com a C oluna, acom panhando seus m aridos e com panheiros.

A m ado (1987) relacionou pelos apelidos, algum as m ulheres com os revolucionários:

Ai! Jesus!, m u lh er espevitada; Onça, dançarina de m axixe; Cara de Macaca, confundida com
vaqueiros por u sa r roupas de couro; Hermínia, loira austríaca, casou-se com um revolucionário

negro; IsabelPisca-Pisca, confundida com a P rincesa Isabel pelos sertanejos m ais incultos;

Chininha, em bora gorda, era u m a andarilha sem igual e m archava m ais rápida que qualquer
soldado; Alzira, linda aos dezoito anos e de b o c a inculta; Albertina, gaúcha, a m ais form osa

das vivandeiras, b ondosa e bela; Tia Maria, acusada de ser feiticeira, invocava os deuses negros

da m acum ba para fech ar os corpos dos soldados da C oluna às balas inim igas. A Santa Rosa

teve um filho, o prim eiro a nascer durante a m archa da coluna e, vinte m inutos depois, m ontou

a cavalo, seguindo com a tropa, segundo L im a (1979, p. 131).

C om o aventureiras, considero as vinte m ulheres p araguaias identificadas no

acam pam ento nas proxim idades de C abeceira do Apa, p o ssivelm ente em 08 de m aio de 1867,

e que acom panharam o D estacam ento após a saída de P onta Porã. A s m ulheres “vestidas de

hom ens, se m isturavam à tropa, com a intenção de continuar na m archa. M an d ei-as logo de

volta a pé para P onta Porã, sob o o lhar m elancólico dos seus adm iradores” (B A R R O S, 1997,

p. 81).

278
P ara L im a (1979, p. 130), tal com o as vivandeiras da G uerra da T ríplice A liança, as

m ulheres acom panhavam a C oluna e prestavam serviços nas enferm arias, preparavam a com ida

dos soldados e algum as eram valentes e com bateram . E las eram adm iradas e queridas pelos

soldados e, de acordo com P restes (1991, p. 201), ainda que pouco num erosas, tam bém

com partilhavam do espírito de aventura e do entusiasm o dos com batentes da coluna.

A s explicações dos chefes revolucionários sobre a presença das m ulheres e a descrição

do com portam ento das m ulheres durante as m archas são pertinentes com os ensinam entos de

B ourdieu (2006, p. 184) sobre os relatos autobiográficos, quando se “procurar dar sentido, de

to rn ar razoável, de extrair u m a ló g ica ao m esm o tem po retrospectiva e prospectiva, um a

consistência e um a constância, estabelecendo relações inteligíveis” .

3 A a r tilh a r ia : o s a lv a m e n to e o a b a n d o n o dos c a n h õ es

O C orpo de A rtilharia form ava a artilharia da Força E xped icio n ária de M ato G rosso.

V indo do A m azonas, após u m a viagem em navios, partiram do porto de S antos em 27 de abril

de 1865, conduzindo 12 peças de canhão La H itte, de alm a raiada, calibre 4. A penas 86

artilheiros prosseguiram em 25 de abril de 1866, de C oxim para M iranda, levando quatro peças

de canhões, segundo T aunay (1960, p. 209). N a R etirada da Laguna, as quatro peças eram

com andadas por João T om ás da C antuária, João B atista M arques da Cruz, N ap o leão A ugusto

M uniz F reire e C esário de A lm eida N obre de G usm ão. Juntas de bois cargueiros tracionavam

os canhões, acoplados em arm ãos.

E m 25 de m aio de 1867, na execução da R etirada, com eçaram a ser queim adas as

carretas, carros m anchegos, e aqueles que serviam de fo rja e galera, para dar carne ao s soldados

(Taunay, 2006, p. 147 e 257). Seguiram -se cenas de sacrifício para preservar os canhões,

em purrados a braços pelos alagadiços e íngrem es barrancos.

N a travessia do rio M iranda, o m ajor em com issão José T om ás G onçalves apresentou a

id eia de tran sp o rtar para a outra m argem as quatro peças suspensas em um cabo, em vez de

abandoná-las subm ersas em um local profundo do rio. A transposição dos canhões realizou-se

com um esforço coletivo, salvando-se to d as as peças. T aunay (2006, p. 180) registrou o

reconhecim ento dos esforços expedicionários na condução dos canhões, constante na O rdem

do D ia de 12 de ju n h o de 1867: “ Soldados! H onra a v o ssa constância, que conservou ao Im pério

os nossos canhões e as nossas ban d eiras.”

279
Segundo L im a (1979, p. 125), após a concentração das forças paulistas e gaúchas, na

organização da D ivisão R evolucionária, constituiu-se a B ateria de A rtilharia M ontada, sob o

com ando do capitão H enrique R icardo H oll, com dois canhões de cam panha e um de m ontanha,

guarnecidos po r 80 hom ens.

A travessia do rio P aran á de G uairá para P o rto A dela no Paraguai foi difícil, “ os canhões

foram guindados por m eio de cabos que num erosos soldados puxavam po r um a ladeira de cento

e tan to s m etros de altura, cheia de pedras, curvas e buracos, e de grande declive” (LIM A , 1979,

p. 126).

O percurso de 125 quilôm etros no território paraguaio, em direção à linha divisória na

serra de M aracaju, deu-se em m archa penosa, através de atoleiros, riachos, pântanos. A

artilharia seguia na retaguarda da tropa, protegida p o r um esquadrão de cavalaria. Os canhões

foram m uitas vezes arrastados sobre os rios, com “ dificuldades incontáveis” (A M A D O , 1987,

p. 113), exigindo a tração a bois e o auxílio de anim ais da escolta de cavalaria (TÁ V O R A ,

1974, p. 179). C onform e L im a (1979, p. 135), pelos atrasos provocados p ela artilharia, o

general M iguel C osta, com andante da D ivisão R evolucionária, deu ordem para abandonar os

canhões. A ordem foi inicialm ente cum prida pelos capitães com andante da artilharia e do

esquadrão de cavalaria da escolta. U m dia depois do abandono, eles se arrependeram e voltaram

ao ponto onde haviam escondido os canhões, no Paraguai, levando-os p ara o território

brasileiro.

Os canhões da C oluna R evolucionária foram finalm ente escondidos antes da travessia

do rio Iguatem i no SM T, em terras da F azenda Jacareí, na região do P orto L indo, hoje

pertencentes aos m unicípios de M undo N ovo e Japorã.

N as duas C olunas, houve coincidência no em prego de ju n ta s de bois na tração das peças

de artilharia. O s esforços para conduzirem os canhões evidenciam a união dos com batentes das

duas épocas em to rno do m aterial coletivo. O abandono dos canhões revolucionários foi

retardado, recusando-se o com andante da artilharia a deixá-los no território paraguaio, e

trazendo-os para serem escondidos no Brasil. Os expedicionários conduziram seus canhões até

o final da R etirada, pois não adm itiam abandoná-los para servirem com o troféus ao inim igo,

segundo T aunay (2006, p. 164).

Os depoim entos, dando significado ao abandono dos canhões, ou enaltecendo o

heroísm o daqueles que o conservaram , atestam a v eracidade das observações de P o llak (1989)

sobre a m em ória coletiva organizada, portadora de um a m ensagem resum ida da im agem

desejada por um a sociedade ou um pequeno grupo para ser transm itida. A referência a algo do

280
passado, com um ao grupo, tem a utilidade de m anter a coesão grupal e das instituições

form adoras de um a sociedade.

4 O s p rin c ip a is c o m b a te s d a s d u a s C o lu n a s : L a g u n a , B a ie n d ê , N h a n d ip á , P a n c h ita e
C a b e c e ira do A p a

O coronel C arlos de M oraes C am isão, com andante das Forças E xpedicionárias,

planejou o ataque à Invernada da L aguna, ponto de retorno dos expedicionários, para “ dar aos

paraguaios prova de que não fugia de encontros e com bates” (T A U N A Y , 1960, p. 238).

R ealizad o em 06 de m aio de 1867, o com bate da L aguna levantou o m oral dos soldados e

incutiu-lhes o sentim ento de superioridade sobre os paraguaios.

N o com bate Baiendê, o prim eiro durante o retrocesso, travado em 08 de m aio de 1867,

ainda em solo paraguaio, foi caracterizado com o “ não pouco m ortífero, para am bos os lados”

(T A U N A Y , 1960, p. 239). Taunay (2006) cita o grande esforço para a retirada de um canhão

de um riacho avolum ado pelas chuvas e a algazarra provocada pelas m ulheres ao receberem os

prim eiros tiros, enquanto m archavam tranquilam ente ao lado dos soldados.

A pesar das m ortes nesses dois com bates, o considerado m ais m ortífero e o m ais

im portante da R etirada da L aguna foi o de 11 de m aio de 1867, cham ado Nhandipá, travado

em terras hoje pertencentes ao m unicípio brasileiro de B ela V ista. O m om ento decisivo da luta

aconteceu com o avanço da cavalaria paraguaia em carga, aproveitando a desordem causada

nas fileiras brasileiras pelo gado que, aterrorizado pelos tiros, abriu passagem nos quadrados

form ados pelos soldados brasileiros.

A o final do com bate, com duração de cerca de quinze m inutos, contaram -se no “terreno

coalhado de m oribundos e feridos” (T A U N A Y , 1960, p. 240), dezenove m ortos e v in te e nove

feridos nas tropas brasileiras, e cento e vinte m ortos entre os paraguaios.

N os com bates da R etirada da L aguna foi característica a investida da cavalaria contra

os quadrados form ados pelas tropas brasileiras. A carga da cavalaria foi considerada tem ível,

ao surgirem galopando, provocando “ debaixo das patas dos cavalos, atirados em louca

disparada, o chão trem ia, com baq u e surdo e tem eroso. D everas p arecia um pesadelo ver aquela

nuvem de hom ens verm elhos, fazendo luzir ao sol das grandes e pesadas espadas” . (T A U N A Y ,

1960, p. 241).

N a passagem da C oluna M iguel C osta - P restes pelo SM T, os com bates com bates

podem ser agrupados em três fases: a inicial (6 e 7 de m aio), quando do ingresso no SM T; um a

281
interm ediária (10 a 16 de m aio), na m archa entre o rio A m am baí e D ourados; e a fase final (17

a 20 de ju n h o ), na saída do SM T. E les foram poucos e raros os enfrentam entos diretos entre as

forças revolucionárias e as legalistas.

N a fase inicial, ocorreram os com bates de P anchita (6 de m aio) e P anduí (7 de m aio),

garantindo o prosseguim ento para o in terior do M ato G rosso. O com bate de 6 de m aio, o m ais

im portante da fase, um destacam ento de reconhecim ento governista atacou a vanguarda

revolucionária, na localidade de P anchita, um local de pouso dos tropeiros, no tra jeto de

Sacarão (Iguatem i) para P atrim ônio da U nião (A m am baí) e, tam bém , para a Fazenda

C am panário. O s revolucionários, vitoriosos, fizeram m ais de cem prisioneiros e apreenderam

cam inhões, utilizados posteriorm ente no transporte, conform e B arros (1997, p. 80). N a versão

legalista (M alan, 1977, p. 243), as perdas foram 5 m ortos, 4 feridos e 6 extraviados.

N a fase interm ediária realizaram -se os com bates para proteção da flanco guarda, em

P orto D om C arlos, no rio P araná (10 de m aio) e, o decisivo, na região da C abeceira do Apa,

nas proxim idades da atual sede do distrito de C ab eceira de Apa, pertencente ao m unicípio de

P o n ta Porã.

O general M alan d ’A ngrogne, com andante da C ircunscrição M ilitar do M ato G rosso,

fez a seguinte narração dos com bates na C ab eceira do Apa, ocorridos nos dias 14 e 15 de m aio

de 1925: “ dois regim entos rebeldes (S iqueira C am pos e João A lberto), com cerca de 300

hom ens, atacavam ao am anhecer as posições de Cab. do Apa. E nvolvendo rapidam ente um Pel

[pelotão] da 5a cia do II/3° RI, aprisionavam um 1° tenente. M as detidos po r intenso fogo de

M tr [m etralhadora] eram repelidos e perseguidos pelo 50° R C ” . (M A LA N , apud M alan, 1977,

p. 246).

P ara receb er o ataque dos revolucionários, o com andante das tropas legalistas ordenou

a construção de trincheiras. N o s com bates, apesar da presença da A rtilharia nas tropas legais,

o em prego das m etralhadoras foi decisivo e de grande im portância contra as cargas de

cavalaria:

Com uma carga de cavalaria [...] tomamos as alturas que dominavam o


acampamento, fazendo uma centena de prisioneiros. Logo instalei duas
metralhadoras pesadas abrindo fogo e causando confusão no meio inimigo. Havia
ali, aos meus pés mais de dois mil soldados que poderiam ser batidos ou mesmo
aprisionados se eu dispusesse, pelo menos, de quinhentos homens. [...] Apesar do
pânico causado pelo nosso ataque não nos foi possível explorar o sucesso. Duas
companhias de metralhadoras pesadas do adversário, atirando febrilmente,
detinham a nossa progressão (BARROS, 1997, p. 83, grifo nosso).

282
O general M alan m andou construir um m onum ento na C abeceira do A pa, para

hom enagear a todos que pereceram nos com bates ali realizados e relem brar “ que a m esm a terra

patrícia, generosa e fecunda, acolheu irm ãos divididos em vida por ideais diversos, pelos quais

lutaram e se sacrificaram , reunidos pela m orte no eterno esquecim ento de ódios e paixões.”

(M A L A N , 1926, p. 42).

Os m onum entos construídos, ou a falta deles, segundo N o rá (1993), servem com o

lugares de m em ória, criados para m an ter as lem branças de um passado, tornado atual algo de

outra era, dando-lhe o sentido de eternidade. O s m onum entos são construídos, ou deixam de

ser erigidos, de acordo com a sociedade que os seleciona, com o sinais de reconhecim ento e de

pertencim ento de grupo.

5 O e m p re g o dos cav alo s e a p r o c u r a de a lim e n to s

E ntre as diferenças dos acontecim entos das duas C olunas, as m ais significativas estão

relacionadas com a alim entação e o em prego dos cavalos.

A tro p a dos expedicionários m archava pelo SM T a pé, pois os cavalos, na trav essia do

Pantanal, de C oxim a M iranda, foram acom etidos po r u m a epizootia, ficando a tropa a pé. Sem

os cavalos, a procura de gado para p roporcionar o alim ento era dificultada. E, o E xército

paraguaio, durante a ocupação do SM T, retirara o gado que capturava, destruindo as plantações,

antes da chegada da tropa brasileira.

D urante a execução da retirada, no com bate de N handipá, o pouco gado que restava

aprisionado fugiu, ficando a tropa sem o seu principal alim ento. E, para o consum o, foram

sacrificados os bois de tração das carretas, m agros e cansados po r longos trajeto s sem descanso

e alim entação.

À falta de alim entação era acrescentado o frio im piedoso, som ado com a um idade

trazid a pelos fortes tem porais. R eduzidos à roupa do corpo, pois os soldados, p ara a liv ia r o

peso da bagagem que conduziam , atiraram fo ra os pesados capotes que os em baraçam nas lutas,

e queim ados as m alas e barracas, sofriam para acender fogueiras nas noites frias, quando

“ m orríam os de frio; estávam os a je ju a r e, só com m uito trabalho, à m e ia-noite pudem os ter

fogo, à custa de em pilhar m uita lenha verde que ardia quase sem labaredas” (T A U N A Y , 2006,

p. 122).

P ara a C oluna R evolucionária M iguel C osta - P restes não faltaram alim entos e cavalos

durante a passagem pelo SM T. O s potreadores, pequenas patrulhas form adas de cinco a quinze

283
hom ens, arrebanhavam anim ais e alim entos nas fazendas e povoados po r onde passavam , “ a

m arch a pelos cam pos do A m am baí, no sul do E stado de M ato G rosso, era fácil. H avia

cavalhada e gado em abundância.” (B A R R O S, 1997, p. 79).

E m outra descrição, está m encionada a abundância de alim entos e cavalos:

Na travessia de Mato Grosso a Coluna se vestiu e se alimentou. Na fartura do


Estado, tão abandonado pelas autoridades administrativas, Prestes encontrou comida
e roupa para os seus homens. A Coluna já não parecia aquela turba de mendigos
esfarrapados que penetrara no Paraguai ante os olhos atônitos do general Rondon. É
também em Mato Grosso que Prestes vai conseguir boas montarias para a Coluna.
Em Mato Grosso as patrulhas encarregadas das “potreadas” têm os seus momentos
mais heroicos (AMADO, 1987, p. 117, grifo nosso).

M esm o já existindo autom óveis em circulação no SM T, quando da passagem da C oluna

M iguel C osta - Prestes, o em prego dos cavalos foi um fato r preponderante, e contribuiu

positivam ente. A ausência desses anim ais, nas tropas brasileiras, im pôs sacrifícios em longas

e penosas m archas, fustigados pelos paraguaios, que as seguiam m ontados.

6 A s tra v e s s ia s de c u rso s de á g u a

A s tropas expedicionárias e revolucionárias, quando percorreram ou ingressaram na

porção Sul do SM T , realizaram diversas transposições de cursos de água, deixando registros

das operações realizadas. O s cursos de água são considerados com o obstáculos à progressão

das tropas, podendo servir com o elem ento defensivo de alto valor. P o r isso, as travessias são

fatores com plicadores de qualquer operação m ilitar.

A F orça E xped icio n ária ao Sul da P rovíncia de M ato G rosso contava com um a

C om issão de E ngenheiros, encarregada do preparo das m argens e das travessias, da construção

dos m eios para tran sp o r os rios, estudava rum os da estrada a percorrer, reconhecia itinerários,

os cursos de água, consertava pontes, m elhorava os acessos nas m argens de rios, preparando

ram pas e abrindo cam inhos. C onstruíram , ainda, canoas, pontes e pinguelas. O trabalho era

realizado de m odo precário, pois m uito m aterial ficara abandonado, em V ila das D ores do R io

V erde, na m archa para M ato G rosso, po r falta de anim ais para o transporte.

O s rios N ioaque, C anindé, Santo A ntônio, M iranda, Feio, D esb arran cad o e Apa, na

fronteira, eram os obstáculos m ais im portantes. O itinerário seguido na retirada foi diferente

daquele u sado para o avanço ao P araguai, para evitar a trav essia de três rios volum osos.

284
A travessia do R io M iranda, o ú n ico de vulto a ser transposto durante a retirada,

procedeu-se de m aneira traum ática. O rio estava transbordado, e a tro p a aguardou a b aix a das

águas. Sem as ferram entas e forças para construção de balsas apropriadas, arm as e cartucham e

foram transportados em pelotas, m ontadas com couro bovino, com as quatro pontas levantadas

e am arradas em fo rm a de saco, puxada po r um nadador.

P ela descrição de T aunay (2006, p. 163), quando as águas baixaram e a correnteza

dim inuiu, iniciou-se a travessia do grosso da tropa. O s hom ens utilizaram o m étodo do cabo

subm erso, form ado com couro trançado. O s petrechos, arm as e cartucham e, assim com o alguns

doentes, foram transportados em pelotas im pulsionadas po r bons nadadores. O s canhões foram

puxados para a outra m argem , em 1° de ju n h o de 1867, presos em cordas de couro trançado.

A o final desse dia, estavam todos reunidos na m argem direita, e prosseguiram na m archa para

N ioaque.

P ara a C oluna M iguel C osta - Prestes, u m a travessia trouxe surpresa aos que a

perseguiam : a trav essia do rio Paraná, em P o rto M endes, quando adentraram no território

paraguaio, após o desem barque em P o rto A dela. A trav essia foi executada de 27 a 29 de abril,

utilizan d o dois navios, com a transposição de “ cerca de 1.000 hom ens, m ais de 600 anim ais de

sela, de carga e de tração, todo o m aterial bélico da D ivisão, inclusive um a B ateria de A rtilharia

‘7 5 ’” (T Á V O R A , 1974, p. 178). A pequena guarnição paraguaia não ofereceu oposição para o

desem barque, pela prom essa de atitudes puram ente defensivas e p o sterio r rápida saída dos

revolucionários do território paraguaio. O regresso ao solo b rasileiro ocorreu a 30 de abril,

quando atravessaram o rio Iguatem i, em P orto L indo, após percorrerem 25 léguas no Paraguai.

N o rio Iguatem i, e em outros rios (A m am baí, D ourados, B rilhante, V acaria,

A nhanduizinho, L ontra e São Felix), em pregaram -se canoas e a cavalhada passou a nado.

Os rios transpostos pelas colunas dificultaram suas progressões, em bora de m aneira

diferenciada. N a R etirada da L aguna, fazia-se necessário conquistar a m argem oposta, ocupada

pelos paraguaios, que antecipavam os m ovim entos por serem dotados de boa cavalhada. A

coluna M iguel C osta - P restes, ao percorrer cam inhos po r estradas, j á os encontrava com pontes

e cruzaram a m aioria dos rios no SM T em locais sem proteção das tropas legalistas.

285
7 A s tra n s fo rm a ç õ e s e c o n ô m ica s no S M T d e c o rre n te s d a R e tir a d a d a L a g u n a e d a
p a ssa g e m d a C o lu n a M ig u e l C o s ta - P re s te s

A s passagens da Força E x p edicionária ao Sul da P rovíncia de M ato G rosso, executora

da R etirada da L aguna em 1867, e da C oluna M iguel C osta - P restes, em 1925, ocasionaram

transform ações econôm icas no SM T, com diferenças em suas am plitudes.

D urante a ocupação do SM T, os paraguaios, conform e C am pestrini (2009), desalojaram

os habitantes, aprisionando fam ílias inteiras, capturaram o gado das fazendas, colheram as

roças cultivadas e saquearam edificações e outros bens. C om a aproxim ação da Força

E xpedicionária, destruíram as vilas, queim aram as residências e plantações rem anescentes.

A pós, retiraram -se para o Forte B ela V ista, na m argem esquerda do rio Apa. A ocupação

paraguaia causou a p aralisação ou a desorganização da produção e do com ércio. Os

suprim entos aos expedicionários vinham em com boios de carretas e m uares, das distantes

províncias de G oiás, M inas G erais e São Paulo.

Sem a presença paraguaia, os desalojados retornaram para as vilas e fazendas

saqueadas, reiniciando o cultivo e criação de anim ais.

A incursão b rasileira firm ou o posicionam ento im perial sobre a questão do lim ite no rio

A pa, consagrado quando da assinatura dos T ratados de P az e dos L im ites, em 1872.

F inalizada a guerra, estabelecida a paz e dem arcado os lim ites, instalou-se o dom ínio

legal do Im pério no SM T, configurando, segundo E lias (1993, p. 198), um espaço social

pacificado, favorável ao desenvolvim ento da agricultura e com ércio. A presença m ilitar, a

retom ada do com ércio fluvial, a instalação de novas estradas p ara São P aulo e M inas G erais, o

retorno da população e a vinda de novas pessoas, “ atraídos pela excelência das terras, pelo

clim a saudável, abundância de águas e viçosas pastagens, características divulgadas nas

províncias vizinhas pelos rem anescentes da R etirada da L aguna” (C am pestrini, 2009, p. 212).

Seguiram -se, com o increm ento do povoam ento, a criação de novas com arcas. A s vilas, com o

C orum bá, b eneficiada pela reabertura da navegação livre no rio P araguai, foram reerguidas e

experim entaram “ surpreendente progresso, provocado tam bém pela isenção quase com pleta de

im postos” (C am pestrini, 2009, p. 206).

O T ratado de P az B rasil-P araguai estabelecia o pagam ento po r parte do Paraguai de

u m a indenização pelos b ens confiscados e danos causados no B rasil. O governo im perial

assum iu a dívida, o que retardou o pagam ento. O Paraguai não realizou o pagam ento e acabou

sendo perdoado. E m b o ra com o Im pério e P rovíncia endividados, o novo ciclo de povoam ento

286
e a exploração dos recursos descobertos com o a erva m ate (ilexparaguayensis), perm itiram a

reconstrução da econom ia no SM T.

Os revolucionários da C oluna M iguel C osta - P restes apoderaram -se de alim entos,

arm am entos, vestuários e anim ais durante a passagem no SM T. P o r falta de m eios para o

arm azenam ento, e para não dificultar a m obilidade, o gado era abatido para alim entar o grupo

no local. E os de m ontaria eram trocados, tro can d o os extenuados po r novos, em m elhores

condições de m archa. O s anim ais e víveres eram requisitados à população, m ediante o

fornecim ento de recibos assinados pelos chefes revoltosos. C om o insucesso da revolta, os

recibos não foram resgatados pelo governo, e a população experim entou am argo prejuízo, m as

perm aneceu com as condições de prosseguirem em suas atividades.

O E stad o de M ato G rosso sofreu os m aiores im pactos econôm icos p ela passagem da

C oluna M iguel C osta - Prestes. O s trabalhadores foram m obilizados para com por as tropas

legalistas. A exportação da erva-m ate ficou p aralisada (C orrea, 1925, p. 61), reduzindo os

im postos arrecadados. P ara saldar suas dívidas com os fornecedores, e im pulsionar a econom ia,

o governo contraiu em préstim os com E m p resa M ate L aranjeira (C orrea, 1927, p. 37). O

pagam ento seria pela dedução dos im postos a serem recolhido, durante o contrato de dez anos

(1927-1937) para exploração dos ervais no SM T. A em presa obteve um considerável poder

político no E stado. O contrato estabeleceu o fracionam ento da área excedente ao arrendam ento

e a ven d a para outros interessados.

8 C o n s id e ra ç õ e s fin a is

O tex to evidencia a existência de sem elhanças e diferenças entre os acontecim entos da

R etirada da L aguna e da C oluna M iguel C osta - Prestes.

N as sem elhanças entre as duas C olunas, as travessias de cursos de água, a presença de

m ulheres nas tropas, os m eses do ano da realização, em bora em épocas distintas e objetivos

distintos. U m a coincidência está relacionada com o rio Apa, lim ite do B rasil com o Paraguai,

entre os m unicípios de B ela V ista e seu conurbado hom ônim o paraguaio: local do início da

R etirada em território b rasileiro e o final da m archa dos revolucionários do D estacam ento

Siqueira C am pos. E, enquanto os retirantes buscavam o territó rio pátrio em busca de proteção

e sobrevivência, os revoltosos cruzaram o rio Apa, deixando a Pátria, procurando a proteção

ao exilarem -se para continuarem lutando.

287
F igura 3 - M o num ento C em itério dos H eróis F igura 4 - E scom bros do M o num ento ao
- Jardim / M S C om bate da C abeceira do A pa - P onta
Porã/M S

Fonte: Acervo Fernando dos Anjos Souza

A alim entação, o em prego dos cavalos, assim com o o destino final dos canhões,

alinham -se nas diferenças significativas entre as Colunas.

H ouve u m a in ten ção dos revolucionários, ao escreverem sobre os feitos da C oluna

M iguel C osta - Prestes, de com parar a m arch a realizada com a da R etirada da Laguna. A

ten tativa de igualarem -se aos expedicionários é v erificad a pelo em prego do term o vivandeira

referindo-se às m ulheres acom panhantes da C oluna R evolucionária e, tam bém , na descrição

dos sofrim entos enfrentados durante a longa m arch a pelo in terio r do Brasil.

A com paração apresenta resultados divergentes no espaço da m em ória coletiva sul-

m ato-grossense, território percorrido pelas duas colunas em m archa. A R etirada da L aguna e,

em consequência, a G uerra do P araguai, é rem em orada em nom es de cidades (G uia L opes da

L aguna, A ntônio João), distritos m unicipais (Taunay, G leba R etirad a da L aguna), escolas, ruas,

m onum entos (com o o C em itério dos H eróis, tom bado com o P atrim ônio H istórico N acional,

m ostrado n a Figura 3), denom inações históricas de organizações m ilitares e com em orações em

eventos cívico-culturais.

A passagem da C oluna M iguel C osta - P restes pelo M ato G rosso e o M ovim ento

T enentista, que a inspirou, foram esquecidos, e são quase desconhecidos pela população. O

esquecim ento é evidenciado pela ausência de m onum entos ou de outras referências na m em ória

sobre a passagem dos revolucionários pelo SMT.

O m onum ento da C abeceira do Apa, o ú n ico a rem em orar o com bate com m ais vítim as

envolvidas nas lutas, está descaracterizado, reduzido a escom bros, m ostrados na Figura 4, e o

seu significado é ignorado pela população local, em bora seu idealizador pensara em

hom enagear os m ortos dos dois antagonistas.

D e acordo com a existência dos m onum entos, as lem branças da R etirada da L aguna, de

realização m ais antiga, perm anecem nos lugares de m em ória, em vários m unicípios sul-m ato-

288
grossenses. E a C oluna M iguel C osta - Prestes, m ais recente, está esquecida e, portanto,

desvalorizada p ela sociedade.

A causa da lem brança ou esquecim ento na m em ória coletiva das regiões por onde

m archaram no território sul-m ato-grossense, um a diferença significativa entre as C olunas,

encontra-se em suas origens. A R etirad a da L aguna originou-se na atuação do E x ército em

defesa do E stado-N ação. Os retirantes serviam à Pátria, defendendo sua integridade territorial.

P o r outro lado, os revolucionários da C oluna M iguel C osta-P restes se insurgiram contra o

E stado-N ação, pretendiam a deposição de autoridades que o representavam , alterações do

sistem a legal constituído e apresentavam ideais separatistas, expressas na intenção de

estabelecer no M ato G rosso um novo governo.

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290
O APRISIONAMENTO EM RUPTURA: TRAJETÓRIAS NEGRAS DE
LIBERDADE NO RIO DE JANEIRO (1830-1836)

G A B R IE L A V IE R A D O S SA N TO S
U niversidade Federal de Santa M aria

R e su m o : O presente trabalho deriva dos resultados de um a pesquisa de iniciação científica


ainda em andam ento, que busca investigar as relações sociais dos escravizados e suas prováveis
m otivações para as fugas, noticiadas no p eriódico C orreio M ercantil (R J) entre os anos de
1830-1836 na cidade do R io de Janeiro. Segundo M bem be (2001), em bora os esforços
conscientes em direção a recuperação da m em ória africana objetivassem a autodeterm inação
desses sujeitos, elas raram ente escaparam ao status de sofrimento na história, no qual a história
da Á frica e dos africanos perm aneceu condicionada ao processo de degradação histórica. C om o
fo rm a de rom per com isso e avançar rum o a um legado de autonom ia dos negros n a Á frica e
no B rasil, nosso estudo seguiu os contornos de trab alh o s com o de B eatriz G. M am igonian
(2004), o qual lan ça à prática algum as das críticas feitas por M bem be, onde os usos de fontes
com o anúncios de escravo possibilitariam o entrecruzar de identidades antes vistas sob um viés
generalista, e agora propriam ente das vidas dos sujeitos escravizados e suas relações no sistem a
escravista.

P a la v r a s - C h a v e : E scravos fugidos. D eg rad ação histórica. T rajetórias negras. L iberdade.

1 IN T R O D U Ç Ã O

P o r m uito tem po a historiografia da escravidão ignorou as experiências e relações dos

hom ens e m ulheres de diferentes etnias africanas no sistem a escravista, m antendo-os anônim os

e invisíveis de sua participação na construção da sociedade brasileira. P ouco se conhecia sobre

a vida desses sujeitos e suas origens. C ontudo, atualm ente, abrem -se novas perspectivas

históricas preocupadas em conhecer o cotidiano dos escravizados e a diversidade de suas

relações, utilizando-se de fontes seriais até então pouco exploradas, com o o caso dos

inventários post-m ortem , processo-crim e, ações de liberdade e m ais recente dos anúncios de

escravos, um a vez que essas fontes são encontradas em m aiores volum es em países das

A m éricas e perm item identificar aspectos, antes desconhecidos, das vidas dos escravizados.

Segundo G w endolyn M idlo H all (2005, p. 29), as inform ações presentes em fontes seriais

dispostas em diversas b ases de dados nos ajudam a reconstruir m em órias dos escravizados e

suas etnias, além de contribuir com os estudos sobre a diáspora africana, de form a que som ente

29 1
os estudos de travessia atlântica não são suficientes. A lém disso, seguindo as críticas de

M bem be, em bora os esforços conscientes em direção a recuperação da m em ória africana

objetivassem a autodeterm inação desses sujeitos, elas raram ente escaparam ao status de

sofrimento na história, no qual a h istória da Á frica e dos africanos perm aneceu condicionada
ao processo de degradação histórica. C om preende-se que a p artir do enfoque nas ações dos

escravizados na b u sca po r liberdade e autonom ia é possível am pliar as abordagens acerca do

escravism o e de seu funcionam ento e assim reescrever o processo histórico no qual a vivência

escrava pode ser com preendida para além da esfera econôm ica e do trabalho, m as tam bém

cultural e social desse período, dem onstrando o papel de agente dos escravos no

enfraquecim ento das b ases do regim e escravocrata (M A C H A D O , G. M ., 2010. p. 38).

A s fugas po r serem com preendidas com o form a m ais difundida de resistência ao

escravism o detém fato r im portante para a continuidade desses avanços, sendo essencial

co ntribuir com análises com o de J. J. R eis e E duardo Silva (apud C O ST A , A na C aroline R.,

2010) acerca das m otivações para as fugas. A inda que o inconform ism o com as condições de

escravo e a negociação sejam a explicação m ais enfatizadas, M am igonian (2010, p. 43) alerta

para a im portância de descobrir quanto dessa negociação relaciona-se com a b u sca por adaptar

as condições e ritm os de trabalho im postos p ela escravidão com os seus hábitos ancestrais

vividos em Á frica. D esse m odo, o trab alh o a seguir propôs analisar a liberdade advinda dessas

fugas e o perfil dos fugidos com o fo rm a de seguir os contornos apresentados anteriorm ente.

P ara tal, utilizou-se procedim entos quantitativos ao analisar o periódico carioca Correio

Mercantil (RJ)165, publicado sem analm ente entre os anos de 1830-1836 na cidade do R io de
Janeiro, ten do-se selecionado 127 anúncios de escravos fugidos, onde as inform ações m ais

observadas fo ram : idade, sexo, origem e ofícios.

2 AS FU G A S

N o crescente avanço da h istoriografia da escravidão, as fugas de escravos tam bém

ganharam novos contornos e cam inhos possíveis. E nquanto as prim eiras interpretações

lim itavam as análises de fuga som ente com o atividade natural, e previsível, fren te as condições

de vio lên cia e roubo da liberdade dos indivíduos escravizados, as m ais recentes passaram a

165 Todas as edições do periódico (1830-1836) podem ser encontradas online na base de dados da
Hemeroteca Digital Brasileira (HDB - http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/).

292
enfatizar o papel ativo e consciente dos escravos que fugiam . C om o dem onstra a historiadora

F ernanda C. P. F erreira (2020, p. 403-404), as interpretações pioneiras sobre fugas escravas

rem etem a trabalhos com o de C lóvis M o u ra e Suely Q ueiroz, que em bora divergissem em

determ inado ponto, foram m uito significativos para a com preensão das fugas enquanto reações

naturais frente as condições do regim e escravista. M o u ra (1998, p. 247 apud FE R R E IR A ,

2020), ao criticar um escravo passivo possibilita dim ensionar a v io lência das relações entre

escravos e senhores de form a que as fugas pudessem a ser entendidas enquanto elem ento

natural de reação devido ao m odelo v iolento desse sistem a, porém , o m esm o ainda

com preendia os escravizados enquanto alienados e passivos, sem consciência e capacidade de

se organizar e reco n h ecer enquanto classe (1977, p. 201 apud FE R R E IR A , 2020). E m

contrapartida, para Q ueiroz ainda que as fugas não fossem atividades planejadas, necessitando

apenas da m otivação po r parte do fugido, sem elhante ao entendim ento de M o u ra de que as

fugas eram “previsíveis” , a autora propunha que a ação das fugas revelavam o caráter

consciente dos sujeitos escravos u m a vez que isso dem onstrava com o os m esm os percebiam

suas realidades e optavam pela fuga em m eio a outras escolhas (Q U E IR O Z , 1977, p. 201 apud

FE R R E IR A , 2020). T anto F erreira quanto M achado em suas form ulações nos perm item

dim ensionar os cam inhos que o entendim ento das fugas receb era ao longo da historiografia,

inicialm ente apenas enquanto im pulso, para um a ação consciente de rebeldia devido as

condições enfrentadas. Porém , em paralelo, ainda que significativas cabe ressaltar com o essas

ideias acabavam po r negar a capacidade de autonom ia dos sujeitos escravos de planejar suas

fugas e de aquirir consciência de suas realidades, u m a vez que o presente trabalho faz o trabalho

inverso ao questionar tais interpretações e propõe com preender os fugidos en q uanto sujeitos

ativos, conscientes de suas realidades e capazes de construir relações e pensam entos que os

perm itisse contornar o aprisionam ento e a v io lên cia escravista. A p artir de criticas com o a de

M aria H elena M ach ad o (1987, p. 146 apud FE R R E IR A , 2020) que propôs a n ecessidade de

estudos profundos e com plexos para entender o papel dos escravizados no processo h istórico e

de Sidney C halhoub ao discutir a ideia de liberdade através de ações dos escravizados no

tribunal do Juri do R io de Janeiro enquanto p o ssibilidades de luta entranhadas no período de

escravidão, assim perm itindo aos sujeitos escravos de au m en tar suas oportunidades de inserção

na sociedade tal com o lhes era negado. C halhoub, em blem ático ao pro p o r estudos tão

aprofundados e preocupados em en ten d er os escravizados com o agentes históricos, tam bém

p o ssibilita um m elhor tratam ento das fontes que perm itisse com preender aspectos da

escravidão que não eram vistos, com o a construção de redes e relações entre os escravos,

293
descum prim ento de acordos e com prom issos dos senhores, etc. (M A C H A D O , G. M ., 2010. p.

40) (FE R R E IR A , F. C. P., 2020, p. 405).

A liado a isso, a questão das negociações desem penharam papel im portante na vida dos

escravizados e na produção historiográfica no que perm itiu acessar m odos de negociação e

estratégia por parte dos escravizados p ara conquistar alforrias, garantia de acordos entre

senhores e m elhores condições de vida, m as po r am pliar o caráter das fugas enquanto “ fugas

reivindicatórias” , quando os sujeitos escravos fugiam para co nseguir n egociar suas dem andas

com os senhores. A pesar de não nos debruçarm os sobre as ações de negociação no trabalho

aqui pretendido, salienta-se a im portância de estudos que atentem -se para as viv ên cias dos

hom ens e m ulheres escravizados, pois perm item acessar essas negociações e os seus

desdobram entos na vida dos sujeitos, assim integrando-os ao processo histórico da qual sem pre

deveriam te r feito parte. D ito isso, reforça-se o reconhecim ento das negociações no universo

da escravidão em bora a nossa proposta seja de analisar a liberdade e as m otivações a p artir da

identificação do perfil dos fugidos anunciados nas fontes, po r isso sendo enfatizado que não há

um questionam ento acerca da integridade das fugas anunciadas e tão pouco das negociações

que existiam nesse período, m as que nosso enfoque se dá na liberdade, em especial na hipótese

de u m a liberdade “ provisória” .

3 A N Ú N C IO S D E E S C R A V O S F U G ID O S

P ara esse estudo foram coletados 127 anúncios das 194 inserções contidas nas páginas

do p eriódico com a palavra-chave “ escravos fugidos” do ano de 1830-1834, isso porquê,

em bora o periódico se estenda até o ano de 1836 só foram encontrados anúncios até o ano de

1834. A creditam os que devido ao fato de nem to d o s os núm eros do perió d ico -fo n te estarem

disponíveis no acervo digital da H em eroteca B rasileira, seja porque estavam m uito danificados

para passar pelo processo de m icro-film agem ou po r não se ter acesso aos m esm os, que as

ocorrências de fuga não puderam ser encontradas nas edições de 1835 e 1836. A o a c essa r o

p eriódico online é possível v isualizar que não se encontram n enhum a edição do periódico no

ano de 1835 e que de 1836 se tem apenas sete edições, enquanto para o ano de 1834 apenas

u m a edição. M as po r m ais com plicado que seja trab alh ar com tais brechas, essas fontes não

perdem sua im portância, pelo contrário, requerem cada vez m ais cuidado e atenção. D ito isso,

entre todos os anúncios coletados 7 acabaram sendo excluídos da análise por se tratar de

ocorrências repetidas ao longo do tem po, m as que estiveram presentes nos ficham entos.

294
N osso prim eiro enfoque se deu na inform ação m ais recorrente nos anúncios de fugas:

o sexo dos fugidos. E m b o ra em grande m ed id a os anúncios de escravos possuam diversas

lacunas nas inform ações anunciadas, com o é o caso das idades dos fugidos que tendem a

aparecer por m eio de estim ativas, entre 14 e 15 anos, a partir do sexo dos anunciados é possível

acessar determ inados aspectos de suas vid as em que o gênero causava algum a influência. A

tab ela a seguir dem onstra o sexo dos fugidos:

T a b e la 01 sexo dos escravos fugidos anunciados no

C orreio M ercantil (1830-1836)

Sexo N° %

F em inino 25 17,73%

M asculino 116 82,27%

Total 141 100

Fonte: Correio Mercantil (RJ) - 1830-1836

E m b o ra a recorrência m asculina seja esm agadora quanto a fem inina, isso não nos

im pede de analisar e construir hipóteses quanto as suas realidades. Sabem os que em grande

m ed id a eram as m ulheres que ficavam responsáveis pelas tarefas dom ésticas, recolhidas m u itas

vezes ao am biente da casa, o que dificultava as suas oportunidades de fugas, m as tam bém

garantiam m aio r acesso às negociações com os senhores. E m contrapartida os hom ens em seus

ofícios de sapateiro, pedreiro, cozinheiro e etc, tinham m aior acesso à cidade, assim com

m aiores chances de fugas. T am bém por isso que os hom ens em diferentes faixas etárias tendem

a aparecer m ais vezes que as m ulheres, tal fato devido a inserção de m eninos no ofício de

aprendiz, o que garantia a eles conhecim ento do fu n cionam ento da cidade e suas relações desde

cedo. N ão se trata de p ensar que m ulheres fugiam m enos e os hom ens m ais, e sim analisar de

que form a as condições de am bos os aproxim avam ou afastavam da possibilidade de fuga,

levando em conta, principalm ente, as realidades do sistem a escravista para que ocorressem

essas diferenciações. Isso nos leva a um segundo enfoque, a faixa etária dos fugidos, já que tais

distinções entre hom ens e m ulheres pode ser m elhor observada em m om entos diferentes de

suas vidas. A tab ela a seguir dem onstra a faixa etária dos escravos fugidos:

295
T a b e la 02 de faixa etária dos escravos fugidos anunciados no C orreio
______________________ M ercantil (1830-1836)______________________
Id a d e N° T o ta l
H om ens 4-16 anos 29 46,77%
17-25 anos 25 40,32%
26-30 anos 3 4,84%
31-40 anos 3 3,84%
41-50 anos 2 3,23%
N ão in fo rm a d o s 54 87,10%
C aso s c o n h e cid o s 62 53,45%
M u lh e re s 4-16 anos 3 21,43%
17-25 anos 2 14,29%
26-30 anos 2 14,29%
31-40 anos 3 21,43%
41-50 anos 4 28,57%
N ão in fo rm a d o s 12 85,71%
C aso s c o n h e cid o s 14 56%
T o ta l g e ra l 127 100
Fonte: Correio Mercantil (RJ) - 1830-1836

D iferente da inform ação do sexo dos fugidos que aparece em 100% dos casos

analisados, a idade dos m esm os acaba po r ser a m enos m encionada. Isso possib ilita constatar

a dificuldade dos senhores em observar a faixa etária dos escravizados, m as principalm ente,

com parar a idade de m aio r atividade dos dois sexos.

A o passo que h om ens aparecem em diversas fugas j á aos 4 -16 anos, porcentagem m aior

do que em seus 41-50 anos, as m ulheres tem m aior m ovim entação som ente nos 41-50 anos,

quando o processo de m aternidade, m uito recorrente entre as cativas devido ao ofício de am as

de leite, j á não era m ais latente, e assim p erm itia m aiores chances de fugas. A lém disso, de

m aneira m uito com um os senhores ao anunciar seus escravos e d esconhecer suas idades

acabavam por descrevê-los enquanto “m eninos” , m oleques” , “ pequenos” e até pelo dim inutivo,

com o “ negrinhos” .

54 rugio, ou sc nerdco uma


négrinlm de 1- a;mos de idade
pouco ir,.uh ou menos uoine
Julianna, tom ve.,tido de
;odno riscado dc babado rotho,
uma Uit-ua, buyal , lábios groços Ac.;
quem a dcscubrir, a cundu/ir à rua
Ia Mizericordia i ui rua Uircita u.
recebera ulviçaras.

F onte: Correio M erca n til (RJ) - 1830-1836, A n o 1830, Ed. 00022, p. 4

296
C om o visto no anúncio de Juliana, as duas inform ações m encionadas constam , porém

o que m ais cham a atenção está na dificuldade do senhor em afirm ar que se tratav a de um a fuga

ou perda. A inda que não seja possível saber ao certo o m otivo para tal, j á que em fugas de

m eninos da m esm a idade não há essa dúvida, é possível a partir da distinção de sexo se supor

que, novam ente, isso designava qual atividade cada um iria desem penhar. N o caso de Juliana,

por se tra tar de um a m enina, é possível que a m esm a frequentasse am bientes dom ésticos,

aprendendo as funções cabíveis dos m esm os e não tendo tan ta oportunidade em reconhecer os

cam inhos da cidade, de form a que, p ara seu senhor, poderia não se tratar de u m a fuga. Junto a

isso, pode-se q uestionar o próprio entendim ento que os senhores ao anunciar fugas de m eninos

e m eninas divergiam quanto a capacidade de um e outro escolher ou não pela fuga nessa idade.

V im os que som ente 21,43% das fugas de m eninas ocorriam entre 4-16 anos, enquanto a de

m eninos é de 46,77% , dem onstrando que, provavelm ente, até os senhores notavam essa

diferença na ocorrência das fugas j á que elas eram frequentes na vid a tanto de escravizados

com o dos senhores.

A tab ela a seguir dem onstra os ofícios presentes nos anúncios coletados:

T a b e la 03 de ofícios dos escravos anunciados no C orreio


M ercantil (1830-1836)
O ficios N°
Pedreiro 4
C ozinheiro 2
V en d ed o r de quitanda 3
A lfaiate 4
C arpinteiro 2
S apateiro 5
B uleiro/boleiro 2
C anoeiro 1
A prendiz 2
C anteiros 3
M alh ad o r de ferreiro 1
V endia doces 2
N ão in fo rm a d o 85
T o ta l 31

Fonte: Correio M erca n til (RJ) - 1830-1836

297
U m a vez que apresentado o ofício é possível supor que o acesso a cidade e outras redes

de trabalho possibilitaram m aiores chances de fuga, retom am os essa hipótese j á apresentada.

C onseguim os observar por m eio disso que a qualidade de u m a especialização perm itiria não só

m aiores oportunidades de fuga, quanto a autonom ia pra escolher fugir de um senhor e encontrar

trab alh o com outro que lhe agradasse m ais. P ercebem os isso no anúncio de C lem ente, onde ao

ten ta r ser reavisto por seu senhor é inform ada a possibilidade de que o m esm o, um alfaiate, já

pudesse estar trabalhando.

Fonte: Correio Mercantil (RJ) - 1830-1836, Ano 1830, Ed. 00025, p. 4

A o investigar o passado h istórico dos sujeitos escravizados a p artir dos anúncios de

fuga levantou-se duas questões centrais para a pesquisa:1. A construção de um a rede de laço s

e relações entre esses sujeitos. 2. A cesso a um a “ liberdade provisória” , m as ainda cobiçada. A

tab ela a seguir apresenta os casos de fugas coletivas:

T a b e la 04 tipos de fuga anunciadas no C orreio M ercantil (1830-1836)

T ip o s de fu g a N ° de fu g as %

Sozinho 102 87,93%

A com panhados 14 12,07%

D ois ou m ais hom ens 12 10,34%

H om ens e m ulheres ju n to s 2 1,72%

D uas ou m ais m ulheres 0 0

T o ta l 116 100

Fonte: Correio M erca n til (RJ) - 1830-1836

298
A prim eira questão retom a um aspecto im portantíssim o dos estudos sobre a escravidão.

N a b u sca po r id en tificar os sujeitos anunciados, levou-se em conta as relações culturais e

sociais que poderiam existir dentro do sistem a escravista e a com plexidade delas. A pesar da

vida na escravidão lim itar, e ten tar cercear, as redes afetivas dos hom ens e m ulheres cativos,

isso não significa retirar a autonom ia e a capacidade desses sujeitos de contornar os lim ites. É

exatam ente isso que vim os na tab ela anterior onde cerca de 12,07% das fugas eram

acom panhadas, m esm o com o aprisionam ento e a presença de rivalidades entre diferentes

etnias africanas. Segundo W . A lbuquerque (2006, p.95-96) “ a p resen ça de rivalidades étnicas

entre os africanos de nações distintas ora se reproduziram e ora dim inuíram sob o peso da

escravidão.” . C om o analisam os nos anúncios, m esm o com a presença de rivalidades, as

relações de apoio, e possivelm ente fam ília, se faziam presentes ainda que em núm eros m enores

a de fugas sozinhos.

C om o m ostra o anúncio de José, n ação M ina, b oleiro e cozinheiro, “elle anda acoutado

pela praia de D. Manoel, e dizem dormir no Engenho Velho do Botafogo, em uma chacara que
tem pretos M inas.”166, podem os notar, que ainda escassas ou difíceis, essas relações existiam
e são de extrem as im portâncias aos novos estudos africanos e brasileiros, no que rom pem com

o pensam ento antigo de que estes sujeitos não eram conscientes ou incapazes de criar contornos

frente a violência escravista.. Segundo pesquisas de M ariza Soares (apud M A M IG O N IA N ,

2004, p. 42) “M in a” no sudeste identificava todos os A fricanos da C osta O cidental, m as que

na B ahia tinham identidades separadas (SO A R E S, M . 1998; 1999), o que nos leva a pensar

que, em bora o anúncio entenda que se tratavam de fugidos de um a m esm a origem , para eles

possivelm ente não seria o m esm o, j á que em grande m edida as origens anunciada não eram

exatas, principalm ente se levadas frente ao contexto de rivalidades que existiam entre

diferentes etnias africanas.

E m segundo, observam os que cerca de 46,77% das fugas de hom ens cativos era entre

os 4-16 anos, fase em que, ou estavam aprendendo as tarefas de aprendiz de determ inado ofício

ou ainda não possuíam facilidade com o português, sendo considerados “b u çal” . C ontudo,

nenhum desses fatores im possibilitou que essas fugas ocorressem , e principalm ente, durante

essa idade. N ão só diferente das m ulheres, m as tam bém de outros cativos adultos, essa

observação abre espaço para outros questionam entos com o: O que garantia o sucesso de fuga

166 FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). BNDIGITAL I: Correio Mercantil (RJ) - 1830 a
1836, Ano 1830, Ed. 00039, p.4.

299
para esses jo v en s? O fato r m arcante seria a condição de trabalho desem penhada ou a idade para

essas fugas? B uscavam a liberdade ou a fuga com o contrariedade à condição de escravo?

5!l N o dia <i do corrente


ftigio du cti-cam da vntva dj
Commciuiador Joaõ oum -,
Harrozo , um moleque de nou»
_ _ _ _ _ Aiilomo . do naçuò Cubinda
|ue u r i 13 a M anuos de idude pou'
oo mais ou menos , Itu muito retinto
o ho postor dq gado da dita chácara
já tem luito 3 fugidas , e quando f0j a
.ostuma andar pela Tyjuea : levou cal.
va e camisa do alg o u a ò , porém póde
ser que mudasse do ro u p a ; quem do
lito souber ou apprelieuder, e levar
á rua Direita n. 111 , terá boasalvj.
varas.

Fonte: Correio Mercantil (RJ) - 1830-1836, Ano 1830, Ed. 00022, p. 4

L evantam -se essas perguntas, pois com o aparece no anúncio de A ntônio , nem sem pre

a fuga pod eria ser para afastar-se com pletam ente da condição de escravos ou de negociação

com seus senhores. Q uestiona-se se essas fugas, entre os 4-16 anos, pudessem ser m otivadas

pela necessidade de “liberdade provisória” , quase aliada a necessidade de rom per com a

b arreira que lim itava a livre transição desses sujeitos, assim alcançando certa proxim idade com

hábitos anteriores a vinda para o B rasil, tal qual alertou M am igonian (2010, p. 43). V ale

lem b rar que as condições vivenciadas pelos africanos escravizados no B rasil divergia e m uito

daquela vida na Á frica, a noção de aprisionam ento dificilm ente seria a m esm a, talvez por isso

romper com o aprisionamento, em bora por pouco tem po, fosse algo a ser cobiçado j á que
garantia u m a liberdade, com o a de A ntônio, de andar pela Tijuca. N otam os, não só pelo hábito

de fugir, m as que andar pela T ijuca poderia in d icar fam iliaridade com o espaço, de m odo que

cada vez m ais o jo v em buscava form as de garantir o sucesso de sua fuga levando p e ç as de

roupa, trocando-as e assim podendo estender o tem po que lhe era possível aproveitar nesse

espaço. A s redes de sociabilidade reaparecem com o hipótese neste caso j á que além da

fam iliarização com o espaço poderia existir tam bém com pessoas.

4 CO N CLU SÃ O

A p artir dos resultados apresentados com preende-se que o perfil dos fugidos e das fugas

respondem a existências de m otivações e anseios para além da n ecessidade de afastar-se da

300
condição de escravo e p o ssibilita (re)pensar o entendim ento de liberdade na histo rio g rafia

b rasileira seguindo seus avanços.

E ntendem os que apenas a necessidade de fugir dessa condição não m ais responde a

escolha pelas fugas e pela liberdade advinda dela, a com plexidade dos sujeitos escravizados e

das relações que eles construíam em m eio a esse contexto dem onstram o am plo olhar possível

para essas fontes. A ideia de liberdade provisória não é vista apenas com o saídas a passeio, m as

com o u m a form a de resistência ao sistem a escravista que possibilitava o acesso a m em órias e

hábitos que a vid a nesse contexto não perm itia. P erceb e-se que a consciência da realidade de

escravo era acessada e com partilhada desde m uito jovem por esses sujeitos já que a idade se

to rn a um indicativo de que a volta para o cativeiro poderia ser prevista por eles e a garantia de

acessar hábitos anteriores a vida de escravizado ainda eram cobiçados.

C abe, po r m eio das hipóteses levantadas aqui, dar continuidade aos estudos que se

debrucem sobre a questão da liberdade, pois as possibilidades construídas para existir e

contornar o aprisionam ento são plurais. A num erosidade das fontes nas A m éricas e a

acessibilidade das m esm as com o no caso da H em eroteca D igital B rasileira, alertam para a

n ecessidade dessas novas perspectivas que surgem com a leva atual de historiadores.

R E F E R Ê N C IA S

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301
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302
COMO SE FORJAM HERÓIS: O AVESSO DA MEMÓRIA OFICIAL
SOBRE OS PRIMÓRDIOS DA CIDADE DE JOÃO MONLEVADE/MG

G A B R IE L L A D E S O U Z A D A M A S C E N O 167
SÉ R G IO L U IZ G U SM Ã O G IM E N E S R O M E R O 167168

I n tr o d u ç ã o

A h istória do m unicípio de João M onlevade, cidade situada na região do M édio

Piracicaba, a pouco m ais de 100 km da capital do estado de M inas G erais, B elo H orizonte,

ancora-se, desde seus prim órdios, no desenvolvim ento do setor m in ero -sid erú rg ico . N esse

sentido, destaca-se a trajetória do pioneiro Jean A ntoine F elix D issandes de M onlevade, o qual

fundou, no espaço do que viria a se to rn ar o m unicípio que h erdou seu nom e, u m a das prim eiras

bem -sucedidas siderurgias do país em torno de 1820.

C om o carro-chefe da econom ia local, o legado do engenheiro que trocou a F rança pelas

ricas terras ferríferas de M inas G erais m etam orfoseou-se, aproxim adam ente um século depois,

na C om panhia Siderúrgica B elgo-M ineira, em presa cuja atuação estabeleceria em definitivo

m uitos dos contornos do atual m unícipio, os quais, p artindo do dom ínio econôm ico, ecoariam

por todas as esferas que conform am sua realidade social. A inda hoje, po r m eio da atual A rcelor

M ittal, a m ineração e a siderurgia continuam a capitanear o desenvolvim ento econôm ico de

João M onlevade, subordinando, em grande m edida, outros setores.

D e outra parte, a figura do fundador do m unicípio é retratada, po r m eio da narrativa

h istórica oficial, com o herói e pioneiro desbravador, visão esta que desconsidera e escam oteia

ideologicam ente a contraparte brutal de seu legado; isto é, o fato de que a grandiosidade de sua

riqueza e legado se assenta sobre o trabalho negro escravizado de que Jean M o n lev ad e lançou

m ão desde o m om ento em que aportou no B rasil. A dem ais, o papel desse com plexo de

representações que se condensam na figura épica e eurocêntrica de um herói, paradigm a e

patrono, que forjou sua riqueza po r m eio de u m a espécie de visão em preendedora avant la

lettre não se restringe à conform ação de certa visão do passado, antes atuando no presente para

167 Graduanda em Engenharia de Minas da Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG - unidade João
Monlevade; bolsista do Programa Institucional de Apoio à Pesquisa - PAPQ/UEMG.
168 Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG - unidade João Monlevade; mestre em Estudos
Literários pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara - UNESP; professor orientador bolsista do Programa
Institucional de Apoio à Pesquisa - PAPQ/UEMG

303
a form ação m n em ônica de certa identidade cultural que ignora as m em órias e a experiência dos

grupos historicam ente oprim idos. D e inúm eras form as, com efeito, tanto o poder público

m unicipal quanto o setor privado concorrem p ara a enunciação e a reprodução da m em ória

oficial enquanto discurso m onológico sobre o passado, naturalizando processos históricos de

subalternização e de apagam ento, po r m eio da instituição de u m a narrativa articulada a certas

posições ideológicas com o percepção com um e geral.

A f o r ja do p io n e iro

Jean A ntoine F elix D issandes de M onlevade, que nascera a 14 de abril de 1789 na

França, form ou-se na E sco la P olitécnica de P aris no ano de 1812. E ngajou-se, posteriorm ente,

no C orpo de E ngenheiros M ilitares (Corps Royal Des Mines), atuando no cam po da E ngenharia

de M inas (PA SS O S, 1973; R E B E L A T T O , 2012).

A dicção épica e a representação heroica do engenheiro francês são um a constante nas

diversas obras que narram suas origens e, ao fazê-lo, enfatizam , po r exem plo, a nobreza de sua

ascendência. O historiador e escritor m odernista m ineiro João D ornas F ilho (1902-1962), que

extraiu m uitas das inform ações sobre M o n levade que utilizo u de m em órias de um a bisn eta do

engenheiro francês, após relatar que Jean M onlevade nascera “ no castelo de B ogenet, p erto de

G ueret, no C reuse” , por exem plo, assinala que o engenheiro:

Descendia de velhas e tradicionais famílias da nobreza francesa como os Lavillate,


Bogenet, Dissandes, Pionnat e Saint-Fiel, que se estabeleceram na Marche, onde
ocuparam os cargos mais elevados, remontando as suas origens, ao que se conhece
por documentos, aos reinados de Luiz XII e Francisco I, no século XVI. No Brasil
esses velhos troncos franceses cruzariam com os Souza Coutinho e Pais Leme; de
velha e rica cêpa luso-flamenga, que recuariam para as fraldas dos Andes o meridiano
de Tordesilhas. (DORNAS FILHO, 1957, p. 189)

F ica explícita a articulação de um discurso cuja intencionalidade consiste em destacar

a pretensa superioridade de suas origens, atestada pela enunciação nom inal de tradicionais

ram os da n obreza da França, as posições de destaque político assum idos po r seus antepassados

na h istória de determ inada região do país e, no lim ite, a vinculação com o reinado de L uiz X II,

iniciado, na verdade, ainda em fins do século X V . E sse discurso não se restringe, com efeito,

ao texto em questão, m as é reiterado sistem aticam ente por m eio de diferentes suportes que

veiculam a história oficial hegem ônica (C Â M A R A M U N IC IP A L , 1995; FE R R E IR A , 2016;

LIM A , 2016; P A S S O S , 1973).

304
A glutinam -se aí tan to elem entos de distinção de classe quanto de caráter étnico-racial,

os quais integram , significativam ente, a com posição da figura do pioneiro. D e outra parte, se

este se configura desde o princípio com o hom em nobre branco/europeu, sua u n ião conjugal e

sua descendência fam iliar constituiriam , obviam ente, senões, caso se colocasse em risco o ideal

de pureza que subjaz a construção ideológica im plicada na figura de M onlevade. D isso decorre

a necessária observação de que tam bém as linhagens com que, j á no B rasil, o nobre sangue

francês irá se m esclar são de procedência europeia e distinta relevância histórica.

Já em 1817, Jean de M onlevade decide vir ao B rasil, a fim de realizar pesquisas

geológicas e m ineralógicas, especificam ente na província de M inas G erais. O engenheiro

francês aporta no R io de Janeiro em 14 de m aio do ano em questão, para de lá se dirigir a

M inas, levando j á consigo dois escravos de sua propriedade (PA SSO S, 1973; R E B E L A T T O ,

2012). P ercorre então várias com arcas nos m eses que se seguiram , tais com o C aeté, São João

D el Rey, V ila R ica, Sabará e São M iguel do Piracicaba.

N os anos seguintes, M onlevade desenvolveu trab alh o s im portantes em Caeté: em

parceria com o capitão Luiz Soares de G ouveia construiu um alto-forno p ara a produção de

ferro cujo sucesso lhe rendeu reconhecim ento de personagens im portantes do cenário político

da época. A ssim , destaca-se a carta que A ntonio G onçalves G om ide, m édico e senador do

Im pério, escreveria, em 16 de m aio de 1823, a José B onifácio, indicando elogiosam ente o nom e

de M onlevade para analisar e gerenciar a exploração da galena de A baeté (rica fonte de prata

e de chum bo), o que efetivam ente se consum aria nos anos seguintes. N a época em que atuou

em A baeté, o engenheiro francês travou contato tam bém com João B atista F erreira de Souza

C outinho, B arão de C atas A ltas, proprietário das fam osas m inas de G ongo Soco. A

aproxim ação entre os dois seria sobrem aneira im portante, pois, poucos anos depois, M onlevade

contrairia m atrim ônio com u m a das sobrinhas do B arão, D. C lara Sophia de Souza Coutinho.

O estabelecim ento definitivo de M onlevade em São M iguel de P iracicaba se deu em

m eados dos anos 1820, po r m eio da aquisição de algum as sesm arias de terra a po u ca distância

daquele arraial, às m argens do rio Piracicaba. T am bém aqui se pode apontar com o a

representação dessa personagem histórica assum e contornos épicos na n arrativa tradicional,

pautando-se pela construção m o d elar da figura do herói, o que ocorre, por exem plo, na obra de

Juliana Passos, autora da m ais p o p u lar b iografia do engenheiro francês, tam bém am iúde

apoiada em relatos e m em órias de adm iradores de Jean M onlevade:

Monlevade, como conhecedor profundo e espírito lúcido, observou a extraordinária


riqueza da região e descortinou-lhe o enorme futuro.

305
E, homem de ação, Monlevade adquiriu duas léguas abaixo do Arraial de São Miguel
(hoje cidade de Rio Piracicaba), algumas sesmarias de terra. (1973, p. 43-44).

E m term os quase idênticos, a Cartilha do cidadão, publicada po r iniciativa da C âm ara

M unicipal de João M onlevade em 1995, relata: “E m Piracicaba, encantou-se com a

extraordinária riqueza da região e, descortinando-lhe o enorm e futuro, adquiriu, duas léguas

abaixo do então arraial de São M iguel, algum as sesm arias de terras” . (1995, p. 5)

C om efeito, em am bos os casos, se sobressai não o processo h istórico ou m esm o a

narração objetiva do passado “factual” , m as sim o discurso laudatório, im pregnado de

qualificativos elogiosos, quer direcionados ao próprio M onlevade quer ao esp aço em que ele

consum ará seus feitos, concorrendo para a tessitu ra de um a m em ória coletiva apologética. E sse

espaço, rom antizado, assum e contornos m íticos: não possui passado ou habitantes originários,

m as aguarda placidam ente a vinda gloriosa daquele a que foi destinado. N as narrativas de

pioneirism o, o apagam ento histórico do período anterior à vinda dos assim cham ados pioneiros

ao local em questão é um a constante, um a vez que os espaços são retratados com o desabitados,

com o puram ente naturais e excluídos do processo h istórico — ou seja, reificados — só

adentrando realm ente a história a p artir da chegada do pioneiro que efetivam ente o coloniza

m obilizando a superioridade inata de que é detentor.

D essarte, o eurocentrism o e a perspectiva colonial subjazem incontornavelm ente à

dinâm ica ideológica do pioneirism o. C om o afirm a C arlos E duardo B ao:

Nos seus andaimes mais fundamentais, o discurso do pioneirismo sustenta-se em


pressupostos étnico-raciais. Sugere que pessoas com uma ligação genética com
indivíduos originariamente provenientes do que se conhece como “Europa” possuem
alguma espécie de superioridade inata com relação aos “outros” — imaginam-se
“brancos” aos olhos Ocidentais. (2017, p. 147)

D e m aneira m ais am pla, pode-se dizer que o pioneirism o, enquanto categoria, se refere

a com plexos ideológico-discursivos produzidos e reproduzidos por m eio da perpetuação de

u m a visão hegem ônica, m onológica e épica da história. E ssa leitura do passado influi

determ inantem ente sobre a cultura do presente, articulando um a representação m nem ônica

coletiva que assum e posições elitistas frente às contradições sociais — classe, raça-etnia,

gênero, religiosidade etc. — e que engendra, ainda, um ethos p articular estabelecido com o

paradigm a legitim ado de conduta social hierarq u izad a. A ssim , em u m a ótica colonial, o

p ioneirism o atua a p artir da reificação de personagens históricos que detém diferentes tipos de

poder, m as que, nos diversos recortes tradicionais da m em ó ria local, tendem a corresponder

consistentem ente com a figura eurocêntrica m asculina, identificada com as classes dom inantes,

306
dotada de um a espécie de senso p riv ilegiado para os negócios, de ilim itada capacidade de

inovação, e de com petência e resiliência ím pares. A fo rm a com que o presente reelabora nesses

term os o passado é, em si m esm a, condicionada pelas relações de poder que, ao longo do

processo histórico, a legitim am enquanto discurso oficial. (R O M E R O , 2022)

O utra passagem cuja representação tam bém explicita, por m eio da exaltação épica de

seus feitos, a construção heroica da figura do pioneiro diz respeito à construção da sede de sua

fazenda e das instalações destinadas à produção de ferro, isto é, o S o lar M onlevade. N a já

aludida C artilha do cidadão, encontra-se a seguinte narração:

Providenciou também a construção da sede da fazenda, o lindo SOLAR DE


MONLEVADE, edificação imponente que dominou a paisagem do Vale do
Piracicaba e que, varando os tempos, tornou-se o marco histórico e o símbolo maior
da civilização plantada pelo pioneiro francês. (CÂMARA MUNICIPAL, 1995, p. 5)

N o enunciado, sobressai-se tanto o escam oteam ento da m ão de obra negra escravizada,

responsável efetivam ente pela construção m aterial do S o lar (concluída em m eados dos anos

1820) quanto, por outro lado, o discurso acerca do m arco civilizatório representado pela

instalação de M onlevade e de seus em preendim entos no local. M ais um a vez, fica evidente a

configuração de um a narrativa de traço s m íticos — de caráter etiológico m esm o — , em que as

proezas do herói fundam um a com unidade ideológica pautada pelo ethos que a própria

n arrativa delineia.

E sse com plexo ideológico-discursivo não se ancora, evidentem ente, apenas nas

diferentes narrativas que o m aterializam , atualizam e difundem . N a verdade, os próprios

m onum entos e espaços históricos do m unicípio, em sua recepção contem porânea atuam com o

suporte da narrativa que veicula a versão oficial do passado cristalizada na im agem do pioneiro.

Sob esse viés, o próprio Solar, em sua m aterialidade, constitui suporte e difusor do ideário em

questão.

307
Figura 1 - Solar M on levade

Fonte: ArcelorMittal (2017).

C om efeito, o Solar M onlevade, sede da fazenda e da forja, constituiu desde o início

um sím bolo de grandiosidade para toda a província, pois diferentem ente das propriedades

rurais locais, o casarão em estilo europeu im pressionava pela singularidade de sua edificação.

A exaltação recorrente — no discurso oficial bem com o nos diferentes m eios de com unicação

— da m agnificência da construção que, com o descreve Passos, “ [m ]ajestosa, confortável e

im ponente, dom inava a paisagem do V ale do P iracicab a” (1973, p. 44), corresponde (e reforça),

m etonim icam ente, à grandiosidade atribuída a seu original proprietário, colaborando para a

exaltação da figura deste.

N ota-se que a estrutura original do prédio foi m antida, apesar de reform as que foram

exigidas pelo tem po. N ão há, todavia, um trab alh o técn ico-científico de estudo e preservação

desse im portante m onum ento que, nos dias atuais, é propriedade da A rcelorM ittal A ços L ongos

(herdeira do legado de Jean M onlevade e da C ia B elgo-M ineira) e é utilizado esporadicam ente

com o estadia para figuras consideradas ilustres.

308
É claro que, do ponto de vista econôm ico, o presente da cidade de João M onlevade

ratifica o em preendim ento concretizado pelo francês, sobretudo quanto às condições propícias

para a produção de ferro (e contem poraneam ente o aço), visto que até os dias atuais, a

m ineração e a siderurgia são as atividades econôm icas predom inantes, to rnando a cidade e a

região cenário de atuação de grandes em presas do setor. E m contrapartida, em m eio à

p redom inância do setor m inero-m etalúrgico na região, nota-se um alheam ento da população

com relação ao seu passado histórico, som ado à recepção acrítica do discurso de pioneirism o

eurocêntrico que caracteriza a m em ória coletiva oficial acerca das origens da cidade.

T al apreensão do passado é hegem ônica do ponto de vista ideológico e pode ser

observada nos discursos das autoridades públicas locais, das m ídias de um a form a geral, assim

com o da educação, em seus diferentes níveis. E la coordena a instituição de um a m em ó ria sobre

os prim órdios da cidade que silencia e recalca a participação dos oprim idos — e as próprias

relações de opressão — no processo histórico, ao passo que se refestela à m esa dos vencedores.

T rata-se de u m a ideologia de inviabilização de outros grupos, de outras identidades — sejam

os indígenas botocudos que habitavam toda a b acia do R io D oce, cujos últim os representantes

são os K renak, sejam os negros de origem africana subm etidos à escravidão — por m eio do

estabelecim ento de um ethos específico e do reconhecim ento/apagam ento m nem ônico.

E sse com plexo de representações se dilui no ideário local em sentido am plo, arrogando

para si o status de verdadeiros valores e de v erd ad eira cultura. C abe-nos, porém , trab alh ar com

a verdade fundam ental enunciada por W alter B enjam in, isto é, a constatação de que “ [n]ão há

docum ento de cultura que não seja tam bém docum ento de b arb árie.” (2012, p. 137)

O avesso d a m e m ó ria

E ssa m em ória fabricada para exaltar a figura do pioneiro à revelia dos subalternizados

se naturaliza po r m eio de dinâm icas ideológicas de reificação, engendrando um ethos singular,

u m a norm a social de conduta propugnada com o ideal. E sse m odelo, consubstanciado na

personagem de Jean M onlevade, tal com o ela se apresenta pelo viés do discurso oficial, culm ina

no culto à figura do herói que é, concom itantem ente, patrono e paradigm a, reverberando sob

os signos da civilização e do progresso. M as aqui cabe indagar: qual civilização? P rogresso

para quem ?

T alvez um dos exem plos m ais significativos que se possa apontar em relação a essa

dinâm ica resida no poem a “M onlevade, Saga” , de autoria do p rofessor L uciano C lem ente

309
M endes Lim a. E sse texto fora proposto com o poem a-sím bolo da cultura literária do M unicípio

de João M onlevade, proposição aprovada por unanim idade pela C âm ara M unicipal no dia 22

de ju n h o deste ano (R O M E R O , 2022). O texto, que reproduz estilisticam ente o gênero épico,

voltado à n arrativa m ítica e à exaltação de personagens heroicos, e que agora fig u ra com o

sím bolo oficial da cultura de João M onlevade, cristaliza ju stam en te aquela im agem do passado

a que vim os nos reportando.

E m u m a de suas m ais significativas passagens, o poem a afirm a: “ T eus negros, félix,

preferiam ser teu s que livres/ E livres dispersos não te encontram m ais.” (LIM A , 2016) T rata -

se dos m esm os versos registrados em um a p laca afixada no C em itério H istó rico da cidade com o

fo rm a de “hom enagem ” aos negros escravizados da F azenda e da F orja M onlevade (R O M E R O ,

2022). O excerto afirm a, de fo rm a cristalina, que os negros preferiram a servidão a serem livres,

com o se lhes fosse disponibilizada algum a chance de esco lh er e que, m esm o escolhendo, eles

teriam decidido se subm eter ao ju g o da escravidão. A reificação aí é evidente, pois o discurso

naturaliza os papéis sociais instituídos pela relação de opressão, contribuindo ainda para a

m anutenção e reforço positivo da im agem de Jean M onlevade, cujo retrato se afasta da

realidade do senhor de escravos, do b ran co europeu d eten to r de todos os privilégios e poderes

de um descendente da alta nobreza francesa, o qual construiu sua fortuna e legado a p artir da

exploração escravocrata de indivíduos desum anizados e da extração g ratuita de riquezas

naturais de terras expropriadas aos povos originários que nelas habitavam e que foram — e

continuam sendo — dizim ados desde o início da colonização.

D a problem ática em tela, deriva a necessidade de um a abordagem a contrapelo da

história, de um a apreensão do passado que possa desatar as vozes silenciadas e as m em órias

suprim idas. N as palavras do ensaísta uruguaio E duardo G aleano:

A veneração do passado sempre me pareceu reacionária. A direita elege o passado


porque prefere os mortos: mundo quieto, tempo quieto. Os poderosos, que legitimam
seus privilégios por herança, cultivam a nostalgia. Estuda-se história como se visita
um museu; e essa coleção de múmias é uma fraude. Mentem-nos o passado como nos
mentem o presente: mascaram a realidade. Obriga-se o oprimido a ter como sua uma
memória fabricada pelo opressor, alienada, dissecada, estéril. Assim ele haverá de
resignar-se a viver uma vida que não é sua como se fosse a única possível.
(GALEANO, 2015, p. 371)

João M onlevade possui um vasto acervo tan to de m onum entos quanto de docum entos

e m ateriais que ju n to s contribuem para a propagação de um discurso m onológico de exaltação

dos vencedores, favorecendo a form ação de u m a identidade cultural local hegem ônica,

eurocêntrica e elitista, m as que tam bém podem ser explorados de form as alternativas, visando

310
enxergar a história por outros ângulos. É necessário co nfrontar o passado — o que sem pre se

faz a partir do presente — para resgatar do olvido esse avesso da m em ória oficial, um a vez que

constitui condição sine qua non p ara transform ar um m undo que frequentem ente se nos m ostra

às avessas.

R E F E R Ê N C IA S

A R C E L O R M IT T A L B R A SIL. “N o Solar da Fazenda M onlevade (...)” . 30 m ar. 2017.


Facebook: A rcelorM ittal B rasil. D isponível em:
h ttps://w w w .facebook.com /A rcelorM ittalB R /photos/1281924415176058. A cesso em: 5 nov.
2022.

B A O , C arlos E duardo. O discurso do “ pioneiro colonizador” com o elitism o cultural na


cidade de Toledo/PR . E m T ese (revista do P P G S P da U F SC ), v. 14, n. 1, jan ./ju n ., p. 140­
156, 2017.
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M onlevade / M inas G erais escovada a contrapelo. P a trim ô n io e M e m ó ria , A ssis, SP, v. 18,
n. 1, p. 440-465, jan ./ju n . 2022

311
A INCORPORAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS NOS PROJETOS
POLÍTICOS NACIONAIS DA ARGENTINA E DA COLÔMBIA (1860­
1890): UMA ANÁLISE DOS DISCURSOS À LUZ DA HISTÓRIA
COMPARADA

G IO V A N A E L O Á M A N T O V A N IM U L Z A 169

R e su m o : O presente trabalho tem com o intuito apresentar nossa pesquisa em desenvolvim ento
no D outorado em H istó ria P olítica, a qual se propõe a analisar a história da A m érica L atina sob
a m etodologia da H istória C om parada enunciada por C harles Tilly (1991) e José D ’A ssunção
B arros (2007). O objetivo do estudo consiste em abordar as propostas políticas de inserção dos
povos indígenas nos E stados N acio n ais da A rgentina e da C olôm bia, analisando os discursos
veiculados em livros e revistas publicados po r autores argentinos e colom bianos entre 1860 e
1890. D entre as fontes inicialm ente selecionadas, podem os enum erar a Actualidadfinanciera
de la Republica Argentina (1875) do coronel Á lvaro B arros p ara o estudo do caso argentino e
Ensayo sobre las revoluciones políticas (1861) de José M aría Sam per para a análise com parada
do caso colom biano. A hipótese que será investigada durante a pesquisa considera que o estudo
com parado nos possibilitará observar discursos superficialm ente diferentes po r parte de am bos
os países: enquanto os autores argentinos sustentarão um a política de exterm ínio e assim ilação
forçada dos povos indígenas, os estudiosos da C o lô m b ia defenderão um a assim ilação b ran d a e
v o lu n tária conduzida pelas m issões e p ela senda civilizatória. À priori, nossa tese con jectu ra
que, apesar das diferenciações nos discursos e nos m étodos de incorporação indígena, os países
analisados com partilharam u m a ideia de branqueamento que estava em consonância com um
projeto civilizatório europeizante com um às nações h ispano-am ericanas do século X IX que se
orientava para a hom ogeneização da sociedade.

P a la v ra s -c h a v e : H istória Indígena; H istória C o m p arad a; H istória da A m érica Latina.

I n tr o d u ç ã o

A form ação dos E stados N acio n ais latino-am ericanos consiste em um a tem ática

consolidada nas pesquisas acadêm icas (B ETH ELL, 1990). Seus conteúdos são debatidos em

program as de pós-graduação, em laboratórios de pesquisa e em livros renom ados publicados

no B rasil ou na A m érica Latina. A pesar da robustez dessa bibliografia, estudar

sim ultaneam ente o processo de form ação de dois E stados N acionais pode ser um a tarefa que

ainda revela novas surpresas, principalm ente porque u m a análise com parativa possibilita

dem onstrar as singularidades de cada caso estudado. A presente pesquisa se inscreve nesse

objetivo: observar com parativam ente a form ação de dois E stados N acionais latino-am ericanos.

169 Universidade Estadual de Maringá (UEM); Doutoranda em História Política; Bolsista Capes.

312
O s países escolhidos para serem com parados foram a C olôm bia e a A rgentina em fu n ção da

singularidade de cada experiência nacional e pelas sem elhanças originárias na dem anda de

consolidar um E stad o forte frente o rol das nações civilizadas que se consolidavam no ocidente.

A opção pelos países selecionados tam bém se deve aos interesses da pesquisadora: a

C olôm bia com preendeu seu objeto de estudo no m estrado e a A rgentina lhe suscitou interesse

no decorrer da graduação em H istória. O recorte tem poral escolhido com preende o período

situado entre as décadas de 1860 e 1890 - em bora esse contorno não venha a ser estático tendo

em vista a necessidade de retroceder e avançar na tem poralidade. N essa pesquisa, visarem os

desvendar o m odo com o esses dois E stados N acionais partiram de necessidades com uns e

prosseguiram po r cam inhos singulares diante de suas realidades locais. A creditam os que essa

análise com parativa possibilitará um a nova abordagem que m utuam ente ilum inará as

especificidades de cada experiência nacional e que m ostrará a singularidade da história desses

países latino-am ericanos.

C onform e orienta o m étodo com parativo, irem os realizar algum as perguntas para

am bas as nações selecionadas: Q ual era o m odelo de E stado N acional que alm ejavam ? C om o

as populações nativas se encaixaram nesse m odelo? Q uais estratégias foram usadas para

alcançar esse m odelo de E stad o N acional? C olôm bia e A rgentina foram capazes de im plantar

o ideal nacional que projetaram ? T ais questões serão direcionadas para os casos colom biano e

argentino, as quais perm itirão um a ilum inação recíproca que revelará suas singularidades. É

evidente que esperam os delinear trajetórias específicas m arcadas pelas políticas de exterm ínio

do E stado argentino e pelas aproxim ações institucionais E stad o -Ig reja do governo colom biano.

N o entanto, acreditam os que a análise sim ultânea dessas trajetó rias singulares evidenciará um

objetivo sem elhante com partilhado por am bos os países: construir E stados N acionais

fortalecidos e relevantes no rol das nações civilizadas do século XIX.

R e fe re n c ia is te ó ric o s

A pesquisadora M ônica Q uijada M aurino (2003) traçou um a coerente abordagem

acerca da construção das nações hispano-am ericanas no século XIX. Segundo a autora, as

guerras de em ancipação paulatinam ente culm inariam na segregação do p o d er espanhol em

novas configurações políticas republicanas que, p artindo de inquietações oriundas da com um

n ecessidade de inserção no concerto das nações (Z O R A ID A V Á Z Q U E Z , 2003), passaram a

b u scar ferram entas para “in v en tar suas n açõ es” . Os m ecanism os em pregues pelos governantes

313
dessas nações em construção foram distintos, m as poderiam ser sintetizados na lógica de fixar

sím bolos, festividades, instituições e constituições que m oldassem sua singularidade e

perm itissem sua prosperidade. A s observações de M ô n ica Q uijada M aurino (2003)

dem onstram que os cam inhos percorridos pelas nações colom biana e argentina foram

específicos, m as suas m etas com partilham sem elhanças que poderiam ser contem pladas através

da com paração.

C onform e incita a autora, análises com parativas podem revelar em profundidade a

dinâm ica de sem elhança-distinção na história das nações hispano-am ericanas do século XIX.

E sse é o argum ento defendido pela h istoriadora M aria L ígia C. P rado (2005) em suas

observações sobre as contribuições da H istória C om parada para o estudo da A m érica Latina.

A pesar da fecundidade que nos falam as pesquisadoras m encionadas, estudar as trajetórias

percorridos pela C olôm bia e pela A rgentina para construírem suas nações pode revelar um

exercício inédito que dem onstra a im portância dessa pesquisa e que, ao m esm o tem po, dificulta

a b u sca po r referenciais. A dificuldade, no entanto, não com preende um im pedim ento, m as

revela a contundência desse estudo. C om base nesse cenário, nossas balizas teóricas sobre a

C olôm bia e a A rgentina serão aquelas que analisam singularm ente os cam inhos de cada nação.

P ara a C olôm bia, podem os m encionar alguns estudiosos que contatam os aquando de

nossa pesquisa de m estrado. U m relevante estudioso que n orteia esse cam po é O scar B lanco

M ejía (2009), quem delineia pertinentes observações acerca do papel da Igreja C atólica para a

construção da nação colom biana. O autor defende a ideia de modernização tradicionalista e

tra ç a o com plexo quadro institucional que conduziu os governantes da C olôm bia a reco rrer a

um a aliança estratégica com o clero católico. E ssa p o stu ra tam bém aparece nas pesquisas de

E dw in C ruz R odríguez (2010), quem apresentou as principais tendências políticas que iriam

conduzir a C olôm bia na segunda m etade do século XIX. T ratava-se, com o j á havia apresentado

F rédéric M artínez (1996), de im portar m odelos de nação que perm itissem inserir aquele país

na senda do progresso. T ais autores possuem contribuições para a presente pesquisa na m edida

em que delinearam , com precisão, os m ecanism os usados pelos políticos colom bianos - fossem

os nostálgicos da em ancipação ou as autoridades do sistem a republicano - a fim de conduzir a

C olôm bia para o concerto das nações civilizadas. C om o balizas, nos perm item observar a

ten d ên cia desses políticos em alm ejar a construção de um a nação orientada pelos costum es

hispano-católicos e que busca in cluir as variações regionais e étnicas nesse m odelo idealizado.

N o que se refere à A rgentina, podem os m en cio n ar os estudos de A na C arolina G.

P om peu (2012 e 2014), quem dedicou suas pesquisas para desvendar os m ecanism os

institucionais que levaram o E stad o argentino a prom over as C am panhas do D eserto entre 1877

314
e 1885. A autora dem onstrou a existência de u m a “nação excludente” que teve com o principal

característica o exterm ínio - físico e/ou cultural - dos m odelos de sociabilidade que

transgredissem seu padrão de civilidade. U m a im portante contribuição da autora está em sua

análise da obra Facundo: civilização e barbárie e da m an eira com o D om ingo F. Sarm iento

(1845) havia influenciado as trajetórias tom adas pelos políticos argentinos na segunda m etade

do século X IX com base na dicotom ia rural-urbano. O utra pesquisa de relevância foi feita por

G abriel P assetti (2010), cuja tese de doutorado com preendeu um estudo com parando a

form ação da A rgentina com a da N ova Z elândia. O caráter in o v ad o r da análise está no recorte

com parativo - que apresenta correspondências m etodológicas com a abordagem

individualizadora de C harles T illy (1991) que tam bém conduzirá este trabalho. O s cam inhos

percorridos por G abriel P assetti (2010) convertem sua tese em um im portante referencial para

no rtear um a com paração entre a C olôm bia e a A rgentina.

A pesar da m enção a autores brasileiros, sabe-se que a produção acadêm ica sobre a

h istória da C olôm bia e da A rgentina é m ajoritariam ente proveniente de autores latin o -

am ericanos. O id io m a espanhol, dessa form a, será predom inante para a realização dessa

pesquisa - tan to no que se refere à b ib liografia secundária quanto, obviam ente, às fontes

históricas a serem analisadas. E sse aparente desafio, contudo, revela-nos um aspecto a ser

m encionado: o pouco espaço que a A m érica L atina oitocentista recebe no rol de interesses dos

pesquisadores brasileiros, que poderiam lançar novos olhares para a h istória do B rasil através

do estudo de seus vizinhos continentais. E stá claro que um a com paração entre a C olôm bia e a

A rgentina urge em ser realizada e nossos esforços se orientam a dem onstrar a fecundidade que

o m étodo com parativo pode rep resen tar para a com preensão da h istória da A m érica L atina e,

por consequência, para a própria história brasileira.

O b je tiv o s

- O b je tiv o s G e ra is :

O objetivo desta pesquisa é analisar - m utuam ente - a form ação dos E stados da

C olôm bia e da A rgentina e as estratégias que esses países usufruíram para ten ta r alcançar seus

m odelos de nação civilizada.

- O b je tiv o s E sp ecífico s:

315
• P rom over exposições gerais acerca das experiências históricas da C olôm bia e da

A rgentina;

• A nalisar as especificidades dos casos colom biano e argentino com base nas fontes

selecionadas;

• M ap ear a m aneira com o as experiências históricas da C olôm bia e da A rgentina

culm inaram em cenários singulares no m undo contem porâneo.

M e to d o lo g ia e fo n tes

A presente pesquisa se insere teó rica e m etodologicam ente no cam po da H istória

C om parada e tem com o referencial as colocações de José D ’A ssunção B arros (2007) e de

C harles T illy (1991). A m bos os autores delinearam procedim entos com plem entares para o

tratam en to das realidades com paradas. P ara B arros (2007), a H istó ria C om parada com preende

um recorte gem inado no espaço e no tem po, tendo com o objetivo analisar universos diferentes

através da com paração e da ilum inação recíproca. A ssim , a H istó ria C om parada consiste na

possibilidade de se observar o m odo com o um m esm o problem a pode atravessar determ inadas

realidades histórico-sociais distintas, baseando-se em u m a m útua ilum inação que culm ina no

estudo interativo destas realidades.

E m consonância com tais colocações, C harles T illy (1991) buscou elaborar quatro

m étodos para o estudo com parativo: a universalização, a globalização, a individualização e a

diferenciação. M ediante a análise destes procedim entos, acreditam os que a abordagem

individualizadora to rnar-se-á a m ais adequada para nosso objeto de estudo. S egundo Tilly

(1991), o procedim ento in dividualizador b u sca m ap ear as sem elhanças entre as realidades

observadas e, a partir daí, perm ite id en tificar as singularidades de cada caso com parado. Com

base nesse m étodo, o historiador reúne as características que as realidades possuem em com um

e depois se dedica a identificar as especificidades de cada caso. Pretendem os, a partir desse

procedim ento, com parar as realidades colom bianas e argentinas com o fim de especificar as

singularidades que os processos de form ação de cada E stado vieram a possuir.

A s fontes que irão com por esse trabalho, assim com o a bib lio g rafia secundária, se

referem a cada realidade particular. Isso se deve à escassez de trabalhos e de fontes que versem

sobre o tem a elencado. D essa form a, esta pesquisa analisa docum entos sobre a C olôm bia e

sobre a A rgentina em suas realidades singulares, tendo em vista a inexistência de algum a fonte

h istórica do século X IX que verse sobre am bos os países sim ultânea e com parativam ente. D e

316
fo rm a a organizar nossa pesquisa, optam os por selecionar fontes de acordo com as

problem áticas centrais enum eradas anteriorm ente. P ara o estudo sobre o E stado N a ç ã o

alm ejado, optam os por analisar as observações de Á lvaro B arros (1875) para a A rgentina e os

ensaios publicados por R afael N únez durante sua carreira política na C olôm bia entre 1850 e

1891. N o que tange à inserção dos povos indígenas, podem os enum erar os ensaios de D om ingo

F austino Sarm iento (1883) e de M ardoquéo N avarro (1881) para a A rgentina e algum as

observações de José M aría Sam per (1860) para a C olôm bia. Sobre o tem a das estratégias

elencadas, escolhem os um com pilado de ensaios de E stanislao S. Z eballos publicados entre

1881 e 1913 na A rgentina e um texto de Jose E usebio C aro (1842) para a Colôm bia.

E m b o ra tenham os enum erado um a lista de docum entos históricos, essa pesquisa

contará com outras fontes que serão coletadas e analisadas ao longo do d esen volvim ento da

pesquisa.

O e stu d o d a H is tó r ia In d íg e n a a p a r t i r d a H is tó r ia P o lític a

E len car o político com o âm bito de estudo revela nosso interesse em analisar as relações

de p o d er que perm earam a construção dos E stados colom biano e argentino no tran scu rso do

século XIX. A pesar dos estigm as que acom panharam a h istória política no alvorecer do

novecentos (R E M O N D , 2003), a renovação teórico -m eto d o ló g ica que percorreu esse cam po -

sobretudo em função da criação do conceito de cultura política (B E R ST E IN , 1998) -

perm itiram inserir o estudo das relações de poder no rol da h istória-problem a defendida pelos

h istoriadores da g eração dos Annales. T ais m udanças, no entanto, não substituíram o poder

com o objeto de análise da história política e sua relevância p a ra a com preensão dos

m ecanism os de im posição e contestação que m oldam as relações sociais (B A R R O S, 2009).

A creditam os que a opção pela linha política decorre do recorte tem ático realizado.

A final, propom o-nos a analisar as relações de p o d er - em sua esfera institucional ou não - que

perm earam a form ação dos E stados colom biano e argentino - desde a form ulação de m odelos

até a im posição de um a organização estatal e social vencedora. N osso estudo irá se debruçar

sobre ideias e discursos que estavam em con so n ân cia com as n ecessidades enfrentadas pelas

nações latino-am ericanas do século X IX , as quais poderão ser m elhor com preendidas através

da análise do político e da sua influência sobre as dem ais esferas da vid a social. E ssa foi a

proposta defendida po r R ené R ém o n d (2003) em seus trab alh o s inaugurais sobre a N ova

317
H istória Política: observar a dupla realidade do político, na qual p o de-se revelar sua autonom ia

e sua sim ultânea influência sobre as dem ais áreas.

E ssa pesquisa tam bém poderia ser feita a p artir dos p arâm etros estabelecidos pela

histó ria cultural, tendo em v ista que a construção das nações latino-am ericanas tam bém poderia

ser observada através de outros enfoques. N o entanto, o recorte tem ático elencado im pediria

d issociar essas possíveis análises culturais de seu aspecto político, ten d o em vista a relevância

das relações de poder para a com preensão do m undo h isp ano-am ericano do século XIX.

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319
THE FRENCH LIEUTENANT’S WOMAN: PRESENTISMO E
UBIQUIDADE DO PASSADO

G U E ISE D E N O V A E S B E R G A M A S C H IN E 170*

O livro The French Lieutenant's Woman foi publicado em 1969 e é a terceira obra

ficcional do escritor b ritânico John F o w le s171. E le nasceu em 31 de m arço de 1926 em L eigh-

on-Sea, no condado de E ssex, Inglaterra. Sua obra ficcional é m arcada pela utilização dos

gêneros literários de grande p opularid ade, com o o th riller e o rom ance, para a abordagem de

questões filosóficas e sociais com plexas, com o o papel social da m ulher, a individualidade e a

sexualidade. A ntes de TFLW , John F ow les havia publicado The Collector (1963) e The Magus

(1965), am bos bestsellers. M as foi com a publicação de TFL W que ele passou a ser apontado

com o expoente de um a nova escrita pós-m oderna.

T FL W é um a obra sobre a passagem do tem p o e os olhares retrospectivos que essa

passagem proporciona. D entre os m uitos jogos reflexivos que existem na obra, há o fato de

n arrador e protagonista estarem em tem pos diferentes, m as olhando am bos em direção ao

passado. O n arrador se posiciona, desde o prim eiro capítulo, no presente. E então, com pés bem

plantados no século X X , lan ça seu olhar para a época de suas personagens. P o r sua vez, C harles

e Sarah, no século XIX, tam bém olham para o passado, seja para ten tar se libertar dele ou para

reescrevê-lo.

O capítulo1 da obra diz m uito ela. E le descreve u m a cena no Cobb, o queb ra-m ar da

cidade de Lym e. P ara o narrador, trata-se não só do “ m ais belo quebra-m ar da costa sul da

Inglaterra” (FO W LES, 2008, p. 7), m as tam bém de um local “im pregnado de sete séculos de

histó ria” . E caso o leito r ju lg u e sua descrição um “ exagero” , o narrador afirm a que o leitor

poderia com prová-la, já que “ o C obb m udou m uito pouco desde o ano sobre o qual escrevo”

(FO W L E S, 2008, p. 8). C om isso ele se distancia de suas personagens e crava sua posição no

tem p o de seu leitor. O tem po de suas personagens não é o seu tem po, é o tem p o sobre o qual

ele escreve.

É o século X X que form atará a perspectiva do narrador. É assim que ele se refere às

cores das roupas de E rnestina, que passeava pelo C obb com C harles:

170* Doutoranda pela Universidade Federal de Ouro Preto. Nossa pesquisa conta com o apoio da UFOP e o
financiamento da CAPES.
171 A partir de agora, para efeito de simplificação, passaremos a mencionar a obra usando apenas suas iniciais
TFLW.

320
Hoje acharíamos as cores das roupas da senhora nitidamente gritantes; mas então o
mundo estava extasiado com a descoberta das tinturas de anilina. E o que a mulher
exigia de uma cor, como compensação pelo comportamento que se esperava dela, era
que fosse vibrante, não discreta (FOWLES, 2008, p. 9).

T alvez essa seja a prim eira entre as suas m uitas observações que ligam E rn estin a aos

costum es vitorianos, a u m a m oral supostam ente recatada e, ao m esm o tem po, hipócrita. N esse

caso, u m a m oral de fachada, que ao im por discrição às m ulheres, era bu rlad a no seu vestuário.

A lém do casal E rn estin a e C harles, havia no C obb, segundo o narrador, m ais um a

pessoa. E ra Sarah, que “estava postada na ponta que avançava p ara o m ar” , com roupas pretas

que “ se agitavam com o vento” . Sua “figura perm anecia im óvel, o o lhar parado, fitando o m ar,

m ais com o um m onum ento vivo aos afogados, u m a figura m ítica, do que qualquer outro detalhe

daquele dia provinciano e insignificante” (FO W L E S, 2008, p. 9). C aracterizada ao longo da

obra com o um a figura fora de seu tem po, S arah espreita o m ar, com as costas voltadas p ara o

Cobb, que encarna os “ sete séculos de histó ria da In g laterra” . A inda segundo o narrador,

haveria, além de Sarah, um “ espião local” (FO W LES, 2008, p. 8), ou um “ hom em do

telescó p io ” (FO W LES, 2008, p. 9).

D essa form a, estão colocados na cena descrita no prim eiro capítulo, o passado ou a

história, representados pelo C obb, E rnestina, ligada à era vitoriana, S arah que se posiciona de

costas para o C obb ou para o passado, e finalm ente C harles, que a p artir daí e durante to d a a

obra se dividirá entre as duas m ulheres e entre os dois tem p o s: o de E rnestina, e aquele p elo

qual S arah anseia e, de certa form a, fo rja com sua narrativa. A lém deles, existe alguém ligado

ao ato de observar, e que pelo u so do telescópio, parece g uardar certa distância da cena. Talvez

seja alguém distante com o o narrador, possivelm ente no p resen te. E n tre ele e as personagens

pode haver u m a distância tem p o ral. E o telescópio talvez busque v en cer a passagem do tem po

e acessar o passado, dando ao “espião” a possibilidade da construção de um olhar

retro sp ectiv o 172. C om o afirm am os, um capítulo significativo e rev elad o r do que a obra irá

tratar.

C onsiderando esse protagonism o que a passagem do tem p o tem em TFLW , esse artigo

faz algum as considerações sobre as form as de abordagem do passado, do futuro, sobre com o

n arrador e personagens percebem a passagem do tem po, e sobre as form as de fig u ração da

h istória na obra.

172 É possível associar o “homem do telescópio” à personagem do Dr. Grogan, amigo da família Freeman e
confidente de Charles Smithson, que possuía um telescópio apontado para a bahia de Lyme. Ainda assim, a
perspectiva de um observador distante temporalmente nos parece bastante significativa, já que é esse o ponto de
vista da voz narrativa.

321
Q uanto ao futuro, claram ente não há otim ism o, j á que o progresso e a m odernidade são

alvo de severas críticas. C olocando lad o a lado o presente e o passado, ou os séculos X X e X IX ,

ele pergunta: “H oje, que m édico conhece os clássicos? Q ue am ador pode conversar

detalhadam ente com um cientista?” P ara ele, um a conversa entre as personagens de C harles e

D r. G rogan dificilm ente poderia ocorrer no presente, j á que o entendim ento entre eles som ente

poderia ocorrer porque “ o m undo desses dois hom ens era um m undo ainda livre da tiran ia da

esp ecialização” . E faz um alerta ao leitor: “ eu não gostaria que você confundisse felicidade

com progresso” (FO W LES, 2008, p. 163). E ssas palavras, que lem bram o tom cr ítico da

m odernidade de F iódor D ostoiévski em Notas de Inverno sobre Impressões de Verão, talvez

soassem m ais naturais na b o ca de C harles Sm ithson, protagonista da obra e contem porâneo do

autor russo do século XIX. N o entanto, m esm o que um tanto desconfortável no século em que

vive, o olhar de C harles não se volta para o futuro e não traça expectativas positivas ou

negativas quanto a ele. É olhando para o passado que C harles busca resolver seu estranham ento

com o presente. E as palavras acim a são de fato as palavras do narrador, em p len a década de

sessenta do século XX, lam entando o progresso.

O passado tam bém não é poupado de um a visão crítica. E m b o ra haja com parações entre

aspectos do passado e do presente, eles não são idealizados ou hierarquizados. Se os

engarrafam entos m odernos não são bons, “ os engarrafam entos dos m eados da época vitoriana

eram tão incôm odos quanto os m odernos - e m uito m ais barulhentos, um a vez que todas as

rodas tinham um a cinta de ferro que rangia nos paralelepípedos” (FO W LES, 2008, p. 309).

M as ainda que observado de form a crítica, é o tem a do passado que enche as páginas

de TFLW . P o d e-se dizer que existe ubiquidade do passado na obra, e talvez seja ju stam en te

das form as de se lidar com o passado, m ais do que de qualquer outra coisa, que dependa o

destino das personagens.

O bserve a form a curiosa com que o narrador lida com as datas. E m um a passagem , ele

afirm a de form a m uito precisa, que E rnestina lia um poem a para C harles na noite de 6 de abril

de 1867, situando-a dessa form a às portas do m ovim ento de em ancipação fem inina na

Inglaterra. M as tam bém nos diz que E rn estin a “nasceu em 1846 e m orreu no dia em que H itler

invadiu a P o lô n ia” (FO W LES, 2008, p. 35). C om o C harles teria “ sobrevivido a ela dez anos”

(FO W L E S, 2008, p. 358) e considerando que ele, no ano de 1867 “tinha trinta e dois anos”

(FO W L E S, 2008, p. 17), C harles teria falecido em 1949 com a idade pouco provável de 114

322
anos. U m equívoco que claram ente destoaria de u m a escrita cuidadosa e que cham a a atenção

pela in ten cio n alid ad e173.

T alv ez seja razoável associar o falso descaso do autor com as datas, a um a percepção

de tem p o que afirm a, m uitas vezes, que alguns com portam entos seriam u m a “ constante” . Ou a

u m a percepção com o a que teve C harles, que sente o tem po com o um “ engano” , e que vê na

história, um a “ilu são ” :

Num estalo, num lampejo negro, compreendeu que a vida seguia em linhas paralelas
- que a evolução não era vertical, subindo sempre até alcançar a perfeição, mas sim
horizontal. O tempo era o maior engano, a existência não tinha história, era sempre
agora, sempre esse ser apanhado pela mesma máquina perversa. Todos esses biombos
pintados que o homem erguia para se isolar da realidade - a história, a religião, o
dever, a posição social - eram meras ilusões, fantasias provocadas pelo ópio
(FOWLES, 2008, p. 218).

E ssa descrença em relação a história surge para C harles em um m om ento em que ele se

com para a um fóssil que ele próprio havia encontrado, um exem plar das “ am onites” que foram

fossilizadas depois de “ apanhadas de surpresa em algum a poça d ’água” , ou seja, seres que

tiveram seu destino conduzido ou m arcado pelo m ero acaso, pelo que é aleatório, e que,

incapazes de reação, ficaram presas e a um tem po que não m ais existe (FO W LES, 2008, p.

218). U m tip o de p ercepção que n eg a um a “lógica intrínseca ao processo h istórico”

(C H A R B E L , 2015, p. 132) ou a existência de um a “P rovidência ordenadora” (C H A R B EL,

2015, p. 129).

M as o que se parece com um a descrença em relação ao passado e ao futuro, esse

sentim ento de que é “ sem pre agora” ou u m a percepção de tem po im buída de presentism o em

C harles Sm ithson, não é um a constante na obra. É possível que seja justam ente sobre esse tipo

de p ercepção que o autor queira tratar. M as fará isso através de personagens que, vivendo um

século antes dele e de sua obra, ainda têm essa p ercepção de form a m om entânea e aguda, são

surpreendidos por ela, com o po r um insight. P ara as personagens, notadam ente C harles e Sarah,

o passado ainda tem tan ta im portância que, a fo rm a com o elas irão eq u acioná-lo influenciará

fortem ente seu destino.

173 A comprovação da intencionalidade do equívoco vem no capítulo 45 da obra, também bastante identificado
com a prosa pós-modernista. Nele, o narrador ironicamente atribui o equívoco ao cansaço do autor. No que nos
parece uma forma de, bem de acordo com os debates pós-modernistas, trazer o foco para os papéis do leitor e do
autor no processo de produção e assimilação da narrativa, o narrador diz: “Se nesses dois últimos capítulos você
tiver notado uma certa brusquidão, uma certa inconsistência, uma indicação do potencial maior de Charles e a
naturalidade com que lhe é atribuída uma existência de quase um século e um quarto; se você desconfia que o
autor começa a dar sinais de cansaço, como tantas vezes acontece na literatura, e arbitrariamente terminou a
corrida enquanto ainda está ganhando, não me culpe; porque todos esses sentimentos, ou reflexo deles, estavam
presentes na mente de Charles”.

323
É ju stam en te a desorganização tem poral causada pela perda da referência do passado

que parece produzir em C harles o sentim ento de estar fora de seu tem po, de ter sido incapaz de

reagir às m udanças, ou de ter sofrido u m a “ fo ssilização ” . N o capítulo 37 da obra, após um a

conversa em que o Sr. Freem an, pai de E rnestina, hom em de enorm e fortuna e de grande

destaque no com ércio, pede a C harles que, após o casam ento, considere a possibilidade de

to m a r parte em seus negócios, C harles se sente inferiorizado. E le “ era um fidalgo, e os fidalgos

não se podem d ed icar ao com ércio” (FO W LES, 2008, p. 305). M as a argum entação do Sr.

F reem an se baseia, com o é de costum e, na inevitabilidade do progresso:

Os tempos estão mudando, você sabe. Esta é a era do progresso. E o progresso é como
um cavalo fogoso. Ou montamos nele ou ele monta em nós. Deus me livre de pensar
que a ocupação de cavalheiro não seja uma atividade satisfatória na vida. Que nunca
poderá ser. Mas esta é uma era de realizações, Charles, de grandes realizações
(FOWLES, 2008, p. 306).

C harles se sentiu “ àquela altura com o um a am ostra de guardanapo m al-acabada, um a

vítim a da evolução de todos os sentidos” (FO W L E S, 2008, p. 306). Seu sentim ento de

inadequação fica evidente quando, ao deixar a m ansão dos F reem an e sair às ruas, ele se m istura

com a m ultidão de pessoas que “ pertenciam às classes m ais m odestas” (FO W LES, 2008, p.

310), e ele se sente m ais infeliz que elas. É quando a m etáfora do “ fóssil” v o lta a ser usada para

expressar sua inadequação, agora diante de u m a situação que parece configurar um novo

esquem a de forças entre nobreza e burguesia, e entre nobreza e força de trabalho:

Charles não era um socialista de primeira hora. Não percebia a enormidade do


problema moral representado por sua situação econômica privilegiada, porque estava
longe de se considerar privilegiado em outros aspectos. A prova disso estava à sua
volta. De um modo geral, os passantes não pareciam estar infelizes com sua sorte, a
menos que fossem mendigos, e esses tinham que ter uma aparência miserável para se
dar bem. Mas ele era infeliz. Diferente e infeliz; parecia que todo aquele enorme
aparato que o cavalheiro tinha que erguer ao seu redor era como uma espessa couraça
que constituíra a sentença de morte de tantas antigas espécies de sáurios. Essa imagem
do monstro superado por uma espécie mais preparada o fez diminuir o passo. Chegou
mesmo a parar - pobre fóssil ambulante, enquanto outras formas de vidas mais
adequadas passavam atarefadas por ele, como amebas vistas num microscópio, ao
longo da fileira de lojas em que ele chegara (FOWLES, 2008, p. 310, grifos nossos).

A gora observe com o a m etáfora do fóssil é articu lad a com o conceito de ironia para

tra tar da percepção da passagem do tem po de C harles Sm ithson. L em brem os que suas am onites

eram seres que foram “ apanhadas de surpresa em algum a poça d ’água” . E le se sentia com o um

“ fóssil” e se com parava a elas, quando p erceb ia que “ o tem p o era o m aior engano, a existência

324
não tin h a história, era sem pre agora” e ele era “ sem pre esse ser apanhado pela m esm a m áquina

p erversa” .

P ois agora, andando pelas ruas de L ondres, o passado nobre de C harles se torna, diante

da passagem do tem po e das novas situações, com o u m a “ couraça” que representava um a

“ sentença de m orte” . D iante da oferta do Sr. F reem an e de sua sensação de inferiorização diante

da “ era do progresso” , ele se sente novam ente “um fóssil am bulante” e sua falta de

com preensão da passagem do tem po volta a aparecer, ju stam en te, no que ele cham a de um a

falta de “ senso de ironia” . O bserve:

O nevoeiro engrossara e, embora não impedisse totalmente a visibilidade, dava às


coisas um aspecto ligeiramente onírico; como se ele fosse um visitante de outro
mundo, um Cândido que só conseguisse entender explicações óbvias, um homem
subitamente desprovido do senso de ironia (FOWLES, 2008, p. 309).

M as p erceba o que ele recupera quando pensa ter “ recuperado o senso de ironia” :

Charles sorriu, pois, mais que a ternura sentimental, aquela garotinha o fez sentir que
havia recuperado o senso de ironia, o que, por sua vez, equivalia a recuperar a fé em
si mesmo. Horas antes, quando estava no coche de sir Tom, tivera uma sensação falsa
de viver o presente. Sua rejeição do passado e do futuro não fora mais que um
mergulho perverso na irresponsabilidade e no esquecimento. Agora tinha uma
intuição muito mais profunda e genuína da grande ilusão dos homens a respeito do
tempo, ou seja, a de que o tempo é como uma estrada - em que a pessoa sempre vê
onde estava e onde provavelmente estará - em vez da verdade: que o tempo é uma
sala, um agora tão perto de nós que normalmente não conseguimos vê-lo (FOWLES,
2008, p. 338).

Ora, quando C harles acredita ter “recuperado o senso de ironia” , o que ele recupera é

u m a capacidade m aior de ver as coisas, ou u m a capacidade de ver as coisas além de seu

significado óbvio, algo m uito de acordo com a noção de ironia vista até aqui em nossa pesquisa.

M as ele recupera essa capacidade em relação a u m a coisa específica: a passagem do tem po. E

em bora não fique claro qual é sua nova percepção, ou o que ele considera ser a “v erd ad e” , está

claro que essa verdade desfaz “ a sensação falsa de v iver o presente” , e que ela não inclui “a

rejeição do passado e do futuro” que estaria ligada som ente à “irresponsabilidade” e ao

“ esquecim ento” . E desfeita a ilusão da possibilidade de, com o em u m a estrada linear, se

conhecer o passado ou prever o futuro, o tem po passa a ser perceb id o com o u m a “ sala” que

está “tão perto que não conseguim os v ê -lo ” . N ão há m uitas pistas sobre o que isso significaria

exatam ente. M as talvez seja possível in ferir que estando tão “p erto” de nós, e ao m esm o tem po

tão im previsível, nos caberia ter algum a agência sobre o tem po, sobre a sua passagem e

portanto, sobre a história.

325
V ejam os então, algum as form as de figuração da palavra “ história” em TFLW . T odo o

dram a de C harles, seus m edos, sua ligação com E rnestina e principalm ente com Sarah, tudo

isso é tratad o através de sua relação com o passado e com a história. O passado é algo que

aprisiona C harles, que teria que lutar “ contra esse desejo m acabro de cam inhar de costas para

o futuro, com os olhos fixos, com o que hipnotizados, em nossos pais falecidos e não em nossos

filhos por nascer” . E a presença ubíqua do passado era um a espécie de condenação à m orte:

“E ra com o se sua crença anterior na presença fantasm agórica do passado o tivesse condenado,

sem que ele jam a is se tivesse dado conta disso, a viver na sepultura” (FO W LES, 2008, p. 386).

O m undo e a vid a podiam , sim , ser diferentes para C harles. M as isso passava por sua

ligação com Sarah, que, para se concretizar, precisava que ele rom pesse com a tiran ia do

passado. E la deveria ser capaz de m o strar a ele “ que h av ia um a verdade além de suas verdades,

u m a em oção além de suas em oções, u m a história além de todas as suas concepções de h istória”

(FO W L E S, 2008, p. 277). A qui as palavras h istória e passado não se equivalem . L onge de se

tra tar de um a disciplina, a h istó ria aparece com o algo próxim o dos hom ens e m ulheres, algo

cuja percepção influenciaria nas suas atitudes, algo, portanto, que se relacionaria com sua

agência. D ependeria das novas “ concepções de h istória” de C harles a realização do rom ance

dos protagonistas. M ais que isso, a h istória está presente na form a com o o n arrador define o

protagonista. V eja com o ele pede ao leitor que com preenda C harles: “ V eja-o com o ele é: um

hom em em luta para ven cer a história, ainda que ele próprio não perceba isso” (FO W LES,

2008, p. 315).

D essa form a, considerando T FL W com o um docum ento de seu próprio tem po e

atentando sem pre para os inúm eros jo g o s reflexivos existentes na obra, podem os considerar

que a personagem de C harles propicie reflexões sobre um passado que o ligava à n o b reza e,

portanto, lhe fornecia identidade, m as que, ao perder im portância, fazia dele um fóssil. O u seja,

perm ite ao autor, no século X X , fazer reflexões sobre um passado do qual se é inegavelm ente

tributário, m as que j á não pode fo rn ecer identidade ou garantias. U m passado que perdia

im portância e ao qual o apego poderia representar um a condenação. T alvez seja possível

considerar que ju stam en te essa perda de im portância do passado seja um dos tem as de Fow les.

D aí a im precisão das datas. N ão im porta qual passado, o de Fow les ou o de C harles Sm ithson,

o que im porta é sua condição de passado. T alvez o que Sarah pretenda m ostrar a C harles seja

que, no século XIX, haja m enos determ inism os, e que o passado em si pode ser m enos

significativo que a capacidade dos indivíduos de ler e reler o passado e com isso reescrev er sua

história.

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329
PESQUISA, ESCOLHA BIOGRÁFICA E MICRO-HISTÓRIA

G U IL H E R M E D E M A T T O S G R Ü N D L IN G 174

I n tr o d u ç ã o

A escolha de um indivíduo com o objeto central de um a tese de doutorado não é tarefa

fácil. A inda m ais quando este indivíduo foi central na construção de identidades políticas,

sendo representado am plam ente em projetos biográficos e m em orialistas. O principal objetivo

desta pesquisa foi com preender a construção da carreira de M anoel Luís O sório (1808-1879)

no E xército im perial.

M anoel L uís O sório nasceu em 10 de m aio de 1808, no R io G rande do Sul quando este

era ainda um território em constante disputa entre as C oroas ibéricas. E sses territórios situados

ao sul das A m éricas estiveram subm etidos a tentativas de avanço territorial do Im pério

português rum o às possessões do Im pério espanhol, assim com o em direção aos territórios

habitados po r populações indígenas. E sse conflituoso contexto, de acordo com a historiografia,

possibilitou o aparecim ento de soberanias, com o resultado de diferentes conjunturas políticas

apresentadas à A m érica do Sul ao longo dos séculos X V III e X IX , dentre essas o próprio

Im pério do B rasil. (C O M ISSO L I, 2011, p.74-75)

N essa perspectiva, M anoel L uís trilh o u um longo e singular cam inho até atingir os

postos m ais altos da hierarquia m ilitar. T eve seu “batism o de fogo” nos conflitos de

independência do B rasil na região da C isplatina, antes m esm o de com pletar 15 anos de idade.

N o entanto, som ente chegou a m arechal do E x ército em 02 de ju n h o de 1877, após os 69 anos

de idade. A o final desse m esm o ano, tam bém foi alçado ao M inistério da G uerra e ao Senado

Federal. E m relação aos títu lo s nobiliárquicos de barão, de visconde e de m arquês do H erval,

obteve-os som ente durante a sua atuação na G uerra da T ríp lice A liança (1864-1870).

P ara analisar esse indivíduo, procurou-se com preender o processo que o levou a ser um

m ilitar com relevante prestígio social e político. M anoel Luís O sório ao longo da vida, torn o u -

se um dos “ senhores da guerra” do Sul do B rasil. E sses indivíduos atuaram sob um a lógica que

os distinguia dos dem ais “ hom ens com uns” , com o assinalou M iqueias M ugge em sua tese de

doutorado sobre os com andantes de fronteira: Senhores da Guerra: Elites militares no Sul do

Império do Brasil (Comandantes Superiores da Guarda Nacional - 1845-1873). U m a

174 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Doutorando em História, Bolsista CAPES.

330
“ consciência de elite” que refletiu em configurações específicas, com o por exem plo, com andar

forças m ilitares em tem pos de guerra e recrutar tropas para fiscalização da fronteira em

períodos de paz. U m a sistem ática que prom oveu am plas negociações e favorecim entos

pessoais, certas vezes, em relação aos subordinados e, em outras, em relação às autoridades do

E stad o Im perial. (M U G G E, 2016, p.9-34)

C ontudo, a intenção não foi propor um a coerência ilim itada ou u m a am pla racionalidade

a vida de M anoel L uís O sório ou a qualquer outro indivíduo com quem se relacionou. A té

m esm o, porque da m esm a form a que suas ações enquanto chefe m ilitar, político e estancieiro

ajudaram a estabelecer fortes vínculos, am igos e correligionários, certam ente essa m esm a

condição lhe proporcionou desafetos m ilitares e inim igos políticos. A través da análise desses

conjuntos de relacionam entos, que dependiam de configurações e de estratégias específicas,

que se buscou elucidar a construção da carreira m ilitar de M anoel L uís O sório. Se os constantes

conflitos que assolaram o território sul-rio-grandense ao longo do século X V III e X IX

possibilitaram a inserção social da fam ília O sório, tam bém serviram para inviabilizar u m a série

de outros projetos. A form a com o M anoel L uís m anejou esse legado e essas dificuldades gerou

um m odo ún ico de ação social, política e m ilitar, possibilitou o aparecim ento do general O sório

(M arquês do H erval).

In d iv íd u o e B io g ra fia

A opção por bio g rafar M anoel L uís O sório som ente foi possível a p artir de u m a revisão

teó rica e m etodológica sobre o tem a. A s problem áticas em torno da b iografia histórica e da

historiografia constituem atualm ente um dos debates clássicos da historiografia. O objetivo não

foi esgotar as form as de com preensão dos indivíduos na histó ria através suas representações

biográficas, m as sim, apresentar referências interpretativas que ajudaram na concepção e na

elaboração deste texto. (SC H M ID T , 2003, p.57-72)

D urante b o a parte do século X X , os estudos biográficos ocuparam espaço reduzido em

âm bito acadêm ico. (A V E L A R , 2 0 1 0 )175 A p rim azia das análises, no que diz respeito à pesquisa

histórica, era pela longa duração desenvolvida p ela história dos Annales. (SC H M ID T , 2003,

p.57-72) T ais narrativas buscavam com preender as grandes transform ações sociais em curso.

175 Segundo Alexandre de Sá Avelar, as temáticas listadas nunca deixaram de existir na historiografia, entretanto,
durante a "hegemonia dos Annales", a biografia passou a ocupar um plano auxiliar na historiografia.

331
A ssim , reafirm ava-se a p referência pelas grandes transform ações coletivas. (R EV EL, 2000)

R eleg ad a a segundo plano de im portância, a bio g rafia ficou estritam ente atrelada aos estudos

vinculados às histórias de grandes sujeitos políticos e de suas respectivas realizações. B aseadas

na v alorização de trajetórias de grandes indivíduos e na construção de narrativas

sim plificadoras e lineares sobre o passado. (LEV I, 1996)

N esse sentido, ao refletir acerca de obras de escritores oitocentistas incum bidos de

reelab o rar a dim ensão ocupada pelo indivíduo na história, Sabina L origa considerou que foram

da F rança que partiram as principais críticas ao gênero biográfico. Segundo a historiadora, na

década de 1930, por atribuição da h istória dos Annales, nas críticas atribuídas à história

historicizante, que a b iografia virou um dos principais ícones da h istória tradicional, cuja

preocupação era m ais com a ordem cronológica dos fatos do que com as m udanças estruturais,

m ais pelas narrativas dos heróis do que pelos m ovim entos coletivos. (L O R IG A , 2003)

T odavia, a p artir da segunda m etade do século X X , as críticas passaram a ser m ais

frequentes quanto aos anseios totalizantes v inculados à Escola dos Annales. P o r conseguinte,

as anteriores críticas aos estudos biográficos passaram a ser incorporadas às suas análises

m acroestruturais. (A V E L A R , 2010) N esses m oldes, a b iografia legitim ava-se com o objeto de

análise historiográfica, porém na prática, seus estudos restringiam -se a m odelos que não

privilegiavam as singularidades dos sujeitos biografados. (SO U Z A , 2003)

N esse contexto, havia o predom ínio de "(...) dois usos da biografia: a b iografia

representativa e o estudo de caso. Os dois, no entanto, acabavam negando o próprio biográfico

com o lugar de produção de u m a escrita da H istória". (SO U Z A , 2003, p .9 5 -1 0 8 )176 O que se

pretendia era representar e/ou ilustrar um grupo social ou um a definição explicativa

previam ente estabelecida. D essa form a, tais m odelos não levaram à com preensão das possíveis

alternativas de um a narrativa h istórica a partir de um a vida.

N a década de 1980, os trabalhos biográficos encontraram espaço de legitim idade, o

gênero renovava suas bases: abriam -se possibilidades para “ as cham adas v o ltas” ou “retornos”

das biografias. (SC H M ID T , 2014, p.126-127) E m b o ra continuassem a existir m uitas ressalvas

sobre esse “ retorno” das biografias, de fato o período registrou u m a profusão de narrativas.

U m a das ressalvas m ais difundidas, feita pelo historiador francês Jacques Le G off, considerou

176 Para a autora, a biografia representativa buscava o estudo de trajetórias ilustrativas de um grupo a ser
representado e que não pretendia investigar as singularidades de uma trajetória, mas sim, enfatizar elementos que
poderiam simbolizar um grupo. A biografia como estudo de caso, por sua vez, reduziria ainda mais o espaço de
experiência da produção de uma escrita da história pelo viés biográfico, pois, nesse modelo analítico em um
primeiro momento seriam definidas as análises gerais e contextuais. Somente após os eixos explicativos serem
definidos, as análises biográficas seriam inseridas de maneira a ilustrar a análise discorrida anteriormente.

332
“ essas v o ltas” com o “ equívocos” . P a ra ele, “ se cada um a delas pode ser aceita pela nova

h istória e se os partidários da nova h istória não raro delas deram o exem plo, é porque cada um

desses gêneros históricos (ou quase) v o lta com um a problem ática profundam ente

renovada” .(LE G O FF, 1990, p.8)

O autor cham ava atenção para u m a profunda m odificação na abordagem que, naquela

conjuntura, as biografias e outros gêneros textuais (históricos ou não) passaram a im plem entar.

O utras áreas do conhecim ento, não som ente historiadores, dedicaram -se à escrita biográfica. A

jo rn a lista e escritora am ericana Janet M alcolm , po r exem plo, pontuou relevantes contribuições

para profissionais dedicados à pesquisa e escrita de um a vida. P ara a autora, o tem po dedicado

aos arquivos, às b ib lio tecas e às instituições de g u ard a de docum entos, fotografias, diários e

correspondência deveriam estar articulados aos textos. A final, ao fazerem a leitura de um texto

biográfico, os leitores não são m ovidos som ente pelo “voyeurism o” e “bisb ilh o tice” da vida

alheia. A s m otivações do b iógrafo para escrever sobre um a vida devem aparecer de form a

nítida ao leitor. (M A L C O L M , 1995, p.17)

P ortanto, ju n to a essa retom ada do destaque dos indivíduos no âm b ito da pesquisa

histórica, a historiografia precisou dem arcar que aquele retorno não pod eria ser um a retom ada

à b iografia tradicional, de característica factual, que desvinculava o indivíduo à sociedade na

qual estava inserido. O caso do general O sório, po r exem plo, cairia “ com o um a luva” a quem

estivesse disposto a escrever este tipo de texto. A liás, pode-se dizer que “ caiu com o um a luva” ,

pois as características pessoais e profissionais atribuídas à O sório por seus biógrafos são m uito

distintas das atividades e das dinâm icas da sociedade da qual fazia parte. Sem querer a m issão

de recuperar o general O sório “v erd ad eiro ” , na m ed id a que esta seria um a tarefa im possível,

tam pouco reforçar as narrativas heroicizadas desse indivíduo, este estudo se preocupou em

explicar, analisar e problem atizar a vida de M anoel Luís O sório e de suas redes de relações.

Isto porque trab alh ar a b iografia de alguém é recuperar as ações, os elem entos constitutivos de

suas atuações enquanto sujeito histórico, considerando-se, portanto, o espaço de experiência

em que se projetou, assim com o seu horizonte de expectativas. (K O S E L L E C K , 2006)

A o elab o rar u m a biografia, deve-se estar atento aos "(...) perigos de form atar seus

personagens e de induzir o leito r à expectativa ingênua de estar sendo apresentado a u m a vida

m arcada por regularidades, repetições e perm anências." (A V E L A R , 2010, p.162) A procura

por escrever sobre um a singularidade única, coerente e im utável perdeu espaço, diante de

procedim entos teórico-m etodológicos cujo intuito principal é privilegiar espaços sociais

plurais, identidades não fixas e referenciais diversos. Isso ocorreu, pois existiu o entendim ento

de que as individualidades não se m oldam a m odelos esquem áticos, a conceitos e a lim ites

333
teó rico s previam ente definidos. A b u sca atual por um a narrativa que correlacione aspectos

variados da vida, não se sujeitando a linearidade e/ou a representação que confere identidade a

um grupo. (B O U R D IE U , 1996)

N esse aspecto, o olhar da pesquisa histórica percorreu m udanças e transform ações

sentidas em sua expressão narrativa. Para exem plificar, atualm ente ao escrever um texto

histórico, deve-se estabelecer as ações a serem representadas: deixar explícito aos leitores sobre

os elem entos que ju stifica m a escolha pelo sujeito biografado, assim com o salientar as

perguntas, os principais conceitos trabalhados, a m etodologia utilizada na análise das fontes. A

problem atização dessas encruzilhadas, que m uitas vezes envolvem a construção da pesquisa e

da escrita acadêm ica, tornaram -se parte do dever de historiadores, que, de m aneira

experim ental, estiveram sujeitos a cam inhos e a possibilidades diversas. (B A R R O S, 2010, p.9-

12)
E sses procedim entos são possíveis de serem adotadas no sentido de desnudar os canais

que legitim am a relação entre autor e leitor. A s questões salientadas podem rem eter a

problem áticas m ais am plas e gerar im portantes reflexões no cam po historiográfico. O que se

procurou destacar ao percorrer os cam inhos de u m a vida particular, foram as hesitações,

dúvidas e incoerências do personagem , assim com o os questionam entos e os desafios

enfrentados durante a construção da pesquisa. A im p o rtân cia de p roblem atizar essas questões,

tam bém possuíam especial relação com outros indivíduos preocupados com as estratégias da

pesquisa e da escrita da história. (A V E L A R , 2010)

P e s q u is a e M ic ro -H is tó ria

P ara a construção desse novo olhar, ou seja, o reaparecim ento dos indivíduos e do

b iográfico com o parte central dos debates historiográficos, foi tam bém determ inante a

contribuição dos pressupostos teórico-m etodológicos oriundos da micro-história social. A

escolha po r M anoel Luís O sório e o processo de seleção e de tratam ento das fontes, foram

tam bém inspiradas nas contribuições de C arlo G inzburg e de C arlo Poni, sobretudo, o

reconhecido: O nome e o como. Troca desigual e mercado historiográfico. N esse texto, os

autores descrevem o procedim ento m etodológico que consiste em to m ar o “ nom e” com o um

tipo de bússola, com a capacidade de exercer um a dupla função: servir de guia ao pesquisador

diante do cam po docum ental dos arquivos e de organizar as diferentes possibilidades

334
narrativas. D esse m odo, a trajetó ria de um indivíduo específico e de suas relações, podem servir

com o u m a ja n e la de acesso ao passado. (G IN Z B U R G ; PO N I; 1989, p.169-178)

A través dessas brechas de acesso ao passado que a análise da v id a de um indivíduo

pode oferecer, buscou-se reco n stru ir e articular problem áticas m ais gerais. A cessar, por

exem plo, as relações fam iliares, os anos de form ação profissional, as diferentes estratégias de

sociabilidade e de atuação política em relação a outros indivíduos. A ssim com o, correlacionar

essas fases da vida de O sório com as transform ações ocorridas no espaço social que esteve

inserido. A s lutas que foram travadas, m as tam bém os lim ites de sua atuação no controle das

fronteiras tam bém em período de “paz” . A s m igrações territoriais que realizou, devido a

conjunturas históricas específicas. A ssim com o considerou M auricio G ribaudi: “ o indivíduo e

o espaço social evoluem e se m odificam m utuam ente, sendo um , parte do outro” . (G R IB A U D I,

2011, p.161) N esse sentido, é im portante considerar que a escolha do individual não precisa

ser entendida com o a ausência do social, pois “ ao longo de um destino específico”, p o de-se

destacar as redes de sociabilidade, as variedades de espaços sociais e as tem poralidades que fez

parte. (R EV EL, 2000, p.17)

A m icro-história, de acordo com G iovanni Levi, reuniu u m a “gam a de possíveis

respostas que enfatizam a redefinição de conceitos e um a análise aprofundada dos instrum entos

e m étodos existentes” . (LEV I, 1992, p .1 3 5 )177A possibilidade de observação por m eio dos

jo g o s de escala, pro p icio u o avanço das discussões relacionadas às estratégias políticas e às

redes de relações dos indivíduos nas sociedades do passado. (R E V E L 1998; L E V I, 2000,

p.135) C om o ferram enta de análise, tam bém ajudou no entendim ento dos relacionam entos

pessoais, sobretudo po r procurar “ evidenciar a rede social em pleno funcionam ento, ou seja, os

diferentes agentes trocando favores e influências diversas com finalidades objetivas” .

(FA R IN T T I, 2014, p.392)

E sta assertiva parte do princípio de que os estudos dos indivíduos históricos devem

p riorizar o desenrolar de suas ações, as situações perpassadas em suas vidas. E sse entendim ento

pressupõe u m a dinâm ica de pesquisa que privilegia a obtenção de grande volum e de registros

e de vestígios históricos, e de um a análise intensiva das fontes. O intuito dessa form a

interpretativa é abandonar a utilização de projeções idealizadas das atuações dos indivíduos ao

longo do tem po. (IM IZ C O Z , 2004, p.125-126)

177 Para Levi a micro-história reúne uma ”gama de possíveis respostas que enfatizam a redefinição de conceitos e
uma análise aprofundada dos instrumentos e métodos existentes."

335
Sendo assim , a m icro-história influenciou decisivam ente nos estudos biográficos. Para

Schm idt, a m etodologia privilegiou o debate sobre o papel dos indivíduos n a história,

salientando certas “im plicações éticas” , com o: os lim ites das ações dos indivíduos.

(SC H M ID T , 2014, p.134) Im portante relativizar esse espaço de atuação individual, pois, com o

afirm ou G iovanni Levi: essa liberdade de ação “ não é absoluta” . P o r essa razão, as biografias

serviram de “ cam po ideal p ara verificar o caráter instersticial - e tod av ia im portante - da

liberdade de que dispõem os agentes e para ob serv ar com o funcionam concretam ente os

sistem as norm ativos, que ja m a is estão isentos de contradições” . (LEV I, 1996, p .1 7 9 -180)

O s personagens não são posicionados com o u m a representação do m eio social e

cultural, m as sim com o indivíduo de “ carne e osso” , e co m o tal, passivo de “ ser

responsabilizado, ao m enos em parte, por seus atos” . (S C H M ID T , 2014, p.135) E m outros

term os, os sujeitos do passado - hom ens e m ulheres - possuíam racionalidade, ainda que

lim itada. Isto quer dizer que suas vidas não eram definidas através de um a predestinação, m as

por um a série de aspectos - políticos, econôm icos, culturais etc - acionados por cada um

subjetivam ente ao fazerem suas escolhas.

Isso im plica no esforço de entender esses aspectos, a partir dos contextos, dos

relacionam entos, dos m eios sociais que o indivíduo estudado fez parte. A s relações de poder

entre indivíduos e fam ílias que ocupavam posição de elite nas províncias im periais brasileiras

no século X IX , nesse sentido, não poderia se restringir som ente ao grau de p aren tesco biológico

entre os indivíduos envolvidos, m as tam bém aos com prom etim entos e às alianças consolidadas

através do m atrim ônio, do com padrio, de laços de sociabilidade e de reciprocidade. T ais fatores

estabeleceram um a certa lógica àquele sistem a, ou seja, o de dar e de retribuir, algo que era

legitim ado pelas p ráticas de diferentes esferas de poder. (M E N E G A T ,2015; B A R A T A ;

M A R T IN S; B A R B O SA , 2014; SC O TT; SC H M A C H E N B E R G , 2004)

D esse m odo, tornou-se necessário analisar em quais círculos sociais o personagem

observado se inseriu, ou seja, p erceb er com o M anoel Luís O sório construiu o prestígio político

na sociedade sul-rio-grandense. C om o passou a atuar na form ação de estratégias que, m uitas

vezes, envolveram diversos atores sociais, prom overam a associação de fam ílias em projetos

que se entrelaçavam em um conjunto de dem andas políticas. Seguram ente, para executar tais

projetos, M anoel Luís O sório teve de estabelecer ligações com outros indivíduos e com redes

de sociabilidade de diversas form as.

P ortanto, para o entendim ento dessas estratégias foi fundam ental o entendim ento de

com o funcionava a engrenagem política daquela sociedade. C om o se estabeleciam as alianças

políticas e de com o se form avam os vínculos sociais entre fam ílias de elite, no R io G rande do

336
Sul oitocentista. A ssim com o qualquer outro indivíduo, M anoel L uís O sório estava conectado

por distintos conjuntos de interações sociais. E le era filho, irm ão, pai, m arido, proprietário de

terras e de indivíduos escravizados, m ilitar do E x ército im perial e p o lítico que atuava nos

bastidores das eleições. E nfim , era contem plado de diferentes conjuntos de relações, u m a vez

que nenhum indivíduo é filho, irm ão, pai e m arido de si m esm o ou ainda chefe político e m ilitar

sem indivíduos aos quais se referir. (C O M ISSO L I; C O STA ; 2014, p.18)

C o n s id e ra ç õ e s fin ais

D uas das principais características relacionadas ao m étodo m icro-histórico, ou seja, a

aproxim ação de escala analítica e a concentração da análise em relações pessoais, são

pressupostos que nortearam esta proposta de pesquisa. E m vista disso, m ostrou-se com o um

cam po de investigação im portante, principalm ente po r considerar que as ações sociais são

resultado de escolhas, de deliberações realizadas pelos indivíduos e grupos sociais. Isso, porque

“todo indivíduo ocupa um a posição em um a teia hum ana com posta po r relações que não lhe é

perm itido m odificar senão dentro de certos lim ites” . (SO U Z A ,2008, p.39)

O que se pretendeu foi analisar através do cruzam ento das fontes as relações que se

aproxim aram de M anoel Luís O sório ao longo de sua vida. Portanto, ao contrário de partir de

um contexto global para situar a atuação de alguns atores históricos, o exercício m etodológico

consistiu em delinear o contexto em função da circulação do personagem e de suas redes de

relações, nos episódios em que participou.

R e fe rê n c ia s B ib lio g rá fic a s

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339
OS SENTIDOS DA AUDIÇÃO: A CONSTRUÇÃO DA TRILHA
SONORA COM ÊNFASE NA REPETIÇÃO MUSICAL EM GRITOS E
SUSSURROS (1972) DE INGMAR BERGMAN178

H E L L E N SIL V IA M A R Q U E S G O N Ç A L V E S *

I n tr o d u ç ã o

A film ografia do cineasta sueco Ingm ar B ergm an apresenta, ao lado de im agens e

diálogos p sicologicam ente penetrantes, um terceiro plano, um aural, com trilh a sonora que

m escla diálogos, m úsica clássica, u m a rica variedade de efeitos sonoros, com o o m arcan te som

do relógio onipresente, e até m esm o o silêncio.

A relação do diretor sueco com a m úsica se deu ainda na infância, graças a um pequeno

piano que havia em sua casa. Sua m ãe, vendo o interesse da criança pelo instrum ento, contratou

um p rofessor de piano. N o entanto, devido a um a rotina diária praticando m úsicas infantis,

com o “ Hopp, hopp, hopp! Pferdchen lauf Galopp !” , aliada a um a inaptidão m usical, B ergm an

se afastou da atividade, em bora sem perder o encanto de ouvinte (LU K O , 2015, p. 03).

P osteriorm ente, já na vida adulta, B ergm an foi contratado para um a tem porada na Ó pera R oyal

Sueca, quando desenvolveu um am or pela m úsica dos com positores F rédéric Chopin, Franz

Schubert, W olfgang A m adeus M ozart, L udw ig van B eethoven, Johann Sebastian B ach e

R ich ard W agner.

A o longo de sua carreira, B ergm an reconheceu o significado da m úsica com o inspiração

para a sua estética cinem atográfica, procurando criar ligações entre as form as e os ritm os da

m úsica e o cinem a (LU K O , 2015, sem paginação): “ cinem a com o sonho, cin em a com o m úsica.

N en h u m a outra arte p assa tão p erto de nossa consciência diurna, indo diretam ente até nossos

sentim entos, até as profundezas do espaço obscuro da alm a” (B E R G M A N , 2013, p. 85).

178 Este trabalho comporta-se como uma revisão do artigo: GONÇALVES, Hellen S. M. As Cinco Mulheres de
Gritos e Sussurros (1972) - uma Construção Aural das Personagens de Ingmar Bergman. In: Congresso Brasileiro
de Ciências da Comunicação, 41. 2018, Joinville. Anais do 41° Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação. São Paulo: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2018. Grupo de
Pesquisa Cinema, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, 01-13. Disponível em:
https://portalintercom.org.br/anais/nacional2018/resumos/R13-1642-1.pdf. Acesso: 03 ago. 2020. E também é
derivado da dissertação: GONÇALVES, Hellen S. M. O cinema de Ingmar Bergman: A construção dos
elementos estilísticos e existencialistas em Gritos e Sussurros. 2019. 172 p. Dissertação (Mestrado em Artes) -
Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.
* Doutoranda em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisa desenvolvida com o
financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail:
hsmgoncalves23@gmail.com.

340
A trilh a sonora, que se divide em vozes, ruídos, m úsica e silêncio, dem onstra que quase

sem pre há a oportunidade de alcançar os significados im plícitos, em que po r m eio da

experiência fílm ica existe a viabilidade de constituir significados que são sentidos de m aneira

inevidente e o espectador ao procurar construí-los deve ter em vista a sua coerência com os

sentidos literais; e os significados sintom áticos, no qual alguns elem entos da obra podem

escapar à intencionalidade do autor ou dos autores, estando divulgados involuntariam ente e

tam bém podem ser vistos com o u m a expressão individual e consequência das obsessões do

artista, sendo apenas efetivam ente considerado po r m eio da apresentação de provas e

argum entos sólidos po r parte de quem analisa (B O R D W E L L , 1991, p. 08-09). A m úsica no

cinem a pode desem penhar um im portante papel de pontuação (C H IO N , 2013, p. 45), no qual

a m úsica clássica ocidental abre a possibilidade de se conduzir pelas cadências, que se arranjam

por m eio da inflexão m elódica e da progressão harm ônica, fazendo com que se antecipem antes

de serem subitam ente afastadas.

U m a notoriedade visualizada ao perpassar pela film ografia bergm aniana é a repetição

da m esm a m úsica em obras individuais, além da reciclagem de trechos em film es distintos. P or

m eio dessas ligações intertextuais em larga escala entre film es, recorrendo repetidam ente aos

m esm os fragm entos m usicais, o cineasta cria um processo que gera m últiplas cam adas de

significado, o que atribui à trilh a sonora um papel privilegiado, principalm ente ao destacar de

m odo conciso os atos de fazer e ouvir m úsica, conferindo-a um papel ativo para influenciar a

ação das personagens e iniciar ou transform ar eventos dram áticos (LU K O , 2015, sem

paginação).

Gritos e sussurros (1972) situa a sua narrativa por m eio da vida de um grupo de cinco
m ulheres: três irm ãs - M aria (L iv U llm ann), K arin (Ingrid T hulin) e A gnes (H arriet A nderson)

-, sua falecid a m ãe (L iv U llm ann) e A nna (Kari Sylw an), sua em pregada. E m um a casa no

cam po, A gnes está bastante enferm a e recebe cuidados de suas duas irm ãs e de A nna, que

p recocem ente perdera sua filha e po r isso extravasa seu am or de m ãe, dando o m aior carinho

possível para aquela m ulher tão debilitada com câncer abdom inal.

N o film e, além dos to n s verm elhos perceptíveis em todo o decorrer da película, outros

dois elem entos com põem a narrativa cinem atográfica, m esm o que de form a discreta: a

Mazurka em Lá menor, Op. 17, n° 4, de C hopin, e a Sarabanda Suite n° 5, de B ach. A m bas as


m úsicas se constituem no film e com o tem as po r m eio da repetição m usical, seja

diegeticam ente, fazendo parte do universo envolvendo as personagens, ou extradiegeticam ente,

em que apenas o espectador pode ouvi-la.

341
P ara tanto, o recorte do trabalho estabeleceu Gritos e sussurros com o fonte prim ária,

dado que, concom itante à análise das im agens, o estudo do som nos incita a p onderar a respeito

da relevância dessa repetição m usical que se configura com o tem a para o film e, interpelando

qual o papel da trilh a m usical para este estudo. A p artir da investigação desse elem ento

estilístico abordado po r B ergm an, abre-se u m a cadeia de possibilidades que objetiva a

averiguação da funcionalidade da repetição m usical dentro do discurso cin em ato g ráfico 179.

A ssim , o exam e de com o, quando, onde e po r que esses trechos m usicais são reciclados é

im prescindível para revelar a catálise das ações das personagens e destacar o m ergulho das

m em órias em ocionais coletivas desse grupo de m ulheres.

L ogo, é preciso evidenciar a investigação através da in terdependência da im agem e do

som, em com o am bos dialogam para produzir os efeitos desejados para o cineasta, o que pode

levar à com preensão da relação do objeto aqui proposto, salientando a funcionalidade da

repetição m usical na narrativa. P ara edificar a análise, inicialm ente, foi em pregada a

abordagem m acrocontextualista, que engloba o estudo das faixas m usicais no contexto

sociocultural, enfatizando os intercâm bios com erciais entre indústria fonográfica e

cinem atográfica. A abordagem m icrocontextualista (ho rizo n tal) tam bém foi utilizada, sendo

esta para investigar as faixas m usicais no contexto das cenas e do film e com o um todo, o que

pode revelar o m odo pelo qual u m a m úsica pode atuar com o catalisadora das ações da tram a.

E m conjunto, foi utilizada a abordagem m icrotextualista (vertical) para investigar as interações

e im plicações m útuas entre im agem e som, situando em com o as m úsicas podem se relacionar

com os planos, aplicando o uso da decupagem em determ inadas sequências e cenas.

A R e p e tiç ã o M u sic a l em Gritos e sussurros

E m seus dram as existenciais das décadas de 1960 e 1970, B ergm an havia se distanciado

do uso m ais ou m enos convencional da m úsica de seus prim eiros film es, m arco que possui

com o fato r preponderante o seu casam ento em 1959 com a fam osa pian ista sueca-estoniana

K abi Laretei, de quem recebeu orientação m usical especializada, conselhos e diversas

colaborações (B R O M A N , 2012, p. 20). A lgum as evidências de sua influência m usical podem

ser encontradas nas autobiografias de B ergm an, com o Lanterna Mágica e Imagens.

179 Cf. XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico - A Opacidade e a Transparência. 4a ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2008.

342
N o d ecorrer de sua carreira, B ergm an convidou L aretei para atuar nas trilhas sonoras

de vários film es: O Olho do Diabo (1960), Gritos e Sussurros, Face a Face (1976), Sonata de

Outono (1978), Fanny e Alexander (1982), O Rosto de Karin (1984) e Na presença de um


Palhaço (1997). A través de seu relacionam ento com a pianista, o cineasta adquiriu um
conhecim ento m usical m ais sofisticado e desenvolveu teo rias sobre audição e perform ance

m usical que influenciaram suas abordagens referentes ao cinem a (LU K O , 2015, p. 25). A

p ianista apresentou B ergm an a m uitas m úsicas, incluindo as m azurkas de C hopin, u m a delas,

a Op. 17, No. 4, que foi destaque em Gritos e Sussurros, tendo sido gravada em um piano

Steinw ay.

A repetição de trechos de m úsica clássica é um elem ento proem inente que pode ser

visto no decurso de to d a a film ografia bergm aniana. P ara tanto, A lexis Luko, em Sonatas,

Screams, and Silence: M usic and Sound in the Film s o f Ingm ar B ergm an, realizou o trabalho
cuidadoso de sistem atizar a ocorrência dessas repetições, abrangendo cinco décadas, de Prisão

(1949) a Sarabanda (2003), com o pode ser visto na tab ela (T abela 01) abaixo:

Tabela 01: Repetição de Trechos de M úsica C lássica nos Film es de Ingm ar Bergm an (1949-2003)
(C ontínua)
Film e T re ch o M usical N ú m e ro de
V ezes O uvido
Prisão Bach, Cantata n° 137 02
R um o à A legria Beethoven, Nona Sinfonia em Ré menor, Op. 125 02
M ozart, Quarteto de Flauta em Lá maior, K. 298 02
M endelssohn, Concerto de Violino em Mi menor, 02
Op. 64
Juventude Tchaikovsky, O Lago dos Cisnes, Op. 20 04
O Olho do D iabo Scarlatti, Sonata em Mi maior, K. 380 03
Scarlatti, Sonata em Ré maior, K. 535 02
Scarlatti, Sonata em Fá maior, K. 446 05
A través de um E spelho Bach, Violoncelo Suíte n° 02 em Ré menor, 02
Sarabanda
Para N ão F alar de Bach, Suíte Orquestral n °03 em Ré maior, Aria 07
Todas Essas M ulheres
Beethoven, Adelaide, Op. 46 02

Gritos e Sussurros Bach, Violoncelo Suíte n° 05 em Dó menor, 02


Sarabanda
Chopin, Mazurka em Lá menor, Op. 17, n °04 03

Sonata de Outono Chopin, Prelúdio em Lá menor, Op. 28, n °02 02


F anny e A lexander Schumann, Quinteto de Piano em Mi bemol maior, 04
Op. 44, movimento II
Bach, Sonata n° 02 para Flauta e Cravo em Mi 03
bemol maior, Siciliana

343
Tabela 01: Repetição de Trechos de M úsica C lássica nos Film es de Ingm ar Bergm an (1949-2003)
(C onclusão)
Britten, Violoncelo Suíte n° 03, Op. 87 04

Na Presença de um Schubert, Viagem de Inverno, A Tília 07


Palhaço
Schubert, Sonata em Si maior, D. 960, movimento II 04

Sarabanda Bach, Violoncelo Suíte n° 05 em Dó menor, 09


Sarabanda
Fonte: LUKO, 2015, p. 106-107 (tradução nossa).

N a análise de Luko, B ergm an reutiliza a Mazurka em Lá menor, de C hopin, em três

pontos em Gritos e Sussurros, no entanto a m úsica se apresenta quatro vezes na narrativa. E sses

tem as m usicais delineados pelo cineasta geralm ente sofrem algum a transform ação a cada

repetição, podendo interligar os planos de áudio, visual e narrativo, ajudando a articular o

dram a e enriquecer o seu significado herm enêutico (LU K O , 2015, p. 107).

Investigar com o, quando, onde e por que esses trechos m usicais são reciclados nos

film es de B ergm an pode sugerir novas estratégias interpretativas para en ten d er as m aneiras

pelas quais a repetição m usical é conveniente para reforçar os tem as narrativos. L uko, para

d iscorrer sobre o assunto, possui com o aporte teórico a dissertação The Allegorical Device o f

the Character Double in the Films o f Ingmar Bergman, de Paul Luke, que se b aseia no ideário
de um a técnica de repetição, frequentem ente vista na film ografia bergm aniana, que envolve o

uso de dois corpos para representar aspectos díspares da m esm a psique form ando o conceito

de personagem duplo.

L uke distinguiu diferentes tipos de personagens duplos nos film es de Ingm ar B ergm an,

m as apenas dois são considerados pertinentes po r L u k o : o personagem am algam ativo duplo e

o personagem disjuntivo duplo. O p rim eiro é propenso a u m a fusão psíquica de dois

personagens que se m isturam e se com binam , com eçando a m anifestar as qualidades do outro

até que as linhas fronteiriças entre as duas identidades sejam ultrapassadas; enquanto que o

ú ltim o envolve um a relação de sósia que salienta a divergência psíquica, em que os

personagens definem a sua própria identidade distinta com hostilidade ontológica. Os

personagens duplos aparecem em incontáveis contextos na obra do cineasta sueco, com o:

E lizab eth V ogler e N urse A lm a, em Persona (1965), Jons e A ntonius B lock, em O Sétimo Selo

(1957); e A lexander Ekdahl e Ism ael R etzinsky, em Fanny e Alexander (LU K O , 2015, p. 108).

Gritos e Sussurros apresenta um a com plexa form ação de um a rede de personagens


am algam ativos e disjuntivos duplos advinda do grupo das quatro m ulheres, dado que as

personagens se fundem através da repetição dos trechos m usicais. O casionalm ente, essa fusão

344
é agradável, produzindo um ganho positivo, ao passo que, em outros m om entos, as m esclas

m usicais são disjuntivas e prejudiciais, fazendo com que as m ulheres percam de vista suas

próprias identidades individuais (LU K O , 2015, p. 109). E ssa peculiaridade corrobora o fato de

que Ingm ar B ergm an, a p artir da década de 1960, com poucas exceções, preferiu u sar m úsica

preexistente em vez de p artituras originais, ta n to diegética quanto extradiegética, dando um a

ênfase m ais trabalhada e m adura para o papel da m úsica em seus film es, salientando que os

sons não m usicais e o silêncio tam bém desem penham um papel im portante em suas trilhas

sonoras (B R O M A N , 2012, p. 16).

U m a das sequências m ais essenciais tem seu início m arcado po r um plano m édio de

A nna em seu quarto, a personagem está am arrando os cadarços de seus sapatos, estando

praticam ente de costas para a câm era, que a enquadra através das grades de sua cam a. A

em pregada se levanta, olha no espelho e se dirige para a cam a, arrum ando-a, para logo depois

pegar um avental e se sentar em um a cadeira, que está de frente p ara um a m esa com um a cesta

de m açãs verm elhas, um a vela, um a pequena B íblia e um retrato. A objetiva que até esse

m om ento acom panhava todos os m ovim entos de A nna sem se deslocar do seu eixo, agora fix a-

se em um plano m édio na personagem , que cruza as m ãos em gesto de oração. A personagem

fech a os olhos e diz o seguinte:

Eu Vos agradeço, Senhor, por me permitir acordar bem animada após um bom sono
sob Vossa proteção e pela boa noite de descanso. Eu Vos suplico também hoje e
sempre que os anjos protejam a minha filhinha... que Vós, na Vossa sabedoria levaste
para a Vossa morada. Amém.

Q uando A nna com eça a sua oração m atinal, a cena é cortada e, enquanto expressava

seus agradecim entos e pedidos, são visualizados diversos planos com o dois close-ups, um

plano-detalhe do retrato, em que é possível v er A nna com sua filha, e outro plano-detalhe

apenas do rosto da criança na fotografia. A ssim que a personagem term ina a sua prece, a

Mazurka de C hopin é ouvida inicialm ente em um contexto não diegético, praticam ente
sim ultâneo a um corte, seguido de um plano m édio de A nna apagando a vela, pegando um a

m açã, m ordendo-a e contem plando a fotografia. A personagem se levanta e a câm era realiza

um m ovim ento para b aix o conferindo um p lano-detalhe no berço vazio.

A Mazurka ajuda a evocar a m em ória devastadora de A nna sobre sua fin ad a filha, além

de ressaltar as rem iniscências das três irm ãs, um a vez que, im ediatam ente após essa cena, a

m úsica continua a soar m esm o depois de um corte seguido de um plano m édio de A gnes

abrindo u m a porta para entrar em um côm odo da casa. A personagem se m ovim enta em direção

345
a um a m esa, em que se encontra um vaso com rosas brancas. A objetiva acom panha seus

m ovim entos m ostrando parte do côm odo, A gnes pega u m a dessas rosas e seu rosto é

enquadrado na tela. E la cheira a flor, expressando serenidade ao ato, porém , quando ela coloca

a rosa em cim a da m esa, a câm era se aproxim a ainda m ais de seu rosto e é possível com preender

certo sofrim ento, dado que a personagem abaixa a cabeça, escondendo-a entre os braços.

A câm era faz um m ovim ento para trás enquadrando um p lano-detalhe da rosa. N o

form ato da flo r aparece a m ãe das irm ãs vestida de branco, tem -se um fade out e vários planos

da m atriarca passeando por um jard im , sim ultâneos à narração do ponto de vista de A gnes, por

m eio da utilização do recurso de voz over:

Mamãe está nos meus pensamentos em quase todos os dias, embora tenha morrido há
mais de vinte anos. Eu me lembro que ela sempre buscava a solidão e a paz do parque.
Também me lembro que a seguia de longe e a espionava quase sem querer, porque
eu a amava a ponto de sentir ciúme. Eu a amava porque ela era tão doce, bonita e
animada e tão intensamente presente. Mas ela também podia ser fria, sutilmente cruel
e me repelir. No entanto, eu não podia deixar de sentir pena dela e, agora que estou
mais velha, a entendo melhor. Eu queria poder vê-la de novo e dizer que entendo o
tédio, a impaciência, os desejos e a solidão dela.

A gnes, ao segurar a rosa branca, parece hipnotizada pelo m om ento e um gatilho libera

as m em órias reprim idas de sua falecida m ãe. A Mazurka acom panha todo esse flashback da

infância, contudo sendo sobreposta pela voz e cessando quando tem um corte para adentrar em

um plano conjunto da fam ília em u m a festa na véspera do D ia de R eis. A narração de A gnes

continua n essa cena, enquanto tia O lga conta um a história que está sendo ilustrada pelas

im agens da lanterna m ágica e todos estão reunidos e sorrindo. A gnes, estando m ais afastada do

grupo, estuda com inveja a proxim idade entre sua m ãe e sua irm ã M aria, que estão abraçadas:

“M am ãe e M aria sem pre tiveram m uito o que sussurrar, elas eram tã o parecidas. Com ciúm es,

eu im aginava do que elas estariam rindo ju n ta s” .

C om um novo corte e a voz da m oribunda se transportando de u m a cena para a outra, o

soar da Mazurka retorna ju n ta m e n te com um close-up de A gnes criança, que está atrás de um a

cortina. M ediante outro corte, o espectador se depara com um plano conjunto da m ãe sentada.

A través de vários contracam pos e da narração, torna-se possível com preender que A gnes está

observando a m ãe, até o m om ento em que esta olha em direção à filha. A câm era realiza um

close-up em A gnes, que ainda está atrás da cortina, e a acom panha no m ovim ento em direção
à m ãe: “ Insegura, eu fui até ela, achando que, com o sem pre, ela iria m e repreender. M as, em

vez disso, ela m e deu um olhar tão cheio de dor que eu quase caí no choro. E rgui a m inha m ão

e a coloquei no rosto dela e, desde então, ficam os m uito próxim as” .

346
N o instante em que A gnes realiza o gesto de carícia, tem -se um prim eiro plano da m ãe,

que está de frente, em que tam bém é possível ver A gnes, que está de costas. A cena se

desvanece em v erm elho e o soar da Mazurka term ina. A m úsica nessa sequência do film e

origina e reforça a conexão de todas essas m ulheres, transpondo cada um a delas, po r sua vez,

para vestígios notórios do passado (LU K O , 2015, p. 113). A inda na rem iniscência de A gnes

com sua m ãe, p ercebe-se a presença das rosas brancas, do soar da Mazurka e de um piano de

salão, inserindo o questionam ento se a m úsica seria parte da diegese do film e nesse m om ento

da tram a, se algum a personagem estaria tocando o piano no fora de cam p o do quadro.

M aria, ao ser alienada em seu próprio ser e dada a condição volátil intim am ente ligada

à ocasião, claram ente esconde suas ações para defender o seu m odo de vida. Tal aspecto pode

ser visualizado em outra parte da sequência que com põe um flashback, m as que particularm ente

m escla-se com o onírico. A cena tem seu início m arcado po r um close-up de Joakim , m arido

de M aria, em que sim ultaneam ente ouve-se a Mazurka, de C hopin. E n q u an to a m úsica continua

a tocar, a entrada de A nna no enquadram ento é precedida por sua voz, j á que esta deseja bom

dia para o patrão, sem aparecer no cam po da câm era. Q uando ele a responde, a câm era realiza

um m ovim ento para trás, agora enquadrando Joakim do tórax para cim a, sendo possível v ê-lo

lendo um jo rn al e parte do corpo de A nna, que está lhe servindo algo. A serviçal se retira do

enquadram ento, ao passo que Joakim continua com o jo rn al em sua m ão, porém aparentando

estar distraído. A pós esse m om ento, tem -se um corte seco da cena e a Mazurka para de to car

abruptam ente, salientando que a voz é d estacada dos dem ais sons e a m úsica apenas se sobrepõe

aos ruídos.

Segundo A lexis Luko, o soar da Mazurka ativa o flashback de M aria e, desta vez, a

personagem é inquestionavelm ente a pianista. E sse acontecim ento dem onstra com o In g m a r

B ergm an brin ca com os lim ites da criação de m úsica dentro e fo ra da tela, j á que nunca revelou

M aria ao piano e film ou a cena inteira com a câm era fixada em Joakim . E ssa passagem em que

a m úsica é diegética se dá de m aneira percebível na ocasião que se ouve um acorde de

agrupam entos repentinos e exasperados. M aria sim plesm ente desiste de C hopin, não

term inando de to car a m úsica, que acaba de m odo inesperado.

A atenção de B ergm an aos detalhes é particular, ao m esclar os pontos de escuta espacial

e subjetivo (C H IO N , 2013, p. 73-74). E ssa interrupção da m úsica à prim eira vista se com porta

de m aneira inocente, com o algo da v id a privada burguesa com um a sessão de prática de piano

no início da m anhã; entretanto, no dia anterior, M aria teria com etido um adu ltério com o

m édico da fam ília. A Mazurka, de C hopin, portanto, pode ser interpretada com o um a espécie

de m áscara (LU K O , 2015, p. 117). M aria se esconde po r trás de sua beleza intrínseca,

347
esperando desesperadam ente cobrir seus rastros adúlteros, fabricando u m a cena inocente de

fazer m úsica dom éstica, podendo afirm ar seu caráter de m entirosa, sedutora e adúltera (LU K O ,

2015, p. 115).

Q uando a m úsica cessa, M aria entra em cena ju n ta m e n te com a filha e conversa com

Joakim sobre assuntos cotidianos. O hom em acaricia a face da m ulher e da criança, para, então,

sair de cena. A personagem com um a feição de desespero, aparentem ente devido à

possibilidade de seu m arido ter conhecim ento da traição, o segue e encontra Joakim sentado à

frente de um a escrivaninha com um abridor de cartas encerrado em seu abdôm en. O hom em

ferido ao suplicar po r ajuda sim plesm ente obtém um a resposta negativa po r parte de M aria.

U m a sequência sem elhante ao caráter de falsidade existente no film e proporcionado

pelo terceiro soar da Mazurka, é a única expressão da intim idade em ocional entre K arin e

M aria, que inicialm ente se com porta com o redentora. L ogo após ao flashback da autom utilação

genital de K arin com o um ato de desespero em um casam ento sem am or, tem os um m om ento

em que M aria indaga a irm ã po r que am bas não possuem um a am izade, po r qual m otivo suas

conversas apenas perm eiam banalidades, im plorando, assim , por algum com panheirism o.

P erm anecendo quase com o um m onólogo de M aria, nessa cena, som ente ouvim os a voz

de K arin quando esta com eça a ler o diário de A gnes e, em seguida, deixa a irm ã acariciar seu

rosto em um a com binação de h orror com afeição, salientando novam ente a sua ojeriza ao

contato. Posteriorm ente, quando as duas irm ãs se encontram a u m a m esa para um a refeição, a

situação se inverte: o m onólogo nessa ocasião é de K arin, que, no início, discorre sobre a vida

cotidiana e as posses da fam ília, m as, em um súbito m om ento, com eça a falar sobre suicídio e

sua relação com o m arido. D iante do desconforto da irm ã, K arin im ediatam ente m u d a de

postura, dizendo que a odeia e cham ando-a de falsa. E ssa cena é inteiram ente constituída por

falas sobrecarregadas e contraditórias. E m segundos, a sequência passa da angústia absoluta

para a redenção: K arin grita e pede à irm ã que a perdoe.

N esse instante, ouve-se a Sarabanda, Violoncelo Suíte n° 05 em Dó menor, de B ach,

que assum e com pletam ente a cena de m odo extradiegético e contradizendo todo o te o r da

relação das duas irm ãs. P aralelam ente ao início da cena, tem -se um plano próxim o de M aria e

K arin abraçadas, com os rostos bem próxim os e as duas se m ovim entam entrelaçadas com a

câm era as acom panhando em panorâm ica. A pós um corte, segue-se um close-up das irm ãs, em

que a câm era se m ovim enta de um lado para o outro enquadrando suas frontes separadas,

fixando-se posteriorm ente nos rostos das duas m ulheres, enquanto elas conversam , se

acariciam e se beijam .

348
T endo um novo corte, agora o espectador pode enxergar um plano próxim o das duas

irm ãs, em que elas continuam a se acariciar, sendo seguido de outro corte com um close-up de

M aria e contracam po dos rostos das duas m ulheres. Sucessivam ente, a câm era se m ovim enta

em panorâm ica da esquerda para a direita enquadrando em cada m om ento a face de um a das

personagens, p ara adiante realizar um close-up de seus rostos praticam ente unidos com beijos

contínuos e “as duas irm ãs só sobrevivem girando em torno dele e se afastando m utuam ente”

(D E L E U Z E , 1983, p. 123). A câm era se m ovim enta para cim a, fixando-se apenas na parede

v erm elh a que se encontra ao fundo, encerrando a cena com um fade in.

M ovim entos de v io loncelo da Sarabanda de B ach e outras suítes orquestrais aparecem

frequentem ente na film ografia bergm aniana e, possivelm ente, essa constante ocorre em função

da linhagem ilícita da Sarabanda, que pode te r atraído B ergm an. A dança foi proibida na

E sp an h a po r obscenidade, em 1583, tornando-se um gênero que possui um a bagagem

com parável à dos protagonistas bergm anianos psicologicam ente carregados (LU K O , 2015, p.

119). E ssas sarabandas têm um talento especial para co ngelar o tem po e em balar as

personagens em estados abençoados de profunda introspecção (B R O M A N , 2012, p. 120) e seu

em prego n esta cena pode rem eter a um m om ento am bíguo da relação de K arin e M aria.

O silêncio na obra é abordado po r B ergm an na figura de A nna, que perm anece calada

durante todo o film e. Sua m udez é atribuída a sua baix a posição social e a seu status de estranho

na fam ília, não obstante é inegável sua proxim idade com a doente A gnes. N a relação dessas

m ulheres, o silêncio é substituído pelo som do vento, que parece sussurrar, e pelos gritos de

dor de A gnes. E sses elem entos com binados, aliados a fortes im agens presentes nas cenas em

que se encontram as personagens, contribuem para um a dicotom ia que envolve a construção

de u m a atm osfera fúnebre e o ato de am or, em que A nna constantem ente oferece seu calor

hum ano para a m oribunda.

A conexão física e espiritual entre essas duas m ulheres se to rna perceptível no segundo

m om ento em que to ca a Sarabanda de Bach. A sequência possui um caráter am bíguo entre o

real e o onírico, tendo o seu início aparente com o u m a rem iniscência de A nna para se

tran sfo rm ar na volta do tú m ulo de Agnes. Q uando K arin e M aria rejeitam A gnes, j á m orta, é

A nna quem oferece seu próprio corpo para ajudar na passagem do plano m aterial p a ra o

espiritual. A em pregada, ao in sistir em cuidar da defunta, fecha a porta do quarto e neste

m om ento ouve-se o segundo soar da Sarabanda , de B ach, que novam ente to m a conta da cena

de m aneira extradiegética. Sincronicam ente, quando se ouve a Sarabanda a cena tem um plano

conjunto de K arin e M aria perm eado po r um a ilum inação escura, seguido de um corte que

m ostra M aria em close-up, acom panhado de um novo corte para visualizar, agora, um close-

349
up de K arin. Posteriorm ente, tem -se um novo corte, sendo possível v isualizar a percepção da
reprodução e a associação sim bólica da obra Pietà (1499), de M ichelangelo di L odovico

B uonarroti S im oni, form ada pelas personagens A nna e A gnes.

A Sarabanda no film e representa dois aspectos que se contrapõem : o caráter de

falsidade de K arin e M aria, j á m arcado na prim eira ocasião em que se ouve a m úsica, que

depois ojerizam a irm ã e provavelm ente agiam por obrigação, e o sentim ento pueril e m aternal

de A nna para com A gnes, que oferece o próprio corpo para o conforto da m orta. A Sarabanda

conduz a cena de m odo a interrom per a narrativa e elev á-la a um contexto puram ente

em ocional, que se revela m usical, com unicando-se com o espectador em um nível de

sentim ento hum ano m uito profundo, um a vez que a cena não apresenta diálogos e se com porta

com o redentora central: a expressão m áxim a e estim a da intim idade em ocional entre as duas

personagens (B R O M A N , 2012, p. 27). O utro ponto que corrobora tal questão é o figurino

dessas quatro m ulheres, enquanto A nna e A gnes estão vestidas de branco, K arin e M aria se

apresentam com um a v estim en ta preta, com o se j á estivessem de luto, inserindo a m orte de

A gnes com o j á sendo algo do passado.

O utro m om ento de absorção física entre A gnes e A nna ocorre em u m a das sequências

finais de Gritos e Sussurros, em que se ouve p ela quarta vez o soar da Mazurka, de Chopin.

E m um plano m édio de A nna acendendo u m a vela, paralelam ente a m úsica irrom pe por to d a a

sequência, sobrepondo-se aos ruídos, ao passo que a serviçal abre u m a gaveta para pegar o

diário de A gnes, destacando as m açãs presentes no fundo do quadro. A nna se dirige para a sua

cam a, dispondo da vela e do diário em suas m ãos. E m plano am ericano, a em pregada abre o

diário e se tem novam ente um corte, que é sucedido por um plano detalhe do diário. O utro corte

e o espectador v isualiza um close-up de A nna que com eça a leitura do diário: “ Q uarta-feira,

três de setem bro. O arom a do outono preenche o ar lím pido e parado, m as é leve e fino” , sendo

que o volum e da sua voz se sobrepõe ao som da m úsica.

A câm era se m ovim enta para baixo m ostrando um p lano-detalhe da vela. N esse instante

há um m om ento de com unhão aural com parável ao exem plo anterior de absorção física entre

as duas personagens. A qui, a m uda A nna e a m uda A gnes, po r m eio da m orte, se encontram

em suas vozes enquanto se unem auralm ente com o u m a só (LU K O , 2015, p. 118). A câm era

desliza dos lábios de A nna com o u m a narração de fora do túm ulo, po r m eio da utilização do

recurso de voz over, costum eiram ente em pregado em leituras de diário no âm bito

cinem atográfico. N essa ocasião, quem ouvim os é A gnes: “M inhas irm ãs K arin e M aria vieram

m e ver. É m aravilhoso estarm os ju n ta s novam ente, com o nos velhos tem pos e estou m e

sentindo m uito m elhor. N ó s fom os capazes de cam inhar ju n tas. Foi um acontecim ento p ara

350
m im , sobretudo porque não saio há tanto tem po” . Isso sinaliza u m a m udança do som diegético

para o não-diegético, enquanto a voz de A gnes se in filtra na narrativa.

A cham a da vela se desvanece em um flashback proporcionado pela leitura,

apresentando um plano próxim o de A gnes que cam inha em direção à câm era im óvel.

Posteriorm ente, através de um corte, tem -se um plano geral da área externa da propriedade com

as três irm ãs e a em pregada cam inhando; todas estão de branco, apenas a roupa de A nna é um

pouco m ais escura. N ovo corte e plano conjunto das quatro m ulheres cam inhando, sorrindo e

com partilhando segredos em um a cena de extraordinária beleza pastoral. E las correm em

direção ao balanço, as três irm ãs se sentam e A nna com eça a em purrar. O utro corte, plano

am ericano das quatro personagens no balanço, em que A gnes está no centro do quadro. A

câm era lentam ente se aproxim a dela, enquadrando seu rosto e tornando perceptível o m odo

com o ela olha para as outras m ulheres. Q uando A gnes olha diretam ente para a câm era, o soar

da Mazurka term ina, porém prim eiram ente a m ulher finaliza o seu discurso:

Todas as minhas dores se foram. As pessoas que eu mais amo no mundo estavam
comigo. Podia ouvi-las conversando ao meu redor. Podia sentir a presença dos seus
corpos, o calor das suas mãos. Queria prender aquele momento fugaz e pensei: Haja
o que houver, isto é felicidade. Não posso desejar nada melhor. Agora por alguns
minutos posso viver a perfeição. E eu me sinto profundamente grata a minha vida,
que me dá tanto.

A Mazurka, de C hopin, acom panha todos esses quadros finais, sendo aliada ao instante

em que a voz de A nna se tran sfo rm a na de A gnes, to rn an d o -se u m a lacuna fantástica, gerada

pelas vozes diegéticas e não diegéticas das m ulheres, evidenciando a ideia de que essa é um a

m em ória com partilhada pertencente tan to a A nna quanto a A gnes. Logo, B ergm an acaba por

criar sim ultaneam ente um vínculo narrativo e conceitual para a cena do gatilho da rosa b ran ca

de A gnes e para a cena em que A nna m orde a m açã, no início do film e.

C o n s id e ra ç õ e s F in a is

N o decorrer deste trabalho, foi realizada um a tentativa de análise para com preender de

que m odo a trilh a sonora atua com o fato r de catálise para as ações das personagens, evocando

m em órias que beiram ao onírico e dialogando com os dem ais elem entos estilísticos. A repetição

m usical se com porta de m aneira preponderante para as interrogações delineadas, dem onstrando

que Ingm ar B ergm an diversifica o m odo com o insere os trechos de m úsica clássica no decorrer

351
da obra. E ssa repetição p ropicia investigar u m a obra m usical em diferentes segm entos,

com binando o trech o com efeitos sonoros e/ou voz over (LU K O , 2015, p. 219).

B ergm an em diversos escritos e entrevistas discorre que após um raciocínio posterior

com preendeu que Gritos e Sussurros tratava profundam ente de sua m ãe, que ele a descreveu

por m eio da fo rm a de quatro m ulheres diferentes, que nenhum a delas é realm ente a sua m ãe,

m as que to d as elas o são. N o entanto, no docum entário A Ilha de Bergman (2006), realizado

pela cineasta M arie N yrerod, B ergm an é indagado sobre tal afirm ação e responde o seguinte:

Isso foi uma mentira para os meios de comunicação. Foi uma observação espontânea
e descuidada. Até hoje me persegue, pois desde então tem sido relacionada ao filme.
Alguns comentários estúpidos que se faz tendem a ter vida própria. Foi uma mentira.
Disse só para ter o que dizer. É muito difícil dizer algo a respeito de Gritos e
Sussurros. Disse e pronto.

U m a solução para este problem a, procurando fugir do dilem a de verdade e m entira, é a

análise com ênfase na im agem que o diretor am biciona passar para o leitor/espectador, sendo

im possível alcançar um a definição absoluta de si m esm o. E possivelm ente o elem en to m ais

revelador na correspondência do final de Gritos e Sussurros esteja no ú ltim o dia de verão,

pouco antes do agonizante outono de A gnes. E sse caso reflete o uso convencional do tem a do

verão po r parte de B ergm an, reflexo da tradição rom ântica sueca, em contraste com a ilusão, a

realidade da hipocrisia e da traição desnudadas pelas histórias, porém há tam bém o alcance das

tentativas de retirar a m orte de seus pavores. A entrega do cineasta sueco para com A gnes

transm ite a m esm a m isericórdia, estando o am or de A nna com o um tipo de abraço para

acalentar a m orte. A bandonada em sua necessidade po r K arin e M aria, A gnes encontra a

libertação da crucificação da vida no esquecim ento (G A D O , 1986, p. 422).

E xiste u m a tela v azia e o film e com eça com quadros de um verm elho profundo, com

seu títu lo e créditos, além do som suave dos relógios. D epois, há alguns m om entos da v id a e

finalm ente a m orte, instante em que cada u m a das partes da alm a se esvai e seus últim os

pensam entos se arrastam em silêncio. N o final há um ú ltim o toque de u m a sineta e um corte

abrupto em um a m oldura verm elha, com as palavras: “E ntão, os gritos e sussurros ficam

calados” , para, em seguida, a tela se esvaziar novam ente.

A inda m ais visivelm ente do que as cenas de abertura do film e, o final id ílic o fornece

que o sentim ento de A gnes referente à bondade da infância lhe foi restituído, o jo g o infantil

das irm ãs no balanço e o b ran co usado pelas m ulheres im plicam um salto cativante para um a

inocência passada, em que a culpa no núcleo do film e é subm ergida em suave ilusão através da

fam ília reunida am orosam ente. A gnes se envolveu em u m a busca, que term in a na perfeição

352
que ela experim enta com suas irm ãs e A nna; sinalizando o significado dessa perfeição, o tem a

de C hopin é ouvido em to d a a sequência ligando-se ao m esm o tem a do flashback da m oribunda

e depois a erupção de em oções do raro m om ento de intim idade da garota com sua m ãe (G A D O ,

1986, p. 421).

A lém disso, nos casos em que o trecho m usical não sofre alteração por m eio da

repetição, torna-se segura a m odificação dos contextos, personagens narrativos e/ou ângulos

de câm era. N a obra bergm aniana, os repetidos trechos m usicais tipicam ente levam a um

significado duplo em m anifestações diegéticas e não diegéticas, podendo se contradizer,

aspecto que pode ser visto ao d iferenciar as conjunturas e sensações que a Sarabanda pode

oferecer.

O exam e da repetição m usical nos film es de B ergm an pode ajudar a apreciar o

significado de suas narrativas e as m otivações de seus protagonistas, em que o seu u so frequente

sublinha as conexões em ocionais e m etafísicas enraizadas entre os cham ados personagens

duplos am algam ativos, enquanto que em outras ocasiões expõe as rupturas entre os

personagens duplos disjuntivos, com o as irm ãs de Gritos e Sussurros. A dem ais, a repetição da

Mazurka, de C hopin, ajuda a liberar m em órias reprim idas para esse grupo de m ulheres,
instigando u m a reencarnação m etafórica da figura m aterna, prom ovendo a com unhão e o

colapso para um a m istu ra de pares am algam ativos (A gnes e A nna) e disjuntivos (as trê s irm ãs).

A s m elodias de B ergm an se repetem nos m om entos clim áticos de seus film es, servindo para

guiar as em oções e destacar os tem as narrativos unificadores em todo o seu universo m ítico

excepcionalm ente pessoal.

R e fe rê n c ia s

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355
O ROMANCE GABRIELA, CRAVO E CANELA COMO LUGAR DE
MEMÓRIA DA CAPITAL DO CACAU: REPRESENTAÇÃO DA
CIDADE DE ILHÉUS-BA DA DÉCADA DE 1920

IG O R C A M PO S SA N TO S*

Jorge A m ado nasceu em Ferradas em 1912 e cresceu em Ilhéus no período em que a

cidade passava po r constantes transform ações econôm icas e urbanas. T endo vivenciado o

período de m odificações e m elhoram entos im plem entados na urbe e to m an d o conhecim ento

das estórias a respeito da “ conquista” e “ desbravam ento” das terras do cacau por m eio da

m em ória de seus pais e tios, bem com o, provavelm ente, pelo contato que teve com as narrativas

que circulavam na im prensa escrita local a respeito desse processo (Ver: PO L L A K , 1992;

H A L B W A C H S , 1990); o escritor criou seu universo ficcional sobre a região sul da B ahia, a

“ região cacaueira” , e m ais especificam ente sobre Ilhéus, que era conhecida com o “ C apital do

cacau” e após o sucesso de seus rom ances, com o “ T erra da G abriela e de Jorge A m ado” .

E m entrevista para a francesa A lice R aillard, o escritor diz que foi para Ilhéus

(...) com um ano e pouco, um ano e quatro meses. Nasci em Ferradas, mas, quando
chegou a colheita do Rio Cachoeira, em janeiro de 1914, que destruiu a plantação de
meu pai, fomos para Ferradas, e de lá para Itabuna; depois continuamos diretamente
até Ilhéus, onde meu pai foi morar, no Pontal, e fazer tamancos, com minha mãe.
(1990)

O utro m otivo apontado po r A m ado para a saída de seus pais de Itabuna, foi a epidem ia

de varíola, conhecida na época com o “bexiga negra” ; e em suas m em órias ele com enta sobre o

m edo que tin h a do lazareto, lugar para onde iam os “bexigosos, m etidos em sacos de aniagem ,

sendo levados para o lazareto, carregados pelos m iraculados” (A M A D O , 1982, p. 16).

A os onze anos, em 1923, o “ m enino grapiúna” foi colocado num internato religioso em

Salvador, ou C idade da B ahia, com o era conhecido naquele tem po. Lá, Jorge A m ado entrou

em m aior contato com o m undo das letras e da literatu ra clássica através de seu professor, L uiz

G onzaga C abral. (C O M P A N H IA D A S LE T R A S; A M A D O , A pud R A IL L A R D , 1990)

Inevitavelm ente as notícias de sua cidade de coração, a então bela Ilhéus, lh e chegavam por

m eio dos jornais da capital, em notas ou m atérias de divulgação dos progressos e

m elhoram entos da “P rincesa do Sul” . (SA N T O S, 2021, p. 67)

Da m esm a form a, o futuro escritor deve ter tid o contato com as narrativas e inform ações

acerca do desenvolvim ento urbano e da riqueza de Ilhéus quando, aos 14 anos, foi trabalhar

356
com o rep ó rter investigativo p ara o jo rn al Diário da Bahia, escrevendo reportagens policiais,

convivendo e conhecendo a subalternidade da capital da B ahia. (A M A D O , A pud R A IL L A R D ,

1990, p. 32) O u tam bém quando passava as férias escolares nas terras do cacau, “ à b eira -m ar,

ou na fazenda de m eu pai” . (A M A D O , A pud R A IL L A R D , 1990, p. 31)

P o r isso as suas criações ficcionais a respeito do sul da B ahia têm m uito de suas m em órias

vividas ou adquiridas através do reavivam ento de m em órias de seus pais e/ou tios, em suma,

de sua “ com unidade afetiva” , o grupo dos coronéis do cacau, m as tam bém dos subalternizados

- trabalhadores urbanos e ru ra is.180 (R IB EIR O , 2008) É im portante destacar que a fam ília do

rom ancista era com posta pelos cham ados “ desbravadores” , que lutaram pelas terras do cacau,

e ele m esm o ressalta isso em sua conversa com A lice R aillard quando afirm a que seu pai “ m uito

corajoso, participou de todas essas lutas” , sendo “ferido três vezes: na prim eira e u [Jorge

A m ado] estava com ele, e tin h a um ano de idade.” (A M A D O , A pud R A IL L A R D , 1990, p.

187)

(...) Meu pai cortava cana para a égua, sua montaria predileta. O jagunço, postado
atrás de uma goiabeira, a repetição apoiada na forquilha de um galho (assim o enxergo
na nítida rememoração), esperou o bom momento para descarregar a arma. O que
teria salvo o condenado? Um movimento brusco dele ou da égua, talvez, pois o animal
recebeu a bala mortal, enquanto nos ombros e nas costas do coronel João Amado de
Faria vieram incrustar-se caroços de chumbo que ele jamais retirou, visíveis sob a
pele até o fim da vida. (AMADO, 1982, p. 7)

E m resum o, o pai do rom ancista, “ desbravador de terras” que “ (...) plantara cacau, a

riqueza do m undo. N a época das grandes lu tas” , (A M A D O , 1982, p. 6) e sua m ãe, que “ dorm ia

com um a carabina sob o trav esseiro ” , (A M A D O , A pud R A IL L A R D , 1990, p. 189) assim com o

alguns de seus tios m aternos, viveram o p eríodo de expansão da lavoura cacaueira e

com partilharam com A m ado as m em órias dos riscos e aventuras daquelas terras perigosas.

D a m esm a form a, o escritor tam bém recordava de acontecim entos que presenciou ainda

m enino, com o as frequentes brigas de bar, assassinatos bárbaros, os advogados de defesa dos

C oronéis e seus ju lg am en to s públicos:

Era assim; estes são os elementos da minha infância... um mundo bárbaro, que às
vezes tinha elementos da Idade Média, um tempo cheio de aventureiros, prostitutas,
um mundo que também tinha um lado divertido, muito vital, os franceses e os
poloneses, as brigas de bar, um sem-número de brigas de bar. (AMADO, Apud
RAILLARD, 1990, p. 194)

180 A comunidade afetiva é composta por sujeitos que compartilham vivências e memórias, permitindo que uma
memória individual complemente a outra e que a memória coletiva seja compartilhada por todos os homens e
mulheres que compõem essa comunidade. (HALBWACHS, 1990)

357
O próprio A m ado foi quem confirm ou que os seus rom ances se baseavam em suas

m em órias de infância:

Eram coisas da minha infância... (...) São as coisas que vivi, que conheci em minha
infância, e que estão na base de tudo o que depois criei e recriei. Até mesmo os
romances da Bahia (...), mesmo aí há muitos reflexos da infância, muitas coisas que
se encontram ligadas ao tempo da minha vida na região cacaueira. (AMADO, Apud
RAILLARD, 1990, p. 196)

N esse processo de construção narrativa e ficcionalização da realidade, o escritor

m odificou acontecim entos, inverteu a ordem de fatos históricos da região cacaueira e inventou

tan to s outros, produzindo assim seu universo ficcional na “ saga do cacau” . (SA N T O S, 2021)

T alvez po r isso algum as de suas tram as narrativas am bientadas na região, e m ais

especificam ente em Ilhéus, são tom ados por m uitos de seus leitores com o acontecim entos que

realm ente existiram na história da cidade e da zona do cacau. C om a adaptação de alguns de

seus rom ances para a m ídia audiovisual, com o cinem a e televisão, por m eio de film es e novelas

am plam ente divulgadas nacionalm ente, a popularização dessas estórias alcançou públicos

m aiores, incluindo aqueles que não tinham acesso aos livros po r m otivos econôm icos ou pelo

analfabetism o. (G O L D ST E IN , 2003; SILV A , 2006; SA N TO S, 2021) E as sucessivas

apropriações da ficção am adiana perm itiram a prom oção e facilitação da transform ação da

p rópria m aterialidade urbana de Ilhéus e sua m em ória histórica. (Ver: M E N E Z E S , 2004)

E m certa m edida, isso ocorreu porque o setor em presarial turístico e o P o d er M unicipal

de Ilhéus aproveitaram a fam a do escritor e de um de seus m aiores rom ances, Gabriela, Cravo

e Canela, para p rom over o turism o cultural na cidade. (M E N E Z E S, 2004; M O R E IR A , 2013;


SIM Õ ES, 2002) T om ando suas narrativas com o lugares de m em ória da “ C apital do cacau” ,

principalm ente o já citado Gabriela, a área do centro histórico de Ilhéus sofreu algum as

m odificações físicas, com o o fecham ento de ruas para construção de calçadões; a restauração

de prédios históricos (principalm ente os citados no rom ance, ou aqueles supostam ente

habitados por personagens na narrativa); a abertura de espaços culturais, entre outros.

(M E N E Z E S, 2004; M O R E IR A , 2013) C ontudo, isso tam bém ocasionou um a certa confusão

entre o “ real” e o im aginário na população e nos turistas que visitam /visitaram a cidade.

(SIM Õ E S, 2002)

A lguns em presários aproveitaram as apropriações desse rom ance ( Gabriela) pelo setor

tu rístico e tam bém se “ apropriaram ” de nom es de personagens ou nom es de lugares presentes

na narrativa, usando-os em seus estabelecim entos com erciais ou em em presas. Ficou com um

358
v er nas fachadas das lojas im agens que rem etiam principalm ente à personagem G abriela,

representada com o um a m ulher bela e sensual, de pele bronzeada. D e acordo com M aria de

L ourdes Sim ões:

O signo Jorge Amado está por toda a parte. Por vezes, sentindo-se um tanto dono da
"marca", o local, em exploração banalizadora, expõe a imagem de uma Gabriela em
ônibus urbanos, lanchonetes, pousadas... Coloca o nome em tipos de sanduíche,
sorvetes, chocolates; busca, dessa forma, atrair pela beleza, sensualidade, cheiro (de
cravo e canela), instituindo o "tipo" Gabriela, vinculada ao tempo áureo do cacau.
(SIMÕES, 2012, p. 4)

A reform ulação do espaço central da cidade para abrigar um a m em ória b asead a na ficção

am adiana, e a confusão entre acontecim entos históricos e acontecim entos ficcionais po r parte

dos habitantes e dos turistas, fez com que pessoas de sobrenom es tradicionais da cidade

afirm assem que alguns dos personagens criados po r A m ado fossem seus parentes, ou versões

destes. E sse é o caso de H élio L im a Júnior, tam bém conhecido com o Jú n io r M aron, dono de

um restaurante denom inado “N e to s da G abriela” , no distrito do R io do E ngenho.

O em presário, em entrevista concedida ao program a especial de aniversário da cidade

Ilhéus, minha paixão, da R edebahia, apresentou as “ delícias culinárias” tradicionais de sua avó
e afirm ou que D o n a L ourdes (com o era conhecida) e seu A vô, E m ílio M aron, foram as

inspirações de Jorge A m ado para a criação dos personagens G abriela e N acib. D e acordo com

Jú n io r M aron, D o n a Lourdes nasceu em Ilhéus em 1920, sendo filha de um im igrante português

que se estabeleceu na cidade com o com erciante; após a m orte do pai ela se casou com E m ílio

M aron, filho de pai im igrante libanês e m ãe francesa. A té aqui, a ú n ica sem elhança com o

rom ance é o fato de N acib tam bém ser filho de im igrantes libaneses, porém nascido no Líbano.

(R E D E B A H IA , 2022)

A inda segundo H élio, seus avós foram proprietários do b a r V esúvio de 1945 até a década

de 1980, e D o n a L ourdes cozinhava as com idas tradicionais árabes, a exem plo do quitute que

passou a ser divulgado na cidade com o quibe do N acib. (R E D E B A H IA , 2022) A p artir daí o

em presário fez a associação entre a narrativa do rom ance Gabriela, com algum as
características pessoais de sua fam ília, inform ando tam bém que além de boa cozinheira, sua

avó era u m a m u lh er bela e que “ cham ava a atenção” quando jo v em . Isso lhe proporcionou

v en d er a ideia de ser neto de G abriela, protagonista do rom ance de 1958.

C ontudo, em entrevista cedida ao B log do A nderson, em 2012 (há dez anos), o m esm o

neto de D o n a L ourdes, Jú n io r M aron, parece não gostar da associação feita entre sua avó e a

personagem G abriela. E le com enta que entre D o n a L ourdes e G abriela “ não há nenhum a

359
sem elhança com a personagem do livro de Jorge A m ado. (...) qualquer pessoa que com parar a

h istória de E m ilio e L ourdes verá que não há sim ilaridades com G abriela e N a c ib ” (M A R O N

JÚ N IO R , A pud B L O G D O A N D E R SO N , 2012) E continua:

É importante registrar que toda essa comparação começou a ser feita logo após o
lançamento do livro, quando um jornalista ilheense e radicado em São Paulo, muito
amigo de Jorge Amado, publicou na revista de maior circulação da época, “O
Cruzeiro”, uma matéria em que relacionava os protagonistas do livro com meus avós.
A partir daí, surgiu todo esse incômodo, toda essa lenda criada e recontada ano após
ano. (Idem)

N a realidade a reportagem foi publicada na revista Manchete, do R io de Janeiro, escrita

por Jorge M ed au ar e D aniel L inguanotto, e vem encabeçada com u m a fotografia de D ona

L ourdes, que segundo a legenda “ não queria deixar-se fotografar” . (M A N C H E T E , 1959)

Todavia, em outra legenda que acom panha a fotografia de E m ílio M aron na reportagem é dito

que ele “ não dem orou a identificar-se com o insp irad o r do árabe N acib, que am ou G abriela”

(Idem ). A inda assim , fica evidente no decorrer da entrevista que o sr. M aron n ã o lera o rom ance

e fora conduzido po r M ed au ar a adm irar a narrativa e o personagem , chegando a “interpretá -

lo” e confirm ar a suspeita do rep ó rter sobre a inspiração de A m ado na criação de N acib: “Jorge

deve te r dito algum a coisa que, provavelm ente, não p o d ia estar ao seu alcance. Se tivesse m e

procurado antes, conversando assim com o estam os, eu poderia ter revelado outras coisas da

m inha v id a com a m inha querida G abriela.” (M A R O N , A pud M A N C H E T E , 1959)

O neto de M aro n afirm a que seu avô dizia que a reportagem foi um “golpe de publicidade

b o lad o p o r Jorge A m ado e pelo jo rn a lista am igo dele” , Jorge M edauar; e acredita que o sucesso

do rom ance foi provocado “ devido a essa associação feita” . (M A R O N JÚ N IO R , A pud B L O G

D O A N D E R SO N , 2012) E ntretanto, o próprio rom ancista deixa explícito que apesar de ter

partido “ de fatos e figuras reais” , isso não significa que “tais fatos e figuras estejam

transportados fotograficam ente para o rom ance. R om ance é obra de criação. P artindo da

realidade da vida, o rom ance cria a sua p ró p ria realidade.” (A M A D O , A pud M A N C H E T E ,

1959). A inda assim , a exploração turística da cidade pelo setor em presarial, baseada na ficção

am adiana, usufrui dessas associações vulgares; e o próprio Jú n io r M aro n parece ter se adaptado

a essa realidade.

C om a escassez na produção cacaueira, a p artir dos anos 1990, provocada pela “vassoura

de bruxa” , os em presários e a m unicipalidade passaram a investir no potencial turístico de

Ilhéus. (M E N E Z E S, 2004; SA N TO S, 2021) N as palavras do “ neto de G abriela” : “ com a cidade

360
sem cacau e praticam ente sem opção do que explorar, essa associação [entre seus avós e os

personagens do rom ance] virou um v erdadeiro carnaval.” (M A R O N JÚ N IO R , 2012)

E ssa assim ilação entre ficção e realidade ocorre devido ao entrelaçam ento entre o tem p o

narrado na ficção e o tem po da narração, ou seja, entre o período no qual se p assa a tra m a e o

contexto da sua escrita; ou contexto da escrita do autor e sua m em ória. (ECO , 1994). O escritor

b aian o ressalta que “É natural, no entanto, que os leitores, sobretudo os da cidade onde se

desenrola a ação do livro, busquem identificar os heróis do rom ance.” (A M A D O , A pud

M A N C H E T E , 1959). C ontudo, devem os te r a noção que “ a literatura, com o fenôm eno de

civilização, depende, para se constituir e caracterizar, do entrelaçam ento de vários fatores

sociais” e por isso precisam os “te r consciência da relação arbitrária e deform ante que o trabalho

artístico estabelece com a realidade, m esm o quando pretende observá-la e transpô-la

rigorosam ente, pois a m im ese é sem pre um a fo rm a de poiese.” (C A N D ID O , 2006, p. 20-21)

Jorge A m ado fez exatam ente isso em seus rom ances, principalm ente os relacionados à

“ saga do cacau” e à cidade de Ilhéus, pois, assim com o fazia com os acontecim entos históricos,

o escritor m ontava personagens b asead o s em pessoas reais que conhecia, os quais criavam vida

p rópria (A M A D O , A pud R A IL L A R D , 1990). A o m esm o tem p o que inventava tantos outros,

adicionando um a m aio r carga em otiva às suas tram as. P orém , o próprio C andido salienta o

caráter docum ental das narrativas de A m ado, afirm ando que

Encarados do ângulo documentário, os seus romances constituem sempre uma


asserção e uma informação. Informação de níveis de vida, de ofícios, de gêneros de
ocupação, de miséria, de luta econômica, de produtos; asserção de certos pontos de
vista de onde se descortinam atitudes sociais, reivindicações proletárias,
desajustamento de classes. (CANDIDO, 2006, p. 46)

A inda assim , isso não im pede a fruição da liberdade criativa dos escritores de ficção, e

“ m esm o dentro da orientação docum entária, é o quinhão da fantasia, que às vezes precisa

m odificar a ordem do m undo ju sta m e n te para to rn á-la m ais expressiva; de tal m aneira que o

sentim ento da verdade se constitui no leitor graças a esta traição m etódica.” (C A N D ID O , 20 06,

p. 21)
Jorge A m ado, ao nos transportar para o m undo inventado po r ele, está ao m esm o tem po

interpretando a p artir da rem em oração os acontecim entos que ouviu e presenciou nas terras do

cacau e criando novos. Sejam os casos de assassinatos bárb aro s ligados às lutas pela posse da

terra; as disputas políticas de grupos antagônicos; os problem as dos encalhes de navios no

porto; ou a beleza da cidade em crescim ento com a abertura de novas ruas; a construção de

palacetes m onum entais; a ascensão da econom ia cacau eira e a desigualdade social produzida

361
por ela. E m sum a, o autor “intérprete do B rasil” nos leva para a sua realidade e nos induz a

“ extrapolar” a ficção, acreditando que tudo o que ele escreveu corresponde aos fatos que

aconteceram na m aterialidade da existência. (G O L D ST E IN , 2003)

O rom ancista foi um dos principais intérpretes da realidade da região cacaueira e m ais

especificam ente da cidade de Ilhéus, pois além de seus rom ances guardarem em si a m em ória

coletiva dos C oronéis do cacau, neles tam bém se p ercebe um esforço para preservar os

vestígios das m em órias subalternizadas. A inda assim , o em penho do escritor em apresentar

outra realidade, aquela dos bairros habitados pela população pobre e dos sujeitos “m al

afam ados” - para além da riqueza, do progresso e dos palacetes, construídos pela renda do

cacau - foi quase todo desconsiderado pelas apropriações das suas narrativas feitas de form a

recorrente pela m ídia televisiva, po r governantes e agências turísticas.

É po r isso que Gabriela, Cravo e Canela vem sendo considerado um lugar de m em ória

(N O R A , 1993) que conserva a m em ória social da cidade firm ada na ideia de riqueza,

ostentação, progresso, civilidade e beleza, silenciado e apagando os problem as sociais e os

sujeitos subalternizados tam bém presentes na tram a. E apesar da divisão de sua obra em duas

fases, criada pelos críticos literários, a m ilitante e a cultural ou hum orística, o escritor preservou

em am bas a crítica social em relação à vida dos m ais pobres. (SA N T O S, 2021)

A respeito desse rom ance ser tratad o com o “um divisor de águas na carreira do escritor”

(G O L D ST E IN , 2003, 152), Jorge A m ado desconsiderava essa repartição em suas obras

reafirm ando sua unidade. (SA N TO S, 2021, p. 22) N as palavras do escritor, a separação de seus

rom ances em duas partes “É u m a estupidez, u m a bobagem to tal” (A M A D O , A pud

R A IL L A R D , 1990, p. 266), e continua:

Tudo isso é uma tolice incomensurável. Mas perdura até hoje: as duas obras, a do
início, revolucionária, denunciando a injustiça social, e a outra. Não, minha obra é
uma unidade, do primeiro ao último momento. Só se pode dizer que existe, no início,
uma profusão do discurso político, correspondendo ao que eu era então. (AMADO,
Apud RAILLARD, 1990, p. 267)

A inda assim A m ado reconheceu que “ G abriela aparece com o um a etap a clara de um a

outra época” (A M A D O , A pud R A IL L A R D , 1990, p. 267) em sua produção literária, e

ressaltou que não abandonou a preocupação com as causas sociais no rom ance. E le apenas

m udou seu m étodo de ataque e crítica ao m odelo social instituído, partindo então p ara o hum or,

pois ele é a arm a “ m ais eficaz de todas, p ara denunciar o presente e defender os interesses do

povo” . (A M A D O , A pud R A IL L A R D , 1990, p. 268)

362
E tam bém podem os perceber isso na totalidade de sua construção literária a respeito da

região cacaueira. D esde o rom ance Cacau o rom ancista descreve e denuncia as p ráticas

coronelistas da zona sul da B ahia, destacando a v id a dos trabalhadores rurais e urbanos que

constituíam a força produtiva da riqueza regional. E m Terras do Sem-Fim e São Jorge dos

Ilhéus o escritor m uda o tom m aniqueísta do seu prim eiro “rom ance proletário” , adicionando
com plexidades aos personagens C oronéis, ao m esm o tem p o em que acrescenta u m a carga

m aio r de dram aticidade aos personagens subalternizados, com o os trabalhadores urbanos e

rurais; as prostitutas; os m eninos e m eninas - e dem ais m oradores - que viviam nas ruas de

Ilhéus. D o m esm o m odo, nesses dois rom ances a cidade vai ganhando m ais destaque e

expressão, se tornando m ais visível e “ m aterial” .

E, finalm ente, em Gabriela, Cravo e Canela A m ado desejou contar u m a narrativa que

dizia respeito a “um a cidade brasileira do interior, quando sua vida - hábitos, costum es, leis

não escritas - se transform ava, devido a transform ações econôm icas. A cidade de Ilhéus e a

região do cacau são os cenários da ação do rom ance, e a população da cidade (...), seu

personagem principal.” (A M A D O , A pud M A N C H E T E ) E assim o fez, inclusive recuperando

elem entos de seus rom ances anteriores, com o personagens ou inspiração para criação de novos

protagonistas.

E sse é o caso de G abriela. O próprio autor j á afirm ou que a prim eira ideia para a criação

da personagem está em um capítulo de Terras do Sem -Fim intitulado “ O m ar” e “ a segunda, já

m ais explícita, encontra-se num a cena de São Jorge dos Ilhéus, com u m a personagem de nom e

R ita.” (A M A D O , A pud R A IL L A R D , 1990, p. 158) D o m esm o m odo, A m ado disse que em

m uitos de seus livros há o prenúncio de outras narrativas que desenvolveu posteriorm ente

(A M A D O , A pud R A IL L A R D , 1990), confirm ando o que A ntonio C andido havia escrito em

1945, que: “ O s livros deste autor nascem uns dos outros, germ inam de sem entes lançadas

anteriorm ente, sem ente que às vezes perm anecem m uito tem po em latência” (C A N D ID O ,

2004, p. 45)

C andido ainda ressalta que o núm ero de tem as nos rom ances de Jorge A m ado é pequeno,

possibilitando um retorno a eles e seu desenvolvim ento em narrativas posteriores. (C A N D ID O ,

2004) José P aulo P az concorda com A ntonio C andido e traça um a continuidade que “ se

escalona na série de rom ances que vão de Cacau a Gabriela” , dizendo que “ podem alguns

deles até ser vistos com o reto m ad a e am pliação, em separado, de m otivos apenas esboçados no

prim eiro desses dois livros [C acau], e que, enriquecidos de to d as as conotações adquiridas

durante o percurso, voltarão a confluir no segundo deles [G abriela].” (PA Z, A pud A M A D O ,

363
2008, p. 401) E podem os conferir isso ju stam en te a respeito da form a com o a cidade é

construída dentro da narrativa.

E m Cacau, Ilhéus foi apresentada com o u m a cidade próspera, destino de m igrantes

vindos de vários pontos do norte e nordeste do B rasil, entre eles o protagonista José C ordeiro,

ou Sergipano. O narrador-personagem com enta sobre alguns espaços urbanos pelos quais ele

passou, com eçando pela “Ilha das C obras” , “ aglom erado de ruelas que se escondia no fim da

cidade pequena e m ovim entada” (A M A D O , 2010, p. 18), lugar para onde iam os sujeitos

subalternizados que não tinham dinheiro, ou recém -chegados à cidade.

O utro ponto onde se concentrava a classe trabalhadora u rb an a de Ilhéus, citado por

Sergipano em sua curta estadia no espaço central da cidade, foi o bairro da C onquista onde

vivia R oberto, o guarda-civil que o narrador-personagem conhecera em frente ao palácio da

in tendência - enquanto circulava com fom e pelas ruas da rica cidade. U m a das frases que

definem aquele lugar é dita pelo m encionado agente policial durante a conversa com Sergipano:

“ M oro lá em cim a, cam arada. H á pouca com ida e m uita boca. M as num dia de fom e sem pre

se encontra o que com er.” (A M A D O , 2010, p. 20)

A frase vem carregada de sentidos, principalm ente quando nos é explicado que R oberto

tin h a m uitos filhos para alim entar ganhando pouco “ soldo” (salário). N a sequência, o narrador

em enda outra inform ação que contrasta com a situação do bairro da C onquista e seus

habitantes: “ C hegam os ao porto. U m prédio enorm e dorm ia, pesado na noite. R oberto explicou:

- U m sobrado do C oronel M anuel M isael de Sousa Teles. R icaço daqui. E m baixo é o B anco

dele. T em d in h e iro ...” (A M A D O , 2010, p. 20). C onstatam os assim que A m ado teve o cuidado

de representar os dois lados da cidade, o rico e próspero dos coronéis do cacau, e o pobre e

m iserável dos trabalhadores ligados direta ou indiretam ente ao fruto. (SA N TO S, 2021)

E m Terras do Sem-Fim o escritor retrocede o tem p o da narrativa para interpretar à sua

m aneira a form ação da região cacaueira e da cidade de Ilhéus, que veio a torn ar-se a “R ainha

do Sul” , “ C apital do C acau” . N esse rom ance, Jorge A m ado recria as lutas pela conquista das

terras p ara o plantio do “ fruto de ouro” , bem com o narra o desenvolvim ento de Ilhéus -

proporcionado pela riqueza proveniente da lavoura do cacau - e as m udanças no com ando

político da região. N esse sentido, Ilhéus foi representada na narrativa com o u m a cidade

interiorana acanhada em vias de crescim ento econôm ico, m as ainda sem o devido “processo

civilizatório” e consequentem ente sem tão referenciada m odernização. N as palavras do

narrador, “ ainda assim restava na cidade um certo ar de acam pam ento” (A M A D O , 2008, p.

173).

364
N o decorrer do rom ance, o narrador vai apresentando ao leito r os m elhoram entos e as

“ m odernizações” introduzidas na cidade, pela intendência e pelos coronéis, dem onstrando seu

crescim ento espacial, desenvolvim ento urbano e enriquecim ento econôm ico. T oda a riqueza e

transform ações ocorriam às custas dos trabalhadores urbanos e rurais, os “ alugados” , os

“jag u n ç o s” e dos coronéis; e principalm ente às custas do cacau, “ a riqueza do m u n d o ” .

(A M A D O , 2008) O n arrador destaca a im portância da árvore e do fruto do cacau para a cidade

na seguinte passagem :

A árvore que influía em Ilhéus era a árvore do cacau, se bem não se visse nenhuma
em toda a cidade. Mas era ela que estava por detrás de toda a vida de São Jorge dos
Ilhéus. Por detrás de cada negócio que era feito, de cada casa construída, de cada
armazém, de cada loja que era aberta, de cada caso de amor, de cada tiro trocado na
rua. Não havia conversação em que a palavra cacau não entrasse como elemento
primordial. (AMADO, 2008, p. 172)

A “Ilha das C obras” voltou a ap arecer no rom ance São Jorge dos Ilhéus, continuação

direta de Terras do Sem-fim. E sse espaço foi representado na narrativa com o “ a zona m ais

b a ix a de toda a cidade, a m ais pobre tam bém ” (A M A D O , 1944, p. 131), onde se concentrava

u m a parte da classe trab alh ad o ra da cidade, assim com o na C onquista e no U nhão (atual O uteiro

de São Sebastião).

P o r m eio dos jo rn a is da década de 1920 e 1930, podem os observar que a “Ilha das

C obras” era um conjunto de ruas localizadas próxim a ao centro da cidade, entre a estação de

trem e o m orro onde se localiza o bairro da C onquista. N esse período, esse espaço era

considerado zona suburbana pelo fato de ser um local de habitação p opular onde viviam os

sujeitos subalternizados, ou “m al afam ados” ; não recebendo a m aio r parte dos m elhoram entos

públicos que chegavam para a área central a poucos m etros dali. (SA N TO S, 2021, p. 90)

E sse era o espaço “ onde os m ais pobres m oravam , aqueles que não podiam pagar sequer

u m a cabana, nem na C onquista, nem no U n h ão ” (A M A D O , 1944, p. 131), e a m aio ria das

m oradias encontradas ali eram os “ m ocam bos de palha, [com ] as paredes de b a rro batid o ” . Em

resum o, a “Ilha das C obras” era o “lugar onde os ilheenses nu n ca levavam os turistas que

saltavam dos aviões no interesse de conhecer a civilização do cacau.” (A M A D O , 1944, p. 131)

E m Gabriela, Cravo e Canela, o narrador retom a o tem a das lutas pelas terras de form a

resum ida, iniciado em Terras do Sem-Fim, p ara enfim apresentar a cidade que se desenvolvia

de form a dialética. N a tram a, Ilhéus é apresentada com o um a cidade em processo de

m odernização, m as que ainda passava por u m a série de atrasos em sua cultura e sociedade.

365
N esse sentido, seus habitantes, principalm ente os coronéis, precisavam atravessar o processo

de civilização, de m udança em suas práticas e cultura. (SÁ, 2014)

N esse rom ance as contradições sociais narradas adquirem um tom hum orístico e irônico,

diferenciando-se da crueza e exposição direta da vida dos trabalhadores e seus locais de

habitação descritos nas narrativas anteriores. (SA N T O S , 2021, p. 95) A aparente falta de crítica

social no rom ance relacionada às condições de vida dos subalternizados que viviam em Ilhéus,

assim com o o abandono declarado do escritor da m ilitância do P artido C om unista, pode ter

influenciado às críticas favoráveis à tram a e atraído os olhares de produtores que se

interessaram pela “in ocente” história de am or recheada de sensualidade e “ ousadia” . T alvez

por isso Gabriela, Cravo e Canela foi um a das obras m ais adaptadas po r diferentes m ídias e

apropriada de diversas form as po r inúm eros sujeitos e instituições.

E ssa “inocência” referir-se-ia ao fato do autor ter criado u m a “ sim ples h istória de am or”

am bientada num a “ sim ples cidade do interior” que passava po r transform ações. (A M A D O ,

A pud M A N C H E T E , 1959) C ontudo, nos subtextos e nas entrelinhas, Jorge A m ado contou pela

voz do n arrador a vida de sujeitos considerados “m enos im portantes” que os coronéis do cacau

e os em presários do m esm o ram o, bem com o apresentou espaços suburbanos subalternizados

“ m enos m odernos” que a área central que se transform ava. (SA N T O S, 2021)

P erceb em o s essa “ exposição” em vários m om entos da narrativa, quando o narrador

aponta os m orros do U n h ão e da C onquista com o lugares habitados por trabalhadores urbanos,

principalm ente m ulheres cozinheiras, quituteiras, dom ésticas; ou quando destaca que nesses

lugares, bem com o no Pontal, não havia calçam ento, as casas eram m odestas; tam bém é

transposto narrativam ente o “m ercado dos escravos” , espaço próxim o ao porto onde os

m igrantes sertanejos “ estacionavam ” suas b arracas à espera de em prego; assim com o fala-se

da vida noturna, as “m ulheres dam as” e os cabarés m ais pobres. (A M A D O , 2008)

E ntretanto, ao que parece esses aspectos não foram levados em consideração na

apropriação do rom ance pelo setor em presarial e pelo p o d er m unicipal quando fizeram dele o

lugar de m em ória privilegiado da cidade. D estacaram apenas os casarões, palacetes e espaços

que rem etiam aos coronéis e em presários do cacau na ficção - em ú ltim a instância destacaram

G abriela e N acib po r serem os personagens principais e po r seu b a r ser o centro dos encontros

na narrativa; transpondo para a realidade u rb an a apenas esses elem entos, com a criação do

“ Q uarteirão Jorge A m ado” e dos circuitos “ C ravo” e “ C anela” . (M E N E Z E S, 2004, p. 83) N o

rastro disso, seguiram -se as apropriações dos nom es de personagens e dos próprios personagens

com o figuras reais que efetivam ente existiram em Ilhéus, com o vim os acim a.

366
O que fica para nós, enquanto habitantes da cidade ou com o historiadores e professores

de história, é a tentativa constante de reavivar outras m em órias e histórias possíveis, de outros

sujeitos e espaços subalternizados, (Ver: B E N JA M IN , 1987) que tam bém estão presentes na

ficção am adiana. N ã o tem os a intenção de desfazer o que j á está posto, m as de acrescentar o

que falta, incluindo na m em ória urbana a diversidade de trabalhadores e agentes construtores

que contribuíram no desenvolvim ento de Ilhéus e sua história. E isso é possível através do

conhecim ento po r m eio dos indícios (G IN Z B U R G , 1989) presentes tanto na própria produção

ficcional de Jorge A m ado, quanto em outras fontes históricas, com o nas fotografias, jo rnais,

m em órias, arquitetura urbana, entre tantas outras.

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http://w w w .sarapegbe.net/articolo.php?quale=43& tabella=articoli#portoghese. Acessado em 20
abr. 2020.

369
SERTÕES A OESTE DO SAPUCAÍ: CONCENTRAÇÃO FUNDIÁRIA E A
FORMAÇÃO DO ESPAÇO RURAL NOS REGISTROS PAROQUIAIS DE
TERRAS DAS FREGUESIAS DE CALDAS E ALFENAS (MG, 1855-1856)

ISA A C C A S S E M IR O R IB E IR O 181

R e su m o

O s registros paroquiais de terra foram realizados em grande parte do Im pério do B rasil em


atendim ento ao decreto que regularizou dispositivos da Lei de T erras de 1850. E ssa foi a
prim eira legislação sobre a propriedade fundiária no país. A eficácia da lei no concernente ao
dom ínio estatal de terras sem títulos foi questionável, sendo o seu principal resultado a
legitim ação da propriedade privada e a garantia de expansão da m esm a, sobretudo para os
grandes fazendeiros. A presentam os aqui os resultados da análise da totalidade dos registros
paroquiais de terras das freguesias de C aldas e A lfenas, no sul da província de M inas G erais,
buscando entender a form ação de seu espaço rural em relação aos seus níveis de concentração
de terra. S abe-se que esse território era povoado por diversas etnias indígenas, sobretudo
falantes do M acro Jê (C aiapós, dentre outros), capturados, exterm inados e dispersados em fins
do século X V II. D urante a prim eira m etade do século X V III a região foi lar de diversos núcleos
quilom bolas denom inados “ Q uilom bos do C am po G rande” , destruídos em m eados do
S etecentos. A á re a era alvo de disputa entre as capitanias de M inas e S ão Paulo, e foi colonizada
gradativam ente por pessoas vindas dessas duas regiões. N o passar para o O itocentos o
povoam ento desses sertões se deu de fo rm a m ais intensiva, sobre pontos de colonização m ais
antiga e em direção a áreas de fronteira aberta, m antendo-se o padrão nacional de concentração
fundiária, com o dem onstram os registros paroquiais de terras. D estaca-se desse padrão, porém ,
as especificidades de u m a região vo ltad a para um a econom ia de abastecim ento interno, m enos
concentradora no topo da hierarq u ia quando com parada a áreas v oltadas p ara agro exportação,
no vale do P araíb a Flum inense.

I n tr o d u ç ã o

O presente trabalho é fruto de um projeto de pesquisa entre campi do


IF S U L D E M IN A S , e foi desenvolvido no âm b ito do G rupo de P esquisas em C ultura M aterial,

sediado no campus M achado, ten d o com o parceria o pro fesso r D r. T arcísio de S o u za G aspar,

do campus M uzam binho.182 A presentam os aqui parte dos resultados dessa pesquisa, no que

tange a análise dos R egistros P aroquiais de T erras (doravante R T P) de duas antigas freguesias

1811 Doutor em História Social da Cultura pela UFMG, professor EBTT do IFSULDEMINAS, campus Machado.
Financiamento: IFSULDEMINAS.
182 Trata-se do projeto intitulado: Sertões a oeste do Rio Sapucaí: história, patrimônio e cultura material (sécs.
XVIII-XIX), aprovado no EDITAL N°171/2020, GAB_IFSULDEMINAS, e foi desenvolvido entre 2021 e 2022.

370
do oeste do R io Sapucaí, no Sul de M inas: C aldas e A lfenas. A m bas englobavam territórios

que hoje pertencem a m ais de u m a dezena de m unicípios. C aldas abrangia, para além da cidade

de m esm o nom e, os m unicípios de P oços de C aldas, A ndradas, Ibitiúra de M inas, Santa R ita

de C aldas, B andeira do Sul e parte de C am pestre. Já a freguesia de A lfenas abrangia a cidade

de m esm o nom e e os atuais m unicípios de M a ch a d o 183, Poço Fundo, A reado, Serrania e

tam bém parte de C am pestre.

A s a n tig a s fre g u e sia s de C a ld a s e A lfe n a s n o século X IX

D as duas freguesias aqui abordadas, C aldas é a m ais antiga, sua origem colonial

rem onta ao ú ltim o quartel do século X V III, quando da intensificação do povoam ento da região

no extrem o sudoeste de M inas. A pós a dispersão e exterm ínio de indígenas falantes de M acro

Jê (C aiapós etc.) (PIM E N T A , 1998, p. 11 - 12), e dos quilom bos da região, a extração aurífera

de po u ca m onta foi realizada nos arraiais de Santana do Sapucaí (1746), O uro Fino e C abo

V erde, todos esses fundados em função da exploração m ineral. N o ano de 1759 João V eríssim o

de C arvalho abriu o cam inho ligando O uro Fino à C abo V erde (nos quais possuía catas

auríferas), passando pelas proxim idades da nascente do R io Pardo, onde fundou a fazenda de

criação na “ G ineta” (PIM E N T A , 1998, p. 2 0 ).184 Segundo o m em orialista R eynaldo de O liveira

Pim enta, seria a p artir dessa “ picada” que se iniciou o povoam ento da região de C aldas

(PIM E N T A , 1998, p. 15). B u scava-se os cam pos naturais do entorno para a criação de gado

cavalar e vacum, a serem vendidos prim eiram ente nos pequenos arraiais auríferos próxim os, e,

posteriorm ente, aos m ercados m ais distantes intra e inter capitanias/províncias.

A inda de acordo com os estudos de R ey n ald o P im enta, em 1789 foi criado o “ registro

de C aldas” 185 (próxim o ao que hoje é a cidade de P oços de C aldas), antes m esm o da criação do

arraial de “N o ssa Senhora do P atrocínio de C aldas” , que se daria som ente em 1806 (PIM E N T A ,

1998, p. 103). O m esm o foi erigido em parte das terras da fazenda dos B ugres, fu n d ad a pelo

capitão de ordenanças A ntônio G om es de Freitas em 1776 (PIM E N T A , 1998, p. 113). E m 1782

ali j á existia o “ cem itério de A ntônio G om es” , e po r v o lta de 1805 ele fez a doação de doze

183 O atual distrito rural de Douradinho, em Machado, em 1855-56 era uma freguesia separada, estendendo-se por
territórios de cinco atuais municípios, a saber: Machado, Paraguaçu, Poço Fundo, Turvolândia e Carvalhópolis (a
área integral deste último pertencia a antiga freguesia de Douradinho). (RIBEIRO, 2021)
184 A fonte citada pelo memorialista é o inventário de João Veríssimo de Carvalho, aberto em 1778, e pertencente
ao acervo do Fórum de Caldas.
185 Registro de cobrança de impostos nesta divisa da capitania de Minas Gerais e de São Paulo.

371
alqueires, em v o lta do m esm o, à N o ssa Senhora do P atrocínio. E stim a-se que no ano seguinte

com eçaram a erguer-se as prim eiras casas do entorno. N o ano de 1811 construiu-se no local a

“ capela dos B ugres” (PIM E N T A , 1998, p. 19). Segundo W a ld e m a r de A lm eida B arbosa, “ o

arraial desenvolveu-se e, em 25 de agosto de 1812, era a capela elevada a curato. Já ao ano

seguinte (...) po r alvará de (...) de 27 de m arço de 1813, foi a capela de N. Sr.a do Patrocínio

elevada à condição de freguesia colada, desm em brada da de O uro F ino” (B A R B O SA , 1995, p.

66). P ela lei provincial n° 134, de 16 de m arço de 1839, a freguesia foi elevada à categoria de

vila de C aldas, criando-se a m unicipalidade, e constituindo-se sua câm ara de vereadores

(B A R B O SA , 1995, p. 67). N o § 4° da m esm a lei, consta que a vila constituir-se-ia da “ freguesia

do m esm o nom e, e as de C abo V erde, e de São José e D ores dos A lfenas” , sendo que a “ Serra

dos C am pos” serviria “ de lim ite entre este m unicípio e o da C am panha pelo lado da Freguesia

de Santana do Sapucaí” 186. E m 1846 a m unicipalidade foi tran sferid a para C abo V erde,

retornando à C aldas em 1849 (B A R B O SA , 1995, p. 67). F inalm ente a vila foi elevada à

categoria de cidade pela lei provincial n° 973, de 2 de ju n h o de 1859 (B A R B O SA , 1995, p. 67).

P o r sua vez, a freguesia de A lfenas teria sua origem em u m a capela erguida no início

do século X IX dedicada à N. Sr.a das D ores, po r iniciativa de F rancisco de Sequeira e sua

m ulher, M ariana F erreira de A raújo. Segundo W ald em ar B arbosa: “m em bros da fam ília

‘A lfen a’ edificaram a capela, ao red o r da qual se form ou o povoado” . T ratar-se-iam dos irm ãos

João M artins A lfena e José M artins A lfena, provavelm ente oriundos do lugar denom inado

“ A lfena” , na aldeia de V alongo, B ispado do P orto (Portugal) (B A R B O SA , 199 5, p. 21). D e

fato, entre os antigos docum entos do acervo do fórum de C aldas, à qual A lfenas pertenceu

durante certo tem po, identificam os o in v en tá rio post-mortem aberto em 1808 pelo falecim ento

de A na Joaquina dos Santos, esposa de Joaquim M artins A lfena. E sse seria pai ou irm ão dos

dois supracitados “M artins A lfena” , constando no rol dos herdeiros um “José de idade de trin ta

e dois anos” .187 A ligação dos m esm o com a origem da fu tu ra freguesia de A lfenas é atestada

entre os bens inventariados: “um a sorte de terras de cultura ao pé da capela de São José e Dores

que se com põe de m atos virgens avaliada em cento e vinte m il réis - 120$000” .188

A freguesia de A lfenas foi criad a posteriorm ente, por ato da R egência, de 14 de ju lh o

de 1832, sob o títu lo de São José de A lfenas. Todavia, na d ocum entação o nom e corrente se

firm ou com o S. José e D ores dos A lfenas (incluindo-se nessa as capelas de M ach ad o e A reado).

186 Mina Gerais, lei provincial n° 134, de 16 de março de 1839. Disponível em:
https://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa.html?tipo=LEI&num=134&comp=&ano=1839
(acesso, 20 de março de 2022).
187 Fórum de Caldas, inventário post-mortem de Ana Joaquina dos Santos (1808), fl. 3.
188 Idem, fl. 6.

372
A inda de acordo com B arbosa, o povoado cresceu e foi elevado à vila som ente em 1860, pela

lei provincial de n° 1090, passando a denom inar-se V ila F orm osa de A lfenas (B A R B O SA ,

1995, p. 21). N esse interim , entre 1839 e 1860, o territó rio da freguesia de A lfenas pertenceu à

vila de C aldas, período em que foram realizados os registros paroquiais de terra (1855-56),

u m a das fontes que pesquisam os. P ouco tem p o depois, no ano de 1869, p ela “lei provincial n.°

1.611, de 15-10-1869, a V ila F orm osa de A lfenas foi elevada à condição de cidade” .189

C o n c e n tra ç ã o f u n d iá r ia nos re g is tro s p a ro q u ia is de t e r r a d a s fre g u e sia s de C a ld a s e

A lfe n a s (1855 - 1856)

D urante o P eríodo Im perial, os R egistros P aroquiais de T erra (R PT ) foram realizados

em atendim ento ao D ecreto n° 1.318, de 30 de ja n e iro de 1854, que regularizou dispositivos da

Lei de T erras de 1850 (C A ST R O , 206, p. 18). E ssa foi a prim eira legislação sobre a propriedade

fundiária no B rasil. A ntes dela existiu apenas a Lei de Sesm arias, no P eríodo C olonial,

originada na Idade M édia P ortuguesa, e que concedia a posse da terra, em nom e do rei, a um

pequeno grupo de privilegiados. C om a independência do B rasil em 1822, o instituto das

Sesm arias foi abolido, e até a prom ulgação da lei de 1850, predom inou certa confusão no que

dizia respeito ao tem a, prevalecendo a posse com o ú n ica form a possível de acesso à terra. O

principal objetivo dessa lei era criar um a legislação m oderna para o país instituindo a

propriedade privada da terra e garantindo ao E stad o o dom ínio sobre as ditas “terras d ev o lu tas” .

A e ficácia da lei no concernente ao dom ínio estatal de terras sem títulos foi questionável, sendo

o seu principal resultado a legitim ação da propriedade privada e a garantia de expansão da

m esm a, sobretudo para os grandes fazendeiros.

F oram lidos e transcritos, em Word, na íntegra, 268 páginas do “L ivro de R egistros

P aroquiais de Terras da freguesia de N o ssa Senhora do P atrocínio de Caldas” , contendo m ais

de quatrocentas declarações de terras, que posteriorm ente foram tratadas em banco de dados

no Excel. T am bém foram lidos e transcritos, porém diretam ente no Excel, os dados já filtrados

de 308 páginas dos m anuscritos do “L ivro de R egistros de T erras da F reguesia de São José e

D ores de A lfenas” , contendo quase quatrocentas declaraçõ es.190 A m bos os livros pertencem ao

189http://www.cmalfenas.mg.gov.br/a-camara/conheca-a-
cidade#:~:text=Com%20a%20Lei%20Provincial%20ade%2022%2D09%2D1871. (acesso, 20 de março de
2022).
190 Toda leitura paleográfica e transcrição foi realizada, sob supervisão, pelo bolsista do projeto, a quem agradeço:
Gabriel Silva Fernandes, então graduando em Administração pelo IFSULDEMINAS, campus Machado.

373
acervo do A rquivo P úblico M in eiro (A PM ), e para presente pesquisa foram utilizadas as

im agens digitalizadas pelo próprio arquivo e disponibilizadas no site dessa in stitu içã o .191

L evantam os 16 possíveis variáveis dedutíveis dos registros, as q uais foram incluídas no

ban co de dados, conform e o diagram a abaixo (ver D iagram a 1), não necessariam ente nessa

o rd em .192 Porém , po r u m a questão de viabilidade do trabalho, priorizam os certas variáveis em

detrim ento de outras, buscando transcrever prim eiro no banco de dados aquelas que diziam

respeito à identificação do declarante e os dados fundiários do m esm o.

N o livro de R egistros P aroquiais de T erras de C aldas foram transcritas 464 declarações.

E m 413 (89 % ) registros constaram a extensão de algum dos terrenos declarados. T rinta e dois

declarantes registraram duas ou m ais propriedades distintas com suas respectivas extensões,

totalizando 376 sujeitos que declararam algum a extensão de terra. N o registro de C aldas

observam os m aio r núm ero de pessoas com m ais de u m a declaração quando com parado à

A lfenas, o que talv ez se deva à algum a especificidade local ligada a form a com o se realizou o

registro. C onfrontam os as declarações para descartar possíveis hom ônim os. P orém , sem um

cruzam ento m assivo de outras fontes não podem os descartar absolutam ente que eles não

existiram .

191 http://www.siaapm.cultura. mg. gov.br/


192 Para criação das variáveis nos inspiramos sobretudo no texto (GODOY; LOUREIRO, 2010).

374
Diagrama 1 - 16 Variáveis de dados
nos Registros Paroquiais de Terras

f > \
1.Declarante A possam ento
Tantos alqueires
v C om pra Posse
c \ Sesm aria Arrendamento/ de terras de
2.Acesso H erança aluguel cultura e, tantos
V > T roca
c \ Sesmaria de campos de
D oação
3.Extensão propriedade criar, matas, etc.
>

r
4.Tipificação
v________________________ Fazendas
f \ Sítios
Sortes de Terras de cultura, e
5.Alfabetização terras matos, etc.
C hácaras
v____________ ) Situação

t
r \
6.Forma de
Tenência
v w
9. Dependência das
13.Aproveitamento da terra
j
7. N° de confrontantes f > r >
V_______________________________________________ >
10. Sociedade com 14.aproveitamento detalhado da
v________________________________________________ > ^ J

8. Valor da terra ll.D ata 12.N° de Sócios 15.Valor do Registro 16.Toponímias


Todavia, a m aioria dos d eclarantes com m ais de um registro em C aldas certam ente não

tin h a hom ônim os, ou po r terem nom es m uitos específicos com o “M anoel F rancisco G uim arães

B oav en tu ra” , ou po r serem “personalidades” conhecidas na h istória local das elites, e

certam ente possuírem propriedades em m ais de um local, a exem plo de T om ás Jo sé de A ndrade,

irm ão da bisavó do escritor O sw ald de A ndrade (A N D R A D E , 2021, p. 520).

T odos os declarantes que registraram a extensão de suas terras em C aldas som aram

ju n to s u m a área de 27.1219,08 h a 193, sendo que 87,28% (23,6719,56 ha) dessas terras

concentrava-se nas m ãos de 133 grandes proprietários (35,73% ) com 400 ou m ais hectares

(tabela 1). É consenso entre pesquisadores que se dedicaram à H istória A grária do Brasil

Im pério que esse foi o m arco divisor entre “grandes proprietários” e as dem ais categorias,

considerando com o parâm etro “ a área m édia de um a fazenda de café no V ale do P araíb a (400

a 800 ha)” (C A STR O , 2009, p. 19).

T a b e la 1 - C oncentração F undiária em M G e R J (1855 - 1857)

I n te rv a lo D e c la ra n te s
M u n ic íp io s D e c la ra n te s % Á rea %
(h a) - T o ta l
< 400 123 76,40% 16,52%
A lfen a s (M G )
> 400 38 23,60% 83,48%
< 400 242 64,53% 12,72%
C a ld a s (M G )
> 400 134 35,73% 87,28%
São J o ã o del- < 400 76 81,73% 13,10%
R e i (M G ) > 400 17 18,27% 86,90%
V ale do < 400 1049 72,10% 29,82%
P ir a n g a (M G ) > 401 406 27,90% 70,18%
P a r a íb a do < 400 279 85,10% 32,80%
Sul (R J ) > 400 55 14,90% 67,10%
< 400 151 84,83% 25,00%
C a p iv a ri (R J )
> 400 27 15,71% 75,00%

Fonte: Registro Paroquiais de Alfenas e Caldas. Para São João del-Rei (ALENCASTRO, 2002, p. 116); para o
Vale do Piranga (ANDRADE, 2018, p. 163), e para as cidades do Rio de Janeiro, João Fragoso e Hebe Mattos
apud. (OLIVEIRA, 2015, p. 71).

A região de C aldas voltava-se para a econom ia de abastecim ento interno de alim entos,

destacando-se a pecuária, em detrim ento à agricultura (ao m enos até o prim eiro quartel do

século X IX , com o denotam os inventários). D as áreas aqui com paradas, a percentagem de

grandes proprietários em C aldas se aproxim ou m ais daqueles analisadas po r M ateus R ezende

193 Praticamente todas as declarações foram feitas em alqueires. Convertemos todas considerando que o alqueire
mineiro equivalia a 4,84 hectares (GRAÇA FILHO, 2002, p. 116, Quadro n° 8).
376
de A ndrade (A N D R A D E , 2018) p ara as freguesias do vale do Piranga, tam bém um a região de

povoam ento antigo (anterior m esm o à C aldas), e voltada para o abastecim ento interno de

alim entos (ver tab ela 1), na qual 27,9% foram considerados grandes proprietários, todavia, a

diferença ainda se m anteve grande.

O núm ero de “grandes p roprietários” foi proporcionalm ente m aior em C aldas (35,73% )

que em A lfenas (23,60% ), talvez isso se deva à m aior antiguidade da prim eira freguesia, quando

com parada à segunda, o que pode te r possibilitado um a m aior distribuição de terras n o topo da

h ierarquia fundiária da prim eira. N o livro de R egistros P aroquiais de T erras de A lfenas foram

transcritas 373 declarações, sendo u m a delas a correção de o u tra .194 T otalizaram -se, portanto,

372 registros válidos. E m apenas 163 (43,81 % ) constaram a extensão de algum dos terrenos

declarados. N estas, dois declarantes registraram duas propriedades distintas com suas

respectivas extensões, portanto, 161 sujeitos declararam algum a extensão de te rra .195 Q uinze

indivíduos (4,03% ) apontaram apenas o v alo r de suas terras, e oito (2,15% ) declaram a extensão

de algum as e o v alo r de outras. E m ao m enos dois registros constam o tam anho e o v alo r da

m esm a te rra 196, o que nos perm itiu encontrar um preço m édio de 48$960 por alqueire de terras

de cultura e 17$000 po r alqueire de cerrado. E sse preço m édio das terras de culturas se aproxim a

daqueles encontrados po r G raça F ilho nos inventários de São João del-R ei entre 1845 e 1859,

cujo v alo r m édio era de 48$000 por alqueire. P ara o m esm o período o autor identificou o preço

m édio de 30$000 po r alqueire de terras de cam pos (G R A Ç A FILH O , 2002, p. 205). C om o no

entorno de São João del-R ei não existe cerrado, o m esm o não apresentou v alo r m édio para esse

tip o de terreno. P orém , o registro de A lfenas sinaliza que o cerrado era desvalorizado, podendo

equivaler a cerca de 1/3 do v alor m édio das terras de cultura.

O s 161 declarantes que m anifestaram a extensão dos terrenos em A lfenas som aram

ju n to s um a área de 76772,08 hectares. A m aio r parte desse território, 83,48% (64.086,44 ha),

concentrava-se em m ãos de apenas 38 indivíduos (23,6% ), com um total de terras igual ou

superior a 400 ha.

A pesar de n ã o representar a totalidade dos declarantes, a concentração fundiária n a

freguesia de A lfenas aproxim ava-se de localidades da província de M inas voltadas para o

abastecim ento interno, com o as do V ale do P iran g a; e daquelas altam ente vinculadas ao

com ércio interprovincial (com o São João del-R ei). T anto C aldas com o A lfenas se distinguiam

de m unicípios especializados na agroexportação do café, à exem plo de P araíb a do Sul, na

194 Trata-se do registro de n° 29, corrigindo 24, ambos em nome de José Vieira da Silva.
195 Cândido de Souza Dias, registros de n° 251 e 254; e Domingos Gonçalves Chaves nos de n° 93 e 216.
196 Trata-se do registro 29, no qual constam 12,5 alqueires mais 5 alqueires de cultura comprados por 856$000; e
do registro 258 onde se declara que 10 alqueires “entre culturas e cerrados” foram comprados por 170$000.
377
província do R io de Janeiro, e m esm o de C a p iv a ri197 (R J), com grande produção de farinha

v o ltad a para o m ercado interno, m as próxim a de regiões cafeicultoras (ver T abela 1). É

im portante lem brar que o café ainda não era um a cultura expressiva no Sul de M inas quando

da realização dos registros paroquiais de terra (1855 - 1856). À época predom inavam na região

a agricultura e a pecuária voltada para o com ércio de abastecim ento. A cafeicultura sul-m ineira

v iria a se desenvolver de fo rm a tím id a som ente a partir da década de 1870 (M A R T IN S, 2011).

D e um m odo geral, a concentração de terras foi a regra no período, e os dados dos

registros paroquiais de terras nos dão bons indícios de que em C aldas e A lfenas essa realidade

não foi diferente. T odavia, p ara se observar as especificidades regionais, é necessário decom por

o quadro de concentração em m ais categorias (tabelas 2 e 3) (A N D R A D E , 2019, p. 163). D esta

form a, foi possível observar que a m aior concentração de terras se deu, efetivam ente, nas faixas

acim a de 800 hectares, a qual denom inam os aqui de os “ m aiores proprietários de terra” . Talvez

a m aior disponibilidade de terras e diversidade no uso desse solo (pasto e plantação) explique

a m aior extensão das m aiores propriedades quando com paradas às do V ale do Paraíba, voltadas

para a agroexportação. Todavia, para m elhor com preensão desse ponto seria necessária um a

com paração com estudos que levantem m ais faixas de concentração para essa região.

E m C aldas o grupo dos “ m aiores proprietários de terra” era form ado po r 85 declarantes

que representavam 22,61% dos que registraram a extensão de suas terras. E m conjunto o grupo

detinha 76,93% de todo território registrado. E m A lfenas, po r sua vez, 25 declarantes (15,53%

dos que inform aram a extensão das terras) concentravam 74,90% da área total. A ssim com o

afirm am os anteriorm ente, esta últim a freguesia, po r ter sido povoada tardiam ente em relação a

C aldas, perm itiu m aio r concentração de terras no topo da hierarquia fundiária.

Já aqueles que aqui classificam os com o “pequenos declarantes de terra” (com extensões

entre 0,1 a 50 hectares), representavam 15,43% (58) dos que declararam a extensão de terrenos

em C aldas. E sse grupo deteve som ente 0,7% das terras registradas. Já em A lfen as eles foram

31,06% dos que inform aram a extensão das terras, som ando apenas 1,83% da área total

levantada. V em os, portanto, n esta últim a freguesia, de povoam ento m ais recente, que os

“ pequenos” eram proporcionalm ente m ais num erosos que em C aldas, detendo ju n to s u m a área

relativam ente m aior que nesta ú ltim a freguesia. T alvez isso se deva à m aior proxim idade da

paró q u ia de A lfenas a áreas de fronteira aberta no período, quando com parada à outra,

perm itindo m ais “brechas” aos “ pequenos” (porém , para u m a con clusão m ais acertada, seria

necessário cruzar outras fontes com o inventários post-mortem, processos crim es, registros

cartoriais de com pra e venda, etc.).

197 Atual município de Silva Jardim (RJ).


378
T a b e la 2 - F aixas de concentração de terras em hectares (C aldas - M G , 1855-56)

F a ix a s em N° de % D e c la ra n te s % Á rea
Á r e a (h a) Á rea %
h e c ta re s D e c la ra n te s com á r e a a c u m u la d a
0,1 - 25 33 8,78% 450,12 0,17% 0,17%
26 - 50 25 6,65% 1.009,14 0,37% 0,54%
51 - 100 50 13,30% 3.832,07 1,41% 1,95%
101 - 200 68 18,09% 9.787,69 3,61% 5,56%
201 - 399 66 17,55% 19.420,50 7,16% 12,72%
400 - 800 49 13,03% 28.079,26 10,35% 23,07%
801 - 2.000 54 14,36% 66.329,78 24,46% 47,53%
2.001 - 4.000 17 4,52% 46.386,56 17,10% 64,63%
4.001 - 8.000 8 2,13% 45.360,48 16,72% 81,36%
8.001 ou m ais 6 1,60% 50.563,48 18,64% 100,00%
Total 376 100,00% 271.219,08 100,00% -

Fonte: Registros Paroquiais de Terras de Caldas.

T a b e la 3 - F aixas de concentração de terras em hectares (A lfenas - M G , 1855-56)

F a ix a s em N° de % D e c la ra n te s %
Á r e a (h a) Á rea %
h e c ta re s D e c la ra n te s com á r e a a c u m u la d a

0,1 - 25 23 14,29% 315,81 0,41% 0,41%


26 - 50 27 16,77% 1.090,21 1,42% 1,83%
51 - 100 28 17,39% 2.096,93 2,73% 4,56%
101 - 200 25 15,53% 3.558,61 4,64% 9,20%
201 - 399 20 12,42% 5.624,08 7,33% 16,52%
400 - 800 13 8,07% 6.587,24 8,58% 25,10%
801 - 2.000 13 8,07% 19.456,80 25,34% 50,45%
2.001 - 4.000 11 6,83% 33.202,40 43,25% 93,70%
4.001 - 8.000 1 0,62% 4.840,00 6,30% 100,00%
8.001 ou m ais 0 0,00% 0,00 0,00% 0,00%
Total 161 100,00% 76.772,08 100,00% -

Fonte: Registros Paroquiais de Terras de Alfenas.

P o r últim o, aqueles que aqui consideram os com o “ declarantes de terras m edianos” (com

extensões entre 51 a 399 hectares) apesar de num ericam ente m aiores que os ditos “pequenos” ,

p roporcionalm ente tam bém não possuíam parte expressiva na som a da área total de terras

declaradas. E m C aldas os “m edianos” eram 184 indivíduos, correspondendo a 48,94% dos que

declararam a extensão fundiária. Juntos eles detiveram apenas 12,18% das terras. E m A lfenas

eles eram 45,34% dos que registraram a extensão das terras, som ando 14,69% do território

379
declarado. A “ cam ada m édia” caldense era pouco m ais expressiva que à de A lfenas, porém

deteve proporcionalm ente um a fatia m enor do total do território declarado.

O s dados dos R P T tam bém podem ser analisados a partir de recortes qualitativos. Foi o

que fizem os em relação aos declarantes da freguesia de A lfenas que registraram terras na Sacra

F am ília e Santo A ntônio do M achado (R IB EIR O , 2022). G eograficam ente essa área era m ais

próxim a de C am panha, o centro de povoam ento m ais antigo da região. D entre os 373

declarantes da paró q u ia de A lfenas, som ente 21 m anifestaram -se com o m oradores de M achado.

E n tre esses, apenas três não declararam a extensão de suas terras.

A m édia geral de terras po r declarante ficou em 861,52 hectares. Porém , se olharm os

cada um desses registros, apenas 8 (44,44% ) u ltrapassaram 400 hectares (o m arco das grandes

propriedades), e detinham ju n to s 93,63% da área registrada. D iferentem ente dos dados gerais

de A lfenas (23,60% - 83,48% ), esse percentual aproxim a a localidade de M achado dos

p ercentuais encontrados para C aldas (M G ), (35,73% - 87,28% ), com o vim os, um a das regiões

de povoam ento m ais antigo a oeste do Sapucaí. O bservam os que a m áxim a concentração se

deu, efetivam ente, na faixa acim a de 800 hectares: a dos “m aio res proprietários de terra” . Em

M ach ad o esse grupo era form ado po r apenas seis declarantes cujas terras, ju n tas, som aram

13.552,00 hectares, ou seja: um terço dos indivíduos concentravam 87,39% dos terrenos

registrados.

Q ualitativam ente o que se destacou no levantam ento é a capacidade de um a m esm a

fam ília concentrar em suas fazendas a m aior parte das terras declaradas na localidade. D entre

os seis m aiores proprietários de terras de M achado entre 1855 e 1856, cinco eram do m esm o

grupo fam iliar: os Souza D ias. O s dados dem onstraram que um a só fam ília concentrava 74,9%

de to d a a área registrada em M ach ad o (R IB EIR O , 2022).

Sobre as principais form as de acesso a terras nos registros, apesar de poucos terem

declarado, quando com paradas é possível en co n trar indícios da m aior antiguidade do

povoam ento em C aldas (ver tab ela 4). N esta freguesia, 47,83% dos que declararam a fo rm a de

acesso afirm aram que o fizeram através de herança, contra 39,13% por com pra. Já em A lfenas,

freguesia de povoam ento m ais tardio, 53,66% acessaram a terra por com pra, enquanto apenas

29,27% obtiveram sua terra po r herança. N e sta ú ltim a freguesia houveram m ais registros de

form as de acesso, com algum as variações pouco expressivas com o “ dote” , “b arganha” e

“ doação” .

380
T a b e la 4 - P rin cip ais form as de acesso a terra nos registros paroquiais de terra (M inas G erais
- C aldas e A lfenas, 1855-56)

C aldas A lfenas

F orm a de acesso Q uantidade % Q uantidade %

H erança 11 47,83% 72 29,27%


C om pra 9 39,13% 132 53,66%
C om pra e herança 3 13,04% 36 14,63%
D ote - - 2 0,81%
B arganha - - 2 0,81%
D oação - - 2 0,81%
Total 23 100,00% 246 100,00%

Fonte: Registros Paroquiais de Terras de Caldas e Alfenas.

C o n clu sõ es

P ela análise dos registros paroquiais de terras de C aldas e A lfenas foi possível concluir

que a situação fundiária na região não fugiu dos padrões encontrados para o restante do país: a

concentração da m aior parte das terras na m ão de um grupo seleto. N e stas duas freguesias, entre

um terço a um quarto dos declarantes (os grandes proprietários com m ais de 400 hectares)

detinham m ais de 80% da área registrada.

A pesar da concentração fundiária ser a regra, seus níveis variavam entre as freguesias e

províncias po r diversos fatores. Internam ente, na região a qual denom inam os “ O este do

S apucaí” , conseguim os identificar um a m aio r distribuição de terras no topo da hierarquia

fundiária em Caldas. A creditam os que essa configuração se deu devido ao fato desta freguesia

ser m ais antiga, fazendo com que as terras dos m aiores proprietários fossem divididas

sucessivam ente entre os herdeiros, o que ju stificaria m aior distribuição das grandes

propriedades no topo da distribuição de terras.

P o r outro lado, A lfenas era um a freguesia de povoam ento m ais recente, em área de

expansão do Sul de M inas, o que p erm itia aos m aiores proprietários (aqueles com m ais de 800

hectares) u m a concentração de terras superior à m esm a categoria entre os caldenses. T al fato

nos p erm ite lev an tar a h ipótese de que áreas de fronteira recentem ente abertas eram m ais

propícias à concentração de terras no to p o da hierarquia. P orém , para g eneralizar essa afirm ativa

é necessário com parar um núm ero m aior de freguesias para diferentes regiões.

A lfenas, devido a sua m aior proxim idade em relação a C am panha, São João del-R ei e

ao R io de Janeiro, parece ter se integrado de form a m ais intensiva a circuitos m ercantis

381
interprovinciais m ais lucrativos, quando com parada a C aldas. T am bém é necessário destacar

que as terras alfenenses eram m elhores que as caldenses no que se refere a topografia, e suas

pastagens naturais eram m ais extensas e planas, com m uitas m atas nativas para alim entar o

sistem a extensivo de agricultura. C aldas tam bém possuíam pastos nativos e m atas, p o rém seu

terren o é m ais alto e acidentado, além de sofrer com tem peraturas m uito baixas nos m eses m ais

frios do ano.

E m contraste com outras áreas da P rovíncia de M inas, as duas freguesias que estudam os

a O este do Sapucaí, de um a form a geral, apresentaram um padrão fundiário interm ediário entre

a realidade de um a região antiga de abastecim ento v inculada ao centro m inerador (o V ale do

Piranga), e um a outra região tam bém de abastecim ento, m as altam ente ligada ao com ércio

interprovincial (São João del-R ei). Isso pode ser ju stifica d o na crescente im portância do Sul de

M inas para a econom ia de abastecim ento interno durante o P eríodo Im perial.

E m com paração com os dados referentes a província do R io de Janeiro, em u m a prim eira

leitura, podem os constatar que os níveis de concentração de terras em M inas G erais eram

relativam ente inferiores, m esm o quando com parados a regiões com grande especulação

fundiária com o era o caso do entorno da cidade de São João del-R ei. O fato de grande parte do

território flum inense voltar-se para a cafeicultura de exportação talv ez ju stifiq u e seus m aiores

níveis de concentração de terras, em com paração com M inas, m esm o em freguesias que se

especializaram na produção de alim entos, com o foi o caso de Capivari.

R e fe rê n c ia s

M a n u s c r ita s

L ivro de registro de terras da freguesia de São José e D ores dos A lfenas (1855 - 1856),
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http://w w w .siaapm .cultura.m g.gov.br/m odules/terras publicas/brtacervo.php?cid= 14& op= 1
(acesso, novem bro de 2022)
L ivro de registro de terras da freguesia de N o ssa Senhora do P atrocínio de C aldas (1855 -
1856), disponível em:
http://w w w .siaapm .cultura.m g.gov.br/m odules/terras publicas/brtacervo.php?cid= 41& op= 1
(acesso, novem bro de 2022)

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(acesso, novem bro de 2022)

384
THOMPSON E A HISTÓRIA DOS COSTUMES:
UMA LEITURA NÃO ECONOMICISTA DOS CONFLITOS NA
INGLATERRA DO SÉCULO XVIII

IS A B E L A B A R B O S A R O D R IG U E S 19819
C A R L O S P R A D O 1991

E dw ard P alm er T hom pson foi um histo riad o r m arxista-hum anista - ou com o ele

gostava de se autodenom inar, um “m orissiano-m arxista” - b ritânico da segunda m etade do

século XX. E ra, sobretudo, um m ilitante ativo das causas políticas e sociais. N o cam po

historiográfico, T hom pson possui um a produção p rofícua com um a pluralidade de tem as, indo

desde estudos sobre classes sociais às discussões teóricas sobre o ofício do historiador,

alcançando até m esm o o universo antropológico cultural. R esponsável po r obras com o A

formação da Classe Operária Inglesa (1963), A miséria da teoria ou um planetário de erros


(1978) e Costumes em Comum (1991), T hom pson m antém relevância até os dias atuais, sendo

am plam ente divulgado e estudado.

T rata-se de um historiador que em basou suas pesquisas em u m a história social - “from

bottom u p ” - , a qual b uscou explorar, entre outros tem as, a relação entre cultura e classes
sociais. E m sua proposta, superestrutura e infraestrutura não estão separadas e isoladas, ao

contrário, estão interligadas. E llen W ood (2006, p. 62) discorre que o m aterialism o de

T hom pson é ím par por se recusar a privilegiar a econom ia em relação a cultura. D esse m odo,

ele não pode ser classificado com o um econom icista ou um hum anista:

Na oposição entre ‘economicismo cru’ e ‘humanismo marxista’, ele seria um


comunista para quem as leis econômicas dão lugar à vontade e à ação humana
arbitrárias. No debate entre althusserianos e culturalistas, ele é um culturalista - talvez
o primeiro deles - para quem determinações estruturais se dissolvem na ‘experiência’
(WOOD, 2006, p. 53).

M attos (2012) reitera que diversos h istoriadores tiveram dificuldades e problem as ao

trabalharem com as discussões culturais dentro do cam po do m aterialism o histórico. M uitos

m arxistas adotaram um pensam ento estritam ente econôm ico e excludente com a cu ltu ra.200

1981 Graduanda da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) da Faculdade de Ciências Humanas
(FACH)
199 Doutorem História pelo PPGH-UFFe professor da FACH-UFMS. Trabalha comtemas relacionados à Teoria
da História e História do marxismo. E-mail: carlosprado1985@hotmail.com
200 O primeiro empecilho é o próprio fato de existir uma definição abrangente para o conceito de cultura na
Antropologia e na História. Enquanto existem correntes interpretativistas, deterministas e relativistas, a cultura
385
A ssim , u m a vertente econom icista do m arxism o relegou à cultura um espaço secundário, ou até

m esm o subordinado à econom ia. N ão obstante, esse determ inism o não encontra

fundam entações teóricas nas obras de M arx e E ngels. A m bos ja m a is foram determ inistas.

T hom pson faz parte de um seleto grupo de autores m arxistas que buscaram

com preender as relações entre o cam po econôm ico e cultural. P ensando de form a peculiar, ele

recusou as “ m anifestações da subjetividade descoladas da vida social m aterial” e as ideias de

cultura “ com o todo um m odo de v id a” (M A TTO S, 2012, p. 189). T hom pson fu n d am en ta seus

estudos na relação entre a dim ensão cultural e o m odo de produção, sem cair no reducionism o

da m etáfora da base e superestrutura.

E m Costumes em comum, T hom pson dem onstra que os processos de transform ações

técn icas - incluindo o desenvolvim ento das forças produtivas ocorrido na Inglaterra ao longo

do século X V III - não transform aram apenas as form as de produção e as relações de trabalho.

M as, de fo rm a concom itante, prom overam m udanças nos costum es, nos hábitos, no cotidiano

das pessoas; o que alterou, portanto, os aspectos fundam entais de sua cultura. A crítica de

T hom pson é direcionada ao econom icism o que paira sobre o m arxism o. E le dem onstra ao longo

dos artigos apresentados que a transição para o capitalism o e a sociedade industrial não ocorreu

sem conflitos no cam po cultural.

O objetivo do presente artigo é apresentar e analisar a concepção não econom icista de

T hom pson em torn o das transform ações sociais prom ovidas pela revolução industrial na

Inglaterra do século X V III. P ara tanto, investigarem os dois artigos do autor, am bos presentes

na obra Costumes em comum ; o prim eiro, “ Tem po, disciplina de trabalho e capitalism o

industrial” ; o segundo, “A econom ia m oral da m ultidão inglesa no século X V III” . Q uanto ao

prim eiro artigo, evidencia-se que a disciplina e a hierarquização do trabalho não foram

m udanças m eram ente econôm icas, m as tam bém , culturais. Isto é, no cam po d o s costum es,

p recisam ente em relação à percepção do tem po. Já em relação ao segundo artigo, discute-se a

conceituação da econom ia m oral dos pobres, e com o os cham ados “m otins de fom e” possuíam

significações e sim bologias m ais profundas do que u nicam ente o âm bito econôm ico poderia

captar.

oscila entre pêndulos de intelectuais como Burke, Kuper, Boas, Geertz e outros. Aliás, é pertinente lembrar que,
como afirmar Mattos (2012, p. 118), a cultura “é um conceito muito impreciso (como economia ou política), mais
uma noção geral que um conceito, referindo-se a questões muito amplas - o que o distingue, portanto, da
conceituação de classe social”. Ou seja, cultura é um conceito polissêmico, o que possibilita ser interpretada de
formas muito diferentes por historiadores e antropólogos.
386
Tempo e disciplina do trabalho

O artigo “ Tem po, disciplina de trabalho e capitalism o industrial” que com põe a obra

Costumes em Comum, foi lançado originalm ente em 1967, na revista Past and present. D e
m odo geral, esse escrito traz novas conclusões para assuntos já abordados em A formação da

classe operária inglesa. O intuito principal de T hom pson nesse artigo é dem onstrar o processo
de transform ação, no século X V III, do ritm o de trabalho irregular, baseado na “ orientação pelas

tarefas” , para o ritm o de trabalho regular, m arcado pela ideia do “uso-eco n ô m ico -d o -tem p o ” .

C ontudo, com o m ostra M acedo (2017, p. 62), T hom pson oferece um novo o lh ar para esse

m om ento histórico, visto que “procura reconstituir diversos fios de tradições culturais vigentes

no século X V U F’, enquanto dem onstra que “ os trabalhadores não seriam táb u la rasa sobre a

qual as novas relações de produção se im prim iriam diretam ente” .

D essa form a, T hom pson foge do determ inism o econôm ico ao propor u m a análise

h istoriográfica que leva em consideração, além da cultura local, a ação e reação dos

trabalhadores diante da m udança na organização do tem po. A ssim , ele evidencia que houve

resistência dos trabalhadores ao novo m odelo de organização do ritm o de trabalho, sendo essa

id eia som ente incorporada na terceira geração de operários:

Mais uma vez, em sua oposição ferrenha ao utilitarismo, Thompson demonstrava que,
buscando manter seus antigos hábitos de trabalho, houve resistência dos trabalhadores
à ideia de que tempo era dinheiro. Somente em uma terceira geração de operários é
possível se verificar a aceitação de tal preceito e se constatar a realização de ‘greves
pelas horas extras ou pelo pagamento de um percentual adicional (1,5%) pelas horas
trabalhadas fora do expediente’ (MACEDO, 2017, p.61-62).

Segundo T hom pson (1998), o costum e era um a ferram enta chave para se conhecer as

sociedades pré-industriais da Inglaterra do século X V III. O s costum es não estavam em declínio

no X V III, - com o propõem m uitos historiadores - m a s sim, em plena agitação. T am anha era a

força dos costum es populares que facetas sociais, econôm icas e históricas poderiam ser

influenciadas po r eles. U m exem plo disso é a percepção do tem p o nas com unidades pré-

industriais.

A ntes da intrínseca relação do tem po do relógio com o sinônim o de dinheiro, ou da

noção elisabetana de que este era um “devorador, desfigurador, tiran o sangrento, ceifeiro”

(T H O M P SO N ,1998, p. 268) tem o s a orientação do tem po por tarefas. O u seja, antes das

relações capitalistas, da indústria e da contratação da força de trabalho, os ingleses

apresentavam um a outra percepção do tem po. B asicam ente, esse tem p o levava em consideração

a organização fam iliar e o ritm o de trabalho dom éstico. A orientação do tem po, em sum a, era

387
to d a realizada em dependência das tarefas diárias e cotidianas, com o exem plo, a colheita, o

cuidar do pastoreio e afins. C om o bem explicita T hom pson (1998, p. 271-272) este trabalho

orientado pelas tarefas:

[...] é mais humanamente compreensível do que o trabalho de horário marcado. [...]


parece haver pouca separação entre o “trabalho” e a “vida”. [...] não há grande senso
de conflito entre o trabalho e o “passar do dia”. [...] aos homens acostumados com o
trabalho marcado pelo relógio, essa atitude para com o trabalho parece perdulária e
carente urgência.

A s sociedades precedentes m anuseavam form as específicas de m edição do tem po que

incorporavam o trabalho com o parte integrante da vida. A fim de ilu strar esta relação,

T hom pson (1998, p. 269-270) cita alguns casos: os N uer, com o relógio diário sendo

classificado pelo gado; os N andi, para os q u ais o tem p o era contado de m eia em m eia-h o ra; em

M adagascar, o tem p o era m edido pelo “ cozim ento do arroz” ; no C hile, o tem po era m edido em

“ credos” . T odavia, T hom pson (1998, p. 271) deixa claro que o tem po orientado pelas tarefas

só é possível em sociedades pequenas: “ [...] esse descaso pelo tem po do relógio só é possível

num a com unidade de pequenos agricultores e pescadores, cuja estrutura de m ercado e

adm inistração é m ínim a e pela qual as tarefas diárias [...] parecem se desenrolar, pela lógica da

n ecessidade.”

À vista disso, pode-se constatar que o tem po orientado pelas tarefas é caracterizado

tan to po r um a ausência de hierarquias, com o po r um ritm o “ natural” e irregular de trabalho

hum ano. O u seja, essas sociedades pequenas dividiam suas tarefas de acordo com as

n ecessidades vigentes. C om o exem plo, T hom pson (1998, p. 271) cita u m a com unidade de

agricultores que pensa ser natural “trab alh ar do am anhecer até o crepúsculo” nos m eses da

colheita. Isto porque se esses agricultores não colherem o grão no período correto haverá

prejuízos para sua própria subsistência.

A ssim , nota-se que não existe um a distribuição fixa dos trabalhos e das funções, tendo

em vista que um a época pode ser de colheita, e outra de pastoreio. Fora isso, T hom pson (1998,

p. 271) tam bém observa que além dos trabalhos rurais - com o cuidar das ovelhas na época do

p arto e protegê-las dos predadores, o rdenhar as vacas e os dem ais - existem trabalhos industriais

de orientação pelas tarefas. C itando casos análogos, T hom pson descreve a produção de ferro e

o cuidado com as fornalhas, bem com o sobre a ocupação de cuidar do carvão e não d eix ar que

o fogo se espalhe pelas turfas.

A p artir da introdução das relações propriam ente capitalistas e, po r conseguinte, da

com pra e venda da força de trabalho, constata-se um a perceptível m udança na concepção, bem

com o na utilidade do tem po. A relação do em pregador e do em pregado, m ediada pelo dinheiro,

388
atua e m odifica o trabalho. Se outrora o tem po era orientado pelas tarefas, agora o trab alh o de

horário m arcado ganha peso. A relação, até m esm o pacífica com o tem po, tran sfo rm a-se em

um terreno de disputas e controle sobre o tem p o do trabalhador. T hom pson (1998, p. 272)

esclarece com o a com pra e a ven d a da força de trabalho altera a definição de tem po:

Aqueles que são contratados experienciam uma distinção entre o tempo do


empregador e o seu ‘próprio’ tempo. E o empregador deve usar o tempo de sua mão-
de-obra e cuidar para que não seja desperdiçado: o que predomina não é a tarefa, mas
o valor do tempo quando reduzido a dinheiro. O tempo agora é moeda: ninguém passa
o tempo, e sim gasta.

P ara m ais, u m a diferença m arcante entre o trab alh o orientado por tarefas e o trabalho

m arcado pelo horário é o ritm o de trabalho. E nquanto o trabalho dom éstico detinha um a

m ultiplicidade de tarefas com um tem po de execução variável, o trabalho industrial passa a ser

realizado em um am biente de sincronização das tarefas e com um cronogram a preciso. D esse

m odo, argum enta T hom pson (1998, p. 280) que a irregularidade característica de padrões de

trab alh o antes da indústria foi sendo substituída por um a disciplina de trab alh o m ais eficiente.

L ogo, o padrão de trab alh o dom éstico era intensam ente irregular - se com parado ao novo ritm o

de produção - , posto que os trabalhadores alternavam entre “ atividade intensa e ociosidade” .

D iante disso, o trab alh o é m odificado por um novo costum e que atrela o tem po ao

dinheiro. Segundo T hom pson (1998, p. 289), essa nova lógica de trabalho transform a a

“ m edição do tem po com o m eio de exploração da m ão-de-obra” . Isto significa que o em pregador

b u sca o lucro m áxim o sobre seus em pregados através de um cronogram a extenso de horas, com

b aixos salários e com um a sincronização de tarefas. O m ais im portante não é o ritm o de trabalho

segundo a necessidade, ou segundo a natureza, e sim, um ritm o de trabalho exaustivo que

“ extraía” to d a a capacidade de produção do trabalhador. A ideia do m odelo industrial é

hierarq u izar o trabalho, controlar o tem p o de ócio e produção do trabalhador, im plem entar os

delatores e as m ultas. E nfim , é im p o r um u so -econôm ico-do-tem po com um trabalho

disciplinado.

E ntretanto, é m ister situar o ritm o de trabalho irreg u lar em seu contexto

socioeconôm ico. C onform e T hom pson (1998, p. 281-283), o trab alh o na Inglaterra, até m eados

do século X V III, era observado com o u m a prática desprovida de assiduidade. O u m elhor

dizendo, o trab alh o detinha de um a irregularidade legitim ada pelos costum es e hábitos da época.

C om o exem plo, a “ Santa S egunda-F eira” , que n ad a m ais era do que um dia livre das obrigações

laborais. O bviam ente que a “ Santa Segunda-F eira” não era m eram ente um artificio de fu g ir do

trabalho, m as sim um costum e popular do descanso.

389
T hom pson realça a reflexão se esse ritm o de trab alh o - regulado pelo próprio hom em

- não seria um ritm o natural de trabalho hum ano. O seu objetivo é destacar que a transição das

sociedades pré-industriais para o m odelo industrial é rodeada de fatores culturais. O enfoque

não deve p riorizar som ente para o âm bito econôm ico. O desenvolvim ento industrial e a

concom itante m udança nas relações produtivas escapam do cam po econôm ico e invadem o

cam po cultural. D e acordo com T hom pson (1998, p. 288-289):

A ênfase da transição recai sobre toda a cultura: a resistência à mudança e sua


aceitação nascem de toda a cultura. Essa cultura expressa os sistemas de poder, as
relações de propriedade, as instituições religiões, etc., e não atentar para esses fatores
simplesmente produz uma visão pouco profunda dos fenômenos e torna a analise
trivial.

O desenvolvim ento das relações capitalistas de produção prom oveu m uito m ais do que

transform ações econôm icas. A s m udanças no cam po produtivo eram , ao m esm o tem po,

m udanças no cam po cultural. N ovas relações de produção significavam novos hábitos. A

m udança dos costum es era concretizada através da “ divisão de trabalho, supervisão de trabalho,

m ultas, sinos e relógios, incentivos em dinheiro, pregações e ensino, supressão das feiras e dos

esportes” (T H O M P SO N , 1998, p. 297). O utros m eios de concretizar a internalização da

disciplina de trabalho na vida dos ingleses eram po r interm édio dos serm ões, pregações,

incentivos capitalistas, e até m esm o pela educação. A propósito, T hom pson (1998, p.298)

questiona até que ponto essa internalização de fato ocorreu, tendo em vista que m uitas práticas

culturais do século X V III sobreviveram .

A inda assim , p ercebe-se que a passagem do trab alh o reg u lar im pele um a alteração dos

hábitos e costum es. U m dos fatores prim ordiais para tudo isso acontecer foi a ética puritana.

C om o alinham ento do p uritanism o aos valores do capitalism o, as adm oestações e os serm ões

são redirecionados p ara duas concepções: a adm inistração eficiente do tem po - ou seja, m ais

u m a insistência da equação “tem p o -d in h eiro ” - e a brevidade da vida com o Juízo Final. Essas

duas ideias sobre o tem po serviram para introjetar na m ente dos ingleses, aos poucos, u m a nova

fo rm a de pensar, e tam bém de agir, sobre o tem po. C om o destaca T hom pson (1998, p. 302)

sobre a ética puritana e o capitalism o:

O puritanismo, com seu casamento de conveniência com o capitalismo industrial, foi


o agente que converteu as pessoas a novas avaliações do tempo; que ensinou as
crianças a valorizar cada hora luminosa desde os primeiros anos de vida, e que saturou
a mente das pessoas com a equação ‘tempo é dinheiro’.

A inda sobre essa questão, T hom pson (1998, p. 295) relata os ataques do puritanism o

aos costum es de ociosidade e à m oral p opular sobre trabalho:


390
Não se pode afirmar que haja algo radicalmente novo na pregação da diligência ou na
crítica moral da ociosidade. Mas há talvez um novo tom de insistência, uma inflexão
mais firme, quando esses moralistas que já tinham aceito a nova disciplina para si
mesmos e passaram a impô-la aos trabalhadores.

O utro artifício de interiorizar, lentam ente, a nova disciplina do trabalho foi com a

criação de escolas. A educação no século X V III, a p artir da análise de T hom pson (1998, p.

292), pode ser entendida com o “um trein am en to para adquirir o ‘h ábito do tra b a lh o ’” . Em

outros term os, isso significa que a escola e a educação m inistrada nesses am bientes eram

ferram entas de “ adestração” ao trabalho. E ra na escola que a criança, de sde m uito nova,

aprendiam sobre disciplina, pontualidade e assiduidade: “u m a vez dentro dos portões da escola,

a criança entrava no universo do tem p o disciplinado” (T H O M P SO N , 1998, p. 293).

O utro m ecanism o explorado para a aceitação dos trabalhadores dos novos costum es

de trabalho foram os incentivos salariais. Junto a isso, tam bém tem os o uso das cam panhas de

expansão de consum o. C orroborando com T hom pson (1998, p. 299): “ [...] à m edida que a

R evolução Industrial avança, os incentivos salariais e as cam panhas de expansão de consum o

[...] são claram ente eficientes” . P o r conseguinte, T hom pson aponta que todas essas form as de

persuasão do trab alh ad o r foram eficientes po r conta do resultado de gerações depois. D e outro

m odo, o trab alh ad o r industrial inglês do século X IX é, de form a direta, fruto dessa

transform ação de m entalidade sobre a relação tem po-trabalho:

Por volta das décadas de 1830 e 1840, [...] o trabalhador industrial inglês se distinguia
de seu colega irlandês, não só pela maior capacidade de trabalho, pela regularidade,
pelo dispêndio metódico de energia, e talvez também pela repressão, não dos
divertimentos, mas da capacidade de relaxar segundo os hábitos antigos desinibidos.
(THOMPSON, 1998, p. 299).

A ssim ilar com o os processos de trabalho industrial são opostam ente contrários ao

trab alh o irregular pré-industrial é um a form a de entender e determ inar as condições de trabalho

sob a lógica capitalista; e concom itante, com preender o porquê de os trabalhadores resistirem

tanto. A final, o que T hom pson (1998, p. 293) se esforça para dem onstrar é que a disciplina de

trab alh o teve im pactos diretos nos costum es populares vigentes e m otivou disputas e conflitos:

“ A investida, vinda de tantas direções, contra os antigos hábitos de trab alh o do po vo não ficou

certam ente sem contestações” . O hábito do trabalho regular e disciplinado só foi sendo

consolidado ao decorrer do tem po. N ã o foi um processo de absorção im ediata e pacífica. O

ataque aos hábitos populares - com o feriados paroquiais, festas anuais das sociedades de

am igos, o costum e da m esa de chá ao fim da tarde e outros - foram enfrentados pela população

inglesa do X V III com m uitas resistências e lutas.


391
E m sum a, a ideia de “tem p o é dinheiro” surgiu com a m udança da m entalidade do

trab alh o orientado pelas tarefas para a nova lógica capitalista industrial. N otoriam ente, esse

processo dem orou anos para ocorrer, sendo que em alguns locais ainda existem o ritm o irregular

do trabalho. O tem po passou a ser caracterizado de m aneira totalm ente diferente: “ na sociedade

capitalista m adura, todo o tem p o deve ser consum ido, negociado, utilizado; é um a ofensa que

a força de trabalho m eram ente ‘passe o te m p o ’” (T H O M P SO N , 1998, p. 298).

D esse m odo, as sociedades industriais m aduras possuem u m a adm inistração eficiente

do tem po, ju n to a u m a divisão m arcante entre o trabalho e a vida. Os valores que devem ser

propagados para um desenvolvim ento socioeconôm ico são: a im pessoalidade, a racionalidade,

a pontualidade, a assiduidade e a disciplina. O em prego útil do tem po torn a-se u m a com pulsão,

na m edida que a ideia do tem po sinônim o de dinheiro penetra a m entalidade social. O lazer e a

ociosidade se convertem em problem as para a Inglaterra pós-industrial. (T H O M P SO N , 1998,

p. 302)

A e c o n o m ia m o ra l

“A econom ia m oral da m ultidão inglesa no século X V III” que tam bém com põe a obra

Costumes em comum, foi p u b licado originalm ente em 1971, tam bém na revista Past and
present. E n tre os assuntos abordados, T hom pson destaca as lutas sociais diante da nova
econom ia de m ercado não regulado. E ssa nova form a de m ercado b asead a no laissez-faire vai

de encontro à econom ia m oral, a qual perm itia um am paro aos pobres enquanto regulava o

m ercado de cereais. F undam entada em um a ética p o p u lar própria, a econom ia m oral se utilizava

de alguns elem entos do paternalism o para leg itim ar suas noções de econom ia201.

A dem ais, é nesse artigo que T hom pson desenvolve a id eia de que o m otim de fom e

era um a ação articulada e com plexam ente planejada. C om o elucida M acedo (2017, p. 63), o

em bate entre econom ia m oral e a nova econom ia de m ercado teve im pactos significativos para

a Inglaterra do XV III:

[...] ‘a gente comum’ fez da praça de mercado uma ‘arena de guerra de classes’. Sua
resistência ativa ao laissez-faire teve papel relevante na regulação do mercado,
contribuindo, provavelmente, para evitar clássicas crises de subsistência na Inglaterra

201 Consoante com a tese de Macedo (2017, p.63), a economia moral dos pobres “[...] seria uma reconstrução
seletiva de um paternalismo constituído por elementos que poderiam ser remontados até o século XVI. De maneira
ativa e autônoma, a multidão extraía ‘dele todas as características que mais favoreciam os pobres e que ofereciam
uma possibilidade de cereais mais baratos’. Assim, ao se analisar a ação direta e coletiva da multidão, que era
categoricamente reprovada pelos ‘valores da ordem que sustentavam o modelo paternalista’, poder-se-ia se
constatar que ela era sancionada por uma ética popular fundada em ‘noções gerais de direito’”
392
do século XVIII. Ainda que o motim enquanto protesto social não apresentasse
‘intenções políticas manifestas e articuladas’, com exceção, talvez, de um curto
período no fim do século XVIII, a ‘economia moral’ que o informava ‘supunha noções
definidas, e apaixonadamente defendidas, do bem-estar comum’.

A o contrário de m uitos h istoriadores sociais, T hom pson não coloca o desenvolvim ento

econôm ico com o objeto central de suas pesquisas. É claro que existem elem entos econôm icos

fundam entais nos estudos, m as, especialm ente em seus artigos produzidos ao longo da década

de 1970 e 1980, o norteador é o costum e, e não a econom ia. D esse m odo, T hom pson era um

ferrenho crítico da visão espasm ódica da histó ria popular, a qual obtinha um a análise histórica

dos acontecim entos apenas pela via econôm ica, ten d o o apagam ento das com plexidades

culturais. T hom pson questiona a visão espasm ódica de que os m otins eram resultados

exclusivam ente da fom e:

Um sintoma da morte definitiva é termos sido capazes de aceitar por tanto tempo um
ponto de vista “economicista” dos motins de fome, como uma reação direta,
espasmódica, irracional à fome - um ponto de vista, em si, produto de uma economia
política que fez do salário o nexo das reciprocidades humanas (THOMPSON, 1998,
p. 202).

T hom pson (1998, p. 152) argum enta que o m otim era “u m a fo rm a altam ente com plexa

de ação p opular direta, disciplinada e com objetivos claros” . C om o T hom pson (1998, p. 191)

explana inúm eras vezes em Costumes em Comum, os protestos de fom e não podem ser

analisados longe de seu contexto sociocultural: “ A questão não é sim plesm ent e que, em tem pos

de escassez, os preços fossem determ inados po r m uitos outros fatores além das m eras forças de

m ercado [...]. É m ais im portante observar o contexto socioeconôm ico total em que operava o

m ercado, bem com o a lógica da pressão da m u ltid ão ” . Já para os econom icistas, o m otim de

fom e - com o o próprio nom e esclarece - seria apenas fruto das “ rebeliões do estôm ago” . P o r

conseguinte, à m edida que a visão th om psoniana é legitim adora, a noção econôm ica dos m otins

era sim plesm ente po r conta do fator instintivo da fom e, e, portanto, m onocausal. Em

contrapartida aos econom icistas, T hom pson dem onstra que os m otins não ocorriam som ente

pela alta dos preços. E le argum enta que existia um consenso p o p u lar que legitim ava a cobrança

po r regulação dos preços, quer dizer, existiam costum es que legitim avam essas práticas:

É certamente verdade que os motins eram provocados pelo aumento dos preços, por
maus procedimentos dos comerciantes ou pela fome. Mas essas queixas operavam
dentro de um consenso popular a respeito do que eram praticas legítimas e ilegítimas
na atividade do mercado, dos moleiros, dos que faziam pão, etc. (THOMPSON, 1998,
p.152).

39 3
N ota-se que T hom pson não nega a im portância da fom e e dos fatores econôm icos. N ão

obstante, sua interpretação m ostra que essa perspectiva não pode ser to m ad a de form a isolada.

D estarte, “ a palavra m otim é dem asiada p equena para abarcar [...]” (T H O M P SO N , 1998, p.

153) to d a a com plexidade em volta dos costum es ingleses do X V III. D a m esm a form a que os

m otins possuíam u m a lógica p rópria dentro da sociedade inglesa setecentista, a econom ia

possuía seu próprio significado, transform ando-se em u m a econom ia m oral da plebe ou dos

pobres. E ssa econom ia é um com portam ento econôm ico ditado a p artir dos valores m o rais ou

das norm as culturais. C om o elucida T hom pson (1998, p. 152):

[...] uma visão consistente tradicional das normas e obrigações sociais, das funções
econômicas peculiares a vários grupos na comunidade, as quais, consideradas em
conjunto, podemos dizer que constituem a economia moral dos pobres. O desrespeito
a esses pressupostos morais, tanto quanto a privação real, era o motivo habitual para
a ação direta.

A dem ais, a conduta não-econôm ica baseada nos costum es da econom ia m oral estava

diretam ente em conflito com “ às inovações técnicas ou à racionalização do trabalho que

am eaçam desintegrar os costum es” (T H O M P SO N , 1998, p. 21). Isto porque a econom ia m oral

estava em confronto com a econom ia de m ercado inovadora, que vinha sendo aplicada ju n to

aos novos preceitos de tem po e trabalho. R essalta-se ainda que a econom ia m oral não era

política, e nem tam pouco apolítica, na m edida que encontrava certo apoio na tradição

paternalista. D essa form a, T hom pson (1998, p. 193) argum enta que o século X V H I evidencia:

“ [...] um padrão de protesto social que deriva de um consenso a respeito da econom ia m oral do

bem -estar público em tem pos de escassez” . E acrescenta: “E m geral, não adianta exam iná -lo

procurando intenções políticas m anifestadas e articuladas, em bora de vez em quando elas

apareçam po r pura coincidência” .

Sendo assim , a econom ia m oral dos pobres é caracterizada pela defesa do “ju sto preço”

para os m ais pobres. A venda de produtos, principalm ente dos cereais, deveria ser realizada de

u m a m aneira em que privilegiasse a com pra aos pobres. T odo o processo de venda de

m ercadorias precisava ser feito de m odo direto e sem um com prador interm ediário. Isto porque

o pobre conseguia preços m ais ju sto s ao negociar diretam ente com o fornecedor. E ssa cultura

p o p u lar de m ercado destoava do laissez-faire ao defender o bem -estar dos m ais pobres e um a

regulam entação do m ercado que beneficiasse a cam ada popular. D e acordo com T hom pson

(1998, p. 18):

As normas defendidas não eram as mesmas proclamadas pela Igreja ou pelas


autoridades; eram definidas dentro da própria cultura plebeia, e os mesmos rituais de
desonra usados contra um notório transgressor de regras de conduta sexual podiam

394
ser aplicados contra o fura-greve, contra o proprietário rural e seus couteiros, o
inspetor de tributos, o juiz de paz.

A propósito, a cultura da econom ia m oral encontrava b ases tanto no paternalism o das

autoridades, com o no conservadorism o das tradições. T hom pson (1998, p. 152) afirm a que a

cultura cam ponesa era fragm entada e diversificada, à m edida que reunia diferentes elem entos.

O conservadorism o era recorrentem ente utilizado pela econom ia m oral para legitim ar as

p ráticas de com pra e v en d a sem interm ediários, com o tam bém a fixação dos preços dos cereais.

Sobre o conservadorism o, T hom pson (1998, p. 19) reforça: “E ssa era u m a cultura de form as

conservadoras, que recorria aos costum es tradicionais e procurava reforçá-los. A s form as são

tam bém não racionais: não apelam a razão” . Isto é, existe u m a lógica própria e específica de

funcionam ento dentro da econom ia m oral dos pobres e de to d a a cultura p o p u lar do X V III. É

de sum a im portância destacar que o costum e dos pobres era um a form a própria de regulam entar

a v id a diária. T hom pson (1998, p. 19) explica que a lei era, m uitas vezes, ineficaz; sendo que o

costum e p opular era responsável po r tra z er norm as: “ A lei pode estabelecer os lim ites tolerados

pelos governantes; porém , na Inglaterra do século X V III, ela não penetra nos lares rurais, não

aparece nas preces das viúvas, não decora as paredes com ícones, nem dá form a a perspectiva

de vida de cada u m ” .

O bserva-se que, a p artir da introdução do capitalism o industrial, houve a passagem da

econom ia m oral para u m a nova lógica de econom ia de m ercado, m ovida pelo lucro e

acum ulação de capital. N esse ínterim , em erge o conflito entre o tradicionalism o e a nova

política econôm ica liberal. E ssa lu ta entre plebeus e aristocracia se evidenciou na discussão

sobre as Leis dos C ereais202 e sucessivam ente, do preço do pão. O pão de farinha b ran ca era

essencial na alim entação dos ingleses, seja pelo seu vigor, ou pelo costum e alim entar. O pão

integral, conhecido com o pão escuro ou preto, não era desejado pela população. P or isso, que

quando a Lei do P ão Preto, ou Lei do V en en o 203, foi estabelecida em 1880, inúm eros levantes

foram realizados pelas cam adas m ais populares. A revolta foi tan ta que, em m enos de dois

m eses, essa lei foi revogada.

N ão obstante, o preço do pão não era o único fato r que colocava as classes em conflito.

A m udança de um m ercado regulam entado e direto - com o intuito de ben eficiar os pobres - ,

202 As leis dos Cereais, em concordância com Thompson (1998, p. 155-160), são um conjunto de regulamentações
acerca do comércio de cereais. Seja a exportação como a importação de cereais eram completamente controladas,
sendo proibidas ou taxadas em muitos casos. Além disso, o mercado interno de cereais era controlado por meio da
fixação dos preços. O mercado de trigos era regulamentado para que os pobres comprassem primeiro, e somente
depois os comerciantes e os demais. Na prática, isso só ocorria em algumas regiões da Inglaterra, não sendo o caso
de boa parte do território.
203 Sobre a Lei do Pão preto ou Lei do Veneno, Thompson (1998, p. 153-155) diz que ela proibia os moleiros de
fazer qualquer outra farinha a não ser a integral. Isto gerou uma revolta imediata da população.
395
para um m ercado com com pradores interm ediários, foi um dos grandes responsáveis pelas

revoltas plebeias. Isso em razão de que o m ercado de trigos era regulam entado para que os

pobres com prassem prim eiro, e som ente depois, os com erciantes e os dem ais. E ssa prática era

reconhecida tan to pela lei estatuária, com o pela lei consuetudinária e pelo m odelo paternalista.

D e acordo com T hom pson (1998, p. 155-156):

O modelo paternalista existia no corpo desgastado da lei estatuária, bem como no


direito consuetudinário e no costume. [...] o mercado deveria ser, na medida do
possível, direto, do agricultor para o consumidor. [...] os mercados deveriam ser
controlados; não se podia vender antes de horas determinadas, quando soavam um
sino; os pobres deveriam ter a oportunidade de comprar os primeiros grãos, a farinha
fina ou a grossa.

C om o desenvolvim ento das relações propriam ente capitalistas, o m ercado direto e

regulado foi sendo substituído, aos poucos, pelo m ercado dos com pradores interm ediários. N o

início, isso ocorreu po r m eio da prática da am ostragem , com os fazendeiros passando a evitar

o m ercado e a negociar com interm ediários na sua própria residência. A lgum as cargas de cereais

ainda eram levadas ao m ercado regulam entado com o in tuito de m anter as aparências.

Posteriorm ente, as leis que proibiam as com pras antecipadas foram revogadas, privilegiando

assim , a oferta e a procura.

A consequência dessa econom ia liberal repressiva aos costum es dos pobres foi um

desencadear de m otins e hostilidades aos negociantes. U m exem plo são os j á supracitados

m otins p o r causa dos preços abusivos de cereais. T hom pson (1998, p. 164) explana que as

revoltas eram ainda m ais hostis nos períodos de aparente fartura das colheitas: “ O s m otins de

setem bro ou outubro eram em geral provocados quando os preços não baixavam depois de um a

colheita aparentem ente abundante, indicando um confronto consciente entre o produtor

relutante e o consum idor irado” . P osto isto, a rebeldia contra os valores abusivos oco rr ia em

defesa do costum e plebeu; ou m elhor dizendo, a econom ia m oral oferecia um elem ento

tradicional de conservar os preços em apenas um valor, e os plebeus do século X V III queriam

perp etu ar essa ordem ao defender o costum e.

O utro exem plo análogo de m anifestações da fúria p opular foram as revoltas contra as

padarias e m oinhos. A insatisfação p opular com as padarias era em virtude dos preços e da

pesagem . T hom pson (1998, p. 175) determ ina que “ a m ultidão com bastante frequência ‘fixava

o p reç o ’ do p ão ” . O aum ento repentino dos preços, acarretou vários m otins. U m caso

em blem ático foi a L uta de Shude-H ill de 1757, onde a tu rb a pediu o fim dos direitos senhoriais

dos donos dos m oinhos e exigiu a queda dos preços. D e acordo com T hom pson (1998), a

p o pulação frequentem ente reclam ava dos m oleiros e de suas p ráticas para ganharem m ais

396
dinheiro - com o exem plo, m istu rar farinha v elh a com a nova. H ouve diversas tentativas de

regulam entar os m oinhos com leis, com o a Lei M ille r s Toll. E ssa lei propunha regular de form a

m ais rigorosa as práticas, pesos e m edições dos m oinhos.

E ntretanto, T hom pson (1998, p.176) explicita que as am ostras m ais im portantes de

revoltas foram as dos m ineradores, tecelões e operários:

Se procurarmos a forma característica da ação popular, não devemos considerar bate-


bocas junto às padarias de Londres, nem mesmo as grandes contendas provocadas
pelo descontentamento com os grandes moleiros, mas as “rebeliões do povo”
(especialmente em 1740, 1756, 1766, 1795 e 1800) nas quais se destacaram os
mineiros de carvão, os mineiros de estanhos, os tecelões e os trabalhadores das
malharias.

C onjunto a isso, existe o apelo popular contra a exportação dos grãos para os

estrangeiros. Segundo T hom pson (1998, p. 168): “ A s exportações para os estrangeiros

subvencionadas eram as que p ior ressentim ento provocava. O estrangeiro era visto com o

alguém que recebia os grãos a preços, às vezes, m ais b aixos do que os praticados no m ercado

inglês” . A lém de tudo, se anteriorm ente a econom ia m oral era im buída de princípios

paternalistas, com os m otins pela fixação dos preços dos cereais verem os um rom pim ento

decisivo entre o paternalism o e a econom ia m oral. E sse processo é decorrente da reprovação

p aternalista da ação direta coletiva sancionada pela ética popular.

C onquanto, é preciso deixar explícito que a ação fem inina foi essencial para a

organização dos m otins. T hom pson aponta que quase sem pre, eram as m ulheres que

com eçavam as revoltas po r conta dos preços abusivos. E las tam bém “eram naturalm ente as

m ais envolvidas com as negociações face a face no m ercado, as m ais sensíveis ao significado

dos preços, as m ais experientes em detectar peso insuficiente ou qualidade inferior” (1998, p.

184). D estaca-se que o agenciam ento fem inino não pode ser renegado ou m inim izado nos

processos socioeconôm icos da Inglaterra m oderna.

É de sum a im portância a com preensão de que as rebeliões populares eram feitas com

a finalidade de fixar os preços. A fú ria p o p u lar era incitada, basicam ente, nos períodos de

escassez de alim entos e de forte carestia. E m oposição à ideia de que os protestos eram

desorganizados e sem m otivações suficientes, T hom pson (1998, p. 176) rebate: “ O notável

dessas ‘in su rreiç õ es’ é, prim eiro, a sua disciplina, e, segundo, o fato de m ostrarem um padrão

de com portam ento cuja origem devem os b uscar centenas de anos antes” . A ação central coletiva

era bem direcionada e organizada, no m om ento em que o foco era a fixação dos preços, a fim

de g arantir a subsistência.

397
Considerações finais

A o d iscutir a Inglaterra do século X V III, a análise de T hom pson sobre os costum es,

seja investigando a m udança em torn o da percep ção do tem p o ou os m otins de fom e, se opõe

ao reducionism o econôm ico. L onge de apresentar um a leitura unicam ente econôm ica dos fatos,

ele integra a cultura na investigação dos processos históricos. C om o T hom pson (1998, p. 304)

bem aponta, as m udanças econôm icas acom panham m udanças culturais:

Pois não existe desenvolvimento econômico que não seja ao mesmo tempo
desenvolvimento ou mudança de uma cultura. E o desenvolvimento da consciência
social, como o desenvolvimento da mente de um poeta, jamais pode ser, em última
análise, planejado.

A historiografia de T hom pson evidencia com o os hábitos e costum es dos plebeus do

século X V III são alterados diante das novas form as de produção. A o d iscutir o trabalho

industrial, problem atizou-se as diferenças do trabalho orientado po r tarefas e o trabalho

m arcado pelo horário. E ssa conversão no m odo de trabalho teve reflexos na form a com o a plebe

enxergava e vivenciava o tem po. O tem p o “natural” é trocado por um tem po orientado pelo

relógio e pela m áxim a de “tem po é dinheiro” . C om o afirm a E llen W ood (2006, p. 66),

T hom pson foi “ capaz de identificar os significados sociais das tradições populares em m utação,

traçan d o as operações de classe nessas m udanças de continuidade” .

A o d iscutir os cham ados m otins da fom e, T hom pson tam b ém foge da visão

econom icista e evidencia to d a u m a com plexidade de relações culturais que fundam entavam as

revoltas populares. O s protestos sociais contra a nova form a de econom ia liberal eram um

consenso entre a população m ais pobre, um a m aneira de resistir às m udanças culturais im postas

com a nova lógica capitalista. A econom ia m oral, vinculado ao paternalism o e ao

tradicionalism o, garantia um m ercado com preços fixos que beneficiavam os pobres. A ssim , os

plebeus apoiavam a econom ia m oral não só pelo seu caráter de regulam entação do m ercado

segundo a m ultidão, m as tam bém pela proteção aos costum es. C om o argum enta T hom pson

(1998, p. 19): “ a cultura p opular é rebelde, m as o é em defesa dos costum es” . P o r m ais que a

nova eco nom ia im punha costum es inéditos, isso não ocorre sem m uita luta po r parte da turba.

T hom pson é reconhecido por trazer o costum e para o centro do debate, evidenciando-

o com o cam po de disputas e conflitos, no qual plebeus e patrícios tentavam se im por. A o se

distanciar de um a historiografia econom icista, T hom pson articula o conceito da luta de classes

no cam po sociocultural. A ssim , com o observa M aced o (2017, p. 111), sua h istoriografia possui

u m a enorm e relevância para os debates m arxistas em torn o do eixo cultural, em virtude de

398
“ reiterar e desenvolver sua concepção de cultura com o fenôm eno dinâm ico, conflitivo,

relacionai e contextual, deixando evidente sua opção, fundada no m aterialism o histórico, por

u m a h istória social da cultura” .

R e fe rê n c ia s

M ACEDO , Francisco Barbosa de. O (re) fazer-se da historiografia de E. P. Thompson na


produção discente do Programa de Pós-Graduação em História da Unicamp (1982-2002). 2017.
Tese (Doutorado em História). FFLCH -U SP - São Paulo, 2017.
M A TTO S, M arcelo Badaró. E.P. Thompson e a tradição de crítica ativa do materialismo
histórico. Editora UERJ, Rio de Janeiro, 2012. p. 117-207.
M ELO JÚNIOR, João Alfredo da Costa Campos. EdwardPalmer Thompson (1924-1993). In:
PA RAD A, M aurício (org.). Os historiadores clássicos da história. Vol. 2: de Tocqueville a
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W OO D, Ellen M eiksins. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico.
São Paulo: Boitem po editorial, 2006.

399
“PELO FUTURO DO BRASIL”: O DISCURSO DE MEMÓRIA CÍVICA
DO GUIA DO ESCOTEIRO (1925)

IU R Y G A B R IE L A M O R IM D E A R A Ú JO 204

N O T A S IN T R O D U T Ó R IA S

A im prensa foi um im portante instrum ento utilizado para a dissem inação da proposta

do escotism o, não apenas no B rasil, m as em diversas partes do m undo. A través de jo rnais,

revistas e livros as notícias e orientações sobre o que era e com o p raticar o escotism o chegava

aos diversos p aíses e localidades. N o B rasil, durante o período inicial de inserção e expansão

do escotism o, principalm ente no decorrer das décadas de 1910 e 1920, não foi diferente. C om o

exem plificado por B lo w er (1994) desde os prim órdios do escotism o b rasileiro a im prensa se

fez de sum a im portância para divulgação de ideias em torno o m ovim ento escoteiro.

A s prim eiras notícias de inserção do escotism o em território nacional ocorreram por

v o lta do ano de 1910, po r interm édio de oficiais da M arinha do B rasil no R io de Janeiro. A

p artir de então, e tal com o esses, diversas associações voluntárias, igrejas e E stado passaram a

p ropagar a proposta educativa criada pelo general inglês R o b ert B aden-P ow ell iniciada em seu

país no ano de 1908 e trazid a po r aqueles oficiais, fosse po r m eio de instalação de grupos de

escoteiros, fosse por m eio de im portação de u niform es e m ateriais para prática escoteira,

inform ativos etc. (Cf. B L O W E R , 1994).

C om a expansão para diversos E stados brasileiros e com criação de am plas associações

tom ou-se com o necessário à época publicizar m ateriais em língua nacional para os escoteiros

brasileiros, de m odo a “ guiá-los” nas práticas do escotism o. N esse contexto um dos principais

sujeitos interessados na difusão dos fundam entos e orientações em torno do escotism o no país

foi então o alm irante da M arinha do B rasil B enjam in de A lm eida Sodré, autor de co lu n as em

revistas brasileiras e do livro “ G uia do E scoteiro” ainda durante a prim eira m etade do vigésim o

século.

O bservando tais dados acerca do passado e a p artir do m eu lugar do presente enquanto

pesq u isad o r interessado na h istória do escotism o teci este trab alh o que teve po r objetivo analisar

o discurso de m em ória escoteira cívica desta obra proposta pelo então m ilitar, escoteiro e

204 Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-graduação em
Educação (PPGEd/UFRN). Pesquisa sob financiamento da CAPES.
400
futebolista B enjam in Sondré, sob pseudônim o de V elho Lobo, p u blicada pela Im prensa N aval

no ano de 1925, e que foi reeditada nas três décadas seguintes.

P ara construção deste trabalho, problem atizam os com o fonte histórica o próprio "G uia

do E sco teiro ” , m ais especificam ente o seu "C apítulo 14” , parte que trata do civismo, a p artir da

versão fac-símile da sua prim eira edição. E sta versão foi p u blicada no ano de 1994 pelo C entro

C ultural do M ovim ento E scoteiro. D e m odo geral, nesta obra se indicavam as diferentes

técn icas e fundam entos do escoteirism o, ou escotism o, term os correspondentes utilizados.

M etodologicam ente, orientei-m e através da análise do discurso proposta por M ichel

F o u cau lt (2020) observando na m aterialidade desta obra os caracteres de civism o que

constituíam o discurso de Sodré, que p o r sua vez foi evidenciado com o enunciado em seu

aspecto de conservação e repetibilidade, com o tam bém alinhado a outros cam pos discursivos

com o o da educação escolar republicana. T am bém foram im portantes para a escrita deste texto

algum as as com preensões e conceitos tais com o o de cultura escoteira de N ascim en to (2008)

com o “ [...] um conjunto de teorias, ideias, princípios, norm as, pautas, rituais, inércias, hábitos

e práticas. F orm as de fazer e pensar, m entalidades e com portam entos sedim entados sob a form a

de tradições regularidades, regras do jo g o ” . D e m em ó ria conform e N o ra (1993), em que se

p ercebe esta com o um processo construído po r sujeitos de um tem po em interação, seja ela m ais

ou m enos conflituosa. E as com preensões em torn o do escotism o e civism o enquanto elem entos

engendrados e constituidores do cenário nacional republicano brasileiro, em bebido de

elem entos patrióticos que sugeriam a devoção pelos sím bolos oficiais nacionais desde a

infância, para tanto dialogam os com autores com o O liveira e L eandro (2017), M arta C arvalho

(2003) e A raújo e Soares Jú n io r (2019).

P o r fim , com preendi que na obra "G uia do E sco teiro ” se tentava propagar um discurso

de adoração e sacrifício pelo B rasil em nom e de unidade nacional que deveria ser apreendida

desde a infância pelos escoteiros. E um a vez que adultos com esp írito escoteiro alinhados ao

patriotism o poderiam construir o “futuro do Brasil".

U M G U IA A O A L C A N C E D E U M “ E S P ÍR IT O E S C O T E IR O ”

O escotism o em bora proposto com o um a prática educativa extraescolar não estava

alheio aos anseios educativos republicanos em v o g a durante as prim eiras décadas da R epública.

D esse m odo, enquanto ten tativa de orientação aos escoteiros, educadores e interessados no

escoteirism o, po r m eio da obra “ G uia do E sco teiro ” se b uscou p ro jetar um perfil de escoteiro

com o um cidadão deste tem p o que tentava se m odelar. H avia na época um desejo por um
40 1
[...] sujeito leal a seus direitos e deveres cívicos, morais, físicos e intelectuais para
que se tornasse cada vez mais útil para a sociedade que lhe demandava esforços para
construir uma nação que prosperasse diante das suas dificuldades, que demonstrasse
sua força e poder de constituidora de um tempo promoção da ‘paz’ e do respeito por
meio da subordinação, do disciplinamento, representado ainda por uma ‘figura
masculina ideal’ (ARAÚJO, SOARES JÚNIOR, 2020, p. 579).

E para isso era necessário que se com partilhassem inform ações que coadunassem com

esse ideário, que orientassem as p ráticas dos chefes e jovens escoteiros para ten tar in cutir um a

id eia de unidade nacional e tran sp o r um a im pressão de alinham ento da proposta escoteira nas

diferentes localidades do país.

N este aspecto reforça-se o entendim ento de Jorge N ascim ento quando este afirm ou

que "O s im pressos que trataram do m ovim ento escoteiro tiveram caráter inform ativo, instrutivo

e regulador da vida social, sobretudo nos aspectos m orais, além de serem ferram entas para a

form ação do hom em civilizado" (N A S C IM E N T O , 2008, p. 171). A obra ora analisada se

pretendia então enquanto potencial regulador po r instituir form as “ corretas” de e xecução do

escotism o. P o r m eio dela B enjam in Sodré explicava quais seriam as atividades que estavam

alinhadas à proposta escoteira, quais eram suas leis, fundam entos, cerim ônias, histórias,

norm as, dentre outros aspectos. O u seja, delineava u m a “ cultura escoteira” nacional.

A lém disso, buscava esculpir um a fôrm a de um “ espírito escoteiro” , por m eio do

delineam ento de virtudes que, para ele, um escoteiro e hom em do futuro deveria te r consigo em

sua m ente e corpo. Se dizia que o jo v em deveria “p raticar n aturalm ente” as virtudes da

generosidade, altruísm o, bondade, cortesia, cum prim ento do dever. E p ara desenvolvê-las o

escotism o deveria considerá-las em seus exercícios associando-as ao trabalho, sacrifício e

serviço pelo seu país.

V ale ainda destacar, conform e os escritos de Z uquim e C ytrynow icz (2002) que

n aquela década o escotism o b rasileiro assum ia cada vez m ais o entendim ento de ser um a

“ escola de civism o” . A o m esm o passo de que a associava às ideias organizadas po r B aden -

P ow ell para construção de sua p roposta de adestram ento e form ação do caráter fundam entada

em aspectos pedagógicos e psicológicos de sua época (Cf. Z U Q U IM ; C Y T R Y N O W IC Z , 2002).

O u seja, além dessas com plexas e diversas características apresentadas pelo “ V elho

L o b o ” no “ G uia do E sco teiro ” associadas às ideias do fundador do m ovim ento escoteiro B aden-

Pow ell, existia um destaque aos fundam entos cívicos que deveriam alicerçar e, assim , tentar

g estar este estado de espírito nas crianças e jovens. V ejam os no tópico a seguir com o o autor

expunha esse alicerce em evidência no seu discurso.

402
O “ V E L H O L O B O ” E A IM P R E N S A P E L O E S C O T IS M O

B enjam in Sodré, o V elho Lobo, foi um sujeito de am pla atuação educacional, m ilitar

e desportiva, dentre elas destaquei neste trabalho a sua atuação no e pelo escotism o através da

im prensa. E le escrevia para a revista no R io de Janeiro “ O Tico T ico” , por m eio da qual

divulgava am plam ente notícias acerca do m ovim ento escoteiro. C onform e V ergueiro (2008)

este im presso obteve am pla circulação nacional, se m anteve ativo por m ais de 50 anos e se

caracterizava po r m esclar aspectos com o o civism o, disciplina e patriotism o, caracteres estes

com partilhados com o escotism o. Percebi com isso então um a forte tentativa de Sodré para

enaltecer não apenas um a instituição escoteira, m as um m ovim ento educativo em seu aspecto

cívico, um a das características principais definidas po r seu fundador B aden-P ow ell.

A cerca da divulgação do escotism o neste im presso H erold Ju n io r (2015) explicou que

B enjam in Sodré foi o principal redator da coluna sobre o escotism o em “ O Tico T ico” .

C onform e o autor anteriorm ente citado

A coluna teve início com o título Escotismo. A partir de 25 de março de 1925 ela
passou a ser publicada com o título de Escoteirismo. Depois do número publicado em
19 de fevereiro de 1930 ela volta ao antigo nome, Escotismo. Houve uma grande
quantidade de textos sobre o escotismo publicados na revista e que não apareceram
na coluna em foco (HEROLD JUNIOR, 2015, p. 304).

Isso m ostrava que escotism o ganhava espaço nas páginas dos jo rn a is pelos escritos de

Sodré, porém não som ente. E n q u an to escritor divulgador do escotism o e m ilitar ele teve

abertura tam bém com a Im p ren sa N aval, ponto em que identifiquei com o um potencial

prom o to r de associação discursiva, a partir das explicações de F oucault (2020), considerando a

acentuada presença do caráter cívico presente em am bas as instituições, e que poderiam ser

percebidas entre obras escritas e atuação do “ V elho L obo” .

M ostra dessa abertura foi a recom endação pelo então M inistro da M arinha para

publicação do “ G uia do E sco teiro ” , livro de autoria de B enjam in Sodré no ano de 1925,

enfatizando-o pelo seu v alo r m oral e cívico (L O B O , 1994). Isso dem onstrava ser m ais um a

fo rm a deste autor de enunciar um ideal de escoteirism o, tal qual fazi a po r m eio da revista “ O

T ico T ico” . D e acordo com F oucault (2020), considerei então que Sodré dem onstrava um a

regularidade discursiva que se m anifestava po r m eio de diferentes m aterialidades im pressas.

N o que se refere a esta obra, dentre os fundam entos, técnicas, norm as e propostas

postas pelo autor constava um capítulo dedicado ju stam en te a este aspecto à época elogiado. O

décim o quarto capítulo da obra destacava a tríad e: patriotism o, civism o e espírito escoteiro,

403
sequenciando-as de form a a elucidar um fundam ento para a construção de um perfil de jovem .

Já isto no tó p ico anterior o ú ltim o desses elem entos, vejam os na sequência o que significava id

outros dois.

O prim eiro elem ento destacado por Sodré foi a Pátria. E m sua escrita ele introduzia o

tem a ten tan d o criar no leitor um a sensação saudosa po r m eio de um a provocação, vejam os:

Certamente amas aos teus, á tua casa, ao teu lar. E quanto te afastas por algum tempo
de lá, seguindo sozinho para o collegio interno, para o trabalho distante, ou para uma
viagem qualquer e que essa ausência se prolonga por muitos dias, não sentes uma viva
lembrança dos teus paes e irmãos, de tua casa, do teu jardim, da paysagem que te
cercava, do céo dos morros, dos caminhos por onde corria? (LOBO, 1994, p. 272).

O capítulo era iniciado com um a tentativa in clu ir o escoteiro em u m a atm osfera

patrió tica po r m eio da sensação de pertencim ento e recorrendo à descrição de um cenário inicial

de pacifism o. P artia do princípio do am or pela fam ília, dem onstrando que essa era a prim eira

das u nidades que deveria ser louvada, m esm o que estivesse distante fisicam ente. Seria

considerado honrado o hom em que dem onstrasse apreço e apego à casa e aos parentes, em

especial aqueles vistos com o sujeitos a serem prontam ente protegidos pelo hom em adulto, quais

fossem a m ãe e os irm ãos m ais novos. O que parecia ser um a tentativa para despertar um senso

de autorresponsabilidade no escoteiro pelos seus e pela m anutenção do cenário que deixara para

trás m om entaneam ente quando os estudos e o trabalho o cham assem .

A p artir dessa pequena unidade, o lar, cham ava-se atenção para que o jo v em

am plificasse esse senso de responsabilidade. G radativam ente ele ela instruído a adorar a sua

fam ília, depois os lares, a cidade, a natureza, os postos de trabalho, as pessoas de m esm a

nacionalidade e os sím bolos pátrios. E m seguida se definia na obra o que considerava com o

patriotism o: o exercício incansável de defender a Pátria. E esta teria um delineam ento definido

pelas instituições oficiais/governam entais.

C oncom itantem ente, sugeria que to d a e qualquer am eaça ao posto oficialm ente com o

essa “b rasilidade” deveria ser fervorosam ente com batido. Indicava que o jo v em agisse para

“ im petuoso, de arm a na m ão, com batê-los, defender o teu lar, a tu a santa m ãe, os teus irm ãositos

transidos de pavor” (LO B O , 1994, p. 272). Ou seja, o hom em do B rasil não deveria tem er a

m orte ao defender a m anutenção da “fam ília b rasileira” (pai, m ãe e irm ãos que com partilham o

m esm o lar) e dos sím bolos nacionais. E reforçava:

Não exita! Com o mesmo ardor com que defenderias o teu lar, tu, pequenino, corre a
defender os lares dos teus compatriotas, as regiões longiquas desse torrão sagrado que
recebemos dos nossos antepassados. E’ isso o patriotismo, esse ardor que nos prende,
para a vida e para a morte, á Patria onde nascemos (LOBO, 1994, p. 272).

404
A com preensão de P átria era construída então em torn o de um pensam ento de ótica

bélica, em que se tentava inculcar um a necessidade de haver não apenas um a defesa de seu lar,

m as tam bém das fam ílias tais com o a sua, da sua cidade. M ais que isso, incentivava-se que o

jo v em deveria se preparar desde a tenra idade para o sacrifício em nom e do país, fosse pela

am eaça estrangeira, fosse pelo que am eaçasse a “ ordem ” . E esta era u m a construção instituída

po r aqueles que definiam o que era a “b rasilidade” , m e referi aqui ao E stado principalm ente.

C om isso, Sodré prosseguia galgando expor um a definição de civismo enquanto

interesse e apreço pelo B rasil. N ão seria apenas protegê-lo de tudo que fosse considerado

am eaça à “b rasilidade” , m as tam bém conhecê-lo para exaltá-lo pelos seus caracteres ditos com o

legítim os. A firm ava então que “A prim eira condição p ara um hom em ter civism o é conhecer

bem a h istória e as leis do paiz, porque só assim se poderá interessar pela v id a nacional. Q uem

vive indifferente á vida e aos destinos da nação, não tem civism o” (LO B O , 1994, p. 273). N esse

sentido concordo com Iranilson O liveira e A ndressa L eandro (2017, p. 165) quando explicam

que o escotism o se configurou com o u m a “ estratégia para incul car a ideia de form ação do

cidadão nacional: viril, forte, saudável, disciplinado e patriótico, ou seja, o escotism o foi

u tilizad o para adestrar a infância” . E ssa ideia de cidadão era incorporada com o brasilidade: um a

identidade nacional devota dos sím bolos nacionais, seus heróis, seu território.

E ntretanto, cabe aqui destacar que ao p ropor que os escoteiros fossem conhecedores

da h istória do país se in dicava na obra a perspectiva de um a h istória nacional. B enjam in Sodré

especificava que era “ dever conhecer todas as phases porque tem o s passado e os factos capitaes

occorridos, guardando os nom es e feitos dos grandes hom ens, nossos antepassados, que

trabalharam e m orreram para nos leg ar um a terra tão grande e unida” (LO B O , 1994, p. 273).

M ais que isso d estacava que era necessário conhecer as leis brasileiras, pois isso lhes fariam

verdadeiros cidadãos. Indicava que os escoteiros fosses orientados a conhecer então o

significado dos poderes legislativo, executivo e ju d iciário , as C onstituições Federal e E staduais

e as leis M unicipais, bem com o as datas do calendário oficial nacional (LO B O , 1994).

N esse aspecto acerca da com preensão de h istória o escotism o se aproxim ava ao

discurso proposto pela escola da R epública. C onform e C irce B ittencourt (2008) essa

perspectiva determ ina com o conteúdo histórico aqueles vistos com caráter de oficialidade com

intuito de defin ir e d efen d er um a ideia de “ identidade nacional” im buída de sentim ento cívicos

e enaltecim ento dos “heróis nacionais” . P o r sua vez, esses “ ditos heróis eram os considerados

grandes hom ens de feitos m em oráveis que criaram e deram a vid a pela pátria e seriam

com positores de um a elite predestinada à conduzir o país” (A R A Ú JO , 2021 138). E sses eram

405
elem entos abordados com o circunstanciais a serem apreendidos pelos escoteiros brasileiros à

ótica de Sodré, eles deveriam alicerçar o que ele denom inava de “ espírito escoteiro” .

A quela produção intelectual em torno do escotism o se dem onstrava em bebida de um

nacionalism o com o proposta de “ salvação da n ação” , tal com o no cam p o da educação escolar

da época, com o explicou M arta C arvalho (2003). O que fortalece a ideia de que escotism o e

educação form al eram cam pos discursivos associados pelo elo da educação cívica com o

m odeladora do caráter dos hom ens do futuro próxim o. A o m esm o tem po em que se colocava

com o cura da “ degenerescência” do país causada pelas m azelas que os intelectuais e governos

destacavam haver na época, tais com a am orfia e vícios (Cf. C A R V A L H O , 2003). O escotism o

em m oldes cívicos se pregava com o m ais um in strum ento educativo para prom oção da

autorresponsabilidade e autocontrole corporal em nom e de um “bem nacional” .

A p artir da com preensão de m em ória conform e N o ra (1993), foi possível interpretar

ainda que essas determ inações de fundam entos aos escoteiros p u b licad a e republicada em

diferentes anos e refo rçad a po r m eio da articulação tem ática nos diferentes enunciados

produzidos pelo m esm o autor, era, pois, um a construção calculada. Se bu scav a definir o que

deveria com por o caráter do escoteiro, futuro hom em cidadão a serviço da nação, um a form a

de in terpretar o m undo de acordo com as concepções daqueles que ocupavam espaço de

liderança frente ao m ovim ento, em especial os representantes m ilitares e do E stado. E v id e n ciá -

las para serem apreendidas e perm anecerem em voga p arecia ser de interesse de Sodré. M ais

que isso, tal com o destacado po r B aden-P ow ell, Sodré b uscou consolidar num a fô rm a de

enxergar a fam ília, a Pátria, o trabalho de fo rm a m uito específica e que buscava ocultar outras

form as divergentes. Isso dem onstrava ser um m odo de fazer uso da proposta escoteira

estrangeira para contribuir com o fortalecim ento de u m a m em ória com foco cívico a ser

exercitada pelos escoteiros brasileiros, m uito em bora este não fosse o único fundam ento do

escotism o.

C O N S ID E R A Ç Õ E S F IN A IS

O bservando a p u blicação “ G uia do E sco teiro ” po r B enjam in Sodré no ano de 1925,

foi possível com preender que este buscou refo rçar um a ideia de civism o por m eio de seu

discurso a partir de seu lugar social m ilitar e de apoiador do esco tism o e do esporte, em prol da

m odelação de um “ escoteirism o nacional” . P ara tanto, especificava que o “ espírito escoteiro”

que deveria ser alcançado pelos jovens deveria ser fundam entado em ideias de Pátria,

406
patriotism o e história nacional, elem entos intercalados entre si e que deveriam fundam entar a

ação dos grupos de escoteiros do país, guiando-os para ovacioná-lo e protegê-lo.

C oncom itantem ente, seu discurso se fazia im buído de um teo r de “legitim idade” por

exaltar um a “b rasilidade” com desejo de verdade, de perm anência, logo de m em ória. A o m esm o

tem p o em que incitava o com bate aos que lhe fosse antagônico. M anifestava o desejo de

reverberar aos quatro cantos do país um im presso que deveria incentivar a construção de um

dito espírito cívico nos jo v en s escoteiros. O que se reforçava pela repetibilidade do discurso por

m eio de outros im pressos da época. P o r fim , ao projetar fundam entos patrióticos se tentava

m o ld ar o caráter dos jo v en s “ pelo futuro do B rasil” e se desejava que se fizesse por m eio de

u m a m em ória cívica som ada a ideias de cavalheirism o, heroísm o, responsabilidade, dever,

abnegação, generosidade e coragem . E stes fundam entos eram im portantes fatores, dentre outros

de diferentes ordens, na com plexa proposta educativa do escotism o.

R E F E R Ê N C IA S

A R A Ú JO , Iury G abriel A m orim de. A s fe stiv id a d e s do G r u p o E s c o la r F e lip p e C a m a rã o


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407
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408
ENSINO DE HISTÓRIA REGIONAL: UM ESTUDO DOS
DOCUMENTOS ORIENTADORES DA CIDADE/MUNICÍPIO DE
DOURADOS - MS.

205 JA C K S O N JA M E S D E B O N A

R e su m o : O presente texto é parte da pesquisa de doutorado que objetiva investigar processos


de ensino de história a p artir da inserção de conteúdos ligados à h istória da região de M ato
grosso do Sul, qualificados nesta pesquisa com o história regional. E ntendem os com o história
regional, um a abordagem da história global que plasm a o p articular ao universal possibilitando
u m a narrativa afeita às diversidades históricas (A L B U Q U E R Q U E JR, 2008; B A R R O S, 2013
[2004]; C A R V A L H O , 2021; A M A D O , 1990; V ISC A R D I, 1997). A pesquisa assenta-se na
pesquisa bibliográfico-docum ental, e abordagem m etodológica, em prim eira instância,
p erm eada pelas com preensões históricas à luz do referencial teórico da H istória Cultural
(H U N T, 1995; P E S A V E N T O , 2012), pois intenciona-se, na pesquisa final, identificar e analisar
com o professores de H istó ria da cidade de D ourados têm atendido às p rerrogativas dos
docum entos oficiais que regulam os currículos m ínim os para o ensino da disciplina. D esta feita,
en tender com o os docum entos enfocam a perspectiva do regional é essencial para com preender
quais as noções políticas corroboram com tal noção, a qual se pretende ser ensinada no
com ponente H istória. N esse sentido, buscou-se conhecer o processo de construção da base
curricular que dá suporte ao ensino de história, e, po r conseguinte, ao que pretendem os entender
com o história regional. A pesquisa docum ental centra-se no estudo dos docum entos referenciais
considerando p erceber o processo de perm anências e rupturas ocorridas neste conjunto
docum ental, reforçando que, para o exam e em tela, o foco assenta-se na perspectiva do ensino
de h istória e na ênfase do aspecto regional. São docum entos utilizados nesta análise: O
R e fe re n c ia l C u r r ic u la r do E n s in o F u n d a m e n ta l A n o s In ic ia is e A n o s F in a is d a R e d e
M u n ic ip a l de E n s in o de D o u ra d o s -M S - v e rs ã o 2016; C u r r íc u lo de R e fe rê n c ia de M a to
G ro sso do S ul - v e rs ã o 2019; O C u r r íc u lo d a R e d e M u n ic ip a l de E n s in o de D o u ra d o s -
v e rs ã o 2020. A cidade/m unicípio de D ourados prim a po r certo protagonism o quando se trata
de discussões no cam po educacional, ainda que pesem os fatores desfavoráveis relativos à
rem uneração e v alorização docente. C ontudo, as equipes pedagógicas da SEM ED buscam
organizar e acom panhar as alterações de docum entos referencias, no âm bito estadual e nacional,
com certa presteza. N esse sentido, o R eferencial C urricular para o E nsino de D ourados, antecipa
u m a série de pressupostos p ara a E d ucação B ásica. O exam e da docum entação possibilitou
com preender e v isualizar aum ento substancial de conteúdos de história regional e a ascensão
de tem as de grupos étnicos não antes contem plados explícitos na docum entação.

P a la v r a s C h av e: M ato G rosso do Sul; E nsino de H istória; H istória R egional

IN T R O D U Ç Ã O

O presente trabalho b u sca dar visibilidade aos docum entos orientadores para o ensino

de M ato G rosso do Sul, a saber, o R eferencial C urricular do E n sin o Fundam ental A nos Iniciais

2°5c Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD, doutorando no Programa de Pós-Graduação em História
-PPGH/FCH.
409
e A nos Finais da R ede M unicipal de E nsino de D ourados-M S - versão 2016; C urrículo de

R eferên cia de M ato G rosso do Sul - v ersão 2019; e o C urrículo da R ede M unicipal de E nsino

de D ourados -v e rs ã o 2020, quanto ao ensino de h istória regional no m unicípio/cidade de

D ourados -M S .

P o r h istória regional, entendem os um espaço territorial que pode ser representado e

escriturado historicam ente em seus diversos e diferentes tem pos m arcados po r acontecim entos

pelo qual os seres hum anos vivenciaram e deixaram vestígios im pressos, seja culturalm ente ou

socialm ente. D esse m odo, g eograficam ente optam os pela com preensão, naqueles term os, de

um estado federativo do B rasil, que atualm ente é M ato G rosso do Sul e seus m arcos tem porais

que, nos registros de m ateriais didáticos e outros suportes ao ensino, data da pré-h istó ria aos

dias atuais, de acordo com os docum entos analisados nesse trabalho.

D e acordo com P ierre B ourdieu:

O efeito simbólico exercido pelo discurso científico ao consagrar um estado das


divisões e da visão das divisões, é inevitável na medida em que os critérios ditos
'objetivos', precisamente os que os doutos conhecem, são utilizados como armas nas
lutas simbólicas pelo conhecimento e pelo reconhecimento [...] logo que a questão
regional ou nacional é objectivamente posta na realidade social, embora seja por uma
minoria actuante [...] qualquer enunciado sobre a região funciona como um argumento
que contribui - tanto mais largamente quanto mais largamente é reconhecido - para
favorecer ou desfavorecer o acesso da região ao reconhecimento e, por este meio, à
existência. (BOURDIEU, 2001, p. 119-120.)

A o estabelecer lim ites (fronteiras) de região, B ourdieu sinaliza dois aspectos

im portantes. O prim eiro é intelectual, que se caracteriza pela construção do discurso científico

pelos intelectuais das diversas áreas das hum anidades. O segundo é social, que se caracteriza

pela absorção do discurso com o um elem ento cultural da região.

N esse sentido, segue-se a apresentação dos quadros de conteúdos de fo rm a cronológica

conform e a sua im plantação n o m unicípio de D ourados. N o entanto, o C urrículo de R eferên cia

do estado de M ato G rosso do Sul está incluso neste trabalho com intuito de dar visibilidade às

políticas educacionais que tem , nesses últim os oito anos, alinhavado as proposta de conteúdos

entre os currículos de referência das escolas m unicipais aos currículos de referência do E stado.

D ito isto, o tex to em tela aborda os conteúdos do referencial curricular/currículo de referência

dos anos finais da E ducação Fundam ental (6° ano ao 9° ano).

A o abordarm os os currículos de referências de história, abrim os um espaço dialógico

com o ensino de história, pois os conteúdos de u m a referência curricular/currículo de referência

são indissociáveis quando estão em ato e potência, ou em outras palavras, n a prática em sala de

aula.

410
O R e fe re n c ia l C u r r ic u l a r do E n s in o F u n d a m e n ta l A n o s In ic ia is e A n o s F in a is d a R e d e
M u n ic ip a l de E n s in o de D o u ra d o s -M S - v e rs ã o 2016

A cidade de D ourados p rim a por certo protagonism o quando se trata de discussões no

cam po educacional, ainda que pesem os fatores d esfavoráveis relativos a rem uneração e

v alorização docente. C ontudo, as equipes pedagógicas da SEM ED buscam organizar e

acom panhar as alterações de docum entos referencias, no âm bito estadual e nacional, com certa

presteza. N esse sentido, o R eferencial C urricular para o E nsino de D ourados, antecipa u m a série

de pressupostos para a E ducação B ásica, conform e os docum entos orientadores sugerem :

Q u a d r o 1: Sistem atização dos conteúdos de H istória do M S para o E nsino F undam ental A nos
finais, em 2016
ANOS Unidade temática CONTEÚDOS/ Objetos de Conhecimento
6°. Ano Não há conteúdo Não há conteúdo lançado para o ano serial.
lançado para o ano
serial.
7°. Ano Desbravamento do ^ A presença espanhola na região do atual Mato Grosso do Sul (relevância da
“sertão” Missão do Itatim no processo de ocupação e povoamento do Mato Grosso).
História de Mato ^ Expedições monçoeiras no atual sul de MS;
Grosso do Sul ^ Formação dos primeiros povoados no sul de Mato Grosso;
^ Fazendas de gados e agriculturas;
^ Divisão do Estado;
^ Economia, organização política, cultura e processo de aculturação e
contribuição cultural.
8°. Ano Guerra contra o ^ Panorama do Mato Grosso antes da guerra;
Paraguai (1864­ ^ A retirada da Laguna (1867);
1870) ^ Retomada de Corumbá comandada por Antônio Maria Coelho (1867);
^ As etnias indígenas envolvidas no conflito: as alianças com o Brasil
Imperial.
O atual Mato ^ Economia Ervateira: influência política e econômica no Brasil Império:
Grosso do Sul no • Companhia Matte Laranjeira;
Brasil Império • Exportação;
• O Trabalho escravo.
9°. Ano Não há conteúdo Não há conteúdo lançado para o ano serial.
lançado para o ano
serial.
Fonte: Referencial Curricular do Ensino Fundamental Anos Iniciais e Anos Finais da Rede Municipal de Ensino
de Dourados-MS, 2016.
Elaborado por: DEBONA, 2021.

O quadro 1 p o ssibilita diferentes leituras e form as de abordagens sobre o objeto de

estudo/fonte R eferencial C urricular do E nsino Fundam ental A nos Finais, porém , em prim eira

análise podem os notar que a atual região denom inada de M ato G rosso do Sul só passa a existir

a p artir da chegada dos E u ro p eu s. D e acordo com o A rqueólogo G ilson R odolfo M artins da

U niversidade Federal de M ato G rosso do Sul -U F M S , afirm a em seu livro ‘B reve painel etno-

h istórico de M ato G rosso do S ul’ que a presença hum ana nessa região data “ por volta de onze

m il anos atrás” (M A R T IN S, 2002, p. 19). E m ais recentem ente, no livro in titu lad o “A rte

41 1
rupestre em M ato G rosso do S ul’, organizado por R odrigo L uiz Sim as de A guiar onde cita que

“ [...]os arqueólogos G ilson M artins e E m ília K ashim oto conduziram pesquisas fundam entais

para a arqueologia sul-m atogrossense, estabelecendo recentem ente a data de 12 m il anos para

o in ício da ocupação hu m an a” (A G U IA R , 2014, p.10), D esta form a, os vestígios da existência

hu m an a poderiam te r sida incluídas no conteúdo da pré-h istó ria do 6° ano do E nsino

F undam ental, j á que é de praxe m inistrar os conteúdos da pré-h istó ria do ‘m u n d o ’.

O utro conteúdo tam bém significativo para conhecerm os a região: O s povos indígenas

originários do atual território sul-m atogrossense (sic), cultura e sociedade que não foram

elencados no R eferencial C urricular de 2016.

O s conteúdos propostos para o 7° ano não estão tem poralm ente tipificados, ou seja, se

é período C olonial com suas C apitanias; Im perial, com suas P rovíncias; R ep ú b lica Federativa,

com seus E stados. É de sum a im portância essa periodização, pois envolve term o com o:

C apitania, P rovíncia e E stado que conceitualm ente é essencial para com preenderm os a história

do B rasil e de suas regiões. A ssim se repete nos conteúdos propostos para o 8° ano. Já no 9°

ano, que não há conteúdo proposto, o conteúdo “D ivisão do E stad o ” em M ato G r osso e M ato

G rosso do Sul que está proposto no 7° ano, seria pertinente, j á que ocorreu no ú ltim o quarto do

século X X , ser abordado ju n to s com conteúdos da h istória recente, ou seja, trazer o conteúdo

do 7° ano para 9° ano.

Sobre o R eferencial C urricular de 2016, ainda pode ser observado que os conteúdos

proposto estão lançados sem m encionar o bim estre a que se refere, desta form a é essencial um a

periodização da h istória para não dissociar a H istória R egional da história do B rasil e da H istória

U niversal j á que as referidas escalas se com plem entam .

O C u r r íc u lo de R e fe rê n c ia de M a to G ro sso do S ul - v e rs ã o 2019

P autando-se na alteração do título, com o um jo g o de palavras oportuno ao m om ento

político que se vivia no E stado, o C urrículo de R eferência, surge com o um docum ento

p retensam ente inovador, com o slogam “ feito po r todos e para to d o s” . P arte do esforço conjunto

de E stado e M unicípios, para atender, essencialm ente às alterações propostas pela B ase

N acional C om um C urricular (B N C C ), objeto de disputas e em bates não apenas no cam po

histórico, com o em todos os outros conhecim entos escolarizados.

N a sua elaboração consta a participação de todos os m unicípios do estado de M ato

G rosso do Sul, com seus S ecretários M unicipais da E ducação, som ado n esta listagem os

responsáveis por área na construção de um a proposta geradora.


412
Q u a d r o 2: Sistem atização dos conteúdos de H istória do M S para o E nsino F undam ental A nos
finais, em 2019

ANOS Unidade temática CONTEÚDOS/Objetos de Conhecimento


6°. Ano As origens da humanidade, seus ^ Povos ameríndios milenares de Mato Grosso do Sul.
deslocamentos e os processos de Grupo de pescadores; caçadores; coletores que ocupou o
sedentarização. pantanal há mais de dez mil anos.
^ Os povos indígenas originários do atual território sul-
matogrossense (sic), cultura e sociedade.
O mundo moderno e a conexão ^ Mato Grosso do Sul pré-colonial - Cultura material e
entre sociedades africanas, imaterial dos povos originários (Tradição geométrica).
americanas e europeias. Desenvolvimento da agricultura e produção de artefatos
7°. Ano cerâmicos (século XI AO XV).
A organização do poder e as ^ Organização e resistência indígena no Mato Grosso do Sul
dinâmicas do mundo colonial colonial, face a violência empreendida durante a expansão
americano. da América Portuguesa.
^ Organização social de populações ameríndias de Mato
Grosso do Sul (séculos XVI-XVIII): Arte, Língua, cultura,
política e sociedade.
Os processos de independência ^ Implementação da política indigenista no Brasil no século
nas Américas XIX, no Antigo Sul de Mato Grosso e o impacto dela sobre
as populações indígenas.
^ Modelo escravagista no Antigo Sul de Mato Grosso.
“Fábrica de Escravos”. Protocampesinato (sic) - o escravo
camponês.
O Brasil no século XIX ^ A Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, em solo
sul-mato-grossense:
• Participação depovos indígenas: lutas e resistências.
• As principais consequências sociopolíticas e econômicas para
o Sul da província de Mato Grosso.
^ O pós-guerra do Paraguai em Mato Grosso do Sul:
• A concessão da Erva Mate Laranjeira em território dos
Guaranie Kaiowá, e exploração da mão de obra indígena.
8°. Ano • Matte Laranjeira: exploração do produto primário,
empobrecimento da população local e exaustão de
recursos naturais.
• Desapropriação de terras indígenas: aldeamento, violência e
extermínio.
• Medo, inércia ou resistência.
• A invisibilidade imposta pela história tradicional e
estratégia de autodefesa dos povos indígenas.
^ Criação de reservas indígenas em Mato Grosso do Sul:
confinamento, integração e destruição de comunidades
indígenas (século XIX).
^ O protagonismo Guaicuru no Sul de Mato Grosso: da
resistência ao domínio colonial até a subjugação total.
O nascimento da República no ^ Comunidades quilombolas em Mato Grosso do Sul-cultura
Brasil e os processos históricos até afro-brasileira, resistência e luta contra a discriminação.
a metade do século XX. ^ Mato Grosso do Sulno contexto dacolonização
contemporânea, a partir da Era Vargas.
• A Marcha para o Oeste - ideário expansionista e invenção
dos espaços vazios.
• Movimentosmigratórios e ocupação não índia em terras
doAntigo Sul de Mato Grosso.
• Esbulho de terras tradicionalmente indígenas.
• Processo de desarticulação de modos de vida indígenas e o
início de processos de etnogênese.
413
• indígenas sul-matogrossenses durante a República, até
1964: Da tutela aos novos processos de resistência e
estratégias de luta.
9°. Ano
Modernização, ditadura civil- ^ A criação do Estado de Mato Grosso do Sul:
militar e redemocratização: o • Movimentos divisionistas precursores;
Brasil após 1946 • A influência do Regime militar: um novo Estado e a
ampliação de grupos favoráveis ao sistema;
• O nome do Estado e a construção da identidade.
A história recente ^ Protagonismo indígena em Mato Grosso do Sul.
• A pauta da terra: historicidade, reivindicação, resistência e
conflito.
• A experiência indígena com a vida urbana: ressignificação e
afirmação de identidade.
^ Protagonismo afrodescendente em Mato Grosso do Sul:
Resistência cultural e a luta pela superação da
desigualdade racial

Fonte: MATO GROSSO DO SUL. Currículo de Referência de Mato Grosso do Sul. Campo Grande: SED, 2019.
Elaborado por: DEBONA, 2021.

A reform ulação do C urrículo de R eferência de M ato G rosso do S u l, qu an to ao

conteúdo de h istória regional, inseriu conteúdos necessários p ara entenderm os a form ação da

identidade h istórica de nosso E stad o ao in cluir no item de conteúdos o p rotagonism o indígena

e das com unidades quilom bolas. O utro aspecto, não m enos afirm ativo é a reafirm ação de um a

histó ria regional de ente federativo de existência cro n ológica que tem seu início na pré-história

a qual se desvincula a qualquer ente federativo anterior a qual fazia parte com o território. Salvo

a referência “A ntigo Sul de M ato G rosso” que dado o seu período, a porção Sul de um estado

federativo, será em si ele m esm o não necessitando em adjetivá-lo com o “ A ntigo” , o que se

to rn a desnecessário.

O C urrículo de R eferên cia do E stad o de M ato G rosso do Sul de 2019 se com parado

ao R eferencial C urricular do E n sin o Fundam ental A nos Iniciais e A nos Finais da R ede

M unicipal de E nsino de D ourados-M S , 2016 podem os n o tar que há um a periodização da

h istória regional e a inserção de conteúdos que estão em consonância e alinhado com a H istória

G eral. E sta proposta oportuniza ao professor a m inistrar conteúdos historicam ente e

tem poralm ente em sala de aula sem a n ecessidade de m alabarism os de m arcos tem porais

anacrônicos.

O C u r r íc u lo d a R e d e M u n ic ip a l de E n s in o de D o u ra d o s - v e rs ã o 2020

N a m esm a linha de atuação do ano de 2016, m as desta vez estritam ente alinhado ao

E stado, a cidade de D ourados elabora seu C urrículo de E nsino, cujos conteúdos para o ensino

414
de história, acom panham quase que integralm ente as orientações propostas pelo C urrículo de

R eferên cia de M ato G rosso do Sul, com o se pode dem onstrar pelo quadro 3:

Q u a d r o 3: Sistem atização dos conteúdos de H istória do M S para o E nsino F undam ental A nos
finais, em 2020

ANOS Unidade temática CONTEÚDOS/Objetos de Conhecimento


História: tempo, espaço e formas ^ Povos ameríndios milenares de Mato Grosso do Sul.
de registro. Grupo de pescadores; caçadores; coletores que ocupou o
6°. Ano
pantanal há mais de dez mil anos.
A invenção do mundo clássico e ^ Os povos indígenas originários do atual território sul- mato-
o contraponto com outras grossense(sic), cultura e sociedade.
sociedades.
O mundo moderno e a conexão ^ M a to Grosso do Sul pré-colonial - Cultura material e
entre sociedades africanas, imaterial dos povos originários (Tradição geométrica).
7°. Ano
americanas e europeias. Desenvolvimento da agricultura e produção de artefatos
cerâmicos (século XI AO XV).
A organização do poder e as ^ Organização e resistência indígena no Mato Grosso do Sul
dinâmicas do mundo colonial colonial, face a violência empreendida durante a expansão
americano. da América Portuguesa.
^Organização social de populações ameríndias de Mato
Grosso do Sul (séculos XVI-XVIII): Arte, Língua, cultura,
política e sociedade.
Os processos de independência ^ Implementação da política indigenista no Brasil no século
8°. Ano nas Américas XIX, no Antigo Sul de Mato Grosso e o impacto dela sobre
as populações indígenas.
^ M o d elo escravagista no Antigo Sul de Mato Grosso.
“Fábrica de Escravos”. Protocampesinato - o escravo
camponês.
O Brasil no século XIX ^ A Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, em solo
sul-mato-grossense:
• Participação depovos indígenas: lutas e resistências.
• As principais consequências sociopolíticas e econômicas
para o Sul da província de Mato Grosso.
^ O pós-guerra doParaguai em Mato Grosso do Sul:
• A concessão da Erva Mate Laranjeira em território dos
Guarani e Kaiowá, e exploração da mão de obra indígena.
• Matte Laranjeira: exploração do produto primário,
empobrecimento da população local e exaustão de
recursos naturais.
• Desapropriação de terras indígenas: aldeamento, violência e
extermínio.
• Medo, inércia ou resistência.
• A invisibilidade imposta pela história tradicional e
estratégia de autodefesa dos povos indígenas.
^ Criação de reservas indígenas em Mato Grosso do Sul:
confinamento, integração e destruição de comunidades
indígenas (séculoXIX).
^ O protagonismo Guaicuru no Sul de Mato Grosso: da
resistência ao domínio colonial até a subjugação total.
O nascimento da República no ^ Comunidades quilombolas em Mato Grosso do Sul-cultura
Brasil e os processos históricos afro-brasileira, resistência e luta contra a discriminação.
9°. Ano
até a metade do século XX. ^ M a to Grosso do Sulno contexto da colonização
contemporânea, a partir da Era Vargas.
• A Marcha para o Oeste - ideário expansionista e invenção
dos espaços vazios.
• Movimentos migratórios e ocupação não índia em terras do
415
Antigo Sul de Mato Grosso.
• Esbulho de terras tradicionalmente indígenas.
• Processo de desarticulação de modos de vida indígenas e o
início de processos de etnogênese.
• indígenas sul-matogrossenses durante a República, até
1964: Da tutela aos novos processos de resistência e
estratégias de luta.
Modernização, ditadura civil- ^ A criação do Estado de Mato Grosso doSul:
militar e redemocratização: o • Movimentos divisionistas precursores;
Brasil após1946 • A influência do Regime militar: um novo Estado e a
ampliação de grupos favoráveis ao sistema;
• O nome do Estado e a construção da identidade.
A história recente ^ Protagonismo indígena em Mato Grosso do Sul.
• A pauta da terra: historicidade, reivindicação, resistência e
conflito.
• A experiência indígena com a vida urbana: ressignificação
e afirmação de identidade.
^ Protagonismo afrodescendente em Mato Grosso do Sul:
Resistência cultural e a luta pela superação da
desigualdade racial
Fonte: DOURADOS. Currículo da Rede Municipal de Ensino de Dourados. Dourados: SEMED 2020.
Elaborado por: DEBONA, 2021.

O C urrículo da R ede M unicipal de E nsino de D ourados. D ourados: SEM ED 2020, tem

até o presente m om ento reproduzido o C urrículo de R eferência de M ato G rosso do Sul - versão

2019, salvo algum as adequações term inológicas concernente ao m esm o período histórico que

podem ser identificados nas ‘unidades tem á tic as’ do 6° ano. Q uanto ao conteúdo dessas

u nidades tem áticas são os m esm os.

C o n s id e ra ç õ e s fin ais

O s apontam entos feito neste texto, sobre os C urrículos de R eferência do E nsino

Fundam ental séries finais do estado de M ato G rosso do Sul e da cidade de D ourados -M S ,

b u sca dar visibilidade a inserção de conteúdos que pautam sobre história regional de M ato

G rosso do Sul. C onsiderando que não só em quantidade, m as tam bém contem plando a nossa

diversidade cultural e social, o currículo que está em v igor dá sustentação legal para que se

possa pau tar as m inorias e abre espaço para que as abordagens das m ais variadas m anifestações,

sejam elas culturais ou religiosas possam em ergir para serem abordadas em sala de aula. N o

entanto, devem os lem brar que os currículos ou referencias curriculares anteriores tiveram em

seu contexto histórico sua im portância de m arco b alizad o r de um tem p o histórico e form ação

de discentes que fazem parte de grupos sociais de u m a região. C om o escreveu T om az T adeu da

Silva: “D iferentes currículos produzem diferentes pessoas, m as naturalm ente essas diferenças

416
não são m eras diferenças individuais, m as diferenças sociais, ligadas à classe, à raça ao gênero.”

(SIL V A , 2018, p.10).

A o elaborar um currículo de ensino de h istória regional é de sum a im portância

pensarm os o lugar social de onde elaboram os e para quem elaboram os e qual é a

intencionalidade dos conteúdos elencados para constituir u m a n arrativa histórica, “ O currículo

não apenas representa, ele faz. É preciso reconhecer que a inclusão ou exclusão no currículo

tem conexões com a inclusão ou exclusão na sociedade.” (SILV A , 2018, p. 10).

Portanto, ao longo das ú ltim as décadas tem os observado alguns avanços em seleção

de conteúdos p ara constituir um currículo de excelência de h istória regional em nosso E stado,

que prim a pela diversidade social e cultural, no entanto po r outro lado, observam os estratégias

para a dim inuição de horas aulas da d isciplina de história.

R e fe rê n c ia s B ib lio g rá fic a s

B O U R D IE U , Pierre. O p o d e r sim bólico. 4. ed. Lisboa: B ertrand; R io de Janeiro: B ertrand


B rasil, 2001.
D E B O N A , J. J. E n tr e o R e g io n a l e o N a c io n a l: M ato G rosso do Sul nos livros didáticos de
H istória - PN L D 2011. D issertação de (m estrado) - U niversidade Federal de M ato G rosso,
Instituto de C iências H um anas e Sociais, P rogram a de P ó s-G rad u ação em H istória, C uiabá,
2015.
D O U R A D O S. R e fe re n c ia l C u r r ic u la r do E n s in o F u n d a m e n ta l A n o s In ic ia is e A n o s
F in a is d a R e d e M u n ic ip a l de E n s in o de D o u ra d o s . D ourados-M S : SEM ED , 2016.
D O U R A D O S. C u r r íc u lo d a R e d e M u n ic ip a l de E n s in o de D o u ra d o s . D ourados-M S:
SEM ED , 2020.
M A R T IN S, G ilson R odolfo. B re v e p a in e l e tn o -h istó ric o de M a to G ro sso do Sul. 2.ed.
am pl. e rev. C am po G rande, M S: Ed. U F M S , 2002.
M A T O G R O SSO D O SUL. C u r r íc u lo de R e fe rê n c ia de M a to G ro sso do Sul. C am po
G rande: SED -M S, 2019.
SILV A , T om az T adeu da. A presentação (7-13); In G O O D SO N , Ivor F. C u r r íc u lo : teo ria e
história. T radução de A ttilio B runetta; revisão da tradução H am ilton Francischetti;
apresentação de T om az T adeu da Silva. 15a edição atualizada e am pliada - Petrópolis, RJ:
V ozes, 2018.

417
O DIÁLOGO ENTRE A HISTÓRIA E AS NOVAS LINGUAGENS DE
ENSINO

JA N E D E S O U Z A 206

RESUM O

O artigo pretende analisar no prim eiro m om ento a H istória com o ciência e sua evolução com o
disciplina escolar e com o as tecnologias podem auxiliar na aprendizagem em sala de aula
destacando a im portância de um a das com petências das B ases N acio n ais C om uns C urriculares
(B N C C ). A dim ensão deste trabalho fundam enta-se em m ostrar essa relação entre a tradição
dos livros didáticos com a prática das novas linguagens tecnológicas na sala de aula. A frente
disso, faz-se necessário à b u sca dessa reflexão do am biente escolar onde o p rofessor passe a
v iv en ciar essas alterações de form a a b en eficiar suas próprias ações podendo b u scar novas
m etodologias e novas form as de prom oção do processo ensino aprendizagem . A sociedade vive
um desenvolvim ento acelerado que ocorrem todos os dias, as descobertas ocorrem em
segundos. A análise da disciplina de H istória e sua evolução e a B N C C nos leva às seguintes
problem atizações: E m prim eiro lugar o ensino de H istória, a atuação da escola nesse contexto,
o papel do professor e com o os alunos tem recebido essa nova fo rm a de aprendizagem e
com preender as causas e a dinâm ica desse processo é algo que consideram os fundam ental.
O ptou-se pela pesquisa de referencial bibliográfico, que m ostrou com o essas ferram entas estão
im pactando cada vez m ais a vid a m oderna com reflexos na educação. O presente trabalho foi
dividido em duas partes. A prim eira destaca o ensino de H istória e su a evolução, a segunda
apresenta a B ase nacional com um curricular destacando a quinta com petência.

P alavras chave: E nsino de H istória. N ovas linguagens. B N CC .

In íc io do e n sin o de H is tó ria

A H istória é considerada um a das m ais antigas disciplinas e se ocupa do processo de

tran sm issão de inform ações porque está intrinsecam ente ligada ao surgim ento da histó ria dos

hom ens. A H istória, em seu processo de construção com o disciplina escolar, experim entou

diferentes m om entos no que se refere ao conteúdo a ser ensinado. A s propostas curriculares

construídas m ostram esta realidade. N o que diz respeito ao ensino de história, apresentam -se

com o um m arco de ruptura das opções h istoriográficas e m etodológicas até então em voga nas

universidades e no ensino escolar.

A nova ten d ên cia destaca um a “H istória viva” , ou seja, um a H istória que desperte no

aluno a curiosidade para conhecer a sua vida, a realidade que o rodeia, ligando o presente ao

passado.

206 Mestranda em História da Amazônia-PPGHAm - Universidade Federal de Rondônia-UNIR


418
A pesar de heterogêneas, com o nos adverte B ittencourt (2004, p.16), as propostas acerca

do ensino de h istória deixam claro um aspecto unificador: a crítica ao ensino tradicional. Isso

quer dizer que na grande m aioria destas novas propostas, a cham ada história tradicional,

conhecida com o positivism o histórico, que dom inou o século X IX e grande parte do século XX,

tan to na produção acadêm ica quanto no ensino escolar e nos m ateriais didáticos tem sido agora

com batida.

E sta concepção historiográfica pautada nos g randes acontecim entos políticos,

diplom áticos e religiosos do passado, que tin h a com o fontes de estudo os docum entos oficiais

escritos e com o sujeitos da h istória as grandes personalidades políticas e religiosas e que

concebia a história com o u m a evolução passou a ser questionada a partir do início do século

X X por intelectuais franceses vinculados à cham ada E sco la dos A nnales que transform aram a

fo rm a de pesquisar e estudar a H istória.

D iante desse contexto inicialm ente tem os a ruptura frente à E scola dos A nnales, que

trouxe consigo novas abordagens tem áticas, de novas fontes, no m om ento dessa ruptura essas

novas abordagens supriram as necessidades da época, m as e agora será que essas abordagens

têm sido suficientes para suprir a necessidade acadêm ica, e escolar? O s professores conseguem

fazer ligações entre os conteúdos apresentados nos livros com o u so dessas novas ferram entas?

D esse m odo, podem os dizer que desde seu in ício os saberes históricos estão voltados

para a reflexão sobre a aplicação das práticas tradicionais. E sses saberes j á não conseguem

sobreviver no m undo que exige que as pessoas tom em decisões rápidas, po r isso não basta

ensinar história, é necessário construir a h istória e isso im plica em m udanças de posturas

educacionais. M iceli diz que é im portante o professor de história valo rizar a experiência

viv en ciad a pelos estudantes, nesse sentido tem os: C onsiderando que o aluno deve ser

incentivado a desenvolver u m a espécie de sentido histórico, para atuar no m undo em que vive,

cabe ao p rofessor de H istó ria disponibilizar elem entos que possam auxiliar esse processo de

conscientização. (M IC E L I apud P IN S K Y 2009, p.40). A lega então que cabe ao p rofessor de

H istória auxiliar seus estudantes no processo de conscientização e construção do saber

histórico.

H oje, novos debates acerca da história e de sua produção têm sido realizados nas

universidades por professores que atuam na área da ciência histórica. O s resultados desta

produção, das novas concepções e das próprias m udanças presentes em nossa sociedade têm

refletido de form a bastante positiva nas discussões acerca do ensino de história.

A grande inovação que ocorre hoje é quanto aos objetivos da disciplina e podem os dizer

que um a de suas finalidades na contem poraneidade seria a sua contribuição à form ação de

identidades e ao lugar que cada indivíduo ocupa na história, ou seja, a com preensão de que
419
todos nós som os sujeitos históricos. A form ação de um cidadão crítico, que possa, a p artir do

entendim ento das relações históricas dos hom ens em suas variadas tem poralidades, agir no seu

próprio espaço e tem po é tam bém u m a das várias finalidades a serem alcançadas.

N o entanto a partir do século X X a sociedade passou a ter inform ações com o nunca

antes, os avanços tecnológicos tiveram um papel fundam ental, e no m eio desse furacão de

transform ações com o fica a educação? É preciso recriar a própria escola e o próprio professor,

é preciso saber o que é b em -vindo em sala de aula é o que não é, o uso dos am bientes didáticos

virtuais estim ulam decisões rápidas. M arques com preende:

A tecnologia facilita o trabalho do professor. No caso da História, a tecnologia facilita


o trabalho da interpretação de fontes, quando é interessante fazer um trabalho coletivo.
Em meio a toda essa informação é possível extrair elementos que se associem ao
ensino de História em sala de aula. Tal ação é interessante em dois sentidos, ajuda os
alunos a trabalharem parte das informações a que tem acesso de forma a fugir da
possível alienação, assim como torna as aulas mais interessantes na medida em que se
aproxima da realidade e dos conhecimentos prévios dos alunos. (MARQUES, 2012
p.1415 )

É neste ponto que tem que haver o diálogo dessa apropriação das linguagens

tecn o ló g icas em sala de aula, a questão das diferentes linguagens com o m eios para estabelecer

relações de ensino, ou com o instrum ento de investigação e, especialm ente, com o m eio de

articular nossa ação com o docentes.

L évy (1993) tam bém destaca a im portância da utilização da tecnologia na educação. O

autor reforça que todo conhecim ento é m ais facilm ente apreendido e retido quando a pessoa se

envolver m ais ativam ente no processo de aquisição de conhecim ento. Portanto, graças à

característica reticular e n ão -lin ear da m ultim ídia interativa a atitude exploratória é bastante

favorecida. “É, portanto, um instrum ento bem adaptado a u m a pedagogia ativa” (LÉV Y , 1993,

p. 40).
A área propõe diferentes cam inhos para observar e intervir no processo de

desenvolvim ento do que os pesquisadores cham am de ‘aprendizado h istó ric o ’, sendo a

u tilização de diferentes docum entos históricos um m odo de dialogar com a consciência histórica

e provocar progressos no pensam ento histórico. D e acordo com R üsen, o aprendizado histórico

é u m a com petência que todos nós desenvolvem os. R üsen coloca que:

O aprendizado histórico é uma das dimensões e manifestações da consciência


histórica. É o processo fundamental de socialização e individualização humana e
forma o núcleo de todas estas operações. A questão básica é como o passado é
experienciado e interpretado de modo a compreender o presente e antecipar o futuro
(RUSEN, 2010, p. 39).

420
O professor deve assum ir o com prom isso de separar a aula tradicional, visando à

construção de um a aula pautada em novas descobertas e isso através de ferram entas que

auxiliem no desenvolvim ento intelectual do aluno e, que o aluno possa p erceber que o ensino

de h istória pode ser interessante e que a h istória não é um a narração de fatos com o era ensinado

na fo rm a tradicional, precisam os form ar intelectuais que com preenda a relação

passado/presente e é possível u sando as tecnologias em sala de aula a exem plo disso os

professores podem em suas aulas jogos com perguntas históricas, atualm ente existe vários

aplicativos que podem ser baixados e acrescentados na aula.

C om o visto o papel do p rofessor de H istó ria vai m uito além de um sim ples transm itir

conhecim entos prontos e acabados, o que revigora a discussão sobre a questão de ensinar

h istória ou construir história, com o sendo u m a n ecessidade de releitura da consciência dos

professores no to cante as suas teo rias e m etodologias. F undam enta-se p ensar essas novas

tecnologias com o m etodologias para estabelecer relações de ensino, ou com o instrum ento de

investigação e, especialm ente, com o m eio de articular nossas ações com o docentes.

A B N C C no e n sin o de H is tó r ia

A B ase N acional C om um C urricular (B N C C ) tem suscitado im portantes debates sobre

a constituição de um currículo escolar. A B N C C é um docum ento curricular desenvolvido pelo

M inistério da E ducação para to d a a E ducação B ásica. P revisto no artigo 210° da C onstituição

F ederal de 1988 (B R A SIL , 1988) e no artigo 26° da Lei de D iretrizes e B ases da E d ucação de

1996 (B R A SIL, 1996), esse docum ento com eçou a ser desenvolvido a partir do Plano N acional

da E d ucação (PN E ) em 2014 (B R A SIL, 2014), sendo apresentado ao público pela prim eira vez

em setem bro de 2015.

N esse sentido, a B ase N acional C om um C urricular contem pla o desenvolvim ento de

com petências e habilidades relacionadas ao uso crítico e responsável das tecnologias digitais

tan to de form a transversal presentes em todas as áreas do conhecim ento e destacadas em

diversas com petências e habilidades com objetos de aprendizagem variados quanto de form a

direcionada tendo com o fim o desenvolvim ento de com petências relacionadas ao próprio uso

das tecnologias, recursos e linguagens digitais , ou seja, para o desenvolvim ento de

com petências de com preensão, uso e criação de T D IC s em diversas p ráticas sociais, com o

destaca a com petência geral que é referente a cultura digital.

“Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de


forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as
421
escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir
conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal
e coletiva.” (BNCC, 2018)

N essa relação entre tecn o lo g ia e sala de aula não podem os deixar de evidenciar o papel

das B ases nacionais com um curriculares (B N C C ) neste contexto, pois é a p artir dela que tem os

u m a direção de com o prosseguir em sala de aula. P rofessores e alunos p recisam -se adaptar a

essas inovações, para com preendê-las, e incorporá-las, e introduzindo essas transform ações, no

âm bito educacional de m odo a contribuir na m elhoria da qualidade dos processos de ensino

aprendizagem e práticas docentes.

E ao d iscutir as relações históricas entre tecn o lo g ia e educação p ercebem os que algum as

escolas não acom panharam essa evolução tecnológica e as m udanças ocorridas nos currículos

escolares e tam bém na sociedade.

D esse m odo, podem os dizer que desde seu in ício os saberes históricos estão voltados

para a reflexão sobre a aplicação das práticas tradicionais. P ortanto a finalidade deste trabalho

é analisar essa aproxim ação dessa ferram enta na educação com preender com o a tecnologia pode

ser usada em favor da educação e com o os professores podem fazer uso da tecnologia em sala

de aula.

N ão existe um a ú n ica atividade hum ana que não exija algum a form a de com unicação.

N ã o há com o analisar o m undo m oderno sem que façam os u m a breve passagem da

com unicação. Segundo A ndrade e H enriques (2004), com unicar vem do latim com m unicare,

que significa colocar algo em com um . É expor algum a m ensagem a um ou m ais indivíduos.

D esse m odo, cada nova experiência é um a som a, produzindo pequenas m udanças na

prática docente, um a vez que as m udanças nas práticas pedagógicas são construídas das

vivências e na p osterior reflexão. P a ra tanto, é preciso “m obilizar u m a am pla variedade de

saberes, reutilizando-os no trabalho para adaptá-los e transform á-los pelo e para o trab alho”

(T A R D IF, 2002, p.21).

E no que se refere ao ensino de histó ria a capacidade de tran sm itir o conhecim ento da

disciplina de história, deve ir além dos livros didáticos, e das aulas tradicionais é im portante

que o ensino da disciplina esteja voltado no contexto que a sociedade está inserida, a sociedade

da inform ação, onde surgem novas form as de pensar, de agir e se relacio n ar com unicativam ente

em hábitos corriqueiros e em sala de aula não deverá ser diferente, o aluno precisa com preender

que histó ria não é apenas um a narração de fatos. A tecnologia digital apresenta novos desafios.

A cultura digital pode habilitar os alunos a com preender a disciplina de h istória as

instituições educacionais, os professores precisam enfrentar o desafio de incorporar as novas

422
tecnologias com o conteúdo de ensino e aprendizagem , preparando o aluno para além de

pesquisar, pensar, resolver os problem as e as m udanças que acontecem ao seu redor.

O advento dessa cultura digital apresenta desafios ainda m ais am plos para a escola

enquanto instituição, ou seja, novas form as de ensinar, novas form as de aprender, F onseca

destaca que:

Grande parte dos artigos publicados em revistas e livros especializados, atualmente,


relatam experiências de professores e alunos que, ansiosos por mudança passaram a
utilizar diferentes linguagens no processo ensino/aprendizagem. Partindo de um
alargamento da noção do que é História, de seus objetos e das formas como se
manifestam no social, os professores têm conseguido diversificar as maneiras de
produzir história na escola de 1° e 2° grau. As experiências com trabalhos através de
músicas, da literatura, do cinema, da fotografia, etc. revelam possibilidades de se
substituir ou confrontar a “única” linguagem “oficial” do livro didático com estas
outras, que muitas vezes são desprezadas pelo historiador (FONSECA, 1989/1990, p.
205).

A grande inovação que ocorre hoje é quanto aos objetivos da disciplina, podem os dizer

que um a de suas finalidades na contem poraneidade seria a sua contribuição à form ação de

identidades e o lugar que cada indivíduo ocupa na sociedade, ou seja, a com preensão de que

todos nós som os sujeitos históricos. C om a form ação de um cidadão crítico, que possa, a partir

do entendim ento das relações históricas dos hom ens em suas v ariadas tem poralidades, agir no

seu próprio espaço e tem po é tam bém um a das várias finalidades a serem alcançadas.

O s recursos tecnológicos representam novas possibilidades, no contexto educacional,

enriquecendo o processo de ensino e aprendizagem entre p rofessor e aluno. A n ecessidade de

um m aior envolvim ento entre as áreas tecnológica e educacional é cada vez m ais evidente.

H oje, a relação educação e tecn o lo g ia é presente em quase todos os estudos que analisam o

contexto educacional. Os educadores assum em a posição de ser um agente facilitador entre o

distanciam ento do objeto de estudo, e o propósito a ser alcançado.

E m consequência de todas a m udanças é im portante ressaltar que o professor pode criar

m aneiras para aulas m ais agradáveis, m ostrar os fatos históricos de outra form a, po r isso a

im portância do debate entre cam pos de conhecim ento e a inauguração dessa nova dim ensão dos

trabalhos em H istória, os h istoriadores precisam ficar atentos a inovação deste cam po de

conhecim ento. T odos estes recursos podem contribuir no processo de construção de aulas

v oltadas para o tem po presente, utilizando os recursos tecnológicos. Isso nos m ostram que a

produção de objetos de aprendizagens sobre o ensino de h istória ainda é m uito pequena ao

com param os com as outras áreas do conhecim ento.

M esm o assim , a disposição de fontes históricas se to rna essencial para que a

aprendizagem em h istória ocorra da m elhor fo rm a possível. A o pensarm os os espaços virtuais

423
que a cada dia estão se dissem inando com o lugares de b u sca e produção do conhecim ento,

podem p ensar com o este tipo de interatividade pode p ropiciar o acesso a fontes históricas que

ainda não foram apresentadas em sala de aula.

M E T O D O L O G IA

Foi utilizado o m étodo de pesquisa de referencial bibliográfico, com a finalidade de

analisar o que já tem escrito sobre o tem a, através de leituras sobre o que é história, a evolução

da ciência H istória, e a leitura das com petências das B ases nacionais com um curriculares, e

tem as sobre tecnologia na sala de aula.

P ara isso a pesquisa foi baseada em estudo de autores, com o por exem plo, C irce M aria

F ernandes B ittencourt, E dw ard H allett Carr, Jorn R üsen, entre outros que elaboraram assuntos

sobre o tem a em questão.

F oram apresentadas as tendências contem porâneas e o desafio recente de diálogo com a

h istória e as novas linguagens de ensino, e com o essas ferram entas podem trazer benefícios à

educação com o troca de experiências, u m a m aior interação entre professores e alunos, essas

funções trazem m udanças significativas, pois, facilita o trabalho do docente, com o a

aprendizagem do ouvinte, o ensino de h istória não precisa ser um a repetição de fatos, o

p rofessor pode ser m ais que um narrador de histórias, ele pode ser quem sabe u sa r os recursos

disponíveis p ara u m a aula m ais proveitosa, as ferram entas tecnológicas podem ser sim usada

para o bem estar de todos.

A ssim sendo o trabalho transcorreu a partir do m étodo conceitual bibliográfico, visto

que foram utilizados conceitos de autores, que são sem elhantes com os objetivos em questão,

para a construção de um a análise sobre o objeto de estudo.

O m étodo de pesquisa escolhido favorece u m a análise de iden tificação que perm ite a

m ovim entação po r diversos cam inhos, possibilitando várias posições no decorrer do percurso,

e não apresentam um a ú n ica resposta a respeito do objeto, já que as possibilidades de análise e

resposta são inúm eras quando se trata de educação.

C O N S ID E R A Ç Õ E S F IN A IS

O E nsino de H istória, com o qualquer outra disciplina tam bém requer que o professor

ten h a conhecim ento e esteja aberto para novas form as de construir um m étodo de ensino

424
aprendizagem , e saiba utilizar as ferram entas tecnológicas, em bora o uso das tecnologias tenha

sido lento ou ainda não foram incorporadas em todas as escolas.

O s p rofessores devem sensibilizar-se a respeito das m udanças de papéis que estão

v inculados à presença das tecnologias na educação. P o r tanto, eles devem estar dispostos a

aprender e experim entar novas form as de ensino e discutir e refletir sobre os resultados da

m esm a. E ssa transform ação que a sociedade no todo estar vivenciando não pode deixar de ser

contem plada pelos responsáveis em educação, para se o bter um benefício educativo em sua

incorporação aos âm bitos form ativos educacionais.

E desta perspectiva é possível p ensar um u so significativo de diferentes linguagens para

com por o ensino de H istória. Pois, as linguagens são recursos didáticos e precisam fazer parte

de nossas aulas. E las são m eios para m obilizar e construir saberes; são os elem entos para

reflexões sobre os acontecim entos históricos e os m odos com o estes acontecim entos são

representados e, ainda, são ferram entas para estabelecer e evid en ciar narrativas sobre a H istória

de u m a form a não tradicional, seria o estudo do passado com recursos atuais.

A s considerações expostas dim ensionam a existência de u m a sensibilidade quanto ao

uso de diferentes linguagens e um a preocupação em estabelecer o seu uso de m odo crítico, bem

com o de perm itir aos alunos um entendim ento dos ‘do cu m en to s’ em análise com o construções

discursivas. O u seja, os grupos evidenciam a vontade de dem onstrar, aos estudantes, que não

trabalham com verdades históricas prontas e/ou definitivas e, ainda, que tinham ciência da

im portância de trab alh ar a H istória com o algo em construção.

A s instituições de ensino são cobradas para que não seja sim plesm ente u m a fonte de

tran sm itir conhecim ento, m as que sejam m otivadoras para novas descobertas e m ediadora na

construção do conhecim ento através de tro cas de experiências vivenciadas po r aqueles que nela

estão inseridos desenvolvendo em seus alunos a criatividade e o pensam ento crítico e reflexivo.

A cultura digital tem alcançado o âm bito educacional, trazen d o novas perspectivas e

grandes desafios. N este cam po no qual o p rofessor atua, e ele o principal instrum ento usado

para a form ação de cidadãos; nesse sentido a sociedade atua com as rápidas m udanças, o avanço

da tecnologia e tantas inform ações sendo repassado de fo rm a constantem ente, o professor ficam

diante do desafio que aum enta cada dia e fica obvio que é preciso ir se ajustando a realidade

atual e no ensino da disciplina de H istória essa realidade não deve ser diferente.

O educador precisa estar capacitado a lidar com novos recursos tecnológicos e integrar

esses recursos as suas p ráticas pedagógicas, e para isso ele deve se p o sicionar com o aprendiz

com o alguém que estar aprendendo assim com o seus alunos. T alvez esteja essa a grande

dificuldade de aceitar as novas tendências tecnológicas, pois requer que o p rofessor se

disponibilize a aprender.
425
É preciso abandonar as antigas p ráticas educacionais e inovar as experiências em sala

de aula buscando m aneiras inovadoras de ensinar h istória m ostran d o os conteúdos u sando a

ferram enta tecnológica despertando assim a curiosidade e a criatividade dos nossos alunos.

T en d o em vista que a tecnologia é apenas u m a ferram en ta, e não pode ser considerada um

resultado de aprendizagem , o esperado é que os alunos passem a dom inar linguagens, resolvam

problem as, sejam críticos.

N este artigo foi perm itido refletir sobre os sentidos produzidos no ensino de história

com o ciência e por outro lado tendo a B N C C com o elem ento n o rtead o r através das suas

com petências gerais abrindo espaço para um novo ensino de H istória e com o professores de

H istória poderão e podem se apropriar desse docum ento curricular para a transm issão de

conhecim entos. C onsiderando que ainda há m uitas questões em aberto nas quais os

profissionais do cam po poderão se debruçar para increm entar e am plificar as discussões

relativas a relação entre o ensino de H istória e a BN C C .

R E F E R Ê N C IA S :

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.


BITTENCOURT, C. M. F. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004.
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426
DESAFIOS E POSSIBILIDADES DO ENSINO DE HISTÓRIA
INDÍGENA EM UMA ESCOLA PÚBLICA DE DOURADOS-MS

JO Z IA N E D E A Z E V E D O C R U Z 207

R e su m o :

O artigo apresenta com o reflexão a discussão da experiência do ensino de h istória indígena nas
aulas de H istória, com turm as de ensino fundam ental, de um a escola pública da cidade de
D ourados-M S . Instigada pelas experiências que os estágios proporcionaram , tenho por objetivo
refletir a p artir das questões colocadas em sala de aula e das as atividades escritas pelos alunos
construídas no período de estágio. A fonte que subsidiou a construção do texto são os registros
escritos em fo rm a de textos de opinião, elaboradas pelos estudantes, alusivo ao tem a das
dem arcações das áreas indígenas em M S. N esse sentido, a Lei 11.645/2008 se constitui em um
m arco para a m inim ização desse cenário de desigualdades e discrim inação no qual diversos
grupos sociais estão sujeitos. A educação se constitui em um espaço propício para a
im plem entação de novas práticas, que consequentem ente poderão acarretar num a
transform ação de im aginários construídos historicam ente, no qual o negro e o índio foram
negligenciados na h istória brasileira.

P a la v r a s -c h a v e : E n sin o de H istória, H istória Indígena, D em arcação.

I n tr o d u ç ã o

O presente texto trata-se de um recorte do T rabalho de graduação: form ação docente em

h istória II (T G II), do curso de L icenciatura em H istória da U FG D . A finalidade é apresentar

os registros e reflexões construídas a partir das vivências durante a trajetória acadêm ica na

U niversidade po r m eio dos estágios supervisionados, aulas teóricas, bem com o realizar a

discussão de um dos assuntos que m ais m e cham ou atenção nos períodos de regências- a

abordagem desenvolvida a respeito das dem arcações de terras indígenas no estado de M ato

G rosso do Sul.

A in ten ção é com preender, po r m eio dos registros escritos dos alunos e alunas, as

percepções referentes a dem arcação de Terras Indígenas em M S, a p artir de u m a notícia de

jo rn al. A ssim com o averiguar com o os estudantes construíram (ou não) a relação com a H istória

em seus textos na discussão sobre as dem arcações e, po r fim , explicitar os desafios e

p ossibilidades do ensino de h istória indígena e o u so de diferentes fontes.

207Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Graduada em Ciências Sociais e História pela UFGD. A
discussão apresentada é parte do trabalho final de graduação e formação docente (TG2), no curso de
História/UFGD, realizado sob orientação do Prof. Dr. Luís César Castrillon Mendes.
427
A educação se constitui em um espaço p ropício para a im plem entação de novas práticas,

p o ssibilita a transform ação de im aginários construídos historicam ente, no qual o negro e o índio

foram renegados na h istória brasileira. N esse sentido, a im plantação da Lei 11.645/2008 se

constitui em um m arco para a m inim ização desse cenário de desigualdades e discrim inação no

qual diversos grupos sociais estão sujeitos.

N o estágio supervisionado em h istória II, tive a oportunidade de realizar as regências no

ensino fundam ental (com turm as de 7 e 9° anos) com a discussão sobre os grupos étnicos

localizados em M S atualm ente. A presentei a H istória indígena no B rasil e no M S e os m arcos

históricos que perm item perceber a redução dos territórios indígenas no país no decorrer do

tem po, as etnias indígenas presentes no M S com enfoque nos K aiow á.

E ntre as diferentes fontes utilizadas durante as aulas de H istória, realizei atividades

avaliativas com os alunos. A prim eira foi a tarefa de construção um tex to de opinião: “M S é

terra de índio, sim ou não? Justifique sua resposta” . A segunda atividade se deu com a

circulação e análises de fotografias da etnia kaiow á. U m a terceira atividade em sala se

configurou na explanação de com o ocorre o processo dem arcató rio de um território

reivindicado pelos grupos indígenas. E m linguagem acessível aos alunos de 7° e 9° anos,

expliquei com o se dão as etapas ju ríd ic a s que com põe o processo de identificação, delim itação

e tram itação na Justiça de um território reivindicado.

À visto disso, a discussão apresentada por G ruenberg e A oki (2004) p roporciona o

entendim ento das etapas que envolvem os processos de identificação e delim itação de um a

T erra Indígena, tais com o o relatório pericial de um antropólogo, a contribuição a com unidade

interessada na apresentação de elem entos im ateriais e m ateriais que dem onstrem sua relação

com o espaço territorial pretendido, o longo p eríodo de tem po que pode levar até se chegar no

ju lg am en to , entre outras m uitas ações e situações com ponentes dos transm ites para um a

dem arcação ou não, de um a área indígena requerida. A s etapas citadas, entre outras que fazem

parte do percurso ju d ic ia l para a análise de áreas que se pretendem à dem arcação, foram

situações trabalhadas durante as aulas com os alunos do ensino fundam ental.

P ara a análise das respostas dos alunos, foram im portantes as contribuições das

b ibliografias acerca da h istória indígena e h istórico da im plantação da Lei 11.645 que estabelece

a obrigatoriedade do ensino da história e cultura dos afro-brasileiros e dos povos indígenas. Os

escritos de Silva (2013), E dson Silva (2013), Jesus (2013), P en h a (2013) com põe o arcabouço

teórico; relevantes tam bém foram as abordagens desenvolvidas pelas autoras Pim enta(2011),

G uim arães(2012), B ittencourt(2008), D uarte(2014), na contextualização e os desafios presente

no ensino de história do Brasil.

H istoriados e antropólogos que realizaram trabalhos de caráter etno-histórico e


428
etnográfico tam bém se som am a proposta do texto. Foi de fundam ental im portância a

com preensão dos elem entos relacionados a organização social, religiosidades e os aspectos

socioculturais do território para os grupos kaiow á e nandeva no estado de M S, a p artir das

contribuições de B rand (1997), C avalcante (2013) e G ruenberg e A oki (2004), C ham orro

(2015) e P ereira (1999;2004).

O tex to está divido em dois itens. N o prim eiro apresento a discussão do histórico da Lei

11.645/2008 e o percurso de lutas sociais pela im plantação da obrigatoriedade do ensino da

h istória e cultura dos povos indígenas no B rasil e u m a breve contextualização dos grupos

falantes de G uarani no M S. N o segundo tó p ic o exponho com o se construiu as regências sobre

a h istória indígena do M S com os estudantes do fundam ental e suas percepções sobre os grupos

étnicos.

U m a d é c a d a d a L e i 11.645/2008 e as e tn ia s no M S

H á um longo percurso de lutas, desafios e de conquistas da E ducação no B rasil. O ano

de 1988 se constitui em um m arco no país, devido à prom ulgação da C onstituição Federal;

direitos sociais, políticos e civis foram assegurados po r esse in strum ento legal que contem plou

as diferentes dem andas da sociedade brasileira. A C onstituição Federal de 1988 garante no

artigo 205, que “ A educação, direito de todos e dever do E stado e da fam ília, será prom ovida e

incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvim ento da pessoa, seu

preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trab alh o ” . E respectivam ente,

no Art. 242, § 1 da C F / 1988, afirm a: “ O ensino da H istória do B rasil lev ará em conta as

contribuições das diferentes culturas e etnias para a form ação do povo b rasileiro” (B R A SIL,

1988).

U m a educação pública, g ratuita e de qualidade é um direito de todas as pessoas. P o r

isso, em m eio a tantos desafios na educação, nas suas diferentes especificidades quanto ao

público alvo, se estabelece com o algo de fundam ental im portância à reflexão e preparação

desses futuros profissionais da educação para as situações diversas que encontrarão no espaço

escolar, com o os alunos com deficiência, negros e indígenas, por exem plo. Para que os alunos

possam ser recebidos com as condições necessárias para o seu desenvolvim ento estudantil de

acordo com as características de cada contexto de origem das crianças e adolescentes.

D e acordo com Silva (2013, p.108), “ o B rasil tem um longo h istórico de exclusão social,

um p eríodo m uito de m aior de negação que de reconhecim ento da diversidade. E os

preconceitos tão introjetados na m em ória social geralm ente dem oram a se diluir” . T am anha é a
429
n ecessidade de assegurar políticas públicas e m udanças no m eio educacional a fim de m inim izar

essas diferenças presente na sociedade, de m aneira que preconceitos e estereótipos construídos

venham a ser descontruídos. A educação se constitui em um espaço propício para a im p lan tação

de novas práticas, que consequentem ente poderão acarretar na transform ação de im aginários

construídos historicam ente, no qual o negro e o índio foram invisibilizados na história

brasileira.

C om a abertura política no B rasil já no final da ditadura m ilitar, os m ovim entos sociais

ganharam força e espaço p ara suas lutas. D ecorrentes de m uitas reinvindicações e pressões para

com o E stad o brasileiro, assuntos com o o ensino da cultura afro-brasileira e indígena passaram

a ser inseridas nos currículos da educação básica.

Silva (2013), na discussão a respeito da historicidade da lei 11.645/2008 e as

m obilizações em torn o de sua im plantação, atesta que em oposição a um contexto de

desigualdades, dom inação e discrim inações com o se faz presente no B rasil, é que os

m ovim entos sociais e diversos outros grupos organizados da sociedade reivindicavam o

reconhecim ento as suas diferenças. A autora explicita que “É nesse contexto que os m ovim entos

sociais passam a reivindicar um tratam ento m ais igualitário e antidiscrim inatório, inclusive no

âm bito educacional” (SILV A , 2013, P.102).

N o cenário de lutas sociais p ela inclusão de suas pautas, os m ovim entos sociais que m ais

se destacaram foram os m ovim entos negros e indígenas pelo país. E sses m ovim entos possuem

um histórico de organização e reinvindicações que antecede a prom ulgação da CF/1988,

contudo, é no início da década de 1990 que eles galgam fôlego e conseguem a m aterialização

de algum as conquistas depois de m uita resistência frente ao E stado, que se tornam política

públicas para a educação.

N o bojo das lutas sociais po r reconhecim ento as diferenças, inclusão social, políticas

públicas específicas, m elhores condições de vida entre outras dem andas, em 2008 é aprovada a

Lei 11.645/2008. A nova Lei vem ao encontro das reinvindicações dos m ovim entos sociais que

alm ejavam a inserção dos conteúdos ligados as discussões de caráter etnicorracial na educação

básica.

A pós u m a década que a Lei 11.645/2008 está em vigor, m uitos avanços ocorreram nos

espaços educacionais. A im agem do negro e do indígena tem sido desconstruída com o sujeitos

que rem etem ao atraso do país, ora apresentados de form a rom antizada, com o no caso dos

grupos indígenas identificados com o os originários do B rasil, sím bolos de um a identidade

nacional, ou em outros m om entos percebidos com o selvagens e hostis, com o cham a atenção

E dson Silva (2013).

430
N o contexto das pautas reivindicadas pelos m ovim entos sociais, m uitas das dem andas

foram arquitetadas e executadas pelos diferentes grupos indígenas. O histo riad o r E dson Silva

(2013, p.39) aponta que: “ os discursos e im agens sobre os índios vêm m udando nos últim os

anos. E essa m udança ocorre em razão da visibilidade política conquistada pelos próprios

índios. ”

N a elaboração da C onstituição Federal de 1988, denom inada por m uitos pesquisadores

de a constituição m ais dem ocrática que o B rasil j á teve, contou com a participação de diversos

grupos da sociedade, entre eles os representantes dos m ovim entos indígenas. N ela, foram

assegurados direitos básicos aos grupos indígenas com o a dem arcação de seus territórios, saúde

e educação diferenciada.

D esse m odo, é nesse m ovim ento de com preensão das im plicações da Lei de 11.645 e a

prática docente, proporcionadas pelos espaços de estágio curricular em H istória, que o presente

tex to se insere. N o reconhecim ento da relevância social, necessidade de discussão e o

surgim ento de outras experiências de práticas de ensino em H istória que vislum brem os

conteúdos relacionados a cultura e história dos grupos indígenas do Brasil.

D e acordo com o censo (IB G E - 2010), no B rasil a p o pulação indígena é de 896,9 m il,

há 305 etnias e falam 274 idiom as. N o estado do M S se encontra a segunda m aior população

indígena do país, um total de 73.295 pessoas pertencentes aos N andeva, K aiow á, K adiw éu,

T erena, G uató, K inikinau, K am ba e Ofaié.

N o final do século X IX e in ício do X X alguns episódios foram determ inantes em m uitas

m odificações no m odo de viver dos povos indígenas no B rasil e no estado do M ato G rosso,

com o: A M atte L aranjeira (1882); o Serviço de P roteção ao índio (SPI que surge em 1910) com

a política indigenista, entre elas a criação das oito reservas no sul do estado de M ato Grosso; e

a criação da C olônia A grícola N acional de D ourados (C A N D - 1944).

O s eventos e instituições citados anteriorm ente, culm inaram na expulsão dos diferentes

grupos indígenas de seus territó rio s tradicionais, bem com o a m odificação dos m odos de ser e

v iv er conform e suas especificidades culturais. T ais situações e seus im pactos foram discutidos

po r B rand (1997), trab alh o etno-histórico que se constitui em um a referência a todos que se

debruçam nas discussões a respeito da h istória indígena dos grupos localizados, hoje, no estado

de M ato G rosso do Sul, com o os N an d ev a e K aiow á que se encontram em m aior núm ero

populacional, com o aponta os dados do censo do IB G E de 2010.O s aspectos da organização

social dos K aiow á podem ser v erificados na abordagem desenvolvida po r P ereira (2004).

A o tra tar dos agentes que contribuíram para a perda dos territórios tradicionais dos

grupos indígenas no M S e as características de suas respectivas estruturas de organização,

busquei evidenciar o longo p eríodo de violências que as diferentes etnias no M S sofreram e


431
sofrem atualm ente. A lém disso, procurei dem onstrar a im portância que a discip lin a de história

possui na produção e análise do conhecim ento do passado e do presente, algo que nos perm ite

construir e desconstruir im aginários estereotipados construídos no d ecorrer do tem po, com o a

im agem negativa atribuída aos “ índios” . N o item a seguir, o propósito é averiguar com o essas

questões relacionadas ao território, as representações quanto a cultura e outros elem entos, foram

elencados pelos estudantes.

“ Q u a n d o C a b r a l c h e g o u a q u i no B ra s il os in d íg e n a s j á e s ta v a m a q u i...”

N a ú ltim a regência no ensino fundam ental apresentei a discussão a respeito de com o se

dá o processo judicial de dem arcação de terras indígenas. L ogo no início da aula, um aluno m e

interrogou: “ O s índios querem to d as as terras? ”

A frase acim a, refere-se um a pergunta realizada por um aluno do 7° ano, quando iniciei

a aula com a exposição do m apa G uarani Retã, que apresenta onde estão localizadas as etnias

falantes de G uarani na A m érica Latina. N a ocasião em que o m apa foi utilizado, os aspectos

que m ais cham aram atenção dos alunos foram o reduzido espaço territorial em que os grupos

étnicos habitam , as áreas am bientais preservadas pelos indígenas e o núm ero expressivo de

indígenas guarani residentes em diferentes terras indígenas, o que d esm istifica a ideia que os “

os índios estão acabando” e a “ cultura se perdendo. ”

N o decorrer da h istória do B rasil, a figura do “ín dio” recebeu diferentes sentidos, que

de acordo com E dson Silva (2013), ao tra tar das im agens construídas quanto ao negro e o

indígena, indica que:

O negro, nunca fora prestigiado, pois a condição de escravizados trazidos da África e


de coisificação imposta não permitia pensá-lo como representação da nacionalidade.
Restava o indígena, que embora combatido no passado e no presente, era o filho
originário da terra e assim como ninguém um elegível e legitimo representante
simbólico da nacionalidade (EDSON SILVA, 2013, p.13).

D e form a genérica, os grupos indígenas foram identificado em m uitos escritos, durante

m uito tem po, com o apenas “ índios” ou os “ T upi” , represen tados assim , em tex to s literários,

pinturas, docum entos oficiais, entre outros registros. M esm o com to d a a riqueza cultural que

possuem , a quantidade significativa de línguas existentes e as m ais distintas form as de

organização social.

P o r vezes, os grupos indígenas foram retratados com o selvagens e prim itivos, e em

outros m om entos, com o no m ovim ento rom ântico brasileiro, com o o índio heroico e/ou dócil.

432
R epresentações foram construídas e m uitas ainda perm anecem presentes nos dias de hoje e

precisam ser desconstruídas. N esse sentido, o ensino de história e o uso diferentes fontes

possibilitam a elaboração de novas form as de apresentar a história dos grupos indígenas na

história, com o sujeitos plenos e protagonistas.

N a discussão a respeito do uso das diferentes linguagens no ensino de história, Selva

G uim arães (2012) contribui de fo rm a significativa para o vislum bre das diferentes

p ossibilidades no ensino de história. A autora cham a atenção para as inúm eras linguagens que

são possíveis de serem utilizadas na sala de aula, seja no ensino fundam ental ou m édio,

dem onstra o quão rico e prazeroso pode se to rn ar o ensino aprendizagem nas aulas de história.

O uso de linguagens e fontes variadas no ensino de h istória pode p ro p o rcio n ar um a

m elh o r fixação do conteúdo ensinado e m otivar os alunos para a im portância do aprendizado

h istórico de fo rm a crítica. D urante a realização das regências, as fontes selecionadas foram : 1-

o livro didático e o referencial curricular do M S (2012); 2- literária- com o poem a E xterm índio,

do poeta douradense E m anuel M arinho; 3-o M apa G uarani Retã208 de 2008, que apresenta o

território e localização dos povos G uarani no B rasil, A rgentina e P araguai; 4 - Iconográfica-

F otografias e desenhos produzidas em 2014 e 2015 com fam ílias da etnia k aiow á de D ourados;

5- C ultura m aterial, artesanatos produzidos p elo s G uarani; 6- Im prensa, recorte do jo rn a l local

O Progresso.

N A prim eira aula, no exercício da regência intitulada: “M S não será terra de índio” ,

refere- se um a frase pub licad a num a de reportagem de 2008, pelo jo rn a l O P rogresso, de

D ourados/M S. 209E scolhi a frase acim a, que foi proferida pelo ex-governador na época dessa

notícia, devido a repercussão que a notícia ganhou no ano de sua publicação nas m ídias locais,

ju sta m e n te po r seu teo r polêm ico e que expressa um alto grau de preconceito e negação de

direitos para com os povos indígenas do estado de M ato G rosso do Sul.

A s turm as de sétim os e nonos anos receberam o recorte do jo rn a l im presso com a notícia,

a instrução era levarem com o atividade de casa e trazerem na aula seguinte. C onform e as

im agens divulgadas em jo rn a is de M S, em conjunto com os tex to s escritos, é possível encontrar

208 O Mapa Guarani Retã de 2008, em conjunto com o caderno que explica aspectos históricos e sócioculuturais
das etnias que compõe os grupos falantes de Guarani (Mbya, Nandeva e Kaiowá), explicam a localização
geográfica do povo Guarani, que podem ser encontrados no Brasil, Argentina e Paraguai. A produção do mapa,
somados a outros materiais, se constitui em uma ferramenta importante na luta dos grupos indígenas, por sua
dimensão política. Fruto do esforço de diferentes entidades e pesquisadores desses grupos. O mapa e o caderno
citado acima, podem ser encontrados no endereço eletrônico. Disponível em:
<http://campanhaguarani.org/guaranicontinental/mapas/>
https://pib.socioambiental.org/files/file/PIB institucional/caderno guarani espanhol.pdf> Acesso em 15
out.2019.
209 Fonte: O Progresso, 08 de agosto de 2008. Disponível a versão digitalizada no Centro de Documentação
Regional da FCH/UFGD.
433
m anifestações de im aginários e representações estigm atizantes210 no trato com os povos

indígenas de M ato G rosso do Sul, produzidas e divulgadas po r m eio de diversos m ecanism os

de notícias.

P o r décadas, os diferentes grupos étnicos localizados, hoje, no M S, tem sido alvo de

inúm eras violências. Im agens são produzidas com suas histórias, suas crianças, sobre suas vidas

e até a respeito de seu futuro/projeções que na m aioria das vezes apresenta um fim trágico para

os grupos.

V ale destacar que para com preender as representações presentes nas fotografias de

indígenas nas páginas do O Progresso, e os tex to s escritos, que m uitas vezes reduzem o “ín dio”

a um a posição de inferioridade, é im portante ratificar essas reduções preconceituosas.

E v id enciando assim , im aginários que foram construídos po r séculos no B rasil, m as que ainda

possuem força e se m anifestam na sociedade.

C onsiderando os apontam entos elencados acim a, no intuito de tecer algum as reflexões

com os alunos acerca do papel que a im prensa desem penha e os cuidados necessários sobre o

que é noticiado, após a entrega do tex to solicitado e a correção, pude identificar term o s e

im pressões que m ais apareceram nos trabalhos entregues. A m aioria dos alunos construiu seus

tex to s a p artir da afirm ação de que “M S é terra dos índios, pois os índios viviam no B rasil m uito

antes da chegada dos europeus” ; u m a parcela m en o r argum entou que “M S não é terra de índio,

porque a terra é de to d o s e os ín d io s precisam ir todos para a A m azônia” ; e por fim , alguns

indecisos, ou que não quiseram m an ifestar sua opinião de form a direta, responderam que “ em

parte, o M S é terra de índio” , estes, apresentaram os grandes proprietários de terra com o vítim as

nesse processo de conflito territorial v iv enciado no M S, e os grupos indígenas com o violentos

e agentes das diferentes form as de violências.

N a m aio ria dos trabalhos, os alunos apresentaram acontecim entos históricos ligados a

h istória indígena brasileira apresentados nas aulas, assim com o os dados dem ográficos e outras

características de cunho cultural discutidos em sala. A s repostas dos estudantes revelam falta

de conhecim ento a respeito da história do B rasil e da presença indígena no território com o

povos originários. C oncom itantem ente, preconceitos e estereótipos arraigados e que se

fortalecem por diferentes m otivações, entre eles as inform ações deturpadas e equivocadas

acerca dos grupos indígenas. P o r outro lado, a experiência desafiadora do ensino da história

210 O conceito de estigma cunhado por Gofman (1988), sociólogo e antropólogo canadense, contribui para orientar
considerações apresentadas no decorrer no texto. Os estigmas que as etnias sul-mato- grossense vivem são
compostas pela falta de dignidade, desumanização, ações discriminatórias e exclusão que os grupos indígenas
estão sujeitos, atribuídas por sua condição de pertencimento étnico.
434
indígena possibilitou perceber que novas perspectivas podem ser apresentadas e contribuir,

ainda que a longo prazo, para a desconstrução de preconceitos.

E m m uitos escritos e no d ecorrer das aulas, alguns alunos m anifestaram opiniões

diversas, realizaram perguntas e se m ostraram surpresos no contato com algum as discussões

com o o dem orado processo de dem arcação de um T erra Indígena e as situações de

m iserabilidades que os grupos estão sujeitos, devido à perda de seus territó rio s ao longo da

h istória do Brasil.

A s experiências dos estágios supervisionados configuram -se com o algo essencial para

form ação dos futuros professores e professoras de H istória. T eoria e prática estão

intrinsecam ente relacionadas, e no contato com o espaço escolar, nós, na condição de

estudantes, aprendizes do ofício docente, tem os a oportunidade de experenciar durante o

p eríodo do estágio, os desafios, as dificuldades e as satisfações presentes na escola e em especial

nas salas de aula no contato com os alunos e alunas do ensino fundam ental e m édio.

C o n s id e ra ç õ e s F in a is

A abordagem a respeito dos conflitos territoriais entre os grupos indígenas e os não

indígenas, po r m eio dos registros escritos dos alunos se configurou em u m a desafiadora

experiência no ensino de história. Id entificar os principais aspectos presentes nas respostas dos

alunos e explicitar algum as possibilidades do ensino de histó ria indígena e o uso de diferentes

fontes, se configurou enquanto um dos elem entos centrais para a discussão desenhada no

presente texto.

A o tra tar dos agentes que contribuíram p ara a perda dos territórios tradicionais dos

grupos indígenas no M S e as características de suas respectivas estruturas de organização, foi

possível evidenciar, durante as aulas, o longo período de violências que as diferentes etnias no

M S sofreram e sofrem atualm ente, assim com o, dem onstrar o v alo r que a disciplina de história

possui e sua contribuição para o conhecim ento do passado e do presente, algo que nos perm ite

construir e desconstruir im aginários estereotipados e construídos no decorrer do tem po, com o

a im agem negativa atribuída aos “ índios” .

E assim , ao térm ino das aulas, condições de d iscutir com alunos/as, porque o M S é palco

de tantos conflitos, ligados a disputa territorial. P assando p elo s variados episódios históricos

que dem onstram com o as etnias indígenas foram expulsas, escravizadas, se constituíram em

m ão obra explorada e tendo suas vidas ceifadas no decorrer da história do B rasil, assim com o,

apresentei características socioculturais e históricas de um a das etnias que se encontra em m aior

435
núm ero no estado de M S, para que na ú ltim a aula, pudesse refletir no processo ju d icial de

dem arcação de um a T erra Indígena

M uitos estudantes expuseram afirm ações com o: “ os índios invadem as terras dos

fazendeiros” , “ os índios querem todas as terras” , os fazendeiros perdem suas terras e os índios

ficam com tu d o ” , entre outras colocações que sucederam no m esm o sentido. U m ideário

construído pela desinform ação e preconceito relativo aos grupos in d íg en as e as dem andas

territoriais que os envolvem , um discurso m uito sem elhante ao que circula por m eio dos m eios

de com unicação, com o na im prensa local da cidade e do estado.

A educação se constitui em um espaço propício para a im plantação de novas práticas,

que consequentem ente acarretarão na transform ação de im aginários construídos

historicam ente, no qual o negro e o índio foram negligenciados na h istória b rasileira. N esse

sentido, a im plantação da Lei 11.645 se constitui em um m arco para a m inim ização desse

cenário de desigualdades e discrim inação no qual diversos grupos sociais estão sujeitos.

R ep en sar as histórias e culturas dos povos indígenas e suas contribuições na história do

B rasil, no passado e no presente, se constitui enquanto um desafio de d escolonização de saberes,

pensam entos e práticas.

A diferentes etnias do B rasil continuam com suas p ráticas e elem entos culturais

específicos de seus grupos, com m uitas perm anências, assim com o diversas rupturas e

m udanças culturais que são frutos das relações h u m an as no decorrer do tem po e dos im pactos

ocasionados pelas ações do E stad o e outros agentes.

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F o n te s

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D o cu m en tação R egional da FC H /U FG D . J o r n a l O P ro g re s s o , (1920 a 2015) versão
digitalizada. D isponível para pesquisa no C entro de D ocum entação R egional, U niversidade
F ederal da G rande D ourados.
T extos de opinião construídos pelos estudantes do ensino fundam ental durante as aulas de
história, no período de estágio supervisionado.

438
FOTOGRAFIAS DA COMISSÃO RONDON NO SUL DE MATO
GROSSO

JU L IA F A L G E T I L U N A 211
M estre em H istória-U F G D / D outo ran d a em H istória-U F G D

R e su m o : A presente proposta de com unicação, faz parte do estudo de doutorado, em


andam ento, e tem com o objetivo o estudo de fontes im agéticas, as fotografias, produzidas pela
C om issão R ondon, no sul de M ato G rosso, início do século XX, precisam ente entre 1900- 1906.
M ais do que responsável por executar obras de infraestrutura e geopolítica no in terio r do B rasil,
a C om issão chefiada por M arechal C ândido M ariano R ondon realizava pesquisas botânicas,
geológicas e levantam ento dos povos indígenas. P artindo desses pressupostos, a efetivação da
proposta de estudo foi possível devido à consulta da obra Índios B rasil, to m o I (2019). A
n arrativa assenta-se, assim , na com preensão do papel histórico das im agens produzidas no sul
de M ato G rosso pela C om issão R ondon, cujas representações im agéticas originadas das
expedições de R ondon possuem historicidade de um passado não distante, sendo possível
v isualizar os aspectos geográfico, a fauna, a flo ra e as relações sociais estabelecidas.

P a la v ra s -c h a v e : Fotografias. C om issão R ondon. Sul de M ato Grosso.

C o n s id e ra ç õ e s In ic ia is

O trabalho aqui apresentado, com o títu lo Fotografias da C om issão R ondon no Sul de

M ato G rosso, abrange um recorte inicial acerca m aterial im agético (fotografias), produzidas

pela conhecida C om issão R ondon, no início do século X X , no Sul do E stad o de M ato G rosso.

O interesse pela tem ática surgiu durante o processo de escrita da dissertação de m estrado,

quando tive contato com estudos que referenciavam os trabalhos im agéticos da C om issão

R ondon. N a busca po r fontes acerca da tem ática, a princípio, tive acesso apenas ao livro índios

do Brasil, especificam ente o Tomo I, que contém fotografias do recorte geográfico - pretensão
deste ensaio, o Sul de M ato G rosso. D estaco que há m ais dois outros tom os, II e III, com

fotografias e inform ações sobre outras localidades do Brasil.

A pós esse contato inicial com as fontes, no ano de 2021 em participação com o aluna

especial da disciplina T ópicos especiais II: h istória e historiografia de M ato G rosso e M ato

G rosso do Sul, ofertada pelo P rogram a de P ó s-g rad u ação em H istó ria da U niversidade Federal

211 Graduada em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul- Campus de Nova Andradina. Mestre
pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD e,
atualmente, doutoranda em História pelo mesmo programa. Contato: iuliafluna94@gmail.com/
juliafalgeti. 94@hotmail. com .
439
da G rande D ourados, pude aprofundar o estudo acerca da tem ática o que posteriorm ente

resultou na form ulação e aprovação do projeto de doutorado212. D entre a b ib liografia estudada

na disciplina, a m enção aos trab alh o s da C om issão R o n d o n em M ato G rosso ocorreu no livro

da professora e h istoriadora L ylia G aletti, Sertão, fronteira, Brasil: imagens de Mato Grosso

no mapa da civilização (2012), que por sua vez faz referência ao trabalho de L aura A ntunes
M aciel (1998).

A p artir de então iniciei um levantam ento de obras: artigos, dissertações, teses e livros

que abordam a historicidade da C om issão R ondon e a sua produção im agética. A inda há um

extenso trabalho a ser realizado, com o po r exem plo, o levantam ento de im agens fotográficas

na base de dados nos arquivos do M u seu do Ín d io / R J e leituras de obras que não estão

disponíveis nos bancos digitais.

S egundo a h istoriadora A na M aria M auad (2002), a fotografia, desde o seu surgim ento

vem acom panhando e se adaptando às m udanças ocorridas no m undo, sendo u tilizad a com o

m étodo de registro de histórias em u m a linguagem de im agens. A hum anidade é consum idora

de im agens, seja po r m eio dos veículos de com unicação ou pelos arquivos particulares, as

fotografias fazem parte do cotidiano desde o seu surgim ento213.

O uso de fontes não escritas, especificam ente im agens fotográficas, é um cam po já

reconhecido nos dom ínios historiográficos, que perm ite desvelar presenças/ausências de

determ inados sujeitos ou conjunturas históricas. A u tilização dessa tipologia de fonte tem

crescido consideravelm ente nas abordagens de pesquisa histórica, principalm ente após os

m eados do século X X (M A U A D , 2002).

M aria E liza L inhares B orges (2011) destacou, em seu estudo, que as im agens em um a

to talid ad e são polissêm icas. A s variad as facetas desse docum ento culm inaram em diferentes

com preensões entre os historiadores, po r exem plo, o condicionam ento de espelhos da realidade

ou conceitos equivalentes foram uns dos entendim entos. B orges (2011) po r sua vez, considera

que as im agens devem ser entendidas com o m ediadoras e não com o reflexos de um fato

histórico.

P ensar a fotografia ou dem ais im agens com o um registro fiel da realidade, que legitim a

ou com prova um fato é, por sua vez, um pensam ento errôneo. A s fotografias, assim com o as

dem ais fontes históricas, precisam ser interrogadas, passam pela construção e intencionalidades

212 A aprovação do mencionado projeto de pesquisa ocorreu no início do ano de 2022 no Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD, e encontra-se em fase de
andamento.
213 A respeito do surgimento da fotografia as historiadoras Mauad (1996) e Borges (2011) consideram que a partir
de 1800 ocorreu um desenvolvimento tecnológico que fomentou pesquisas que buscaram reter imagens em uma
câmera escura.
440
de seus produtores. Sendo assim , as fotografias das expedições da C om issão R ondon são, neste

ensaio, com preendidas com o registros históricos de um a determ inada época e que foram

produzidas a p artir de intencionalidades.

A C o m issã o R o n d o n

A C om issão R on d o n com o ficou conhecida no país, carregava consigo o sobrenom e do

M arechal C ândido M ariano da Silva R on d o n 214, um m ilitar, que em fins dos anos de 1880 havia

recentem ente se form ado um oficial engenheiro. Segundo o antropólogo F ernando de Tacca

(2001, p.15), o jo v em R ondon participou, com o ajudante, com o m ajor G om es C arneiro, das

prim eiras com issões de L inhas T elegráficas que iniciaram os trabalhos em 1889. A p artir de

1891 passou a com andar, efetivam ente, a C om issão. A m udança de com ando ocorreu devido à

ausência do m ajor G om es M achado.

O s m ilitares do alto escalão que desenvolviam trabalho na C om issão R ondon eram , em

sua m aioria, filiados à corrente de pensam ento da filosofia positivista e evolucionista. Segundo

M aciel (1998, p.168) esses m ilitares defendiam um a p erspectiva de progresso aliado ao

desenvolvim ento técnico-cientifico. O telégrafo e consequentem ente a com unicação telegráfica

despontava com o m eio de com unicação m ais adequado para a m anutenção da ordem pública.

Q uanto à expressão C om issão R ondon, T acca (2011) relata que fora atribuída às

diversas com issões chefiadas po r R ondon. E m 1891, R on d o n assum iu a liderança da C om issão

C onstrutora de L inhas T elegráficas do A raguaia e da C om issão C onstrutora e L inhas

telegráficas no E stad o de M ato G rosso (de C uiabá a C orum bá, até as fronteiras com B olívia e

P araguai, 1900-1906). Posteriorm ente, R ondon tornou-se responsável pela C om issão de L inhas

214 Por meio de consulta ao verbete disposto na página do CPDOC/FGV, Candido Mariano da Silva Rondon nasceu
em Mimoso, município de Santo Antônio de Leverger, no dia 05 de maio de 1865. O pai Candido Mariano da
Silva faleceu antes do nascimento do filho, vítima da epidemia de varíola, no ano de 1864. A mãe Claudina Lucas
Evangelista veio a óbito no ano de 1867, a causa da morte não foi revelada. Após ficar órfão, ficou aos cuidados
de um tio, Manuel Rodrigues da Silva Rondon, de quem em 1890 agregou o sobrenome Rondon, tornando-se
assim Candido Mariano da Silva Rondon. Rondon possuía ascendência materna de indígenas Bororo. Na década
de 1870 formou-se professor primário, mas abandonou a carreira para se tornar militar. No curso preparatório da
Escola Militar foi aluno de Benjamim Constant, que por sua vez exerceu forte influência na vida de Rondon,
principalmente em relação aos ideais positivistas, Rondon foi professor da Escola Militar antes de ser indicado
para trabalhar na Comissão de Linhas Telegráficas, por meio de sua atuação e defesa dos indígenas ganhou
notoriedade nos debates públicos que lhe rendeu em 1910, com a fundação do Serviço de Proteção aos Índios, o
cargo de direção do Serviço. Rondon participou de várias expedições ligadas à Comissão de Linhas Telegráficas
e SPI. Por fim, Rondon foi conduzido ao cargo de diretor do Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI).
mais em: MAYER, Jorge Miguel. Candido Mariano da Silva Rondon. Centro de Documentação e Pesquisa de
História Contemporânea do Brasil/ CPDOC, s/a. Disponível em:<
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/candido-mariano-da-silva-rondon >. Acesso em
19 jul. de 2021.
44 1
T elegráficas E stratégicas de M ato G rosso ao A m azonas a C L T E M A , cujos trabalhos

encerraram -se em 1916. R ondon tam bém foi o responsável pela E xpedição C ientífica R ondon-

R oosevelt, entre 1913-1914, e p ela Inspetoria de Fronteiras, criada na década de 1920.

D essa form a, a C om issão R ondon, chefiada po r M arechal C andido M ariano R ondon,

destacou-se no período republicano b rasileiro com o um ó rgão incum bido de levar o progresso

para os sertões brasileiro. A C om issão de L inhas T elegráficas E stratégicas percorreu o que os

b rasileiros interpretavam com o in terio r do B rasil, in stalando as linhas telegráficas que

facilitariam a com unicação, proporcionando u m a m elhor agilidade. O rientados po r R ondon, o

órgão passou a produzir e divulgar im agens, apresentando, dessa fo rm a o in terio r aos centros

urbanos.

A C om issão R on d o n tornou-se conhecida pela realização de trabalhos que, de certo

m odo, b eneficiaram o país. C ontudo, é oportuno ressaltar a seguinte passagem em M aciel

(1998):

Em Cuiabá corriam boatos de quem ia para a Comissão nunca mais voltava,


trabalhando como ‘escravos’ até o fim de seus dias ou, caso conseguisse fugir, não
poderia retornar ao local de origem, onde os chefes de polícia se encarregavam de
mandá-los de volta para cumprir seus contratos de trabalho [...] (MACIEL, 1998, p.
131).

A histó ria oficial do órgão e, certam ente, a im prensa não destacavam relatos com o o

trech o supracitado. M aciel (1998) apresenta-nos situações que ocorriam na C om issão R ondon

e que são pouco conhecidas. O uso de vio lên cia contra trabalhadores da C om issão não era um a

prática aprovada por todos os oficiais, alguns repudiavam esse tip o de agressão. C onform e a

autora, os castigos não eram aplicados diariam ente, m as sim nos m om entos oportunos e de

fo rm a dosada, contudo não deixa de ser injustificável tal prática.

P essoas em situações de degredo eram enviadas aos locais de trabalho da C om issão

R on d o n ou da linha férrea M adeira-M am oré para serem utilizados com o m ão de obra. N a

n arrativa de M aciel (1998) é possível p erceber que esses trabalhados eram contratados com o

diaristas e lhes era prom etido o ordenam ento de 5.000 ou 6.000 réis, a serem pagos nos fins de

cada m ês. A esses sujeitos relatavam que seriam tratados com o hom ens livres. A prática,

entretanto, contrapunha-se com o que era prom etido; ao chegarem aos cam pos de trabalhos

eram separados e atribuído os trabalhos m ais pesados.

M aciel (1998) relatou que as m ás condições de trabalho não afetavam apenas os

trabalhadores civis, m as tam bém os m ilitares. A alim entação não era adequada para o tip o de

esforço realizado, a ingestão de água não potável e o clim a de algum as regiões favoreciam o

442
acom etim ento de doenças. V idas foram perdidas durante o processo de execução dos trabalhos

da C om issão R ondon.

C om o advento da R epública no B rasil, term os com o progresso e m odernização, entre

outros com a m esm a finalidade se fizeram com uns, pois representavam a efervescência

intelectual na passagem do século X IX para o X X e culm inaram em m udanças n o Brasil.

Segundo R odrigues (2011, p. 205) ocorreu um reordenam ento político-cultural nacional nos

prim órdios do século XX, em que a ideia central é m odernizar o país, a partir dos m oldes

europeus. A nova estrutura desejada pelos governantes e sociedade d ev eria alcançar todos os

lugares do Brasil.

M ato G rosso, no contexto republicano, era área interiorana do B rasil pouquíssim o

povoada po r não indígenas. D e acordo com G alleti (2012), M ato G rosso frequentem ente

transpareceu ser um lugar de rica natureza inesgotável, pronto a ser explorado, m as tam bém

com u m a vasta população indígena, o que, na visão dos não indígenas era um problem a. D essa

fo rm a M ato G rosso era visto pelos próprios brasileiros a p artir de u m a im agem negativa, ligada

à selvageria e barbárie.

Já no entendim ento de L ucidio (2008 p. 75), M ato G rosso ganhou im pulso com ercial

com a reabertura da navegação no rio Paraguai, m as não m inim izou as diferenças sociais entre

a elite m ato-grossense, alfabetizada e consum idora cultural, em contraponto com o restante da

população, pobre, analfabeta e alheia aos propósitos de m odernização e progresso. Segundo o

autor, os grupos dom inantes ressaltavam as riquezas do estado e as potencialidades econôm icas,

sendo as carências nos m eios de transporte e de com unicação m otivo de atraso, bem com o a

n atu reza do hom em m ato-grossense que com ascendentes negros, indígenas, pardos e m estiços

não eram afeitos às condições que a m odernidade exigia. D e fato, é possível vislu m b rar nos

trabalhos de: G aletti (2012), Q ueiroz (2006) e L ucidio (2008) um a discussão sobre a b u sca por

u m a identidade m ato-grossense, que destacasse os benefícios da localidade em detrim ento à

im agem negativa que o estado possuía.

A s im a g e n s d a C o m issã o R o n d o n

A o com ando de R ondon, as com issões to rn aram -se sím bolos de progresso e

m odernização do país. É nesse cenário que o próprio R on d o n com eçou a ocupar lugar nos

debates público e político, ocorridos nos grandes centros urbanos, São P aulo e R io de Janeiro,

em relação ao destino dos indígenas e da colonização do país. F ilho de M ato G rosso, R ondon,

aliou trabalho e im agens (fotografias e cinem atografias) a seu favor: “R ondon não fotografou
443
M ato G rosso. E le registrou aspectos de seus trabalhos que ocorreram , principalm ente, em terras

m ato-grossenses. Fez da im agem u m a aliada política” (L U C ID IO , 2008, p.89).

O s registros fotográficos realizados pela C om issão R ondon durante seus trabalhos eram

enviados anexos aos relatórios para o governo nacional, bem com o am plam ente divulgados em

conferências proferidas pelo próprio R ondon. S egundo T acca:

Se as autoridades eram persuadidas pelas fotografias, as apresentações dos filmes e os


artigos publicados nos principais jornais do país visavam principalmente outro grupo
formador de opinião, a elite urbana sedenta de imagens e informações sobre o sertão
brasileiro, e Rondon alimentava o espirito nacionalista construindo etnografias de um
ponto de vista estratégico (TACCA, 2001, p. 17).

E ntendem os que nas im agens divulgadas po r R ondon havia o intuito de fo m en tar a

curiosidade da elite litorânea interessada em conhecer o B rasil dos sertões, e de certo m odo,

conquistar esse público, visto que neles poderiam encontrar aliados que partilhassem da m esm a

discussão de pauta que o próprio R ondon. E ssa elite que fo ra m encionada, estava

geograficam ente distante do in terio r brasileiro, logo conhecia o indígena, por exem plo, apenas

po r m eio das representações na literatura brasileira. D essa form a, a im agética R ondon insere

u m a nova m aneira de conhecer o desconhecido.

N esse contexto, o desconhecido era o território, as gentes, os costum es, as paisagens

etc., que poderia condicionar em casos de olhares estereotipados dos “ outros” . O historiador

P e ter B urke (2017) em Testemunha ocular. O uso de imagens como evidência histórica discorre

sobre as m aneiras com que o “ outro” pode ser representado; m ais precisam ente com o as

im agens ajudam a p erpetuar ou com bater os estereótipos.

B urke cham a atenção não apenas para a idealização daqueles que estão além das

fronteiras, m as tam bém para os sujeitos concebidos com o “ outro” , que com ungam do m esm o

território nacional. D essa form a, entendem os que tanto os indígenas brasileiros com o os não

indígenas que m oravam nas áreas visitadas pela C om issão R ondon estavam inseridos no

contexto daqueles que com ungam do m esm o espaço territorial, m as que, po r sua diversidade

cultural, acabavam sendo relativizados com o sujeitos que não se enquadravam aos padrões de

civilidade.

Segundo G aletti (2012, p.259) “ [...] R ondon tin h a com o m issão integrar os sertões ao

corpo da pátria [...]” . C om preende-se que a passagem anterior se deve ao fato de que o B rasil

havia, recentem ente, tornado-se república; logo, órgãos com o a C o m issão de R ondon

objetivavam fom entar o sentim ento de nacionalidade e pertencim ento de u n id ad e territorial. N o

entendim ento de R ondon, o telégrafo, a construção de ferrovias e os serviços m ilitares nas

localidades longínquas do B rasil, eram benéficas ao povo, pois estreitariam relações,

444
im pulsionariam o desenvolvim ento industrial e colaborariam com a consolidação do capital,

base da felicidade das sociedades m odernas (M A C IE L , 1998).

M aciel (1998) aborda a com preensão da história das C om issões ao com ando de R ondon,

bem com o os projetos políticos dos prim eiros anos da R epública. A autora evidencia elem entos

que ficam obscuros diante da idealização da figura de R ondon e dos benefícios im plem entados

pela C om issão R ondon à sociedade. M aciel reconhece a apropriação que R ondon faz das

im agens (fotografias e film es) das expedições com o fo rm a de se co m u n icar com a sociedade

brasileira.

E m consulta à obra Índios do B rasil, tom o I 215, anteriorm ente m encionada, im porta

ressaltar que o tom o em questão possui fotografias de indígenas brasileiros e de áreas da região

centro, noroeste e sul de M ato G rosso. C om relação a esses povos, o ín d ice do livro m enciona

36 etnias diferentes, organizadas em ordem alfabética:

1 - A nuzê 13 Ipoteuate 25 - Q uiapure


2 - A riquem e 14 Iranche 26 - R am a-ram a
3 - A riti (P areci) 15 Jaru 27 - Salam ãe
4 - B ororo 16 M am aindê 28 - T acuatepe
5 - C abixi 17 M açacá 29 - Tagnani
6 - C adiuveo 18 N avaitê 30 - Tauitê
7 - C aiuá 19 N enê 31 - T erena
8 - C anoê 20 N h am biquara 32 - U aim aré
9 - C aripuna 21 P arintintim 33 - U am andiri
10 - C axiniti 22 P arnauate (Tupi) 34 - U m utina
11 - C ozárini 23 P irarrã 35 - U rum i
12 - G uató 24 Q uepiquiriuate 36 - U rupá

A s fotografias dos povos indígenas e áreas referentes ao sul de M ato G rosso podem ser

localizadas das páginas 315 a 338 da obra. A coleção fotográfica som a aproxim adam ente 40

fotografias em coloração preto e branco. A s im agens fotográficas estão num eradas, seguindo

u m a ordem , que não significa corresponder à ordem da produção do registro. A presentam um a

breve legenda e abaixo o nom e do fotógrafo que a produziu, sem outras inform ações adicionais.

Segundo M aciel (1998, p.189) “ [...] ‘Índios do B ra sil’, foi publicado em três volum es, sob o

patrocínio do C onselho N acional de P roteção aos Índios nos anos 40, e pretende ser u m a grande

síntese de todo o trabalho realizado nas regiões percorridas pela C om issão e pelo SPI216” . A ssim

215 É oportuno ressaltar que a mencionada obra possui 378 páginas. A versão que a autora deste artigo possui é
datada de 2019, uma publicação especial do Senado Federal, disponível para download em:
http://www2. senado.le g.br/bdsf/handle/id/559114.
216 É oportuno esclarecer que o Serviço de Proteção aos Índios, o SPI, conforme citado por Maciel (1998) foi um
órgão oficialmente criado no ano de 1910, regulamentado pelo decreto n° 8072 e vinculado ao Ministério da
Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC). Inicialmente a sigla do órgão era SPILTN, que significava: Serviço de
Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais. Em linhas gerais, o desmembramento do SPILTN
445
com o a C om issão R on d o n o SPI tam bém incorporou a prática de docum entar seus serviços em

fotografias, os órgãos se diferenciavam na tipologia de im agens produzida. C om relação ao

tom o I de Índios do B rasil é difícil associar, por exem plo, a qual órgão pertencia a autoria das

im agens, um a vez que os registros disponíveis referenciam apenas aos fotógrafos.

Segundo T acca (2001, p.02) a C om issão R ondon, criou em 1912, u m a seção própria

para organizar os serviços fotográficos, que foi intitulada: Secção de Cinematographia e

Photographia, com andada po r um m ilitar, o m ajor T hom az L uiz R eis, a quem é rem etida a
autoria da grande parte dos registros im agéticos, m as R eis não era o único que realizava os

registros im agéticos, nom es com o o de José Loro, B enjam in R ondon, Joaquim R ondon,

C harlotte R osenbaum e C arlos Lako, tam bém foram m encionados po r F ernando T acca com o

fotógrafos que prestaram serviços à C om issão R ondon. C onsiderando a m enção a vários nom es,

é legitim o supor que as conduções dos registros fotográficos, anterior à seção de cinem atografia

e fotografia, foram orientadas po r alguém que estava ao com andando d a C om issão (M A C IE L ,

1998, p.193).

O contexto das im agens, conform e observadas no to m o I são variadas, no capítulo

referente ao sul de M ato G rosso, é possível v isualizar indígenas das etnias Terena, K aiow á e

K adiw éu em suas casas, ju n to a seus fam iliares, hom ens, m ulheres e crianças, bem com o a vista

parcial da localidade em que residiam e os cotidianos no que estavam inseridos. E m algum as

das fotografias dois indígenas da etnia T erena aparecem travestidos com os uniform es usados

na guerra com o P araguai, de m odo que ao visualizar a fotografia no nosso entendim ento seja

ressaltado os préstim os desses sujeitos na defesa do B rasil. A presença de R ondon pode ser

visualizada em fotografias, ele aparece ju n ta m e n te com os indígenas e em visitas aos

acam pam entos da em presa de exploração da erva-m ate.

A lguns aspectos presentes nas fotografias cham aram a atenção, o prim eiro diz respeito

à organização das fotografias, não há tex to s inform ativos, apenas as breves legendas. A s

pessoas que ora são representadas nas fotografias não são nom eadas, apenas há a identificação

da etnia, no caso de indígenas. E m b o a parte da coleção referente ao sul de M ato G rosso, os

indígenas vestem roupas dom ingueiras, as m ulheres usam enfeites, com o laços em seus cabelos.

Segundo T acca (2001) o uso de roupas padronizadas, igualava os indígenas de várias etnias

dando a im pressão genérica.

E m b o ra a consulta às fotografias do to m o I ten h a sido centrada no capítulo referente ao

sul de M ato G rosso, as dem ais im agens não foram ignoradas. Isso nos levou à percepção de há

ocorreu oficialmente em 1918, por meio do decreto de Lei n° 3.454. A localização de trabalhadores nacionais não
deixou de existir; apenas foi transferida para outra pasta governamental.

446
fotografias que não estão configuradas com a tem ática dos capítulos; po r exem plo, há im agens

dos cam pos do rio V acarias inseridas no livro, m as em capítulos com outras finalidades, sem

m uitas afinidades com a região representada na im agem . Segundo M aciel (1998, p.189) “ [...]

as fotografias produzidas pela C om issão foram selecionadas e publicadas algum as m ais de um a

vez[...]” . O que pode ter ocorrido com a fotografias, observadas com estranheza pela sua

disposição no tom o I, é que ao serem selecionadas e publicadas acabaram passando

d esapercebidas.

P o r fim , com preendem os a riqueza dos detalhes presentes nas fotografias do tom o I, de

m odo que se configuram com o um interessante inventário im agético, a ser explorado, sobre as

representações e ações da C om issão R ondon. N essas fotografias é possível conceber a

intencionalidade do órgão, m as, sobretudo conhecer as gentes que se fizeram presentes, em um

passado não distante, em M ato Grosso.

C o n s id e ra ç õ e s fin ais

A h istória da C om issão R ondon com eçou na passagem do século X IX e início do XX,

num m om ento de efervescência política, devido à P roclam ação da R epública. C om o observado

po r m eio dos estudos realizados, conceitos com o: progresso e m odernidade faziam parte dos

projetos políticos dos governantes. O B rasil, um país de tam anho continental, possuía áreas,

com o o estado de M ato G rosso, pouco habitados po r colonos. N a visão dos governantes, e

gestores do progresso e da elite local era interessante to m a r iniciativas que incentivassem o

povoam ento de localidades que estavam na m esm a situação que M ato Grosso.

A construção de linhas férreas e a instalação de linhas telegráficas foram um dos vários

m odos de oferecer o progresso e consequentem ente atrair colonos. Porém , conform e estudado

os povos indígenas que habitaram essas áreas eram tidos com o obstáculos para o avanço da

m odernidade. V istos com o incivilizados, havia um im aginário de que esses povos eram capazes

de com eter violência contra os não indígenas. O que as autoridades não levavam em

consideração era a necessidade de solucionar os problem as quanto à garantia de suas áreas em

contraponto com as dem ais áreas que seriam destinadas à colonização.

D essa form a, a p artir de 1900, a C om issão R ondon na figura do próprio com andante

M arechal R ondon, passou a docum entar im ageticam ente os trabalhos da com issão e,

posteriorm ente, a divulgar entre as gentes dos grandes centros urbanos o trabalho de am ansar

os sertões, seja levando o progresso po r m eio das linhas telegráficas ou realizando um trabalho

de contato pedagógico de pacificação dos indígenas. D essa form a, as divulgações dos trabalhos
447
da C om issão R ondon passaram a fom entar o debate público que inseriam os indígenas, por

exem plo, com o sujeitos que estavam prontos para serem integrados à so ciedade nacional, porém

necessitavam , na visão positivista dessas lideranças, da intervenção do E stado, com o realm ente

ocorreu, anos depois, com a criação do S P I.

C om preendem os, neste ensaio, a im portância conferida aos registros im agéticos

realizados pela C om issão R ondon. S ão im agens posadas, que tiveram a interferência dos

fotógrafos, foram produzidas a p artir de u m a intencionalidade, a divulgação. R etratam gentes,

lugares, ações, práticas, belezas naturais entre outras. T odas com o objetivo de am plam ente

divulgar não som ente os trabalhos da C om issão, m as tam bém de incentivar a colonização para

essas áreas, transm itindo a ideia de que o progresso está em todos os recantos do país.

O M arechal R ondon garantiu destaque na política e im prensa nacional, ju stam en te p o r

u sa r os docum entos im agéticos a seu favor. A s im agens com as representações colocam o

m arechal sem pre em p osição de destaque, u sando suas roupas de oficial, fiscalizando obras.

Q uan d o fotografado com os indígenas é cordial, sim bolizando um a b o a relação. A polissem ia

atribuída às im agens de u m a m aneira geral, tam bém deve ser aplicada aos registros produzidos

pela C om issão, considerando o contexto em que foram produzidas e cuja finalidade seria a

divulgação.

P o r fim , entendem os que os registros im agéticos podem e devem ser utilizados nos

entendim entos de fatos históricos. O conjunto de fotografias e dem ais im agens produzidas pela

C om issão R ondon não ressaltam apenas a im portância do órgão, m as contribuem para a história

e m em ória coletivas de lugares e grupos.

R e fe rê n c ia s b ib lio g rá fic a s

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449
O ALINHAVAR DA MEMÓRIA DO QUE SE QUER PRESERVAR E A
CRÍTICA DO QUE SE QUER TRANSFORMAR: UMA ANÁLISE DO
FAZER ARTESANAL CERAMISTA DO VALE DO JEQUITINHONHA.

JU L IA N A P E R E IR A R A M A L H O 217

E ste trabalho tem com o objetivo analisar o artesanato em barro produzido no V ale do

Jequitinhonha, a partir dos aspectos socioeconôm icos e culturais que com põem o seu processo

criativo. A id eia de desenvolvim ento do processo artesanal que utilizam os neste estudo está

b asead a na tipologia desenvolvida po r R ubim (2007 e 2008), que entende que o processo

cultural se dá a p artir da existência de m ovim entos diferenciados: criação, invenção e inovação;

divulgação, transm issão e difusão; troca, intercâm bio e cooperação; p reservação e conservação;

análise, crítica, estudo, investigação, pesquisa e reflexão; consum o e organização. T odos estes

m ovim entos articulados constituem o com plexo sistem a cultural que vem , cada vez m ais, sendo

acionado com o elem ento de políticas governam entais, ao m esm o tem p o em que, constitui-se

alvo de reivindicações da sociedade civil organizada. A pesar de essas diversas fases

apresentarem de form a entrelaçada, neste artigo, optou-se por fo car na fase criativa do

artesanato, evidenciando a tip o lo g ia das peças confeccionadas pelos artesãos jeq u itin h o n h en ses

e a sua relação com o vivido n aquela realidade.

T endo com o base m etodológica a observação participante e a história oral, procurou-se

observar a população pesquisada a partir das suas diversas inserções e redes sociais

estabelecidas na com unidade. A p o rta de acesso escolhida para a inserção neste universo

artístico foram os locais de com ercialização dentro e fora do V ale do Jequitinhonha,

especialm ente as feiras locais e regionais.

A s feiras sem anais, que geralm ente acontecem aos sábados nas diferentes cidades do

Jequitinhonha, constituem im portante lócus de trocas, tanto m ateriais com o sim bólicas. D evido

às com plexas interações existentes neste espaço social, pudem os estabelecer aproxim ação com

os artesãos, ao m esm o tem po em que se construía a rede de info rm an tes que viria a com por o

tecid o deste trabalho.

O estabelecim ento da confiança, intim idade e vivência com os participantes da pesquisa

foram fundam entais para o segundo m om ento do trabalho, pautado no conhecim ento das

relações m icrossociais, vivenciadas pelos artesãos em seu cotidiano. C ada visita a cam po era,

m etaforicam ente, um passaporte de autorização social concedido para adentrar o universo

2171 D outora em H istória p ela U niversidad e Federal de Ouro Preto (U FO P).


450
fam iliar do artesanato. C om o alerta Silva (2000), no trab alh o de cam po, o pesquisador tam bém

se tran sfo rm a em objeto de pesquisa. D a m esm a fo rm a que eu, na condição de pesquisadora,

tin h a o m eu caderno de cam po a tiracolo, os m eus interlocutores debulhavam interrogações

acerca da m inha origem , dos m eus objetivos, das representações que eu poderia construir a

respeito de suas v ivências, com o tam bém se interessavam pela possível existência de elem entos

de que eu poderia d ispor para o estabelecim ento das trocas. E aqui entendam tro cas no sentido

de am izade e tam bém com o um a pessoa que representava, m esm o sendo natural do

Jequitinhonha, a ponte do Jequitinhonha com o externo, ou seja, a U niversidade. E ste m om ento

pod eria ser descrito com o u m a fase de fundam ental im portância em que se decidiam a aceitação

ou a n ão-aceitação das negociações em que am bas as partes - pesquisadora e inform antes, cada

u m a alternando de posição de acordo com as circunstâncias - estabeleceram entre si em que se

perm itiu o acesso aos códigos das subjetividades em diálogo. N este m om ento, desenrolaram -se

os frágeis “fios de A riadne” (SILV A , 2000, p. 66) que nos conduziram até este m om ento da

escrita etnográfica e, com certeza, continuará a influenciar nossas vindouras reflexões nos

com plexos labirintos da cultura p opular do Jequitinhonha.

C ada conversa com um artesão era um universo que se ab ria e conduzia a outro,

perm itindo que adentrássem os o ín tim o da vida daquelas pessoas, ao m esm o tem po que se

alargavam os horizontes da pesquisa. E sta trajetória foi com posta de vários encontros, em

diferentes m om entos, com os artesãos e m ediadores culturais do V ale do Jequitinhonha. N em

todos os artesãos visitados foram entrevistados, um a vez que optam os po r estabelecer um

contato m ais estreito com os artesãos para execução das entrevistas. E sta postura m etodológica

im pediu que retornássem os a to d as as com unidades visitadas p ara com plem entação da

entrevista com os artesãos e m ediadores com quem havíam os estabelecido contato em um

prim eiro m om ento. A inda que não tenham os form alm ente registrado seus depoim entos através

das entrevistas, estas pessoas foram fundam entais para a construção das redes de inform antes e

tam bém para o conhecim ento dos m eandros que com põem o fazer artesanal no Jequitinhonha.

O cam po de pesquisa com eçou a ser construído no prim eiro sem estre de 2008, quando

traçam os o objetivo de v iv en ciar a realidade das feiras de artesanato realizadas no V ale do

Jequitinhonha. C om o o intuito era estabelecer contato com o m aior n úm ero de artesãos, foi

definido que iniciaríam os pela F eira de A rtesanato que a cada ano acontece no F estivale,

F estival da C ultura P o p u lar do V ale do Jequitinhonha, evento itinerante que anualm ente ocorre

m ês de ju lh o em um a diferente cidade do Jequitinhonha.

N aq u ele ano de 2008, o F estivale aconteceria em C apelinha. P ara chegarm os até aquela

cidade, incluím os em nossa logística outras cidades do Jequitinhonha, tam bém conhecidas pela

sua expressividade artesanal. E assim visitam os alguns postos de vendas à b eira da estrada com o
451
tam bém as feiras sem anais. N estes lugares, conversam os com artesãos que vendiam o fruto de

seu próprio trabalho; outros que assum iam a condição de atravessadores e sobreviviam

revendendo a m ercadoria alheia; e, ainda, aqueles artesãos que encaravam o artesanato com o

um m ecanism o de satisfação pessoal e não com o m eio de sobrevivência financeira. Essas

pessoas são artesãos e artesãs de diferentes faixas etárias, desde crianças até senhores

aposentados, que, de um a form a ou de outra, estão envolvidos em m odelar a argila conform e o

form ato que a im aginação lhes perm ite ou que a tradição lhes orienta.

É relevante salientar que nos postos de vendas m ais inform ais, com o as feiras livres

locais e as b arracas à beira das estradas, as peças artesanais se m isturam a outros produtos

oferecidos pelo m ercado local, com o aqueles oriundos da agricultura fam iliar e os pro d u to s

industrializados, com o as vasilhas de plástico e alum ínio, advindos de outras regiões do país.

N ã o existe ali um a preocupação com a disposição estética das peças, tal com o pudem os

observar nas lojas especializadas em arte e artesanato. N estas feiras, m u itas vezes, as peças se

encontram de m aneira am ontoada, expostas ao chão ou em estruturas de m adeira que até m esm o

dificultam sua visualização pelo consum idor. O u seja, a disposição do artesanato segue a

m esm a organização dos dem ais produtos locais que v isam a atender à necessidade da

com unidade local, com o a farinha disposta ao lado em sacos de algodão ou com o as bananas

que fazem com panhia ao requeijão e ao m el. N este cenário, nem sem pre conseguim os ter

contato com o artesão, autor das peças, caso de M in as N ovas, em que pudem os apenas apreciar

as peças expostas em u m a b anca no m ercado m unicipal.

Im portante dizer que a visita aos postos de com ercialização do artesanato, com o as feiras

e sedes da associação dos artesãos são espaços riquíssim os para partilhar do conhecim ento da

fam ília artesã. O u seja, o consum idor que frequentar estes espaços terá a oportunidade de

presen ciar não só o produto exposto com o p articipar do processo de confecção de u m a peça,

com o pude experim entar nos fundos da loja de artesanato de A raçuaí. N o entanto, apesar da

organização destas lojas, a sua estrutura ainda é m uito sim ples se com paradas às lojas

especializadas em arte e artesanato dos grandes centros com o B elo H orizonte em que a peça

em oldurada por um a vitrine, ilum inada artificialm ente, aguça a sensibilidade consum idora do

cliente, transform ando-a em objeto de desejo. A lém das feiras locais, foram visitadas duas feiras

regionais dentro do V ale do Jequitinhonha e outras duas feiras artesanais realizadas em B elo

H orizonte, nas quais tam bém houve participação dos artesãos jequitinhonhenses. A s feiras

regionais foram , respectivam ente, a “F eira de A rtesanato N o em isa B atista” , em 2008, na cidade

de C apelinha, durante o 26° Festivale; e a “F eira de A rtesanato T ião A rtesão” , em 2009, sediada

na cidade de G rão-M ogol, no 27° Festivale. E stas duas feiras foram essenciais para realização

da pesquisa ju n to aos artesãos e aos m ediadores sociais. E ntre um a feira e outra, tam bém foi
452
possível frequentarm os algum as residências em que pudem os p artilhar experiências e

inform ações sobre o m odo de vida e fazer artesanal. U m a destas residências foi a casa do artesão

ceram ista conhecido por todos com o M estre U lisses. M estre U lisses, com to d a sua sim patia e

b o a retórica, tem sua história com o barro confundida com a m ilitância política e cultural no

V ale do Jequitinhonha, na década de 70. Justifican d o suas peças, U lisses esclarece que sua

m issão é denunciar a exploração a que o cam ponês do Jequitinhonha está subm etido. O prim eiro

contato com U lisses aconteceu em ju lh o de 2008, quando foi possível participarm os da sua

oficina de cerâm ica, por ocasião do 26° Festivale. E m ja n e iro de 2009, visitam os sua residência,

onde pudem os gravar seu depoim ento e conhecer de m odo m ais ín tim o seu “cantinho de

criação” . O s encontros com U lisses ainda aconteceram em outros m om entos fora do

Jequitinhonha, com o ocorreu no m ês de m aio de 2009, quando pudem os acom panhar a 10a Feira

de A rtesanato do V ale do Jequitinhonha na U niversidade Federal de M inas G erais. N e sta feira,

encontram o-nos não apenas com U lisses, m as tam bém com outros artesãos que fizeram parte

desta pesquisa. O m esm o ocorreu no m ês de novem bro de 2009 na 20a F eira N acional de

A rtesanato prom ovida pela E xpom inas, em B elo H orizonte. A participação nas feiras externas

ao Jequitinhonha foi im portante no sentido de possibilitar nosso contato com o grande público

consum idor do artesanato do Jequitinhonha, bem com o acom panhar o encontro dos artesãos

com este público. E stas idas e vindas possibilitaram a construção do corpo de participantes

form ado po r vinte e um artesãos de diferentes cidades do V ale do Jeq u itin h o n h a que

com puseram o trabalho desta pesquisa.

A escolha dos inform antes artesãos foi norteada pelo critério de envolvim ento dos

agentes no ofício de artesão e sua inserção no m ercado regional, nacional e internacional. Junto

a este grupo, algum as questões foram fundam entais para o desenvolvim ento e problem atização

da investigação, as quais são descritas abaixo:

a) C om o os artesãos enfrentam as im posições da m odernidade (m elhoria estética e

durabilidade das peças artesanais; novas tem áticas para produção; confecção em larga escala):

aceitação, confronto ou negociação?

b) E m que etapas do processo produtivo essa relação se to rn a m ais visível?

c) C om o se dá a atuação dos m ediadores sociais com os artesãos e com o m ercado

consum idor?

d) C om o é a atuação dos m ediadores sociais no processo de organização social e

estruturação das políticas culturais na região?

A p artir destas questões, o estudo foi pautado com o objetivo geral de descrever os

m om entos do ofício ceram ista e entalhador e o papel das políticas de cu ltu ra e dos m ediadores

453
sociais na organização deste processo no V ale do Jequitinhonha. T endo com o base este

objetivo, outros objetivos específicos foram originados, a saber:

a) A nalisar a dim ensão econôm ica e sim bólica do artesanato para os artesãos;

b) A nalisar as representações sobre o Jeq u itin h o n h a e seu artesanato, po r parte das

políticas sociais, com ênfase nas políticas de desenvolvim ento regional;

c) D escrev er e analisar os problem as existentes nos diversos m om entos do ofício artesão

em estudo;

d) M ap ear os agentes, instituições e políticas e suas relações nos diversos m om entos do

desenvolvim ento do artesanato; e

e) A nalisar a relação entre produção artística dos artesãos no contato com o outro: o

consum idor e os m ediadores sociais.

D entre as respostas a todas estas questões, elegem os com o objeto deste artigo apenas a

análise da tipologia das peças em cerâm ica produzidas no Jequitinhonha e sua relação com a

v id a cultural e social da com unidade envolvida.

A R T E S A N A T O E M C E R Â M IC A D O V A L E D O J E Q U IT IN H O N H A

O artesanato do V ale do Jequitinhonha tem sido referenciado pela m ídia e até m esm o

pelos próprios m oradores do Jequitinhonha com o um a das m anifestações culturais m ais

expoentes e características da cultura da região. Porém , todas as transform ações

contem porâneas vivenciadas tam bém na região têm ocasionado algum as transform ações no

trab alh o artesanal no sentido am plo, ou seja, nas diversas etapas que constituem o que

poderíam os cham ar de m om entos de produção do artesanato. E stes m om entos têm sofrido

interferências do contexto de globalização, da m odernização com seus diversos agentes que se

inseriram na região, bem com o a m aneira com o os artesãos passaram a pensar as relações com

seu próprio ofício e tam bém com aqueles que fazem usufruto de suas peças.

N o entanto, há que se ressaltar tam bém que as m odificações são acom panhadas de um

m ovim ento de preservação e de transm issão de certos valores tradicionais que m arcam o fazer

artesanal. E stes m ovim entos que a princípio parecem contraditórios revelam a condição híbrida

do artesanato da região que tam bém com unga com a condição da nossa sociedade brasileira ou

até m esm o com a nossa condição latina, com o diria C anclini (2003), de ser h íbrida conjugando

sim ultaneam ente tem poralidades e valores diferentes.

A diversidade dos tipos de artesanato no V ale do Jequitinhonha é significativa, sendo

possível encontrar peças em fibras, cerâm ica, m adeira, sucatas, tecelagem etc. C ada tipologia
454
apresenta suas especificidades e suas diferenciações de acordo com o estilo de cada artesão. N o

caso deste estudo em que trabalham os com o artesanato m ineral (argila), podem os classificar

as peças produzidas em peças utilitárias, u tilitárias-decorativas e as esculturas. E stes term os são

u tilizados pelos próprios artesãos que, dependendo da situação, utilizam tam bém os term os

enfeite ou escultura para se referirem ao artesanato ornam ental ou figurativo. E stas categorias,

que podem os classificar com o resultantes do discurso local em contraste com o discurso

externo, tam bém são as m esm as utilizadas para a classificação ou subdivisão das peças para

confecção de propagandas ou de catálogos no caso de exposições ou feiras, com o observa

D alglish (2006). E stas categorias tam bém são adotadas neste estudo para classificarm os as

tipologias de peças encontradas em cam po.

A s peças utilitárias são com postas por panelas, pratos, xícaras, m oringas, potes para

água, etc. E ste tip o de produção é m uito consum ido pelas com unidades locais, até m esm o pela

acessibilidade dos preços. A pesar de alguns estudiosos afirm arem que no V ale do Jequitinhonha

este tip o de artesanato deixou de ser consum ido pelas com unidades locais devido à entrada dos

u tensílios em plástico e alum ínio, podem os afirm ar que ainda existe consum o significativo,

especialm ente das panelas.

Figura 1: Panelas em cerâmica. Autoria: Wagner Aparecido de Jesus.


Comunidade de Pasmadinho, Itinga. Pesquisa de Campo na 20a Feira Nacional
de Artesanato, Belo Horizonte, 2009. Fonte: Juliana Pereira Ramalho.

455
A s peças u tilitário-decorativas são aquelas que apresentam u m a ju n çã o de duas

características: servem para o uso, m as tam b ém podem ser utilizadas na ornam entação. São

exem plos as m oringas de três peças, os potes que m uitas vezes são usados com o v a so s para

ornam entação ou filtros com cabeças de bonecas que, ao m esm o tem p o em que desem penham

u m a função utilitária, tam bém ocupam a categoria de enfeite. Isso m ostra a m obilidade do

artesanato entre o útil e o belo, com m anutenção de sua aura criativa (PA Z , 1991). D entre os

artesãos do Jequitinhonha, m esm o na confecção daquelas peças identificadas com o utilitárias,

há u m a constante busca pela ornam entação, pela b u sca do belo, pelo “ fazer bem feito” .

U m terceiro tipo de peças artesanais são as esculturas que, norm alm ente trazem

tem áticas relacionadas ao universo religioso e ao viver cotidiano da localidade. U m personagem

m uito com um de ser retratado nas esculturas são as m ulheres com seus diversos afazeres

dom ésticos e os m om entos m arcantes do universo fem in in o local, com o o casam ento e a

am am entação de seus filhos.

“ P O D E R O S A S , C O N S C IE N T E D E S E U P A P E L E D E SU A I M P O R T Â N C IA ” :
M U L H E R E S N O A R T E S A N A T O D O J E Q U IT IN H O N H A

A centralidade da m ulher enquanto tem ática escultórica não se dá por acaso. E m m uitas

fam ílias e po r algum as gerações, especialm ente no contexto da m igração m asculina para o

trab alh o no corte de cana, ou na construção civil nas grandes capitais com o São Paulo, as

m ulheres ocuparam o papel de chefe de fam ília, cuidando dos filhos, dos roçados e dos anim ais.

A lém disso, é im portante d estacar que a própria atividade artesanal é um m eio de em ancipação

fem in in a da m ulher. M uitas artesãs que antes ficavam confinadas ao lar, dedicadas às atividades

dom ésticas e rurais, passaram a freq u en tar espaços p ú blicos de discussão política, com o as

associações dos artesãos, possibilitando m aior acesso à inform ação do m undo externo à

com unidade e tam bém o contato com outras m ulheres, o que prom ove u m a autorreflexão e

m udança com portam ental, com em poderam ento financeiro, social e psicológico. A s m ulheres

ao se associarem , constantem ente participam de reuniões, seja para d iscutir assuntos

burocráticos ou até m esm o para realizar suas funções artesanais. M uitas associações

disponibilizam um a estrutura física em que os artesãos associados podem , naquele espaço,

desem penhar suas funções, com o podem os observar em algum as localidades com o

Jequitinhonha, B otum irim , D atas, entre outras. N estes espaços ocorre não apenas a tro ca de

inform ações sobre o ofício, m as tam bém se discutem os conflitos daquela coletividade, criando

oportunidades de sociabilidade e de transform ações sociais.

456
A cerca da autonom ia das m ulheres em sua associação, u m a presidente de associação de

artesãos nos relatou:

nós éramos cinco. Eu e mais quatro. Depois apareceram mais duas. Então tinham
algumas delas que tinham problemas em casa com os maridos e os maridos cuspiam
no chão e falavam assim: antes de secar, cê tem que chegar. Aí começou um
movimento assim: nós começamos a fazer reuniões, falar sobre a mulher. Começou
com um encontro de mulheres realizado pela Emater, juntamente comigo que
inclusive foi uma coisa muito importante nesse setor de artesanato, onde cada um
trouxe o que fazia da roça ou que já tinha feito há muito tempo, que a mãe tinha feito,
pra começar o artesanato lá que tinha morrido. A partir disso aí, as pessoas começaram
a conversar em grupo, começou assim a desabafar. Então assim, o artesanato, a
geração de renda é importantíssima, mas uma coisa que não é negado a nenhum
artesão é essa questão da autoestima, né? Que ele adquire e leva pra dentro de sua
casa. Ele é mais respeitado. O trabalho dele é conhecido. Os filhos começam a
respeitar e participar. É tanto que nós temos histórias em que toda a família tá
participando nesse momento. Ontem, era uma e, hoje, é a família toda. E também
assim que a gente escuta. Por exemplo: se a mulher vai lá pra mexer com o tear que
tá magoada com o marido e a gente tem aquele momento que a gente começa a
conversar. A gente começa a conversar e falar assim: cê não pode fazer isso. A vida é
difícil, mas cê tem que continuar... impõe respeito. Chega na sua casa e chama ...
Então, hoje o que acontece? Hoje, o marido não fala eu vou cuspir no chão e a hora
que secar cê tem que tá aqui, antes de secar cê tem que tá aqui. Porque a mulher
conseguiu. Hoje, elas não escondem a cara quando vão conversar. Pra dar entrevista,
elas escondiam e eu falava: Ou fulana, vem cá! E elas ficavam assim... E hoje chega
gente de Belo Horizonte e onde que chega elas estão ali conversando, né? Algumas
são tímidas, mas a maioria hoje já estão, né? Poderosas. Consciente de seu papel e de
sua importância. E isso aí eu acho que foi uma coisa que mudou demais. Chegou antes
do dinheiro até (Depoimento de uma presidente da associação de artesãos. Pesquisa
de campo na Feira de artesanato “Tião Artesão” no 27° Festivale, Grão-Mogol, julho
de 2009).

A independência em ocional e em poderam ento fem inino m encionados no relato acim a

transparece nas esculturas que retratam as m ulheres com seus adornos, com vestidos

m eticulosam ente enfeitados por florezinhas, unhas pintadas e o cuidado com o cabelo, o que

constitui u m a referência ao autocuidado fem inino, conform e p odem os v isualizar na figura 3

Figura 2: Mulher com vestido de florzinha.


Autor/autora não identificado/identificada. Município
de Minas Novas. Pesquisa de Campo na 20a Feira
Nacional de Artesanato, Belo Horizonte, 2009. Fonte:

457
R E L IG IO S ID A D E E T R A N S F O R M A Ç A O S O C IA L : O T R A B A L H A D O R R U R A L

C R U C IF IC A D O

A s esculturas de tem áticas religiosas são aquelas que rem etem de algum a form a à

religiosidade local, em que podem os encontrar tan to as im agens sacras u tilizadas pelos fiéis,

com o tam bém outros personagens que rem etem a este universo, com o, por exem plo, o diabo.

U m elem ento m arcante entre os ceram istas que confeccionam peças de tem ática religiosa é o

h ibridism o do discurso religioso com um discurso p olítico social e am biental. E ste tip o de

produção é decorrente da experiência coletiva m ágico-religiosa, política e social que o artesão

transfere para as suas peças. E com o exem plo, tem o s o cam ponês crucificado de autoria de

U lisses M endes, artesão do m unicípio de Itinga, no m édio Jequitinhonha. V ejam que a

proxim idade do sagrado com o hum ano decorre de dois m ovim entos. U m prim eiro m ovim ento

sinaliza para os sentim entos do santo, que é a expressão triste da im agem . O segundo

m ovim ento refere-se ao elo que o crucificado tece com a hum anidade. E é algo que se dá dentro

de u m a tem poralidade presente, conform e podem os visu alizar na figura 3 abaixo. N o te que,

nesta escultura, U lisses M endes traz com o protagonista de sua estética criativa o hom em rural,

que é tão presente no cenário cotidiano do Jequitinhonha.

O bserve que o cam ponês não está com u m a cruz, m as pregado nela em substituição ao

Jesus Cristo. O C risto não é m ais o Jesus da Igreja C atólica, m as um hom em jequ itin h o n h ês

com suas ferram entas de trabalho que com põem o cenário da crucifixão. N esta perspectiva, ao

tra z er o trab alh o para a cena escultórica, U lisses faz u m a denúncia política e social das

condições de exploração e das relações trabalhistas pautadas na baixa rem uneração, no trabalho

inform al e na falta de acesso à terra que é o principal m eio de produção da região. A escultura

de U lisses M endes é, portanto, u m a denúncia daquilo que se deseja tran sfo rm ar naquele m eio

e fazer ren ascer um a outra realidade m ais ju sta e de plenitude existencial. A o crucificar o

trab alh ad o r rural do Jequitinhonha, U lisses o parafraseia a C risto que em u m a cruz sofreu até a

m orte, m as em seguida ressuscitou. D esta form a, anseia-se que o cam ponês crucificado pela

situação de exploração social, alcance o regozijo da m elhoria das suas condições de trabalho.

V e r a seguir a im agem do trab alh ad o r rural de autoria de U lisses M en d es:

458
Figura 3: Camponês crucificado. Autoria: Ulisses Mendes, ceramista da cidade de Itinga. Pesquisa de
campo em Itinga, janeiro de 2009. Fonte: Juliana Pereira Ramalho.

CO N CLU SÃ O

A s im agens das esculturas do Jequitinhonha constituem -se em um im portante

docum ento da vida coletiva das com unidades, tan to no aspecto da m anutenção das tradições, o

459
que fica evidente pela m anutenção do fazer artesanal secular que é um a herança indígena,

proveniente dos diversos grupos indígenas que habitaram o território banhado pelo rio

Jequitinhonha, os quais confeccionavam seus utensílios em cerâm ica, bem com o m aterializam

um desejo de um outro je ito de se fazer presente no m undo do trabalho. T razem p a ra a cena

pú b lica a denúncia e um desejo de transform ação de algum as relações sociais, culturais e

políticas que subjugam hom ens e m ulheres do Jequitinhonha. N esse sentido, podem os dizer que

as esculturas do Jequitinhonha apresentam u m a linguagem n arrativa das experiências e das

m em órias locais. B enjam in (1994), em reflexão sobre a figura do narrador, descreve-o com o

um sujeito que “ associava o saber das terras distantes, trazidos p ara casa pelos m igrantes, com

o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário” (B E N JA M IM , 1994, p. 199). É nesta

condição de narradores que se encontram as im agens do Jequitinhonha, portadoras de um a

m em ória do passado, m as que tam bém dialogam com o presente.

B IB L IO G R A F IA

B E N JA M IN , W alter. M a g ia e T é c n ic a , A r te E P o lític a : E nsaios Sobre L iteratura E H istória


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460
ENSINO DE HISTÓRIA NO MUSEU DA UFMG: COLONIAL OU
DECOLONIAL?

JU L IO C E S A R V IR G IN IO D A C O S T A 218
A N A C L A R A D E SO U SA D U A R T E
D A N IE L L E IT E G O N S A L E Z M O T T A
M A R IA E D U A R D A SO A R ES SIM Õ ES

A memória social ou coletiva, evidenciada através dos registros,


vestígios e fragmentos do passado - os chamados bens culturais
de uma dada coletividade - constitui-se em referencial de nossa
identidade cultural e instrumento possibilitador da plena
cidadania. José Ricardo Oriá Fernandes

IN T R O D U Ç Ã O

E ste artigo é fruto de um recorte de um a p esquisa sobre ensino de h istória no m useu,

cam po esse que tran sita na fronteira entre a H istória e a E d ucação e, no caso específico desse

texto, debruça seus olhares sobre o m useu de H istória N atural e Jardim B o tân ico da U FM G . A

pesquisa está em sintonia direta com os axiom as e pressupostos listados por Oriá,

especialm ente, no tocante à questão da cidadania, elem ento este sem pre fragilizado e m uitas

das vezes negado à grande m aioria de nossa p o pulação brasileira nas diversas facetas ou

aspectos que o ser cidadão teria com o direitos.

A pesquisa tev e seu início em m aio de 2022 e está sendo realizada em duas frentes.

E stam os em cam po, no M useu de H istó ria N atural e Jardim B o tânico da U niversidade F ederal

de M inas G erais (doravante M H N JB ) e, quinzenalm ente, nos reunim os para discutirm os um

texto, artigo ou capítulo de livro para nos instrum entalizados para um a m aior com preensão da

tem ática e apresentarm os as análises dos vestígios, indícios e docum entos encontrados no

cam po pelo grupo de pesquisadoras/es.

E sta com unicação pretende apresentar algum as ações realizadas pelo E ducativo do

M H N JB diante do fenôm eno cotidiano das visitas escolares aos m useus. N a verdade, vam os

relatar alguns indícios iniciais das observações feitas durante o acom panham ento de 4 visitas

que são m ediadas pelos educadores do m useu - setor educativo. E sses educadores são

bolsistas/discentes das diversas áreas do conhecim ento da U FM G , com o po r exem plo,

A rqueologia, H istória, G eografia e B iologia. E les/as são os responsáveis por m ediar todas as

2181 UFMG/CP - Doutor em Educação; Graduanda em História/UFMG;


46 1
visitas escolares agendadas no m useu.

E stam os propondo apresentar alguns aspectos iniciais das visitas à exposição de

arqueologia dos povos originários de M G que datam de cerca de 14.000 anos atrás e analisar as

ações educativas v oltadas para as escolas da educação básica, especialm ente as públicas, na

b u sca do ensino de história de um B rasil antigo, de um a m aior com preensão da E ducação

P atrim onial e da conservação de bens arqueológicos e históricos. E essas ações estão em busca

da com preensão se “A m em ória social ou coletiva, evidenciada através dos registros, vestígios

e fragm entos do passado - os cham ados bens culturais de um a dada coletividade” se apresenta

com o u m a versão ainda colonizadora e/ou decolonial, ou seja, versão que prom ove um giro

epistêm ico e traz ao discurso as vozes, os saberes e os bens culturais silenciados após o processo

de colonização europeia nas A m éricas.

Já há m uito tem po os m useus fazem parte do cotidiano no B rasil, apesar de term os

ciência de que eles tam bém podem apresentar um a perspectiva excludente e que evocam , m uitas

vezes, im agens canônicas que representam um a versão da história que não abre possibilidade

para o diverso, para o m ú ltiplo e para um a abordagem da h istória “vista de b a ix o ” e, que, m uitas

vezes, adotam u m a postura de um a “ história ú n ica” , história esta que não abre espaço para os

sujeitos negados e silenciados pelos currículos, pela m ídia, pelos próprios m useus e po r um a

historiografia m ais tradicional.

T am bém é inegável que os m useus são espaços m uito visitados por escolas da educação

básica e que u m a parte considerável desse público o faz a p artir da disciplina de H istória, ou

m esm o que não seja sem pre assim , certos m useus trabalham com a H istória m esm o quando

recebem visitas das áreas de C iências, G eografia etc. N o caso do M H N JB , tem o s a inform ação

que ele recebe cerca de 50.000 visitas por ano, sendo que as visitas escolares são a m aioria.

P o r isso, buscam os nessa pesquisa, identificar, analisar e descrever as ações educativas

e vestígios históricos do Setor E ducativo do M H N JB na busca pela com preensão se estas ações

prom ovem um ensino e um ensino de história eurocêntrico ou decolonial na perspectiva de um

“ laboratório/fórum ” ou se prom ove u m a leitura de m useu com o “tea tro da m em ória/tem plo”

que canoniza a tem ática expositiva do m useu no contexto de inserção dos sujeitos nas relações

estabelecidas com o passado-presente.

A pesquisa que ora se apresenta além do seu caráter qualitativo se enquadra n a tipologia

de um estudo de caso. E la tam bém terá o suporte m etodológico da pesquisa descritiva.

A s concepções m etodológicas que foram m obilizadas na escolha estão ancoradas no

pressuposto de que o estudo de caso “perm itirá inicialm ente fornecer explicações no que tange

diretam ente ao caso considerado e aos elem entos que lhe m arcam o contexto” e auxiliadas por

outras estratégias de pesquisa (LA V ILL E, 1999, p. 155).


462
P ara com preenderm os os conteúdos e até m esm os os lim ites da tem ática pesquisada, o

estudo de caso e descritivo perm ite u m a série de instrum entos/coleta de dados que estão sendo

pensados para esta pesquisa, preponderantem ente, os docum entos/vestígios históricos

produzidos pelo setor E ducativo do m useu para que as visitas escolares possam ser realizadas

ao longo do ano letivo ou, vestígios docum entais que apresentem essas ações m esm o que não

estejam sob a guarda do educativo.

Segundo L aville (Idem , p. 156), a grande vantagem da estratégia do estudo de caso é a

oportunidade de um aprofundam ento, pois os recursos serão concentrados em um determ inado

local, contexto e docum entação. A profundando essa consideração, o autor ainda nos afirm a que,

Ao longo da pesquisa, o pesquisador pode, pois, mostrar-se mais criativo, mais


imaginativo; tem mais tempo de adaptar seus instrumentos; modificar sua abordagem
para explorar elementos imprevistos, precisar alguns detalhes e construir uma
compreensão do caso que leve em conta tudo isso. (IDEM, p.156)

A lém do já indicado, tem os tam bém um típico caso de m useu que faz parte da rede de

m useus, que com põem a R ede de M useus da U FM G . T u d o isso possibilita u m a potência

investigativa desse am biente educativo para buscarm os com preender com o esse espaço se

prepara e com quais m ateriais o faz para receber essa dem anda constante das cerca de 50 m il

visitas que recebe po r ano.

R E F E R E N C IA L T E Ó R IC O

Uma sala de museu é palco para encenação de identidades


forjadas por relações de poder sedimentados pelo tempo desde a
colonização. Paredes e vitrines, em suas divisões retilíneas,
decompõem o mundo em seus fragmentos para a compreensão
visando a dominação de seu conjunto. Os museus ao encenar o
Outro construindo distâncias invisíveis entre quem vê e quem é
visto, quem produz e quem consome, ou quem pensa e quem é
objeto de pensamento, materializam, os regimes de
colonialidade herdados de um passado pouco contestado, os
patrimônios valorados no presente. Bruno Brulon

E m relação ao espaço m useal e sua relação com o ensino de h istória na educação básica

pensam os que é possível entender e investigar esse espaço de m em ória - acepção de um a

educação m useal - e tam bém de esquecim ento, para além do m ero com plem ento ou

confirm ação do que foi visto em aula. T am bém , am parados em B rulon, direcionar o olhar

investigativo para esse espaço edu cativo na perspectiva de que o “ (...) m useu é palco para

encenação de identidades forjadas po r relações de poder sedim entados pelo tem po desde a

463
colonização” .

A creditam os que possa ser um a experiência/travessia e u m a prática pedagógica que

tam bém , não exclusivam ente, ven h a a prom over u m a educação para a sensibilidade, p ara um a

postura m ais crítica e reflexiva de nossa presença no tem p o ou nos tem pos históricos e, com o

nos afirm a e esclarece P ereira (2009, In C O STA , 2016. P .24-25), ser u m a oportunidade para

u m a leitura/usufruto do m undo.

M as, diante desta hipótese, com o o setor educativo contribui ou não para que essa

postura possa ser alcançada? O u será que o M H N JB é um m useu canônico? É um m useu que

encapsulou o tem po e não possibilita outras travessias tem porais? Será que as ações do setor

educativo objetivam u m a experiência do pensar, do sentir e do agir para além de m eras placas

e nom es para serem decorados? O u ainda, conform e B rulon é um espaço onde “ os regim es de

colonialidade herdados de um passado são po u co contestados?”

R eflexões estas que se direcionam aos postulados de U lp ian o B. de M eneses (1994,

2005), em especial, em relação à travessia de um a concepção m useal, nos quais o predom ínio

seria a do m useu enquanto “teatro da m em ória” para outra gram ática, o do “laboratório da

H istó ria” em discussão tam bém form ulada por R am os (2004), no to can te ao ensino de história

através de “ objetos geradores” .

L aboratório de h istória que teria, diferentem ente da escola, um a linguagem

essencialm ente espacial e visual e de trab alh o sobre a m em ória não com o objetivo, m as com o

objeto de conhecim ento e, que, segundo o m esm o autor (1994), não ignorando as tarefas

educacionais do m useu incluindo na m esm a a fruição estética, o lúdico, o afetivo, o devaneio,

os sonhos, a m ística da com unicação, isto tudo, sem perderm os de vista a curiosidade.

E lem en to s esses que j á indicam características e potencialidades da adoção desses referenciais

em relação à estética do sensível em R ancière (2009) e da p olifonia em B akhtin (1992).

N essa p erspectiva p ostulada po r M eneses (2005), haveria outra postura de trabalho nos

m useus com a história. N ão seria m ais a adoção ou concepção de m useus com o locais de

salvaguarda e m em ória canonizadas ou rem em orativas, sem elem entos críticos.

A p roposta de “ m useu-fórum ” v iria na direção contrária e estabelecería um a gram ática

que recusa um m odelo ú n ico de m useu e seria um m useu que trabalharia com problem áticas

históricas na p erspectiva dialética. Seria a possibilidade de não trab alh ar com as perguntas que

solicitam dados ou inform es sobre datas, fatos ou nom es de certas personalidades. O perar com

problem as históricos significaria um trabalho com questões postas pela dinâm ica social.

Seriam m useus que trabalh ariam com objetos, em um a perspectiva denom inada de

sem ióforos. E xpressão desenvolvida po r P om ian (1977, A pud M E N E SE S, 2005, p. 26) e que

seriam segundo M eneses (2005, p. 26), “ objetos excepcionalm ente apropriados e


464
exclusivam ente capazes de p o rtar sentido, estabelecendo um a m ediação de ordem existencial

(e não cognitiva) entre o visível e o invisível, outros espaços e tem pos, outras faixas de

realidade” . O u seja, seriam objetos ou signos, na perspectiva po lifô n ica de B ak h tin (1992),

portadores de um a pluralidade de significação. P ara o autor, o signo é m óvel, plural, polivalente,

portanto, pensam os nós, p o lifônico tam bém . P olifônico tam bém , porque, a partir das várias

p ossibilidades de enunciações narrativas, apropriações e u sufrutos poderão d espertar form as

m ais críticas e reflexivas de inserção na prom oção de práticas educativas m ais em ancipatórias.

E m u m a tarefa de síntese, nesta reflexão entre “M u seu-tem plo” e “M useu-fórum ” ,

M eneses (2005) nos esclarece que,

Se o teatro da Memória é um espaço de espetáculo que evoca, celebra e encultura, o


Laboratório da História é o espaço de trabalho sobre a memória, em que ela é tratada,
não como um objetivo, mas como objeto de conhecimento. No museu, principalmente
no museu histórico, que superou a função de repositório e dispensador de paradigmas
visuais, a inteligibilidade que a História produzir será sempre provisória e incompleta,
destinada e ser refeita. Daí, porém, sua fertilidade. (MENESES, 2005, p. 51).

N esse sentido, C osta (2016, p. 27), acrescenta que, além dos objetos m useais, há que se

atentar para a potência educativa das vivências proporcionadas pela visita, os deslocam entos,

as conversas, as trocas de percepção, as em oções externalizadas durante a visita, a curiosidade

diante de um objeto, os com entários dos m ais diferentes sujeitos, pelas oficinas que são

realizadas no m useu, pela conexão estabelecida entre as exposições daquele m useu com as

p ráticas educativas e as sequências didáticas que j á foram m o b ilizad as na escola, considerando,

tam bém , o aspecto onírico desse lug ar que encanta e provoca sonhos. (B E N JA M IN , 2005). N ão

custa tam bém ressaltar que o trân sito tem poral estabelecido entre a p ré-h istó ria e o tem po

presente é um aspecto que pode despertar nos jo v e n s u m a curiosidade ou m esm o um a

disposição à aprendizagem .

P orém , R am os (2004), faz um alerta. N ão b astaria apenas que a exposição assum isse

esse caráter crítico. Seria necessário desenvolver program ações com o objetivo de sensibilizar

os visitantes para esta nova gram ática. P ara u m a m aior interação com o m useu. (R A M O S, 2004,

p. 20-21). O que se objetiva é o desenvolvim ento de u m a educação em um a perspectiva m ais

profunda, que adote u m a postura de percepções críticas sobre o nosso estar no m undo e sobre

nossa form a de atuação sobre o m esm o.

O s m useus são instituições sociais e de m em ória. São tam bém , instituições aprendentes,

pois oferecem m últiplas possibilidades de leitu ra do m undo e das realidades sociais, podendo,

po r isso, conhecer, inventar e criar esse m undo. Se os m useus são, então, am bientes de form ação

- tan to para aqueles que nele atuam profissionalm ente, quanto para aqueles que os visitam e

465
dele fazem uso - eles tam bém podem educar com unidades, potencializar suas m aneiras de se

relacio n ar com a m em ória social e com seu patrim ônio. (P E R E IR A e SIM A N , 2009, p. 3)

Segundo N ascim en to (2005), “ a prática educativa do m useu passa a constituir avenidas

possíveis sobre as quais o visitante, ator da construção de novos conhecim entos, tra ç a seus

próprios cam inhos.” M as, com o o ensino de h istória é efetivado nesse espaço? U m a tela fixa,

um cenário de m orte? U m espaço instigante e com m últiplas vias a serem percorridas?

O u seja, seria a adoção de um a postura intelectual e reflexiva diante de um m undo que

é m últiplo, polifônico e da p ercepção de que m ed iar o ensino de história através do m useu possa

tam bém abarcar essa postura. D e to rn ar disponível várias integrações e interações, a partir da

noção que “ obra aberta” a p artir da experiência m useal possa prom over r esultados diversos e

m últiplos, m as em sintonia. (ECO , 1997, p. 63).

P E R S P E C T IV A D E C O L O N IA L

P ara C hagas e Storino no prefácio da R evista M usas (2007), os m useus são,

[...] janelas, portas e portais; elos poéticos entre memória e o esquecimento, entre o
eu e o outro; elos políticos entre sim e o não, entre indivíduo e a sociedade. [...] Eles
são bons para exercitar pensamentos, tocar afetos, estimular ações, inspirações e
intuições (2007, p. 6)

E assim , os autores acreditam que esse am biente é um espaço “bom para pensar, sentir

e agir” (Idem ). Porém , C osta (2016) afirm a que o m useu não é um espaço/“ portal” estático e

nem tão pouco um p rojeto isento de intenções. O autor afirm a que o m useu se realiza por

m etam orfoses, com o o personagem G regor Sam sa, de K afka (1997)[2]. E ele nos alerta para

que não esqueçam os que os objetos m useais sofreram , j á desde sua inserção em projetos

m useais e patrim oniais, processos de m etam orfose, perdendo sua função original, e adquirindo

outras e que os sujeitos tam bém podem ser transform ados no contato com os M useus,

experienciando descobertas e novos sentidos à história, ao tem po e à m em ória.

N esse sentido, Francisco R égis L. R am os (2004) tam bém nos adverte que o m useu é

tran sfo rm ad o de fora para dentro, alvo da “ sociedade de consum o” , m uitas vezes assum indo

perfis totalm ente diferentes daquele do m om ento de sua concepção, o que, especialm ente para

a form ação docente, é fundam ental, j á que caberá, portanto, aos m useus, em sua articulação

com escolas e centros de form ação, articular-se aos profissionais da educação para to rn ar cada

vez m ais consistente seu projeto educacional.

C anclini (2011) considera os projetos m useais a partir das experiências de vida, trazendo
466
à baila o quanto é influente o contexto de inserção dos sujeitos nas relações estabelecidas com

o passado-presente, por m eio dos signos, indícios e artefatos. O m esm o autor nos inform a que

o “patrim ônio existe com o força política na m edida em que é teatralizado: em com em orações,

m onum entos e m useus.” D isso decorre tanto a força expressiva dos m useus quanto, tam bém ,

as arm adilhas e dilem as expressos em seus p rojetos e na relação dos diversos públicos com suas

propostas.

O m useu possui fundam entalm ente u m a face educativa na contem poraneidade.

T ransform a-se em espaço de produção do conhecim ento, de encontro e de aprendizagem

cultural po r m eio de práticas educativas abertas à criação. C om o indica U m berto E co (1997),

esse “tex to ” é “ obra aberta” , incom pleta - apresentando-se com inúm eras possibilidades

narrativas dispostas à tam bém m últipla recepção. A qui se estabelece um diálogo com

B enjam im , ao afirm ar as inúm eras possibilidades de criação e interpretação suscitadas na ação

educativa.

É nesse sentido que a pedagogia decolonial se insere nesta reflexão pro p o n d o um giro

epistem ológico nas form as de ver, atuar e estar no m undo. E tam bém sobre as form as de

aprendizagem e saberes que conform am as sociedades colonizadas. P orque é bem provável que

m uitos m useus apresentem um a perspectiva colonial e/ou eurocêntrica.

E ssa “pedagogia” ganha fôlego a partir da form ação do grupo

“M odern idade/C olonialidade” (M /C ) que se propõem construir um “ projeto epistem ológico”

outro e m obilizar um a crítica à m odernidade ocidental (C A N D A U & O L IV E IR A , 2010, p. 15).

E m síntese, C andau & O liveira (Idem ) nos inform am que, essa “pedagogia” está em busca:

[...] de uma construção alternativa à modernidade eurocêntrica, tanto no seu projeto


de civilização quanto em suas propostas epistêmicas. [...] O postulado principal do
grupo é o seguinte: “a colonialidade é constitutiva da modernidade, e não derivada
dela” (MIGNOLO, 2005, p. 75 In OLIVEIRA & CANDAU, 2010 p. 17). Ou seja,
modernidade e colonialidade são duas faces da mesma moeda. Graças à colonialidade,
a Europa pode produzir as ciências humanas como modelo único, universal e objetivo
na produção de conhecimentos, além de deserdar todas as epistemologias de periferia
do ocidente. (CANDAU &OLIVEIRA, 2010, p. 18)

A ssim , podem os p erceber que essa estrutura se difere do colonialism o enquanto ato de

dom inação física, pois, as estruturas foram profundam ente colonizadas. E la sobrevive apesar

da descolonização. O u seja, apesar do colonialism o ter chegado ao seu fim , a “ colonialidade”

não.

Assim, apesar do colonialismo preceder a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao


colonialismo. Ela se mantém viva em textos didáticos, nos critérios para o bom
trabalho acadêmico, na cultura, no sentido comum, na autoimagem dos povos, nas
467
aspirações dos sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa experiência moderna.
Neste sentido, respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente.
(TORRES, 2007, p. 131 In: CANDAU & OLIVEIRA, 2010, P. 18)

É exatam ente nessa com preensão anunciada po r T orres (2007) que pensam os que a

colonialidade poderá estar presente nos m useus. N a sua form a de p ensar nas exposições e, em

especial para esta pesquisa, nas ações do setor educativo. M as, será que os m useus universitários

estão n essa perspectiva, especificam ente, o M H N JB ?

P ara o grupo “M o d ernidade/C olonialidade” a colonialidade atua nas form as de poder;

de ser e de saber. A ssim , ela reprim e os saberes, os m odos de ver e estar no m undo. N ão som ente

isto, ela tam bém reforça a ideia de um “ sujeito outro” , o subalterno. O u seja, essa concepção

que foi posta em ação a p artir da m odernidade atuou, e ainda atua, com o um elem ento de

interiorização de “ hom ens-não-europeus” (e m ulheres tam bém ) negando e anulando seus

saberes e sua história. E xem plos fortem ente presentes nos povos originários da A m érica e da

Á frica.

D iante desse breve quadro descritivo nos perguntam os o que esse grupo sugere? Essas

sugestões podem estar em u m a pesquisa sobre m useus? “ O pen sam en to -o u tro ” j á não estaria

presente em práticas educativas prom ovidas pelos educativos dos m useus?

E les nos sugerem um a pedagogia d ecolonial. P edagogia esta que reconhece juntam ente

com os conhecim entos do ocidente os saberes dos povos denom inados de outros. Seria um giro

epistem ológico que valorize o “p ensam ento-outro” na A m érica L atina, em especial, m as

tam bém em outras partes do m undo para decolonizar o pensam ento, o p o d er e o ser.

Seria a adoção de um a perspectiva que valorize outros enfoques epistem ológicos,

incluindo, o que está em direta relação com esse projeto de pesquisa e os processos

educacionais. Seriam os nossos m useus colonizadores do “ ser” , do “ s a b e f’ e do “ poder” ? O u

teríam os no M useu de H istória N atural e Jardim B otânico da U F M G u m a fo rm a de produção

de conhecim ento decolonial j á apresentado em um a de suas exposições aos conhecim entos

advindos de povos originários de 14 m il anos atrás?

Portanto, estam os diante de u m a pro p o sta de pedagogia que preconiza outra form a de

contar a história. E, é inegável que os m useus atuam n essa seara. São espaços educativos,

inform ais, m as educativos e m uito visitados e que prom ovem m ateriais didáticos, que oferecem

um sem núm ero de oficinas e outras form as de intervenção educativa para essas escolas de

E d ucação B ásica.

E é po r essa característica que essa epistem ologia nos ajudará a trilh ar os passos desta

pesquisa.

468
O S P R IM E I R O S IN D ÍC IO S

H N JB a p artir da sua característica de M useu U niversitário.

O Museu História Natural e Jardim Botânico da UFMG (MHNJB) ocupa uma área,
onde, em fins do século XIX, existia a Fazenda Boa Vista. No início do século XX, a
fazenda foi desapropriada pela Comissão Construtora de Belo Horizonte, a nova
capital de Minas Gerais, e adquirida pelo Governo do Estado com a finalidade de
instalação de um Horto Florestal. Em 1912, com o objetivo de impulsionar suas
atividades agroindustriais, o Estado de Minas Gerais transformou o Horto Florestal
em uma Estação Experimental de Agricultura. Entre agosto de 1938 e novembro de
1947, pesquisadores da Secretaria de Agricultura, da antiga Faculdade de Filosofia e
da Academia Mineira de Ciências encontraram material arqueológico nessa região do
Horto, que por conta disso também era conhecida como Estação Arqueológica do
Horto. Artefatos líticos e cerâmicos encontrados foram então enviados ao Museu
Nacional, no Rio de Janeiro, pela ausência, nessa época, de um museu de História
Natural em Belo Horizonte.
https://www.ufmg.br/mhnib/institucional/historico/historia-do-mhnib/Acesso em 20
de nov. de 2022.

O M H N JB -U F M G apresenta diferentes exposições e possibilidades. P ara a pesquisa

interessa, especificam ente, as visitas com foco na arqueologia indígena. E sta exposição

apresenta sítios arqueológicos encontrados em quatro diferentes regiões de M inas G erais

(F lorestal, S erra do E spinhaço, B uritizeiros e P eruaçu). A lém dos sítios, a exposição co n ta com

réplicas de ossadas, diferentes exem plos de tecnologia indígena, m içangas e outros enfeites,

u m a u rn a funerária e um m apa de M inas G erais, que localiza espacialm ente os sítios

arqueológicos expostos. P ara além dessas inform ações, tem os ainda outras:

A exposição Diversidade em contextos arqueológicos indígenas de Minas Gerais ao


longo dos últimos 14 mil anos apresenta aos visitantes a antiguidade e a grande
diversidade cultural de povos indígenas do Brasil e desenvolve o potencial educativo
do rico acervo de materiais arqueológicos produzido pelas pesquisas do Centro
especializado em Arqueologia Pré-Histórica do MHNHJB da UFMG.
A exposição apresenta a reprodução de quatro sítios arqueológicos de cronologias
diversas (a partir de quatorze mil anos) e com características culturais diferentes, além
de um bloco expositivo central com informações sobre alimentação e tecnologias de
fabricação de artefatos. https ://www.ufmg.br/mhnib/expo sicao/expo sicao -
arqueolo gia/Aceso em 20 de nov. de 2022.

P ara além da sala de exposição, o M H N JB oferece outras possibilidades de se trabalhar

a h istória e cultura indígena. V ia de regra, to d as as visitas in iciam -se em u m a trilh a pela reserva

de M ata A tlântica do m useu. N esses trajetos, é possível encontrar árvores im portantes para

diferentes culturas indígenas: a sapucaia, fruto sagrado para algum as com unidades, tem form ato

que inspira u rnas funerárias com o a encontrada na exposição da arqueologia; o Jequitibá, tão

alto que alguns povos acreditavam chegar nos deuses, era conhecido com o árvore dos desejos.

N esse contexto, nosso trabalho de cam po consiste em acom panhar as m ediações com

469
foco na arqueologia indígena, b uscando e n ten d er qual visão da h istória o m useu, por m eio de

seus educadores, passa para as escolas que vão visitá-lo.

E ntretanto, na m edida em que acom panham os as m ediações, percebem os que o discurso

m uda de m onitor p ara m onitor. Independente de qual o objetivo co locado pela escola, os

educadores tendem a p u x ar a m ediação para sua área de form ação inicial. N esse sentido, é

possível en co n trar m ediações que trabalham a história indígena desde as trilhas, que m ostram

as diferenças culturais entre as sociedades in d íg en as expostas e que, inclusive, tratam a

colonização portuguesa com o invasão. P o r outro lado, tam bém é possível encontrar educadores

que desconhecem do assunto e/ou tendem a p u x ar a m ediação para o lado das ciências naturais.

N a narrativa de m ediadores com form ação em A rqueologia, é possível observar que

existe um a v alorização dos povos originários. A o longo do trajeto da visita, esses educadores

trazem conhecim entos e apontam vestígios dessas com unidades e qual a relação delas com o

espaço m useal. A inda observam os que eles praticam dinâm icas de grupo com esses alunos e

tentam fazer com que os m esm os vivenciem um a experiência im ersiva na parte expositiva da

m ata do m useu. O s m ediadores tentam fazer com que o aluno participe de form a ativa da visita

e da construção do conhecim ento, m as o núm ero de visitantes e o perfil dos m esm os variam ,

dificultando assim p adronizar esse m étodo.

N a visita acom panhada com m ediadores da biologia, p ercebem os alguns indícios que

nos ajudam a p ensar um pouco o processo de m ediação do m useu. C o m o po r exem plo, no

destaque dado pelos dois m ediadores de que o contexto de escavação dos artefatos

arqueológicos presentes na exposição é de u m a época m uito anterior á chegada dos europeus.

O u seja, a h istória do B rasil na tem seu início em 1500. E m ais ainda, com o há um alerta de que

“ aqueles povos j á habitavam m inas a m uito tem p o 219” , perm ite um trabalho crítico sobre nossa

p rópria relação com o tem po, com o patrim ônio e com a m em ória.

Já em outra visita, agora com um m ediador da arqueologia e outro da história, pudem os

p erceber u m a grande interação entre o publico escolar e os m ediadores. Inclusive foi notado o

uso do term o “ sítio pré-colonial” , outro in dício de com o os educadores pensam a exposição,

sua im portância enquanto espaço de u m a educação patrim onial brasileira e m ineira e, que abre

possibilidade para questionam entos e reflexões decoloniais. P orém , elas não foram realizadas

de m aneira sistem ática e enfática na fala dos m ediadores.

D essa m aneira, as visitas ao M H N JB variam conform e o ed u cad o r que realiza a

m ediação. P o r esse m otivo, tivem os dificuldade em encontrar, no cam po, qual é realm ente o

219 Esses trechos e a fonte para essas reflexões nesta sessão são retiradas dos cadernos de campo e de nossas
observações diretas de cada visita acompanhada. Ressaltamos que tanto o educativo quanto os mediadores do
museu autorizaram o acompanhamento e as anotações.
470
discurso do m useu. E sse fato r im possibilita, por ora, chegar a u m a conclusão a respeito do

discurso do m useu: ele é colonial ou não? O sentim ento que fica é de que quem visita o M H N JB

pode te r a sorte, ou não, de encontrar um m ed iad o r que entende do assunto.

E stam os no m eio do cam inho e ainda terem os m uitas outras oportunidades de

observarm os as m ediações, m as sem pre atentos na ideia de que um a sala de m useu pode ser um

palco para encenação de identidades forjadas por relações de p o d er sedim entados pelo tem po

desde a colonização. O s m useus em seus fragm entos podem encenar o O utro construindo

distâncias invisíveis entre quem vê e quem é visto, quem p ro d u z e quem consom e, ou quem

pensa e quem é objeto de pensam ento, m aterializam , os regim es de colonialidade herdados de

um passado pouco contestado, os patrim ônios valorados no presente, porém , nunca de form a

inevitável e inquestionável. (B R U L O N , 2020)

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472
O CASO UFOLÓGICO DA BARRA DA TIJUCA DE 1952: A
FUNDAÇÃO DA UFOLOGIA NO BRASIL PELA AÇÃO DA IMPRENSA

K E V IN F R A N C O D O S SA N TO S*

C O M O O S D IS C O S V O A D O R E S C H E G A R A M A O B R A S IL

N o ano de 2002, a rev ista U FO , p ublicação de u fologia brasileira, chegava a suas 80

edições no m ês de abril. A um entando seu recorde de edições e de tem po de funcionam ento no

setor de periódicos ufológicos, este ano foi especial para a ufo lo g ia b rasileira em razão da

“ com em oração” de cinquenta anos de um caso que foi reconhecido com o o fundador do cam po

no B rasil, e um dos m ais fam osos do m undo à época, ainda que tenha sido u m a enorm e fraude.

N a octog ésim a segunda edição, de novem bro de 2002, seria publicada um a extensa reportagem

rem em orando este caso e suas im plicações na infante u fologia brasileira. E ste foi o C aso da

B arra da Tijuca. E ste artigo, a partir de fontes da im prensa, propõe-se a estudar esta ocorrência

sob a luz da ciência histórica e refletir sua im portância no nascim ento da u fologia no B rasil.

E ra 1952, o m undo vivia os prim órdios da G uerra F ria (1 9 4 5 -1991)220, com um a

preocupação sobre o desenrolar da G uerra da C oréia221 desem bocar para um novo confronto

m undial entre as potências nucleares. N a área ufológica, o avistam ento de K enneth A rnold no

M o nte R ainer222 j á havia sido exposto ao m undo, assim com o o in cidente de R o sw ell223, em

1947, os m arcos iniciais da u fologia contem porânea.

220* Aluno do Programa de Pós-Graduação em História, nível Mestrado, da Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). Licenciado e Bacharel em História pela UFGD. Especialista em Metodologias do Ensino de
História pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER). Professor de História da rede pública de Campo
Grande (MS).
Conflito político-ideológico que marcou o século XX, opondo as potências vencedoras da Segunda Guerra
Mundial Estados Unidos, representando o capitalismo, e a União Soviética, líder do bloco socialista.
221 A Guerra da Coreia foi um conflito que aconteceu na Península da Coreia (1950 e 1953) entre os diferentes
governos que haviam sido formados na Coreia do Norte e na Coreia do Sul. Esse conflito foi um dos mais mortais
de todo o século XX, causando um total de 2,5 milhões de vítimas. Também contribuiu para agravar a divisão
existente entre as duas Coreias. Ver: HISTÓRIA DO MUNDO. Guerra da Coreia. Disponível em:
https://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/guerra-da-coreia.htm. Acesso em 07 set. 2022
222 Em 24 de junho de 1947, o piloto de avião Kenneth Arnold, em decolagem, avistou cerca de nove objetos perto
do Monte Rainer, no estado norte-americano de Washington. Após pousar no estado vizinho Oregon, Arnold foi
entrevistado e relatou o ocorrido como “pires voadores flutuando sobre a água”. Foi a primeira vez que o termo
“flying saucer” ou em português, disco voador, foi utilizado para se referir a Ovnis. Para saber mais: EQUIPE
UFO. Nostalgia: Kenneth Arnold, o início de tudo em 24 de junho de 1947. 2010. Revista UFO. Site. Disponível
em: https://ufo.com.br/noticias/nostalgia-kenneth-arnold-o-inicio-de-tudo-em-24-de-junho-de-1947/. Acesso em
07 ago. 2022.
223 A queda de um suposto balão meteorológico em uma fazenda em Roswell, Novo México - EUA, em 08 de
julho de 1947, é considerada como o marco inicial da Ufologia contemporânea. O incidente foi noticiado por
jornais locais e rapidamente repercutiu na opinião pública americana, com a presença constante do alto escalão do
Exército americano na região fez nascer a era moderna dos discos voadores. Ver: CARLOS, Daniel Pícaro.
473
N a área cultural, o film e “ O dia em que a T erra p arou” , que retrata a chegada de um ser

extraterrestre à Terra, lançado em 1951, havia se tornado um sucesso crítico e um sím bolo do

m ovim ento antiarm am entista e contrário à G uerra Fria. A nos antes, em 1938, a transm issão

radiofônica da novela “ G uerra dos M undos” , na em issora de rádio CBS e suas afiliadas, tornou-

se célebre ao desencadear um a onda de pânico generalizada na população norte-am ericana, com

o que se pensava ser o anúncio de um a invasão alienígena224. A s palavras “ disco vo ad o r” ,

“ alienígena” e “ extraterrestre” , portanto, já não eram estranhas ao grande público.

E sse período da história m undial, a G uerra Fria, caracterizada pelo belicism o e pela

oposição entre capitalism o e o socialism o, foi significativa para o contexto ufológico, sendo um

dos m ais notáveis em notícias de aparições e evento de natureza ufológica, pois

Naquele momento, os Estados Unidos viviam muito preocupados com a possibilidade


de revoluções socialistas na Europa e na Ásia. Em 1947, havia instabilidade política
em muitas regiões do globo, além de guerras civis na Grécia e na China. Embora
nenhum outro país além dos Estados Unidos tivesse conseguido fabricar bombas
atômicas, vivia-se um momento de tensão (SANTOS. 2009, p. 27).

C oncom itante a isso, surge a corrida pelo controle do espaço sideral e do universo entre

as superpotências, com a disputa de tecnologia espacial para levar o ser hum ano a lugares nunca

explorados no universo. A U nião S oviética, porém , dava passos largos nessa disputa: prim eiro

satélite artificial (Sputnik, 1957), o prim eiro voo espacial tripulado por hom em e m ulher (1961;

1963) e os prim eiros passeios espaciais foram todos russos (H O B SB A W M , 1994, p. 527).

A poiado po r um clim a de b eligerância m undial, desconfiança, inquietação e

instabilidade política no b lo co capitalista no pós-guerra, assistia-se a um avanço consistente do

fantasm agórico inim igo soviético no controle do espaço, o O cidente passou a noticiar cada vez

m ais aparições e ocorrências ufológicas em seu território e ao re d o r do m undo, centrado na

ótica da G uerra Fria e na identificação dos inim igos com unistas. A s pessoas, incluindo civis e

m ilitares, jornalistas e governantes, não conseguiam explicar a origem dessas aparições e sua

natureza, o que eram e quais seus objetivos, m as a julgar pelo contexto em que estavam im ersos

- era n o tória a desconfiança e dúvida de qual seria a origem daquelas naves: extraterrestre ou

soviética? A s duas respostas assom bravam o O cidente. D esse m odo, o avanço da ocorrência

ufo ló g ica nesses anos acirrou os tem ores e o clim a de disputa no período da G uerra Fria.

Extraterrestres: Ciência e Pensamento Mítico nas Sociedades Modernas. 2007. 157f. Dissertação (Mestrado em
Antropologia) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - Universidade Federal de São Carlos
224 Ver: TSCHKE, Jean. 1938: Pânico após transmissão de "Guerra dos mundos”. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2017/10/30/1938-panico-apos-transmissao-de-guerra-
dos-mundos.htm. Acesso em 13 de janeiro de 2022
474
N o B rasil de 1952, no segundo governo de G etúlio V argas (1951-1954), os discos

voadores j á haviam aterrissado: a im p ren sa não se policiava e noticiava fartam ente as

ocorrências internacionais, em especial as dos E stados U nidos, que garantiam m aior

publicidade. O caso de R osw ell foi noticiado pelo jo rn a l paulista de grande circulação Estado

de S. Paulo e vários outros jo rn a is m enores. E m 1947, em m eio a grande onda de avistam entos
ocorridas em terras norte-am ericanas, o B rasil tam bém noticiava suas prim eiras ocorrências na

p equena cidade de P residente Prudente, em São P aulo (SA N T O S , 2009, p. 34). O B rasil, em

1952, assistia a um em inente confronto entre as forças conservadoras da sociedade brasileira,

capitaneadas por C arlos L acerda e a U D N (U nião D em o crática N acional), e o governo de

V argas, acusado de com unista po r apresentar um program a de cunho nacionalista.

R od o lp h o G authier C ardoso dos Santos d etalha que, em ju lh o de 1947, houve um grande

noticiamento da im prensa brasileira de avistam entos de discos voadores ocorridas em território


nacional. A parições, sobretudo ocorridas no Sudeste, locais sede dos veículos de im prensa,

enchiam as m anchetes dos jo rn a is e periódicos da época:

Notamos que os discos voadores começaram a aparecer timidamente nos jornais


brasileiros por volta dos dias 5 e 6, quando eles trouxeram as primeiras informações
sobre o que ocorria nos Estados Unidos. O espaço no noticiário cresceu bastante até
o dia 10, momento em que atingiu seu ápice. O interesse se manteve alto até o dia 16
e diminuiu lentamente depois disso. Já nos últimos dias de julho e primeiros dias de
agosto poucos diários tocavam no assunto. No total, foram 116 notícias nos nove
periódicos pesquisados, o que fez dos discos voadores um dos assuntos mais
comentados daquele mês (SANTOS, 2009, p.34-35).

L ogo percebeu-se o interesse do público pela tem ática extraterrestre, já que o aum ento

da cobertura de jo rn a is e revistas sugere que havia dem anda p a ra este tem a. N esse contexto, um

caso polêm ico dividiu opiniões e teve enorm e repercussão na parte sudestina do país: em 17 de

m aio de 1952, a revista O Cruzeiro apresentava ao público aquilo que considerava “um furo

jo rn a lístic o espetacular, a m ais sensacional docum entação ja m a is conseguida sobre o m istério

dos discos v o ad o res.” (O C R U Z E IR O apud U FO , 2002, p. 10)

F undada em 1928 po r A ssis C hateaubriand, a Cruzeiro foi u m a das revistas sem anais

ilustradas de m aior circulação no B rasil. O p eriódico atingiu a m édia de 550 m il exem plares em

m eados da década de 1950, p atam ar que seria m antido até o início dos anos 1960. O recorde de

setecentos m il exem plares seria atingido na edição que circulou dois dias após o suicídio de

V argas em agosto de 1954 (V E L A S Q U E S , 2022, p.6). A rev ista tam bém circulou em espanhol

em alguns países da A m érica L atina na década de 1950, e cobriu acontecim entos nacionais e

internacionais, expondo, assim , suas credenciais que deram à ocorrência na B arra da T ijuca a

repercussão, credibilidade e enorm e publicidade que inicialm ente resultaram .

475
O “ E S P E T Á C U L O IN E S Q U E C ÍV E L ” N O R IO D E J A N E IR O

O acontecim ento em questão tratava-se de um suposto registro de um disco voador em

um b a r da B arra da T ijuca, na zona sul carioca por dois fotógrafos renom ados da revista: E d

K effel e João M artin s225. Segundo os repórteres, o intuito era registrar casais apaixonados para

u m a futura m atéria. P orém , acabaram registrando o avistam ento de O V N Is. O caso rodou o

m undo e foi am plam ente divulgado. C lau d eir C ovo e P a o la L ucherini C ovo, ufólogos e

escritores, na edição de novem bro de 2002 da UFO abordam o caso em u m a m inuciosa

reportagem . Segundo os autores:

[...] em 07 de maio de 1952, entre as 16:00 e 16:30, os repórteres Ed Keffel e João


Martins estavam naquele local da zona sul carioca fotografando casais apaixonados,
que para lá se dirigiam em busca de privacidade. [...] Keffel e Martins saíram da
redação da revista por volta das 12:00 e, perto das 13:00 h, atravessaram a pequena
laguna que separava o Grande Rio de Janeiro da Barra da Tijuca. Keffel e Martins
chegaram, então, ao Bar do Compadre, de propriedade de Antonio Teixeira, na Ilha
dos Amores, e almoçaram camarões. Por diversas vezes, se levantaram para
acompanhar as acrobacias da FAB (Força Aérea Brasileira). [...] Depois, sentaram na
areia e ali ficaram. Por volta das 16:00h, segundo contam na matéria, um disco voador
apareceu vindo do mar. Martins pediu para Keffel bater fotos do objeto. A primeira
teria obtido foi contra o Sol. A segunda deu-se com o objeto acima do morro Dois
Irmãos, que fica nas imediações. A terceira foi com o suposto disco voador sobre a
Pedra da Gávea e, a quarta, sobre o morro que desce para o mar, onde havia uma
palmeira. A quinta e última foto mostrava o objeto retornando para o mar, tendo ao
fundo as ilhas Alfavaca e Pontuda (COVO, COVO, 2002, p. 11-12).

Segundo o relato presente na UFO, a ocorrência se deu no dia 07 de m aio de 1952; a

m atéria, em si, foi publicada no dia seguinte com a data de 17 de m aio. E ra com um a esse

p eríodo publicarem edições com data futura, em face do planejam ento das redações. K effel e

M artins ficaram um tem p o considerável no local, visto que alm oçaram e só no final da tarde

registraram as fotos, dem onstrando neste relato lapsos de tem po suspeitos.

A s fotos foram divulgadas em edição extra (im agem ) da edição 31 da O Cruzeiro, com

data de 17 de m aio de 1952, m as lançada nas bancas em 8 de m aio de 1952, e gerou com oção

instantânea na população, que avidam ente esgotou as edições da revista: “ A ssim que a notícia

foi para as bancas, a revista esgotou rapidam ente. Foi um dos m aiores fenôm enos editorais de

todos os tem pos em nosso p aís” (C O V O , C O V O , 2002, p. 12).

225 Ed Keffel era alemão. Veio para o Brasil no período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), estabelecendo-
se como fotógrafo no Rio de Janeiro. Notabilizou-se por ser altamente técnico e capacitado na fotografia; João
Martins era baiano, exercendo a função de fotógrafo e posteriormente redator na Cruzeiro. Fonte: SECRETARIA
ESPECIAL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. O Cruzeiro - A maior e melhor revista da América Latina. Governo
do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro Junho de 2002.
476
Im a g e m 1: E d ição extra da R evista O Cruzeiro (1952)

Fonte: O Cruzeiro, ed. 31, 1952.

A im agem noticia o caso da B arra da T ijuca, com u m a foto do suposto O V N I

sobrevoando a P edra da G ávea, no R io de Jan eiro . L ogo abaixo, revelam -se as fotos dos

fotógrafos que registraram a ocorrência. O título superior “E X T R A ” denota a exclusividade da

Cruzeiro em noticiar este fato e evidencia ao leito r o caráter efusivo da m atéria.


A edição p o sterio r à publicação original trazia u m a extensa reportagem abordando o

im pacto da publicação, com u m a lista de testem unhas que corroboravam as fotos do editorial,

desde pessoas desconhecidas com o com erciantes e estudantes, que afirm avam ter observado

objetos parecidos com os que foram registrados pela revista, até pessoas públicas e cientistas,

com o D om ingos Costa, chefe do O bservatório N acional, que com entou que não ter “m ais

dúvida a respeito da existência dos discos vo ad o res” (SA N T O S, 2009, p. 117), com o é m ostrado

na im agem 2, da edição n° 32 de 1952. M as, salienta-se, não foram apresentadas testem unhas

oculares dos objetos divulgados pelas fotos àquela ocasião:

477
Im a g e m 2: R eportagem da Cruzeiro com as cinco fotografias dos O V N IS, da ed. n° 32, de
m aio de 1952

Fonte: O Cruzeiro, ed. 32, 1952, p. 16-17.

A reportagem acim a, inclusive, oferece um tom artístico e de fascínio à ocorrência,

evidenciando a beleza da paisagem onde supostam ente deu-se o avistam ento, de form a a

p riorizar a qualidade das fotografias e a própria cidade do R io de Janeiro, ao ter o P ão de A çúcar

com o testem u n h a ocular e cenário deste “ espetáculo inesquecível” (O C R U Z E IR O , 1952, p.

17) que os discos voadores trouxeram .

A rapidez na repercussão e a grande vendagem da revista após a divulgação das fotos

não foi à toa: a Cruzeiro, à época, fazia parte dos D iários A ssociados, o enorm e conglom erado

de revistas, jornais, program as de rádio sob a lid eran ça de A ssis C hateaubriand, que passou a

noticiar o evento em cadeia em seus veículos de inform ação. D essa form a, a repercussão,

em bora tratando-se de um a tem ática de interesse do público à época, não ocorreu de fo rm a tão

espontânea.

M esm o assim , a divulgação da revista provocou alvoroço, à m edida em que m ilitares

da F orça A érea B rasileira e até m esm o o m inistro da G uerra de V argas, G eneral C iro do E spirito

Santo C ardoso, com pareceram na redação da revista nos dias que se seguiram à p u blicação das

fotos e no local onde estas foram registradas para averiguar e investigar a v eracidade da
478
ocorrência. T odos foram unânim es em suas considerações: as fotos eram reais (SA N T O S, 2009,

p. 117).

A A eronáutica e a FA B (F orça A érea B rasileira), entusiasm ados com o caso, destacaram

u m a com issão especial encarregada de investigar os O V N Is sob orientação do M inistério da

A eronáutica, chefiada pelo então coronel João A dil de O liveira, em 1954, e rebateram

declarações de desconfianças em relação às fotos, que logo com eçaram a aparecer:

Não se pode duvidar da autenticidade do filme. Em número (a sequência perfeita de 5


chapas) e em qualidade (focalização), os dois repórteres de O CRUZEIRO bateram
um recorde internacional. Há outras fotografias de discos nos Estados Unidos, nunca
porem com a nitidez e os detalhes espantosos desses negativos. Ninguém,
especialmente os técnicos, poderá duvidar da honestidade das fotos, visto que não se
podería fazer uma “montagem” ou um arranjo qualquer que tivesse os ângulos de
perspectiva e de local, incluindo a paisagem ambiente, que se observam nos
negativos” (O CRUZEIRO, 1954, p.18-20).

O coronel A dil, além de sua carreira prom issora enquanto m ilitar, chegando ao cargo

de M arechal-do Ar, o últim o a receb er tal patente no B rasil, era um notório defensor da ufologia

e parapsicologia dentro do E xército. E ra m em bro da Sociedade de P arapsicologia, o que

ju stific a te r se encantado pelas fotos de K effel e M artins e as defendido com afinco.

U M C A S O D E “ M IL H Õ E S ” ; U M A F R A U D E D E “ C E N T A V O S ”

T ão logo as fotos foram divulgadas, a revista Ciência Popular, periódico pioneiro em

divulgação cientifica no país, iniciou um a cruzada contra as fotos e o fato em si, e se m anifestou,

po r m eio de seu editor, A ry M aurell L o b o 226, em sua edição de ju n h o de 1952, alertando sobre

possíveis fraudes:

A respeito do ‘disco voador’ que marcou entrevista na Barra da Tijuca com os


fotógrafos... salientamos as molecagens que têm sido feitas nos EE.UU e Europa,
com o lançamento de pequenos discos no espaço, e fotografando-os. Tudo quanto saiu
publicado nos periódicos mencionados pode ser facilmente obtido por êsse processo,
ou mediante uma montagem especial, com sucessivas fotografias. Não queremos
afirmar que a sensacional reportagem seja de tão criminosa natureza, mas não a
aceitamos (LOBO, 1952, p. 45).

226 Ary Maurell Lobo nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 27 de abril de 1900. Era filho de Elisa Maurell Lobo,
natural do Rio Grande do Sul e de Ayres da Costa Lobo, natural do Rio de Janeiro. Engenheiro de formação,
fundou a revista Ciência Popular em 1948. Fonte: SILVA, Catarina Capella. O mundo científico ao alcance de
todos: a revista Ciência Popular e a divulgação científica no Brasil (1948-1960). 2009. 164f. Dissertação
(Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte.
479
A s “m olecagens” denunciadas po r L obo referem -se à um a série de em bustes ocorridos

principalm ente nos E stados U nidos no período, em que pessoas alm ejavam fam a e notoriedade

ao em ular o voo de discos voadores jo g an d o pratos e discos no ar e fotografando-os. A tática,

inclusive, foi u m a das hipóteses levantadas p ela Ciência Popular para explicar as fotos da B arra

da Tijuca, devido a seu enquadram ento e presença de som bra de form a irregular, que não

deviam ocorrer pela posição dos discos fotografados.

E m ja n e iro de 1955, a m esm a revista, em sua edição 76, divulgou, em um tom m ais

duro e irônico, que as im agens de K effel e M artins não eram genuínas, denunciando num só

parágrafo a qualidade das fotos, o (ou falta de) poderio bélico do B rasil e as intenções da revista

e dos fotógrafos com a m atéria:

[...] Finalmente, os ‘discos voadores’ rumaram para o Brasil. Marcaram primeiro


encontro, na Barra da Tijuca, com dois ladinos repórteres de O Cruzeiro, magazine
que precisa vender uma tiragem de 750.000 exemplares por semana. Depois, passaram
a espionar as bases aéreas brasileiras, para avaliar com certeza o poderio bélico da
Terra da Santa Cruz, que tem mais generais e almirantes e brigadeiros que soldados.
Ora, só e só esta última façanha dos ‘discos voadores’ deveria ser suficiente para os
desmoralizar completamente. Tais engenhos teriam de provir de um lugar habilitado
por sêres de fenomenal inteligência, e tão somente gente muito burra ignora que nada
há para espionar por aqui, já que o Brasil não passa, quanto ao potencial bélico, de um
zero bem redondo, ou talvez mais exatamente de um google de zeros, resultância
muito lógica da pobreza nacional, sobretudo em matéria de vergonha (LOBO, 1955
apud SUENAGA, 1999, p. 64).

A o escrever que a Terra de Santa Cruz tinha mais generais e almirantes que soldados,

L obo denunciou a precariedade e desconexão das Forças A rm adas, especialm ente os do

E xército, em que a prom oção a posições elevadas atendia a critérios políticos que profissionais

(M A R T IN S FIL H O , 2003, p. 117), ecoando u m a crítica à ação e papel das forças m ilitares, que

àquela época estavam envolvidos com a política nacional. O ano de 1955 foi m arcado pelas

tensões com a interferência do E x ército no cenário político ao tentarem im pedir a posse do

presidente eleito Juscelino K ubistchek, culm inando com o M ovim ento de 11 de novem bro, em

que setores dem ocráticos do E x ército liderados pelo general H enrique B atista D uffles T eixeira

L ott, garantiram a posse do presidente eleito (SC H W A R C Z , ST A R L IN G , 2015, p. 373).

E m outubro de 1957, novam ente a Ciência Popular, agora em sua edição 109, reafirm ou

a farsa das fotos. O físico nuclear canadense, Stanton Friedm an, afirm ou à UFO em 2002, que

“um a alegação extraordinária requer evidencias extraordinárias que a garantam ” (C O V O ,

C O V O , 2002, p.13). E isso faltou ao caso de K effel e M artins. N inguém havia observado o

fenôm eno além dos repórteres.

A A eronáutica e a FA B, porém , m antiveram -se aquém dos questionam entos, que,

sobretudo, poderiam cham uscar suas reputações, visto que deram estim ada im portância e

480
reconhecim ento ao caso. O coronel A dil, inclusive, continuou defendendo o caso m esm o com

o passar dos anos, com o evidenciado em entrevista para a Cruzeiro, em 1959:

Você se lembra, Martins, que algumas pessoas declararam ter visto homens jogando
um disco para o ar e fotografando? Realmente êles viram êste disco que aqui está, mas
nós sabemos que não foi jogado por vocês, porque êle foi jogado por nós da FAB, que
nos dias seguintes ao fato fomos para o local fazer minuciosos estudos em tôrno das
suas fotografias. Inclusive andamos jogando êste disco para o ar, numa tentativa de
reproduzir uma seqüência como a de vocês (MARTINS, 1959, p. 24).

A ocorrência chegou até m esm o a constar no fam oso R elatório C on d o n 227. Segundo

A lexandre de C arvalho B orges, que escreveu em 2010 para a UFO:

O relatório, que foi solicitado pela Força Aérea Norte-Americana (USAF) e foi
publicado em 1968, só atentou para a fraude em uma foto. Nesta foto (a quarta)
aparece além do UFO no céu, uma palmeira na paisagem que serviu como referencial
para se estudar a fotografia. Nela, a iluminação do UFO está para o lado direito e a
palmeira abaixo e sua vegetação circundante estão com a iluminação para o lado
esquerdo. A posição da sombra no UFO nesta foto só seria possível se o Sol estivesse
dentro do mar (BORGES, 2010).

O u seja, u m a série de fotos, ainda que bem construídas, facilm ente desm ascaradas a um

olhar técnico apurado. M esm o assim , o caso fez com que o B rasil entrasse de vez no m apa da

u fologia m undial; de início pela im portância e qualidade das fotos, pois tratava-se de um dos

prim eiros registros oficiais de O V N P s no m undo inteiro em b o a qualidade, j á que vieram de

fotógrafos profissionais e de um im portante periódico:

Os principais veículos de informação do mundo abriram manchetes a um assunto que


ainda era, num certo sentido, novo e palpitante, suscetível a tremendas polêmicas. Na
Alemanha, o Der Stern, editado em Hamburgo: “Die ersten fotos”. O Paris Match:
“Un journal de Rio de Janeiro annonce premieres photos dune soucoupe volante”. O
La Cronica, de Lima, Peru: “Fantastico, pero real: el platillo volador”. O Zafer, da
Turquia: “Uçan daireler merih yildizindan mi geliyor?” (SUENAGA, 1999, p.62)

P orém , a posteridade confirm ou que se tratava de u m a farsa. C om o C ovo e C ovo (2002)

assinalam : “É u m a triste constatação, m as o fato é que a u fologia brasileira com eçou com um a

fraude gritante.” (2002, p. 14). O ocorrido na B arra da T ijuca foi um ponto de inflexão na

p rem atura u fologia brasileira, e u m a pequena am ostra de com o a m ídia trataria o fenôm eno

U F O a p artir de então. A pós isso, casos relatados com m aior seriedade foram pendidos ao

sensacionalism o e chacota da m ídia; a exem plo das fotos do O V N I da Ilha da T rin d a d e 228,

227 O relatório Condon, iniciado em 1968, foi fruto de uma colaboração entre a Universidade do Colorado e a Força
Aérea Norte-americana, baseou-se num painel de análise cientifica sobre o fenômeno OVNI, que passaria a
orientar os órgãos e entidades sobre as ocorrências ufológicas
228 As fotos de OVNIS registradas na Ilha da Trindade, por Almiro Baraúna, que estava a bordo do navio Almirante
Saldanha, sofreram com o descrédito da opinião pública em meio a controvérsia do caso Barra da Tijuca. Para
48 1
ocorrido seis anos após as fotos da Cruzeiro, e o clássico caso V ilas-B oas229, notadam ente a

prim eira alegação de abdução de um ser hum ano relatada no m undo. O caso V ilas-B oas foi

prejudicado por te r sido relatado tam bém por João M artins, que já havia saído em descrédito

pela fraude das fotos da B arra da Tijuca. A lém disso, outros veículos de im prensa cariocas da

época passaram a zom bar da ocorrência, com o o jo rn a l Última Hora:

Im a g e m 3: C oluna esportiva do Última Hora, de 13 de m aio de 1952, ironizando a ocorrência


da B arra da Tijuca

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! 2) — P o r q u e ? e r * q u e t o d o
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| Atlético eítevc « c m p r e * mlll-
i m e t r o s d o e m p a t e e s é r.Ao lu tr. I n s i s t e e m a p i t a r c o n t r a
| conseguiu atin g ir a* rede» c nosso tim e ? (
i c m z m n l t i n * ' p">r n h r » d o tí e s - S» — C o m o s e e x p l i c a a p o ­
[ t i n e V. q u a n d o o d e s t i n o r.Ao
i q u e r . é tnuttl lnrlstir. . A s « ( m .
J os a v a n te s a tlc ttc a n o s fenem -
>tr a ra m n trav e com o o seu
lícia p e r m i t i r q u e u m q u a d r o
Jogue " a rm a d o ? " .
4* — A s " l u v a s ” d o A D E ­ s
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[ m a io r o b stácu lo . In clu siv e u r .a 5 ' — U m “c h a u f f e u r ” d e !n-

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, fa lto m ftx lm a c o b ra d a p o r LU» •ac5o nSo pode se r u m e x c e ­
[ CAR q u e u tra v e d e fe n d e u c a ­ le n te m e d io "v o la n te
, p rlc h o s a m e n te . M o ra l d a histo » «* — P o d e - s e J u l g a r u m e r a -
J r i a : a t r a v e ío l u m v e r d a d e l - q u e assassino p o r " m a ta r " a
, to ‘ c n ...tro v o " " i v /v m in e!- p e l o t a n a eabe.ca ?
| r».-s. C ". t . a, q,i* t r a v e t r a - 7 t — S e em Jutebo] e x is te m
; v í . , ss.i | " . " c h a v e s " . p o r q u e nSo h é t a m ­
bém fech ad u ras ?
| SHERLOCKADAS fli — S e r * q u e e r t e T o r r . e l o
E x tra v * | tra re r l u c r o s ao*
| F n q u an lr» p» C id a d e V a r a » clu b es ?
> v ilh o sa o» o u r ,( voadores
| m a rc a v a m en co n tro s com ( o .
» t o g r a f o » . o r.osso M e n g n a « s e n -
TREINANDO... %
| t o u t n n t é p i d o *■'e n d e r - v o u s ” j D ósde a sem ana passada q u e
» c o m a d e r r o t a e m .ToSo P e s - 1 n se le c io n a d o pau lista s e m r e a -
| M ' Q u a n d o a p e le ja a tin g iu 1l i a n d o i n t e n s o s p r e p a r a t i v o s .

I
a o -ti ■ > m in u to e o p la c a rd e A Y M O R E ' est* c a p r i c h a n d o e
assin alav a « v a n ta g e m do m m - i p r e t e n d e le v a r a seleçS o b a n ­
h m . i d o p a r a i b a n o p o r 3x2. o d e ir a n te A co n q u ista da s u p r e ­
Ju ir. u m ta l SH K iSLO C K . r e - m a c ia fu te b o lística brasileiro .
-o lv ru g i r a n t l r n v tio rla dos S eria c o n v en ie n te, o 7.F.7F'
paraib an o ? su sp en d en d o a o ar- • a b r i r u m o lh o s e m f e c h a r o
tid a p o r falta <le g a r a n t i a * o u t r o " p o is o le m a d o A Y M O -
Apó» o "m atem *. os to r c e d o re s • R E ‘ A o se g u in te : "Irm A os.
in cals c a n t a v a m a leg rerr.en te | I r m S o s . m a s r .e g o c l o s A p a r ­
em córo: i te

Fonte: Última Hora. 1952, p.6

R essalta-se as intenções sublim inares da ridicularização feita pelo Última Hora. A

revista O Cruzeiro, de C hateaubriand, dono dos D iários A ssociados, era um a notória opositora

saber mais: COVO, Claudeir & COVO Lancherini, Paola. Trindade restaura a credibilidade. Edição 82. UFO,
2002, p. 17-21
229 O caso Villa-Boas é considerado o primeiro relato de um contato imediato de quarto, quinto e sétimo graus,
que em linguagem ufológica é designado a casos de sequestro, contato bilateral e relação sexual de seres humanos
com seres alienígenas. O caso refere-se à alegação do agricultor mineiro Antônio Villas-Boas, que afirma que em
1957 foi levado para dentro de uma nave extraterrestre onde passou por inúmeras experiências, incluindo relação
sexual com uma suposta entidade biológica extraterrestre (EBE). Villas-Boas foi entrevistado por Martins no Rio
de Janeiro em 1958, submetido a baterias de exames que constataram perfurações em seu corpo e sintomas
equivalentes a de pessoas que foram expostas a um grau elevado de radiação. Martins, porém, relutou em divulgar
a história, guardando-a até a década de 1960, quando foi publicada no periódico britânico Flying Saucer Review,
após o estouro do Caso Hill nos Estados Unidos. Antônio Villas-Boas morreu em 1991, de complicações de um
aneurisma. Ver: SUENAGA, Cláudio Tsuyoshi. Caso Vilas-Boas 50 anos depois. Edição 137. UFO, 2007.
Disponível em: http://www.ufo.com.br/artigos/caso-villas-boas-50-anos-depois. Acesso em 13 jan. 2022
482
do governo V argas. O Última Hora, entretanto, foi fundado por um ex -repórter da Cruzeiro,

Sam uel W einer, sob u m a forte retórica getulista, j á que o m esm o era identificado com o um

apoiador de V argas e partidário do queremismo, m ovim ento que queria a continuidade do

governo V argas nas eleições de 1945, ao fim do E stad o N o v o 230. A s agruras entre os veículos

tam bém se desdobraram com a Cruzeiro denunciado a criação do jo rn a l com o um caso de

corrupção, já que ele h av ia sido criado com um financiam ento suspeito por m eio do B anco do

Brasil.

N A O E R A M D IS C O S V O A D O R E S ?

A inda que nunca tenham adm itido terem forjado as fotos, M artins e K effel saíram

desacreditados em suas carreiras, porém , continuando com seus em pregos na revista. E m 1973,

M artins m odificaria sua h istória duas vezes, ao m en cio n ar que as supostas fotos foram tiradas

quando estavam à procura de um sósia de H itler, e posteriorm ente m odifica ao dizer que, na

verdade, estavam à procura de L uís C arlos P restes, à época foragido. O E x ército renovaria seu

interesse pela tem ática ufológica com o passar dos anos, sobretudo quando se tornam governo

a partir da D itad u ra231 que se instala no país em 1964. E a Cruzeiro tam bém ja m a is adm itiria

sua participação na farsa das fotos, ainda que continuasse a explorar a tem ática ufológica em

suas edições.

A Cruzeiro, a despeito de suas reais intenções ao explorar o fenôm eno O V N I po r vias

não profissionais, foi a responsável po r fundar o cam po ufológico no país, iniciando um debate

na recém nascida ufologia brasileira, que ganhou contornos m ais rigorosos ao endurecer a sua

investigação de m odo a filtra r as ocorrências para que não surgissem m ais enganos ou em bustes.

A dem ais, é de se n o tar que o caso da B arra da T ijuca foi desm ascarado por cientistas e pessoas

ditas céticas, e não po r ufólogos, em razão de a u fologia brasileira à época estar engatinhando,

não havendo estudiosos da área no país até então ou que tivessem inserção na im prensa. Isso,

de certa form a, contribuiu para a descrença pública que a u fologia se acostum aria, j á que a

m esm a foi desautorizada po r pessoas distantes da área.

P o r fim , o caso da B arra da T ijuca tornou-se singular pela m aneira com o a m ídia se

apropriou da u fologia e do interesse público pelos extraterrestres de form a oportunista e jocosa.

230 Governo de Getúlio Vargas, entre 1937 e 1945, caracterizado por uma centralização do poder nas mãos de
Vargas, nacionalismo e políticas de cunho populista.
231 Em 1964, militares depõem o presidente eleito João Goulart, iniciando um período de 21 anos de governos
militares no país.
483
C om o apontado po r C apelato: “N a construção do fato jo rn a lístic o interferem não ap en as

elem entos subjetivos de quem o produz, m as tam bém os interesses aos quais o jo rn al está

vin cu lad o .” (C A P E L A T O , 1988, p. 22). N esse sentido, a Cruzeiro e os repórteres foram além ,

pois organizou-se u m a ação m ontada com um intuito m onetário e m idiático, e não um a

ocorrência espontânea que foi explorada pela revista (C A PE L A T O , 1988, p.22). A través do

estudo deste caso, observa-se a construção e m anipulação de ideais e fatos por um veículo de

im prensa, dem onstrando a capacidade da m esm a m an ip u lar a realidade conform e seus

interesses, prática pouco ortodoxa no quesito ético e m oral, m as que serve aos m ais variados

fins e sob os m ais diversos assuntos.

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485
“AQUI TINHA TRABALHO COMO O QUÊ”: HISTÓRIAS DE VIDA E
DESLOCAMENTOS NO PÓS-ABOLIÇÃO NO DISTRITO DE ALMAS
(ANGUERA-BA), 1900-1960.

L Á Z A R O D E S O U Z A B A R B O S A 232

RESUM O:

E sse tex to se propõe a discutir, de form a prelim inar, os processos de deslocam entos de
trabalhadores/as rurais no distrito de A lm as (atual m unicípio de A nguera-B a) num cenário de
longo pós-abolição. Intercruzando processos crim inais, trabalhos de m em órias (entrevistas) e
fragm entos do p eriódico feirense F olha do N orte, tornou-se possível identificar experiências
que sugerem cam inhos interpretativos a respeito das tensões e dos conflitos cotidianos em
contexto de trabalho, assim com o da invenção de significados para a liberdade e a cidadania na
m esorregião do centro-norte baiano. Incertezas, expectativas, itinerâncias e visões de m undo,
po r vezes contraditórias, m arcaram os corpos e as trajetórias dos sujeitos que atravessam estas
páginas.

P a la v r a s c h a v e: P ós-abolição, T rabalho rural, A nguera-B a.

1. IN T R O D U Ç Ã O .

N o cenário baiano de deslaçam ento das relações com pulsórias de trabalho, final do

século X IX e ao longo das décadas do século X X , sobretudo na prim eira m etade, o distrito de

A lm as, pertencente à Feira de S antana/B A até 1961, era um território que dispersava e atraia

fam ílias e trabalhadores/as rurais de diversas paragens e fazendas, não só do entorno. N um

contexto de longo pós-abolição, o distrito tornou-se um terreno de possíveis autonom ias e

liberdades po r m eio do trabalho, das possibilidades e das estratégias de acesso e usos da terra.

E ste texto se desdobra na tentativa de com preender as m aneiras de constituição das experiências

e das vivências de trabalho de pessoas negras e pobres, oriundas do universo rural no distrito

de A lm as (atual M unicípio de A nguera/B A ), situado na m esorregião do C entro-N orte baiano,

onde se destacava, num contexto de pequenas e m édias propriedades, o com ércio de gado,

fum o, m andioca e outros itens agrícolas.

A s intensas m ovim entações de trabalhadores e trabalhadoras do cam po, tam bém

trabalhadores/as de certas itinerâncias, apontam para possíveis preenchim entos da concepção

232 Graduado em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana/BA; lazzosza@gmail.com.


486
de liberdade po r m eio dos deslocam entos e do trabalho. N u m a cartografia rural, perscrutada por

m eio da análise de processos-crim es, trabalhos de m em ória (entrevistas) e fragm entos de um

jo rn a l feirense, o distrito de A lm as e a região apresentavam dim ensões dos tensos e

contraditórios processos de reordenam ento do trabalho em partes interioranas da B ahia, onde

trabalhadores/as rurais, destacadam ente negros/as, deslocavam -se para o distrito que se

desenhava enquanto um possível territó rio de busca pelo m ínim o social e/ou pela invenção da

liberdade.

2. U M D IA D E S E R V IÇ O , U N S D IA S S E M T R A B A L H O : IT IN E R Â N C IA S E

C O N F L IT O S N O D IS T R IT O D E A L M A S .

N u m a sexta-feira, dia doze de ju lh o de 1901, o lavrador Francisco de A lm eida Lim a, de

55 anos, natural e residente na freguesia do B onfim , se deslocou para o distrito de A lm as para

dar “um dia de serviço em com panhia de outros” na casa de A lexandre Ferreira, onde

p resenciou o conflito entre João F erreira e G regório G onçalves que acabou em derram am ento

de sangue. É provável que F rancisco ten h a se d eslo cad o ju n to com V ictor dos Santos, de 25

anos de idade, e M anoel C orreia da Silva, de 35 anos, tam bém naturais e residentes da freguesia

do B onfim e que se m ovim entaram para dar um dia de trabalho no distrito de A lm as.

D e acordo com os autos do processo-crim e e sua tentativa de reconstrução do episódio,

um conjunto de seis a oito trabalhadores, especificam ente lavradores, foi ao distrito de A lm as

para um dia de serviço, parte deles natural de diversas localidades com o U m buranas, Jaqueira

(pertencentes ao B onfim ), da cidade de M u ndo N ovo, de outras partes da freguesia do B onfim

e da freguesia da G am eleira. Q uando se encontravam jan tan d o , por volta das sete horas da noite,

na casa de A lexandre F erreira (possível contratante do trabalho), notaram “um tiro de pist ola

[...], m ais [sic] não havendo explosão [...] deixaram todos a m eza de ja n ta r para de ju n to

observarem o que tin h a se dado233” , quando chegaram à frente da casa de João Ferreira,

identificaram G regório G onçalves ferido po r u m a facada que v iria lhe afastar da labuta por

longos dias.

A lém dos trabalhadores já citados, tam bém se encontram nos autos M anoel C orreia de

L im a, 35 anos, F rancisco de A lm eida Lim a, 49 anos, V icto r P ereira dos Santos, 25 anos, P aulo

F ernandes dos Santos, 22 anos e V alessiano Lopes de 25 anos. N ão seria descabido sugerir

parentescos entre alguns desses trabalhadores, m uito m enos inferir sobre possíveis grupos que

se form avam e fechavam dias de serviço em diversas paragens da região, assim com o se

233 P rocesso-crim e. E: 01 Cx: 2 9 D oc: 511. C E D O C /U E FS. 1901


487
deslocavam , provavelm ente com trab alh ad o res j á conhecidos entre si, para lugares m ais

distantes na ten tativa de ganhar o dia.

Segundo o lavrador F rancisco de A lm eida Lim a,

Estando a casa de Alexandre Ferreira, no destrico das “Almas”, da um dia de serviço


em companhia de outros, entre os quaes João Ferreira e Gregório Gonçalves, estando
todos dentro da casa jantando, succedeu [...] uma troca de palavras entre o mesmo
João e Gregório, e logo depois sahindo elles para fora da casa, deu-se um conflito
entre os mesmos, no qual leva Gregório uma faccada, foi dada por João, o qual tendo
desparado um tiro de pistola contra o mesmo João, não havendo esplosão, e que em
seguida o denunciado evadira-se. Disse mais que o denunciado e a victima já viviao
intrigados, e que na occasião do jantar, que já se referio, estando o denunciado a
gracejar com alguns companheiros, succedeu que a victima disse a este que não
prosseguisse mais gracejos (Processo-crime. E: 01 Cx: 29 Doc: 511. CEDOC/UEFS.
1901).

O contexto de trabalho nas itinerâncias entre as pequenas e m édias fazendas, as freguesias e o

distrito de A lm as, certam ente m arcou os corpos e as trajetórias de m uitos/as trabalhadores no

cenário de um longo pós-abolição. O s/as trabalhadores/as, tam bém de estradas, carregavam

consigo os anseios e as expectativas de u m a vida m enos precarizada, assim com o as ten sõ es e

frustrações entre si, cultivando a p artir daí am bíguos laços com unitários que, em dados

m om entos, tam bém eram tem perados com a violência, desavenças e sangue. O espaço para

“ gracejar com alguns com panheiros” nem sem pre rendia risos p ara todos, sobretudo entre

aqueles que já viviam “ intrigados” . E ssas dim ensões não derivam som ente dos conflitos, m as,

sobretudo, dos arranjos e das estratégias para dar sentido concreto as suas concepções de

liberdade e cidadania, principalm ente no que diz respeito ao trabalho no cam po e ao acesso a

terra. C om o instrum entos da labuta cam pesina, a faca e o facão eram itens íntim os do cotidiano

de lavradoras e lavradores. N ascid o em 1943, seu E dson, conhecido com o Ézo, hom em negro

e lavrador, oriundo da fazenda Santa R osa, atualm ente m orador do M unicípio de A nguera-B a

(antigo distrito de A lm as), sugere, a p artir dos exercícios de suas m em órias referentes à década

de m il novecentos e cinquenta, u m a dim ensão de atravessam entos culturais e sim bólicos em

relação aos instrum entos do cam po e a sua presença no cotidiano local.

O senhor se lembra de algum trabalhador, na época da fazenda lá na Santa Rosa


[...], ter se desentendido com o fazendeiro ou algum vaqueiro?
Não, não, lá a gente e os vaqueiros tudo era legal, a gente trabalhava tudo junto, ou a
dia ou a tarefa.
Nessa época os homens andavam com canivete, facão?
Oh, facão era arma da roça, o canivete pra fazer cigarro. O facão é arma da roça, é do
homem do campo, facão, foice, machado é do homem do campo, e o canivete
antigamente era pra fazer cigarro (risos).
Então geralmente os homens da roça...
Tinha direito, hoje eu até passei com o facão aqui no ombro ou na cintura, qualquer
um passa, vá sua viagem, se entrar numa venda tira, guarda, quando pega, vai embora
[.].
488
[...]
E as mulheres andavam com facão também, as mulheres do campo?
Oi, não? Cada um facão na cintura, se elas trabalhavam de roça também [...], até hoje
no sul mesmo as mulher não solta o facão da cintura.
As brigas eram resolvidas como?
Oh, era um com outro, tinha o subdelegado, tinha polícia. (Seu Edson, 2022).

A presença da faca no conflito, assim com o da pistola, entre João F erreira e G regório

G onçalves talv ez passe po r essa paisagem de um possível direito (costum eiro?) m encionada

po r seu E dson, que era filho de rendeiro e foi criado em um a das diversas pequenas e m édias

propriedades que cortavam ou contornavam o distrito de A lm as. A n arrativa trabalhada po r esse

lavrador sugere u m a noção de instrum entos, arm as do cam po, restrita ao uso no trab alh o e

distanciada das tensões e dos desentendim entos. Q uando questionado sobre o uso desses obj etos

nos conflitos, seu E dson tratou logo de atualizar a paisagem para o espaço da bodega ju n to à

presença do álcool e seu perfum e de desordem , de m odo que ficou estabelecida, em parte da

sua narrativa, um a divisa entre os hom ens do cam po que trabalhavam e os que caçavam

“ m olequeira” , sendo assim , segundo ele, não deveria se confundir, po r exem plo, os usos da

faca, do facão ou da foice.

É provável, pensando a década de 1950, a identificação de certa labilidade na cisão dos

usos desses objetos no universo rural, com o propõe seu E d so n . F ocalizando a prim eira década

do século X X , essa dicotom ia perde ainda m ais fo rça. O depoim ento de P aulo F ernandes dos

Santos, lavrador de 25 anos, im plicado no processo-crim e sobre o conflito de João Ferreira e

G regório G onçalves, evidencia o im bricam ento dos possíveis usos e significados dos

instrum entos do cam po num contexto de trabalho.

Na occasião em que estavam jantando, e isso relata em que não tem a ciência, estando
0 denunciado a gracejar com um dos companheiros, e ordenando Gregório a este que
se cale, o denunciado levantou-se para frente [...] armado de uma pistola, sahindo para
fora da casa, saltando uma janela, para aonde tavam sahindo a victima, e então dera
lhe uma faccada, e tando esta desfechado-lhe um tiro a pistola não houve esplosão.
Disse mais que o denunciado e a victimajá estam [sic] inimigos (Processo-crime. E:
01 Cx: 29 Doc: 511. CEDOC/UEFS. 1901, grifos meus).

A lém de refo rçar o que sugere o depoim ento do lavrador Francisco de A lm eida L im a -

apontando tam bém outras tem poralidades para se pensar o conflito, tendo em vista que o

denunciado e a v ítim a já estavam “inim igos” - , o de P aulo F ernandes põe em relevo

características que apontam com o o docum ento ju d iciário , no caso aqui o p rocesso-crim e, é,

tam bém , tecido pela m em ória (PA SS E R IN I, 2011). O inquérito policial do referido processo

foi concluído sinalizando que “ G regório G onçalves Soares fôra v ictim a de um a facada, em

consequência da qual soffrera ferim entos de saúde que o im possibilita dos serviços po r m ais de

489
trin ta dias234” . A s m arcas do serviço acabaram po r im pedir alguns dias de trabalho para o

lavrador G regório G onçalves.

C abe aqui d estacar que significativa parte destes trabalhadores residia no distrito de

A lm as, m as não era natural dali, o que corresponde aos processos intensos de m igração num

contexto de longo p ó s-abolição que acabou po r suscitar experiências concretas e contraditórias

de liberdade por m eio do trabalho e das itinerâncias (SILV A , 2017; 2021). N ascid o em 1846, o

já citado lavrador F rancisco de A lm eida L im a possivelm ente vivenciou, construiu e/ou

visualizou diversos arranjos de liberdade e cidadania por essas localidades entre a freguesia do

B onfim e o distrito de A lm as.

D istrito esse que não atraia som ente em contextos de trabalho ou dias de serviços. N o

m ês de dezem bro de 1909, o jo rn a l feirense Folha do N o rte noticiava que “na m issão havida

[...] no arraial das A lm as, neste m unicípio” , foram realizados “ 83 casam entos, 1400 confissões,

75 b ap tisados e 1599 crhism as, sendo calculado em 6000 o núm ero de concorrentes a m esm a

m issão 235” . M esm o colocando esses núm eros em suspensão, é possível constatar que o distrito

de A lm as era alvo de diversas investidas p o r parte de trabalhadores/as rurais no cenário de longo

pós-abolição. E m 1914, o m esm o periódico m enciona a organização da aclam ada festa de São

B enedito no distrito, de acordo com o jo rn al, “ na cappela das A lm as, da F reguezia do B onfim ,

preparam -se para o dia 10 de M aio, dom ingo, im ponente festas em honra deste glorioso

T haum aturgo236” , onde se pode im aginar a presença de diversos/as trabalhadores/as das

fazendas que cercavam o distrito, assim com o daqueles/as que residiam em outras partes da

região.

E m sua tese de doutoram ento, a pesquisadora E dnélia Souza, investigando o R ecôncavo

Sul da B ahia no contexto de pós-abolição, pontua que em cenários de devoção im bricavam -se

religiosidade, labutas, diversões e conflitos, pondo em evidência diversas relações de hierarquia

e p o d er (SO U ZA , 2012). É possível captar dim ensões com o essas no distrito de A lm as, que

tam bém possuía suas variadas form as de conexões com o R ecôncavo naquele contexto.

Segundo a professora E dn élia Souza,

Os leilões noturnos, após a novena, constituíam, à parte, um expressivo espaço que,


além de demonstrar a ligação prática das pessoas com o Santo, admitiam que posições
sociais fossem medidas tanto nos prêmios ofertados, como nos valores lançados aos
prêmios. Logo, ali se demarcavam posições hierárquicas, também mediadas pela cor
e pelo sexo [...]. Os ajuntamentos festivos ou de trabalho também podiam desencadear
conflitos. As negociações e tensões vividas no campo ou na cidade estiveram
constantemente articuladas aos momentos de diversão (SOUZA, 2012, p. 175-177).

234 Processo-crime. E: 01 Cx: 29 Doc: 511. CEDOC/UEFS. 1901.


235 Missão. Jornal Folha do Norte, 11 de dezembro de 1909, n. 13, p. 2, MCS/CENEF.
236 Noticiário Religioso/Festa de S. Benedito. Folha do Norte, Sábado 25 de abril de 1914, n. 218, p.1.
MCS/CENEF.
490
A inda nesse sentido, vale ressaltar que o cotidiano do trabalho, ainda que atravessado

po r m om entos de diversão, não era esvaziado de tensões sociais que m arcavam as vivências das

pessoas e dos grupos no p ó s-abolição (SO U ZA , 2012). E m 1898, num sábado do m ês de jun h o ,

dia efervescente no distrito po r conta da feira livre, às sete horas da noite, na estrada que liga o

distrito de A lm as à fazenda R om a, Francisco de P au la P ereira efetuou disparos que resultou no

assassinato de C anuto de Tal. O processo ju ríd ic o se desenrola entre os anos de 1900 e 1901.

C anuto de Tal “ era crioulo, com trin ta e tantos anos, m ais ou m enos” e constantem ente era visto

“ no arraial das A lm as237” . R astros de cativeiro, assim com o das m obilidades com o exercício de

liberdade, sobretudo, nas itinerâncias destes trabalhadores, são localizáveis a p artir deste

ocorrido. Segundo o depoim ento do a utor dos disparos, F rancisco de P aula, lavrador de 17 anos,

natural e residente do distrito de A lm as, quando,

Perguntado se é verdade ter sido elle interrogado o auctor da morte de Canuto?


Respondeu afirmativamente. Perguntado em qual dia e anno e lugar teve o
assassinato de Canuto e por que? Respondeu que as sete horas da noite, mais ou
menos, de sábado, do mês de julho de mil oitocentos e noventa e oito, perto do arraial
das Almas, na estrada que vai para a fasenda Roma e por meio de uma pistolla.
Perguntado qual o motivo que elle interrogado havia para a pratica de
semelhante crime? Respondeu que tendofeito uma viagem a Santo Amaro, de volta
para as Almas, [...] tivera uma troca de palavras com o infelis Canuto, foi quando
resultou as vias de facto e em lugarejo no arraial das Almas, no mesmo dia que teve
lugar o assassinato de Canuto, reconhecendo este o facto que se havia passado no
caminho, houvesse nova troca de palavras entre elle interrogado e o mesmo Canuto,
ameaças de porta a porta, e como este tentasse offendê-lo com uma faca e pistola,
disendo armado de com a faca fosse fasendo elle até, com esta, algumas offensas, às
costas elle interrogado [...] uma pistola com que estava armado, sendo a munição desta
empregar-se só mesmo Canuto, em consequência disto viera a falleceer oito dias
depois (Processo-crime. E: 04 Cx: 98 Doc: 2038. CEDOC/UEFS. 1900-1901, grifos
meus).

A presença das “ arm as do hom em do cam po” pontilhava as relações sociais po r ali.

C abe destacar os itinerários dos sujeitos envolvidos no conflito. R esidente no distrito de A lm as,

F rancisco de P au la retornava de viagem a Santo A m aro, R ecôncavo da B ahia, o que pode ser

indício das conexões que atravessavam o distrito de A lm as em direção a diversas localidades

da B ahia, isso num contexto de longo pós-abolição, inclusive de grupos de trabalhadores que

se deslocavam em direção a partes do R ecôncavo para a com pra de café, ja c a e outros itens a

serem vendidos na feira do distrito, sem falar nas idas ao R ecôncavo p ara fins de trabalho nas

fazendas. P o r outro lado, C anuto de Tal, potencial descendente de escravizados e/ou libertos/as,

circulava pelo distrito de A lm as num a provável costura de cam inhos para u m a sobrevivência

m enos contingenciada.

237 P rocesso-crim e. E: 0 4 Cx: 98 D oc: 20 3 8 . C E D O C /U E F S. 19 0 0 -1 9 0 1 .


49 1
A inda nesse m esm o processo, o lavrador M anoel P ereira da A ssum pção, de 46 anos de

idade, natural da freguesia de São José, residente no B om D espacho (atual D istrito de Jaguára),

pontua que “ achava-se elle [...] no arraial das A lm as, deste term o, e [...] ouviu o estam pido de

um tiro para o lado da rua que vai dar na fasenda R o m a” , para onde se dirigiu apressadam ente

encontrando diversas pessoas e “ o offensor de C anuto238” . A inda no seu depoim ento, quando,

Perguntado se sabe ou ouviu diser que houvesse alguma intriga entre o


denunciado e a victima, anteriormente aos factos que se trata? Respondeu que um
dia desses que entre elles havia se dado uma desavença em uma viagem que [...], em
cuja occasião alheia, teria a victima dado com um chicote no denunciado (Processo-
crime. E: 04 Cx: 98 Doc: 2038. CEDOC/UEFS. 1900-1901, grifos meu).

C ercado po r ten sõ es e deslocam entos no contexto de longo pós-abolição, o distrito de

A lm as era palco de diversas experiências coloridas pela violência nas estradas, nos am bientes

de trabalho e, de m odo geral, no cotidiano do universo rural. M uito da textura cultural e

sim bólica desse m undo rural ainda era tingida pelas lógicas e dinâm icas do trabalho

com pulsório, leia-se do cativeiro. O distrito figurava enquanto um lócus de possíveis

construções de autonom ia, de fixação de fam ílias, de hom ens negros, de m ulheres negras, de

gente pobre que cinzelava suas concepções de liberdade na labuta e na plena interação com

localidades diversas, territórios rurais em constantes e distintas vinculações.

E m 1901, precisam ente no dia 20 de m aio, Q uintino de Tal foi b aleado po r Luiz M iguel

da C onceição, preso em flagrante, no distrito de A lm as. O que cham a atenção nesse processo é

a origem dos depoentes, por exem plo, “ Saturnino C ardozo de Lim a, Solteiro com desenove

annos de idade” é “lavrador” e “natural da cidade de M o nte A legre, e residente na freguesia de

Serra P reta” . E le aponta que,

Na noite do dia vinte estando em casa de João Barreto, pela sete a oito horas da noite
com Quintino, Luiz e mais pessôas, e n’esta occasião Quintino procurara a Luiz uma
facca que elle lhe havia furtado, este respondendo-lhe que não foi elle quem furtou a
facca sim um menino do Jacaré, e que elle Luiz tomou a facca e negociou, e como
Quintino persistisse este convidou parafora da casa e saíram ambos, Luiz pushou da
sinta uma pistolla disendo a Quintino que não camiasse que morria, e como Quintino
aumentou os passos recebeu logo o tiro (Processo-crime. E: 01 Cx: 28 Doc: 510.
CEDOC/UEFS. 1901, grifos meu).

A resolução das tensões po r m eio de am eaças, tiros e facadas insere essas experiências

num terreno perm eado e possível de ser lido, interseccionalm ente, pelas relações de gênero,

classe e raça, m oldadas ao calor do universo rural e das suas especificidades num cenário de

longo pós-abolição. O utro depoente no processo, M anoel B ispo de Souza, lavrador de 25 anos

238 P rocesso-crim e. E: 0 4 Cx: 98 D oc: 20 3 8 . C E D O C /U E F S. 19 0 0 -1 9 0 1 .


492
de idade, natural de R iachão do Jacuípe e residente no distrito de A lm as, relata que “ estando

em sua casa presenciou que saía de u m a casa v isinha L uiz e Q uintino e que elle testem unha

ouviu vozes de L uiz diser não cam inha que eu ti atiro e n ’este instante ouviu os estam pidos do

tiro 239” . O utros sujeitos im plicados no processo tam bém eram oriundos de outras regiões,

algum as bem distantes do distrito de Alm as.

N ascid o em três de m aio de 1940, na fazenda C aldeirão, hom em negro, lavrador,

M anuel da C ruz Souza traz nas suas narrativas orais alguns aspectos do com o funcionavam as

relações de “ segurança” no distrito de A lm as. A narrativa de seu M anuel - que busca recobrir

a década de cinquenta do século X X - é caracterizada pelas dim ensões institucionais,

com unitárias e pessoais, todas elas interconectam -se lastreando o trabalho das suas m em órias e

anunciando tem poralidades, linguagens e experiências que com puseram o universo rural no

distrito de A lm as.

D e acordo com A lessandro P ortelli (2010), a histó ria oral é constituída por diversas

m odalidades de narrativas, sendo elas a institucional, construída de m odo im pessoal, situada

em espacialidades e sociabilidades referentes à esfera pública da política e grupos dirigentes; a

m odalidade com unitária, tecid a na prim eira pessoa do plural, m arcad a pelas relações na

com unidade local de trabalho e entorno; e a m odalidade pessoal, erguida singularm ente em

prim eira pessoa, tom ando a vida privada, a fam ília e a casa com o referentes. N as n arrativas

orais as m odalidades dificilm ente se distanciam de m odo evidente, convergindo frequentem ente

e trazen d o ao palco historiográfico a m aneira com o as relações de poder e as condições sociais

im pactaram a v id a de diversas pessoas (PO R T E L L I, 2010). N o co n tex to do estudo aqui

proposto, é possível m en su rar com o as relações de trabalho eram desdobradas e vivenciadas

po r trabalhadores/as rurais num cenário de longo pós-abolição.

A n arrativa oral de seu M anuel C ruz de Souza aponta tam bém para outras realidades

não acessíveis, pensando o distrito de A lm as, por m eio dos docum entos escritos, com o a

presença das m ulheres “ que vinham fazer a vid a” , não necessariam ente no trabalho rural, ou

não som ente po r lá, sem falar nos aspectos sim bólicos e culturais d a faca, do canivete, assim

com o das tensões envolvendo sujeitos das forças de seguranças e m oradores do distrito de

A lm as.

Tinha muita quitanda na rua?


Tinha, tinha umas quitandazinhas aí, umas vendinhas aí, o povo na cachaça não
brincava mesmo, e por aí começava a putaria. O povo tinha ignorância rapaz, cada
uma lasca defaca na cintura, facão, sordado, botava sordado, mas o povo nãofazia
fé em sordado também. [...] O negócio, oh, o negócio aqui melhorou mesmo, bastante
foi depois que passou a ser cidade, aí melhorou tudo, tudo, tudo, tudo.

239 P rocesso-crim e. E: 01 Cx: 2 8 D oc: 510. C E D O C /U E FS. 1901


493
Mas nessa época que pertencia à Feira, não tinha delegado?
Não, se era dominado por lá. Tinha inspetor, qualquer coisinha aqui tinha que botar
uns inspetor aí que disse que era quase delegado, mas não era. Era quem fazia as paz.
E o povo não respeitava?
Oxoxoxo. Tinha um inspetor aqui que chamava Isído Araújo, aí o pai de Tonhêga ali
fez uma bagunça, ele foi querer coisar com Tonhêga, o Jaime, Jaime picou ofacão no
pescoço, quase arrancafora (risos), finado Isído Araujo, (risos), oxe.
Nessa época era tudo resolvido em faca, canivete?
Ora, ele não tinha arma, ninguém andava armado com outras armas não, não podia
comprar. Revolver era, ave Maria, se visse uma pessoa com revolver era coisa de
outro mundo, tinha aquelas pistolas cu de burro que o povo chamava um choque uma
carreira.
Só quem brigava eram os homens? As mulheres brigavam também?
Oxe, a briga maior era de mulher, mulher beba aí dia de sábado aí era mato (nessa
hora, a filha dele que catava o feijão na sala onde conversávamos emite um “hum,
hum, hum”). Oxe. Vinha defora, aquelas mulé de banda voou, saia procurandofazer
vida por aí e por aqui ficava.
Mas eram de fazendas aqui perto, ou eram de outras cidades?
De cidade. Vinha de Ipirá, vinha de Feira, do Bonfim vinha para aqui também
(Manuel da Cruz Souza, 2022, grifos meus).

A m an eira com o seu M anuel vai u rdindo sua narrativa, revela, em parte, “ as em oções

com o com ponentes da identidade” e “ a im portância dos sentim entos na dinâm ica identitária e

o caráter m óvel e intersubjetivo das identidades” (PA SSE R IN I, 2011, p. 10-11). O s risos que

envolvem a tessitu ra da h istória da facãozada dada por um m orador do distrito no inspetor local

tam bém apontam para “ o papel das em oções no cruzam ento entre o público e o p riv ad o ”

(PA SS E R IN I, 2011, p. 100). O destaque de seu M anuel da C ruz Souza para a existência de

u m as “vendinhas” nas ruas do distrito, não deixa dúvidas de que o espaço das vendas, tam bém

responsáveis po r fazer girar a econom ia local anteriorm ente e após a abolição, era fértil para o

lazer, po r vezes contornado por desavenças e tensões diversas. N as décadas seguintes a

abolição, nas quitandas e vendas era identificável as disputas pelo tem p o do trabalho, assim

com o as diversas sociabilidades (SO U Z A , 2012).

A s labutas e os corpos, negros e pobres, de trabalhadores e trabalhadoras rurais,

m uitos/as trabalhadores/as itinerantes, pelas estradas que constituíam o distrito de A lm as e seu

entorno, foram m arcadas/os po r diversas relações de conflito, por diversos contatos com

pessoas de territórios distintos e que se encontravam em A lm as, m arcados/as tam bém por cortes

profundos de um contexto de longo pós-abolição, assim com o por estilhaços de balas, lam inas

de facas e anseios de um a vida m enos precária.

O diálogo entre as narrativas orais/trabalhos de m em órias (entrevistas), processos-

crim es e fragm entos de periódicos sobre o distrito de A lm as, à luz das problem áticas do pós-

abolição, num a perspectiva de longa duração, pode arrepiar os silêncios historiográficos sobre

essa região pertencente à cidade de F eira de Santana até um pouco m ais da m etade do século

X X . A té aqui, buscou-se, ainda que de fo rm a prelim inar, evidenciar as circularidades e tensões

que caracterizaram o contexto de p ó s-abolição no distrito de A lm as, territó rio m argeado por
494
pequenas e m édias propriedades e que figurava, para parte de diversos/as trabalhadores/as do

cam po, enquanto terreno de possíveis liberdades e exercício da cidadania po r m eio do trabalho,

do acesso a terra e da efetivação de um projeto de vida m enos truncado e em pobrecido.

3. C O N S ID E R A Ç Õ E S .

A produção historiográfica a cerca do distrito de A lm as ainda precisa de m usculatura e

esforços p ara contribuir de form a significativa no debate sobre o p ó s-ab o lição na B ahia, em

específico pelo seu interior num contexto de estendida tem poralidade. E ste texto se propõe a

fazer parte dessa abertura de cam inhos, da n ecessidade de levantar hipóteses, docum entos e

problem áticas que possam situar essa região, m arcadam ente negra, nos cen ário s e nas questões

do B rasil R epública.

O intercruzam ento de processos-crim es com as narrativas orais, por exem plo, ainda que

espaçado po r algum as frações de tem po, perm ite elucidar e/ou p roblem atizar im portantes

dim ensões das relações de trabalho não só do ponto de vista das hierarquias com os senhores,

fazendeiros e/ou seus representantes, m as tam bém nas relações internas ao universo dos/as

próprios/as trabalhadores/as no cam po. E sq u ad rin h ar interseccionalm ente os m arcadores de

raça, classe e gênero que davam form a aos conflitos tratados neste texto, é de fundam ental

im portân cia para a com preensão dos significados, dos usos e das sim bologias de certos objetos

no cotidiano dessas pessoas, das variadas form as de constituição das suas identidades sociais e

das transitoriedades diversas, tanto do ponto de vista territorial, quanto das relações

interpessoais.

A p artir do universo das roças, esses/as trabalhadores/as nutriam diversas reinvenções

das m aneiras de v iver e significar o tem po nas fazendas e no distrito, agenciando experiências

intensas que de algum a form a borravam os desejos e as fantasias de controle da inviolabilidade

senhorial. N esse sentido, o universo das roças é com preendido aqui enquanto um a arena fértil

para diversos conflitos e sociabilidades.

O conjunto de leituras a cerca da historiografia do pó s-ab o lição indica que as cam adas

de racialização irrigadas no longo contexto de em ancipação podem ser identificadas nas

diversas form as de inscrições do auto-ódio no corpo negro no decorrer desses processos no

cam po. A o ex am in ar o trabalho das m em órias de trabalhadores/as angurenses, assim com o as

suas presenças em processos-crim es, torna-se possível captar as nuances dessas experiências e

tensões no cam po, onde a pele negra continuou sendo alvo de constrangedoras fantasias, não

só do m edo branco, m as tam bém de olhares diversos. N u m a sociedade que relutava para
495
posicionar-se além da escravidão e que tingia com cores negras e não brancas a despossessão

m aterial, política e sim bólica, o trabalho era v iv en ciad o de truncadas form as.

T ratando-se de u m a área rural de pequenas e m édias propriedades, palco de

sobrevivências diversas, é possível q uestionar quais eram as controvérsias da liberdade. C om o

o cativeiro era significado, lido ou relido no m undo do pós-em ancipação nas fazendas

localizadas nas im ediações do distrito de A lm as? Q uais eram os sentidos atribuídos pelos/as

trabalhadores/as, rendeiros/as no caso, ao ato de te r que pagar a renda para poder prosseguir

com as suas m oradias? O contato com a docum entação jurídica, jo rnalística e o trabalho com

os arquivos orais podem m in ar as ausências de respostas a essas questões e rev elar dim ensões

desses processos nessa região ainda carente de pesquisas com esse enfoque tem ático e tem poral.

O não aprisionam ento nas datas e a atenção nos processos históricos perm item um a análise m ais

a fundo sobre as reelaborações das m aneiras de dom inar, tu telar e fazer dependentes nu m a arena

onde os/as descendentes de escravizados/as e libertos/as agenciavam a cidadania d e n tro de

vários lim ites.

P esquisas nesse sentido podem contribuir para a elaboração de um conhecim ento sobre

um tem a ainda não abordado de m aneira específica nessa região do centro-norte baiano,

acrescentando tam bém no debate local, sobre a identidade da cidade e seu entorno na m edida

em que traz elem entos sobre processos de organização dos espaços u rbano e rural. A inda nesse

cam po, estas pesquisas podem som ar no entendim ento dos processos de êx o d o no cam po e o

surgim ento de pequenos aglom erados urbanos com densas relações com o rural num contexto

de longo pós-abolição.

O s feixes de lem branças de trabalhadores/as rurais anguerenses, assim com o a m assa

docum ental de p rocessos-crim es e inventários, podem anunciar alguns sentidos para o que foi

ou para o que se to rn o u o cativeiro no contexto para além da escravidão, fornecendo assim

insum os ao trab alh o de possíveis narrativas históricas a respeito dos arranjos culturais e das

labutas desenhadas na constituição social da cidade. A s teias econôm icas, culturais e sim bólicas

estabelecidas no entorno das roças, das sociabilidades nas estradas e do trabalho rural de um

m odo geral, com portavam am plos significados de autonom ia, ainda que precários, e no âm ago

do básico im prescindível para a existência e as reinvenções cotidianas desses/as

trabalhadores/as rurais anguerenses, estava o acesso à terra que poderia alargar as condições

concretas de m elhoria da vida, inclusive viabilizando condições de m igração e fixação com a

fam ília no distrito.

N esse sentido, é possível in fe rir sobre a luta pela am plificação dos espaços de

subsistência com o im pulsionadora do deslocam ento desses trabalhadores/as para o distrito de

A lm as, processos que certam ente estavam relacionados aos anseios po r um acesso m ais
496
significativo aos m ercados locais, sobretudo à feira livre do distrito. E ssas questões podem

ajudar na avaliação sobre os processos que tangenciavam as idas e vindas entre essas pequenas

e m édias propriedades e a localidade que v iria se to rn ar A nguera-B a.

F O N T E S D O C U M E N T A IS :

- C E D O C (C entro de D o cu m en tação e Pesquisa/U E FS ).


* P rocessos C rim inais.
- B IB L IO T E C A M O N S E N H O R G A L V Ã O /M C S/U EF S .
* Jornal Folha do N orte.

F O N T E S O R A IS .

*M anuel da C ruz de Souza, entrevista realizada em 2022.


*Edson, conhecido com É zo, entrevista realizada em 2022.

R E F E R Ê N C IA S :

PA S S E R IN I, Luisa. A m e m ó ria e n tr e p o lític a e em oção. São Paulo: L etra e Voz, 2011.


(C oleção Ideias).
P O R T E L L I, A lessandro. E n sa io s de h is tó r ia o ra l. São Paulo: L etra e Voz, 2010. - (C oleção
Ideias).
SILV A , M ayara Pláscido. Feira de trabalhadores/as e m igrantes - sobre relações de trabalho e
punição física em F eira de Santana/B ahia, 1900 - 1910. A n a is X X V III S im p ó sio N a c io n a l
de H is tó r ia - A N P U H /S C , p. 1-15, 2015. D isponível em:
http://w w w .snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1434316889 A R Q U IV O textoanpuh2015.
p d f. A cesso em: 15 nov. 2021.
________________________. “R evolução sem sangue” na “ decantada pátria de L ucas” -
E xperiências de trabalhadores/as negros/as e m igrantes no P ós-abolição, F eira de Santana
(1890-1930)” . T ese (D o u to ra d o em H is tó r ia S ocial) - F aculdade de F ilosofia e C iências
H um anas, U n iv ersid ad e Federal da B ahia, Salvador, 2017.
SO U ZA , E dn elia M . O liveira. P ós-abolição na B ahia: H ierarquias, lealdades e tensões sociais
em trajetórias de negros e m estiços de N azaré das F arinhas e Santo A ntonio de Jesus
1888/1930. T ese (D o u to ra d o em H is tó r ia S ocial) - Instituto de F ilosofia e C iências Sociais,
da U niversidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.

497
O MOMENTO DO JUÍZO: REPRESENTAÇÕES DOS JUÍZES DO
MUNDO DOS MORTOS GREGO NA EPOPEIA E NA COMÉDIA

L E A N D R O M E N D O N Ç A B A R B O SA *

P arece haver certo ponto com um em assentar a instituição do ju lg a m e n to das alm as que

deixam o m undo dos vivos e adentram o subm undo à cosm ovisão platônica. O L inguista

A lberto B ernabé (2021) e o H istoriador R adcliffe Edm ons, (2014) são exem plos que, apesar do

reconhecim ento de influências pretéritas na acepção dos ju íz e s da m o rte, com ungam que a

p ersonificação do ju íz o em criaturas concretas obtenha em P latão sua m áxim a

Sem negar a fulcral im portância do platonism o e de sua reflexão filosófica sobre a

responsabilidade da vida perante a m orte - nas figuras corporificadas de ju íz e s -

com preendem os que a concepção dos seres responsáveis pelo destino da alm a abarca m om entos

pretéritos a escritas de Górgias, Apologia de Sócrates e República, e, m esm o que a

docum entação anterior ao pensam ento platônico não apresente de form a substanciosa estas

criaturas, defendem os que sua m aterialização é anterior aos escritos de Platão: na epopeia e na
com édia gregas240.

A in ten ção não é a de um a H istória C om parada entre os gêneros, m as,

m etodologicam ente, p artir do paradigm a indiciário, qual seja perceber indicativos m arginais

em nossa docum entação, deslocando u m a interpretação de conjunto para um a m icroanálise

centrada em trechos bastante específicos que nos levam a questionar o estabelecido em relação

ao tem a e a testar outras possibilidades.

C oncordam os com B ernabé em relação ao pensam ento sobre o ju íz o depois da m orte

atingir destaque nos diálogos platônicos, bem com o à ideia consistente de julgam ento. T odavia,

o autor aponta, a p artir de u m a com petente análise de trechos hom éricos, que as representações

dos ju íz e s dos m ortos anteriores a P latão seriam residuais e inconsistentes (B E R N A B É , 2021,

p. 139).

Indiciariam ente, acreditam os que estas alusões são im portantes para form ar parte da

id eia que se tinha sobre a ju stiç a além -vida e sobre os agentes que com punham este im aginário

240* Doutor em História Antiga pela Universidade de Lisboa-Portugal. Pós-doutor em Estudos Culturais pela
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. SEMED/Campo Grande. Membro dos Grupos de Pesquisa
“ATRIVM - Espaço Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade” e “Historiografia e Ensino de História: diálogos
em trânsito”, ambos sediados na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Há também uma menção acerca de um juiz anônimo que avaliaria os seres que acabavam de morrer no epinício
Olímpica II, de autoria do poeta tebano Píndaro. No escrito, este juiz inominado concedería uma além-vida sem
trabalho para os bons, e com labuta pesada para os maus (II-56-67).
498
religioso. Já E dm onds concorda que foi a concepção platônica que construiu a com plex idade

dos ju lg a m e n to s no subm undo, m as em certos m om entos defende que a ideia vaga de um ju íz o

e até de seres específicos para isso surgem de um a tradição m ítica grega com um que antecede

Platão:

The idea of judges, be it the gods in a vague and unspecific sense or particular entities
who carried out a detailed process of examination, seems to derive from the common
mythic tradition, although Plato’s bricolage with the bits of tradition produce far more
complex and detailed scenarios than anything else extant. (EDMONDS, 2014, p. 13)

O s ju ízes, É aco, R ad am an tis e M inos habitariam o m undo subterrâneo e seriam

responsáveis po r ju lg a r as alm as das pessoas m o rtas241. S ão divindades antigas: tanto

R ad am an tis242 com o M inos - que são irm ãos - constam nas E p opeias H om éricas e, de acordo

com P ierre L évêque, seriam divindades cretenses incorporadas ao panteão H elênico, pois a

p rópria ideia de um ju íz o após a m orte im plicou, em Creta, à existência de um ju lg a m e n to aos

m oldes egípcios, recom pensando os m ortos de acordo com seus feitos em vid a (L É V Ê Q U E ,

1996, p. 132). A rnaldo B ernabé concorda com a tradição cretense no que se refere a M inos

(B E R N A B É , 2021, p. 150), m as defende tam bém um a possível origem dos ju íz e s em conexão

com o sul da P enínsula Itálica, devido a farta representação na cerâm ica apúlia, o que não é

visto na produção ceram ista balcân ica até o período helenístico.

C om ecem os com M inos. F ilho de Z eus e E u ro p a243, é o rei de C reta três gerações antes

da G uerra de Tróia. Inteligente, foi responsável por org an izar seu povo por m eio de códigos

que servirão de base para diversas C idades-estados gregas (G R IM A L , 2000, p. 313). Sua

n arrativa m ítica é vasta; aqui centrar-nos-em os no M inos ju iz do m undo dos m ortos e, para isso,

faz-se im portante entender sua construção dentro da epopeia.

A epopeia, u m a das estruturas poéticas m ais antigas, configura-se com o u m a narrativa

b asead a no em pirism o e na dedução a partir de dadas realidades; um fenôm eno literário: “ (...)

une m anière épique d'appréhender le m onde et la vie.” (L A M B IN , 1999, p. 32). A lteando

grandes feitos, eventos e personagens divinos e hum anos, as epopeias hom érica e hesiódica

servem de exem plo e inspiração para estruturas narrativas m esm o após m ais de dois m ilênios

de suas prováveis escritas.

241 Conforme Alberto Bernabé (2021, p. 150), em representações nas cerâmicas do período helenístico Triptólemo
figurará entre os juízes, muitas vezes substituindo Minos. Em Apologia de Sócrates, Platão aloca Triptólemo junto
aos outros três juízes.
242 Radamantis é citado tanto na Ilíada (XIV, 322) quanto na Odisseia (IV, 564; VII,323), sem relação direta com
a justeza no além-vida.
243 Filha de Agenor e Telefaassa, foi amada por Zeus, que se transformou em um touro branco e viajou com ela
até Creta, lá consumando seu amor.
499
H om ero, em bora cite M inos em sua Ilíada, coloca-o com rei de Creta, sem nenhum a

referência ao m undo dos m ortos. É na Odisseia que o herói hom ônim o vê M inos no am biente

do m undo dos m ortos, quando faz sua katábasis ao subm undo:

Mas desejava o coração no meu peito contemplar


outras almas dos mortos que partiram.
Foi então que vi Minos, o filho glorioso de Zeus, com o cetro dourado na
mão, a julgar os mortos, sentado,
enquanto outros interrogavam o rei sobre questões de justiça,
sentados e em pé, na mansão de amplos portões de Hades. (Hom., Od., XI, 566-571)

A interpretação de A lberto B ernabé sobre este trecho é de que M inos concede a ju stiç a

aos m ortos que j á m oram no H ades. Seria o que resolve litígios, organiza as pelejas e disputas

entre as alm as. N ã o se trataria de um ju iz o qual designa p ara qual lugar iria a alm a que acabou

de adentrar ao subm undo (B E R N A B É , 2021, p. 149). Propom os, a p artir desta observação, duas

questões: a prim eira é que O disseu não estava m orto, era um vivo em um um a realidade de

katábasis. D este m odo, não é possível afirm ar que M inos não ju lg a ria o herói caso este fosse
para o H ades na condição de m orto. O disseu em estado de vivência não perm ite com preender

a real função de M inos atribuída por H om ero neste trecho.

O utro ponto está no fato de M inos ser apontado na circunstância da ju stiça . O rei/juiz

aparece aplicando ju ste z a às alm as, m esm o que já se encontrem no m undo dos m ortos. Se não

podem os afirm ar, pelo que H om ero nos deixou, que M inos é um ju iz que pondera as ações dos

outrora vivos, tam p o u co seria verossím il cravar que ele não sim bolizava a figura de ju iz , haja

vista o seu senso de ju stiç a apresentado na Odisseia244.

N o p eríodo de construção da epopeia o palácio era o sím bolo de poder nas cidades

balcânicas ainda em crescim ento. A o rei era reservado b o a parte do atributo p olítico e ju ríd ico ,

cabendo-lhe diversas funções ligadas à legalidade. (LY E, 2016, p. 11) A p osição de M inos entre

os m ortos sugere que as hierarquias sociais do m undo dos vivos se reproduziam na terra dos

m ortos - os favoritos dos deuses continuavam favorecidos.

N otam os por esta passagem que, ainda no período hom érico, M inos era concebido por

um padrão isonôm ico, e no contexto m ortuário. E sta divindade dúbia - rei e ju iz - na Odisseia

é apontada com o filho de Z eus e dentro da m ansão de H ades, local onde ju lg av am os m ortos;

em punhava um cetro de ouro, sím bolo do poder e da soberania. O senso de equidade, parte do

im aginário religioso H elênico, concedia ao divino o poder sobre os vivos e sobre suas ações e

244 Situação semelhante se passa com Radamantis em uma menção dada por Hesíodo em uma passagem de sua
obra Catálogo de Mulheres - que sobreviveu fragmentada - referindo-se à criatura como “justo”.
500
atitudes. A Odisseia propaga no im aginário a questão de M in o s relacionado ao ju íz o da m orte,

que será conhecida nos séculos vindouros e eternizada po r Platão.

O outro ju iz que com pleta a tríade é É aco. A o contrário dos irm ãos M inos e R adam antis,

É aco não é descrito po r H om ero. A parece a prim eira vez na Teogonia de H esíodo e

posteriorm ente é contem plado pelo teatro ateniense. T am bém filho de Z eus e da n infa E g in a ,245

era o m ais piedoso de to d o s os gregos (G R IM A L , 2000, p. 125); po r este m otivo foi escolhido

para ju lg a r os m ortos.

Interessante verificar que os ju ízes, n a epopeia, possuíam predicados valorizados pelo

ideal helênico: autocontrole, piedade com os bons e sabedoria. E stas características nos

rem etem à própria m oral ideal do “ ser helênico” : o p o d er dos ju ízes, que quase nu n ca era

contestado, foi adquirido devido ao consenso destes ideais. D esde a A ssem bleia hom érica, m as

principalm ente na A ssem bleia dem ocrática de A tenas, predicados com o estes eram cobrados

dos cidadãos que possuíam poder de voz e de voto, sendo estas características caras a um bom

elaborador da política e da cidadania.

N as obras hesiódicas que chegaram com pletas a contem poraneidade não existe um a

relação direta entre as três criaturas e a ju s tiç a 246. C ontudo, é notório com o este tino está

associado ao poder e à personificação de figuras divinas, com o o próprio Zeus. Igualm ente no

caso hom érico, na epopeia de H esíodo há um forte apelo palaciano e de fortalecidas

m onarquias:

Em suas duas principais obras, Teogonia e Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo delimita um


cosmos de deuses e de homens, pautado em Zeus e na justiça. Enquanto a Teogonia narra a
origem dos deuses e o processo de estabelecimento de Zeus como seu rei, Os Trabalhos e os
Dias delimita a ação dos homens que vivem nesse universo formado por imortais, sendo
governados por reis que são também juízes e, por isso, representantes de Zeus.
(CARVALHO, 2020, p. 194).

A realidade palaciana na qual H om ero e H esíodo confeccionaram suas obras dem onstra

a im portância da sim biose entre política, poder e ju stiça. A pesar dos ju íz e s não serem citad o s

nestes term os po r H esíodo, ju lg a m o s im portante esta breve explanação para com preen der o

contexto da epopeia e sua im portância na construção da ponderação do ju sto com o algo

m onárquico, centralizado e palaciano, à diferença do que se nota relatado na com édia.

E m As Rãs, rep resen tad a em 405 A EC, durante as festas das L eneias (R A M A L H O ,

2008, p. 11), A ristófanes n arra o descontentam ento do deus D ioniso acerca do que havia se

tran sfo rm ad o as artes naquele fim de G uerra do Peloponeso. A divindade desce, então, ao

245 Filha do deus-rio Asopo, foi raptada por Zeus. Deu à luz a Éaco na ilha que passou a ter o seu nome.
246 Na Teogonia há uma descrição sobre a genealogia de Éaco (v. 1003-1007).
501
subm undo para resgatar o tragediógrafo Eurípides. O com ediógrafo zom bará com a autoridade

do ju lg ad o r, certam ente caçoando do próprio m odelo de cidadão ateniense.

N a p eça É aco aparece em um cenário de ju stiça, e de um a form a jocosa: não consegue

distinguir quem é o deus e quem é o escravo quando se depara com D ioniso - fantasiado de

H éracles - e seu escravo X ântias - que ora tam bém assum ia a aparência de H éracles. É dada a

id eia de tortu rar am bos, após um a acusação de roubo im putada a X ântias, pois quem fosse o

deus dor não iria sentir - a tortura aos escravos era p erm itid a em A tenas, desde que com o

consenso de seu senhor (R A M A L H O , 2008, p. 78) - e assim procede:

ÉACO
Palavras justas. E se eu fraturar alguma coisa, ao bater no teu escravo, a
indenização será paga.

XÂNTIAS
Não vale a pena, por quem é! Pegue nele e experimenta-o.

ÉACO
Aqui mesmo, para que fale diante dos teus olhos (A Dioniso) Você
coloque a tralha depressa, e não diga agora nenhuma mentira.

DIONISO
Proclamo a quem quer que seja, que não me torture, porque sou imortal. Caso
contrário, sou eu próprio quem se torna o acusador.

ÉACO
Que está dizendo?

DIONISO
Afirmo que sou imortal, Dioniso, filho de Zeus (Apontando para Xântias) e que o
escravo é ele.

ÉACO
(A Xântias) Ouve isto?
XÂNTIAS
É o que eu digo. E muito mais deve ser chicoteado porque, se é um deus,
não sentirá.

DIONISO
Porque é que, se você diz que também é um deus, não recebe igualmente
as mesmas pancadas que eu?

XÂNTIAS
Raciocínio justo (A Éaco). E aquele de nós dois que você ver chorando primeiro ou
preocupando-se um pouco com a pancada, acredite que esse não é um deus.

ÉACO (A Xântias)
Não há dúvida que és um homem nobre, porque vai direto ao que é justo
(A ambos). Despem-se.

XÂNTIAS
Como é que nos julgará com justiça?

ÉACO
Da maneira mais fácil: pancada em um, pancada em outro. (Aristoph., Ra., v. 623­
643)

502
É aco, a p artir de sua própria noção do que é ju sto , tortu ra am bas as personagens com o

in tuito de saber quem é deidade e quem é hum ano. C om o os dois perm anecem im passíveis, o

to rtu rad o r tem de reco rrer aos deuses H ades e P erséfone. O É aco de A ristófanes é confuso e,

até certo ponto, patético, com o a própria ju stiç a naquele final de século V A E C ., na visão do

com ediógrafo. É aco, nesta com édia, representa a crítica aos padrões de legalidade que a

decadente A tenas havia absorvido - a criatura é um porteiro ou guarda do palácio de H ades, ou

seja, em pregue em u m a posição de trabalho inferior na escala econôm ica. A ju s tiç a para

A ristófanes era tru cu len ta e ignorante, invertendo a lógica cara aos justos.

A ssim com o ocorre com M inos na epopeia, É aco é inserido neste m eio da ju rid icid ad e

na com édia. O escravo X ântias pergunta “C om o é que nos ju lg a rá com ju stiç a ? ” . C oncordam os

que há fragilidade em afirm ar a função de É aco com o um ju iz por este trecho. C ontudo, a

asseveração de que a criatura não era um ju iz, partindo do m esm o extrato, é igualm ente frágil.

A acusação de roubo corrobora com a função de É aco com o um ju lg a d o r no m u n d o dos m ortos,

m esm o que as evidências se configurem em indícios.

E m b u sca de um arrem ate, é possível notar, pelas pistas deixadas pela docum entação

analisada, que m esm o de fo rm a insólita o m undo da ju stiç a é personificado em personagens.

N a epopeia a visão palaciana e de poder concentrado nas m onarquias que governavam as

n a sc e n te s poleis reflete na representação construída de M inos no m undo dos m ortos. O rei que

distribui ju stiç a é altivo, sentado e de cetro. A ju steza, em H om ero e em H esíodo, é a do p alácio

e do poder centralizado e u nificado em seu governante ou na estrutura governam ental.

P o r outro lado, a com édia descontrói este ideal por m eio da crítica aos costum es e

padrões da ju ric id a d e ateniense. A ristófanes, particularm ente em As Rãs, erige u m a ácida crítica

ao que A tenas, ao seu ver decadente, transform ou-se, o que faz as personagens recorrerem ao

passado, em um sentim ento de saudade da outrora pujante e poderosa polis. A passagem em

que É aco é reduzido a um porteiro abstruso da casa de H ades é a aplicação da ju stiç a de m odo

confuso, rude e ineficaz.

A construção da visão de ju stiç a que a d ocum entação escrita até o século V A E C trás é,

adem ais da m udança paradigm ática no sentido de ju steza, a personificação deste ju sto em

figuras, em criaturas que efetivam ente cum priam um papel para a ordem da vida e da m orte.

M inos e É aco, sobretudo, encarnam o ju sto e sim bolizam de que form a parte do im aginário

helênico percebia o além -vida e o seu m odo de aplicabilidade do justo.

503
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504
O ATEÍSMO DE ZÉ DO CAIXÃO E SUA RELAÇÃO COM OS
REGIMES DE HISTORICIDADE DE KOSELLECK

L E T ÍC IA D A S IL V A L E IT E 247

E ste trabalho deriva de um a disciplina cursada durante m eu curso de m estrado

denom inada “ T em po H istórico, M o dernism o e M od ern id ad e” , nesta disciplina estudam os

questões referentes ao m apeam ento de novos conceitos de tem p o histórico à guisa de sua

classificação, definição e exem plificação, tendo em vista três grandes rubricas: a m etafísica do

tem p o histórico, os "regim es de historicidade" e os "regim es historiográficos", procurando

detalhar esses três cam pos dos estudos do tem po, definindo e exem plificando as ten d ên cias que

em que cada um deles se constitui e os autores que as representam . E ste trabalho trata-se de um

ensaio na ten tativ a de relacio n ar o conteúdo estudado ao tem a de m eu projeto de pesquisa de

m estrado.

Portanto, antes de iniciar a relação aqui intencionada, acredito ser válido apresentar a

m eu projeto de pesquisa, cujo títu lo é “A representação do ateísm o nos film es “A m eia noite

levarei sua alm a” (1964) e “E sta noite encarnarei no teu cadáver” (1 9 6 7 )” . A pretensão da

pesquisa é analisar, sob a p ersp ectiv a histórica, a representação do ateísm o no im aginário

p o p u lar brasileiro na década de 1960 a partir da análise dos film es citados, cujo um é sequência

do outro e am bos foram dirigidos por José M o jica M arins. O d iretor em questão é considerado

pai do terro r brasileiro e tanto dirigiu os film es supracitados quanto interpretou o protagonista

da tram a, Z é do C aixão, um coveiro ateu na b u sca pela m ulher ideal para conceber seu filho,

crendo que a união entre ele e um a m u lh er com os m esm os ideais pautados n a ciência e não na

religiosidade daria à luz u m a criança superior aos outros hum anos. A id eia é entender o ateísm o

a partir do exam e da relação do film e com a sociedade que o produz, analisar o im aginário da

sociedade que produziu o film e e para o qual o film e foi produzido.

G enericam ente, podem os conceituar ateísm o com o a ausência de crença na existência

de divindades, o oposto ao teísm o, que em sua form a m ais geral é a crença de que existe ao

m enos u m a divindade. P odem os afirm ar de acordo com M inois que “ o ateísm o, independente

das religiões, pode ser concebido com o a grandiosa tentativa do hom em de criar um sentido

para si m esm o, de ju stific a r para si m esm o sua presença no universo m aterial, de nele construir

um lugar inexpugnável” (M inois, 2014, p.3-4), m as, u m a definição norm ativa de ateísm o pode

247M estranda p ela U N E S P /C N P Q


505
ser p roblem ática pois deixa de considerar as diversas m aneiras pelas quais o term o recebeu

significado ao longo do tem po.

N o B rasil, as pesquisas relativas ao ateísm o são bem escassas na historiografia, segundo

Silva (2020), isso se dá por diversos m otivos e é necessário considerarm os a forte tradição

religiosa que a sociedade brasileira carrega, decorrente da colonização portuguesa entre os

séculos X V I e in ício do X IX , trad ição essa que m oldou com portam entos, form as de p ensar e

agir em diversos grupos no país. N esse caso, não é surpreendente que os historiadores tenham

produzido inúm eros estudos da religião e das práticas religiosas na história do B rasil, m as não

olhado de form a m ais precisa para o ateísm o. C om efeito, a significativa lacuna na literatura

sobre o ateísm o no B rasil, reforça a percepção da sociedade brasileira com o em inentem ente

religiosa.

T endo apresentado o tem a da pesquisa, se faz válido destacar que para a realização deste

trab alh o nos estenderem os ao ateísm o de m aneira m ais am pla e não apenas no recorte tem poral

da pesquisa. B uscarem os fo car no personagem principal tendo em vista que seu com portam ento

reflete o que K o selleck diz sobre a relação dos regim es de historicidade às experiências vividas

pelos indivíduos da sociedade. P ara que essas questões fiquem m ais claras, apresentarem os

agora a teoria de koselleck, na qual pretendem os nos pautar.

D e acordo com K oselleck, em “ sedim ents o f tim e” (2018), os historiadores lidam com

o tem po, m ais com um ente, de duas m aneiras: retratan d o -o com o linear ou com o circular. N o

m odelo linear, o tem po é retratado com o u m a flecha direcionada a um futuro aberto, sendo

assim , prevê um a fo rm a irreversível de desdobram ento sequencial. N o m odelo circular, o tem po

é retratado com o recorrente e cíclico, portanto, aborda a recorrência do que é fundam entalm ente

o m esm o. P ara o autor, os dois m odelos são insuficientes, porque de acordo com ele, toda

sequência histórica contém tan to elem entos lineares quanto recorrentes. D este m odo, K oselleck

(2018) propõe contornar a dicotom ia linear-cíclica discutindo a tendência de tem poralidades

m últiplas.

P ara explicar essa teoria, faz o uso do term o “ sedim entos ou cam adas de tem p o ” com o

m etáfora, ao referir-se a form ações geológicas que diferem em idade e profundidade e que

m udaram e se estabeleceram separados uns dos outros em diferentes velocidades ao longo da

cham ada história da Terra. E le transpõe isso a história hum ana, política, social e estrutural, para

separar analiticam ente diferentes níveis em que as pessoas se m ovem e os eventos se

desenrolam . D e acordo com K oselleck (2018), os tem pos históricos consistem em m últiplas

cam adas que se referem um as às outras de fo rm a recíproca, m as sem serem totalm ente

dependentes um as das outras. Segundo ele, essa m etáfora surgiu pela prim eira vez no século

506
X V III, depois que a histó ria natural tradicional e estática (historia naturalis) havia se

tem p o rizad o e, portanto, tam bém historicizado.

P ara K oselleck (2018), n essa teoria de sedim entos do tem po, os regim es de

historicidade, isto é, a experiência de tem po, são variáveis, pois são resultados de experiências

vividas pelos seres vivos, portanto, existem pontos de viradas, singularidades e continuidades

que vão se alterando e alterando suas intensidades. A ntes de apresentarm os os regim es de

historicidade existentes para K o selleck (2018), vam os esclarecer essas relações. Segundo o

autor, podem os considerar as sucessões de eventos singulares com o lineares e localizar todas

as inovações num a linha do tem po, assim , o progresso é concebível e possível porque o tem po,

na m edida em que é u m a sucessão de singularidades, dá origem a inovações. E ntretanto, a

h istória com o um todo se baseia em estruturas de repetição que não se esgotam na singularidade,

até porque a própria recorrência é u m a pré-condição

para a singularidade. D este m odo, não é apenas a singularidade dos eventos súbitos que trazem

consigo m udanças h istóricas: as estruturas m ais duradouras, que inicialm ente parecem m ais

estáticas, perm item e tam bém estão sujeitas a m udanças.

P ara ficar m ais claro, K o selleck (2018) afirm a que a singularidade de um a sequência de

eventos pode ser localizada em piricam ente no ponto em que se experim enta a surpresa. M as,

experim entar um a surpresa significa que algo aconteceu de form a diferente do que se pensava,

portanto, a continuidade entre a experiência anterior e a expectativa de eventos vindouros é

rom pida e precisa se constituir de novo. D esta m aneira, K o selleck (2018) supõe que os

historiadores, em seu m étier, devem questionar não apenas qual foi o caso singular, m as tam bém

com o isso po d eria ter acontecido da m aneira que era esperado, buscando causas nas quais a

prova evidencial esteja em sua repetibilidade, pois a singularidade só pode se to rn ar plausível

po r m eio de causas se essas causas se repetirem .

D estarte, de acordo com K o selleck (2018), a vantagem dessa teo ria das sedim entações

do tem p o está em sua capacidade de m ed ir diferentes velocidades, acelerações ou

desacelerações, e, assim , revelar diferentes m odos de m udança histórica que indicam grande

com plexidade tem poral. Falam os até aqui de eventos singulares e de estruturas de repetição

sem as quais tais eventos singulares não seriam possíveis. E m am bos os casos, essas diferentes

cam adas de tem p o foram conectadas às m aneiras pelas quais os indivíduos ou gerações que

vivem ju n to s com o um grupo acum ulam experiências.

T en d o explicitado as relações de tem po na teo ria de sedim entos do tem po, voltem os à

questão dos regim es de histo ricid ad e propostos por K oselleck. O autor propõe, dentro dessa

ten d ên cia de tem po, três regim es de historicidade possíveis: o regim e pautado no passado, o

regim e pautado no presente e o regim e pautado no futuro. D e acordo com o autor, podem os
507
dividir a h istória em 3 períodos: a h istória m agistra vitae, que durou até o final do século X V III

e teve a experiência de tem po era centrado no passado, com o se o passado ensinasse um a

h istória que ten d ia a ser repetir, sattelzeit, que foi o interregno entre final do X V III e início do

X IX , zona de transição, tin h a deixado a m agistra vitae m as ainda não tinha entrado na nova

fase, com o se os dois se m isturassem num a am bivalência, e neuzeit, que teve início no século

X IX , e é centrado no futuro, ao qual K o selleck (2018) cham a de paradigm a m oderno. D ando

sequência na teo ria de K oselleck, H artog (2013) afirm a que desde 1989, estam os em nova fase,

que é p autada no presente, ou seja, um regim e presentista, a h istória está próxim a dem ais, se

h istoriciza im ediatam ente, há um a atenção aos fatos que estão ocorrendo, e po r isso é

presentista. P ela sua velocidade, torna-se urgente.

P ara entender e estabelecer qual regim e de historicidade se trata cada período, K oselleck

sugere que nos pautem os em duas categorias: o espaço de experiência e o horizonte de

expectativa. K oselleck (2006) afirm a que as categorias “ espaço de experiência” e “ horizonte de

expectativa” são categorias do conhecim ento capazes de fundam entar a possibilidade de um a

história. O u seja, todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas e pelas

expectativas criadas pelas pessoas envolvidas. O autor afirm a que essas categorias são

genéricas, m as enquanto históricas equivalem às de espaço e tem po. T endo isso em vista, a tese

de K o selleck é que as categorias experiência e expectativa são adequadas para nos ocuparm os

com o tem p o histórico, pois entrelaçam passado e futuro. Portanto, tam bém são adequadas

tam bém para a ten tativ a de descoberta do tem po histórico, pois, enriquecidas em seu conteúdo,

elas dirigem as ações concretas no m ovim ento social e político, além disso, fornecem as

determ inações form ais que perm item que o nosso conhecim ento histórico decifre essa

execução. E les rem etem à tem poralidade do hom em , e com isto, de certa form a m eta-

historicam ente, à tem poralidade da história.

V am os esclarecer a definição que K oselleck (2006) dá a essas categorias, para ele,

experiência é o passado atual, aquele no qual acontecim entos foram incorporados e podem ser

lem brados. N a experiência se fundem tan to a elaboração racional quanto as form as

inconscientes de com portam ento, que não estão m ais, ou que não precisam m ais estar presentes

no conhecim ento. A dem ais, K oselleck (2006) afirm a que, n a experiência de cada um ,

tran sm itid a po r gerações e instituições, sem pre está contida e é conservada um a experiência

alheia. N esse sentido, tam bém a história é desde sem pre concebida com o conhecim ento de

experiências alheias. Q uanto à expectativa, algo sem elhante pode ser dito, tam bém está ligada

à pessoa e ao interpessoal, tam bém se realiza no hoje, voltado para o ainda n ão experim entado,

para o que apenas pode ser previsto. K o selleck (2006) cham a atenção ao fato de essas categorias

508
não se tratarem apenas de conceitos opostos. A o contrário disso, indicam m aneiras desiguais

de ser, e ju stam en te da tensão que daí resulta pode ser deduzido algo com o o tem po histórico.

D esta m aneira, não se pode conceber u m a relação estática entre espaço de experiência

e horizonte de expectativa. O autor aponta então que eles constituem um a diferença tem poral

no hoje, na m edida em que entrelaçam passado e futuro de m aneira desigual.

K o selleck (2006) indica u m a m udança h istórica na relação entre experiência e expectativa, de

acordo com ele, na era m o d ern a a diferença entre experiência e expectativa aum enta

progressivam ente, aliás, na sua visão, só se pode conceber a m odernidade com o um tem po novo

a partir do m om ento em que as expectativas passam a distanciar-se cada vez m ais das

experiências feitas até então. A s expectativas que eram ou que podiam ser alim entadas, no

m undo m etade cam ponês, eram inteiram ente sustentadas pelas experiências dos antepassados,

que passavam a ser tam bém as dos descendentes. O autor explica que quando ocorria algum a

m udança, ocorria tão lenta e v agarosam ente que a ruptura entre a experiência adquirida até

então e um a expectativa do que ainda estava po r ser descoberto não culm inava no rom pim ento

dos paradigm as.

P ara K o selleck (2006), essa situação só veio a m odificar-se com a d escoberta de um

novo horizonte de expectativa, o que term inou ganhando a fo rm a do conceito de progresso. D o

ponto de vista da term inologia, as profecias espirituais foram substituídas po r um "progresso"

m undano. O objetivo de um a perfeição possível, que antes só podia ser alcançado no além , foi

posto a serviço de um m elhoram ento da existência terrena, que perm itiu que a doutrina dos

ú ltim o s fins fosse ultrapassada, assum indo-se o risco de um futuro aberto. D esde então to d a a

h istória pôde ser concebida com o um processo de contínuo e crescente aperfeiçoam ento. Os

fins são estabelecidos pelas gerações e as ações que se fazem para chegar nele são justificadas,

isto é, a expectativa de progresso legitim a a ação política. E m linhas gerais K o selleck (2006)

afirm a que a partir de então o horizonte de expectativa passa a in cluir um coeficiente de

m udança que se desenvolve com o tem po.

C ontudo, K o selleck (2006) afirm a que não foi só o horizonte de expectativa que

adquiriu u m a qualidade historicam ente nova e pôde ser utopicam ente ultrapassado, o espaço de

experiência passou po r m odificações cada vez m aiores. O conceito de "progresso" só foi criado

no final do século X V III, quando se procurou reu n ir grande n úm ero de novas experiências dos

três séculos anteriores. O conceito de progresso único e universal nutria-se de m uitas novas

experiências individuais de progressos setoriais, que interferiam com profundidade cada vez

m aio r na vida quotidiana e que antes não existiam . D e acordo com o autor, todas essas

experiências rem etiam à contem poraneidade do não-contem porâneo, ou, inversam ente, ao não-

contem porâneo no contem porâneo.


509
A ssim sendo, K o selleck (2006) dem onstra que o progresso reunia, pois, experiências e

expectativas afetadas por um coeficiente de v ariação tem poral. E le afirm a que um grupo, um

país, um a classe social tin h a consciência de estar à frente dos outros, ou então procuravam

alcançar os outros ou ultrapassá-los. A queles dotados de um a superioridade técnica olhavam de

cim a para baixo o grau de desenvolvim ento dos outros povos, e quem possuísse um nível

superior de civilização ju lg av a-se no direito de dirigir esses povos.

Portanto, o que se deu de novo, concordante com o que escreveu K o selleck (2006), foi que as

expectativas para o futuro se desvincularam de tudo quanto as antigas experiências haviam sido

capazes de oferecer, os lim ites de um e de outro se separaram . D este m odo, K o selleck indica

que afirm ar que n enhum a experiência anterior pode servir de objeção contra a natureza diferente

do futuro torna-se quase um a lei. O futuro será diferente e m elhor que o passado.

A aplicação histórica das duas categorias m eta históricas de K o selleck fornece um a chave para

o reconh ecim ento do tem po histórico, particularm ente o nascim ento daquilo que recebeu o

nom e de m odernidade, com o algo diferente dos tem pos anteriores.

A nossa fonte está localizada nesse período em que o regim e de historicidade era

considerado por K o selleck num a tendência futurista e o personagem principal dos film es que

servem com o fonte para a m inha pesquisa e sua relação com o ateísm o está bastante atrelada a

isso. C om o j á dito, o personagem principal, Z é do C aixão, se pautava em parâm etros eugenistas

para afirm ar e viver seu ateísm o. E le ju stific a sua violência e até m esm o o assassinato de

pessoas religiosas pelo bem de um futuro pautado na ciência e livre de crenças. O paradigm a

que o apóia sustenta a ideia de u m a superação, com o se a religião ocupasse um estágio anterior

ou m enos desenvolvido de pensam ento. P odem os v er isso em algum as cenas do film e, darem os

exem plos nos parágrafos a seguir.

N o prim eiro film e "A m eia noite levarei sua alm a” , quando Z é do C aixão é indagado

po r um am igo sobre o porquê de sua descrença, responde que não pode te r descrença, j á que

nu n ca teve crença e retruca: “ C rer em que? E m um sím bolo? E m um a força inexistente criada

pela ignorância? E u sou um revoltado sim , m as é com tolos com o você, que tem em o que não

veem e tornam -se escravos daquilo que realm ente existe: a vid a” (A m eia noite levarei sua alm a,

1964, 33 m in.). N esta cena, além de negar a experiência p assada pautadas nas religiões, dá a

en tender que é superior aos religiosos po r acreditar na ciência e ainda afirm a que os que não

com partilharem desse progresso que ele com unga, serão dom inados.

N o segundo film e “E sta noite encarnarei no teu cadáver” , Z é do caixão faz outro

discurso que rem onta seu ideal de progresso proposto pelo ateísm o, a consciência de que não

haverá u m a vida pós m orte dá a ele o esclarecim ento de que a im ortalidade está pautada em

critérios científicos, biológicos, que seria na visão dele a continuidade do D N A po r m eio de


510
filhos. E le diz: “ Q ual a razão da existência? O m al? A dor? O prazer? N ão! A penas viver. E o

que existe depois da m orte? N ada! Portanto, a im ortalidade está no sangue. Q uando o hom em

se realiza? O que é essa realização? U m filho, sangue do próprio sangue, o hom em só é im ortal

através do feto. ” (E sta noite encarnarei no teu cadáver, 1967, 19 m in).

E m outra cena, ainda no m esm o film e, Z é do caixão rapta várias m oças para selecionar

qual seria m ais apta a lhe dar um filho perfeito, após subm etê-las a alguns testes e não considerá-

las boas o suficiente p ara gerar o filho do hom em superior, ele as m ata cruelm ente e ao ser

cham ado de sádico po r um a das m oças que ele deixa viva ele retruca num discurso que

dem onstra u m a justificativa para suas ações no presente já que estão sendo feitas visando um

progresso futuro: “ Sadism o não m inha cara, ciência! A m orte delas não é um sacrifício, é apenas

u m a contribuição para u m a raça superior, um a raça im ortal através da doutrinação do instinto”

(E sta noite encarnarei no teu cadáver, 1967, 36 m in.)

T am bém no film e “E sta noite encarnarei no teu cadáver” , existe outra fala bem m arcante

do quanto ele se sente superior e responsável por levar a sociedade ao progresso ateísta. P restes

a m atar um hom em religioso que intencionava im pedi lo de casar com a m ulher selecionada por

ele com o perfeita para dar à luz o seu filho, ele discursa: “N ão, não sou louco, nem tão pouco

perverso, ao contrário, sou a salvação de to d a a hum anidade, quem sabe o único ser que luta

sem exigir nada, pela sobrevivência de um a raça que infelizm ente não despertou, esperam a

ajuda de um deus, e se assim fosse, m eu caro am igo, eu estaria ai e você aqui, então está

provado, não existe um a força ju sticeira invisível, m as algo tem que reger a T erra, u m a força

perfeita: a m ente do hom em perfeito, livre de sentim entos, criado pelo instinto e eu vou

im ortalizá-lo". D este m odo, m ais um a vez Z é do caixão explica suas ações em prol de um futuro

perfeito. C om o já dissem os que afirm a K oselleck, o objetivo de um a perfeição possível, que

antes só podia ser alcançado no além , foi posto a serviço de um m elhoram ento da existência

terren a e isto fica m uito evidente nos atos do personagem em questão.

T en d o em vista tudo o que foi colocado, torna-se claro a relação da fonte com o tem po

h istórico e o regim e de historicidade em que foi produzida. E ntretanto, vam os além . G ostaria

de fazer um paralelo com a relação com o ateísm o no B rasil m ais contem porâneo.

N o contexto atual, existe um cenário em que a laicidade do E stad o é um fato de direito. C larissa

F ranco (2014) defende a existência de um novo ateísm o e elenca 5 fatores que a perm ite alegar

isso, o prim eiro é a característica de m ovim ento social, o segundo é o fato de o E stado secular

dar proteção e força aos ateus, em terceiro, ela aponta a passagem do paradigm a filosófico para

o científico na defesa do ateísm o, com penetração pelo senso com um , o quarto fator é o cenário

de terrorism o religioso, que assustou o m undo com m ais intensidade desde o atentado de

511
setem bro de 2001, e po r últim o, a autora cita com o quinto fator a Internet, que p o ssibilita a

form ação de redes e o espraiam ento das ideias ateístas, focando o público jovem .

A pesar disso, M ontero e D ullo (2014) escrevem que ainda há concepções de que a

posição ateísta perm anece invisível e, m ais do que isso, publicam ente indefensável até o

presente. E ntretanto, a diferença, é que as forças m ovidas para alterar essa situação visam

m udanças no próprio presente, o horizonte de expectativas está m ais próxim o. D arem os com o

exem plo disso u m a cam panha prom ovida por u m a organização de ateus, a A TEA . C om base

em M o n tero e D ullo (2014), a A T E A (A ssociação de A teus e A gnósticos), fundada pelo

engenheiro D aniel Sottom aior, em 2008, tem com o um dos objetivos principais dar m ais

v isibilidade ao ateísm o e to rn á-lo u m a categoria m ais distintiva e m elhor representada no

conjunto dos que declaram não ter religião, pautados na crença de que a afirm ação de si com o

“ ateu” ainda enfrenta forte preconceito por parte da população, sendo um a m inoria que sofre

rejeição por parte da opinião pública.

P ara lid ar com o preconceito, a A ssociação idealizou u m a cam panha que buscava

posicionar-se publicam ente afirm ando que ser ateu faz da pessoa um alvo do preconceito.

M o n tero e D ullo (2014), alegam que a tentativa de p rom over a v eiculação da “bus cam paign”

no B rasil foi a prim eira proposta concreta de dar visibilidade pública à organização. D e acordo

com eles, o presidente da associação, D aniel Sottom aior, a cam panha inglesa o inspirou e o fez

com preender a im portância de realizar algo sim ilar no B rasil para com bater o que ele descreve

com o o “ arraigado preconceito antiateu” . A cam panha consistiu na seleção de quatro im agens

com respectivos slogans que seriam expostas em ônibus e teoricam ente prom overiam um a

reflexão sobre o preconceito para com os ateus.

D e acordo com a A TEA , o objetivo principal da cam panha era lutar por um E stado

v erdadeiram ente laico e pelo reconhecim ento dos descrentes com o cidadãos plenos. A

cam panha não deu certo, m as nossa intenção ao citá-la é m ostrar a pretensão dos ateus de agir

no presente para m u d ar o próprio presente, se enquadrando no regim e de historicidade

presentista a que se refere H artog (2013) e se diferenciando m uito da posição ateísta de zé do

caixão que agia no presente com pretensão de m udanças futuras. C oncluindo, após todo o

conteúdo aprendido na disciplina “ T em po H istórico, M odernism o e M odernidade” , pudem os

v er a m udança da experiência que a sociedade teve p ara com o ateísm o, conseguindo encaixar

o objeto da m inha pesquisa em dois regim es diferentes de historicidade.

512
R e fe rê n c ia s :

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513
HOMERO ENTRE HUMANISTAS:
A PRIMEIRA VERSÃO LATINA DA ILÍADA (1365)

L U ÍS A N D R É N E P O M U C E N O 248

1. H is tó ric o de u m m a n u s c rito

D entre as visitas que B o ccaccio proporcionou a Petrarca, ao longo de u m a am izade de

quase 25 anos, o encontro de 1359, em M ilão, parece ter adquirido um significado definitivo

para os destinos do H um anism o, já que n aquela oportunidade, os dois hom ens de letras de m aior

v u lto da Itália projetavam ju n to s a tradução latina integral dos poem as de H om ero, trabalho

adm irável e am bicioso que ficaria a cargo de L eonzio P ilato, calabrês de origem bizantina, então

pouco conhecido dos dois e com pletam ente inexpressivo no cenário intelectual europeu

(B IL L A N O V IC H , 1947, pp. 57-294; B R A N C A , 1997, p. 109; P E R T U S I, 1997). Q ue o projeto

deve ter estado em pauta no encontro de 1359 depreende-se pela correspondência petrarquiana

p o sterio r a esse período.

O referido encontro de 1359, não bastasse o projeto de trad u ção de H om ero, rendeu

outras discussões fundam entais para o H um anism o nascente: se em 1351, P etrarca havia aberto

as portas de sua biblioteca (em raro m om ento) ao am igo florentino que conhecera recentem ente,

agora em 1359, a conversa solidificou-se em term os de projetos. E m m eio a discussões que

definiram rum os para a R enascença, o nom e de L eonzio P ilato deve te r sido m encionado

diversas vezes, com o ú n ica possibilidade para a execução do projeto de tradução. O plano era

difícil, dependia exclusivam ente da b o a vontade e disposição de L eonzio que, ao que tudo

indica, era sujeito tem peram ental e volúvel.

A prim eira ideia de se te r em m ãos u m a tradução latina com pleta da Ilíada e da Odisseia

teve ter partido inicialm ente de Petrarca, consciente que estava de que H om ero era o pai da

poesia ocidental. U m pequeno libelo que, j á na Idade M éd ia circulava sob o nom e de H om ero,

cham ado Ilias latina - que Sabbadini (1996) atribui a autores inexpressivos - P etrarca ju lg o u -

o u m a falsificação evidente, ou pelo m enos um equívoco de m anuscrito, de autoria incerta, e

que definitivam ente não poderia ser de H om ero, conform e se atesta na Fam. X X IV 12. D iante

disso, e seguindo a orientação de Sabbadini, todas as vezes que se m enciona diretam ente a obra

de H om ero na Idade M édia, deve-se lem brar que a Ilias latina serviu com o m odelo ú n ico para

248 Universidade Federal de Viçosa/ campus Rio Paranaíba. Doutor em Teoria e História pela UNICAMP, com
pós-doutoramento pela mesma instituição.
514
os que acreditavam estar diante dos originais hom éricos traduzidos. Isso quer dizer que, entre a

decadência do Im pério R om ano, quando desapareceram os estudos de grego em R om a, até os

princípio s do H um anism o, H om ero não foi lido diretam ente, exceto em terras bizantinas, senão

po r vias indiretas e sinuosas, em com pilações sobre os m itos de Troia, ou em poem as im itativos

de com pilações antigas, po r vezes com m ínim as relações com a obra do poeta grego. C onform e

esclarece V idal-N aquet (2002, p. 21), “ após a queda do Im pério R om ano, o núm ero de pessoas

que sabiam ler grego se reduziu pouco a pouco até tornar-se ínfim o” . E m vista disso, o vulto de

L eonzio P ilato se to rn a relevante para esse cenário de alvorecer do H um anism o, e P etrarca e

B o ccaccio entenderam que insistir em seu trabalho seria oportunidade única.

M as a “ prim eira ideia” petrarquiana de ter em m ãos a trad u ção latina de H om ero não

lhe surgiu dos debates com B occaccio em 1359, porém po r m eio de interesses antigos, que

rem ontam a pelo m enos 11 anos antes. Sabe-se que o hum anista pedia aos am igos m ais distantes

que, onde quer que fossem , enviassem a ele o m aior núm ero possível de m anuscritos de autores

diversos, o que lhe rendeu a honra de u m a b ib lioteca considerável em seu tem po. A ssim sendo,

P etrarca encontrou-se com N ico la Sigero, em b aix ad o r do alto escalão da corte de B izâncio,

enviado em 1348, pelo im perador João C antacuzeno, a A vignon, para um a m issão diplom ática

ju nto ao papa C lem ente VI, com um a proposta de unificação das Igrejas ro m an a e grega

(W IL K IN S, 1960, p. 51). A Sigero, P etrarca deve te r solicitado m anuscritos gregos, em bora

não soubesse lê-los, ainda que, àquele m om ento, se esforçasse po r aprender a língua de H om ero,

com o m onge B arlaam , com quem vinha tendo lições desde 1341, sem grandes frutos.

E m dezem bro de 1358, em P ádua, P etrarca conheceu L eonzio Pilato, por interm édio de

um ju rista não identificado. T ratava-se de um raro helenista no norte da Itália do séc. X IV que,

com o bem define P ertusi (1979, p. 14), “poteva a q u e ll’epoca leggere e com prendere cosi bene

O m ero e citarlo con tan ta sicurezza, codice greco alla m ano, in u n a discussione g iuridica in

trib u n ale” . O encontro rendeu frutos para o hum anista que j á não acreditava m uito na

possibilidade de acesso à rara docum entação das letras gregas. L eonzio confiou-lhe, com o

presente, um a cópia de sua tradução latina dos cinco prim eiros cantos da Ilíada que, por tem pos,

antes da tradução integral, P etrarca irá cham ar de prima translatio, e que será incorporada com

m odificações substanciais ao volum e total dos outros cantos da Ilíada e da Odisseia. E ra a

prim eira vez que P etrarca lia efetivam ente um tex to hom érico, novidade que seria partilh ad a

com B occaccio, tam bém este ávido po r acesso aos poem as do pai do O cidente.

É j á no referido encontro de 1359, em M ilão, que deve te r ocorrido a P etrarca e a

B o ccaccio o projeto decisivo e am bicioso da trad u ção integral, satisfeito que estava o p rim eiro

com o sabor que a prima translatio lhe antecipara. O s dois parecem te r feito planos estratégicos.

B o ccaccio alim entou a possibilidade de se criar u m a cátedra de língua e cultura grega na recém -
515
fundada U niversidade de Florença, com a in ten ção de levar L eonzio a ocupar o cargo. A s coisas

cam inharam com agilidade: no ano seguinte, 1360, o calabrês j á estava em Florença, com o

hóspede de B occaccio, m inistrando o curso solicitado, num a prim eira tentativa original e

ousada de difusão das letras gregas na E u ro p a do fim da Idade M édia, fato que só terá

repercussões tardias, inicialm ente por causa da indisposição e da conduta tem peram ental de

L eonzio, e em segundo lugar, po r causa de sua m orte em 1365. A convivência com L eonzio

P ilato deve ter sido das m ais difíceis: inexpressivo que era no m eio intelectual da E uropa, o

tra d u to r precisou do apoio dos grandes. N o lhac (1965, p. 20) é levado a crer que tanto P etrarca

quanto B occaccio tiveram seus sacrifícios financeiros para m an ter o tradutor, que foi m al

recebido pela intelectualidade universitária de Florença. B o ccaccio o m anteve em sua própria

casa, e até P etrarca o fará posteriorm ente, em V eneza, para que L eonzio concluísse a obra tão

alm ejada.

L eonzio P ilato deverá te r se dedicado ao trabalho de tradução até po r v o lta de 1362, e

nesse m eio tem po, as relações com P etrarca se tornaram m ais difíceis. A pesar dos conflitos

entre os personagens desse curioso dram a, pode-se p erceb er o andam ento contínuo do trabalho.

A m orte súbita de L eonzio P ilato em 1365 não im pediu que o projeto de tradução latina dos

poem as hom éricos ficasse concluído. A ju lg a r pela cronologia de W ilkins (1960), P etrarca já

tin h a os m anuscritos em m ãos em 1366, p ortanto disponíveis para novas cópias. P ara ele, a

glória de H om ero chegava-lhe às m ãos na altura de u m a velhice am adurecida por leituras

exaustivas de grandes m estres da retórica e da p oesia latina (W IL K IN S, 1958). M as a chegada

de H om ero era fato profundam ente novo. P o r infelicidade, vin h a-lh e tardiam ente, o suficiente

para que a m orte o im pedisse de ler to d a a Odisseia, j á que apenas o m anuscrito da Ilíada foi

lido integralm ente. A pesar disso, o projeto de tradução ainda foi capaz de alterar sensivelm ente

os rum os do pensam ento petrarquiano, e radicalm ente, os destinos da R enascença.

O papel de L eonzio Pilato, construído a m ãos pelos m éritos de P etrarca e B occaccio, é

particularm ente decisivo para determ inar a essência do H um anism o renascentista. Suas lições

de grego na U niversidade de F lorença e a tradução de H om ero foram o princípio - m odesto,

em bora - de u m a difusão m ais intensa dos estudos helenistas no séc. XV. D epois dele, as

atividades do em inente erudito b izantino M anuel C hrysoloras, na F lorença do fim do séc. XIV,

parecem ter tid o m aior im pacto. C om o esclarece K risteller (1999, p. 163), “ A fter 1400, G reek

in struction w as m ore or less continuously available at m any Italian universities, and after the

m iddle o f the fifteenth century, the study o f G reek began to spread to the other W estern

countries” . O s estudos de grego acabaram se ex p andindo pela Itália, seja com a vin d a de

intelectuais bizantinos, com a to m ad a de C onstantinopla pelos turcos, seja com a ida de eruditos

europeus - italianos, sobretudo - às terras bizantinas. K risteller ainda esclarece que se a difusão
516
da cultura grega (língua, literatura, filosofia) não foi m érito exclusivo do H um anism o, pois que

o próprio Im pério B izantino j á tom ara conhecim ento das letras gregas na Idade M édia, foi

apenas com os intelectuais hum anistas que a cultura grega foi trazid a à m odernidade, à luz de

interpretações próprias e po r m eio de estudos clássicos gram aticais, filológicos e m itológicos,

num a espécie de reinvenção do universo clássico grego (K R IST E L L E R , 1961, pp. 17-18).

D epois da iniciativa árdua de P etrarca e B occaccio, na assistência ao trabalho de

L eonzio Pilato, com o p rofessor e tradutor, as portas foram abertas às letras gregas, p elo m enos

na Itália. Só no caso de H om ero, P ertusi (1979, p. 522-529) m enciona nada m enos que 48

traduções da Ilíada e da Odisseia, até o séc. X V III. A lguns dos m ais im portantes eruditos

hum anistas da g eração p ó s-petrarquiana estiveram envolvidos com estudos de grego, alguns

com o tradutores, filólogos ou exegetas: L eonardo B runi, G uarini, Francesco Filelfo, L orenzo

V alla, Poliziano, M arsilio Ficino, P ico della M irandola, dentre outros.

O presente trabalho propõe analisar as anotações m arginais contidas no m anuscrito

latino da Ilíada que pertenceu a Petrarca, tendo-as com o o prim eiro grande docum ento da

H istória m oderna a servir de trabalho exegético e filológico a um texto da literatura grega. É

preciso lem brar que os exercícios de interpretação de P etrarca à Ilíada dependem razoavelm ente

de indicações prévias feitas pelo próprio L eonzio, a que B occaccio teve acesso, seja po r m eio

do m anuscrito original, seja p elo contato direto com o tradutor, inclusive para a com posição de

suas Genealogiae deorum gentilium. C um pre esclarecer ainda que as considerações de Petrarca,

u m a vez dependentes dos estudos prévios de L eonzio, acabam adquirindo as feições das leituras

do tradutor, m uito em bora sua grande riqueza consista ju stam en te no m érito inovador de

P etrarca de com preender o texto clássico e adequá-lo a novas possibilidades de seu tem po.

2. A marginalia p e tr a r q u ia n a n o m a n u s c rito d a Ilíada

O códice 7880.1, que contém a tradução latina integral da Ilíada, é um m anuscrito em

pergam inho com 241 folhas (recto e verso), de 32,5 x 19,5 cm, referente aos anos de 1367-68,

e pertenceu ao acervo pessoal de Petrarca, com pondo tem porariam ente o inv en tário da

B ib lio teca do castelo de P avia (entre 1390-1499), antes de fazer parte do acervo da B iblioteca

N acional de Paris. O m anuscrito contém apostilas abundantes de P etrarca, tan to nas entrelinhas,

quanto nas extrem idades direita e esquerda, o que deve eq u iv aler a m ais de 6700 notas,

deixando patente a acuidade disciplinada com que P etrarca leu o texto, em cada um a de suas

páginas. O códice 7880.1 foi publicado recentem ente, por iniciativa do filólogo T iziano R ossi

(2003), seguindo os critérios do códice original, de tal form a que a tipografia m oderna
517
reconstitua ipsis verbis o texto de L eonzio, bem com o as anotações integrais de P etrarca e os

desenhos e sím bolos utilizados po r ele.

P o r tem pos, a trad u ção de L eonzio foi sem pre tid a com o frágil, sobretudo em seus

aspectos estilísticos. A opção por u m a linguagem linear e literal, certam ente a m enos perigosa

n aquela circunstância ousada, desagradou os retóricos e hum anistas de seu século e do século

posterior, a co m eçar pelo próprio Petrarca, que se viu dividido entre louvor e crítica. Já estava

na própria essência da retórica hum anista do séc. X V a avidez pela reconstrução de um latim

classicizante e retocado pelo gosto requintado da época, e a dureza da transcrição literal de

L eonzio deve te r soado b árb ara aos ouvidos de alguns que lhe sucederam , aptos que estavam a

certo exagero estilístico e a um a proposta quase artificial nas intenções eloquentes.

O m anuscrito da Ilíada adquire um relevo especial, p ara não dizer tam bém único, por

te r sido apostilado po r P etrarca, ao longo de cada um a de suas páginas. L er as anotações

m arginais do m estre hum anista é u m a aventura adm irável, porque ali P etrarca parece revelar

aspectos de sua intim idade, à m edida que vai buscando possibilidades interpretativas ao poem a

de H om ero, na tentativa por vezes um tanto pessoal de adequá-lo a interesses próprios ou a

possíveis lucros conceituais para o H um anism o nascente. Sua marginalia consiste nos m ais

diversos tipos de observação, desde as notas de caráter puram ente linguístico, até as de m aior

fôlego, em que ele oferece interpretações pessoais, inform ações históricas e m itológicas,

passando po r com entários de v alo r estritam ente subjetivo, em que a p oesia de H om ero se

m istura a preocupações m orais e políticas de um a Itália do Trecento. A s observações em geral

são rápidas, po r vezes im precisas.

E ste trabalho procura fazer um levantam ento tem ático das notas petrarquianas e separá-

las conform e essas m esm as tem áticas já previam ente desenvolvidas nas obras do autor. É certo

que essa separação pode p arecer po r vezes insuficiente, dada a com plexidade de algum as

observações m arginais do m anuscrito, que m isturam , po r exem plo, o problem a filológico com

a dim ensão política. O volum e excessivo de apostilas denuncia um a leitura atenta e um olhar

rigoroso e severo sobre o in tento de L eonzio Pilato. Seja pelo acesso inicial entusiástico à prima

translatio, seja porque o cansaço tom ou as forças do apostilador, fato é que, à m edida que se
avança pelo m anuscrito, as notas se tornam m ais curtas, e as pesquisas históricas e m itológicas,

m enos intensas. U m grande volum e de anotações de v alo r político e m oral concentra-se nos

cinco prim eiros cantos, portanto na prima translatio, a que P etrarca tiv era acesso desde 1358,

quando de seu prim eiro encontro com L eonzio, em Pádua, m esm o que a tradução desses cantos

ten h a sido m odificada. O utro volum e significativo de notas se estende até os cantos X V e X V I,

quando os com entários passam a assum ir então um caráter m ais exclusivam ente linguístico.

518
a) N o ta s de n a tu r e z a g ra m a tic a l, filo ló g ica e e stilístic a

P etrarca foi, antes de tudo, um hum anista, o profissional dos studia humanitatis,

defensor da poesia, da retórica e da filologia, em detrim ento dos estudos escolásticos e das artes

m ecânicas, que ele tanto criticou. Seu prim eiro olhar sobre a tradução latina de L eonzio recai

inevitavelm ente sobre o problem a do estilo, ainda que j á estivesse consciente das lim itações do

tradutor. P o r isso, a im ensa m aioria de suas m ais de 6700 notas pontua problem as de gram ática

e estilística da língua latina. E m grande parte delas, preocupa-se com a dim ensão classicizante

do texto, no sentido de evitar term o s popularescos ou próxim os de dialetos e do latim vulgar

m edieval. N a f. 143v, po r exem plo, correspondente ao canto XV, em m om ento em que A polo

faz ru ir o m uro dos aqueus, P etrarca sugere que se substitua o verbo ruinavit po r diruit, na

expressão ruinavitque murum aquivorum, pela inadequada proxim idade do prim eiro verbo com

o latim v ulgar m edieval. N a f. 94r, relativa ao canto X, para outro exem plo, sugere que se

substitua adiungat po r attingat, acrescentando o com entário: etpersepe hoc verbo usus est Leo.

quod est vulgare nostrum.


O s exem plos de correção de estilo são infindáveis, conform e j á se disse. N ão convém

in sistir em m atéria m enos determ inante para os objetivos deste ensaio, que deverá se concentrar

m uito m ais nos aspectos m orais e políticos da marginalia petrarquiana do m anuscrito. Será

tare fa para filólogos rastrear esse im enso universo de com entários de natureza gram atical,

filológica e estilística que, apesar do volum e, parece m enos valioso para se buscar aquela

aspiração política e aquele corpo de ideias do H um anism o nascente.

b ) N o ta s q u e se c a ra c te r iz a m com o e stu d o s

A s lições de língua e cultura grega que L eonzio m inistrou em Florença, ainda que breves

e m al recebidas pela com unidade universitária, parece ter tido repercussões valiosas, pelo

m enos para P etrarca e m ais ainda para B occaccio, os quais estiveram atentos àquilo que o

calabrês tin h a para lhes oferecer. P etrarca m ostra-se curioso e ávido po r conhecim entos novos

que extrapolem os lim ites do m anuscrito, ou seja, que não estejam explicitados no texto de

H om ero. A Ilíada trazia inform ações dem ais, na verdade, um turbilhão de nom es pessoais,

geográficos e m itológicos, que pelo m enos para o séc. X IV , era um universo profundam ente

novo, j á que o conhecim ento de textos gregos, inclusive para in telectu ais de m aior porte, só

pod eria v ir por cam inhos indiretos, po r m eio de citações dos autores latinos.

519
A lgum as notas m arginais de P etrarca no m anuscrito 7880.1 m ostram que o apostilador

tin h a em m ãos (por vezes na m em ória) um corpo de tex to s latinos, que vai da B íb lia aos m estres

da retórica clássica, e que lhe serviu com o suporte para pesquisas diversas sobre cultura grega,

afora as interlocuções viva voce com L eonzio Pilato. C ícero, Isidoro de Sevilha, T ito Lívio,

M acróbio, P línio, Sêneca, Juvenal - autores que com põem a base de sua biblioteca - estão vez

ou outra disponíveis para esclarecim entos sobre nom es próprios m encionados na Ilíada.

U m a nota estam pada na f. 24v, po r exem plo, referente a um a m enção que H om ero faz

aos pigm eus, no canto III, rev ela um P etrarca atento a questões históricas e geográficas, no

sentido de evidenciar a com preensão dos m itos. F undam entou-se em P lín io (História natural)

e Isidoro (Etimologias), p ara esclarecer a origem e a natureza dos pigm eus: pigmei cubitales

sunt. ut fam a est. sive ut dicunt alij pedales. habitare feruntur in superioribus egipti circa
occeanum. A notações razoavelm ente longas, sobretudo contidas nos prim eiros cinco cantos,
igualm ente revelam um apostilador paciente e disposto à pesquisa exaustiva. A p en as no canto

I, po r exem plo, P etrarca pesquisa a identidade do sacerdote Crises, pai de C riseida, a escrava

roubada de A quiles (f. 1r ); o nom e da ilha de Cila, que ele identifica com o espaço do tem plo

de A polo (f. 1v); o nom e de um a estrela ven erad a pelos pro fetas egípcios (em nota im ensa na f.

1v); as artes m édicas e astrológicas de A quiles (f. 1v e f. 7r); os instrum entos utilizados pelos

gregos em sacrifícios de anim ais (f. 7v); além de inúm eras outras pesquisas sobre deuses

m itológicos, sobre fábulas diversas, fundam entadas em seus conhecidos clássicos latinos.

c) N o ta s de v a lo r p esso al

C om o se sabe, P etrarca m anteve um diálogo aberto e constante com os clássicos da

retórica latina, a ponto de escrever-lhes cartas, em que o tom da interlocução jam ais assum ia o

caráter de um a recepção da verdade, o que contrariou essencialm ente a base do pensam ento

escolástico, disposto a atribuir a A ristóteles, po r exem plo, o v alo r de u m a verdade indiscutível.

N u m a de suas m ais polêm icas invectivas, o De sui ipsius et multorum ignorantia, o hum anista

provoca os aristotélicos m ais radicais da E scolástica, em itindo um ju íz o sim ples e inovador

sobre o filósofo grego, ju lg an d o -o um p ensador extraordinário, porém um hom em , portanto

hum ano, capaz de equívocos e distorções lógicas.

E foi assim que P etrarca recebeu os m anuscritos hom éricos, disposto a v er neles um

ponto referencial de interlocução. E m suas anotações ao texto, fez questão de dialogar com o

autor da Ilíada , com o se este fosse um seu contem porâneo, não apenas p o r causa dessa sua

visão ino v ad o ra dos clássicos, m as porque, na verdade, H om ero acabava de sair da form a, era
520
m odelo inteiram ente novo para a Idade M édia. N esse seu diálogo inaugural com H om ero,

P etrarca m istura seus valores pessoais aos do poeta grego, n a ten tativ a de adequá-los a seus

próprios interesses, quase a to rn ar o autor da Ilíada um hum anista estoico do Trecento italiano.

P ara um exem plo m ais sim ples, veja-se u m a anotação excessivam ente pessoal, contida

na f. 43r, no canto V, em que L icaônio n arra a E neias as tentativas frustradas de com bater o

v alente D iom edes que, àquele m om ento, fazia resistência furiosa ao exército troiano. A

sentença final de L icaônio, que L eonzio P ilato traduz por vana enim me sequuntur249, e que

m ostra a triste constatação dos inúteis trabalhos do guerreiro troiano, servem com o pretexto

para que P etrarca pense igualm ente a inutilidade e a vaidade de seus próprios esforços (nesse

caso, intelectuais, é claro), na observação: vanitates mee. vanum studium. vana ars. T rata-se de

raro m om ento em que P etrarca, quase num desabafo, adm ite o despropósito de sua vaidade,

superficialm ente j á confessada em cartas, bem com o a sensação am arga de que a arte e os

estudos não passam de um a vaidade inútil e desnecessária.

O utras anotações ao longo do m anuscrito da Ilíada m ostram um intelectual atorm entado

pelos problem as de seu tem po, a ponto de acreditar que H om ero lhe será um interlocutor

com preensivo, apto a o ferecer soluções. H á ali m om entos em que P e tra rca expõe suas

divergências com o espírito escolástico e com o m étodo dialético, ainda predom inantes nas

com unidades universitárias do séc. X IV , sobretudo na Itália e na França. E m algum as notas do

m anuscrito em análise, P etrarca faz observações de v alo r estritam ente subjetivo, quando lem bra

a prática da velh a disputatio escolástica, em voga nas u n iversidades italianas. N a f. 16v,

referente ao canto II, em que N e sto r e A gam êm non fazem rixas com palavras e divergem sobre

os planos de ataque aos troianos, depois do sonho p seu doprofético do segundo, P etrarca

acrescenta a seguinte nota longa, que reproduzo em parte: quasi dicat non iterum et sepius

teramus tempus in verbis. sed procedamus ad factum. Já na f. 15r, relativa ao m esm o fato,
reproduzia um verso significativo, presente na prima translatio, que L eonzio m odificara na sua

trad u ção nova: vane autem verbis litigamus non autem finem invenirepossumus multo tempore

hic existentes. N a f. 98r, referente ao canto XI, num a forte cena em que H om ero descreve a
deusa D iscórdia, com o a ú n ica que reinava entre os hom ens, num m om ento sangrento de

batalha, P etrarca faz a anotação: quasi dicat non doli. non insidie. non ars ulla. sed lis tantum.

et ira. et discordia et simplex bellum, que poderia assum ir qualquer acepção filosoficam ente
abstrata, caso não conhecéssem os a rixa de P etrarca com as “ disputas e discórdias d ialéticas” .

U m dos m om entos m ais significativos da marginalia do m anuscrito hom érico, no que

diz respeito às notas de v alo r pessoal, é a id entificação que P e tra rca faz entre si e o sofrim ento 249

249 Haroldo de Campos (2001, vol. 1) propõe: “como o vento vão seguiu-me”.
521
de A quiles, no canto I, quando o herói se sente lesado com o roubo de sua escrava e am ante

B riseide por A gam êm non que, por sua vez, fora forçado a entregar C riseida. A quiles, nos versos

149-171, faz o discurso da ju stiça , queixa-se de que os espólios de A gam êm non são sem pre

m aiores e m ais ricos, em bora lute m enos e, po r fim , expõe sua ira (que inicialm ente advém de

u m a injustiça) e anuncia que irá abandonar a guerra. A o final, ressalta que sua grande lu ta acaba

resultando sem pre em prêm ios que lhe vêm pelo esforço e pelos m éritos, m as que lhe são

roubados. O discurso parece te r com ovido o lado estoico e hum anista de P etrarca, que pondera

observações com oventes, denunciando o ato desonesto da rescisão do que antes fora d ecretado:

rescindere que decreta sunt semel. Auferre qua data sunt meritis (f. 2v). P ouco depois, em enda
u m a n o ta ao discurso de A quiles, lam entando o prêm io m edíocre concedido a grandes m éritos:

quasi dicatpro magnis meritis parvum munus. P o r fim , a identificação pessoal, curiosam ente
na prim eira pessoa, reconstrói a ideia do indivíduo que supera o outro em trabalho e que po r ele

é superado em prêm io: ego enim te labore tu me premio superas. A m elancólica identificação

com A quiles, que m uito fez pelos gregos e que por eles foi injustiçado, rem ete a um P etrarca

decepcionado e indisposto com seu próprio tem po, injuriado diante das dificuldades de ser poeta

e filósofo, com o se a ingratidão lhe fosse o prêm io para tantos labores.

d) N o ta s de v a lo r exegético

P etrarca sem pre definiu a p oesia por um a espécie de fábula alegórica, a que o leito r deve

te r acesso, po r m eio de um a habilidade interpretativa, conform e ele m esm o dem onstrou em sua

carta Sen. IV 5, ao poeta F ederigo A retino (PE T R A R C A , 1992, vo1. 1, p. 139-151), que

solicitara do hum anista a interpretação de certas passagens da Eneida, de V irgílio. C onvencido

de que a épica v irgiliana é um com posto de alegorias com intenções m oralizantes, P etrarca

propõe, por exem plo, que na prim eira cena do poem a, os v en to s que assolam as em barcações

de E neias sejam com preendidos com o os im pulsos de desejo e ira, ou com o as em oções que

habitam o coração dos hom ens, perturbando-lhes a serenidade da vida. E m ais: que o que se diz

de V irgílio servirá tam bém para H om ero, porque am bos trilham os m esm os cam inhos de poesia.

P ara um exem plo das interpretações petrarquianas do poem a hom érico, sobretudo num a

visão n aturalista e racionalista, ten dendo à alegorização, ten h a-se em m ente u m a curiosa nota

sua na f. 65v, referente ao canto VII, em que A polo protege H eitor, quando de um ataque de

Á jax. A cena do auxílio divino de A polo é brevíssim a, ocupa espaço reduzido na descrição de

H om ero, m as P etrarca a destaca com o m atéria fecunda de interpretação dos m itos, no caso o

m ito de A polo, com o alegoria do sol. E sclarece o apostilador que, quando se diz que A polo
522
ajudou H eitor, é porque o sol feriu os olhos de Á jax, im pedindo-o ao m esm o tem po de assistir

à queda de seu inim igo: quod hic de Apolline dicitur quidam sic accipiunt ut vergente ad

occasum sole et radij Aiacis oculos ferientibus. casum hectoris non videns. spatim illi dederit
resurgendi. Alij autem Hectorem in ortu solem habuisse. ita dispositum. ut ex vi constellationis
mori tunc non posset. Astrologorum nuge veteres. A anotação é extrem am ente reveladora,
porque, além de expor a visão naturalista e alegórica do m ito, de form a ousada, condena de

passagem as crenças de astrólogos que casualm ente poderiam se pro p o r a análises equivocadas

do trecho hom érico.

e) N o ta s de v a lo r relig io so

P etrarca passou grande parte de sua vida num a tentativa exasperada de conciliar a ética

cristã com os m odelos estéticos da A ntiguidade, e é possível que, j á no séc. XIV, fosse capaz

de in tu ir essa conciliação que v iria na R en ascen ça do século posterior, m uito em bora

considerasse C ristianism o e poesia clássica latina coisas distintas. P elo m enos é o que ele nos

faz crer, por exem plo, em sua tão com entada carta Fam. X X II 10, ao am igo F rancesco N elli,

em que afirm a que, num a certa idade da vida, chegara-lhe o tem po de se dedicar às coisas sérias

e à salvação, m ais do que à eloquência; e que, então, nesse tem po, seus oradores to rn aram -se

A m brósio e A gostinho, Jerônim o e G regório, seu filósofo tornou-se Paulo, e seu poeta, D avi.

D e qualquer form a, ainda que a Fam. X X II 10 seja em parte ficção e retórica, P etrarca

deu m ostras de um dram a pessoal, em exercícios de conciliação da ética cristã com a estética

clássica, atribuindo à segunda um caráter alegórico e m oralizante, no sentido de to rn á -la m ais

próxim a da prim eira. S u a recepção de H om ero p artiu igualm ente de um exercício com o esse, e

não raro, é possível encontrar em suas apostilas um a tentativa de “ cristianização” do autor da

Ilíada, conferindo a certas passagens do p o em a um significado plenam ente cristão, em m eio


àquela avalanche de deuses vaidosos, egoístas e enraivecidos - o que não é tarefa das m ais

fáceis. M as tam bém não era tarefa nova: Sêneca, V irgílio e m esm o C ícero já haviam sido

trazidos a esse exercício de cristianização por parte de autores m edievais e hum anistas, P etrarca

entre eles.

O caráter terrivelm ente hum ano, po r vezes lascivo, dos deuses gregos p arece ter

incom odado os autores cristãos que tentaram adequá-los a um a m oral específica. P ara apenas

um exem plo, na divertida cena do canto X IV da Ilíada, em que Z eus é seduzido po r sua m ulher

H era, que pretende adorm ecê-lo, para assum ir ela m esm a o controle da guerra de Troia,

Petrarca, em nota m arginal contida na f. 135r do m anuscrito, reprova a lascívia e a libidinagem


523
de Z eus (Jove, ou Júpiter, para os latinos), ju lg an d o -o o belo deus dos insanos: libidines Iovis

multe. pulcer deus insanorum. N um verso do in ício do canto IV, em que se m enciona a beleza
de P alas A tena, o apostilador volta a m en cio n ar os perigos da sedução e do belo erotizado,

lem brando e condenando o artifício encantador e atraente das esculturas de deusas gregas:

ydolum artificiose sculptum letitiamque oculis afferens. ideo dicitur pallas Agalcomenis. idest
pulcra et ornata. et letitiam prebens (f. 31v). M as o próprio Zeus, que fo ra censurado no canto
X IV , pela lascívia, servirá com o m etáfora da grandeza do D eus cristão, num a nota que P etrarca

faz a um discurso de N estor, sobre a p o tência de Z eus que em m uito excede a vontade dos

hom ens. À fala do ancião grego, o ap ostilador em enda um a convicção subjetivam ente cristã:

non resistat homo mortalis deo. quia multo potentior deus est homine (f. 71 r). E feito igual irá
se rep etir num a outra nota da f. 76r, referente a um discurso do m esm o Z eus que, diante da

cólera de sua m u lh er H era, antecipa o inevitável destino dos hom ens po r ele traçado (Ilíada,

VIII, 470-484). O poder da palavra de Zeus, que fala um a vez só e que traça com consciência

divina os rum os da vid a hum ana, ofereceu a P etrarca um pretexto de m atéria religiosa que, em

nota m arginal, distanciou-se de H om ero, para lem brar o “peso grave e im utável” das palavras

santas de nosso D eus cristão: semel locutos [sic] est deus. Grave et immutabile sanctispondus

adest verbis et vocem fata sequuntur.

f) N o ta s de v a lo r po lítico

A s notas m arginais de caráter político que P etrarca inseriu em seu m anuscrito da Ilíada

devem ser entendidas em função de suas próprias concepções adotadas nos anos anteriores,

vividos em M ilão, sobretudo quando de sua convivência com os V isconti, u m a das fam ílias de

m aio r poder político e b élico da Itália do séc. XIV. O hum anista esteve em M ilão entre 1353­

61 e b o a parte de suas considerações contidas em cartas sobre a consolidação do estado, sobre

a u n ificação da Itália e sobre a centralização do p o d er - ideias que desencadearam o

A bsolutism o na R enascença - veio-lhe de sua experiência com os anos passados em M ilão. D e

suas anotações feitas no códice 7880.1, é possível p erceb er que P etrarca esteve atento à

dim ensão política do poem a, intuindo por vezes que a organização da pólis grega tin h a algo

im portante a dizer à Itália daquele m om ento.

V idal-N aquet (2002, p. 66-68) observa que a Ilíada não pode ser concebida sem um a

noção de organização social, política e dem ocrática da G récia de seu tem po, enfim , sem um a

noção de pólis , j á que H om ero, em bora esteja relatando fatos lendários m uito anteriores a seu

tem po, constrói um m odelo concebível para a sua p rópria época, quando, desaparecida a
524
m on arq u ia das cidades gregas, j á se fundavam os conceitos de dem o cracia250. A construção de

um ideal político atribuído aos gregos, na Ilíada, é m ais com plexa do que parece, porque

curiosam ente os troianos, p elo m enos na n arrativa hom érica, têm m aior unidade po lítica e

m oral, inclusive traçad a e bem definida por um valor pátrio, nacionalista e fam iliar, e po r um a

concepção de bem social. E ntre os gregos, a discórdia é m ais visível, chega a lev á-lo s quase a

u m a guerra civil, sobretudo a partir do desentendim ento entre A quiles e A gam êm non, o que

tem levado leitores a acreditar que H om ero estaria secretam ente do lado dos troianos. A

organização destes, afora um a ou outra discussão entre H eitor e Páris, leva-nos a u m a sensação

de equilíbrio e ordem social, e à m edida que se avança na história, p erceb e-se um a natureza

com ovente dos troianos, dispostos à proteção das fam ílias e dos bens públicos.

N o entanto, os gregos estão im buídos de um v alo r político a que poucos têm dado

atenção, e que deve ter estado sob os olhos de P etrarca: o debate público e a arquitetura de

planos fundam entados em discussões dem ocráticas. O s gregos da Ilíada podem eventualm ente

passar a im agem da discórdia e da guerra civil, m as é a p artir desse am ontoado de

desentendim entos que H om ero constrói um a concepção extraordinária de ordem e eficácia

m ilitar.

P etrarca elabora com entários bastante valiosos no âm bito da discussão p ú b lica entre os

gregos. N um diálogo entre A gam êm non e o D iom edes (canto IX), ju sta m e n te diante de um

conselho reunido, em que o prim eiro propõe a retirada do exército e o segundo discorda

radicalm ente, apesar de o outro ser o rei, a proposição de vozes m ú ltip las no âm bito da

argum entação pú b lica cham a a atenção de Petrarca, que lem bra que o bem se com preende

m elh o r na guerra, porque é ju sta m e n te na guerra que as vozes se confundem : bello bonus

intelligitur. quia in bello multe funduntur voces (f. 78r). M as a ousadia atribuída a D iom edes,
que se vê no direito de contestar o próprio rei, porque a dem ocracia lhe concede o m érito e a

sensatez do conselho o determ ina, tam bém despertou a atenção de P etrarca que, em no ta na

m esm a folha do m anuscrito, postula que, em assem bleias públicas, e apenas ali, é lícito dizer o

que se pensa, ainda que seja contra o rei, po r um direito de liberdade: rationabile est ut in

contione ubi de publico statu agitur quisque dicat libere quod sentit. etiam contra regem. quod
alibi non diceret. A liberdade de expressão e o direito de intervenções políticas estiveram entre
as grandes conquistas de P etrarca, que concedeu a si o m érito de dar conselhos a im peradores
e papas251.

250 Vidal-Naquet (2002) data os textos homéricos dos sécs. 9 e 8 AC., e a fixação desses textos, do séc. VI AC.
251 Lembrem-se, por exemplo, as 13 cartas familiares em que exorta o imperador Carlos IV a assumir o governo
de Roma; e a carta Sen. VII 1, ao papa Urbano V, em que o incita a trazer a sede da Igreja para Roma, e abandonar
Avignon.
525
E x em p lo do senso dem ocrático de P etrarca é um a defesa da liberdade co n tid a na

Invectiva contra quendam magni status hominem sed nullius scientie aut virtutis, contra um
certo Jean de C aram an, em que o hum anista, defendendo-se das acusações de viver sob a égide

da tirania dos V isconti em M ilão, propõe a vida m antida em d esprendim ento com o poder

público. D iz ele que está com os V isconti, m as não m ora com eles, habita o território deles, m as

não em suas casas, sugerindo que se dá o direito, a qualquer m om ento, de discordar da política

e das decisões públicas de seus protetores.

g) N o ta s de v a lo r m o ra l

E m geral, P etrarca absorve os versos da Ilíada com o form a de b u scar ali alguns valores

que lhe são caros, com o o elogio da honra e da virtude, o controle das paixões, o respeito a um a

ordem social hierárquica, o espírito nacionalista, a condenação dos vícios e a apologia de certos

valores estoicos, com o a paciência, a resignação, a tranquilidade da alm a ou a grandiosidade da

sabedoria. É difícil ler as narrativas do O lim po e da guerra de T roia sob esse enfoque. D e

qualquer form a, o exercício de leitura que faz P etrarca parte de considerações assim , com o não

pod eria deixar de ser. P ara um exem plo, veja-se um a nota contida na f. 87r, em que o apostilador

condena a falta de m aleabilidade do espírito de A quiles, to m ad o pela ira e p e la pouca disposição

para a revisão de seus erros. N o trecho, a em baixada que A gam êm non enviara a A quiles para

convencê-lo a v o ltar à guerra desiste de seu intento, dado o rancor incisivo do grande herói, e

Á jax lam enta o fato, dizendo que o triste A quiles escondeu no peito o espírito agreste e

m agnânim o252. P etrarca, vez ou outra, reprova a ira e a m ágoa de A quiles e, diante da

consideração de Á jax, com pleta que triste é aquele que age contra sua própria honra, m esm o

que seja rei: Miser est quisquis contra suum decus facit. etsi rex sit. M as po r honra, P etrarca

entende o conceito latino de virtus. A quiles não age contra sua própria honra, m as torna-se

miser pelas atitudes incom patíveis (aos olhos do estoicism o) com a tranquilidade da alm a. O
etsi rex sit do com entário de P etrarca revela ainda sua intenção de atribuir à honra e à virtude
valores m ais definitivos que a p rópria nobreza, seguindo u m a convicção senequiana sua, porém

inadequada ao m undo de H om ero.

O utras notas de v alo r estoico se espalham pelo texto, atribuindo a passagens do poem a

h om érico conteúdos que transcendem as suas intenções. N a ú ltim a cena do canto I, em que

H efesto consola a m ãe H era que se sente u ltrajad a pelos desm andos do m arido Zeus, e lhe pede

252 Leonzio Pilato traduz o verso por sed Achilles agrestem in pectoribus posuit magnanimum animum/ miser (f.
87r). A tradução de Haroldo de Campos (p. 365) diz: “Aquiles, no peito/ asselvajou seu coração de grande ânimo”.
526
paciência para suportar o fato, P etrarca extrai desse conselho o m áxim o v alo r da paciência (tão

recom endada pelos estoicos em suas consolatórias, e a que o próprio P etrarca se dedicara,

especialm ente no livro II das Familiares), e p o stula a sentença: patientiam suadet. ubi

remedium aliudnon est (f. 9v). N um discurso do canto V, em que L icaônio confessa que, num a
estratégia de guerra, não deu ouvidos ao pai, ainda que a inform ação seja brevíssim a, o

ap ostilador não perdoa a desobediência: multo esset utiliuspatri auscultare. A condenação dos

prazeres vãos, tem a de que P etrarca se ocupara em inúm eras cartas, aparece aqui em suas

anotações, num a curiosa cena em que A frodite vocifera contra H elena, que considerou

v ergonhosa a decisão da deusa de salvar P áris no fatídico confronto contra M enelau. A frodite

(ou V ênus, p ara os latinos) am eaça abandonar a bela e v o luptuosa H elena, prom etendo-lhe o

ódio em vez do am or. D ecifrando a m atéria m ítica com seu m étodo naturalista, P etrarca

acrescenta, em nota na f. 30v, que para quem viveu nos prazeres, durante a ju v en tu d e, ser

abandonado po r V ênus na velhice é a m orte: his qui vitam omnem veneri ac libidinis dedicarunt

nichil gravius quam ab his relinqui quod maxime accidit senectude. et ideo senectus est mala
mors talium.
O utras notas que condenam vícios, a p artir do olhar estoico, surgem ao longo do poem a

hom érico. N o canto V, fala-se que D iom edes abateu inúm eros troianos, e que seus bens tocaram

a parentes de rem otos vínculos. E m nota m arginal, na f. 4 2 r, lê-se u m a reprovação daqueles

que herdam grandes feitos sem m erecer: Nota hic. quia sic vadunt sepe hereditates mortalium.

lippos oculos in longinqua tendentium. N o fam oso episódio do canto II, em que O disseu
repreende Tersites, acusando-lhe de um desejo gratuito de difam ar os grandes, Petrarca,

certam ente pensando no episódio recente de sua p rópria difam ação pública por parte de quatro

estudantes averroístas em V eneza, que teria resultado na com posição do De ignorantia,

acrescenta a nota, na f. 14v: pro delectatione sola obtrectandique libidine absque alia ratione

maledictis assuetus.

3. C o n s id e ra ç õ e s fin ais

A notas m arginais petrarquianas contidas no m anuscrito da Ilíada, apesar de seu caráter

fragm entário e inconcluso, form am po r si só quase um livro à parte, em que se pode rastrear

um conteúdo im enso de ideais hum anistas que, àquele m om ento, reascendiam as concepções

retóricas e m orais outrora vividas pelo classicism o latino. P o r causa do grande volum e de notas

à disposição, j á que o m anuscrito 7880.1 foi abundantem ente apostilado po r aquele a quem

pertenceu, este trabalho revela conceitos do universo petrarquiano, a partir dos com entários que
527
parecem m ais significativos. É preciso salientar que, por m ais que as apostilas tenham sido

escolhidas segundo critérios m etodológicos, é possível que a seleção ten h a caído em opções

pessoais, o que revela que outras notas não m encionadas aqui podem apresentar significados

tão valiosos e atraentes quanto as que foram citadas.

O códice 7880.1 não é u m a estrela ú n ica que b rilh a no acervo pessoal de P etrarca. H á

u m a diversidade extraordinária de m anuscritos apostilados que escondem revelações íntim as,

pesquisas disciplinadas, leituras atentas, opções estilísticas e trabalhos filológicos. M as não será

tare fa para um único pesquisador. A considerar os lim ites deste trabalho, cum pre esclarecer que

a intenção aqui não é a da filologia (trabalho a que Pertusi já se dedicou), m as tão som ente o

objetivo da leitura histórica e filosófica de notas fragm entárias e im precisas que, no entanto,

podem ajudar a esclarecer esse vasto m undo literário de Petrarca.

R e fe rê n c ia s

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528
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A cadem y o f A m erica, 1958.

529
O CINEMA EM SALA DE AULA E A HISTÓRIA: O CASO DO FILME
APOCALYPTO E OS POVOS AMERÍNDIOS ANTES DA CHEGADA
DOS EUROPEUS

L U IZ E D U A R D O P IN T O B A R R O S * 253

R E S U M O : O presente trab alh o é resultado da utilização do cinem a em sala de aula em escolas


públicas a fim de intensificar o processo de ensino aprendizagem na disciplina de H istória. A
experiência foi realizada com turm as dos 7° anos da rede estadual de e ducação do E spírito Santo
e com discentes dos 2° anos do Instituto Federal de E ducação do Sul de M inas Gerais. T rata-se
do film e "A pocalypto" de 2006 dirigido po r M el G ibson que aborda os últim os anos da
civilização m aia antes da chegada dos europeus no continente am ericano. A produção recebeu
três indicações ao Ó scar e teve b o a recepção da crítica. E m sala de aula, a experiência nos
diferentes espaços escolares foi bem -su ced id a pelo despertar do interesse dos discentes que
realizaram diversos trabalhos avaliativos a respeito da tem ática do film e associada aos p o v o s
am eríndios. C onclui-se que a u tilização de film es tem áticos com o este são relevantes para a
com preensão discente sobre tem áticas que m erecem ser m ais exploradas na disciplina de
H istória.

A p o ssib ilid a d e d a u tiliz a ç ã o do c in e m a em s a la de a u la

N os tem pos atuais um dos grandes desafios para p rofessores de H istória e das C iências

H um anas no geral em turm as do E nsino B ásico (F undam ental e M édio), incluindo a E ducação

de Jovens e A dultos, é trazer para a sala de aula tem as que envolvam o cotidiano de seus alunos.

Segundo L eandro K arnal “ quanto m ais o aluno sentir a história com o algo próxim o dele, m ais

terá vontade de interagir com ela, não com o u m a coisa externa, distante, m as com o um a prática

que ele se sentirá qualificado e inclinado a exercer” (K A R N A L , 2008, p. 28). O exem plo da

disciplina de H istória neste parágrafo parte da experiência do autor do presente artigo, m as

serve com o ponto de p artida para as dem ais disciplinas das C iências H um anas.

N este cenário, trab alh ar com tem áticas envolvendo as relaçõ es sociais de form a geral

no cotidiano são relevantes p ara alcançar o interesse dos alunos. Isto pode ser percebido no

apontam ento de Y ves de la T aille ao m encionar que no espaço escolar atual com pete

Fazer lembrar em alto e bom tom, a seus alunos e à sociedade como um todo, que sua
finalidade principal é a preparação para o exercício da cidadania. E, para ser cidadão,
são necessários sólidos conhecimentos, memória, respeito pelo espaço público, um
conjunto mínimo de normas de relações interpessoais, e diálogo franco entre olhares
éticos. (TAILLE, 2003)

253 UNESP/ DOUTORADO.


530
E u m a das m aneiras de p roporcionar reflexões a respeito é u tilizar o cinem a com o

in strum ento em sala de aula, pois os film es perm item ao indivíduo te r a sua p ercepção do

m undo. P ara G ualtarri, os sujeitos não são apenas afetados apenas pelos personagens e pela

h istória do film e, m as que há inúm eras outras intensidades que têm essa capacidade de afetar,

de produzir com ponentes subjetivos a serem incorporados na constituição psíquica do sujeito.

S endo assim , os códigos se em baraçam sem que nenhum jam a is consiga ser sobreposto em

relação aos dem ais, “ sem constituir ‘su b stân cia’ significante; passa-se, num vaivém contínuo,

de códigos perceptivos a códigos denotativos, m usicais, conotativos, retóricos, tecn o ló g ico s

econôm icos, sociológicos etc.” (G uattari, 1980, p. 113).

A o levar em consideração a potência m últipla que o cinem a tem ao agenciar m atérias-

prim as para o processo de subjetivação, não é fácil considerar o sujeito individual com o não

divisível. A subjetividade em tal situação não é passível de totalização, pois com partilha várias

intensidades e se produz em m eio aos m ais variados encontros sociais. E m função disso,

G uattari e R oln ik consideram que “ o indivíduo (...) está na encruzilhada de m últiplos

com ponentes de subjetividade” (G U A T T A R I & R O L N IK , 2005, p. 34).

P ara B aduy, C arvalho e Passini “ ainda que exista a pretensão de definir o sujeito a partir

de u m a individualidade, as variações do hum ano são possíveis dentro de um a m ultiplicidade

que o h abita em função de sua constituição no coletivo” (2015, p.394). N o fragm ento que segue,

G uattari e R olnik expõem essa concepção de u m a subjetivação produzida em âm bito social e

na qual a subjetividade é inerente:

Sempre há a pretensão do ego se afirmar numa continuidade e num poder. Mas a


produção da fala, das imagens, da sensibilidade, a produção do desejo não se cola
absolutamente a essa representação do indivíduo. Essa produção é adjacente a uma
multiplicidade de agenciamentos sociais, a uma multiplicidade de processos de
produção maquínica, a mutações de universos de valor e de universos de história
(GUATARRI & ROLNIK, 2005, p. 32).

D ian te das possibilidades que o cinem a propõe para interpretar as diferentes ações e

reações dos sujeitos, u tilizar film es em sala de aula com o um dos m eios de p rovocar reflexões

em b u sca de cam inhos para a cidadania é algo m ais do que relevante, sobretudo, no presente.

S endo assim , nos próxim os parágrafos apresentam os um m étodo, experim entado em sala de

aula com alunos do E nsino M édio regular e na E d ucação de Jovens e A dultos, palpável de ser

trab alh ad o utilizando dois film es sul-am ericanos com enredos que possibilitam várias reflexões

no âm bito histórico, social e psicológico e que, ao m esm o tem po, cham am a atenção para o

público b rasileiro (e o restante da A m érica L atina) pelo fato de existirem películas de grande

531
relevância produzidas em seu próprio país e nos países vizinhos, dem onstrando a possibilidade

de, pelo m enos de vez em quando, assistir algo diferente do consagrado e b ilionário cinem a

hollywoodiano .

M e to d o lo g ia de tr a b a lh o co m film es em s a la de a u la

U m dos autores b rasileiros na área das C iências H um anas que dedica seus trabalhos

sobre a u tilização de film es em sala de aula é o h istoriador M arcos N apolitano. P ara ele “ o

cinem a é o cam po no qual a estética, o lazer, a ideologia e os valores sociais m ais am plos são

sintetizados num a m esm a obra de arte. A ssim , dos m ais com erciais e descom prom etidos aos

m ais sofisticados e “ difíceis” , os film es tem sem pre u m a possibilidade para o trabalho na

escola” (N A P O L IT A N O , 2009, p. 15).

P ara o docente que pretende trabalhar com determ inado film e em sala de aula, seria

interessante que ele assista a m esm a película pelo m enos três vezes para ficar atento ao co n teúdo

e os detalhes que a produção pode oferecer p ara discussão. A o m esm o tem p o é im portante ficar

atento aos m ateriais para transm issão do film e na escola, com o datashow , televisão, caixas-de-

som , projetores e outros. É relevante que o dia da apresentação seja pré-definido no

planejam ento de aula para facilitar a realização das atividades (N A P O L IT A N O , 2009). C aso

não seja possível que os alunos assistam o film e inteiro no m esm o dia, o m esm o pode ser

term inado nas aulas seguintes. Isso não significa que a p elícu la possa ser utilizada, por exem plo,

nos cinquenta m inutos de aula. M as sim, em vinte ou trinta m inutos. D eixando o tem po restante

para preparação do equipam ento e conversa com os alunos sobre o conteúdo do film e que foi

assistido anteriorm ente.

N este artigo, a proposta é trab alh ar com um film e j á observado em sala de aula e que

proporcionou experiências produtivas. O tem a central é as relações hum anas em sociedade

diante de situações que desafiam a racionalidade e o com portam ento para o bom andam ento

das relações sociais. Segundo M au riceia G uzzo,

Quando convivemos em sociedade, em determinado momento, os objetivos


individuais serão conflitantes e, consequentemente, essa divergência fará com que
cada pessoa assuma uma postura pessoal e que acredite ser a mais adequada para o
alcance do seu objetivo. Assim, torna-se necessário decidir entre o que é certo e
errado, bom ou ruim, e aquilo que deverá prevalecer: o individual ou o coletivo?
(GUZZO, 20n,p.20).

Sendo assim , dialogar com os conceitos de “ certo ” e “errado” nas relações hum anas

perm item abordar a tem ática sobre a “É tica” e relacioná-la a ordem social que é form ada pelos
532
princípio s básicos de solidariedade, subsidiariedade e participação. E stes possibilitam a

realização plena do indivíduo no seu convívio em sociedade (SE R T E K , 2002).

A ntes da apresentação dos film es, o docente pode tratar de cada um dos princípios

m encionados por Sertek. A solidariedade que busca o bem com um da sociedade. A

subsidiariedade que estim ula cada indivíduo aplique os m eios possíveis a fim de contribuir para

a edificação da sociedade em que vive. E finalm ente a participação que perm ite a liberdade dos

indivíduos realizarem associações honradas e enriquecendo o bem com um (SER T EK , 2002).

A etapa seguinte seria u tilizar alguns casos p ráticos em que estes três princípios são

necessários, tendo com o exem plo: a lim peza das cidades; a p reservação do m eio am biente; o

respeito as pessoas m ais necessitadas a determ inados tipos de atendim ento (portadores de

n ecessidades especiais, idosos, m ulheres grávidas e outros casos); a im p o rtân cia da arrecadação

de im postos pelo E stado para atender as dem andas sociais e econôm icas do país; a harm onia

nas relações de trabalho e outros casos. A p artir destes exem plos, o docente pode provocar os

alunos a responderem em quais situações tais princípios não ocorrem e quais são as

consequências para o indivíduo em sociedade. Isto p ossibilitará as m ais diferentes respostas que

devem ser colocadas na lousa. A p artir delas, o docente deverá fo car naquelas que ele identificar

estarem presentes nos dois film es. O u seja, o que os conteúdos das películas apresentam com o

consequências da falta de solidariedade, subsidiariedade e participação entre os indivíduos na

dinâm ica social. F eito isto, os alunos serão aconselhados a anotarem em seus cadernos,

enquanto estão assistindo as produções, as cenas que identificam com o “ falhas de

com portam ento hum ano” . É um a m aneira de p o ssibilitar um debate produtivo quando o film e

term inarem de serem exibidos para os alunos. E, depois de um prazo para entrega, elaborar um

relatório sobre a tem ática trabalhada e com o foi observada ao assistirem os dois film es. É um a

m aneira de estim ular a prática da escrita discente. N os prim eiros parágrafos os alunos deverão

escrever a respeito da relevância da solidariedade, da subsidiariedade e da participação dos

indivíduos no m eio social. E m seguida identificar no film e a presença e a ausência destes

elem entos e finalm ente apresentarem um a conclusão individual pensando no b em -estar dos

indivíduos.

N o s parágrafos seguintes serão apresentados o contexto histórico dos M aias e os

principais elem entos do film e Apocalypto.

533
O s M a ia s

O continente am ericano ficou conhecido na E uropa com o N ovo M undo, depois da

chegada de C ristóvão C olom bo. O s europeus não tinham conhecim ento sobre estes povos e

gradualm ente iriam iniciar um processo de colonização que perduraria po r séculos.

P esquisas arqueológicas apontam que por v o lta de 4.500 a.C ás práticas agrícolas já

estavam sendo consolidadas na A m érica. O cultivo de m ilho, pim então, abóbora, tom ate e feijão

era predom inante. T am bém foi nessa época que os grupos nôm ades se sedentarizaram e

form aram os prim eiros assentam entos do continente. C om o passar do tem po o crescim ento

populacional exigiu m aio r capacidade de organização que possibilitou u m a hierarquização da

sociedade chefiada por apenas um líder. A os poucos, diferentes civilizações foram consolidando

sua estrutura no espaço geográfico am ericano.

P esquisas apontam que os olm ecas deram origem as civilizações m esoam ericanas entre

1500 e 400 a.C. M as pouco se sabe sobre seus aspectos étnicos. A partir dos olm ecas surgiu a

civilização m aia que, p o r v o lta de 1800 a.C, iniciaram um processo de ocupação de quase 500

m il quilôm etros quadrados na península de Y acután, no sul do M éxico atual, e em áreas onde

hoje são H onduras, G uatem ala, B elize, El Salvador e B elize.

A civilização m aia não chegou a te r um a capital que sim bolizava a centralização política.

N o entanto, foi com posta por várias cidades-estados. D o ponto de vista social, no topo da

pirâm ide ficavam o chefe de E stado e seus fam iliares. E le acum ulava as funções de líder m ilitar,

civil e religioso. A baixo vinha a no b reza que ocupava os principais cargos adm inistrativos,

m ilitares e religiosos. E m seguida vinham os com erciantes que tinham im portantes funções.

A baixo estavam guerreiros, artistas e artesãos. E na cam ada inferior os cam poneses e a população

pobre. N a base da p irâm ide social estavam os escravos que, em geral, eram prisioneiros de guerra.

A religião dos m aias era politeísta e diversos sacrifícios hum anos eram feitos aos deuses.

Inúm eros tem p lo s e santuários foram construídos para hom enagear as divindades. C haac, deus

da Chuva, Itzam N a, deus do céu e da terra, e Ixchel, deus da Lua, eram aqueles que sobressaiam .

A s atividades com erciais eram consideravelm ente intensas. P o r m eio da utilização de

sem entes de cacau com o m oeda, os m aias com ercializavam com outros produtos com o peles,

baunilha, tecidos, sal, etc.

O utro aspecto da civilização m aia foi à dedicação à astronom ia que m edia com precisão

o ciclo do Sol, da L ua e de V ênus. Isto tam bém resultou na criação de dois calendários: um civil,

de 365 dias; e um ritual, de 260 dias. E les tam bém criaram um sistem a num érico que incluía o

zero. O utra criação foi o sistem a de escrita de caracteres hieróglifos.

534
N o cam po da arte os m aias faziam trabalhos com cerâm ica, esculturas de barro e pinturas

m urais que retratavam diversos aspectos do cotidiano.

N o período de m aior esplendor da civilização m aia, entre 250 e 900 d.C, grandes avanços

científicos, tecnológicos, sociais e artísticos ocorreram . M uitas cidades cresceram e acredita-se

que chegaram a abrigar cerca de 60 m il pessoas. O s principais centros urbanos conhecidos são

E tzn á e U xm al. N o prim eiro foi construído um sistem a de canais para captação da água pluvial.

Já o segundo teve seu espaço preenchido com a construção de um grande conjunto cerim onial.

A m bos estão localizados no M éxico.

Q uando os espanhóis chegaram na A m érica no final do século X V a civilização m aia já

não existia m ais. P ouco se sabe sobre as razões pelos quais entrou em declínio. P o r v o lta de 900,

a p enínsula de Y acatán sofreu invasões de outros povos p rom ovendo inúm eras transform ações

na região.

A p o c a ly p to

N o final de 2006 foi lançado o film e A pocalypto, dirigido e roteirizado po r M el Gibson.

E ste ficou consagrado no cinem a m undial com o ator por p rotagonizar film es de grande sucesso

com o a trilogia M ad M ax, a quadrilogia M áquina M ortífera, e outros film es com o: Sinais (2002);

O Troco (1999); Do que as Mulheres Gostam (2000) e Coração Valente (1995). E ste últim o
inclusive dirigido por ele e v en ced o r do Ó scar de M elh o r F ilm e e M elh o r D ireção em 1996. M el

G ibson ganhou notoriedade, tam bém , po r dirigir outros film es de grande sucesso com ercial e de

crítica com o Até o Último Homem (2016), o anteriorm ente m encionado Coração Valente (1995)

e A Paixão de Cristo (2004).

O film e A pocalypto recebeu críticas positivas na época de seu lançam ento por críticos de

cinem a e teve grande aceitação do público. A rrecadou nas bilheterias internacionais um pouco

m ais de 120 m ilhões de dólares. C onseguiu um lucro de 80 m ilhões de dólares. M as apesar do

grande sucesso, houve quem acusasse o film e de racism o, entendendo que a cultura m aia é

representada de form a “inferior” e que não ocorreu precisão histórica. Isto porque, alguns

pesquisadores especialistas em povos m aias apontam que a prática do sacrifício era rara nesta

civilização. A ntropólogos que opinaram sobre o film e apontam que os sacrifícios eram m ais

com uns entre os povos A stecas. O pro fesso r de antropologia K arl T aube argum entou: "Nós

sabem os que os astecas fizeram esse nível de m atança. Suas contas falam de 20.000".

A pesar das contradições reconhecidas por especialistas, o film e Apocalypto é um grande

exem plo de película para ser utilizada em sala de aula nas aulas de H istória. O autor deste artigo
535
teve a oportunidade de apresentar este film e para seus alunos de tu rm as dos 7° anos do E nsino

Fundam ental em u m a escola estadual e para alunos do 2° ano do E nsino M édio de um Instituto

Federal. A experiencia docente p erceb ia que a tem ática sobre os povos am eríndios, antes da

chegada dos europeus, no currículo não cham aria a atenção dos alunos. M as a possibilidade de

trab alh ar com o cinem a perm itiu que o film e fosse um instrum ento que cham asse a atenção dos

discentes. E podem os elencar aqui três m otivos: a ação, o suspense e o estranham ento. A s cenas

de ação colocam o espectador num a sensação de agonia, com o se tudo fosse dar errado. O

suspense, pois sendo um film e de 138 m inutos, ele pode ser passado em quatro aulas e sendo

pausado nos m om entos que o espectador está disposto a saber o que vai acontecer na cena

seguinte. C om o se fosse u m a série em tem pos de streaming. E finalm ente o estranham ento ao ter

contato com um a cultura distinta v ivenciada pelo espectador. A co m eçar pela língua. O film e é

legendado e falado com a língua m aia. A lém de todos estes elem entos, o film e possibilita tratar

de outros tem as com o: fam ília; religião; em patia; conflitos sociais e tradição cultural.

D urante a passagem do film e nas turm as de E n sin o Fundam ental e E nsino M édio, o

p rofessor estim ulou os alunos a debaterem sobre os acontecim entos e a suas im pressões. A

curiosidade discente foi m anifestada em to d as as aulas. O que dem onstra o potencial que o

entretenim ento tem de cham ar a atenção das pessoas.

É im portante acrescentar que o docente deixou claro que o film e era um recorte sobre o

M aias, a fim de diferenciá-los dos A stecas. E serviu de estím ulo para estudar os Incas, o conteúdo

seguinte.

O final do film e causou p olêm ica entre m uitos estudiosos do tem a. O significado tem ático

da chegada dos europeus é um assunto de desacordo e controvérsia. Traci A rdren (2006) escreveu

que os visitantes espanhóis eram m issionários cristãos e que o film e tin h a um a "m ensagem

flagrantem ente colonial de que os m aias precisavam ser salvos porque estavam 'podres por

dentro'". P o r outro lado, D avid van B iem (2006) questiona se os espanhóis são retratados com o

salvadores dos m aias, um a vez que são retratados de form a am eaçadora e Jaguar P aw decide

v o ltar para a floresta para se esconder. Independentem ente dos pontos de vista apresentados por

especialistas, o final do film e é im pressionante e coloca o espectador no lugar dos nativos ao se

depararem com aqueles hom ens desconhecidos. E para relatar a experiencia docente, ao

q uestionar os alunos sobre a chegada dos europeus e o que seria daqueles nativos a resposta foi

unanim e, seriam dom inados.

536
C o n c lu sã o

N o decorrer das páginas deste artigo m encionam os sobre a im portância da solidariedade,

subsidiariedade e participação. E lem entos fundam entais para a b o a convivência entre os seres

hum anos. E neste film e Apocalypto, m esm o se tratando de um film e com cenas violentas,

encontram os estes três elem entos. A capacidade de entretenim ento da película perm itiu que os

alunos escrevessem e falassem os diversos m om entos em que ocorrem solidariedade,

subsidiariedade e participação entre os povos m aias. A lgo que possibilita inúm eras reflexões

sobre a nossa civilização. E para a m aioria dos alunos, a cena final com a chegada dos europeus,

m esm o com tantos conflitos entre os nativos, o recado é : vai piorar.

O exem plo do film e e da tem ática trabalhada neste artigo dem onstra que o cinem a é

relevante para ser trabalhado em sala de aula e grande in strum ento para estim ular a curiosidade,

a pesquisa e consequentem ente o conhecim ento.

R e fe rê n c ia s B ib lio g rá fic a s

ARCHEOLOGY. ORG
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A cesso em: 08.07.2022

537
COMO A IMPRENSA DA PARAÍBA DISCUTIU A EPILEPSIA NO
SÉCULO XX

M A R IA G O R E T E O L IM PIO D O S SA N TO S

M estranda pela U niversidade Federal de cam pina grande


anaguiaturi sm o@ yahoo.com .br

R e su m o : O presente ensaio, tem com o principal objetivo, problem atizar e analisar, com o a
im prensa paraibana apresentava para seus leitores a doença epilepsia no século XX. E, com o
esses discursos ficaram na m em ória individual e coletiva, interferindo assim nas produções
discursiva do diagnóstico da doença epilepsia. V am os p ensar a m em ória com o representações
discursivas que ultrapassam gerações. P ara tanto, vam os pensar os discursos p u b licad o s na
im prensa paraibana com o representação da m em ória. N este contexto, vam os dialogar com
Jacques Le G o ff (2003) e assim fazer um a análise discursiva através dos jo rn a is o N orte, A
união, o centro entre outros periódicos do século XX. V am os p roblem atizar o conceito de
m em ória, docum ento e m onum ento, problem atizando os conceitos e discussões acerca das
representações dos doentes.”

P a la v ra s -c h a v e : Im prensa - epilepsia - m em ória

I n tr o d u ç ã o

Inicia - se o século X X e com ele os desejos de m odernização das cidades, E stados e

país e na P araíb a não foi diferente. A s cidades paraibanas passam po r processos de

m odernização, tanto na questão urbanística, com o tam bém de adequar os sujeitos que residem

naqueles espaços citadinos, considerados até então antigo e arcaico, desta form a constituem

assim , um novo pensam ento e m odelo de sociedade. U m a sociedade lim pa, m o d ern a e que

possuía com o princípio a racionalidade.

P ara construção desses sujeitos m odernos, lim pos e racionais, a im prensa paraibana foi

de sum a im portância para replicar e com bater os antigos hábito e costum es, considerados

arcaicos e ante civilizatório. N este aspecto, o jo rn al a união e a B orborem a evidencia em suas

páginas o novo estilo de vida que os cidadão e cidadã deveriam seguir, m o strav am em suas

páginas as novidades chegadas de Paris, F ran ça considerada a capital cultural da m oda e país

m oderno, o qual o m undo inteiro deveria adotar com o novo estilo de pensar, ser e com portar -

se.

É neste contexto de progresso e m odernidade que a im pressa paraibana anuncia os

lançam entos de veículos da volksw agem e os novos vestidos recém -lan çad o s de Paris,

incentivando assim , hom ens e m ulheres a consum ir e se adequar aos novos estilos da vida

m oderna e civilizada. O jo rn a l a U n ião ainda estam pava em suas principais m anchetes, os


538
nom es das pessoas que j á haviam encom endados os objetos recém -lançados em P aris e

A lem anha, gerando assim um a tendência a ser seguida no E stad o paraibano. E n tre os

consum idores dos produtos tid o com o m oderno, estava o gov ern ad o r da P araíba, João

Suassuna, este governou o estado paraibano pelo período de 1924 a 1928. É im portante

evidenciar que a m aio r parte dos consum idores que com pravam os veículos e vestidos

im portados, eram políticos e esposas dos políticos, ou um a pred o m in ân cia da elite, neste

aspecto, era a burguesia que consum ia esses b ens considerados m odernos e civilizatório. C om o

destacava o jo rn a l a U nião, “ o governador do estado da P araíb a j á encom endou o seu veículo,

recém -lançado.

Já o diário da B o rb o rem a anunciava as propagadas dos veículos recém -lançados e

eletrodom ésticos, com o refrigeradores da G eneral eletros e rádios. Incentivando assim o

consum o.

H avia u m a preocupação no am biente paraibano com o pensam ento, com a ordem ,

disciplina, higiene, saúde e civilização. H avia no periódico um caderno dedicado a publicação

de questões relacionada a saúde m ental, higiene e com portam entos adequado dos sujeitos

paraibanos. C onsiderado os padrões norm ais da época, no entanto, era um a das form as sutil ou

m esm a explicita de controlar os sujeitos e m odificar lós, de acordo com o pensam ento

estabelecido com o civilizador. N este contexto o jo rn a l da B orborem a cita em um dos seus

cadernos intitulados “m edicina p ara to d o s” . (D iário da B orborem a, terça-feira, 24 de ju n h o de

1958, coluna de Á lvaro V ieira).

O caderno recebia cartas de leitores que estavam acometidos por algumas doenças, e
o caderno, lia as cartas dos leitores e apontavam as soluções viáveis. Entre as doenças
apontadas nos jornais estavam a gonorreia, loucura, alienação mental, sexualidade,
forma correta de dormir e até mesmo parasitas. O caderno discutia os variados temas
relacionados com o bem-estar e a saúde dos paraibanos. Bem como comportamento
próprios e impróprios para o contexto histórico. O jornal da Borborema nos diz que,
“o leitor fala de ter se contaminado, no colégio interno com sua primeira gonorreia!
Ficarmos naturalmente interessados em saber como foi a contaminação: se em saídas
normais a cidade ou se em práticas no internato.” (Jornal diário da Borborema,10 de
janeiro de 1958).

O caderno receb ia cartas de leitores que estavam acom etidos por algum as doenças, e o

caderno, lia as cartas dos leitores e apontavam as soluções viáveis. E n tre as doenças apontadas

nos jo rn a is estavam a gonorreia, loucura, alienação m ental, sexualidade, form a correta de

dorm ir e até m esm o parasitas. O caderno discutia os variados tem as relacionados com o b em -

estar e a saúde dos paraibanos. B em com o com portam ento próprios e im próprios para o

contexto histórico.

539
E m outra coluna do jo rn a l a B orborem a, um leito r faz u m a pergunta: qual é a m elhor

fo rm a de dorm ir de barriga p ara baixo ou para cim a? O colunista Á lvaro vieira responde ao

leito r com m últiplas explicações, até chegar à sexualidade e depois discuti a m oral.

A melhor maneira de se dormir, será de barriga para cima, posição em que vamos em
que vamos para o outro mundo.....Toda vez que a conduta sexual de uma criatura
foge do normal, a medicina rotula como perversão ou tara. Assim, existe um número
enorme de criaturas, de ambos os sexos que faz parte dos portadores de tara sexuais.
A doutrina admitida para tais comportamentos é a seguinte: não são anormais no
sentido médico legal, e seus crimes não são aliviados por esse motivo: também não se
cogita de saber qual é a sua perversão. Trata se de um assunto pessoal fora das
indagações. Entretanto, mesmo com essa cobertura sócio moral, não deixa de ser
repugnante um marido pretender que a esposa participe da sua perversão. (Jornal
diário da Borborema,10 de janeiro de 1958).

A nalisando as publicações dos jo rnais, poderem os observar as inquietações dos leitores,

bem com o os questionam entos dos leitores dem onstrando um a necessidade de inclusão, nos

discursos v istos com o norm ais para a época. E ainda poderem os evidenciar o quanto a norm a,

os costum es e com portam entos privados eram vigiados e expostos com o dúvidas, levando ao

diálogo entre leitores e escritores. O quanto à im prensa discutiu o que considerava adequado,

correto e com o nos relata Foucault, um jo g o de p o d er e disciplina.

É im portante salientar que m esm o quando a im prensa nega algo em sua linguagem

discursiva, ela afirm a tam bém , vejam os na segunda citação, quando o colunista diz: “ T oda vez

que a sexualidade foge do norm al, ela v ira perversão ou tara” . N este sentido se foge do norm al

é porque existe um padrão, e depois o colunista reafirm a, “A doutrina adm itida para tais

com portam entos é a seguinte: não são anorm ais no sentido m édico legal.” O que analisarm os é

que os conceitos norm ais e anorm ais são u tilizados para explicar um questionam ento sim ples.

E que esse tem a tem a ver com o nosso objeto? A im prensa paraibana tam bém replicou, publicou

e propagou, definiu o que era um sujeito norm al e o que era os sujeitos anorm ais.

D ese n v o lv im en to

A P araíb a estava em constante transform ação, os jo rn a is estam pavam em suas páginas

as necessidades de esgotam ento sanitário, lim pezas urbanas, distribuição de com idas para os

flagelados e evidenciavam a necessidades de abrigo para os m enores desam parados, internação

dos loucos e desordeiros. E n tre esses loucos e arruaceiros, estavam os doentes com epilepsia

que se m isturavam com loucos, m endigos, entre outros.

540
N a P araíb a os doentes diagnosticados com epilepsia eram percebidos e diagnosticados

com o incapaz, doente m ental, loucos e alienados, seguido os diagnósticos do B rasil, na Paraíba,

não foi diferente. T am bém seguia o m odelo de reclusão dos doentes. Q uando os doentes não

eram reclusos em asilos, sofriam preconceitos m últiplos, chegando ao ponto de com eter

suicídio. C om o relata o jo rn al diário da B orborem a, (Sábado, 17 de m aio de 1958), segue a

m anchete:

Suicidou- se cravando o peito com um golpe de uma faca peixeira. Cenas deveras
impressionante correu as últimas horas da tarde de ontem, a rua Chico Maria, esquina
com Marcílio Dias, nesta cidade, onde o sr. Nelson Maia utilizando - se de uma faca
peixeira cravou a mesma contra o próprio peito, tendo morte imediata. A vítima, que,
segundo apuramos, vinha sofrendo há cerca de dez anos de moléstia incurável, ao que
se presume praticou o tresloucado ato que o levou a morte em consequência de um
estado mórbido produzido pela doença. (Diário da Borborema, (Sábado, 17 de maio
de 1958).

N este contexto da notícia com o poderem os identificar que o suicida, era realm ente

doente de epilepsia, a doença era tam bém cham ada de m al, de m oléstia, term os que os policiais

utilizam para identificar a consequência que levou o doente a com eter o suicídio. A epilepsia

tam bém foi identificada pelo m édico C esare L om broso e A frânio P eixoto, com o grande m al,

doença da gota, entre outras denom inações. P oderem os apontar tam bém que a epilepsia

refratária não tratada, leva a depressão e outras doenças que acom ete o psicológico do sujeito.

N este sentido a im prensa m ais u m a vez, expressa a doença com o um m al. E quem era doente,

pod eria assum ir ter a doença? D ian te de um contexto de reclusão, m edo e até discursos m édicos

divulgado pela im p ren sa que afirm avam que o destino do doente era a m orte.

A im prensa paraibana propagou vários discursos acerca da epilepsia, com o exem plo,

afirm ar que as m ulheres possuem u m a m aior possibilidade para adquirir a doença. R eplicado

os discursos de A frânio P eixoto, o m édico afirm ava que as m ulheres teriam m aior

p ossibilidades de adquirir e passar adiante a doença, ainda ju stific a que a m u lh er possuía um a

sensibilidade exacerbada. O Jornal João pessoa, 13 de novem bro de 1990, diziam em sua página

central: “E p ilep sia afeta com m ais frequência as m ulheres.” H ouve u m a espécie de congresso

no hotel T am baú em João Pessoa, Paraíba, e o N eurologista, C arlos A lberto G uerreiro, afirm ava

que as m ulheres teriam m aior possibilidades de desenvolver a doença ainda destaca e ju stifica

po r m enstruar, segundo ele a m enstruação deixa as m ulheres em um estado de fragilidades.

Segue um trech o da m atéria:

As mulheres têm mais problemas relacionados com a epilepsia por ter mais tendência
a crise, principalmente em alguns casos, nos períodos menstruais’. Ele afirma que
mulheres epiléticas, possuem dificuldades para engravidar, em função dos distúrbios
hormonais, assim como tem a maior chance, apesar de pequena de terem filhos com
541
má formação congênita. (Carlos Aberto Guerreiro, chefe do departamento de
neurologista da UNICAMP, 13 de novembro de 1990).

N o século X IX , os m édicos, A ntônio M anso e P edro Sanches, afirm avam que as

m ulheres teriam m aior propensão a desenvolver a epilepsia, tam bém relacionava a doença ao

gênero fem inino e as supostas fragilidades e em oções.

A priori devemos supor que o sexo feminino é mais predisposto ao mal caduco; com
efeito, o sistema nervoso da mulher é mais impressionável e mais excitável (...)
autores como J. Frank de Vienna, sustentam haver mais casos de epilepsia no sexo
masculino, Sandras, não admite a predominância de um sexo sobre outro, porém
acredita que o sexo feminino é mais predisposto, (Manso, p.47.1/d).

O m édico P edro Saches tam bém seguia esse pensam ento, afirm ando que o gênero

fem inino teria m aior predisposição a epilepsia, po r ser m ulher e ter um a fragilidade apurada.

Irritável, sensível, nervosa em excesso, possuindo o triste privilégio dos acidentes


espasmódicos, a mulher deve ser mais sujeita à epilepsia que o homem. Nas mulheres
se diz que a época menstrual tem sobre a volta dos acessos incontestável influência,
(Sanches, p. 18, 1872).

O s séculos passaram , os tem pos m udaram , venho a m odernidade, a cultural europeia,

chegou à civilização, porém o pensam ento m édico cam inha a passos lentos, não esquecem os

antigos hábitos e costum es e persistem nas antigas teorias. Q ue de u m a certa fo rm a reproduzem

os discursos anteriores. P arecem que não se tem nada de novo, em bora tenha. N ão se discutem ,

nem se apresenta. C om parados os discursos dos m édicos dos séculos X IX e X X , não m udou.

P revalecem os discursos do século XIX, no século X X , e a im prensa retrata e reproduz os

anseios e desejo de cada época.

J o rn a is : D o c u m e n to s e m o n u m e n to s

O s jo rn ais, o N orte, a B o rb o rem a e a U nião foram utilizados na pesquisa com o

docum entos - m onum entos, para tan to utilizam os os conceitos de m onum entos e docum entos,

Le G o ff (1988). O pesq u isad o r se debruça na questão das m entalidades, do sentir e com o as

pessoas se organizavam de form a culturalm ente. N esse co n texto o autor contribui para

historiografia pensando o m odo de vida cotidianas das pessoas. C om o os sujeitos sentiam e se

organizavam culturalm ente.

Le G O F F (1988), contribui para a problem atização das fontes, m onum entos e

docum entos, propõe ao pesquisador saí de u m a visão m ais ingênua e propõe, um a visão m ais
542
crítica a docum entação histórica, partido da neutralidade para a h istória crítica, cham ado a nossa

atenção p ara as relações de poder. N este contexto a m em ória coletiva, seria um fator im portante,

pois, elas são escolhidas de acordo com o contexto social, cultural e político dos docum entos e

m onum entos produzidos que sobrevivem daquele passado, que foram escolhas daqueles

sujeitos e daqueles períodos históricos, ou sejam o que tem os acessos foram escolhas, filtragem

e recortem de outrem .

Le Goff, propõe aos historiadores que devem os fazer e tec e r críticas, m ateriais das

m em órias coletivas e que devem ser aplicadas aos docum entos tam bém , assim com o os

m onum entos.

S egundo L e G off, o conceito de m onum entos são obras com em orativa de estatura ou

escultura, um exem plo de m onum entos, estatuas de D om P edro I, em São Paulo. Esses

m onum entos têm com o intencionalidade se perp etu ar no poder.

O conceito de docum ento vem do latim que tem sentido original de ensinar e depois tem

o sentido de prova e no século X IX tem o sentido de testem unha. N a im pressa paraibana

pensam os os jo rn a is enquanto docum entos/ m onum entos, pois o que chega até nós, são recortes

e escolha dos sujeitos do século X X , produzidos para os sujeitos daquele tem po e para o século

posterior. N este contexto seguindo o pensam ento de Le Goff, os que era publicado na im prensa

p araibana foi perm itido por um , ou m ais grupos que perm itiam o que deveriam ser publicados,

replicado. Foram propagando com objetivos específicos.

Segundo L e G off, o conceito de m onum entos são obras com em orativa de estatura ou

escultura, um exem plo de m onum entos, estatuas de D om P edro I, em São Paulo. E sses

m onum entos têm com o intencionalidade se perp etu ar no poder.

O conceito de docum ento vem do latim que tem sentido original de ensinar e depois tem

o sentido de prova e no século X IX tem o sentido de testem unha. N a im pressa paraibana

pensam os os jo rn a is enquanto docum entos/ m onum entos, pois o que chega até nós, são recortes

e escolha dos sujeitos do século X X , produzidos para os sujeitos daquele tem po e para o século

posterior. N este contexto seguindo o pensam ento de Le Goff, os que era publicado na im prensa

p araibana foi perm itido por um , ou m ais grupos que perm itiam o que deveriam ser publicados,

replicado. Foram propagando com objetivos específicos.

Le Goff, nos cham am a atenção acerca dos docum entos que devem ser criticados da

m esm a form a que os m onum entos e com a revolução docum ental houve um alargam ento das

fontes p roporcionado com parações e ligação entre elas.

Segundo L e G off, o conceito de m onum entos são obras com em orativa de estatura ou

escultura, um exem plo de m onum entos, estatu as de D om P edro I, em São Paulo. E sses

m onum entos têm com o intencionalidade se perp etu ar no poder.


543
O conceito de docum ento vem do latim que tem sentido original de ensinar e depois tem

o sentido de prova e no século X IX tem o sentido de testem unha. N a im p ressa paraibana

pensam os os jo rn a is enquanto docum entos/ m onum entos, pois o que chega até nós, são recortes

e escolha dos sujeitos do século XX, produzidos para os sujeitos daquele tem po e para o século

posterior. N este contexto seguindo o pensam ento de Le G off, os que era publicado na im prensa

p araibana foi perm itido por um , ou m ais grupos que perm itiam o que deveriam ser publicados,

replicado. Foram propagando com objetivos específicos.

Le G off, nos cham am a atenção acerca dos docum entos que devem ser criticad os da

m esm a fo rm a que os m onum entos e com a revolução docum ental houve um alargam ento das

fontes p roporcionado com parações e ligação entre elas.

A concepção do documento/monumento é, pois, independente da revolução


documental e entre os seus objetivos está o de evitar que esta revolução necessária se
transforme num derivativo e desvie o historiador do seu dever principal: a crítica do
documento - qualquer que ele seja - enquanto monumento. O documento não é
qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o
fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do
documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao
historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa. (Le Goff,
p. 477. Ano 1988).

N este sentido pensado os docum entos/ m onum entos, identificarm os que esses

docum entos passaram a ser m onum entos, porém lançam os sob eles as críticas e os

questionam entos, para pensarm os as m em orias coletivas, e então co m preender as intenções da

im prensa do século X X , discutido e disciplinado os sujeitos.

H ouve um a preocupação de historicizar esses docum entos pois eles são produções

hum anas e representam o sentir, v iver e conviver dos sujeitos do século XX. T entam os tra ta r o

docum ento com o um m onum ento, po r serem frutos de u m a sociedade com intencionalidade e

com a intenção de eternizar se o poder.

N esta p erspectiva entendem os que o docum ento é um a m ontagem consciente ou

inconsciente da história ou da sociedade que o produziu, é produto de um tem p o passado ou

p o sterio r que silenciou ou que se deixou ser produzido.

N este sentido pensado os docum entos/ m onum entos, identificarm os que esses

docum entos passaram a ser m onum entos, porém lançam os sob eles as críticas e os

questionam entos, para pensarm os as m em orias coletivas, e então com preender as intenções da

im prensa do século X X , discutido e disciplinado os sujeitos.

H ouve um a preocupação de historicizar esses docum entos pois eles são produções

hum anas e representam o sentir, v iv er e conviver dos sujeitos do século XX. T entam os tra tar o

544
docum ento com o um m onum ento, po r serem frutos de u m a sociedade com intencionalidade e

com a intenção de eternizar se o poder.

N esta p erspectiva entendem os que o docum ento é um a m ontagem consciente ou

inconsciente da história ou da sociedade que o produziu, é produto de um tem p o passado ou

p o sterio r que silenciou ou que se deixou ser produzido.

C o n c lu sã o

C oncluím os, portanto, que os discursos publicados faziam parte de um contexto cultural

do século X X , porém os contextos culturais não estão passivos de críticas, nem tão pouco de

neutralidades. O s contextos culturais tam bém produzem preconceitos m últiplos, reclusão e

exclusão social. O s docum entos- m onum entos perm itiu nos com parar o quantos os discursos

produzidos p ara o século X X , ainda causa preconceito, m edo e principalm ente estigm as aos

doentes de epilepsia. D eixados assim os sujeitos de epilepsia com estigm a que ultrapassam os

séculos.

O s discursos da im p ren sa paraibana com o analisa Le G off, fo ra construído com o

docum ento e m onum ento para se perp etu ar no p o d er e representar grupos que outrem

produziam cultura e todos os produtos que deveriam ser consum idos, baseado em um a

m entalidade de m odernidade.

R e fe rê n c ia

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“A DEMONSTRAÇÃO DO GRANDE SENTIDO NACIONAL DO
INTEGRALISMO”: A AÇÃO INTEGRALISTA BRASILEIRA E OS
CONGRESSOS NACIONAIS NAS PÁGINAS DE SUA IMPRENSA
MILITANTE (1933-1935)

M A R IA R IT A C H A V E S A Y A L A B R E N H A 254

I n tr o d u ç ã o

O s prim eiros anos da década de 1930 foram caracterizados pela im previsibilidade do

cam po político. E ntre a crise da hegem onia oligárquica da P rim eira R epública, e o fecham ento

político que resultou o E stado N ovo, houve “ [...] o surgim ento de projetos radicais e

m obilizantes que tentaram galvanizar a sociedade com a ideia de m udança” (M A IO ;

C Y T R Y N O W IC Z , 2003, p. 41). D e acordo com T rindade (1979), este foi um m om ento

m arcado pela ascensão da direita que resultou na organização de variados m o v im en to s de

inspiração fascista.

A receptividade de ideias autoritárias, bem com o a cristalização dos princípios radicais

de direita, e a união de grupos precursores organizados por P lín io Salgado, consum aram -se na

fundação da A ção Integralista B rasileira (A IB). D entre estes grupos pioneiros, destacaram -se a

A ção Social B rasileira, um m ovim ento sem êxito, cujo program a se baseava na proteção da

m oral, nacionalização, fortalecim ento da raça e centralização política; a L egião C earense do

T rabalho, ten d o com o expoente Severino Som bra, congregava a doutrina social católica

tradicional com elem entos fascistas; e, tam bém , o P artido N acional Sindicalista, que tin h a com o

representante seu fundador, O lbiano de M ello, sim pático ao fascism o, defensor da fundação de

u m a rep ú b lica sindicalista (ST A N G E R , 2014).

A través do jo rn a l A Razão, Salgado conseguiu se aproxim ar desses m ovim entos e

aglutiná-los em torn o de si, até que em fevereiro de 1932, fundou a Sociedade de E studos

P o lítico s (SEP), em brião da A IB e in stituição que p o ssibilitou a articulação dos intelectuais

sim patizantes de tendências autoritárias (ST A N G E R , 2014). A A IB, po r sua vez, foi criada em

7 de outubro de 1932, em São Paulo, a p artir da leitura de um m anifesto em reunião solene no

T eatro M unicipal da cidade, e constituída com o um a associação nacional de direito privado,

com setores de atividade em todo o B rasil, cujas finalidades eram funcionar com o centro de

estudos de cultura sociológica e política, desenvolver u m a propaganda de elevação m oral e

254*Graduada em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM-PR). Mestranda do Programa de Pós-
Graduação em História da UEM. Bolsista CAPES.
547
cívica do povo brasileiro, e “ pleitear para o B rasil a im plantação de um regim en politico-social,

tão som ente b asead o na concepção do E stado T otalitário, ou E stado Integral” (A C Ç Ã O ..., 1933,

p. 1).

C onform e descreveu T rindade (1979, 2016), a estrutura da A IB, partindo do C hefe aos

m ilitantes de base, caracterizou-se pela hierarq u ia e burocracia, com funções, órgãos e papéis

sistem aticam ente previstos por estatutos e rituais. N esse contexto, entre fins de 1932 a 1934,

tem p o no qual Salgado am pliou sua liderança, a prim eira estrutura organizacional foi

im plantada no I C ongresso Integralista de V itória (ES), em fevereiro e m arço de 1934.

Posteriorm ente, com o consequência do II C ongresso Integralista de P etrópolis (R J), de m arço

de 1935, as resoluções foram aperfeiçoadas, consolidando um caráter pré-estatal no âm bito

interno do recém -proclam ado partido. E stava assim , constituído o E stado Integral em potencial,

sendo m ais do que um “ contra governo” . E le funcionava com o um verdadeiro E stado totalitário,

que possuía u m a ideologia, um aparelho b urocrático interno, Forças A rm adas paralelas

(m ilícia), além de u m a legislação própria, com regulam entos, resoluções e m edidas de censura.

T endo em vista que a A IB foi a m aior expressão do fascism o no B rasil, trata-se de um

m ovim ento que despertou, e continua a despertar, o interesse de historiadores. A lém de possuir

u m a bibliografia extensa, os estudos sobre a A IB constituem um cam po de análise consolidada,

em bora longe de atingir seu esgotam ento. À vista disso, este trabalho teve com o o bjetivo

apresentar o resultado de dois P rojetos de Iniciação C ientífica255, em que foi realizado um

estudo aprofundado dos C ongressos de V itória e de Petrópolis. A s fontes utilizadas

com preenderam as publicações dos anos 1933 e 1935 dos periódicos integralistas A Offensiva

e Monitor Integralista, bem com o as publicações correspondentes a 1934 e 1935 da grande

im prensa O Paiz e O Globo.

Tal abordagem se ju stific a pelo fato do integralism o, com o prim eiro m ovim ento de

m assas estruturado nacionalm ente a ter grande expressão social, ter utilizado de um a grande

rede de jo rn a is e revistas com o propósito de expandir sua ideologia, atrair novos adeptos e

d o utrinar seus m ilitantes. A im prensa integralista, n esta conjuntura, tinha po r finalidade atingir

todos os setores que eram suscetíveis ao seu discurso e u n iversalizar os pressupostos

ideológicos defendidos (O LIV EIR A , 2009).

N o que diz respeito a utilizar-se de periódicos com o fonte histórica, tanto Luca (2008),

quanto C apelato (1988), conferem especial destaque ao cuidado e m étodo rigoroso, de

255 Os Projetos de Bolsa de Iniciação Científica (PIBIC/FA/CAPES) foram realizados entre os anos de 2018 a
2020, e foram intitulados de O Congresso de Vitória (1934) e as alterações na Ação Integralista Brasileira, e O
Congresso de Petrópolis (1935) e a construção do Estado Integral, respectivamente. Ambos os trabalhos foram
orientados pelo Prof. Dr. João Fábio Bertonha, e vinculados ao Laboratório de Estudos do Tempo Presente
(LabTempo/UEM) e à Universidade Estadual de Maringá (UEM).
548
questionam entos e reflexões que o historiador deve te r para com sua fonte. Isto é, a necessidade

de contextualizar o jornal: seu período de produção, o corpo editorial, a intencionalidade, o

público-alvo e os elem entos ideológicos presentes, um a vez que, os periódicos procuram atrair

o público, conquistar suas m entes e assim , atrair adeptos para sua causa.

P o r este viés, a análise dos periódicos trata-se de um terren o “ [...] m anancial dos m ais

férteis para o conhecim ento do passado, a im prensa p ossibilita ao historiador acom panhar o

percurso dos hom ens através dos tem p o s” (C A P E L A T O , 1988, p. 13). D e acordo com a autora,

ao ler a história do B rasil através dos periódicos é possível recuperar as lutas, interesses,

com prom issos e ideais, u m a vez que a im p ren sa não som ente registra, m as tam bém particip a e

com enta a H istória, constituindo ainda, um a força política.

O I C o n g re sso N a c io n a l In te g r a lis ta : V itó ria , 1934

R ealizad o entre 28 de fevereiro e 1° a 3 de m arço de 1934, o I C ongresso de V itória foi

um evento realizado no T eatro C arlos G om es, região central da cidade de V itória (ES). Sua

cobertura foi registrada pelo jo rn al Monitor Integralista e abarcou um período relativam ente

longo, entre dezem bro de 1933 a dezem bro de 1934.

N a tiragem da segunda quinzena de fevereiro de 1934 do periódico, P línio Salgado

apontou a im portância do C ongresso, sendo este “ [...] um a dem onstração explendida da unidade

nacional e de força de idealism o da nossa raça” , e “ além de sua alta significação m oral

representa um a necessidade im m ediata para a effectiva coordenação do m ovim ento integralista

em to d a a vastidão do territorio brasileiro ” (SA L G A D O , 1934a, p. 3 )256.

N a m anhã do dia 27 de fevereiro, partiu da E stação M auá, no R io de Janeiro, um trem

rum o à V itória (ES). E ntre seus passageiros havia centenas de m ilitantes e dirigentes, entre eles

Salgado, que ocuparam dois vagões enfeitados com bandeiras e letreiros alusivos ao congresso.

N a tarde de 28, a delegação chegou ao seu destino: os ocupantes do “trem -v erd e” foram

saudados por duas decúrias do núcleo local (FA G U N D E S, 2009). C om o intuito de agilizar os

trabalhos do evento, ainda naquela noite, ocorreram as prim eiras atividades. Foram nom eados

po r Salgado os dirigentes que com poriam as m esas dos trabalhos e indicados aqueles que

form ariam as com issões criadas p ara elaborar e sistem atizar as atividades.

N a tarde de 1° de m arço, outra sessão preparatória foi realizada. O m om ento de jú b ilo

ocorreu quando, nesta noite, iniciou-se a abertura oficial do C ongresso. A sessão com eçou com

256 A fim de garantir a fidelidade às fontes, preferimos manter a grafia da época.


549
a leitura da ordem do dia e de telegram as dos vinte e dois núcleos provinciais. E m seguida, a

palavra foi concedida a P línio, cujo discurso foi, constantem ente, interrom pido por aplausos

(FA G U N D E S, 2009). A leitura do m anifesto, previam ente assinado pelos delegados de todas

as províncias integralistas, foi proferida po r O lbiano de M ello, m em bro da direção nacional do

m ovim ento.

P ara reafirm ar os princípios de fidelidade e obediência previstos nos docum entos e

estatutos que seriam aprovados durante o evento, houve um a cerim ônia para reafirm ar a posição

de Salgado com o chefe suprem o. U m a um , os nom es dos chefes provinciais foram cham ados,

e ao escutar seu nom e o dirigente - com o b raço direito em posição de saudação - respondia

solenem ente: “Juro, A nauê, P línio Salgado” (FA G U N D E S, 2009).

A ssim sendo, as sessões de 02 de m arço e da tarde do dia 03 foram ordinárias. C um priu-

se a leitura de em endas e teses propostas pelos congressistas. T eses estas que poderiam tratar

de qualquer assunto dentro dos princípios da doutrina integralista - entretanto, não seriam

subm etidas à discussão, um a vez que aquele não se tratava de um “ congresso liberal” . P o r fim ,

na n oite de 3 de m arço, houve o encerram ento do C ongresso, aberto ao público. A sessão contou

com a presença dos representantes de todas as P rovíncias e m em bros da m ilícia integralistas.

A lguns de seus principais dirigentes, com o M iguel R eale e O lbiano de M ello, proferiram

discursos e o desfecho foi realizado pelo C hefe N acional.

R e p e rc u ssõ e s e d e s d o b ra m e n to s

E n tre os dois prim eiros anos de sua existência legal, a A IB ap resentava-se com o

associação nacional de direito privado. Seu propósito era o de servir com o centro de estudos de

cultura sociológica e política, a fim de desenvolver um a propaganda de elevação m oral e cívica

do povo brasileiro. E m sum a, o integralism o antes do C ongresso de V itória alm ejava o E stado

T otalitário, M o derno e Integral: um governo forte, com a unidade integral do B rasil e a

nacionalização, a fiscalização direta do E stad o e a disciplina do povo.

C om o fora destacado inicialm ente, o I C ongresso N acional estabeleceu a estrutura

organizacional do m ovim ento, que p erm aneceria em vigor até sua alteração em 1935. É possível

p erceber logo na edição do Monitor Integralista da prim eira quinzena de m aio de 1934 (logo

depois do C ongresso de V itória), a retirada do term o “ T otalitário” na seção “D enom inação -

Séde - Fins” , constando apenas: “ im plantar no B rasil o E stad o Integral” . E m adição a isto, após

V itória, observa-se que houve a avaliação de que as únicas chances de atingir o p o d er eram pela

v ia eleitoral ou po r um golpe de E stado:


550
Os integralistas podiam ter seus planos de longo prazo de mudar a mentalidade
nacional, e, no caso de Plínio Salgado, com seu romantismo e seu idealismo, não seria
absurdo dizer que ele acreditava realmente em uma revolução espiritual de longo
prazo. Mas a conquista do poder, do Estado, sempre foi um objetivo essencial para
que a ‘revolução espiritual’ de longo prazo pudesse acontecer [...] (BERTONHA,
2014, p. 118-119).

A tese do autor pode ser confirm ada ao lem brarm os que nas tiragens de agosto de 1934

do Monitor Integralista e da Offensiva há u m a m atéria, logo na prim eira página, intitulada “ O

integralism o e as proxim as eleições” . A p articip ação nas eleições para as C onstituintes

E staduais e C âm ara Federal, foram determ inadas pelo C hefe e possuíam um propósito

essencialm ente tático, de propaganda das ideias e agitação da m assa popular. Isto, apesar da

não aprovação do “ sufrágio u n iv ersal” pela AIB.

O resultado do C ongresso de V itória que m ais cham ou a atenção foi a aclam ação de

P lín io com o o perpétuo e insubstituível C hefe N acional. N a sessão solene de abertura do evento,

“ [...] houve um m om ento de verdadeira angustia para o in teg ralism o brasileira, m otivado pela

attitude de P linio Salgado, renunciando a C hefia do m ovim ento” (A C H EFIA ..., 1934, p. 1 -2).

E m seguida, o ato de aclam ação foi um dos m om entos em que a política adquiriu características

de um v erdadeiro espetáculo de poder: to d a a teatralidade da cena teve com o fim sepultar o

m odelo de direção colegiada da A IB, e criar a figura do C hefe que, com o p assar do tem po,

adquiriu status de onipresença. O ju ra m en to serviu para autenticar dois traço s fundam entais que

passariam a m arcar a estrutura orgânica do integralism o: a fidelidade ao chefe e o repúdio às

dissidências (FA G U N D E S, 2009).

E ntretanto, apesar de todos seus esforços em dem onstrar sua autoridade absoluta, o

C hefe não era im une a questionam entos, m ostrando-se até m esm o cioso com seu poder:

Plínio era muito cioso da sua autoridade é mais do que evidente. A ritualística
integralista tomava, como visto acima, um cuidado imenso para garantir a
preeminência da figura do chefe e, mesmo quando proclamando a sua modéstia ou
defendendo que os integralistas prestassem atenção às suas ideias e não a ele próprio,
é óbvio que Plínio considerava o movimento algo seu e que não permitiría, em
nenhuma circunstância, que sua autoridade fosse questionada (BERTONHA, 2018, p.
183).

A p artir da análise dos regulam entos integralistas percebem os o nível de controle

exercido po r ele, por exem plo: “ A R T IG O 5° - É prohibido, sob pena de exclusão autom atica, a

qualquer integralista, com m entar qualquer acto do C hefe N acional, relativo ao ex ercicio de seu

cargo” , ou ainda: “ A R T IG O 8° - P ara os integralistas a pessoa do C hefe N acional é intangível”

(E ST A T U T O S..., 1934, p. 5). Sua estratégia consistia em u tilizar u m a tática aparentem ente

551
dem ocrática no plano de ação, resguardando sem pre a possibilidade de evocar a fidelidade à

doutrina p ara reform ular um ponto de vista contraditório ao seu (T R IN D A D E , 1979). P o r outro

lado, B ertonha (2018) destaca que é possível n o tar que o esforço de Salgado em proteger a sua

liderança ju rid icam en te foi tão nítido que revelou m ais sua fraqueza do que força. O u seja, um

v erdadeiro líder tem condições de im p o r a sua vontade e não necessita fundar seu poder em um

tex to legal.

A prim eira e m ais notável das dissidências que o C hefe N acional teve de enfrentar foi a

de Severino Som bra, que disputou o com ando logo no início da AIB, em 1932. Som bra desejava

m u d ar a instituição pelas b ases e a partir dela m esm a. A pesar da articulação realizada com

alguns sim patizantes, a tentativa de dividir com Salgado a liderança das hostes integralistas e

posteriorm ente conquistar a chefia nacional, frustrou-se no C ongresso de V itória. Sua saída,

considerada um a traição, perm aneceu com o um estigm a no integralism o (SILV A , 2006).

A dem ais, u m a das características do fascism o, enquanto m o v im en to político, foi a

criação de forças p aram ilitares constituídas para p roteger seus líderes e intim id ar os adversários.

O integralism o desenvolveu sua p rópria m ilícia, adm inistrada po r G ustavo B arroso. A análise

dos regulam entos presentes no Monitor Integralista e A Offensiva indicam um a estrutura

m ilitarizada e bem -organizada: visando, po r exem plo, estabelecer um a unidade de m étodo na

form ação técnico-m ilitar. Tal preocupação com a u n iform idade dá-se, especialm ente, após o

V itória com a publicação de decretos e regulam entos.

A A IB tam bém se utilizava de estratégias de prem iação com o m eio de disciplinar seus

quadros ao in cen tiv ar valores e procedim entos tidos com o dignos de serem im itados. N o I

C ongresso, foram instituídas quatro ordens honoríficas com o “ [...] intuito de revalorisar as

expressões m oraes, intellectuaes e civicas com pletam ente despresadas no B rasil de hoje; no de

restau rar o culto das forças espirituaes da N ação [...]” (SA L G A D O , 1934b, p. 7). E ram elas:

C ruz de A nchieta, para aqueles que revelavam alto v alo r m oral; E strela de G uararapes,

p rem iando a coragem e b ravura excepcionais; O rdem do C açador de E sm eraldas, p ara os

valores culturais, científicos e artísticos, e O rdem do Sigm a, a prem iar os que revelassem

aptidões políticas extraordinárias (C A V A L A R I, 1999).

P o r fim , é im portante m encionar o m odo com que a grande im prensa retratava as ações

dos cam isas-verdes. O jo rn a l O Globo caracterizava o m ovim ento com o “um a especie de

fascism o botucudo, que os ociosos adaptaram cá pela terra, á m ingua de im aginação”

(PO N T E S, 1934, p. 3). OPaiz, por sua vez, priorizou as caravanas integralistas, cuja finalidade

era divulgar as ideias do m ovim ento, com o “ [...] correrias m ais ou m enos hilariantes po r alguns

E stados, e com um a despesa com transportes que o grande thesoureiro da O rdem j á deve achar

elevada em dem asia, diante da nulidade dos frutos colhidos” (D E S IN T E G R A Ç Ã O ..., 1934, p.
552
3). E m O Paiz, foi registrado que Salgado havia entregado “ [...]o ‘integralism o á N a ç ã o ’,

em phaticam ente, adivinhando os perigos do ridiculo que representa um partido retintam ente

m onarchista-fascista nestes tem pos de revolução para a conquista de m aiores liberdades e

direitos” (D E S IN T E G R A Ç Ã O ..., 1934, p. 3).

O I I C o n g re sso N a c io n a l In te g r a lis ta : P e tró p o lis , 1935257

A 7 de m arço de 1935, p artiu do R io de Janeiro, pela estrada de rodagem em direção a

Petrópolis, o C hefe N acional. E m P etrópolis, nas proxim idades do P arque C rém erie, um dos

pontos tu rísticos da cidade, aguardavam -no um a com itiva constituída pelo C hefe M unicipal,

R aym undo P adilha, e outras autoridades. A pós sua chegada, form ou-se um cortejo, ostentando

as flâm ulas do Sigm a, seguindo para o G rande H otel. N esta m esm a noite, ao centro da cidade,

cum priu-se, a prim eira das sessões preparatórias, presidida po r Salgado e com a cham ada dos

delegados provinciais, a leitura de telegram as de congratulações pelo evento e hom enagem a

seus veteranos.

N o dia seguinte, o salão nobre do núcleo local sediou outras duas sessões preparatórias,

presididas pelo C hefe e pelo Secretário N acio n al da M ilícia, G ustavo B arroso. N elas,

sucederam -se a leitura das novas estruturações da Secretaria N acional de Justiça, do C ódigo

Integralista de P enalidades e do C ódigo P rocessual; além da discussão de questões de

organização da m ilícia. O segundo dia do C ongresso tam bém foi m arcado por um protesto

realizado por operários da C om panhia Petropolitana, que paralisaram as atividades e

m anifestaram seu desagrado com a presença dos integralistas na cidade (O L IV E IR A , 2012, p.

106). A respeito disto, não há m enção nas m em órias do C ongresso veiculadas pelos periódicos

analisados. P elo contrário, na tiragem de 16 de m arço de 1935 de A Offensiva, consta que apesar

dos boatos, “ [...] a cidade am anheceu em inteira calm a. O povo de P etropolis olhava para os

cam isas-verdes com adm iração e sym pathia” (N O 2°..., 1935, p. 2).

A solenidade de instalação ocorreu na noite de 8 de m arço, no T eatro C apitólio. Segundo

o relato do M onitor, além dos congressistas, a p opulação local ocupava as frisas, galerias e

cam arotes. Ali, após a p rotocolar entrada do C hefe, e a saudação de três “ anauês” , a m esa de

trabalhos foi constituída e fez-se a cham ada dos delegados representantes dos estados. E m m eio

à leitura do expediente, Salgado ergueu-se, e declarou que fizera expedir u m a circular a todos

257A obra de Trindade (1979), referência para os estudiosos da AIB, sugere que o Congresso de Petrópolis tenha
acontecido em 1936, sendo esta data incorporada por muitos outros autores. Observamos, todavia, que o Congresso
ocorreu no ano de 1935.
553
os núcleos integralistas, para que àquela hora, onde quer que se encontrasse um cam isa-verde,

este se concentrasse, m antendo um m inuto de silêncio. A ssim , ele convidava to d o s os presentes

que tam bém m antivessem um m om ento de silêncio com o p en sam en to concentrado em D eus.

D isse então, as palavras que nos núcleos, naquele m om ento se repetiram : “ O Integralism o está

vivo; a N ação despertou, que D eus inspire o C hefe e conduza á v ictoria a sagrada b andeira do

Sigm a!” (SE SSÃ O ..., 1935, p. 2-3).

N a m anhã de 9 de m arço, cum priram -se duas sessões ordinárias, presididas po r Plínio.

A prim eira tratou sobre reform as estruturais do m ovim ento; e a segunda, dos interesses da

S ecretaria N acional da O rganização P olítica, contando com a leitura dos relatórios e síntese de

seus trabalhos futuros, e especial ênfase, po r parte dos congressistas, da im portância do

D epartam ento E leitoral e Sindical. N a tarde desse m esm o dia, realizou-se o desfile de dez

L egiões de integralistas. N a ocasião, congressistas, m ilicianos e cidadãos locais tom aram parte.

A tro p a form ou-se em to d a a extensão da central A venida 15 de N o v em b ro e, à hora

determ inada, o C hefe N acional, com seu E stado M aior, passou em revista à tropa, dirigindo-se

depois para o pavilhão instalado em frente à C atedral d a cidade, onde um a guarda de honra

constituída pelo D epartam ento F em inino, prestou-lhe continência. D eu-se em seguida, o desfile

pelas principais ruas e avenidas, com o a A venida 7 de Setem bro, as ruas T iradentes, Ipiranga e

P edro I, até o B osque do Im perador.

C um priu-se tam bém a inauguração do M useu Integralista no P alácio de Cristal,

instalação que desde o fim do século XIX, abrigava exposições diversas. O M useu, p ara Plínio,

era um a “ [...] prova palpável das realisações integralistas, destinada a convencer pela força os

incrédulos, derrotistas e inim igos da P atria [...]” (A C T A ..., 1935, p. 1). N ele, encontravam -se

seções que m ostravam o m ovim ento desde sua gênese até aquele m om ento, com o cartazes,

coletâneas de periódicos e flâm ulas retiradas dos socialistas em conflitos.

F inalm ente, na noite do dia 10, novam ente no C apitólio, houve a sessão solene de

encerram ento do C ongresso, com a p resen ça de congressistas, autoridades integralistas e figuras

de projeção da sociedade - estes, não foram nom eados. In iciad a pelo secretário geral do

C ongresso, E veraldo Leite, sem a presença de Salgado nos prim eiros m om entos, fez a cham ada

das delegações. G ustavo B arroso, em seguida, relem brou em seu discurso os prim eiros passos

do integralism o e apresentou u m a visão pan o râm ica dos dias de C ongresso, salientando sua

im portância para a organização da AIB.

A chegada do C hefe ocorreu durante a fala de um dos congressistas. Salgado, por sua

vez, apresentou suas considerações a respeito de Petrópolis. Suas palavras finais acentuaram a

relevância do C ongresso, po r ser ocasião de contato dos m ilitantes com os dirigentes. D ali em

diante, a palavra de ordem era a criação da m ística unidade da Pátria, recom endando aos
554
delegados um trabalho incessante. O H ino N acional foi, enfim , executado pela orquestra e, ao

térm ino, quatro anauês à D eus e três à revolução integralista foram entoados.

R e p e rc u ssõ e s e d e s d o b ra m e n to s

E m 1935, o integralism o de P lín io Salgado passou po r sua transição final: perm aneceu

com o associação civil, sediada em São Paulo; e, daquele m om ento em diante, era tam bém um

p artido político, com sede onde se encontrasse o Chefe. A ssim sendo, enquanto partido,

objetivava a reform a do Estado, po r m eio da form ação de um a nova cultura filosófica e jurídica.

E sta alteração determ inante foi ju stifica d a pelo próprio C hefe N acional em um a carta-circu lar

enviada aos chefes provinciais:

Em face da situação creada pela Lei de Segurança, que inclue nos seus dispositivos a
emenda apresentada pelo deputado communista Rodrigues, prohibindo organisações
militares com quadros e hierarquia, resolvi, para que a “Acção Integralista Brasileira”
continue a funccionar com seus superiores objectivos, reformar os nossos Estatutos.
[...] tive eu o cuidado de entrosar, em absoluta harmonia, os nossos Estatutos, a
Constituição de Julho, a Lei Eleitoral e a Lei de Segurança (SALGADO, 1935, p. 2).

N o contexto de adequação à Lei de Segurança, nota-se um especial cuidado por parte da

A IB em m ostrar-se com o “ [...] um m ovim ento que objectiva a felicidade do P ovo B rasileiro,

dentro da ju stiç a social, dos princípios v erdadeiram ente dem ocráticos, garantindo a

intangibilidade dos grupos n aturaes [...]” (SA L G A D O , 1936a, p. 3). A inda, inúm eras

determ inações foram designadas para que fosse intensificada a qualificação eleitoral em todos

os núcleos do país. A ssim , m esm o com batendo a dem ocracia liberal, os cam isas-verdes

participaram , novam ente, do sufrágio universal nos âm bitos m unicipal, estadual e federal, com

a finalidade de alavancar o partido. M esm o aproveitando o clim a anticom unista instalado após

a Intentona de 1935, os resultados foram m edíocres devido ao poder das oligarquias e dos

partidos tradicionais (B E R T O N H A , 2018).

P ara além disso, a dissolução da m ilícia tam bém configurou a reestruturação im posta

pela nova lei de G etúlio V argas. A S ecretaria N acional de M oral e F ísica substituiu a

organização param ilitar, ten d o com o finalidade fu n cio n ar com o órgão de educação física e

m oral, além de “funcionar com o orgão aliciador de elem entos que estarão a disposição do

E x ercito N acional, em todas as ocasiões em que estejam em perigo [...]” (B A R R O SO ;

SA L G A D O , 1935, p. 7).

555
A o evidenciar um a nova p ersp ectiv a acerca do redim ensionam ento da m ilícia, B ertonha

(2018) destacou um a tentativa de Salgado visando enfraquecer u m a nova dissidência que

despontava: o próprio G ustavo B arroso. É possível que a disputa entre am bos ten h a sido

b asead a no privilégio do com ando e na estratégia para chegar ao poder. E nquanto chefe da

M ilícia, m enos interessado em com prom issos e m ais radical, B arroso poderia ter cobiçado a

liderança para um a ação direta pelo poder.

T radicionalm ente, a arm a para anular a dissidência foi em ocional. A pós u m a

conferência, B arroso sugeriu que um chefe que não é fiel à doutrina corria o risco de p erder sua

autoridade. D ias depois, com o resposta, Salgado fez um discurso realçando sua concepção de

C hefia e a necessidade de fidelidade e obediência absolutas. N um gesto teatral, ao fim da fala,

ele se dem itiu da sua função de C hefe e abandonou o palco. O s líderes integralistas, aturdidos,

correram a p ed ir revisse sua decisão e B arroso deu explicações a Salgado, que aceitou seu cargo

de volta, m as sem adm itir novos questionam entos (B E R T O N H A , 2018).

O rem anejam ento da estrutura, propriam ente dita, da A IB configurou outro resultado de

P etrópolis. A p artir da resolução n° 165, de outubro de 1936, há a criação das C ortes do Sigma,

constituída po r corporações com o Suprem o C onselho, C âm ara dos Q uarenta, C hefes

Provinciais, C onselho Jurídico, C onselho de B elas A rtes, entre outras. O u seja, os efeitos do II

C ongresso ressoavam não som ente em seu ano de realização. A instituição de tais órgãos

encontra-se ju stifica d a na tiragem de outubro de 1936:

Considerando a necessidade de creação de um orgão auxiliar na suprema direcção do


Movimento Integralista, Considerando a conveniencia da formação de uma Camara,
constituída de personalidades de projecção social, moral e de valor intellectual no
Movimento, Considerando ainda a necessidade de um orgão que represente as
expressões maximas do Integralismo em todo o paiz [...] (SALGADO, 1936b, p. 3).

A s C ortes do Sigm a, setor m ais im portante do integralism o, congregava as m ais

respeitáveis lideranças do Sigma: a título de exem plo, a C âm ara dos Q uarenta correspondia a

um departam ento consultivo; j á o C onselho Suprem o reunia chefes provinciais e secretários

nacionais, com posto por líderes com o G ustavo B arroso, M iguel R eale e R aym undo P adilha

(O L IV E IR A , 2018). C om a form ação desses órgãos é possível observar u m a leve abertura por

parte do C hefe N acional, contudo, a palavra final sem pre seria a dele.

D esse m odo, ao passo que em 1934, no I C ongresso Integralista, a prim eira estrutura do

m ovim ento é definida, configurando um a organização de natureza burocrática-totalitária; no

ano seguinte, durante o II C ongresso, ap erfeiçoaram -se as determ inações de V itória e

consolidaram -se o caráter pré-estatal da AIB (T R IN D A D E , 1979). O E stad o Integral, assim ,

tin h a sua pré-figura no aparelho b urocrático interno, com seus rituais, protocolos,

556
procedim entos, censura e ideologia, forças arm adas (m esm o que enfraquecida e encoberta), e

um corpo de m agistrados. Pretendem os, a seguir, abordar u m a discussão ligeiram ente m ais

precisa a respeito do E stad o Integral.

O E s ta d o I n te g r a l

N o início da década de 1930, no jo rn a l A Razão, P lín io Salgado perguntava a seus

leitores: “P ara onde vam os?” . E prossegue: “P ara um a república dem ocrática parlam entar? P ara

um regim e republicano presidencialista? P ara o fascism o, para o com unism o?” (O L IV E IR A ,

2009, p. 124). Tal pergunta baseava-se, de um lado, pela indecisão ideológica do G overno

P rovisório de V argas; e do outro, pelo fato do autor idealizar as b ases de um novo m odelo

político através das páginas do p eriódico em questão. P ara ele, a luta entre m aterialism o e

espiritualism o, representada pela oposição entre com unism o e regim es nacionalistas, seria

v encida não por dem ocracias, m as através de regim es de ditaduras, u m a vez que o m undo

m oderno não adm itiria situações interm ediárias (O L IV E IR A , 2009).

À vista disso, desde antes da fundação do integralism o, Salgado refletia sobre a

n ecessidade de dar ao povo b rasileiro um ideal que o conduzisse a u m a finalidade histórica.

P ara tanto, dedicou-se ao estudo do fascism o, chegando a afirm ar que “ [...] não é exatam ente

esse regim e que precisam os aí, m as é coisa sem elhante” (T R IN D A D E , 1979, p. 75). O u seja,

em sua visão, o integralism o propunha a defesa da nacionalidade, a disciplina, a ordem , além

de u m a organização corporativa e hierárquica dos b rasileiros em um E stado Integral, com o

fo rm a de assegurar a prosperidade e um retorno a um estado de espiritualidade que iniciaria

u m a grande civilização integralista, com repercussões m undiais (B E R T O N H A , 2018).

N esse sentido, para a instituição do E stado Integral, vários inim igos deveriam ser

com batidos, dentre eles a dem ocracia burguesa, o com unism o, e o capitalism o (cuja intenção

era apenas reform ar). A avaliação de P línio era de que o integralism o colocaria o país na

m odernidade representada pelo fascism o, especialm ente em sua versão italiana, e chegaria ao

p o d er através de m étodos de um m ovim ento ou partido fascista. E ntão, a perspectiva m ais

totalitária, de m obilização popular, por ele defendida, foi u m a das m arcas centrais que im prim iu

à A IB (B E R T O N H A , 2018).

N o ta-se que desde sua fundação, a AIB concentrou-se em estabelecer estratégias para

conquistar o E stado, sozinha ou associada a outras forças. C om o m encionado previam ente após

o C ongresso de 1934, a p ercepção integralista era de que suas únicas chances de atingir o poder

seriam pela via eleitoral ou po r um golpe. A p artir de 1935, a incapacidade de u tilizar a força

557
estava clara e ressaltar o próprio pacifism o era essencial para a sobrevivência do recém

proclam ado partido (B E R T O N H A , 2014). P ara B ertonha, é evidente que:

[...] Plínio se convenceu, no período entre 1934 e 1936, que a única alternativa de
poder para a Ação Integralista era se adaptar ao contexto vigente e, com a Intentona
Comunista dando, ao governo federal, poderes imensos de caráter repressivo que
poderiam se voltar contra ele, a opção insurrecional podia até continuar presente na
agenda, mas não era mais a realmente viável. É nesse momento, aliás, que ele
começou a ressaltar, em seus escritos, como a luta integralista era de ideias e que elas
não podiam ser paradas pelo terror ou pela força; que a sua luta era para renovar uma
nação e uma civilização e não para fins pequenos, como chegar ao governo
(BERTONHA, 2018, p. 197).

N a tiragem subsequente aos dias em que ocorreram o C ongresso de Petrópolis, o jo rn al

A Offensiva veiculou, em sua terceira página, um interessante com entário de G ustavo B arroso
acerca do evento: “ O C ongresso de P etropolis m ostrou que o E stad o Integral está form ado nas

consciências brasileiras. F alta-lhe agora som ente a projecção objetiva na realidade”

(B A R R O SO , 1935, p. 3).

É possível que tal afirm ação constitua-se enquanto u m a ousadia, devido à sua larga

projeção. N o entanto, se aplicam os a um a dim ensão m ais lim itada - aos âm bitos da AIB,

propriam ente dita - , o pensam ento de B arroso possui validade. T rindade (1979) evidenciou que

em um m ovim ento fascista não se pode dissociar a ideologia e organização, u m a vez que há

u m a explícita relação entre a estrutura desta e o conteúdo da outra. D essa form a, as organizações

políticas autoritárias se estruturam hierarquicam ente com o objetivo de enquadrar, de form a

eficaz, seus m ilitantes. A organização integralista, não obstante, supera a função m eram ente

instrum ental: para além de u m a estrutura rígida e vertical, sob o controle de organism os de

enquadram ento e socialização ideológica, a A IB introduziu u m a nova dim ensão capaz de

tran sfo rm ar a instituição em um a p ré-figura do E stado Integral.

C onform e anteriorm ente m encionado, a b u ro cracia e o totalitarism o são aspectos

indissociáveis na organização integralista. O utrossim , tal organização desem penhou um a

tríplice função: fornecia ao C hefe N acional m eios para dirigir o m ovim ento; constituiu-se com o

in strum ento de socialização político-ideológica dos m ilitantes e ainda realizou um a experiência

pré-estatal ao nível institucional (T R IN D A D E , 1979).

N ovam ente, enfatiza-se que tanto o rem anejam ento ocasionado pelo C ongresso de

P etrópolis da estrutura estabelecida em V itória no ano anterior, quanto a incorporação de novos

órgãos de cooperação com o C hefe N acional “perm ite caracterizar a evolução do integralism o

para u m a form a de organização pré-estatal” (T R IN D A D E , 2016, p. 82-83).

558
C o n s id e ra ç õ e s fin ais

T endo com o foco principal analisar a p erspectiva do I e II C ongresso N acional

Integralista em periódicos integralistas e pela grande im prensa, este trabalho teve com o objetivo

breves reconstituições dos eventos nas cidades de V itória (ES) e P etrópolis (RJ). B uscou-se

elucidar a ordem dos acontecim entos e seus principais desdobram entos nos âm bitos interno e

externo do m ovim ento integralista. E sta abordagem ju stifica -se porque entendem os que, apesar

dos estudos sobre o integralism o possuírem u m a am pla produção bibliográfica, seus dois

prim eiros congressos nacionais não são suficientem ente explorados pelo viés histórico.

E sses eventos, para além de um a “ dem onstração do grande sentido do integralism o” ,

constituíam um m om ento ím par para os cam isas-verdes por serem ocasião de definição de

estatutos, da estratégia para tom ada do poder e da form ação do E stado Integral. Isto é, tratavam -

se de u m a dem onstração da sua base bu ro crática-h ierárq u ica e em seus dois C ongressos iniciais,

a A IB foi (re)estruturada.

É possível verificar que o sistem a de organização burocrático -to talitário não foi um

produto de seu crescim ento, m as sim um form ato pensado desde suas origens e instaurado

internam ente com o um a das im plicações do C ongresso de V itória. O C ongresso de P etrópolis,

po r sua vez, m arcou a transição para partido político, com um protótipo de sistem a pré-E statal.

E m am bos os eventos instituíram -se novas posturas com relação à to m ad a do poder.

A p erspectiva insurrecional, presente até m eados de 1934, foi abandonada devido às

forças lim itadas e ao entendim ento de que q uaisquer tentativas de golpe, por conta própria,

seriam inúteis. À vista disso, participaram do criticado sufrágio universal, com fins

essencialm ente táticos. E nquanto partido, u m a postura m ais incisiva foi adotada no tocante ao

processo eleitoral, visando, inclusive, à disputa presidencial prevista para o ano de 1938.

P o r fim , considerou-se im portante destacar as questões centrais discutidas nos

C ongressos, no intuito de refletir sobre a estratégia para atingir o poder, e o líder que g uiaria os

cam isas-verdes para tal fim . C aso Severino Som bra tivesse vencido, a A IB p o ssivelm ente teria

traço s proletários e sindicais. N o que tange a G ustavo B arroso, a m ilícia poderia te r sido

reforçada (B E R T O N H A , 2018). T odavia, P lín io Salgado e sua perspectiva de “ colaboração”

venceram , iniciando um novo cenário para a atuação do integralism o, abandonando a negação

das vias dem ocráticas, tô n ica do m ovim ento até o C ongresso de V itória e ratificada em

P etrópolis. À luz do exposto, foi possível id en tificar que tal escolha evidencia a necessidade de

sobrevivência dos cam isas-verdes a p artir de um novo cenário histórico.

559
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561
MEMES NO ENSINO DE HISTÓRIA:
UMA EXPERIÊNCIA ENTRE PRÁTICAS E SABERES

M E L IN A L IM A PIN O T T I258

In tr o d u ç ã o :

N u m a sociedade com m udanças significativas, o ensino de H istória tam bém foi

atravessado pelas transform ações, principalm ente no que tange as questões dialéticas entre

presente e passado. Pois, houve um m ovim ento no olhar historiográfico, que passou a enxergar

os tem as com o problem áticas. E, dessa m aneira, aos fatos históricos acrescentam os os

questionam entos. À luz dessa transform ação, a prática de ensino em H istória, tem com o

objetivo principal, p roporcionar ao aluno a participação na construção dos saberes e fazeres em

sala de aula, reconhecendo-se com o sujeito histórico.

D entro da dinâm ica social atual, tornou-se um desafio para nós professores de H istória,

p rom over o interesse pelo estudo do passado, pois os alunos estão preocupados com o presente,

e po r m eio da internet têm acessos às inform ações de um a form a m uito sim ples e rápida. A ssim ,

é com um que durante as aulas de H istória, em bebidos pelo “ agora” , tragam à tona, perguntas

n ad a inocentes e que não podem passar despercebidas.

“Um primeiro desafio para quem ensina História parece ser a explicitação da razão de
ser da disciplina, buscando atender os anseios de jovens que ardilosamente fazem
perguntas aparentemente inocentes, como “Por que estudar História: Por que o
passado, se o importante é o presente? ” (BITTENCOURT, 1998, p. 11).

D e tal m odo, o desafio na prática de ensino de H istória, parte da seguinte questão: C om o

pro p iciar um conhecim ento que faça sentido para o aluno ao estudar o p assado? A s pesquisas

acerca do ensino de H istória têm respondido esses questionam entos lançando cam inhos, como:

é preciso possibilitar u m a percepção histórica que dê base para que o aluno, ao enten der o

m ovim ento histórico, tam bém possa se perceber com o sujeito.

A H istória é um a form a de estruturar o tem po ao estudar o que nele perpetua ou não. É

um processo, com rupturas, continuidades e atravessam entos em diferentes tem poralidades,

m antendo u m a relação ativa com o passado. “ A voz do passado, captado ao vivo” . (FE B V R E ,

258c Mestra em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal da Grande
Dourados, na Linha de Pesquisa: Políticas, Instituições e Representações.
562
1989, p. 26). Portanto, estudar H istória, não é o m esm o que estudar o passado, e sim estudar

com o é que a sociedade atual se constituiu.

A o b u sc ar com preender o lugar que o passado ocupa num a sociedade, Le G o ff (1992),

p ercebe que a m entalidade histó rica de cada época é quem define a com preensão da história,

sendo nesse sentido, o passado, um elem ento que não é estático, m as que pode ser interpretado

com diferentes olhares, à luz do presente.

O cam inho é desafiador, e n essa perspectiva, busquei trilh ar com o professora de

H istória, num a escola do estado de M ato G rosso do Sul. O objetivo da m in h a p rática foi

evidenciar que ideias e práticas do passado form am nosso presente. E, naquele m om ento, a

m etodologia foi para além de um a aula expositiva que culm inasse na análise de docum entos

históricos ou objetos de m em ória. U m a vez que, eu busquei m e aproxim ar de aspectos do

cotidiano dos alunos.

A o observá-los, pude p erceb er que o uso do celular era constante e, m ergulhados em

conteúdos digitais navegavam nas redes sociais e produziam m em es259 com o expressão de suas

vivências. N esse sentido, ao dialogar com as suas práticas, encontrei nas T ecnologias D igitais

de Inform ação e C om unicação (T D IC ) instrum entos facilitadores do processo de en sin o -

aprendizagem , sobretudo po r fazerem parte do universo dos jovens. D essa form a, no ensino de

H istória, os alunos foram orientados a criarem m em es que denunciassem a desigualdade étnica,

social, de classe e de gênero no B rasil. A final, a H istória deve se interessar pela história dos

m ais variados sujeitos, entendidos na sociedade com o um todo, de m odo a p ro b lem atizar as

histórias e b u scar suas origens, visto que “ se não há problem as, não há histórias” (FEB V R E,

1989, p.31).

C o n te x to d a p r á tic a :

A p rática de ensino em H istória, relatada nesse artigo aconteceu em 2017, quando atuei

com o professora de H istória na E sco la E stadual P rofessora N a ir P alácio de Souza, na cidade de

N o v a A ndradina-M S, localizada no sudeste do estado. E ram cinco turm as do 2° A no do E nsino

M édio, form adas po r cerca de 28 a 32 alunos. V ale ressaltar que a instituição é reconhecida na

região por seu desem penho escolar avaliado nos índices do Id eb ,260 aspecto que atrai um

259 São formas de linguagem que consiste numa imagem transmitida para viralizar na internet, geralmente vem
complementada com texto, compartilhando comentários pontuais sobre símbolos culturais, ideias sociais ou
eventos atuais.
260 Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, criado em 2007, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep), formulado para medir a qualidade do aprendizado nacional e estabelecer
563
contingente de alunos oriundos dos m ais diversos bairros da cidade e da área rural,

corroborando na form ação de um grupo esco lar diversos quanto a questão social e econôm ica.

Seguindo orientação do P rojeto P o lítico P edagógico (PPP) da instituição, o ensino de

H istória objetiva ser trabalhado com com prom isso social, no intuito de form ar cidadãos com o

pensam ento crítico, dar base para os alunos fazerem com excelência as provas externas, com o

o Ideb, o E nem e vestibulares, e p rom over diálogos com o m ercado de trabalho. O que podem os

considerar que são objetivos com uns quando o assunto é pensar o lugar da disciplina H istó ria261

no ensino. T am bém conform e o PPP, ficou estabelecido com o atribuição dos professores a

elaboração do planejam ento de aula, bem com o enviá-los à coordenação, num período

quinzenal ou m ensal, usando com o base o R eferencial C u rricu lar do E stado de M ato G rosso do

Sul e o calendário escolar. O cum prim ento dessa norm a conectava a coordenação e os docentes,

ten d o seu uso um caráter burocrático, e não intervia na autonom ia do professor para pensar suas

p ráticas e saberes.

C ontudo, enquanto professora e pesquisadora do ensino de H istória, tenho algum as

inquietações quanto aos currículos262 de H istória, principalm ente quanto a suas elaborações,

que segundo A bud (2009), não considera a realidade dos sujeitos que pisam o chão da escola

po r serem “ produzidos por órgãos oficiais, que os deixam m arcados com suas tintas, po r m ais

que os docum entos pretendam representar o conjunto dos professores e os ‘interesses dos

a lu n o s’. (A B U D , 2009, p.29). N esse sentido, entendendo o currículo com o instrum ento de

p o d er do estado, busquei um a prática que o utilizasse com o ponto de partida, e não com o base

na form ação dos alunos.

O utra problem ática que m erece destaque é a disposição dos conteúdos, que sugerem

u m a história linear em constante evolução cronológica e ininterrupta, e que fora da ordem

estabelecida não pode ser com preendida, tendo o continente europeu com o palco principal dos

grandes acontecim entos históricos. E ssa divisão quadripartite da H istória, não é u m a edição

especial do currículo de M ato G rosso do Sul, pois segundo G uim arães (2012), se faz presente

desde a inclusão do ensino de H istó ria na escola fundam ental brasileira do século X IX , perpassa

metas para melhoria do ensino. O lugar da escola na avaliação do Ideb pode ser acessado no blog da escola.
Disponível em < http://blogescolanairpalacio.blogspot.com/> Acesso em 11 de outubro de 2022.

261 Para saber mais ler GUIMARÃES, Selva. Caminhos da História ensinada. 13° ed. Campinas/SP : Papirus, 2012.
262 A crítica ao Referencial Curricular do Estado de Mato Grosso do Sul para o Ensino Fundamental e Médio pode
ser lido no artigo “O lugar das temáticas africanas e afro-brasileiras no Referencial Curricular do Estado de Mato
Grosso do Sul: um olhar voltado para a disciplina História. Página 695. Disponível em:
<https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/113/o/Anais_I_F%C3%B3rum_25.11.pdf?1480531588>
Acesso em 11 de outubro de 2022.

564
as pesquisas históricas e é vista na disposição dos conteúdos em currículos de cursos superiores.

Sobre esses fatos G uim arães traz à to n a as seguintes reflexões:

Desse modo, a história do Brasil, durante muitos anos, foi tratada nos programas de
ensino como pequeno apêndice da história universal. À medida que o país se
europeiza, deixa de ser “bárbaro”, “atrasado” e começa a se organizar “à imagem da
Europa”, ele começa a “entrar na história” e consequentemente passa a ser parte mais
significativa dos programas de ensino. (GUIMARÃES, 2012, p. 53).

D essa fo rm a, m ais do que m e aproxim ar das vivências dos alunos, o objetivo da m inha

prática buscou relacionar o conteúdo da E uropa com o B rasil, para que o aluno apropriasse o

ensino de H istória com o u m a lógica que explica o presente, e que ele se visse tão sujeito dessa

H istória a ponto de fazer sua crítica e produzir conhecim ento.

M e m e s no e n sin o de H is tó r ia d e n u n c ia m a d e s ig u a ld a d e n o B ra s il

É na experiência em sala de aula que m aterializam os os estudos enquanto acadêm icos e

pesquisadores de ensino H istória, e claro que, nem sem pre isso se dá de m aneira com o

idealizam os, pois, ao sairm os da zona teó rica para a prática, nela encontram os: salas lotadas,

falta de m aterial, alunos desestim ulados ou agitados, norm as e diretrizes e vários tantos

elem entos que atravessam o nosso plano de aula. É um cam po de disputa entre o ideal e o real,

e nesse sentido, é im portante o professor estar atento ao seu contexto escolar e o que nele é

possível.

A o citar R üsen (2011), utilizo a teo ria da D id ática da H istória, para fundam entar que: o

conhecim ento do aluno é em pírico, ou seja, to d a a sociedade produz algo sobre a história,

portanto, o aluno é preenchido por esse conteúdo que form a a sua m em ória. A ssim , a função da

H istória de co m preender o presente a p artir do passado, não é sim ples, pois é preciso, direcionar

essa cultura histórica para um conhecim ento razoável sobre o passado. O que torna o professor

de H istória um com batente do passado que, entre outras atribuições, precisa estar conectado

com o contexto do aluno. D esse m odo, a intenção é destacar quais os aspectos do período

h istórico estudado têm relação com o presente. A pergunta é: quais as raízes do passado que

ainda crescem nos dias atuais?

C om o objetivo de responder a essa questão e a partir de um m em e divulgado na rede

social do Facebook, na página “ Q uilom bo In telectu al263” , tive a ideia de u sar a cultura digital

263 Disponível em: < https://www.facebook.com/quilombointelectual/> Acesso: 11 de outubro de 2022.


565
para trabalhar conteúdos de H istória. N aq u ele post, percebi que o m em e não precisava ter

som ente um caráter engraçado, m as que po d eria servir com o um instrum ento de ensino-

aprendizagem , po r conter m ensagens curtas e rápidas, associadas à im agem . A lém disso, era

um m eio de linguagem a qual os alunos já haviam se apropriado.

Nessa conjuntura de amplo fluxo de informações, o meme passa a ser um canal que
pode trazer a informação codificada para contextos escolares sobre um tema
específico e com melhor interpretação por parte dos alunos. (Ibagón, Echeverry,
Granados. 2021, p. 141).

N a ocasião, o conteúdo elencado pelo R eferencial C urricular nas tu rm as do 2° A no do

E nsino M édio era a R evolução F rancesa historicam ente lem brada pelo lem a “ Igualdade,

F raternidade e L iberdade” , e ocupava um significativo espaço no 2°B im estre. A pós concluir o

ensino do tem a europeu com aulas expositivas, vídeos, textos e afins, preparei u m a aula

expositiva para relacionar docum entos oficiais que tem seus preceitos b asead o s na revolução.

U sei com o base a “D eclaração dos D ireitos do H om em e do C idadão” , de 1789 e a

“ C onstituição da R epública F ederativa do B rasil” , de 1988. D esse m odo, a R evolução Francesa

não é m ais exclusiva da F rança e o conteúdo passou a se conectar com a realidade do aluno.

C onsiderando a m agnitude dos docum entos, procurei estabelecer lim ites, com foco em

p ro b lem atizar os ideais de igualdade previstos em am bos os docum entos e, levantar aspectos

da realidade social que nos tornam desiguais. Q uanto a C onstituição Federal utilizei o “ T ítulo

II D o s D ireitos e G arantias F undam entais” :

Art. 5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]. (BRASIL, 1988, p.
15).

A inda que nos tex to s a igualdade seja defendia por lei, é válido destacar que o projeto

de R ep ú b lica264 foi feito e pensado pela elite brasileira, que não considerou as m ulheres, os

negros e os indígenas. E, a historiografia do século X IX corroborou com as estruturas de raça,

de classe e de gênero, em purrando esses grupos p ara a m argem da H istória. P ara A rroyo, os

m odelos organizacionais da sociedade m antêm um a estrutura, desde o período colonial, que nos

tornam desiguais e perpassam a fronteira do conhecim ento, da cultura, do trabalho e do poder,

pois “ inferiorizar os povos diferentes em etnia e raça foi um a estratégia para não reconhecer

sua igualdade de direitos” . (A R R O Y O , 2014, p. 126). N a crítica à sociedade de desiguais,

264 Ler “Brasil Mito Fundador e Sociedade Autoritária escrito por Marilena Chauí, 2000.

566
A rroyo aponta que certos elem entos presentes em leis e políticas com pensatórias, funcionam

com o ocultam ento das estruturas que nos tornam desiguais, porque diferentes.

Seguido dessa reflexão, os alunos foram orientados a produzirem m em es que

denunciassem a desigualdade social, considerando aspectos de gênero, de classe e de ra ç a no

B rasil. E, a dinâm ica se deu da seguinte m aneira: organizei os alunos em duplas e registrei na

lo u sa as orientações a serem seguidas para a realização da atividade.

A tiv id a d e de H is tó r ia

V ocês irão p roduzir m em es! M as, isso não será engraçado. P ois terão que
d enunciar a desigualdade social no B rasil quanto à classe, gênero e raça.
P ara tanto, será preciso:

✓ E sco lh er um tem a que revele a desigualdade social (educação,

m oradia, saúde, trabalho, etc);

✓ F azer u m a b u sca no G oogle po r pesquisas que evidencie essa

desigualdade em dados estatísticos;

✓ P esq u isar u m a im agem no G oogle Im agens que dem onstre essa

desigualdade;

✓ C riar u m a frase que inicie com “ Som os to d o s iguais, m as...” e

com pletá-la acrescentando os dados estatísticos;

✓ U n ir a frase à im agem ;

✓ C om partilhar em suas redes sociais;

✓ A atividade fará parte da ficha avaliativa do aluno.

A s atividades foram iniciadas nessa m esm a aula, podendo ser entregue na próxim a

sem ana. D urante a prática, os alunos m e procuraram para sanar suas dúvidas, m ostrar as

pesquisas encontradas, p ed ir palpites de com o term inar a frase e tam bém p ara possíveis

correções ortográficas. D esse m odo, po r m eio da nossa interação, pude perceber o

envolvim ento dos alunos quanto a atividade. M as, tam bém deixou evidente suas dificuldades

frente a u m a atividade de produção de conhecim ento. Pois, não havia a possibilidade de copiar

um parágrafo, não havia um a resposta certa no livro didático. E les foram convidados a pensar!

E, p ensar de form a objetiva e significativa, um pensam ento com propósito de crítica em basada.

U m a vez que, após colher d ados de um a pesquisa, u m a frase curta e objetiva deveria ser escrita.

E m consonância com esse m ovim ento, F erreira e A ndrade descrevem o percurso do uso das

TICD :

567
No mundo virtual, vive-se num outro tempo e num outro espaço. As relações que nele
se estabelecem modificam as características de seus participantes, assim como,
paralelamente, a atuação dos alunos e dos professores também se modifica. Os alunos,
a quem tradicionalmente cabia receber a informação e processá-la, veem-se, no
mundo virtual, diante do desafio da autoaprendizagem, da administração do tempo,
da autodisciplina, da comunicação mediada pelas tecnologias. (FERREIRA e
ANDRADE, 2021, p. 34).

C onsiderando que para com pletar a atividade era preciso fazer uso do aparelho celular

e acessar a internet, a p rática se to rnou possível diante de alguns fatores: a atividade foi feita

em dupla, todos os alunos possuíam celular, na falta de internet m óvel para alguns, eu pude

ro tear a m inha, e quanto ao aplicativo para m o n tar o m em e, com o alguns alunos já tinham m ais

prática com o uso, foram por vezes solicitados para digitalizar a atividade.

E assim , entre os saberes e fazeres no ensino de H istória, as diferenças que nos tornam

desiguais foram evidenciadas em im agens e frases, form uladas com base em pesquisas

quantitativas que problem atizam questões de gênero, classe e raça, seja pela violência sofrida

po r esses grupos ou quanto ao acesso à m oradia, à educação, à saúde e ao trabalho.

O que pode ser observado nos exem plos a seguir:

568
A o todo, foram criados 55 m em es, sendo que 15 abordaram tem as relacionados a

desigualdade de gênero, sobretudo ao que tange a v io lência contra a m u lh er e a desigualdade

salarial. Esse núm ero tem relação com o alto índice de m eninas nas tu rm as e seus interesses p o r

pautas fem inistas. E, tam b ém p o r ser a vio lên cia contra a m u lh er no tícia de grande repercussão

nacional, o que certam ente desperta o interesse p o r pesquisas e cam panhas que discutem o tem a.

C onsiderando que o ensino e aprendizagem não cam inham de m ãos dadas, é cabível

citar que alguns alunos n ão alcançaram êxito n a atividade, criando m em es sem as características

principais exigidas p e la atividade e com frases desconexas. E, observei que u m a resistência dos

alunos quanto a realização d a atividade esteve relacionada ao item de p o star o m em e em suas

redes sociais. T alv ez p o r estarem agarrados n a id eia do m em e com o u m a m ensagem engraçada

ou p o r não quererem d em onstrar em suas redes o interesse p o r tem as políticos e sociais.

569
V isib ilid a d e n a s m íd ia s sociais

C om o advento das redes sociais, a escola é u m a instituição que tam bém se faz notar

nesse universo digital. Portanto, fui orientada pela coordenação da escola a escrever um

pequeno texto para apresentação da prática em ensino de H istória. E assim , no dia 03 de ju lh o ,

com o título “P rofessora de H istória trab alh a a R evolução F rancesa através de m em e s265” o

trab alh o realizado nas turm as do 2° A no do E nsino M édio foi publicado no B log da escola. E,

o m aterial produzido pelos alunos foi escolhido po r m im e pela diretora adjunta para com por a

publicação, sendo um total de 19 m em es que denunciavam a desigualdade social, de raça e de

gênero.

O caráter inovador do uso de m em es no ensino de H istória cham ou atenção da Secretaria

de E stado de E ducação (SED ), que ao te r conhecim ento da publicação no blog da escola,

tam bém divulgou o trab alh o em sua página da internet, no dia 04 de ju lh o . Com o títu lo

“E studantes do ensino m édio de N o v a A ndradina criam “m em es” em aula de H istó ria 266” . O

tex to da m atéria era igual ao escrito no b log da escola, acrescido de um a frase introdutória

acerca da m etodologia vo ltad a para o uso de m ídias. E, apenas um m em e foi usado de exem plo,

com a tem ática educacional em evidência. O títu lo da m atéria tirou o foco do sujeito

‘p ro fesso ra’, que foi substituído po r ‘estudantes, o conteúdo não foi m encionado, apenas a

disciplina. E, considerando que a m atéria seria divulgada com um a outra am plitude, optou-se

po r ev idenciar o nom e do m unicípio.

A pós a divulgação no site da SED a jo rn a lista M arin a L opes entrou em contato com igo

v ia W hatsA pp com a intenção de fazer um a entrevista acerca da prática de ensino com o uso

dos m em es. E, no início de setem bro, com o títu lo “ Sucesso nas redes sociais, m em es tam bém

podem ensinar267” , a publicação no site do P orvir - Inovações em E ducação, contribuiu com a

repercussão do trabalho. N a ocasião, a m atéria trouxe u m a linguagem alternativa e intercalou

vários trabalhos da educação que envolveram o m em e, seja na avaliação de provas, na

m etodologia de trabalho ou em pesquisas. A lguns dos m em es produzidos pelos alunos

com poram a m atéria, ju n to com m inha narrativa acerca de com o cheguei nessa ideia e qual a

265 Disponível em: < http://blogescolanairpalacio.blogspot.com/2017/07/revolucao-francesa.html> Acesso: 14 de


outubro de 2022.
266 Disponível em: < https://www.sed.ms.gov.br/estudantes-do-ensino-medio-de-nova-andradina-criam-memes-
em-aula-de-historia/> Acesso: 14 de outubro de 2022.
267 Disponível em: < https://porvir.org/sucesso-nas-redes-sociais-memes-tambem-podem-ensinar/> Acesso: 14 de
novembro de 2022.
570
recepção dos alunos quanto a atividade. E, n essa m esm a sem ana, a m atéria do P o rv ir foi

republicada no portal do C entro de Inovação para E ducação B rasileira (C IEB ) 268.

M uitos outros trabalhos que utilizaram m em es em suas pesquisas estão no acervo do

M useu do M em e269 que tem um duplo objetivo: preservar a m em ória e refletir acerca do lugar

do m em e na cultura contem porânea. E m setem bro de 2021, ju n to ao representante do m useu,

pude particip ar do C anal F utura na segunda tem porada da série “ Idade M íd ia” que apresentou

novos form atos de aprendizagem , organizada em 13 episódios, sendo m inha participação no

“E pisódio 5: D o subm undo ao estrelato. P arentes das charges e quadrinhos, os m em es são um a

unid ad e de com unicação m ínim a, rápida e conectada à juventude. Será que ocupam um papel

de respeito no m undo da educação ou serão sem pre m ald ito s?270”

O program a contou com a apresentação do jo rn a lista A lexandre Sayad e estudantes de

v ariadas regiões do B rasil. C om o o período ainda era pandêm ico apenas um participante estava

presente no palco e a inserção dos dem ais se deu de form a rem ota. R ecebi a proposta de

participação v ia e-m ail, po r onde, a p rodutora do program a, apresentou a pauta do episódio

acerca da utilização de m em es por professores em sala de aula e explicou que ao pesquisar

sobre o assunto chegou até o m eu contato.

A o aceitar o convite, po r m eio de orientações da produtora, gravei um vídeo com

duração de 1 m inuto em resposta a seguinte provocação: Q ual o poder dos m em es em nos ajudar

a derrubar estereótipos?

E m contribuição, respondi que, o m em e é u m a figura de linguagem bastante p opular na

atualidade, principalm ente por te r caráter dinâm ico para expressar um a m ensagem curta que

assim ila texto com im agem . Portanto, o seu poder de derrubar estereótipos está ju stam en te na

sua característica e com o a ju v en tu d e se apropriou dessa linguagem com o m odo de expressão.

Sendo nesse sentido, um agenciador em defesa da diversidade social, ao expressar de m aneira

sim ples e rápida, as singularidades dos sujeitos. A lém de ser um a ferram enta que aproxim a o

ensino e a aprendizagem dos alunos, ele tam bém é capaz de fazer v eicu lar os saberes e fazeres

produzidos em sala de aula nas m ídias sociais.

268 Disponível em: <https://cieb.net.br/sucesso-nas-redes-sociais-memes-tambem-podem-ensinar/> Acesso: 14 de


outubro de 2022.
269 Disponível em: <https://museudememes.com.br/referencias> Acesso: 14 de outubro de 2022.
270 Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/9936573/> Acesso: 14 de outubro de 2022.
571
C o n c lu são :

A traj etória do trabalho com m em es que denunciam a desigualdade social teve diferentes

abordagens. A p rincípio a divulgação foi feita a p artir do m eu olhar de professora, portanto,

esteve vo ltad a para a prática entre saberes e fazeres de sujeitos que lidam com o ensino de

H istória. M e preocupei em evidenciar as trilhas do conhecim ento histórico com o apropriação

de u m a crítica a realidade social na qual estam os inseridos. D epois, o trabalho tom ou

proporções nacionais pelo viés educacional com ênfase no uso e nas apropriações dos m em es.

O que fica evidente a observar os títulos das m atérias quando os sujeitos ficam subentendidos

e perdem espaços para o objeto.

E xcelentes trabalhos são construídos e produzidos no chão da escola e nela ficam

restritos. A lcançam seus objetivos de ensino e aprendizagem , porém não ultrapassam as

b arreiras dos m uros escolares. A credito que a notória divulgação desse trabalho com os m em es

se deu em grande m edida, não pela sua característica de transposição didática, m as por se tratar

de u m a figura de linguagem u tilizada nas m ídias digitais. E, ressalvo que a im portância da

divulgação de trabalhos que apresentam novas m etodologias de ensino e aprendizado, estão sob

dois aspectos principais: p rim eiro porque quebram o paradigm a de que ap re n d e r H istória é

m onótono e exige apenas a prática da decoreba; segundo porque encoraja os docentes a criarem

novos m étodos de ensino e aprendizagem , potencializando diálogos entre as T IC D e a

educação, a fim de que seu u so seja um a form a de construção de conhecim ento.

E ssa m etodologia possibilitou a conexão do ensino de H istória com u m a prática que já

fazia parte da vivência dos alunos. O u so das m ídias na m etodologia foi utilizado com o

estratégia para aproxim ar os alunos com o ensino de H istória, e ev id en ciar que às problem áticas

sociais devem ser considerados os processos históricos. A ssim , o ensino de H istória atua na

relação entre passado e presente, e a partir das problem atizações dos processos históricos,

p o ssibilita ao aluno a com preensão das continuidades e das rupturas históricas.

R e fe rê n c ia B ib lio g rá fic a :

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573
"MAIS SOFFREU CHRISTO”: O CASO DE AGRESSÃO CONTRA O
PADRE JUSTINO JOSÉ DE SANT’ANNA NA FREGUESIA DE
CANAVIEIRAS, BAHIA, PELO JORNAL “A RAZÃO” (1912)

O S L A N C O S T A R IB E IR O 271

O P a d r e J u s tin o e a F re g u e s ia de S ão B o a v e n tu ra do P o x im

O P adre Justino José de Sant’A nna (1878-1958), segundo a b iografia no site da

A rquidiocese de Juiz de Fora, M G 272, nasceu no distrito de A ram ary, à época, pertencente ao

m unicípio de A lagoinhas, no leste da B ahia, no dia 12 de dezem bro de 1878. Ingressou no

Sem inário C entral da B ahia, em 1898, e foi ordenado sacerdote em 1904, pelo arcebispo prim az

D . Jerônym o T om é da Silva (189 4 -1 9 2 4 ). C om o m em bro do clero baiano, foi vigário de três

freguesias entre 1904-1912, na extensa A rquidiocese de São S alvador da B ahia, até então, a

ú n ica circunscrição eclesiástica católica em todo estado. D estacan d o -se em m eio aos outros

padres do clero da B ahia, pelo seu perfil apostólico de em penho de recuperação ou de

construção de novos tem plos, o arcebispo D. Jerônym o T om é da Silva, o nom eou vigário da

F reguesia de São B oaventura do P oxim , no m unicípio de C anavieiras, sul da B ahia, freguesia

antiga, criada em 1718, e que apresentava um grande p roblem a de deterioração e ab andono de

sua igreja m atriz, desde a época do Im pério. E m C anavieiras, ele tom ou posse em fevereiro de

1912, em u m a época de m uita conturbação entre a elite política local e a elite eclesiástica.

N a F reguesia de C anavieiras, ele fundou o jo rn a l “ A V erdade” , no intuito de através do

apostolado da im prensa, ferram enta pastoral m uito com um à época em preendida pelos padres,

ten ta r convencer os fiéis católicos a se despertarem para a causa da construção de nova igreja

m atriz de São B oaventura, que j á tin h a terreno dem arcado para o início das obras, cedido pelo

p o d er executivo m unicipal, e sacram entado em doação definitiva, por resolução aprovada por

u n anim idade pela C âm ara M unicipal, em ju lh o de 1912, sancionada pelo intendente João de

D eus R am os (1912-1915).

D esse jo rn a l paroquial, não encontram os nenhum exem plar, m as, os jo rn a is que

circulavam no m unicípio de C anavieiras, em apoio à causa da nova m atriz e ao v ig ário Padre

271 Doutorando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Goiás (PPGH/UFG),


vinculado à linha II - Cultura, poder e identidades. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás
(Fapeg). E-mail: oslan@hotmail.com.br. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7937879658171776. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-1742-9669. Orientador: Prof° Dr. Jiane Fernando Langaro (PPGH/UFG), currículo
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9918372985460845.
272 In: https://arquidioceseiuizdefora.org.br/dom-iustino-iose-de-santana-1924-1958/. acessado em 30 out. 2022.
574
Justino, republicavam os artigos de apelo do vigário, p ara dar m aior circularidade no m u n icíp io

e região.

A Igreja católica, nesses idos, buscava se firm ar na sociedade brasileira no pós-

R epública, com o m ais u m a elite de poder. E m C anavieiras, essa conturbação era sim bolizada

na situação precária de conservação da antiga m atriz de S ão B oaventura, a construção m ais

antiga daquela urbe até então, e que com a chegada do P adre Justino, finalm ente a construção

sairia do papel. P adre Justino e a F reguesia de São B oaventura do P oxim de C anavieiras,

passaram a fazer parte da nova D iocese de Ilhéus criada p elo P ap a São P io X em 1913, instalada

em 1915, com a posse do prim eiro bispo diocesano, D. M anoel A ntônio de P aiv a (1915-1927).

N a figura 1, foto de encerram ento do retiro espiritual do novo clero de Ilhéus em 1916,

sacram entando e conferindo a elite p o lítica da região cacaueira do sul da B ahia, um contato

m ais próxim o com um bisp o da Igreja, o que era visto com m uita predileção pela elite política

e econôm ica locais, que contem plavam na realidade de ser u m a sede diocesana, o coroam ento

da força e do prestígio político dos coronéis de Ilhéus e região.

Figura 1 Padre Justino José de Sant’Anna, em pé a esquerda da imagem do Sagrado Coração de Jesus, em
fotografia de encerramento do retiro do clero diocesano de Ilhéus, Bahia, em 1916.

Fonte: Arquivo da Cuna Diocesana de Ilhéus, Bahia.

575
U m p o u c o s o b re o jo r n a l “ A R a z ã o ” (1908-1912)

“A R azão ” surgiu em 1908 e concorria com o “M o n ito r do Sul” em C anavieiras. Se

dizia propriedade de “u m a empreza” , tendo po r gerente João E spinheira da C osta, tendo por

lem a “Orgam político e noticioso” . E m 1909 denuncia abertam ente o negacionism o do poder

público m unicipal, que afirm ava a erradicação da epidem ia de varío la em C anavieiras, quando

o jo rn a l denunciou a m orte de m ais pessoas da m esm a doença, e ainda am eaçou provar diante

das autoridades o que havia publicado. E m 1912, ú ltim o exem plar encontrado, j á assum ia

tam bém , com o lem a “Orgam do P artido R ep u b lican o ” . T udo indica que políticos do partido

D em o crata R epublicano, do partido R epublicano C onservador, e finalm ente partido

R epublicano, são o m esm o grupo partidário, m udando som ente de nom e, consequentem ente,

fundando jo rn a is com o “ O Seabrista” (1909-1910), transform ado em “A D em o cracia” (1 9 1 0 ­

1911), depois, com prando e refundando o jo rn a l “ A R azão ” , a p artir de 1912, ano da sua ú ltim a

edição encontrada.

A s n o tícias de ‘A R a z ã o ’ viam na m esm a linha editorial do jo rn a l “M o n ito r do Sul” ,

m as, devem os a ele a notícia m ais im portante das ações pastorais dos padres para

m ovim entarem os fiéis em prol da construção da nova m atriz que iria se iniciar em 1912. T rata-

se da m ítica noite de lua cheia, am plam ente relem brado pelos antigos m oradores, do descarrego

de pedras pela população, das canoas atracadas no cais do porto, para se levar ao terreno da

nova m atriz onde se iria dar início à construção de seu alicerce com as pedras doadas pelos

m oradores das m argens do R io Pardo, com o contribuição e adesão à cam panha liderada pela

Igreja, na finalidade de se construir a nova igreja m atriz de S ão B oaventura.

E m sentim ento de festa, descarregaram e carregaram as pedras para o terreno que viria

ser doado efetivam ente p elo m unicípio som ente no ano seguinte, 1912, po r b o a parte da

p o pulação envolvendo a participação de hom ens, m ulheres e crianças, de várias classes sociais,

segundo a fonte hem erográfica, seguido de ja n ta r e m uitos gritos de vivas.

A Nova Matriz273
Para as obras da nova matriz que terão começo em o mez de Setembro do corrente
anno chegaram a esta cidade na tarde de quarta feira 19, cinco canoas com pedras,
obtidas no Rio Pardo, pelo revmo. missionário, d. Bertino. Aqui chegadas as canoas,
foram o revmo. d. Bertino e os canoeiros recebidos pela Commissão das obras do
novo templo catholico, aos quaes foram offerecido magnífico jantar, às expensas do
commercio desta cidade e da mencionada Commissão, durante o qual foram erguidos
vivas a d. Bertino, aos canoeiros, aos moradores do rio Pardo e de Cannavieiras ao
nosso commercio e à Comissão das obras do novo templo. Às 5 horas da tarde, foram
descarregadas e carregadas as pedras por grande multidão de pessôas, em cujo meio
vimos distinctas e respeitáveis senhoras, senhoritas, meninos e muitos cavalheiros do

273 Na transcrição e citação das fontes foram mantidos a ortografia da época.


576
nosso escol social. Apresentarem-se, também, encorporados 12 carroceiros com os
respectivos vehiculos enfeitados e que muito ajudaram na conducção das pedras.
Segundo nos dizem, outras canoas irão aqui chegando até Agosto, offerecidas pelos
habitantes do Rio Pardo. (A Razão, ano IV, n° 157, 28 de janeiro de 1911, p. 1)

Foi tam bém pelo “ A R azão ” que em 1911, foi fundada em C anavieiras a Sociedade de

São V icente de Paulo, que na cidade adotaram o nom e de Sociedade São B oaventura, com a

seguinte diretoria eleita: E ngenheiro João M arques de Souza - P residente; P harm acêutico

C lodoaldo C arvalho de B ritto - V ice-presidente; B acharel U lysses M . M enezes - V ice-

presidente; D eoclides G arcia - Secretário; e A stolpho F rança - T esoureiro. E ssa Sociedade São

B o aventura supostam ente, foi u m a associação m asculina religiosa criada para com eçar a

angariar fundos para a nova m atriz, pois a m aioria dos nom es citados eram dos m esm os que

com puseram a com issão criada por D. Jeronym o T om é da Silva, em sua segunda v isita pastoral,

em 1908.

A o questionar o jo rn al “ A R azão” com o fonte nos perguntam os, quais interesses

m unicipais defendiam ? Q uais interesses tinham em n oticiar o escândalo de agressão contra o

P adre Justino e estado calam itoso da velh a m atriz? Seu redator ou proprietário eram católicos

com prom etidos com o se supõe através da narrativa jo rn a lístic a publicada? Luca (2015), nos

direciona conceitualm ente nessa indagação do cuidado do historiador que usa o trabalho da

im prensa com o fonte docum ental, citando o historiador Jean G lénisson,

que comentou os procedimentos críticos demandados pelos jornais, ponderando que


estes sempre se revestiam de “complexidade desanimadora. Sempre será difícil
sabermos que influências ocultas exerciam-se num momento dado sobre um órgão de
informação, qual o papel desempenhado, por exemplo, pela distribuição da
publicidade, qual a pressão exercida pelo governo”. (LUCA, 2015, p. 116).

A autora diz que G lénisson endossou as palavras de outro h isto riad o r P ierre R enouvin,

que insistia na importância crucial de se inquirir a respeito das fontes de informação


de uma dada publicação, sua tiragem, área de difusão, relações com instituições
políticas, grupos econômicos e financeiros, aspectos que continuavam negligenciados
seja pelos historiadores que recorriam à imprensa, seja pelos que se dedicavam a
escrever sua História. (LUCA, 2015, p. 116).

D evem os nos ater a criticidade às fontes h em erográficas da nossa pesquisa, para não

nos alienarm os a elas com o palavra final, verdade irrepreensível sobre u m a problem ática que

alm ejam os fazer a H istória. D evem os sem pre investigar. Os jo rn a is de C anavieiras não são

diferentes dessa preocupação levantada por L uca (2015), pois, os periódicos pesquisados eram

chefiados sim , por partidos políticos, grupos econôm icos anônim os, e po r personalidades de

grande vulto social na elite cacaueira de C anavieiras. E m cada discurso publicado poderá existir

577
u m a m ensagem sublim inar, e não querem os passar desapercebidos do cunho dessas intenções,

das jo g ad a s políticas, em m eio ao processo de secularização da sociedade, e, que, de certa

m aneira, influenciaram diretam ente no deco rrer do processo construtivo de u m a nova igreja

m atriz, por u m a cidade regenerada, um a cidade bela e m oderna. N esse caso, devem os pensar

tam bém na com preensão do lugar de recepção, para entenderm os qual o perfil de quem

realm ente lia as notícias de “A R a z ã o ” .

Para compreender este lugar de recepção adequadamente, devemos pensar nos tipos de
leitores que têm acesso ao jornal - situando-os em sua condição social, econômica,
política, cultural - entendendo que o jornal também pode disputar com outros diferentes
faixas de público. O ‘alcance espacial’ - geográfico, mas também relativo aos espaços
de sociabilidade - também precisa ser indagado. Sobre o alcance propriamente dito,
será o território nacional? Um estado da federação? Talvez um município? Há alcance
internacional? Sobre os espaços de sociabilidade, em quais deles o periódico circula?
(BARROS, 2021, p. 416-417).

B arros (2021) nos indaga a questionarm os o outro lado da história, a partir de quem

consum ia o produto im presso publicado duas vezes po r sem ana em u m a p equena cidade do sul

da B ahia, de grande territó rio m unicipal, com seus distritos e vilarejos produzindo e vivendo da

produção cacaueira, de piaçava, coco, e outros itens de subsistência. P oliticam ente com andado

pelo grupo seleto de coronéis na m anutenção do seu curral eleitoral, e dos conchavos partidários

com Ilhéus, S alvador e R io de Jan eiro . U m a im prensa dom inada, m antida, e consum ida por

esses hom ens de p o d er em C anavieiras, m as, devem os nos aprofundar m ais na pesquisa sobre

essa h istória da leitura e dos leitores da im prensa local, pois, de 1903 a 1950, sabem os da

existência de pelo m enos treze em presas de jo rn a is que circularam na cidade e região.

O caso de a g re s s ã o c o n tr a o p a d r e no j o r n a l “ A R a z ã o ”

C om o foi apresentado no tópico acim a, o jo rn a l “A R azão” , se em penhava em abrir

espaço em seu editorial para dar voz à Igreja, que nesse período, buscava se im p o r com o um a

elite de poder na vida política dos m unicípios através das paróquias ali instaladas, reclam ando

o restauro de seu patrim ônio físico e espiritual tam bém . D ois m eses depois da posse do Padre

Justino, em plena Sem ana Santa, na época, cham ada de “ Sem ana M aior” , ocorreu o caso de

agressão física contra o padre Justino, nas celebrações litúrgicas da S exta-feira da P aixão, no

m ês de abril de 1912, e que provocou escândalo na cidade.

578
Segundo o jo rn a l “ A R azão ” 274, recolhida a procissão do Senhor M orto à antiga m atriz

na S exta-feira Santa de 1912, foi verificado dentro da igreja cheia de fiéis, um grupo de rapazes

“ nam oradores” que estavam fazendo parede a fim de coagir, senhoritas com as quais j á havia

um nam orico em consenso, às escondidas dos pais das m oças, obviam ente, foi apontado o nom e

de Jachonías B om binho entre os rapazes. E sse jo v em estava acom panhando sua nam orada na

igreja, enquanto havia grande núm ero de fiéis que se apertavam em filas no interior da nave,

para irem ven erar a im agem do Senhor M orto, que po r sinal, é um a bela obra de arte sacra ainda

existente no patrim ônio artístico da F reguesia de C anavieiras.

“A R azão ” relatou que o rapaz estava no recinto sagrado som ente po r causa da

nam orada, pois, se percebia que o rapaz estava aquém do ato de piedade cristã que ali acontecia,

segundo a fonte. N isto, Jachonías B om binho se deparou com o tabelião Joaquim R ibeiro, com

o qual trocou algum as palavras. A sequência do relato do jo rn a l, afirm a que o tabelião Joaquim

R ibeiro, pediu a Jachonías o lugar dele na fila - j á que ele estava na fila por estar - para que o

tab elião e sua fam ília fossem b e ija r os pés da im agem do Senhor M orto, em sinal de veneração

pela Sagrada P aix ão e M orte de N o sso Senhor Jesus Cristo. Jachonías se irritou com isso, e o

padre Justino interveio tentando acalm á-lo, pedindo com m uita educação, para que ele deixasse

as fam ílias se aproxim arem do esquife do Senhor M orto, e o levando, segundo a fonte,

“ suavem ente pelo braço o conduziu até a sacristia” . Jachonías sentiu-se h um ilhado e

constrangido de sair assim , levado pelo braço por padre Justino na frente de sua nam orada.

O resultado foi que, Jachonías saiu da antiga m atriz revoltado com padre Justino,

achando que o vigário o h um ilhou perante sua nam orada, e foi levado para casa pelas suas

irm ãs. C hegando em casa de cabeça quente, v o ltou à antiga m atriz, esperou o esvaziam ento da

igreja, e ficou à porta da sacristia do lado de fora da igreja, e, quando padre Justino ia saindo,

Jachonías, transtornado, o surpreendeu pulando em cim a do vigário ferindo seu rosto com um

soco, “banhado em sangue o padre apenas murmura - mais soffreu Christo.”.275 Jachonías foi

pego po r populares que ainda estavam aos arredores da antiga m atriz, escapou deles, m as

term in o u preso. O jo rn a l u sa de um tom de lam ento ao dizer que

[Esse]276 infeliz moço, que não mediu a extensão do seu crime que veio
entristecer sua família e um povo inteiro, acabando com as festas sacras e
offendendo a moral de um dia consagrado ao grande e extraordinário
acontecimento do Calvário. É o caso de dizermos como o Grande Mestre:
<<Perdoae-lhe Senhor, não soube o que fez>>. (A RAZÃO, Ano V, n° 211, de
13 de abril de 1912, p. 1).

274 A RAZÃO, ano V, n° 211, de 13 de abril de 1912, p. 1 e 2.


275 A RAZÃO, Ano V, n° 211, de 13 de abril de 1912, p. 1.
276 Grifo nosso.
579
N a m adrugada da noite de S exta-feira da P aixão para o Sábado de A leluia, parece que

ninguém dorm iu em C anavieiras, espantados, em torno da agressão física sofrida pelo padre

Justino. A confusão causada por Jachonías B om binho, tiro u a paz e envergonhou a todos, parece

que nesta situação, o espírito secularista que influía os canavieirenses no início do século X X

foi arrefecido. Segundo as fontes houve grande com oção e solidariedade ao padre Justino. U m a

m ultidão se reportou à casa dele até m ais de três horas da m adrugada lh e prestando atendim ento

m édico, dando atenção e lh e tributando um a espécie de desagravo coletivo.

Figura 2 A antiga igreja matriz de São Boaventura do Poxim, na cidade de Canavieiras, Bahia, na década de 1910.
Demolida em 1932, após a conclusão e inauguração da nova matriz no mesmo ano.

Fonte: Galeria do Porto, Sítio Histórico de Canavieiras, Bahia.

O jo rn a l relatou que foram à casa do vigário pessoas de am bos os sexos e de várias

classes sociais, pois, de pobre a rico, todos estavam perplexos e envergonhados por C anavieiras

te r servido de cenário para um padre ter sido agredido, num dia tão sagrado para a fé católica.

N o livro de tom bo paroquial, o padre José G onçalves de O liveira, em 1949, com enta sobre este

caso de 1912:

Diga-se o que quizer, porém a voz do povo é a voz de Deus: depois que o Pe. Justino
José de Sant’Anna foi esbofeteado dentro da Matriz no dia de sexta-feira da Paixão,
indo para a Sacristia com o rosto lavado de sangue, nunca mais Canavieiras teve a
satisfação de ter um vigário que se ambientasse e vivessem longos anos em seu seio.
Praz a Deus, que o sangue de Pe. Justino seja semente de almas fervorosas que com o
580
seu zelo e amor de Deus apaguem esta mancha que tem a paróquia apezar de não ter
sido Canavieiras o berço do sacrílego.
Depois da saída do Pe. Justino, esta tem sido a média: De quatro em quatro anos um
vigário. (LIVRO DE TOMBO, vol. I, 1949-1960, p. 11).

A pós o fato escandaloso ocorrido em C anavieiras, ter chegado ao conhecim ento do

arcebispo da B ahia, D. Jerônym o T hom é da Silva, na cidade do Salvador, ele decretou a

interdição canônica da antiga igreja m atriz de C anavieiras po r tem po indeterm inado. D ias e dias

depois, os canavieirenses ainda com ovidos com o ato de v io lência contra o vigário,

continuavam a m anifestar apoio ao m esm o num a tentativa de am enizar a situação

constrangedora. Q uase dois m eses depois, D. Jerônym o rev o g o u a interdição canônica da antiga

m atriz, que voltou a abrir as portas para o culto divino. Se aproxim ava da solenidade de Corpus

Christi, e, o padre Justino trato u aproveitar a ocasião festiva, para realizar a b ên ção da terceira
e definitiva pedra fundam ental da nova m atriz a dia 6 de ju n h o de 1912, com o encerram ento da

procissão da solenidade de Corpus Christi daquele ano.

C o n s id e ra ç õ e s fin ais

B uscam os nesse breve artigo, apresentar m ais detalhadam ente o que com unicam os no

sim pósio tem ático, sobre a n ecessid ade de nos aterm os m ais sobre a trajetória do Padre Justino

José de S ant’A nna na F reguesia de São B o aventura do Poxim , figura de grande im portância,

pois, foi ele quem enfrentou os sinais visíveis de transform ação da sociedade local em relação

ao processo de secularização, em forte vertente nas prim eiras décadas do século X X , em

contrapartida da Igreja, enquanto instituição, buscando se firm ar enquanto m ais um elite de

p o d er na sociedade brasileira.

A s relações de p o d er im postos nesse período da P rim e ira R ep ú b lica (1889-1930), fez

com que os bispos tom assem firm es atitudes, e m esm o, atitudes contraditórias ao seu m únus, e

questionáveis pela m oral católica da época, para resguardar o patrim ônio tem poral e espiritual

da Igreja nessa nova sociedade republicana, onde não m ais havia a figura do im perador, m as, a

Igreja conseguiu im p o r a figura do C risto “ que vive, reina e im pera na T erra de Santa C ruz” ,

adaptação nacional do lem a para o A no Santo Jubilar de 1900, proclam ado pelo P apa Leão X III

(1878-1903) para ser celebrado em todo o orbe católico em m em ória dos 1900 anos de

nascim ento de C risto, e que os bispos do B rasil u tilizaram para alicerçar e ju stific a r a

continuidade do exercício de seu poder espiritual sobre a fé e cultura religiosa cristã, m esm o

que fosse do agora estado laico brasileiro.

581
E m C anavieiras, o papel da im prensa foi de grande im portância para discutirm os essas

relações de p o d er e em ancipação da elite eclesiástica local, consolidada com a criação da

D iocese de Ilhéus em 1913, tendo na figura do prim eiro bispo diocesano, o olhar da águia que

cobre todo seu território eclesiástico, tendo po r base de sustentação elite cacaueira, principal

financiadora da form ação do patrim ônio tem poral da nova diocese instalada. E m C anavieiras,

essa m esm a elite resistiu em dar à Igreja um novo tem p lo condigno p ara o culto divino, em

conflitos e desacertos que se desenrolaram por vinte anos. D esses vinte anos, o Padre Justino

encarou doze, tendo seu em penho reconhecido pela Igreja, com o p rom otor da elite eclesiástica

em ergente no B rasil. C onseguiu pôr a nova m atriz em pé, com telhado concluído, faltando o

acabam ento. D eixou C anavieiras em 1924, por te r sido eleito pelo P apa P io XI, o prim eiro bispo

para a nova D iocese de Juiz de Fora, M G , sendo ele, o prim eiro padre do clero da D iocese de

Ilhéus feito bispo da Igreja.

E speram os ter alcançado o objetivo dessa com unicação, há m uito por fazer, pesquisar,

estudar e escrever. E speram os com o levantam ento das fontes da im prensa e da Igreja,

atingirm os os objetivos propostos na p esq u isa em andam ento. E stam os no início da pesquisa de

doutorado em H istória pelo P rogram a de P ó s-g rad u ação em H istória da U niversidade Federal

de G oiás (P P G H -U FG ), que neste ano de 2022 com pletou 50 anos de funcionam ento,

prom ovendo pós-graduação de excelência para historiadoras e historiadores de todo o Brasil.

A gradecem os profundam ente a F undação de A m paro à P esquisa do E stado de G oiás (Fapeg),

que nos concedeu a b o lsa de pesquisa para viab ilizar este doutoram ento.

R e fe rê n c ia s

Fontes escritas e da imprensa:

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582
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583
TROPAS EM MOVIMENTO: CAMPANHAS MILITARES
ESPANHOLAS NA CAPITANIA DE MATO GROSSO (1763-1767)

O T Á V IO V ÍT O R V IE IR A R IB E IR O 277

I n tr o d u ç ã o

D urante a segunda m etade do século X V III, a governabilidade da capitania de M ato

G rosso (1748) foi estruturada pela defesa e a consolidação da fronteira oeste da A m érica

portuguesa. E ssa unid ad e adm inistrativa confinava com as capitanias de São José do R io N egro

e do G rão-P ará (rios M adeira, M am oré e G uaporé) ao N orte; com a capitania de São P aulo e a

P rovíncia do Paraguai (rios Paraguai e Jauru) ao Sul; com as m issões jesu íticas espanholas de

M ojos (rio G uaporé) e C hiquitos (rio P araguai) a O este e com a capitania de G oiás (sertões do

interior) a L este da A m érica lusa (JE SU S, 2011, p. 18).

A capitania de M ato G rosso era com posta po r dois distritos: V ila R eal do Senhor B om

Jesus do C uiabá (1727), no rio Paraguai e V ila B ela da Santíssim a T rindade (1752), no rio

G uaporé, sendo esta últim a, a sua capital. O s seus adm inistradores ostentavam a patente de

governadores e capitães-generais e estavam subordinados à ju risd iç ã o dos governadores e

capitães-generais da capitania do R io de Janeiro desde a sua fundação (JE SU S, 2012, p. 94).

A sua ocupação e povoam ento foram orientados pelas disputas geopolíticas entre as

C ortes ibéricas na A m érica (T ratado de M adri, 1750) e na E u ro p a (G uerra dos Sete A nos, 1756­

1763). N a A m érica, a assinatura do T ratado de M adri (1750) encam inhou a dem arcação das

fronteiras entre os dom ínios portugueses e espanhóis nos extrem os norte e sul. A efetivação da

posse territorial - uti possidetis - evidenciou a extensão e os lim ites da expansão colonial

ibérica. A revogação do T ratado de M adri (1750) pela assinatura do T ratado de El P ardo (1761)

ratificou a indefinição territorial entre os seus dom ínios.

A G uerra dos Sete A nos (1756-1763) tensionou as relações políticas e com erciais entre

Portugal, E spanha, F rança e Inglaterra. A posse e a defesa das suas fronteiras na A m érica

condicionaram as políticas coloniais im plem entadas em tem pos de guerra. Franceses e ingleses

disputaram o controle de acesso ao vale do O hio e a extensão do C anadá. P ortugueses e

espanhóis lutavam pela m anutenção da posse da C olônia do Sacram ento e das ilhas caribenhas.

A integração destes territórios através de redes m ercantis intra, extra e tran s im periais tornaram

277 Doutorando em História (PPGH/UERJ) e Bolsista CAPES DS. E-mail: otaviovvribeiro @gmail. co m
584
a A m érica ibérica, um espaço de extensão do conflito geopolítico vivenciado na E uropa de

m eados do século X V III (SIL V A , 2020, p. 35-40 e P E S A V E N T O , 2011, p. 97-98).

A cam panha m ilitar em preendida pelos ingleses no C anadá e nas ilhas de H avana e de

M an ila desencadearam o alinham ento diplom ático entre franceses e espanhóis na retom ada do

P acto de F am ília (1763) com o estratégia de com bate a um inim igo com um : os ingleses. N o

Im pério português, a situação não foi distinta. A m anutenção de u m a política de neutralidade

se tornou insustentável no q u adrante da guerra europeia devido aos acordos com erciais

estabelecidos com os ingleses e a defesa de suas fronteiras nos confins da A m érica (BRITO ,

2018, p. 109-112).

O exercício da soberania régia à distância e a integração das fronteiras ibero-am ericanas

aos circuitos m ercantis atlânticos alcançaram o seu ápice com a eclosão de três cam panhas

m ilitares espanholas na A m érica portuguesa setecentista: ao Sul, na C olônia do S acram en to e

na capitania do R io G rande de São P edro (1762-1763) e a O este, na capitania de M ato G rosso

(1763-1767).

Sendo assim , este texto tem por objetivo d iscutir as cam panhas m ilitares espanholas que

se sucederam na capitania de M ato G rosso, entre 1763 e 1767. P ara tanto, partim os da análise

qualitativa do circuito interno da com unicação política de dois governadores e capitães-generais

da capitania de M ato G rosso: D. A ntônio R olim de M o u ra (1751-1764) e João P edro da C âm ara

(1765-1768).

P o r “ com unicação política” com preende-se um sistem a de inform ação que articulou a

integração política, adm inistrativa, com ercial, fiscal e m ilitar entre o R ein o e as suas conquistas

no Im pério português de m eados do século X V III (FR A G O SO ; M O N T E IR O , 2017). O circuito

interno, em conjunto com o circuito transoceânico, configurava os seus “ circuitos fo rm ais”,

sendo definido pelo trânsito e o expediente da com unicação estabelecida entre os oficiais das

conquistas no âm bito das suas ju risd içõ es na A m érica portuguesa (C U R V E L O , 2 0 19, p. 38­

39).

A docum entação analisada é de natureza adm inistrativa, sendo com posta por

correspondências de ofício, ou seja, cartas que apresentam u m a configuração textual, form al e

rígida, nas quais, eram debatidas as questões relativas ao governo do u ltra m a r (C O N C E IÇ Ã O ,

2015, p. 151). A o todo, foram levantadas 25 correspondências que estão depositadas em cinco

fundos p ertencentes a dois acervos m anuscritos: C orrespondência de D iversos com o G overno,

no A rquivo P úblico do E stado do P ará (A PEP), localizad o em B elém ; e os A vulsos das

capitanias de M ato G rosso, Pará, G oiás e R io de Janeiro, no A rquivo H istórico U ltram arino

(A H U ), disponível para consulta no Projeto R esgate.

585
A escrita epistolar dos governadores e capitães-generais da capitania de M ato G rosso

redim ensionou a consolidação da fronteira lu so-espanhola no extrem o oeste da A m érica ao

sistem atizar as estratégias m ilitares em pregadas na sua defesa territorial; fom entar o

estreitam ento dos seus vínculos político-adm inistrativos com os oficiais de outras capitanias e

articular o atendim ento das dem andas geopolíticas im periais na esfera de m ando local.

O texto está divido em três seções: na p rim eira, abordam os a constituição da fronteira

luso-espanhola no extrem o oeste da A m érica portuguesa, a p artir das disputas pelo controle

sobre a navegação do rio G uaporé entre as C oroas ibéricas; na segunda e na terceira, discutim os

as cam panhas m ilitares espanholas na capitania de M ato G rosso (1763-1767).

O rio G u a p o r é e a f r o n te ir a lu so -e s p a n h o la

O rio G uaporé é um dos m aiores tributários do rio A m azonas na fronteira oeste da

A m érica portuguesa. A sua navegação dem arcava a fronteira luso -esp an h o la ao norte da

capitania de M ato G rosso ao constituir um anteparo territorial com as m issões jesu ític as de

M ojos e C hiquitos e com por em conjunto com os rios M adeira e M am oré - m onções do norte

- um a via de com unicação com o E stado do G rão-P ará278.

Segundo L oiva C anova, o rio G uaporé “ funcionou com o referência fundam ental na

configuração de um novo m odo de rep resen tar a fronteira naquela m argem ” ao ser interpretada

pelo governo colonial com o um “ sím bolo identitário da zona de lim ites” à oeste da A m érica

lu sa (C A N O V A , 2011, p. 209).

A ocupação e o povoam ento de suas m argens foram intensam ente disputados pelas

C oroas ibéricas no século X V III. O s espanhóis foram os prim eiros a se estabelecerem na região,

a p artir da fundação da P rovíncia de Santa C ruz de la Sierra - atual B olívia (1561) e das m issões

de M ojos (1680-1767) e C hiquitos (1690-1767). A sua expansão foi orientada pelo apresam ento

de m ão de obra indígena e o estabelecim ento de u m a ro ta de com unicação entre a cidade de La

P lata (sede da R eal A udiência de C harcas) e as m inas de C erro R ico de Potosí (atual B olívia)

(L U C ÍD IO , 2013, p. 13-14, 28-29).

A P ro v ín cia de Santa C ruz de la Sierra (dependência da R eal A udiência de C harcas)

estava situada na m argem esquerda do rio G uaporé e servia com o um “ antem ural que deveria

278 O Estado do Grão-Pará e Maranhão (1751-1772/1774) era a sede do governo português na bacia amazônica.
Essa unidade administrativa era independente do Estado do Brasil e diretamente subordinada à Lisboa. A capitania
do Grão-Pará atuava como a “cabeça” de sua repartição e a sua jurisdição abrangia os governos das capitanias de
São José do Rio Negro, Maranhão e Piauí. A sua capital estava localizada na cidade de Belém.
586
proteger as m inas de prata de Potosí de possíveis investidas portuguesas” (L U C ÍD IO , 2013, p.

260).

A s m issões ou G overnação de M ojos (atual D epartam ento de B eni, B olívia) eram

form adas po r 25 reduções adm inistradas por je su íta s espanhóis subordinados ao V ice-rein o do

P eru e à A u diência de C harcas. E ssas parcialidades se estendiam pelo extrem o ocidental d o rio

B eni, o centro do rio M am oré e a m argem esquerda do rio G uaporé. A sua capital foi

estabelecida na m issão de S ão Pedro. P o r sua vez, as m issões de C hiquitos eram com postas por

11 reduções distribuídas entre os rios M am oré, G uaporé e Paraguai (C A S T IL H O PE R E IR A ,

2008, p. 31-34 e L U C ÍD IO , 2013, p. 189).

N a prim eira m etade do século X V III, os espanhóis expandiram o seu raio de atuação no

rio G uaporé com a fundação de três m issões jesuítas: São M iguel (1725), Santa R osa (1743) e

São Sim ão (1744). E stas reduções im plicavam restrições à expansão lusa e o acesso às m inas

de C uiabá. Com a assinatura do T ratado de M adri (1750), o rio G uaporé se tornou o elo de

integração entre as partidas279 levadas a cabo entre os afluentes dos rios A m azonas e Prata. E m

1754, a aldeia de Santa R o sa é evacuada pelo governador e capitão-general da capitania de

M ato G rosso, D. A ntônio R olim de M oura (M E N D O N Ç A , 2005, t. 3, p. 95).

Três anos depois, em 1757, é institu íd a u m a guarnição m ilitar form ada po r 30 a 40

hom ens arm ados no rio G uaporé com vistas a dar prosseguim ento “ aos negócios das

dem arcações” (A PEP, C orrespondência de D iversos com o G overno, C ódice 17, d. 26). A partir

de 1759, D. A ntônio R olim de M o u ra assum e a condução das partidas do N orte em decorrência

da nom eação do plenipotenciário F rancisco X avier de M en d o n ça Furtado (1754-1759) para o

cargo de S ecretário de E stado da M arinha e N egócios U ltram arin o s (1760-1769), no R eino. As

orientações que D. A ntônio recebeu de M en d o n ça F urtado serviriam de base para os trabalhos

que seriam realizados nas m onções do norte, no entanto, acabaram sendo frustrados por

questões logísticas e geopolíticas (A H U , P ará-A vulsos, cx. 44, d. 4004, 4005).

E ste im passe territorial foi ratificado pela assinatura do T ratado de El P ardo (1761) que

anulou o T ratado de M adri (1750). A tensão im perial foi direcionada para a consolidação das

fronteiras oeste e platina da A m érica portuguesa. N a capitania de M ato G rosso, o seu clím ax

foi alcançado com o desencadeam ento de duas cam panhas m ilitares espanholas (1763-1767) no

279 As partidas, também denominadas tropas, eram subdivisões territoriais que abrangiam as bacias amazônica e
platina na América ibérica. Aos comissários portugueses e espanhóis cabia a realização de três expedições. As
partidas do Norte (Amazônia) ficaram a cargo do governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará, Francisco
Xavier de Mendonça Furtado (1751-1759) e de D. José de Iturriaga e as do Sul (Prata), ao governador e capitão-
general da capitania do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrada (1733-1763), conde de Bobadela e Gaspar Tello
y Espinosa, marquês de Valdelirios. Os pontos de encontro das comissões na Amazônia e no Prata foram o arraial
de Mariuá (rio Negro) e Castilhos Grandes (região próxima à costa do atual Uruguai). A capitania de Mato Grosso
articulava o encontro entre os eixos Norte e Sul, através dos rios Guaporé e Jauru, respectivamente. Ela foi
integrada ao circuito da terceira partida do Norte - monções do norte.
587
rio G uaporé. A reivindicação espanhola pela devolução das m issões de Santa R osa, de São

M iguel e de São Sim ão, ocupadas pelos portugueses na sua m argem oriental co locaram em

evidência o exercício da soberania régia à distância (C A R V A L H O , 2012, p. 389-390).

“ A o fo rte dos so c o rro s, sem d ú v id a , e s ta c a p ita n ia n ã o p o d e p a s s a r ” : a c a m p a n h a m ilita r

e s p a n h o la de 1763

A pós a assinatura do T ratado de El P ardo (1761), os espanhóis iniciaram um processo

de desestabilização das forças m ilitares portuguesas na A m érica. N a fronteira platina, b u sco u -

se a retom ada do controle sobre o com ércio interno de gêneros, de carne e de ouro praticado

entre negociantes da capitania do R io de Janeiro e das P rovíncias de B uenos A ires, Paraguai e

Tucum ã. E ssas relações com erciais foram sistem atizadas com a fundação da C olônia do

S acram ento (1680). N o século X V III, a intensificação do com bate ao contrabando de ouro e a

exploração da pecuária bovina no circuito Potosí - B uenos A ires - R io G rande de São P edro -

Santa C atarina - São P aulo - R io de Janeiro estreitou a posse territorial e a hegem onia com ercial

lu sa no rio da P rata (PO SS A M A I, 2010, p. 24-27 e K Ü H N , 1999, p. 103).

A capitania do R io de Janeiro se to rnou o centro p olítico e adm inistrativo do A tlântico

Sul no setecentos. A p artir de 1748, o seu governador e capitão-general, G om es F reire de

A ndrada, conde de B o b ab ela (1733-1763) passou a deter a ju risd iç ã o sobre os governos das

capitanias do in terio r (G oiás, M ato G rosso e M inas G erais) e do Sul (São Paulo, R io G rande de

São Pedro, Ilha de Santa C atarina, Santos e C olônia do Sacram ento) da A m érica portuguesa.

C om a am pliação ju risd icio n al, a C oroa portuguesa buscava canalizar a exploração das ja z id a s

auríferas do interior e assegurar a defesa da fronteira platina (R IB EIR O , 2010, p. 93-95).

E sse reordenam ento político e com ercial reduziu a captação de recursos, intensificou a

concorrência de m ercado entre lusos e espanhóis e redim ensionou o fluxo de bens, de gêneros

e de escravizados africanos no rio da Prata, nos quais, m uitos espanhóis atuavam com o m ão de

obra especializada (tropeiros e carreteiros). C om o contrapartida, o g overnador da P ro v ín cia de

B uenos A ires, D. P edro de C evallos (1756-1763) em preendeu um a cam panha m ilitar no P rata

que resultou na tom ada da C olônia do Sacram ento, dos fortes de São M iguel e Santa T ereza e

da capitania do R io G rande de São Pedro, entre 1762 e 1763. A ocupação espanhola da fronteira

platina se estendeu até 1776 e acarretou u m a grave crise no com ércio de gado escoado para o

porto flum inense (K Ü H N , 1999, p. 94, 98-101).

N a fronteira oeste, as ações espanholas foram inicialm ente direcionadas para o rio Jauru

(sul da capitania de M ato G rosso) onde principiaram dem olir os m arcos das expedições de
588
dem arcação referentes ao T ratado de M adri (1750) (C O R T E SÃ O , 1969). E sses m ovim entos

não passaram despercebidos ao prim eiro governador da capitania de M ato G rosso, D. A ntônio

R olim de M o u ra que se m anteve inform ado dos seus avanços e recuos, tanto no P rata quanto

no Jauru, a p artir da troca de correspondências com os governadores e capitães-generais do

E stad o do G rão-Pará. N este sentido, destaca-se a carta enviada a M anuel B ernardo de M elo e

C astro (1759-1763), na qual R olim de M o u ra não descartou a possibilidade de um a invasão no

rio G uaporé (A PEP, C orrespondência de D iversos com o G overno, C ódice 129, d. 75).

D iante do risco im inente, D. A ntônio tratou de reaparelhar o seu destacam ento e

estruturar um fortim , sob a denom inação de N o ssa Senhora da C onceição (1762) (C A ST IL H O

PE R E IR A , 2017, p. 98-99). O s seus anseios não eram infundados e logo tom aram form a com

a apresentação das reivindicações feitas pelo governador da P ro v ín cia de Santa C ruz de La

Sierra, D. A lonso B erdurgo acerca da ilegitim idade da ocupação portuguesa da antiga m issão

je s u íta de Santa R osa. A través da retó rica epistolar, D. A ntônio R olim de M oura defendeu os

seus argum entos com base nas diretrizes do T ratado de M adri (1750) e na reafirm ação do direito

de posse luso - uti possidetis - sobre a m argem esquerda do rio G uaporé. C om a expansão

territorial portuguesa em curso, B erdugo procurou se m an ter a p ar das condições de tráfego e

de com unicação - vias terrestre e fluvial - e das distâncias existentes entre a antiga e a nova

m issão de Santa R osa no rio G uaporé (C A S T IL H O PE R E IR A , 2008, p. 132-134).

O im passe ep isto lar se desdobrou na im posição de um ultim ato ao seu interlocutor:

evacuar, d esm ilitarizar e desestruturar o destacam ento de N o ssa Senhora da C onceição em um

prazo de três m eses. D ad a a relutância de R olim de M oura, D. A lonso B erdugo com pôs um a

coalizão com os governos da R eal A udiência de La P lata e do V ice-R ein o do P eru para

encam inhar um a cam panha m ilitar no rio G uaporé (PA ST E L L S, 1949, t. 1, p. 667, 750).

A prim eira cam panha m ilitar espanhola na capitania de M ato G rosso teve início em 14

de abril de 1763 e se estendeu até princípios de 1764. E la foi estruturada po r dois m ovim entos:

a im posição de um bloq u eio fluvial no rio M am oré e a p o sterio r evacuação dos distritos de V ila

B ela da S antíssim a T rindade e de V ila R eal do Senhor B om Jesus do C uiabá. O corte na

com unicação fluvial entre a capitania de M ato G rosso e o E stad o do G rão-P ará v ia m onções do

norte causaria um grande déficit no seu suprim ento m ilitar. P o r sua vez, desbancada a guarnição

do fortim de N o ssa Senhora da C onceição, os espanhóis iriam desobstruir o acesso à sua v ila-

capital e às m inas de C uiabá (A H U , M ato G rosso-A vulsos, cx. 12, d. 691, 700).

A desvantagem m ilitar portuguesa era expressiva e colocava em risco a m anutenção de

sua posição no rio G uaporé. O fortim de N o ssa Senhora da C onceição contava com apenas 61

m ilitares para defender o norte e o sul de M ato G rosso. E ssa guarnição estava d istribuída da

seguinte form a: um alferes; dois cabos de esquadra; 23 soldados D ragões, cinco A ventureiros,
589
dez P edestres; um capelão e um cirurgião. A lém dos m ilitares, engrossavam as fileiras do seu

destacam ento quatro agregados; 18 escravos africanos e índios provenientes dos antigos

aldeam entos jesu ític o s espanhóis de Santa R o sa e de São M iguel (A H U - M ato G rosso-

A vulsos, cx. 11, d. 644).

O apoio conjunto de outros oficiais, entre eles, os governadores e capitães-generais do

E stad o do G rão-P ará e da capitania de G oiás foi fundam ental para salvaguardar as pretensões

lusas no rio G uaporé. D e B elém , capital do E stad o do G rão-P ará, foram enviados pelas m onções

do norte m unições e arm as para reforçar o aparelham ento de suas tro p as (A PEP,

C orrespondência de D iversos com o G overno, C ódice 126, d. 6, fl. 11; C ódice 129, d. 75;

C ódice 17, d. 64, 67); e de V ila B oa, capital da capitania de G oiás, atravessaram pelas estradas

de terra, hom ens “brancos que assentaram praça voluntariam ente, alguns m estiços [e] os m ais

[que] vieram presos em levas” em conjunto com 18.000 cruzados p ara o custeio das operações

em M ato G rosso (A H U , G oiás-A vulsos, cx. 19, d. 1167; cx. 20, d. 1216).

A s tro p as espanholas estavam m ais bem aparelhadas do que as portuguesas. A coalizão

form ada pela m issão je su íta de L oreto e as P rovíncias de Santa C ru z de la Sierra e de B uenos

A ires com pôs um destacam ento estim ado em 1.200 hom ens - na sua m aioria, indígenas

aldeados nas reduções de M ojos e C hiquitos - com andados pelo V ice-rei do Peru, D. P edro

M anuel A m at y Ju n iet (C H A V ES, 2008, p. 124-126 e C O R R Ê A FIL H O , 2004, p. 373).

A prim eira cam panha m ilitar foi constituída por dois com bates m ilitares efetivos. O

prim eiro se deu no rio M am oré, quatro m eses após D. A ntônio R olim de M o u ra tom ar ciência

da m ovim entação dos espanhóis na região. O segundo ocorreu no rio G uaporé, com o

contrapartida a prisão de m ilitares portugueses e o corte no suprim ento m ilitar e de subsistência

do destacam ento do fortim de N ossa Senhora da C onceição.

E m correspondência datada de 15 de agosto de 1763, D. A ntônio R olim de M o u ra foi

inform ado pelo governador e capitão-general do E stado do G rão-Pará, M anuel B ernardo de

M elo e C astro (1759-1763) da rendição de “ duas C anoas g .des” dos espanhóis no rio M am oré

po r tropas portuguesas. D urante o com bate, fizeram “fugir um a logo e a outra obrigue ao m esm o

depois de lhe haver m orta a m aior p.te da gente” . U m a parte do destacam ento espanhol recuou

e deixou o seu “ alojam .to e estacada queim ada e os esteios e paus derrubados” (A PEP,

C orrespondência de D iversos com o G overno, C ódice 129, d. 79).

D. A lonso B erdugo não desistiu e retom ou a m ovim entação no rio M am oré com um a

p arcela de suas tropas. E m sua interlocução ep istolar com M anuel B ernardo de M elo e C astro,

D. A ntônio afiançava-lhe que a sua perm anência só reforçava a “m á fé q ’ conosco tem praticado

sem pre na execução dos tratados [de M adri, 1750 e de El Pardo, 1761] pertencentes a este

continente” . C aso o cerco se m antivesse, argum entava que “m e será necessário v aler-m e ao
590
m enos em p.te do oferecim .to de V. E x .cia porque na m inha opinião continuar o bloqueio é o

m esm o q ’ continuar a guerra [dos Sete A nos, 1756-1763]” em curso na E u ro p a (A PEP,

C orrespondência de D iversos com o G overno, C ódice 129, d. 88).

O s seus anseios foram atendidos. E m carta enviada ao sucessor de M anuel B ernardo de

M elo e C astro no governo do E stado do G rão-P ará, Fernando da C osta de A taíde Teive (1 7 6 3 ­

1772) ele pontou que “ cada dia se vão confirm ando m ais as notícias de se haver retirado para

Santa C ruz de La Sierra, o G o v .or daquela capital com todas as T ropas que tinha nesta

F ronteira” . A retirada torn av a “ desnecessário [o envio de] T ropas com que o Snór M anoel

B ernardo de M elo e C astro m e havia socorrido desse E stad o [do G rão-P ará]” (A PEP,

C orrespondência de D iversos com o G overno, C ódice 17, d. 62).

O reforço das fileiras que com punham os destacam entos do fortim de N ossa Senhora da

C onceição tornou-se um problem a para D. A ntônio R olim de M oura. A s provisões disponíveis

para o seu sustento no rio G uaporé eram insuficientes. P ara contornar a situação, o furriel José

C orrea e alguns m ilitares foram ordenados subirem o rio G uaporé em busca de gado e de

provisões para o seu abastecim ento. A sua guarnição foi surpreendida por soldados espanhóis

e índios provenientes da m issão de São P edro que os auxiliavam nas rondas fluviais. José C orrêa

e os soldados que lhe acom panhavam foram feitos prisioneiros e os dem ais que estavam

dispersos pelas m argens do rio G uaporé conseguiram fugir e reto rn ar ao destacam ento de N ossa

Senhora da C onceição (L O U R E IR O , 1965, p. 138 apud C A S T IL H O PE R E IR A , 2017, p. 104­

105).

C om o contrapartida, R olim de M o u ra ordenou um ataque à m issão jesuítica de São

M iguel. A pesar de os portugueses estarem em m en o r núm ero, a indisciplina, as deserções e o

m al arm am ento das tropas espanholas favoreceram a v itória lusa. A m issão de São M iguel foi

destruída e os seus adm inistradores, os padres jesuítas espanhóis Juan R odriguez e F rancisco

E spí foram capturados. Q uan to às baixas, estim asse que m orreram 49 m ilitares, sendo 37

portugueses e 12 espanhóis (PA ST E L L S, 1949, t. 2, p. 1005).

A assinatura do T ratado de Paris (1763) pôs term o a G uerra dos Sete A nos (1756-1763)

na E uropa. D. A ntônio R olim de M o u ra se valeu deste acordo diplom ático p ara dar cabo das

tensões vivenciadas no rio G uaporé em m eio aos com bates m ilitares com os espanhóis. A

restituição de territórios (m issões de São M iguel e de Santa R o sa aos espanhóis e o

destacam ento de N o ssa Senhora da C onceição aos portugueses) e a tro c a de prisioneiros

(m ilitares portugueses e os m issionários jesu ítas Juan R odriguez e F rancisco E spí) entre os

governos de Santa C ruz de la Sierra e de M ato G rosso não arrefeceu o litígio territorial na

fronteira oeste da A m érica portuguesa. A s reivindicações espanholas se m antiveram e foram

intensificadas pelo protesto de posse dos d istritos de C uiabá e de M ato G rosso. A sua
591
inviabilidade geopolítica to rnou im inente o desenvolvim ento de u m a nova cam panha m ilitar na

capitania de M ato G rosso na adm inistração do sobrinho e sucessor de D. A ntônio R olim de

M oura, o governador e capitão-general João P edro da C âm ara (1765-1768) (A H U - G oiás-

A vulsos, cx. 21, d. 1294).

“ H e i de c u m p r ir com a m in h a o b rig a ç ã o d e fe n d e n d o e s ta f r o n te ir a a té a ú ltim a

e x tr e m id a d e ” : a c a m p a n h a m ilita r e s p a n h o la de 1766

A o to m ar posse do governo da capitania de M ato G rosso em 1765, João P edro da

C âm ara foi inform ado po r desertores e prisioneiros espanhóis da cidade de L im a de que os

governadores das P rovíncias de Santa C ruz de La Sierra e de C ochabam ba estavam recrutando

hom ens e fabricando arm as na m issão de São P edro (capital das reduções dos M ojos) para

com porem um a nova cam panha m ilitar no rio G uaporé (A H U - M ato G rosso-A vulsos, cx. 12,

d. 738).

A lo gística dos ataques poderia seguir por duas frentes: Santa C ruz de la Sierra-V ila

B ela da Santíssim a T rindade ou N o ssa S enhora da C onceição-P araguai-C uiabá. E stes circuitos

eram estratégicos, pois abrangiam to d a a extensão da capitania de M ato G rosso e a com posição

de um a am pla zona de fronteira ainda po r ser dem arcada na segunda m etade do século X V III

(REIS, 2002, p. 30).

N a segunda cam panha m ilitar espanhola, as suas tropas se estabeleceram novam ente no

rio M am oré, m as não protagonizaram com bates efetivos com os portugueses. O plano era

descer para o rio G uaporé e sitiar a F ortaleza de N o ssa Senhora da C onceição. O seu efetivo

m ilitar era ainda m aior, sendo form ado po r 4.200 hom ens - espanhóis e indígenas provenientes

de Santa C ruz de L a Sierra, da R eal A udiência de C huquisaca, de C ochabam ba e do V ice-R eino

do P eru - sob o com ando do P residente da R eal A udiência de C harcas, D. Juan de P estan a e a

coordenação do engenheiro A ntônio A ym erich y V illajuana. D evido ao regim e das cheias do

rio G uaporé, A ntônio A ym erich y V illajuana optou pela edificação de u m a fortaleza na m issão

da E x altação (barra do rio M am oré) com o u m a base p a ra o p o sterio r avanço espanhol (A PEP,

C orrespondência de D iversos com o G overno, C ódice 127, d. 11).

E m 7 de outubro de 1766, os espanhóis conseguiram se estabelecer na m argem esquerda

do rio G uaporé. A o avistá-los, o gov ern ad o r João P edro da C âm ara afirm ou estarem “todos

u niform em ente fardados de azul, com canhões encarnados e com m uitos bons arm am entos”

(A H U - M ato G rosso-A vulsos, cx. 13, d. 792). Inicialm ente, eles “ levantaram um a b ateria de

oito peças em Santa R osa, que fica duas léguas rio abaixo [e] pu seram outro igualm ente
592
num eroso às ordens de um oficial m aior” . P assados cinco dias, um desertor lhe inform ou de um

ataque surpresa ao destacam ento de N o ssa Senhora da C onceição com o apoio de índios das

m issões de São M iguel e de Santa R osa (AHU , R io de Janeiro-A vulsos, cx. 80, d. 7167).

M ais u m a vez os portugueses estavam em m en o r núm ero. N a adm inistração de João

P edro da C âm ara, o destacam ento do fortim de N o ssa Senhora da C onceição foi reforçado e

passou a contar com 498 hom ens. O s seus regim entos eram form ados por hom ens brancos,

pretos, pardos e escravizados africanos assim distribuídos: 107 D ragões, 78 P edestres, 90

m ilitares nas O rdenanças (38 brancos, 36 pardos e 16 pretos), oito A ventureiros e 215 escravos

africanos portando arm as de fogo e lanças (A H U - M ato G rosso-A vulsos, cx. 13, d. 783).

O envio de hom ens e de recursos financeiros e m ateriais de outras capitanias foi

fundam ental para avolum ar as fileiras de defesa da capitania de M ato G rosso. D estacaram -se,

novam ente, as contribuições dos governadores e capitães-generais das capitanias do R io de

Janeiro e de G oiás e do E stad o do G rão-Pará. A m bas as capitanias forneceram cordas (A H U ,

R io de Janeiro-A vulsos, cx. 78, d. 7067; cx. 80, d. 7176), soldados (A H U , G oiás-A vulsos, cx.

22, d. 1365) e artilharia para os destacam entos da F ortaleza de N o ssa Senhora da C onceição

(A H U , M ato G rosso-A vulsos, cx. 13, d. 788).

D e B elém , o volum e foi m ais substancial e diversificado: índios aldeados nas povoações

civis para o provim ento de tro p as e a interm ediação de em préstim os ju n to à A dm inistração da

C om panhia G eral de C om ércio do G rão-P ará e M aranhão repassados à P rovedoria da Fazenda

R eal de M ato G rosso para subsidiar as despesas m ilitares (A PEP, C orrespondência de D iversos

com o G overno, C ódice 122, d. 52, fls. 200-202, 225; C ódice 127, d. 10,11,12,16).

A lo gística dos deslocam entos e a necessidade de se m anter livre a com unicação fluvial

com o E stado do G rão-P ará dificultava ainda m ais a recepção dos seus auxílios m ilitares.

D istintam ente dos cam inhos de terra e da navegação pelas m onções, po r onde se dava a

interlocução entre as capitanias de M ato G rosso, G oiás e R io de Janeiro, a im posição de um

blo q u eio pelos espanhóis nas m onções do norte seria desastrosa para a sua defesa no rio

G uaporé.

A s condições de navegabilidade e de salubridade do rio G uaporé; a constante

in d isciplina e as deserções nas tropas; a logística de recrutam ento de indígenas nos aldeam entos

m issionários e a ineficácia em adaptar as táticas de guerra em pregadas na E u ro p a às condições

am bientais e clim áticas locais inviabilizaram o avanço das tropas espanholas sobre o fortim de

N o ssa Senhora da C onceição, entre 1766 e 1767. A resolução da disputa foi orientada pela via

diplom ática, tendo por base, as diretrizes do T ratado de P aris (1763) e a negociação entre as

C ortes ibéricas na E uropa (C A S T IL H O PE R E IR A , 2008, p. 148 e C A R V A L H O , 2012, p. 392).

593
A navegação fluvial e as circunstâncias governativas condicionavam o êxito do envio e

da recepção da artilharia necessária à defesa da capitania de M ato G rosso. E ste fluxo se deu nos

lim ites da consolidação de um Im pério que buscava se im p o r e equilibrar geopoliticam ente na

E u ro p a e no ultram ar. O circuito interno da com unicação política de seus governadores e

capitães-generais estruturou a com posição de redes que extrapolavam a sua jurisdição

adm inistrativa e a integração entre as fronteiras da A m érica portuguesa (R IB E IR O , 2022).

C o n c lu sã o

A s cam panhas m ilitares espanholas na capitania de M ato G rosso reordenaram a

ocupação e o povoam ento territorial no rio G uaporé. A expansão das m issões espanholas pelos

rios M am oré e G uaporé acirraram as relações de poder e o litígio territorial na fro n te ira oeste

da A m érica portuguesa. A fundação de V ila B ela da Santíssim a T rindade (1752) e o início da

construção do fortim de N o ssa Senhora da C onceição (1762) dem arcaram a presença

portuguesa no rio G uaporé.

O s conflitos pelo controle de sua navegação estão diretam ente associados aos

desdobram entos da G uerra dos Sete A nos (1756-1763) na A m érica ibérica: a defesa e a

consolidação de suas fronteiras e a sua integração às rotas com erciais atlânticas. E ntre recuos e

avanços, a m anutenção da posição portuguesa no rio G uaporé foi assegurada pela intensificação

de sua m ilitarização e urbanização.

A reestruturação do fortim de N o ssa Senhora da C onceição (1762) deu form a ao F orte

de B rag an ça (1769), e, posteriorm ente, ao R eal Forte P ríncipe da B eira (1776). A ex p an são de

povoações civis - V ilas e L ugares - fom entaram a subsistência de seus destacam entos e o

com ércio de fronteira entre o E stad o do G rão-P ará e a capitania de M ato G rosso e desta com os

dom ínios de E spanha via m onções do norte: Santa A nna, (1753, rio G uaporé); São José e São

João (rio M equéns, 1756); L eom il (rio G uaporé, 1760); N o v a A ldeia de São M iguel (rio

G uaporé, 1765); B alsem ão (rio M adeira, 1765) e L am ego (rio G uaporé, 1769) (C H A V ES,

2008, p. 95-98; A R A Ú JO , 2000, p. 307-308 e C A R V A L H O , 2012, p. 55).

Portanto, a escrita epistolar dos governadores e capitães-generais da capitania de M ato

G rosso constituiu-se em um suporte de espacialização do poder régio à distância e de

reafirm ação do direito de posse português da fronteira oeste da A m érica na segunda m etade do

século X V III.

594
R e fe rê n c ia s b ib lio g rá fic a s

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596
ENSINO DE HISTÓRIA SOBRE O HOLOCAUSTO DENTRO DO TEMA
DOS DIREITOS HUMANOS: UM TRABALHO COM BASE NO
CONCEITO DE CONSCIÊNCIA HISTÓRICA

P A T R IC K D U T R A 280*
FÁ B IO B O R G E S R IB E IR O JÚ N IO R 281**
M IC H E L E G O N Ç A L V E S C A R D O S O 282***

R e su m o : O objetivo do P rogram a Institucional de B olsas de Iniciação à D ocência da


U niversidade do E x trem o Sul C atarinense (P IB ID /U N E S C ), no seu S ubprojeto de H istória, foi
trab alh ar o ensino voltado ao tem a dos D ireito s H um anos a p artir do trabalho com o conceito
de C onsciência H istórica, dentro da R ede M unicipal de E ducação da cidade de C riciúm a, em
Santa C atarina. A cidade de C riciúm a se caracteriza pela sua form ação m ultiétnica, se
constituindo com o polo industrial estadual. E sta característica abre possibilidades para o ensino
dentro de sala de aula, m as tam bém pode acarretar episódios de xenofobia e dem ais form as de
preconceitos frente ao contato entre diferentes culturas. A pós um a fase de pesquisas
b ib liográficas sobre a educação dentro do tem a dos D ireitos H um anos e sobre o ensino a partir
das consciências históricas dos sujeitos, foram desenvolvidas duas atividades pedagógicas para
u m a tu rm a do 9° ano do E nsino Fundam ental, relacionada ao ensino de H istória sobre o
H olocausto no contexto da Segunda G uerra M undial, no intuito de articular o ensino de H istória
com os D ireitos H um anos e o desenvolvim ento das consciências históricas. O s estudantes
foram levados a refletir sobre a responsabilidade da sociedade para com a defesa e o
cum prim ento dos D ireitos H um anos.

P a la v r a s -c h a v e : P rogram a Institucional de B olsas de In iciação à D ocência. E nsino de H istória;


C onsciência H istórica; D ireitos H um anos; H olocausto.

I n tr o d u ç ã o

A cidade de C riciúm a, onde se localiza a U niversidade do E xtrem o Sul C atarinense

(U N E SC ) se caracteriza com o um polo de atividades econôm icas no sul catarinense, atraindo

m igrantes que se estabelecem na região, com suas fam ílias, em b u sca de m elhores condições

de vida. N este sentido, a R ede M unicipal de E ducação da cidade de C riciúm a tem se

caracterizado pela m ulticulturalidade, proporcionando incontáveis p ossibilidades de

qualificação da educação básica, m as tendo em contrapartida o perigo de ocorrerem episódios

de xenofobia e dem ais form as de preconceito no contato entre diferentes culturas. C ontem plada

pelo P rogram a Institucional de B olsas de Iniciação à D ocência (PIB ID ), a universidade dividiu

280* Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC. Graduando do Curso de História. Bolsista do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência.
281** Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC. Graduando do Curso de História. Bolsista do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência.
282*** Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC. Doutora em História pela Universidade do Estado de
Santa Catarina, UDESC. Coordenadora do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência.
597
o program a em subprojetos. D esta form a, o S ubprojeto de H istória do P IB ID /U N E S C elencou

com o objetivo levar os acadêm icos do C urso de H istória a ter um p rim eiro contato com a

educação básica, por m eio de intervenções nas salas de aula acom panhadas pela professora

supervisora da escola sede do projeto, pertencente à R ede M unicipal de E d u cação de

C riciúm a/SC .

F rente ao caráter de m ulticulturalidade que m arca o perfil social das escolas m unicipais,

o S ubprojeto de H istória do P IB ID /U N E S C teve com o objetivo central trab alh ar com o tem a

das m igrações e o ensino de H istória dentro do tem a dos D ireitos H um anos, p artindo do trabalho

com o conceito de consciência histórica, fenôm eno social de orientação individual frente a

realidade histórica dos sujeitos. A tu rm a escolhida para aplicar os trabalhos com estes tem as foi

um 9° ano do E nsino Fundam ental A nos F inais, espaço que possibilitou o desenvolvim ento do

projeto, com o tem a da Segunda G uerra M undial, discutindo especificam ente o H olocausto.

P ara isso, foi respeitado o planejam ento de ensino da professora supervisora da escola e

abordadas as orientações da B ase N acional C om um C urricular (B N C C ), relacionando os tem as

de estudo às realidades dos estudantes da rede básica de educação da cidade de C riciúm a.

R e fe re n c ia l T e ó ric o

T rabalhando com a realidade educacional da rede básica de educação da cidade de

C riciúm a/SC , caracterizada por m últiplas existências e culturas, os acadêm icos do S ubprojeto

de H istória do P IB ID /U N E S C buscaram relacio n ar o ensino dos conteúdos históricos

selecionados no planejam ento da professora supervisora de sala de aula e as habilidades

propostas pela B N C C , com o objetivo de construir um a abordagem que refletisse sobre a

responsabilidade da sociedade para com a defesa e o cum prim ento dos D ireitos H um anos.

V isando com preender o que são os D ireitos H um anos e com o organizar o ensino em

defesa dessa tem ática, adotam os com o referencial teórico os escritos de M aria V ictoria

B enevides (2007) e de D ouglas O restes F ranzen (2015), que propõem o ensino de história a

p artir da com preensão dos D ireitos H um anos, apontando a im portância do desenvolvim ento de

atividades e propostas de ensino a partir desta tem ática.

A pesquisadora B enevides (2007) defende que a form ação de um a cultura de respeito à

dignidade da pessoa hum ana com o prática n o rtead o ra de u m a intervenção educacional, devendo

levar em consideração que os D ireitos H um anos são aqueles considerados inerentes a todas as

pessoas e essenciais à vida com dignidade. Tal form ação deve b u scar elim inar e desconstruir

preconceitos enraizados, form as de discrim inação, exclusão e não aceitação das diferenças.

598
F ranzen (2015) levanta aspectos legislativos referentes a educação e a efetivação d o s D ireitos

H um anos, propondo um projeto de ensino em sala de aula que aborde os tem as da R evolução

Francesa, D eclaração U niversal dos D ireitos H um anos e a C onstituição B rasileira de 1988, para

trab alh ar a construção histórica e a im portância dos D ireitos H um anos na atualidade.

C om relação à C onsciência H istórica, Schm idt et al (2011) a define com o um fenôm eno

de organização m ental individual, que busca u m a orientação em relação ao tem po, perm itindo

ao indivíduo entender o lugar que ocupa em seu existir, a partir de narrativas históricas e

expectativas traçadas no presente. A s consciências históricas provêm das narrativas e conduzem

à um aprendizado h istórico quando construídas e trabalhadas com objetivos pedagógicos de

aprendizagem :

A competência da orientação de si, historicamente, é a habilidade em aplicar este


modelo, o qual é preenchido pelo conhecimento e pela experiência, para situações da
vida e para formular, assim como refletir, sobre seu próprio ponto de vista na vida
presente [...] e podem ser transformados por meio da argumentação histórica
(SCHMIDT, 2011, p. 88-89).

P artindo do trabalho com o conceito de consciência histórica de Jorn R üsen,

desenvolvem os duas atividades pedagógicas que buscaram articular o ensino de H istória com

os D ireitos H um anos. A s duas atividades se articularam em torno das orientações da B N C C

que afirm am o direito do aluno de desenvolver a habilidade de “ [...] d escrever e contextualizar

os processos da em ergência do fascism o e do nazism o, a consolidação dos estados totalitário s

e as p ráticas de exterm ínio (com o o holocausto)” (B R A SIL, 2018, p. 429).

M e to d o lo g ia

P ara atingir os objetivos propostos dentro do projeto com a turm a de 9° ano da escola

m unicipal de educação básica, foram realizadas leituras e discussões sobre o tem a dos D ireitos

H um anos, a partir dos escritos de B enevides (2007), que defende um ensino em defesa desta

tem ática, construindo relações com os estudos de Jorn R üsen sobre C onsciência H istórica,

segundo os quais, o indivíduo pode ser influenciado pela história e seu contexto, m as ele

tam bém é um sujeito ativo nela, u m a vez que estes teóricos abordam a consciência histórica

com o a consciência da historicidade do presente. A p artir dessas discussões teóricas, os grupos

puderam desenvolver m ateriais pedagógicos para aplicação em sala de aula. N este sentido,

foram desenvolvidas duas atividades pedagógicas que no intuito de articular a proposta de

ensino p artindo do tem a dos D ireito s H um anos.

599
A prim eira atividade abordou a questão do antissem itism o no contexto europeu do

século X X , evidenciando que o preconceito contra os ju d eu s era anterior ao nazism o, sendo

aprofund ado e institucionalizado pelo regim e nazista. A ssim , as perseguições antissem itas do

R eich foram apoiadas por grande parte do povo alem ão e das populações de países dom inados,

com o F rança e Polônia. N esse sentido, B runo G roppo (2015) destaca que os regim es ditatoriais

são sistem as que exercem dom ínio baseados na força e na violência, porém eles não se

sustentam apenas po r isso, m as tam bém precisam de um a base social e de apoio de parte da

p o pulação:

A ditadura nazista, por exemplo, gozou de amplo apoio popular que durou até o fim,
e que diminuiu apenas com a proximidade do fim da guerra: na Alemanha não houve
um movimento de resistência armado, uma guerra civil ou uma insurreição popular,
como foi o caso da Itália, e foi apenas a derrota militar que pôs fim ao regime. A
imagem de um regime nazista baseado exclusivamente no terrou e no controle policial
da população não corresponde, portanto, à realidade (GROPPO, 2015, p. 45).

Figura 1 - Recorte de página da História em Quadrinhos Maus: a história de um sobrevivente, com destaque
para a leitura do autor sobre o antissemitismo na sociedade polonesa.

Fonte: SPIEGELMAN, 2009, p. 37.


600
P ara a abordagem da atividade foi escolhida a história em quadrinhos (H Q ) Maus (2009)

de A rt Spiegelm an. N essa obra o autor conta as m em órias de seu pai, V ladek Spiegelm an, um

ju d e u polonês sobrevivente do holocausto, que é o n arrador e personagem principal. P ara contar

essa história, o autor representa as pessoas com rosto de anim ais, conform e as etnias (judeus

são representados com o ratos, alem ães com o gatos, poloneses com o porcos). P ara a atividade

foram selecionados trechos do livro em que A rt S piegelm an representa a colaboração de

cidadãos com uns com o regim e nazista, com o objetivo de refletir sobre a responsabilidade da

sociedade para com a defesa e o cum prim ento dos D ireitos H um anos. A p artir da leitura dos

trechos selecionados, os alunos foram questionados e levados a debater sobre m igração,

diferenças étnicas e culturais e a necessidade de p o sicionam ento da sociedade em defesa dos

D ireito s H um anos. N esse sentido, citando eventos recentes que trouxeram à to n a o assunto da

colaboração com os nazistas na P olônia, B runo G roppo discute sobre a dificuldade da sociedade

diante desse tipo de m em ória, que evoca a responsabilidade dos cidadãos diante de violações

aos D ireito s H um anos:

Esse episódio ilustra a dificuldade da sociedade polonesa atual em integrar o problema


da Shoah à sua visão do passado recente; uma dificuldade que é igualmente
constatável em outros países da Europa Oriental, onde o extermínio dos judeus foi
executado pelos alemães com a colaboração de voluntários locais e com a indiferença
do resto da população. Ele ilustra igualmente o problema da concorrência e da
hierarquia das vítimas: em todos esses países a população se lembra dos sofrimentos
e das injustiças sofridas por causa da ocupação alemã e do regime comunista, mas
esquece frequentemente aqueles que foram infligidos, ou que ela mesma infligiu, aos
grupos minoritários (GROPPO, 2015, p. 49-50).

O utra atividade foi realizada buscando relacionar o antissem itism o na sociedade

europeia do período entre guerras com o holocausto ju d eu , utilizando a exposição Entre Aspas,

disponível v irtualm ente no M useu do H olocausto de C uritiba/PR . A exposição tem por objetivo

reu n ir depoim entos de pessoas que tiveram suas vidas atingidas pelas perseguições nazistas do

h olocausto e conseguiram reconstruí-las no B rasil. D entre os depoim entos, destacam os o vídeo

de B unia K ulish Finkiel, que precisou se esconder por m eses em um pequeno porão, ju ntam ente

com outros m em bros da sua fam ília, antes de ser capturada e enviada à A uschw itz-B irkenau.

A h istória de vid a de B u n ia foi utilizada em sala de aula para conscientização dos

estudantes sobre os períodos históricos de to talitarism os que levaram a Segunda G rande G uerra,

problem atizando a falta de condições básicas de existência im postas a pessoas que vivenciaram

a perseguição nazista. C om o situação de sensibilização e hum anização em relação aos sujeitos

históricos, realizam os u m a análise das privações que m ilhões de pessoas ainda passam na atual

realidade social brasileira, caracterizada pela desigualdade, m ostrando o aspecto hum ano no

estudo de situações de privações básicas.


601
Figura 2 - Imagem do card que apresenta um resumo do relato e da história de Bunia Kulish Finkiel na
Exposição Entre Aspas no site do Museu do Holocausto de Curitiba/PR.

EU MEMÓRIA

■EU V E JO TO D A S AS CENAS. EU REVIVO ISSO. SAO COISAS Q UE A G E N TE NAO


ESQUECE, NÃO POSSO ESQUECER. POR ISSO C O N TO PARA OS M EUS FILHOS E PARA
OS M EUS NETOS. A S NOVAS GERAÇÕES NÃO DEVEM PASSAR POR ISSO. CHEGA.'

BUNIA FINKIEL
1922-2018

História:
Aos 14 anos, Chana R am foi capturada pelos nazistas. Seu pai, judeu ortodoxo, teve a
barba cortada e foi obrigado a segurar um porco para tirar uma foto. Marcada no braço
e pesando 19 quilos, foi liberada do complexo de extermínio nazista de Auschwitz-
Birkenau. No Brasil, reconstruiu sua vida e precisou lidar com outras perdas. Ainda vive
em Belo Horizonte.

Gazeta do Povo

Fonte: site do Museu do Holocausto de Curitiba/PR

T endo p o r base estes referenciais, se desenvolveu o tem a da S eg u n d a G uerra M undial,

discutindo especificam ente o H olocausto. N a sequência, foi realizada u m a análise da situação

de privações m ateriais básicos a que estão subm etidas partes da sociedade, utilizando esta

análise com o situação sensibilizadora e “ hum anizadora” , para olhar a situação de

desum anização do H olocausto, fazendo um vínculo com o tem a dos D ireitos H um anos. Para

isso, se respeitou o planejam ento de ensino da professora supervisora da escola, na m edida em

que foram abordadas as orientações da B ase N acional C om um C u rricu lar (B N C C ),

relacionando os tem as de estudo às realidades dos estudantes da rede básica de educação da

cidade de C riciúm a.

R e s u lta d o s

A o ap licar as intervenções na escola de educação básica da R ede M unicipal de

C riciúm a, a p artir da supervisão da professora titu lar de educação básica, foi possível

pro p o rcio n ar debates e discussões no intuito de sensibilizar os estudantes e proporcionar

debates, partindo dos problem as sociais presentes nas realidades de privações básicas a que

estão inseridos m ilhões de b rasileiros com o im pulso aos estudos do passado. N a sequência,

602
foram desenvolvidas as sequências didáticas desenvolvidas pelos acadêm icos bolsistas, levando

os estudantes a analisarem leituras sobre o tem a do H olocausto.

A p artir da prim eira atividade, com o u so da h istória em quadrinhos Maus (2009) de A rt

Spiegelm an, foi proposto aos alunos que realizassem questionam entos em torno do tem a das

m igrações, diferenças étnicas e culturais e o papel que a sociedade deve assum ir em defesa dos

D ireito s H um anos. A segunda atividade partiu de relatos de vid a de alguns sobreviventes do

H olocausto, presentes na exposição virtual Entre Aspas, do M useu do H olocausto de

C uritiba/PR . O s estudantes puderam problem atizar a falta de condições b ásicas de existência

im postas a pessoas que vivenciaram a perseguição nazista e relacionar estas privações ao tem a

do D ireitos H um anos, com preendendo que os D ireitos H um anos são aqueles essenciais a todas

as pessoas, desde o princípio da liberdade e do direito à vida, até o acesso aos itens m ais básicos

para u m a existência com dignidade.

A p artir da possibilidade de atuação no desenvolvim ento de pesquisas bibliográficas

sobre o ensinar história, o trabalho com as consciências históricas e o estudo sobre o ensino a

p artir do D ireitos H um anos, sob orientações da professora coordenadora do projeto e da

professora titu lar da escola da rede m unicipal, o S ubprojeto de H istória do PIB ID /U N E S C

proporcionou aos acadêm icos do C urso de H istó ria o contato com a realidade da educação

básica, possibilitando u m a form ação ligada a prática e a teoria e contribuindo para a qualidade

da educação básica nacional.

C o n c lu sã o

P o r m eio das discussões teóricas e das orientações em grupos, foi possível construir

duas atividades pedagógicas de intervenção. E stas atividades tiveram com o objetivo

desenvolver u m a educação voltada aos D ireitos H um anos, visando um trabalho a p artir das

m últiplas consciências históricas que com põem o am biente das salas de aulas. O s trabalhos

foram realizados com os tem as dos totalitarism os e conflitos m undiais, tendo com o foco o

antissem itism o, a perseguição aos ju d eu s e o H olocausto.

O objetivo principal do projeto foi levar os estudantes a refletir sobre a responsabilidade

da sociedade para com a defesa e o cum prim ento dos D ireitos H um anos. C om a aplicação das

atividades didáticas na escola, foi possível desenvolver debates sobre m igração e diferenças

étnicas e culturais. A o construir relações com os tem as históricos estudados e os relatos de

vítim as do holocausto, partindo de suas realidades, proporcionou-se aos estudantes m aneiras de

60 3
com preender que os D ireitos H um anos correspondem à garantia de condições b ásicas de

existência das pessoas.

P o r fim , através do desenvolvim ento e da aplicação da intervenção pedagógica em sala

de aula, foi possível aos acadêm icos bolsistas a form ação v inculada à realidade de u m a escola

pú b lica da cidade de C riciúm a/SC N esse sentido, o P IB ID /U N E S C cum priu o seu papel com o

program a e o S ubprojeto H istória, com o u m a parte im portante do m esm o, proporcionando aos

acadêm icos das licenciaturas a oportunidade de contatos com a educação básica ainda na

universidade. E sse contato inicial é im portantíssim o na preparação para o futuro trabalho

docente dos acadêm icos.

R E F E R Ê N C IA S

B E N E V ID E S , M aria V ictoria. E d u c a ç ã o em D ire ito s H u m a n o s : de que se trata? S. L:


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2009.

F o n te f in a n c ia d o r a : C oordenação de A perfeiçoam ento de P essoal de N ível Superior


(C A P E S)

604
POLÍTICAS PÚBLICAS DE IDENTIFICAÇÃO, PROTEÇÃO,
SALVAGUARDA, VALORIZAÇÃO E DIFUSÃO DE BENS CULTURAIS: O
“ICMS - ÍNDICE DO PATRIMÔNIO CULTURAL” NO ESTADO DE MINAS
GERAIS.

P A U L O SÉ R G IO D A S IL V A 283
A N A P A U L A D A S IL V A 284

O E stado de M inas G erais destaca-se na área de políticas públicas relacionadas com a

indução de ações voltadas para a identificação, a proteção, a salvaguarda, a valorização e a

difusão de bens culturais. E m face da previsão legal de que 25% do Im posto Sobre O perações

R elativas à C irculação de M ercadorias e Sobre P restações de Serviços de T ransporte

Interestadual, Interm unicipal e de C om unicação (IC M S ) pode ser repassado aos m unicípios,

conform e regulam entação própria, M inas G erais im plantou um a legislação específica com o

estratégia de estim ulo para que governos m unicipais aderissem às políticas de patrim ônio

cultural, educação, saúde, m eio am biente, produção de alim entos, entre outros, a p artir da

edição da Lei E stadual 12.040/1995, popularm ente designada com o “Lei R o b in H ood” , que foi

reform ulada pela 13.803/2000 e, atualm ente vigora a Lei 18.030/2009.

Segundo ela, percentuais das receitas obtidas por m eio da arrecadação do ICM S

pertencentes aos M unicípios são distribuídos segundo critérios específicos, definidos em seu

A nexo I (art. 1°, caput). E ntre eles está previsto o do P atrim ônio C ultural: “relação percentual

entre o Índice de P atrim ônio C ultural do M u n icípio e o som atório dos índices de todos os

M unicípios, fornecida pelo Instituto E stadual do P a trim ô n io H istórico e A rtístico - IE P H A ”

(Art. 1°, VII), estabelecido a partir dos seguintes atributos: N ú cleo H istórico (NH), C onjunto

U rbano ou P aisagístico (CP), B ens Im óveis (BI), B ens M óveis (B M ), R egistro de B ens

C ulturais Im ateriais (RI), Inventário de P ro teção do P atrim ônio C ultural (IN V ), E ducação

P atrim onial (EP), P lanejam ento e P olítica M unicipal de P roteção ao P atrim ônio C ultural e

outras ações (PC L) e F undo M unicipal de P reservação do P atrim ônio C ultural (FU ), itens nos

quais os m unicípios podem o b ter pontuações variáveis segundo intervalo m ínim o e m áxim o,

de acordo com sua com posição geográfica, populacional e dem ais condicionantes técnicos.

N esse contexto, visando obter os recursos correspondentes os m unicípios m ineiros

passaram a im plantar e desenvolver ações na área do patrim ônio cultural. A tuam seguindo as

2831 Universidade Federal de Uberlândia - Instituto de História, Doutor em História. E-mail: paulosilva@ufu.br
284 Universidade Estadual Paulista - UNESP - Campus de Franca/SP. Doutora em História. E-mail:
anapaulahistoria@vahoo.com.br
605
orientações definidas na Lei R obin H ood e guiam -se pelas determ inações conceituais e

m etodológicas do IE PH A /M G , fixadas em resoluções e deliberações norm ativas. A dem ais, a

esse órgão cabe a análise anual da docum entação po r eles enviada, com probatória da

im plantação e/ou da execução dessas políticas públicas, segundo os p receitos norm ativos

estabelecidos pela própria autarquia estadual.

D esde a origem da previsão legal do índice do P atrim ônio C ultural, nas duas leis

anteriores e na atualm ente vigente, a 18.030/2009, foi atribuído o percentual de 1% das receitas

do IC M S a ser distribuído aos m unicípios por tal índice. À prim eira vista, tal porcentagem

p arece tratar de recursos de pouca m onta. C ontudo, desde sua im plantação, são valores

significativos, vide as transferências via IC M S - Índice P atrim ônio C ultural feitas aos

M unicípios m ineiros de 2002 a 2019, no gráfico abaixo, elaborado a p artir dos dados da

F undação João Pinheiro.

Fonte dos dados: Fundação João Pinheiro. Pesquisa dos Demonstrativos da Receita de ICMS / IPI-exportação pelo
ano e mês de referência - Critério do Patrimônio Cultural. (2002-2019). Disponíveis em <http://robin-
hood.fjp.mg.gov.br/index.php?option=com iumi&fileid=7&Itemid=70> . Acesso em: 04 nov. 2022.
Organização: Paulo Sérgio da Silva e Ana Paula da Silva

O bserva-se na série disponível que o 1% do IC M S - Índice do P atrim ônio Cultural

distribuído aos m unicípios m ineiros que fizeram ju s a pontuação nesse critério significou a

divisão de um bolo que foi de R $ 20.954.460,89 (vinte m ilhões, novecentos e cinquenta e quatro

m il, quatrocentos e sessenta reais e oitenta e nove centavos), em 2002 para R $ 100.356.775,15

(cem m ilhões, trezentos e cinquenta e seis m il, setecentos e setenta e cindo reais e quinze

centavos), em 2019. V alores que chegaram , em 2020 a quantia de R $ 102.989.144,40 (cento e

606
dois m ilhões, novecentos e oitenta e nove m il, cento e quarenta e quatro reais e quarenta

centavos) e, em 2021, ao m ontante de R $ 135.165.586,93 (cento e trin ta e cinco m ilhões, cento

e sessenta e cinco m il, quinhentos e oitenta e seis reais e noventa e três centavos).

N esse cenário, com recursos crescentes e de tal m agnitude, a m aioria dos m unicípios do

E stad o de M inas G erais, visando obter os ganhos correspondentes, passaram a im plantar e

desenvolver ações na área do patrim ônio cultural, segundo as diretrizes definidas na Lei R obin

H ood e orientadas pelas determ inações conceituais e m etodológicas do IE PH A /M G . D este

m odo tal órgão assum iu um papel essencial nos rum os das ações culturais dos m unicípios

m ineiros ao editar resoluções e deliberações norm ativas disciplinando os program as e os

procedim entos m etodológicos para a im plantação, a execução e a consolidação de políticas

públicas e ações voltadas para o patrim ônio cultural. T ornou-se, o responsável pela definição,

revisão e aprim oram ento das ações de proteção aos patrim ônios culturais m unicipais, num a

constante busca po r m elhor efetividade e eficiência.

A o IE P H A /M G cabe ainda, anualm ente, a análise detalhada da docum entação enviada

pelos m unicípios, com probatória da im plantação e/ou da execução dessas políticas públicas,

segundo os preceitos norm ativos estabelecidos po r aquela autarquia estadual via resoluções e

deliberações norm ativas. A o final da apreciação é atribuída a cada participante do processo a

p o ntuação que será utilizada com o índice no cálculo do repasse do IC M S -P atrim ônio C ultural,

no ano seguinte ao da avaliação. O u seja, no final de 2021 o m unicípio enviou a docum entação

com probatória dos program as e ações desenvolvidos naq u ele ano; essa docum entação é

analisada pelo IE P H A em 2022, atribuindo u m a pontuação ao m unicípio segundo os critérios

de pontuação constantes do anexo II da lei 18.030/2009 e, finalm ente, a p artir de ja n e iro de

2023 o m unicípio com eça a receber repasses fin an ceiro s em seu exercício fiscal. E assim ,

sucessivam ente.

Im plantado na legislação estadual o novo sistem a de repartição do IC M S e definidas a

sistem ática e as diretrizes m etodológicas pelo IEPH A , to rn a-se interessante identificar a adesão

e a participação dos m unicípios m ineiros nesse novo m odelo de gestão e prom oção de políticas

públicas culturais. N esse sentido o gráfico abaixo é revelador:

607
Fonte dos dados: IEPHA/MG. Tabelas de pontuação definitiva - Exercícios de 1996 a 2021.
Elaboração: Paulo Sérgio da Silva e Ana Paula da Silva

C onstata-se que a partir da im plantação da sistem ática o núm ero de m unicípios

participantes oscilou positivam ente na m aioria dos anos, com expressivos aum entos, entre os

exercícios 2002/2004, 2006/2011 e 2016/2021. L em brando que atualm ente no E stado existem

853 m u n ic íp io s, é significativo o fato de que a p artir de 2006, onze anos após a adoção da

estrutura trib u tária que previu o índice do P a trim ô n io C ultural, 593 m u n ic íp io s, ou seja, 7 0 %

(setenta po r cento) dos m unicípios m ineiros j á se dedicavam a im plantar, consolidar e a m anter

políticas públicas locais voltadas para tal setor. Percentual crescente que chegou a

im pressionantes 9 5 % (noventa e cinco por cento) no e x ercício 2020 e atingiu o recorde no

e x ercício 2021 de 9 9 ,7 5 % (noventa e nove virgula setenta e cinco po r cento), respectivam ente

representados po r 805 e 851 m unicípios pontuados do total de 853 unidades no E stado.

O utra form a de v erificar o engajam ento dos m unícipios do E stado de M inas G erais na

política estadual de proteção do patrim ônio artístico, h istórico e cultural é por m eio da análise

do quantitativo dos bens protegidos pelo tom bam ento, com preendendo bens m óveis e im óveis,

conjuntos urbanos e paisagísticos e núcleos históricos tom bados pela U nião, E stad o e

M unicípios. D e acordo com os dados de 2021 do IE P H A (Instituto E stadual do P atrim ônio

H istórico e A rtístico), M inas G erais conta com 4.837 ( q u a tr o m il, o ito c e n to s e t r i n t a e sete)

b ens to m bados pela U nião, E stado e M unícipios, distribuídos nas categorias acim a referidas.

608
R esta identificar no conjunto de tais bens protegidos, quantos o são por interm édio do

to m b am en to m unicipal. A análise dos dados disponíveis perm ite a constatação de que entre os

4.837 b en s to m b a d o s , até o final de 2021, no E stad o de M inas G erais, 4.403 ( q u a tr o m il,

q u a tro c e n to s e trê s ) estão protegidos m ediante to m b a m e n to m u n ic ip a l. O u seja, foram

alçados a essa condição a p artir da atuação de atores, ag en tes e gestores que estim ulados pela

política estadual do IC M S - P atrim ônio C ultural adotaram para tais bens a proteção conferida

pelo tom bam ento, na esfera m unicipal. V eja-se a representação gráfica:

Bens tombados no Estado de Minas


Gerais (2021)
5000

4500 4403

4000

3500

3000

2500

2000
1500

1000

500

0
B e n s T o m b a d o s p e lo s M u n ic íp io s B e n s t o m b a d o s p e lo s U n iã o o u
E s ta d o

Fonte dos dados: IEPHA/MG. Relação dos bens protegidos por Tombamento.
Elaboração: Paulo Sérgio da Silva e Ana Paula da Silva

A análise dos dados dem onstra que, até no final de 2021, no conjunto dos bens

protegidos pelo tom bam ento, no E stado de M inas G erais, 9 1 % (n o v e n ta e u m p o r cen to ) o

são por interm édio de to m b a m e n to s m u n ic ip a is , ou seja, 4.403 ostentam tal condição frente

ao total dos 4.837 protegidos por tal instrum ento. Portanto, apenas 434 são bens tom bados pelo

U n ião ou pelo E stado, sendo todos os dem ais protegidos na esfera m unicipal. S eguindo no

escrutínio dos dados, descobre-se que na proteção de seus bens artísticos, históricos e culturais

o in s tr u m e n to ju r íd ic o do to m b a m e n to m u n ic ip a l foi a d o ta d o em 634 (seiscen to s e t r i n ta

e q u a tr o ) das 853 localidades m ineiras, ou seja, em aproxim adam ente, 7 4 % (s e te n ta e q u a tr o

p o r c e n to ) dos m u n ic íp io s.

609
Fonte dos dados: IEPHA/MG. Relação dos bens protegidos por Tombamento.
Elaboração: Paulo Sérgio da Silva e Ana Paula da Silva

P ercebe-se, portanto, que via recursos financeiros do IC M S -P atrim ônio C ultural, a

indução coordenada pelo governo de M inas G erais estim ulou e consolidou a m unicipalização

da política de patrim ônio cultural no E stado. F orm atou-se um sistem a de gestão m ediante a

hierarquização de instituições m unicipais, constituídas segundo as peculiares locais e o

com ando estadual v ia IE PH A /M G , que resultou na adoção de um a agenda política e técnica

progressiva na área do patrim ônio cultural, na m edida em que as ações foram sendo

disciplinadas, adaptadas e readequadas v ia reso lu çõ es e deliberações norm ativas do órgão

estadual.

A dem ais, m ediante com pensação financeira, os m unicípios m ineiros foram estim ulados

a fo rm u lar e a im plantar políticas públicas de patrim ônio cultural, condicionadas aos critérios

estabelecidos pelo In stituto E stadual do P atrim ônio H istórico e A rtístico de M inas G erais

(IE P H A /M G ). P o r exem plo, estão sujeitos a estrita observação e satisfação aos itens

obrigatórios exigidos nos dossiês de to m bam entos e de registros m unicipais, os quais em bora

executados em âm b ito local encontram -se adstrito a análise e v alidação da autarquia estadual

no m om ento da sua verificação, aceite e incorporação para fins de pontuação no IC M S -

P atrim ônio C ultural.

D esta feita, os m unicípios acabaram forçados à atualização conceitual de suas práticas

preservacionistas, com a im posição nas diretrizes estaduais das ações de inventário, de

educação patrim onial e da obrigatoriedade da criação dos F undos M u n icip ais de P atrim ônio

C ultural, destinados a aplicação obrigatória de determ inados p ercen tu ais dos recursos oriundos

do IC M S -P atrim ônio C ultural, entre outras.

610
N esse aspecto, foi significativo o fato de que na atualização da lei R obin H ood, a redação

da 18.030, de 12 de ja n e iro de 2009, em seu anexo II, passou a contem plar o p a trim ô n io

im a te r ia l com o atributo na pontuação para o repasse de IC M S - P atrim ônio C ultural. Tal

situação levou à im posição de novas diretrizes pelo IE P H A /M G aos m unicípios interessados

em desenvolver ações voltadas a tais bens, no to can te aos registros e/ou salvaguarda, com vistas

a pontuarem em relação a tanto.

E fetivada a inserção do patrim ônio im aterial no rol de bens culturais contem plados na

distribuição financeira do IC M S, o IE P H A /M G , po r m eio de novas D eliberações N orm ativas

do C onselho E stadual do P atrim ônio (C O N E P ), estabeleceu as diretrizes e a m etodologia a

serem observadas pelos m unicípios na m ontagem e no trâm ite dos dossiês de registro de bens

culturais im ateriais. A tualm ente, novem bro de 2022, nos term os da D eliberação N orm ativ a

vigente a D N 20/2018, entre os quadros de docum entações exigidas pelo órgão para o m unicípio

ser pontuado no critério IC M S -P atrim ônio C ultural, encontra-se o Q uadro II, que condensa,

entre outras coisas, as norm as a serem observadas para a com posição dos dossiês de registros

na esfera m unicipal.

R eportando-se à C onvenção para a Salvaguarda do P atrim ônio C ultural Im aterial da

U N E SC O , a D N 20/2018 destaca que o patrim ônio im aterial com preende “ as práticas,

representações, expressões, conhecim entos, técnicas - ju n to com os instrum entos, objetos,

artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as com unidades, os grupos e, em

alguns casos, os indivíduos reconhecem com o parte integrante de seu patrim ônio cultural” .

A rcabouço id entitário que é transm itido de g eração em g eração e constantem ente recriado pelas

com unidades e grupos em função do seu am biente, de sua interação com a natureza e história,

para o qual o registro é um in strum ento de proteção, cujo objetivo é valorizar tais grupos,

reconhecer a sua cultura com o parte do p atrim ônio cultural e oferecer m eios para garantir a sua

perm anência e continuidade (IE PH A /M G , 2018, p. 27).

P ara obter pontuação relacionada ao P atrim ônio Im aterial, o m unicípio deve enviar cópia

ao órgão estadual do dossiê de registro de cada um dos seus bens culturais im ateriais protegidos.

E m tal processo são exigidos itens técnicos, tais com o: introdução, histórico, depoim entos

(m ínim o três) de pessoas detentoras da v ivência referente à m anifestação cultural registrada,

análise descritiva, docum entação audiovisual, docum entação fotográfica (m ínim o de 20 fotos

coloridas, im pressas, legendadas e datadas), plano de salvaguarda (diagnóstico, diretrizes para

v alorização e continuidade do bem , cronogram a e referências bibliográficas) e ficha técnica,

aos quais se som am um a série de docum entos adm inistrativos, a saber: p roposta de registro,

declaração de anuência da com unidade e/ou de seu representante, ata da reunião do C onselho

M unicipal do P atrim ônio C ultural que aprova o registro do bem im aterial, com provação de
611
publicidade da decisão sobre a aprovação do registro, eventuais im pugnações ao registro, se

houver, acom panhada da resposta apresentada e inscrição no L ivro de R egistro M unicipal

(IE P H A /M G , 2018, p. 27-29).

É im portante destacar que, após o envio e análise, a aprovação/pontuação pelo IE PH A

do dossiê de registro m unicipal gera nota autom ática tão som ente no prim eiro exercício. N os

anos subsequentes, os p ercentuais atribuídos ao(s) b em (ns) cultural(ais) são definidos m ediante

um a com plexa engenharia que im plica a efetiva com provação, pelo M unicípio, via

docum entação enviada ao órgão, da execução do P lano de S alvaguarda do bem protegido pelo

registro, investim entos e despesas financeiras no bem cultural im aterial e ações de difusão

cultural, m ediante a aplicação de porcentagens e condições técnicas definidas na própria

D eliberação N orm ativa.

C om pete ressaltar, portanto, que o desafio do m unicípio não é som ente p ontuar via

realização de processos de registros de b ens culturais im ateriais, m ediante aprovação da

docum entação enviada ao IE PH A /M G , m as m anter essa pontuação ao longo dos anos, sendo

obrigatório, inclusive, o envio, para efeitos de pontuação, do R elatório de R evalidação do

registro ao órgão, 10 (dez) anos após a inscrição do bem cultural em um dos livros de registro

(IE P H A /M G , 2018, p. 29-31).

A in corporação da proteção aos b ens im ateriais na política estadual de patrim ônio

cultural, a partir da Lei 18.803 de 12/01/2009, gerou ações m unicipais ao longo do ano de 2010,

cuja docum entação foi enviada ao IE PH A /M G , no final daquele ano, analisadas e pontuadas

em 2011, gerando efeitos financeiros no exercício de 2012. O m apeam ento da relação entre os

m unicípios que pontuaram no IC M S -P atrim ônio C ultural, em sentido geral, e aqueles que

conseguiram obter pontuação relativa a bens im ateriais (seja pelo processo de registro e/ou por

execução de ações de salvaguarda e difusão), desde então e até o ano de 2020, resu lta na

seguinte configuração:

ICMS/MG - Critério Patrimônio Cultural: Exercícios de 2012 a 2020


Ano do Municípios pontuados - ICMS: Pontuou em ações relacionadas
Exercício critério patrimônio cultural a patrimônio imaterial
2012 723 154
2013 639 193
2014 527 143
2015 655 188
2016 658 227
2017 746 546
2018 731 540
2019 788 671
2020 805 746
Fonte dos dados: IEPHA/MG. Tabelas de pontuação definitiva - Exercícios de 2012 a 2020.
Elaboração: Paulo Sérgio da Silva e Ana Paula da Silva

612
R epresentados graficam ente, observa-se a seguinte com posição:

Fonte dos dados: IEPHA/MG. Tabelas de pontuação definitiva - Exercícios de 2012 a 2020.
Elaboração: Paulo Sérgio da Silva e Ana Paula da Silva

E n tre os m unicípios que pontuaram em patrim ônio im aterial, percebe-se um

crescim ento significativo no período analisado, especialm ente a partir do ex ercício de 2017,

p artindo das proporções: 154/723, ou seja, 2 1 % , em 2012; p ara 546/746, 7 2 % , em 2017 e

746/805, aproxim adam ente 9 3 % , em 2020. O s dados indicam a consolidação da adesão dos

m unicípios m ineiros às políticas e ações patrim oniais voltadas ao patrim ônio im aterial, de

fo rm a expressiva e consistente, dem onstram a form atação e a estabilização de um a P olítica de

E stad o em relação a essa tipificação patrim onial. N o conjunto, a forte adesão e as ações culturais

im plantadas e desenvolvidas nos m unicípios m ineiros atestam o sucesso da política de

patrim ônio e da agenda pública em relação à identificação, proteção, prom oção, salvaguarda e

v alorização dos bens culturais im ateriais.

C abe d estacar que nos últim os anos, em favor do reconhecim ento e salvaguarda do

patrim ônio cultural im aterial, o IE P H A /M G desenvolveu, no E stado u m a série de ações

relacionadas com a catalogação de determ inados segm entos e grupos culturais, com destaque

para três delas: o in v e n tá rio d a s F o lia s d e M in a s G e ra is (para fins de registro das F olias de

R eis, T ernos ou C harolas), o V io la: f a z e r e to c a r em M in a s (com o objetivo de reconhecer o

fazer e o to ca r com o patrim ônio cultural de M inas G erais, m ediante cad astro dos violeiros(as)

e fazedores(as) de violas m ineiros) e o C o n g a d o s e R e in a d o s de M in a s G e ra is (para fins de

61 3
reconhecim ento de tais práticas e grupos com o patrim ônio cultural im aterial do estado, afim de

id en tificar tais bens culturais e articular a sua salvaguarda). E m tais ações coube as entidades e

aos m unicípios cadastrarem os seus respectivos grupos de folias de reis ou outras, ternos ou

grupos de C ongadas, luthiers e violeiros, sendo consideradas tais catalogações para fins de

p o ntuação no quesito patrim ônio im aterial. A ssim sendo, essas ações geraram im pactos na

distribuição do IC M S -P atrim ônio C ultural, um a vez que m uitos m unicípios passaram a

contabilizar nas suas pontuações com itens de patrim ônio im aterial de reconhecim ento estadual.

Surge a indagação, o significativo aum ento da participação/pontuação dos m unicípios

no quesito patrim ônio im aterial, especialm ente a p artir do exercício 2017, não seria em virtude

da m era adesão dos m unicípios as três ações desenvolvidas pelo IE PH A /M G , acim a reportadas?

P ara afastar tal hipótese, um dado é essencial, recorde-se que o registro, enquanto instrum ento

de identificação, valorização, salvaguarda e difusão do patrim ônio cultural, pode ser conferido,

atribuído, decretado pelo m unicípio a um dado bem im aterial, unicam ente po r sua

representatividade local. E ntão, com pete identificar se existem e quantos são os registros

municipais e quantos municípios o utilizaram, no lim ite de suas com petências legais e
adm inistrativas aplicando-o aos seus bens culturais im ateriais de representatividade local.

D ados da D iretoria de P rom oção - G erência de articulação com os M unicípios do

IE PH A /M G , discrim inados na lista dos bens, protegidos pelo R egistro de B ens Im ateriais, pela

U nião, pelo E stado e pelos M unícipios, apresentados ao órgão p ara fins de análise e pontuação

do IC M S -P atrim ônio C ultural - E xercício 2023 apontam a existência no E stado de M inas

G erais de 2.427 (dois m il, q u a tro c e n to s e v in te e sete) bens de tal categoria e sob tal nível de

proteção, ao final do ano de 2021. N esse conjunto, identificam -se 854 (o ito c en to s e c in q u e n ta

e q u a tr o ) b ens im a te ria is com r e g is tro m u n ic ip a l, ou seja, que são protegidos exclusivam ente

po r interm édio de ações m unicipais, adotadas em virtude de sua representatividade v inculada

com a identidade cultural, histórica ou artística local, enquanto 1.573 (m il q u in h e n to s e s e te n ta

e trê s ) tem o seu r e g is tro v in c u la d o a U n iã o ou ao E s ta d o , pela sua representatividade

nacional ou estadual. Portanto, 3 5 % ( tr in ta e cinco p o r c e n to ) dos bens im ateriais registrado

no E stado de M inas G erais, até o final de 2021, o são por re g is tro s m u n ic ip a is.

614
Bens com Registro (Patrimônio Imaterial) no
Estado de Minas Gerais (2021)
1800

1600 1573

1400

1200

1000

800

600

400

200

0
Registro pela União ou Registro pelo M u n ic íp io
Estado

Fonte dos dados: IEPHA/MG. Relação dos bens protegidos por Registro.
Elaboração: Paulo Sérgio da Silva e Ana Paula da Silva

N o contexto dos 853 m unicípios m ineiros, 483 ( q u a tro c e n to s e o ite n ta e trê s )

m u n ic íp io s atuaram e reconheceram seus próprios b ens patrim oniais im ateriais, colocando-os

sob o signo do registro, ou seja, aproxim adam ente, 5 7 % (c in q u e n ta e sete p o r ce n to ) dos

m unicípios do E stados de M inas G erais adotaram políticas públicas de prom oção, salvaguarda

e difusão de seu patrim ônio cultural im aterial, m ediante re g is tro s m u n ic ip a is de tais bens, em

contraposição a outros 370 m unicípios que ainda não atuaram nesse nicho.

Fonte dos dados: IEPHA/MG. Relação dos bens protegidos por Registro.
Elaboração: Paulo Sérgio da Silva e Ana Paula da Silva
615
O s dados e as análises apresentadas nas páginas anteriores deixam claro que as políticas

públicas m ineiras voltadas para a identificação, a proteção, a valorização, a salvaguarda e a

difusão do patrim ônio cultural no E stado de M inas G erais, via recursos financeiros do IC M S -

P atrim ônio C ultural e orientação técnica, supervisão, acom panham ento e análise do Instituto

E stadual do P atrim ônio A rtístico e C ultural de M inas G erais (IE P H A /M G ) dem onstram a

efetiva incorporação e adoção de ações, projetos e program as voltados para o patrim ônio

cultural m aterial e im aterial, na grande m aioria dos 853 m unicípios do E stado. D em onstram o

sucesso n a form atação, im plantação, consolidação e no funcionam ento de um sistem a de gestão

pú b lica que conecta hierarquicam ente instituições m unicipais, constituídas segundo as

p eculiares locais e o com ando estadual do IE PH A /M G , situação que resultou, não restam

dúvidas, na adoção de um a agenda técnica e política progressiva na área do patrim ônio cultural,

na m edida em que as ações foram sendo disciplinadas, adaptadas e readequadas via resoluções

e deliberações norm ativas do órgão estadual, ao m esm o tem po em que as ações e práticas dos

órgãos m unicipais foram , progressivam ente, ajustadas, am pliadas, aperfeiçoadas.

E videntem ente existem problem as que precisam ser discutidos e trabalhados, tais com o:

o excessivo apego aos resultados financeiros das ações po r p arte de algum as P refeituras, em

detrim ento do com prom isso efetivo com um a política de proteção, salvaguarda e valorização

do patrim ônio cultural; as descontinuidades nas práticas, projetos, ações, na gestão e condução

das políticas m unicipais relativas a tal setor, em virtude das repetidas m udanças de equipes nas

secretarias e/ou departam entos de cultura nos m unicípios devido a eleições e m udanças de

gestão; o surgim ento e a proliferação de em presas de consultorias, m uitas vezes com ex-

técnicos do próprio IEPH A , atuando com o principais atores na im plantação de ações e

program as estranhos às reais dim ensões culturais locais e à efetiva participação social na

com preensão e execução das atividades, entre outros.

C ontudo, tais aspectos não devem tu rv ar a visão e as evidências do pioneirism o e dos

inúm eros resultados positivos da política patrim onial desenvolvida no E stado de M inas G erais,

do papel prim ordial do IE P H A /M G nessa transform ação e, particularm ente, da consolidação da

adesão dos m unicípios m ineiros as políticas públicas estaduais voltadas para a identificação, a

proteção, a valorização, a salvaguarda e a difusão do patrim ônio cultural m aterial e im aterial a

p artir da im plantação, do IC M S- P atrim ônio C ultural, no período entre 1996 a 2021.

616
R E F E R Ê N C IA S D O C U M E N T A IS

FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Relatórios de repasses dos valores de ICMS e IPI/Exportação aos municípios
mineiros - Critério do Patrimônio Cultural. (2002-2021). Disponíveis em <http://robin-
hood.fjp.mg.gov.br/index.php?option=com iumi&fileid=7&Itemid=70>. Acesso em: 04 nov. 2022.
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IEPHA/MG. Deliberação Normativa do CONEP 20/2018. Disponível em:
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IEPHA/MG. Relação de bens protegidos por Tombamento. 2021. Disponível
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IEPHA/MG. Tabelas de pontuação definitiva. Exercícios 1996 a 2023. Disponível em: <
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MINAS GERAIS - Lei 18.030 - Dispõe sobre a distribuição da parcela da receita do produto de arrecadação
do ICMS pertencentes aos Municípios. Publicada em 12/01/2009. Disponível em: <
http://www.fazenda.mg.gov.br/empresas/legislacao tributaria/leis/2009/l18030 2009.htm> Acesso em: 04 nov.
2022.

617
A A S S IS T Ê N C IA A O S U L D O P IA U Í N O P O S T O D E H IG IE N E D E
F L O R I A N O ( 1 9 3 1 - 1 9 3 5 ) 285

R A K E L L M IL E N A O S Ó R IO S IL V A 286
JO S E A N N E Z IN G L E A R A SO A R E S M A R IN H O 287

R e su m o : O objetivo do trabalho é identificar de que form as o P osto de H igiene do m unicípio


de Floriano passou a conceber as p ráticas m édicas de saúde, que foram b aseadas na prevenção
e na terapêutica das enferm idades durante o G overno do Interventor Federal do Piauí, L andry
Salles G onçalves. D e acordo com H ochm an (2002), a p artir da década de 1930, o E stado p assou
a ser o principal p restador dos serviços de saúde pública, colocando o higienism o e a
salubridade em prim eiro plano. A s ações, antes baseadas na cura e tratam ento das enferm idades,
passaram a com binar de form a peculiar as m edicinas profilática e curativa, desenvolvendo um a
nova fo rm a de tratar a população do país, sendo que tais m edidas eram vig en tes no governo do
Interventor Federal L andry Salles G onçalves, que foi responsável po r reorganizar a
adm inistração pública, incluindo as instituições públicas de saúde. (M A R IN H O , 2018). N o
início de 1931, a saúde pública ainda era restrita à capital T eresina, ao norte em P arn aíb a e ao
sul em Floriano, fazendo com que a assistência m édica ao sul do estado ficasse a cargo dos
serviços do Posto de H ig ien e e do H ospital de C aridade, am bos em Floriano, prestando
relevantes serviços aos m unicípios sem políticas sanitaristas regulares. (A L M A N A Q U E
C A R IR I, 1952). O s B oletins M ensais de T rabalhos eram docum entos oficiais responsáveis por
contabilizar as principais doenças do período, que detalhavam as form as de profilaxia,
v acinações e revacinações, trabalhos epidem iológicos, serviços de saneam ento e serviços
laboratoriais fornecidos para os setores pobres. (PIA U H Y , 1933). A pesar disso, ainda haviam
falhas e dados incom pletos, sendo possível considerar que nesse período, apesar de o Piauí ter
passado po r um a reorganização político-adm inistrativa para efetivar as ações assistenciais de
saúde, houve avanços e retrocessos na saúde pública, influenciando na condição problem ática
do estado.

P a la v ra s -c h a v e : H istória; Saúde Pública; P osto de Saúde de Floriano.

O prim eiro governo V argas provocou avanços para as políticas sociais de saúde do país.

P ara a m udança desse panoram a, ainda em 1930, foi criado o M inistério da E ducação e Saúde

P ú b lica (M E SP), que visava a rem odelação dos serviços sanitários e a incorporação da po lítica

social para a população que não fazia parte da m edicina previdenciária, com o atribuição do

E stado, um a vez que essas m udanças j á estavam em um processo lento e contínuo desde o final

285 Este trabalho é resultado de uma pesquisa em andamento do projeto PIBIC CNPq, da Universidade Estadual
do Piauí- UESPI, com vigência 2021-2022, intitulado “Curar com ciência e prevenir com cautela: os postos de
higiene e a interiorização da saúde pública no Piauí (1930-1949)”, sendo orientado pela Prof.a Dr.a Joseanne
Zingleara Soares Marinho.
286 Graduanda do 7° Período em Licenciatura em História pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Bolsista
CNPq 2021-2022, membra do Núcleo de Estudos em Estado, Poder e Política- NEEPP e do Grupo de Pesquisa
em História das Ciências e da Saúde no Piauí (Sana). E-mail: rakellosorio@gmail.com.
287Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná- UFPR. Professora Adjunta da Universidade Estadual
do Piauí- UESPI. Docente do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História- ProfHistória. Professora
Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil (PPGHB) da Universidade Federal do Piauí-
UFPI. E-mail: joseannemarinho@cchl.uespi.br.
618
da década de 1910, com reform as e expansão do serviço de profilaxia rural e saneam ento, em

especial, no com bate de endem ias. N esse período, o quadro sanitário da capital, o R io de

Janeiro, ainda não grassava da form a desejada, m esm o havendo a concentração dos program as

de saúde nessa área urbana, as precárias condições de salubridade e higiene ocasionava a

presença de diversas doenças endêm icas e epidêm icas, tais com o: tuberculose, sífilis e doenças

nutricionais. E m contrapartida o in terio r ficava a m argem , com serviços precários ou sem

n enhum a assistência. (PA IM , 2011).

Segundo H ochm an (2002), esse ideal de saúde pública foi im portante para a construção

nacional, especificam ente a p artir da década de 1920, pois foi p artilh ad a po r m édicos higienistas

e elites políticas, que visavam um B rasil m odernizado e, para isso, era necessária a incorporação

de um a m edicina social de cunho preventivo, com m edidas higiênicas e profiláticas, a fim de

ro m p er com essa ideia do país com o “um im enso hospital” , advindo do discurso m édico de

M iguel P ereira, proferido em decorrência das endem ias que assolavam a região rural, tendo

repercussão persistente e decisiva, onde in fluenciou em políticas públicas de saúde na prim eira

m etade do século XX.

O s resquícios da P rim eira R epública ainda estavam latentes no pós 1930, onde as

relações desiguais entre os estados se orientavam através das noções de privilégio e exclusão.

N esse cenário de constantes m udanças, em que as norm as foram feitas e desfeitas, e o E stado

passara a ser o principal prestad o r desses serviços, com um a forte cam panha de nacionalização

p autada na m odernização do sistem a político da união, a saúde pública seria delineadora desse

m odelo centralizado, em contraponto aos interesses privados regionais, que colocavam o

higienism o e a salubridade em segundo plano.

A s ações de saúde pública, antes b aseadas em sua totalidade na cura e tratam ento das

enferm idades, passaram a com binar de form a peculiar as m edicinas preventiva e curativa,

desenvolvendo um a nova form a de tratar a população do país. A s viagens de A rth u r N eiv a e

B elisário P en n a foram im portantes com o fo rm a de alerta sobre o saneam ento rural, sobre as

várias endem ias que atingiam essas localidades, com o a m alária e a febre am arela.

(H O C H M A N , 2002). E m to rno dessas novas concepções de prevenção, estratégias e

prioridades foram definidas, não se restringindo som ente a capital e o espaço urbano, v oltando-

se para o interior do país, com o o hom em do cam po e suas endem ias rurais, que se sobressaiam

antes m esm o do início da década de 1930, m as só nesse m om ento foram tratadas com o pautas

para debate.

A antiga natureza da saúde pública foi rem odelada em todo o país de form a gradual

pelos interventores federais designados pelo presidente p ara cada estado, pois não havia

profissionais qualificados, as estruturas eram precárias e os m ateriais eram insuficientes.


619
(FO N SE C A , 2017). D e acordo com Joseanne M arinho (2018), tais m edidas chegaram ao Piauí

através da gestão do interventor federal L andry Salles G onçalves, que foi responsável por

reorganizar a adm inistração pública, incluindo as instituições p ú b licas de saúde.

A ntes da década de 1930, no contexto político de P rim eira R epública, o Piauí passava

po r um processo de construção de um a cultura sanitária, através das prim eiras iniciativas de um

processo de m edicalização da população. A s dificuldades se davam na organização política e

na condição secundária que a saúde pública se encontrava, com péssim as condições de higiene

e salubridade, pois a população apresentava condições de vida precária, com ineficiência na

in fraestrutura básica de abastecim ento de água potável e sujeira predom inante nas ruas das

cidades. (SILV A , 2010).

A inda na década de 1920, a capital T eresina, m esm o atrasada em relação a outras

capitais do país, contou com a instalação do prim eiro P osto Sanitário do estado, em 1921, no

antigo prédio da R ep artição Sanitária, visto com o sinônim o de civilização e m odernidade. O

P osto Sanitário C lem entino Fraga realizava vacinações e revacinações contra varíola e oferecia

serviços de p rofilaxia para lepra, doenças venéreas e tuberculose, serviços am bulatoriais e

serviços dom iciliários, com inspeções v isando a fiscalização dos doentes que não buscavam

tratam ento. (SIL V A , 2019). C om o a organização ainda estava em fase inicial, o estado

priorizava outras atividades em detrim ento da saúde e, dessa form a, a D iretoria de Saúde

P ública, que tin h a com o foco regular e organizar as atividades e serviços sanitários, atuava de

fo rm a ineficiente, que nas palavras do g overnador João L uiz F erreira:

Continuamos no mesmo pé de atrazo, mantendo uma repartição de hygiene, meramente


burocrática, ocupada apenas em fazer inspecções de saude nos funccionarios publicos, conceder
licenças para abertura de pharmacias, registrar diplomas scientificos e em poucas outras
attribuições sem relevância. (RELATÓRIO GOVERNAMENTAL, 1923:12).

A ssim com o os P ostos de Saúde, as D elegacias de H igiene, responsáveis pela

fiscalização de am bientes públicos, notificação dos doentes, p rofilaxia preventiva e educação

higiênica, tam bém se encontravam de form a desorganizada e atuavam de m aneira irregular. N o

m esm o R elatório G overnam ental de 1922, o governador do estado João L uiz Ferreira apontava

que m esm o com algum as delegacias distribuídas pelo estado, pela falta de guardas sanitaristas

qualificados, o serviço se restringia a capital com cam panhas voltadas para as verm inoses, onde

o m apeam ento da cidade de T eresina era necessário para a m elh o r execução do serviço e m aior

facilidade de fiscalização, podendo assim , m ed icar os doentes em casa.

D essa form a, com a ineficiência e restrição da saúde pública a capital e as políticas

sanitaristas pouco efetivas, a assistência do estado se resum ia às Santas C asas de M isericórdia

de T eresina e Parnaíba, o A silo dos A lienados na capital e o hospital de F loriano, pois para o

620
E stad o era m ais viável fazer reparos e m elhorias em instituições j á existentes do que construir

e aparelhar novos serviços. (A R A Ú JO , 2012).

A p artir da década de 1930, com a reorganização adm inistrativa efetiva e o planejam ento

nacional-estadual do interventor L andry S alles, a saúde pública do P iau í se elevou para um

p atam ar superior. O ideário de prevenção e am paro da saúde crescia de acordo com o abandono

de p ráticas tradicionais e a adoção e com preensão racional e científica. A s políticas p úblicas de

saúde passaram a ser m aterializadas nas instituições, nos discursos m édicos, no tratam ento das

doenças venéreas, nas ações do governo piauiense direcionadas a população, fundam entadas

em u m a orientação política de saúde, com base na cultura do higienism o. (N ER Y , 2019). E ntre

os serviços de saúde oficiais, tinham destaque os centros de saúde, os postos de higiene e as

delegacias de saúde, que praticavam o tratam ento e a profilaxia dos doentes com m ais

organização e regularidade.

A pesar de o interventor federal do Piauí ser nom eado som ente em 1931, com a

instalação do G overno P rovisório, m edidas m ais abrangentes com relação à saúde pública já

estavam sendo tom adas pelo governador João de D eus Pires Leal, com o é retratado no R elatório

G overnam ental de 1930, apresentado à C âm ara L egislativa, onde m ostra ainda as dificuldades

enfrentadas na expansão do serviço de saneam ento, que visava a m elhoria da fiscalização e

cum prim ento das obrigações legais quanto as instalações higiênicas, p rincipalm ente no que

tange as cidades do interior, por conta da falta de verbas. C om a elevação do P osto S anitário

C lem entino Fraga em C entro de Saúde, houve u m a m udança no cenário do tratam ento das

doenças, possibilitando m aior suporte a população, pois era responsável pelo com bate às

verm inoses, m alária e doenças venéreas. A lém disso, tam bém foi criado o Posto A n ti-

tracom oso M o u ra B rasil e o P osto E sco lar A breu Fialho, que no geral eram responsáveis pelo

tratam en to dos casos crescentes de tracom a no estado. (M A R IN H O , 2018).

A p artir de 1931 foi possível n o tar m udanças graduais e m ais efetivas, até m esm o no

que tange aos R elatórios G overnam entais do E stado. D esde o in ício da P rim eira R epública até

o ano de 1930, o destaque para a saúde pública era m ínim o, se relatava m ais as dificuldades

enfrentadas na instalação de serviços públicos e na falta de verbas para custeá-los do que nas

m elhorias desem penhadas de form a regular. T odavia, com a intervenção federal de L andry

S alles, seu relatório m ostra o esforço em reo rg an izar a saúde pública, priorizando a

centralização e o controle da adm inistração pública. C ada serviço de saúde passou a ser descrito

de form a específica, para m ostrar a evolução no atendim ento e a dim inuição das doenças que

assolavam a região.

T am bém houve um aum ento significativo nas verbas destinadas p ara a saúde pública,

tan to pessoal quanto m aterial, pois a m aior dificuldade para o período anterior era a
621
insuficiência de verbas, de m odo que outros serviços eram priorizados, enquanto a saúde

piauiense continuava deficitária. E m 1932, foi instalado o Instituto A lvarenga, centro de

investigações científicas, subdivididos em : Instituto Pasteur, responsável pelo tratam ento

antirrábico, ocasionando a dim inuição dos casos no estado através das pesquisas ex ecutadas;

Instituto Jenner, responsável pela produção da linfa antivariólica e o Instituto O sw aldo Cruz,

responsável por pesquisas m icrobiológicas. (R E L A T Ó R IO G O V E R N A M E N T A L , 1931 -

1935).

A p artir de 1933, m ais verbas foram destinadas para diversos serviços, com o: o

L e p ro sário de P arnaíba, estabelecim entos hospitalares do estado, A silo de m endigos de

T eresina e a S ociedade F em inina de A ssistência aos L ázaros e proteção aos pobres de Parnaíba.

A ntes, m esm o a filantropia contando com os subsídios governam entais desde o século X IX , as

verbas eram insuficientes para suprir as necessidades da população po r todo o estado, por isso

som ente no governo de L an d ry S alles, com os aum entos de verbas houveram avanços

significativos na área da saúde pública. (R E L A T Ó R IO G O V E R N A M E N T A L , 1931-1935).

A D ireto ria de Saúde do estado do P iauí, antes desse período, atuava de m odo

ineficiente, com o dem onstra L andry Salles em seu relatório:

A Directoria de Saúde, antes do movimento revolucionario, limitava-se a uma dependencia, em


absoluto ineficiente, do Serviço de Prophylaxia Rural. Para pessoal, contava apenas, com o
Director, o secretario e um servente. Carecia, por completo, de utilidade, pois que, além de tudo,
nenhuma funcção poderia desempenhar á mingua de material. [...] Ambas cheguei, por fim, a
verificar inefficientes, desapparelhadas e sem regulamentação. Não foi possível admitir que
assim permanecessem. (RELATÓRIO GOVERNAMENTAL, 1931-1935:39).

C om a sua reorganização, a diretoria foi dividida em três seções: a Seção de A ssistência

M édica, responsável pelas clínicas m édica, cirúrgica, m ental e obstétrico-ginecológica, a Seção

de Saúde P ública, especializada no enfrentam ento de endem ias e epidem ias e um a seção

especializada em higiene escolar, que já m ostrava com o a proteção à in fâ n c ia com eçava a ser

m aterializada. (M A R IN H O , 2019).

A s novas m edidas visavam , prioritariam ente, conservar a assistência pública desse

governo, com a am pliação dos serviços, não se lim itando som ente a T eresina e Parnaíba, através

da dissolução das delegacias de higiene dessas duas cidades, onde se transform aram em

inspetorias dem ógrafo-sanitárias, de saneam ento, profilaxia rural, de m oléstias venéreas e lepra

e de higiene escolar, especialm ente do tracom a, que vinha acom etendo o estado, principalm ente

a capital, visando dar m aio r assistência para a população no tratam ento e prevenção das doenças

locais. A lém dessas m edidas, a reestruturação da Santa C asa de M isericórdia da capital foi

necessária, sua estrutura era precária e a assistência ho sp italar era ineficiente, sendo preciso ser

feitas reform as nas partes cirúrgica, clínica m édica e obstétrica ginecológica.


622
D e acordo com M arinho (2014), no ano de 1934, foi am pliado o benefício da assistência

m édica a outros m unicípios, pois os postos e inspetorias da capital funcionavam regularm ente,

enquanto o in terio r do estado grande parte da p o pulação vivia em estado precário. A ssim , o

núm ero de D elegacias de Saúde foi elevado, contabilizando 15 unidades de atendim ento288,

onde cada delegacia abrangia um distrito adm inistrativo, exceto D avid C aldas, que era restrita

à C olônia, sendo aquelas responsáveis pelo tratam ento de doenças que assolavam a região,

com o: m alária, sífilis, verm inose e outras m oléstias ven éreas. A lém da instalação de um

dispensário no m unicípio de Parnaíba, com três m édicos e um outro em Floriano, com dois

m édicos. A lém disso, nesse m esm o ano a Inspetoria de H igiene Infantil é substituída pela

D ireto ria de P ro teção à M aternidade e Infância, onde a infância p assa a ser de im portância

governam ental.

C om base no R elató rio G overnam ental de 1931 a 1935, apresentado pelo Interventor

F ederal L andry Salles G onçalves ao presidente da república G etúlio V argas, foi possível ver

detalhadam ente o funcionam ento e atuação da D iretoria de Saúde P ública, com o q uadro

dem onstrativo do m ovim ento dos postos de T eresina e de distribuição de m edicam entos ao
interior.289

A pesar dessas m elhorias apresentadas, ainda não era suficiente para suprir a dem anda

do estado, podendo-se n otar o aum ento crescente das doenças, p rincipalm ente por im paludism o,

sífilis e outros tipos de verm inose, u m a vez que os postos de saúde e as inspetorias que

funcionavam regularm ente era som ente a da capital T eresina, enquanto os serviços de

saneam ento e as delegacias de saúde no in terio r do estado, deixavam a desejar. D esse m odo, os

códices de saúde da cidade de Floriano dem onstram com o os serviços se organizavam e de que

fo rm a as práticas m édicas foram concebidas

A cidade de Floriano está localizada ao sul do Piauí, e a partir da década de 1930, com

a reorganização e centralização da adm inistração pública pelo Interventor Federal, em 1931, foi

nom eado T heodoro F erreira Sobral com o P refeito da cidade, sem a ocorrência de eleição, em

virtude de vigorar o regim e im posto pela R evolução de 30. E m sua adm inistração, de ju lh o de

1931 a outubro de 1934, ele se preocupou em m odernizar a cidade, a partir dos calçam entos das

ruas para facilitar o trabalho das carroças que traziam consigo m ercadorias destinadas as casas

com erciais da cidade, além da criação de um a praça, um m ercado, um cem itério e um a igreja.

(D E M E S, 2002).

288 As delegacias estavam situadas em: Barras, Piripiri, Campo Maior, Oeiras, União, Amarante, Valença, Picos,
São João do Piauí, Bom Jesus, Uruçuí, Castelo, Joaquim Távora, Piracuruca e David Caldas. (RELATÓRIO
GOVERNAMENTAL, 1931-1935:41)
289 Os dados do ano de 1931 não constam nesses serviços.
62 3
N o in ício da década de 1930, a saúde pública no sul do Piauí se encontrava deficitária

po r conta da falta de profissionais, restando apenas o D r. D jalm a N unes e o Dr. Sebastião

M artins de A raújo C osta, responsáveis pela assistência m édica da cidade. O s serviços de saúde

do sul do estado se concentravam no H ospital de C aridade M iguel C outo e no Posto de Saúde

de Floriano, am bos dirigidos pelo m édico Sebastião M artins, que ao longo dos seus anos de

trabalho, elaborou planos e m edidas para estruturar essas instituições de saúde e tratar a

p o pulação doente.

O s serviços prestados po r m eio do P osto de Saúde se davam através de atendim entos

que datam de m arço de 1933. O s códices do posto possuem várias tabelas extensas, separada

po r idade, desde crianças com m enos de um m ês, até pessoas com sessenta anos ou m ais.

T odavia, apesar do n úm ero de habitantes ser de quase seis m il pessoas no período, segundo os

dados da própria tabela, poucos são os casos em cada m ês. O s códices de saúde, ainda em 1933,

passaram a ser padronizados e im pressos, e com isso, foi possível notar que a contabilização

dos casos com eçava som ente a p artir da décim a doença, tuberculose do aparelho respiratório,

enquanto doenças com o: febre tifoide e paratifoide, tifo exantem ático, varíola, saram po,

escarlatina, coqueluche, difteria, gripe ou influenza e peste não aparecem enum eradas em

nenhum m ês que foi analisado. Foi possível notar que as tabelas dos postos de F loriano são bem

im precisas, pois enquanto há dados de vacinação contra varíola e febre tifoide, não há

contabilização das doenças nas tabelas. (PIA U H Y , 1933).

A p artir de ja n e iro de 1934, os boletins m ensais passaram a ser divididas de outra form a,

ao invés de todas as doenças serem organizadas com o no ano anterior, em idade e sexo versus

doença, agora passaram a ser distribuídos em: serviços de p rofilaxia de diversas doenças, sejam

elas contagiosas, venéreas ou helm intoses, separadas por m edicina curativa e preventiva;

núm ero de consultas no posto de saúde e em dom icílio, feito pelas enferm eiras visitadoras;

v acin ação e soroterapia contra varíola, tuberculose, peste, difteria, etc.; m edicação utilizada

contra essas doenças (injeções, com prim idos, sais, etc.), principalm ente as que m ais assolavam

a região, com o: verm inoses, sífilis, m alária e tuberculose; trabalhos epidem iológicos contra

essas enferm idades; serviços de saneam ento no m unicípio, com o: abastecim ento de água,

construção de fossas, poços e valas; serviços de educação e propaganda, com o o serviço escolar

e os trabalhos escolares; e serviços laboratoriais, com pesquisas de m icróbios e parasitas.

(PIA U H Y , 1934).

D essa m aneira, foi possível n o tar a transição lenta e gradual de um a saúde pública

precária e deficiente na P rim eira R epública, com falta de verbas, sem instalações adequadas,

falta de profissionais qualificados e a salubridade com falhas, para o governo do Interventor

F ederal L andry Salles G onçalves, que rem odelou todos os serviços públicos, principalm ente no
624
que tange à saúde pública, através de verbas federais para a conservação desses benefícios

propostos pela D iretoria de Saúde Pública, com a reform a e centralização adm inistrativa, por

m eio da criação de postos de higiene, dispensários, delegacias de saúde, am pliação dos

estabelecim entos hospitalares, com a distribuição de m edicam entos e vacinas, não restringindo

esses serviços som ente a capital Teresina, m as abrangendo outros m unicípios do interior, e

apesar dos serviços ainda serem deficitários, foi possível n otar o grande avanço da saúde pública

no estado, se com parado ao período anterior, proporcionando m elhores condições para as

populações pobres, que antes viviam à m ercê quase que totalm ente da caridade e filantropia das

Santas C asas de M isericórdia.

O governo interventor no Piauí, durante todo o período V argas, priorizou a assistência

infantil e m aterna, po r conta do ideário de nacionalism o em voga, em todo esse período o E stado

elevou seu atendim ento através de serviços específicos visando o cuidado desde o pré-natal até

a idade infantil, onde ocorria os m aiores índices de m ortalidade, am parando e incentivando as

m ães a agirem de acordo com estudos científicos, to rnando-se fundam ental para a am pliação

dos serviços m édicos e da m edicina preventiva em to d o o estado.

A ssim , na década de 1930, com a Intervenção Federal de L andry Salles G onçalves no

Piauí, que rem odelou os serviços públicos a p artir de u m a política federal centralizada,

principalm ente no que tange à saúde pública, através de verbas para a conservação desses

b enefícios propostos pela D ireto ria de Saúde Pública, com a reform a e centralização

adm inistrativa, por m eio da criação de postos de higiene, dispensários, delegacias de saúde,

am pliação dos estabelecim entos hospitalares, não se restrin g in d o som ente a capital T eresina,

m as abrangendo outros m unicípios do interior, com o é o caso de Floriano.

A pesar dos códices do P osto de Saúde de F loriano serem elaborados, ainda havia falhas

e dados incom pletos. A m aioria das tabelas não estavam preenchidas, só havia dados nos

atendim entos através da m edicina curativa, feitos no posto e a dom icílio e as m edicações para

o tratam ento das doenças. D essa form a, foi possível notar que apesar de contar com avanços na

saúde pública, ainda não havia um serviço reg u lar a fim de suprir as necessidades da população

do sul do Piauí.

R E F E R Ê N C IA S B IB L IO G R Á F IC A S E D O C U M E N T A IS

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626
O JORNAL ESTUDANTIL O BRADO UNIVERSITÁRIO COMO FONTE
DE PESQUISA SOBRE A RESISTÊNCIA À DITADURA MILITAR EM
MARINGÁ-PR

R E G IN A C É L IA D A E F IO L 290

R e su m o : O presente artigo discorre sobre o uso do jo rn al estudantil O Brado Universitário,


produzido entre 1973 e 1976 pelo D iretório A cadêm ico da F aculdade de D ireito da
U niversidade E stadual de M aringá (U EM ), com o fonte/objeto de estudo sobre a articulação da
resistência dos estudantes universitários nesta cidade p aranaense. O m ovim ento estudantil foi
u m a das grandes forças de resistência à ditadura m ilitar e, po r essa razão, torn o u -se alvo
preferencial da repressão. E m novem bro de 1964 o governo C astelo B ranco editou a Lei Suplicy
de L acerda, que cassou a legalidade da U N E e das U E E s (U niões E staduais dos E stu d an tes) e
extinguiu os centros acadêm icos das universidades com o objetivo de cercear a ação política
dos estudantes. A pesar da ten tativa de desarticular a organização estudantil, a m ovim entação
política dos estudantes não cessou e a ditadura foi confrontada abertam ente até 1968, ano de
edição do AI-5, com protestos e m anifestações que foram reprim idas com violência. Em
fevereiro de 1969 foi editado o D ecreto-L ei 477, que transpôs para o am biente universitário
to d as as restrições e punições im postas pelo A I-5. D ian te desse quadro, os estudantes buscaram
cam inhos alternativos para levar adiante a luta de resistência. U m deles foi a im prensa
estudantil.

P a la v ra s -c h a v e : Im prensa E studantil; Fontes H istóricas; D itad u ra M ilitar; U niversidade


E stadual de M aringá.

I n tr o d u ç ã o

O jo rn a l estudantil O Brado Universitário, produzido entre 1973 e 1976 pelo D iretório

A cadêm ico N elson H ungria (D A N H ), da F aculdade de D ireito da U niversidade E stadual de

M aringá (U E M ) foi, ao m esm o tem po, fonte e objeto de estudo da p esquisa que resultou na

dissertação de M estrado apresentada ao P rogram a de P ó s-G rad u ação em H istória da referida

universidade, trabalho posteriorm ente publicado em livro no form ato e-book. A pesquisa

b uscou com preender a im portância da im prensa estudantil com o ação de resistência possível

durante o período de m aior repressão da ditadura m ilitar brasileira dentro de um a universidade

no in terio r do país. O prim eiro passou foi entender, por m eio de um estudo bibliográfico, o

papel da im prensa alternativa, vertente da qual faz parte a im prensa estudantil, com o agente de

oposição e resistência ao regim e autoritário. P ara tanto, foi realizado um estudo com parando a

29n Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá e bolsista da


CAPES.
627
atuação da im p ren sa alternativa com a da im prensa hegem ônica no período que antecedeu o

golpe de E stad o civil-m ilitar de 1964 e durante os prim eiros anos da ditadura.

E nquanto a grande im prensa foi um dos agentes políticos do golpe civil-m ilitar e apoiou

ou foi conivente com a ditadura no período anterior ao recrudescim ento da censura, a im prensa

alternativa cresceu e prosperou resistindo e fazendo oposição. P o r m eio de “um discurso

opinativo e de denúncia, m uitas vezes po r m eio do h um or e da sátira, as publicações alternativas

acabavam colocando em destaque - e em debate - tem as considerados ‘p ro ib id o s’” (D A E FIO L ,

2022, p. 47-48), denunciando abusos e crim es com etidos pelo regim e. C erca de 150 periódicos

da im prensa alternativa nasceram , prosperaram e m orreram durante a ditadura (K U C IN SK I,

1991). O s “ alternativos” iam m uito além de inform ar; nos períodos de m aior repressão foram

verdadeiros espaços de organização política e ideológica das forças de oposição e resistência,

principalm ente da esquerda, perseguida desde a instauração do regim e autoritário. A im prensa

estudantil tam bém desem penhou relevante papel, especialm ente no m om ento em que as

m anifestações de protesto e os eventos tradicionalm ente prom ovidos pelos estudantes estavam

vetados e qualquer m ovim entação era violentam ente reprim ida.

O m ovim ento estudantil foi perseguido desde a im plantação da d itad u ra m ilitar. Já no

prim eiro dia de governo do general C astelo B ranco, a articulação estudantil foi atingida por um

duro golpe: em 1° de abril de 1964 a sede da U nião N acional dos E studantes (U N E), no R io de

Janeiro, foi incendiada e m etralhada. E sse episódio deixou claro que não haveria trégua para os

estudantes, que seriam alvo de várias operações com o objetivo de desarticular sua organização.

A o longo do prim eiro ano de ditadura houve perseguição e prisão de lideranças e os órgãos de

representação estudantil, a U N E e as U E E s (U niões E staduais dos E studantes), foram colocados

na ilegalidade pela Lei Suplicy de L acerda.

A inda assim , o m ovim ento estudantil continuou resistindo. N um prim eiro m om ento, a

luta era contra o m odelo de ensino que a ditadura p reten d ia im p lan tar no país, especialm ente

nas universidades. A h istórica b andeira da universidade gratuita e universal defendida pelos

estudantes transform ou-se em um dos pontos de atrito com os m ilitares, o que colocou o

m ovim ento em confronto direto com a ditadura e seu m odelo de reform a universitária, que viria

a ser im plantado em 1968. A s m anifestações estudantis contrárias à reform a m antiveram -se e

ganharam força até esse ano, quando foram baixados o A to Institucional n° 5 (A I-5), que

cerceou as liberdades e estabeleceu estreita vigilância dos civis, e o D ecreto-L ei 477 (D L 477),

que transpôs para o am biente universitário as restrições e as punições im postas pelo A I-5.

A té pouco tem p o havia um a ideia de que o AI-5 e o D L 477 teriam conseguido

desm obilizar a luta dos estudantes principalm ente em virtude do recrudescim ento da violência

u sad a pelos órgãos de repressão. Porém , pesquisas historiográficas têm dem onstrado que ,
628
m esm o com a d esm obilização das m anifestações de m assa e com a U N E na ilegalidade, os

estudantes não cessaram a luta e buscaram novos m eios de em preender as ações de resistência

dentro das universidades (M Ü L L E R , 2 0 1 0 )291.

A im prensa estudantil foi um dos cam inhos encontrados pelo m ovim ento para se m anter

na arena política. T am bém até recentem ente não eram com uns pesquisas sobre a atuação do

m ovim ento estudantil nas cidades do interior do B rasil. T rabalhos m ais recentes têm abordado

o tem a, contribuindo para o conhecim ento de com o se deram as ações de resistência à ditadura

m ilitar para além dos grandes centros urbanos.

O jo r n a l com o fo n te

E m seu clássico artigo História dos, nos e por meio dos periódicos, T ania R egina de

L uca assinala que a im prensa nem sem pre foi u m a fonte de prim eira grandeza para a

historiografia, situação que se m odificou a partir da ascensão da N o v a H istória P olítica e do

crescente interesse dos historiadores pelos estudos do T em po Presente. O diálogo da H istória

com outras disciplinas das C iências H um anas e a consequente renovação tem ática das pesquisas

tam bém foram fatores que contribuíram para que a historiografia voltasse o olhar para a

im prensa, repensando a concepção de docum ento/fonte.

T ais m udanças levaram a um a am pliação do universo das fontes. A im prensa, antes vista

com desconfiança pelos críticos po r retratar os acontecim entos cotidianos no calor da hora, sem

o necessário distanciam ento tão caro à tradicional historiografia m etódica, passou a ser vista

pelos historiadores com o um m anancial valioso de m aterial de pesquisa e assum iu

definitivam ente a categoria de fonte historiográfica. E com o tal, oferece am plas possibilidades

para a form ulação das m ais diversas problem áticas p ara a busca de conhecim ento sobre as

sociedades do passado (C A PE L A T O , 1988). N o B rasil, apesar de alguns trabalhos produzidos

anteriorm ente, a im prensa com eçou de fato a ganhar espaço com o fonte som ente a p artir da

década de 1970. Segundo T ania de L uca, “ ao lado d a H istó ria da im prensa e p o r m eio da

im prensa, o próprio jo rn a l tornou-se o b je to da pesquisa histó rica” (LU C A , 2008, p. 118, grifos

da autora).

291 Müller pesquisou as ações do movimento estudantil durante os “anos de chumbo” na UERJ e na PUC no Rio
de Janeiro, na USP de São Paulo, na UFMG, de Minas Gerais, na UFPE, de Pernambuco, na UFBA, na Bahia e
na UFRGS, no Rio Grande do Sul. A pesquisa resultou na tese de Dourado em História Social, defendida em 2010
e intitulada A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime ditatorial e o retorno da UNE à cena
pública (1969-1979).
629
V ários trabalhos publicados nos anos 1970 tiveram o jo rn a l com o fonte ou objeto de

estudo para abordar tem as variados nos m ais diversos períodos da h istória brasileira. T ania de

L uca destaca a im prensa operária com o um m anancial de fontes do qual derivaram diversos

trabalhos acadêm icos, em especial entre os anos 1970 e 1990. M esm o com características

diferenciadas em relação aos grandes jo rn a is - ausência de periodicidade, produção feita por

m ilitantes e não por profissionais, im pressão artesanal e sem receita publicitária - , os periódicos

da im prensa operária foram im portantes fontes para a história da ação política do m o v im en to

dos trabalhadores em diversos períodos da R ep ú b lica (LU C A , 2008).

T om ando por base as proposições de T ania de Luca, em nossa pesquisa o jo rn al

estudantil O Brado Universitário ocupou, sim ultaneam ente, o lugar de fonte e de objeto de

estudo. P o r registrar fatos, acontecim entos e tem as que m obilizaram os universitários, bem

com o dem andas do m ovim ento estudantil dentro da U niversidade E stadual de M aringá, foi

estudado enquanto fonte para acessar inform ações sobre o p eríodo de grande repressão da

ditadura m ilitar e de estreita vigilância dentro das universidades. P o r ter sido, ele m esm o, um a

estratégia de luta dos estudantes, que haviam sido silenciados pela legislação repressiva que

vigorava, o jo rn a l foi tam bém o objeto de estudo da pesquisa, p erm itindo com preender de que

fo rm a se davam as ações de “m icrorresistência” possíveis naquele m om ento (M Ü L L E R , 2010).

N a pesquisa foram analisadas cinco edições de O Brado , do núm ero 8 ao 12 (o últim o

a circular), que foram produzidas entre 1975 e 1976. O reco rte tem poral se deu por conta dos

exem plares preservados em arquivos particulares de dois ex-acadêm icos de D ireito que

participavam da produção do periódico: os jo rn a lista s e escritores L aércio Souto M aio r e

E dilson P ereira dos Santos, cujos depoim entos tam b ém foram utilizados com o fontes, a partir

da m etodologia da H istória Oral. N ã o foi possível resg atar edições anteriores, do núm ero 1 ao

7, u m a vez que não existe um arquivo oficial do periódico. Porém , com o o núm ero de edições

é pequeno, consideram os que a am ostragem disponível tin h a a robustez necessária para a

pesquisa proposta.

630
Figura 1: Capa edição n° 8 Figura 2: Capa edição n° 9

Figura 3: Capa da edição n° 10

631
Figura 4: Capa edição n° 11 Figura 5: Capa edição n° 12

P ara a análise crítica da fonte, princípio b asilar da m etodologia histórica, a

interdisciplinaridade, que contribuiu decisivam ente para a renovação das perspectivas analíticas

da H istória P olítica nos anos 1980/1990, foi fundam ental. O referencial teórico p roduzido por

L uiz G onzaga M o tta (2007), jo rn alista, p rofessor e estudioso da narrativa jo rn alista, trouxe

grande contribuição ao processo. É im portante ressaltar que há m uito a historiografia superou

a ideia de im parcialidade, seja na produção do historiador, seja nos docum entos/fontes legados

ao presente. Q uando o docum ento em análise é um a produção da im prensa, o olhar do

histo riad o r deve estar ainda m ais atento para evitar a arm adilha da objetividade criada pela falsa

id eia de que o jo rn a l “reproduz” a realidade. U m texto jo rn alístico não é a verdade, m as um a

leitura p articular da realidade, um a interpretação de quem o produziu. M o tta alerta:

[...] é importante lembrar que mesmo na narrativa realista do jornalismo as


personagens são figuras de papel, ainda que tenham correspondentes na realidade
histórica. Lembrar que estamos analisando uma narrativa jornalística, como as
notícias constroem personagens, conflitos, combates, heróis, vilões, mocinhos,
bandidos, punições, recompensas. Não estamos fazendo uma análise da realidade
histórica em si mesma. Nosso objeto é a versão, não a história. (MOTTA, 2007, p. 7)

A p artir dessa perspectiva, a problem atização da fonte/objeto da pesquisa aqui descrita

baseou-se em algum as questões fundam entais para com preender de que m aneira esse

docum ento cham ado O Brado Universitário nos perm itiria lan çar um novo olhar sobre aquele

p eríodo da ditadura: P o r que seu conteúdo foi produzido? Q uais eram as relações entre os que

o produziram e as instâncias de p o d er dentro da universidade? Q uem eram os opositores e


632
aliados dos estudantes? Q uais suas intencionalidades explícitas e im plícitas? T am bém foram

analisados os aspectos relacionados à m aterialidade do periódico: o suporte, a organização

visual e estética, o uso da charge, os anúncios publicitários. C ada um dos exem plares do jornal

estudantil produzidos durante o p eríodo pesquisado foi lido e as m atérias/artigos foram

tabuladas de acordo com os tem as abordados. C o m o form a de norm atização, criam os F ichas de

A valiação para a anotação dos dados e análise de cada edição.

A análise m ostrou que o jornal passou por períodos de oposição m ais m oderada ao

regim e, com o registrado nas edições 8 e 9, produzidas em 1975, m om ento em que era grande a

vig ilân cia do am biente u niversitário e a repressão ainda agia de form a violenta. C onsideram os

a hipótese de que tal postura pode te r sido u m a estratégia dos estudantes para m anter o jo rn al

em circulação, ten d o em vista que o periódico era m onitorado pela polícia política, conform e

ficou registrado em docum entos dos arquivos da D O P S -P R (D eleg acia de O rdem P olítica e

Social/P araná)292.

E m relação ao tipo de im pressão, a pesquisa observou que o jo rn a l estudantil sofreu

transform ações ao longo dos anos. A edição 8, de abril de 1975, foi im pressa em m im eógrafo

e as seguintes, do núm ero 9 ao 12, foram rodadas na gráfica do principal jo rn a l d a cidade, O

Diário do Norte do Paraná. A edição 9, inclusive, circulou com o encarte especial de O Diário,
fato que perm itiu a form ulação de u m a hipótese: os estudantes tentavam d riblar a proibição de

p roduzir e fazer circular publicações dentro da un iv ersid ad e sem autorização da reitoria,

expressa no R egulam ento D iscip lin ar do C orpo D iscente. S ubm eter o conteúdo do jo rn a l à

análise prévia do reito r poderia significar o veto de sua circulação.

A p artir da edição núm ero 10, produzida em m arço de 1976, o p eriódico passou a

co nfrontar abertam ente a ditadura, o que, concluím os, foi resultado de dois fatores: u m a nova

“ equipe” de acadêm icos de D ireito, que atuava na im prensa de M aringá, assum iu a produção

do jo rn al; e com eçava a se esboçar um cenário de m udanças n a conjuntura política do país.

Foi o momento em que a mobilização social contra a repressão começava a ganhar


corpo, na esteira dos protestos gerados pelos assassinatos de Vladimir Herzog, em
outubro de 1975, e do operário Manoel Fiel Filho, em janeiro do ano seguinte. O ano
de 1976 foi o marco da rearticulação do movimento estudantil para a retomada dos
protestos de massa. Foi quando começaram a eclodir greves e manifestações de
estudantes em diversas instituições de ensino superior no Brasil (DAEFIOL, 2022, p.
96).

292 Relatório 324/DI/75-CISESP-PR, do Centro de Informações da Secretaria Estadual de Segurança Pública


do Paraná, de 27 de agosto de 1975, p. 9. O relatório e outros documentos referentes à UEM foram levantados nos
arquivos da DOPS pelo historiador Reginaldo Benedito Dias na pesquisa para a produção do livro A face esquerda
da cidade.
63 3
O Brado passou a p u b licar m atérias abertam ente críticas ao regim e, com tem as com o a
censura, o baixo v alo r do salário m ínim o, a crise econôm ica que o país vivia, além de abordar

questões ligadas às lutas do m ovim ento estudantil, com o a gratu id ad e do ensino superior. O

jo rn a l tam bém publicou textos críticos sobre a vig ên cia do D L 477 e do A I -5, apesar das

prom essas de distensão do governo do general E rnesto G eisel. T em as que afetavam diretam ente

a vida dos estudantes tam bém ganhavam espaço nas páginas do jo rn al, m uitas delas com críticas

virulentas e que, po r essa razão, renderam a convocação dos responsáveis pelo jo rn a l para

p restar depoim ento na A ssessoria de S e g u ran ça e Inform ações (A SI). A s A S Is eram órgãos

subordinados às reitorias das universidades e sua função era assessorar os reitores “ em relação

a questões que se referissem à S egurança N acio n al” (D A E FIO L , 2022, p. 116). E ram ligadas

ao S istem a N acional de Inform ações (S N I) por m eio da D ivisão de S egurança e Inform ações

do M inistério da E d u cação e C ultura (D IA S, 2008).

A m atéria que foi alvo da A S I fazia u m a forte crítica ao autoritarism o do v ice -re ito r da

U E M , contrário à criação do D iretório A cadêm ico de P rocessam ento de D ados. U m acadêm ico

do curso foi entrevistado pelo jo rn a l e contou que o vice-reito r teria aberto u m a reunião com os

estudantes com a seguinte frase: “Isso não é um diálogo, portanto, só eu falo” 293, não perm itindo

que os alunos lhe dirigissem a palavra. A lém disso, ainda de acordo com o estudante, o dirigente

teria afirm ado na m esm a reunião que “um professor, se tivesse que dar com o pé na cara do

aluno, ele teria todo esse direito de dar com o pé na cara do aluno” 294. A publicação desse

conteúdo foi um ato de ousadia naquele m om ento em que criticar abertam ente um a fig u ra

investida de autoridade pela ditadura, caso do v ice-reito r de um a universidade, poderia render

punições severas previstas no R egulam ento D iscip lin ar do C orpo D iscente.

O jo rn a l estudantil tam bém reproduzia conteúdos críticos publicados pela grande

im prensa e pela im prensa alternativa. U m exem plo foi o tex to Lição das coisas, assinado pelo

cartunista Z iraldo, do Pasquim, que criticava a ação ilegal do E stad o brasileiro. A reprodução

do conteúdo aconteceu em um m om ento em blem ático. E stavam se com pletando dois m eses da

m orte sob tortu ra do m etalúrgico M anoel Fiel Filho, preso po r agentes do D O I-C O D I sob a

acusação de ser m em bro do P artido C om unista B rasileiro (P C B )295. O crim e ocorreu no m esm o

local e da m esm a form a brutal com o havia sido m orto o jo rn a lista V lad m ir H erzog no final de

1975. Z iraldo, em um texto m etafórico, responsabiliza o E stado brasileiro pelas m ortes nos

293Processamento de Dados: estudantes acusam vice-reitor, n° 11, abril, 1976, p. 4.


294 Idem.
295 A esposa do metalúrgico Manoel Fiel Filho, “na noite do dia seguinte à prisão, foi procurada por um
desconhecido. Ele parou o carro em frente à casa e, diante da família, disse, sem rodeios, que Manoel tinha
cometido suicídio, jogando na calçada um saco de lixo com as roupas do metalúrgico morto. Após a liberação do
corpo para o enterro, os parentes constataram que apresentava vários sinais de tortura” (DAEFIOL, 2022, p. 106).
634
porões da repressão, indagando com o seria possível v iver “ [...] num lugar onde te convidam pra

d an çar num baile em que você não com pareceu, te levam pra um a festa para a qual você não

foi convidado, botam você num a roda onde ninguém pode chegar prá te defender e, depois,

devolvem apenas a sua roupa prá casa?” 296.

O utro exem plo é a m atéria reproduzida do jo rn a l Panorama, de 23 de m arço de 1976,

que trata de um discurso p roferido pelo então deputado federal em edebista C elso B arros, do

Piauí, na C âm ara dos D eputados. S egundo info rm a a m atéria, o tem a do discurso havia sido

debatido no 1° Sem inário U niversitário de C am po M aior, no Piauí, encontro em que estudantes

de todo o B rasil “ m anifestaram repúdio ao 477 e reivindicaram m aior participação na vida

política do país” (D A E FIO L , 2022, p. 122). N o m esm o tom crítico, o Brado reproduziu três

m atérias, originalm ente publicadas no alternativo Movimento e na Folha de Londrina em abril

de 1976, que traziam detalhes da cassação de parlam entares em edebistas po r E rnesto G eisel,

num a dem onstração de que o discurso g o v ernista de “ distensão política” p assava bem longe da

prática naquele m om ento.

A inda em relação ao conteúdo, a pesquisa tam bém analisou as charges que passaram a

ser publicadas a p artir da edição n° 9 com o “ elem ento discursivo para m arcar u m a posição

crítica, para opinar não apenas sobre tem as políticos e sociais daquele contexto, m as tam bém

sobre assuntos relacionados à vida acadêm ica na U E M ” (D A E FIO L , 2022, p. 176). A s charges

do jo rn a l foram analisadas com o u m a representação de natureza dissertativa e de caráter político

po r defender ideias, criticar ou fazer denúncia por m eio da sátira para d em arcar um

posicionam ento político (M IA N I, 2005).

A s charges publicadas pelo Brado satirizaram tem as diversos, com o censura, custo de

vida, exploração do trabalhador, exercício do D ireito e tam bém questões ligadas ao am biente

u niversitário e a bandeiras históricas do m ovim ento estudantil, com o a gratuidade e a

universalização do ensino superior.

296 ZIRALDO, n° 10, março, 1976, p. 14.


635
Figura 6: Charge que ilustra o artigo A universidade ao alcance de poucos, na edição n° 9, de novembro de
1975

O sentido dessa charge rem ete à defesa da gratuidade do ensino superior, tem a que

aparece em todas as edições do jo rn a l estudantil no período estudado. N o alto da m ontanha está

a universidade, inatingível para a m aioria dos estudantes brasileiros, que aparecem em baixo,

ten tan d o escalar para atingir o topo. A m ultidão tenta, sem sucesso, subir pelo próprio esforço.

A penas um a, com m uita dificuldade, se aproxim a do objetivo; lá em cim a aparecem os que têm

recursos financeiros - um a elite - dentro de dois helicópteros.

A lém do conteúdo, a pesquisa tam bém considerou aspectos com o o núm ero de anúncios,

que foi crescendo e se diversificando ao longo do período estudado, num indicativo de que a

publicação estudantil alcançava tam bém um público para além dos lim ites da universidade.

E m presas tradicionais da cidade, na época, anunciavam no periódico e, curiosam ente, quando

as críticas à ditadura se tornaram m ais agudas e abertas, a partir da edição n° 10, publicada em

m arço de 1976, o núm ero de anunciantes duplicou. E sse fato levanta a hipótese de que o

discurso crítico do jo rn a l estudantil encontrava resso n ân cia n aquela conjuntura política.

636
C o n s id e ra ç õ e s fin ais

A pesquisa perm itiu lan çar um novo olhar sobre a resistência à ditadura m ilitar na

U niversidade E stadual de M aringá. A p artir do jo rn a l O Brado Universitário, produzido entre

1973 e 1976 pelo D iretório A cadêm ico N elso n H ungria (D A N H ), da F aculdade de D ireito da

U niversidade E stadual de M aringá (U EM ), foi possível en tender a im prensa estudantil com o

u m a ação de resistência possível nos anos de m aior repressão do regim e autoritário.

A p artir da análise do jo rn a l, constatam os que a im prensa estudantil foi u m a ação de

“ m icrorresistência” dos estudantes, im possibilitados, pela legislação autoritária e pela violência

da repressão, de realizar grandes m anifestações. U tilizando um discurso de denúncia e

defendendo posições que confrontavam a ideologia dos m ilitares, o Brado Universitário foi um

in strum ento relevante de luta dos estudantes.

Se a ditadura m ilitar se m anteve po r 21 anos sob a conivência ou a indiferença de um a

p arcela da sociedade, houve aqueles que resistiram sem em punhar arm as. C om o fonte e objeto

de estudo, o jo rn a l estudantil analisado ajudou a vislu m b rar essas ações de resistência para

m uito além do que ocorreu nos grandes centros.

R e fe rê n c ia s

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638
M8M: UMA PERFORMANCE EXPERIMENTAL COLETIVA DE
RESISTÊNCIA.

SA N Z IA PIN H E IR O B A R B O SA *

I n tr o d u ç ã o

O artigo é um estudo inicial sobre o M o vim ento 8 de M aio_M 8M . U m prim eiro olhar,

u m a aproxim ação desse coletivo de existência tão curta e intensa. U m a escrita introdutória que

tem com o ponto de partida, entrevistas realizadas com vários integrantes e o u tro s agentes do

sistem a de arte, que de algum a form a, dialogavam com o M 8M . E ssas entrevistas foram

realizadas no ano de 2021, por ocasião da produção de um vídeo docum entário sob a direção

da artista Pêdra Costa, p erform er e antropóloga visual. Foi possível p erceber os dois anos de

existência do M 8M , com o u m a p erform ance coletiva bastante experim ental, que trazia

inúm eras questões com o a autoria, a função da arte, e o esboço de algum as questões

contem porâneas que só a p artir de 2015, segundo B eatriz L em os, em p alestra na plataform a

online zait.art1, aparecem no circuito artístico b rasileiro com bastante contundência. É um

m om ento onde destacam -se as dissidências sexuais, o fem inism o, as políticas identitárias e de

subjetivação, bem com o, o entendim ento sobre racialidade. N ão é nosso objetivo d iscutir neste

artigo, essas questões que se anunciavam nas práticas do M 8M . A creditam os que o presente

estudo contribui para o registro da h istória das A rtes V isuais do R io G rande do N orte, além de

apresentar algum as reflexões sobre a produção colaborativa no âm bito de um grande coletivo,

cujos indivíduos tinham práticas artísticas m uito díspares. N o desenvolvim ento do texto

percorrem os algum as ações do M 8M , na ten tativ a de tec e r reflexões a p artir dos trabalhos

coletivos ou individuais, exibidos em eventos nos quais p articipou ou organizou. L ançam os

m ão de alguns trechos das entrevistas realizadas, ten d o em vista a produção do docum entário

M 8M , produzido em 2021. A lém das entrevistas, usam os tam bém com o fonte nesta pesquisa,

recortes de jo rn a is e fotografias.

O C o letiv o

O M 8M foi um coletivo constituído po r 30 artistas com diferentes linguagens, sendo

todos e todas, artistas visuais. E xistiu entre 2004 e 2005 na cidade de N atal/R N . O s coletivos

proliferam no final dos anos 1990. O teórico R icardo R osas, aponta que isso era sintom a de

639
u m a m utação que aconteceu tan to na esfera tecnológica quanto na social. C olaboração,

cooperação, com unidade, interação e redes, são chaves de um a transform ação que acontece em

escala global. A inda que a tecn o lo g ia não seja o fundam ento básico destes grupos, é po r m eio

dela que se dá a dinâm ica de ação e propagação das atividades na vida real. Os coletivos

artísticos, com o as organizações civis, são redes de trabalho e de relações.

N o início dos anos 1990 e na prim eira década do século XX I, há u m a proliferação de

coletivos artísticos que não se lim itam apenas a questionar o lugar e a função da A rte. A lguns

realizavam ações em espaços públicos e artísticos, e eram bastante atuantes, com o por exem plo,

o C oletivo PO R O , form ado pela dupla de artistas: B rígida C am pbell e M arcelo Terça-N ada!

A tua desde 2002 realizando intervenções u rbanas e ações efêm eras, procurando levantar

questões sobre os problem as das cidades, através de u m a ocupação poética dos espaços; O

coletivo F rente 3 de Fevereiro, ativo desde 2004, é um grupo de pesquisa e ação direta, que por

m eio de um trabalho m ultidisciplinar, busca levantar o debate sobre o racism o no B rasil, em

especial, o racism o policial e o coletivo F ilé de Peixe, ativo desde 2006, intervém na econom ia

política da arte, agindo criticam ente sobre processos de recepção e circulação da arte enquanto

m ercadoria, as instâncias lim ítrofes entre objeto e produto, entre colecionism o e consum o. P ara

D an iela L abra (2009), os coletivos criticavam o sistem a institucional de m odo diferente das

organizações ativistas m ilitantes, alcançando o tom crítico, pela experim entação poética.

O s dadaístas e situacionistas, por exem plo, possuíam u m a plataform a radical e

pregavam a antiarte, desprezavam a ideia de um objeto aurático. Já os surrealistas, e m esm o os

neoconcretistas, estavam m ais preocupados com a experim entação artística e com a exploração

de novas relações entre obra, artista e espectador. T anto o D adaísm o, o Situacionism o, com o

N eoconcretism o, são referência na atuação dos coletivos que surgem no alvorecer do século

XX I.

A lém de prom overem ações estéticas e políticas no espaço social, os coletivos tam bém

respondem a um problem a das geografias áridas, no to cante a políticas públicas e ausência de

m ercado, caso do M 8M . D iante deste fato, realizavam exposições e vendas de seus trabalhos,

organizavam seus próprios eventos, escreviam seus textos, e anunciavam suas ações em blogs

e nas redes de relacionam ento que vão surgindo. D esse m odo, iam construindo seu próp rio

canal para a circulação de arte. P ara L abra (2009), no final os anos 1990 e início dos 2000, é

grande a diversidade de discurso e atuação dos coletivos artísticos que a crítica de arte n ão basta

para com preender com o e por que se configuram .

N ã o foi possível identificar um m arco, um a origem do coletivo M 8M . E le acontece!

A lguns dos entrevistados narram as inquietações, encontros, desejos de fazer algum a coisa na

cidade inerte. N o entanto, o m arco que inaugura a existência do coletivo, não habita a m em ó ria
640
dos entrevistados. T odos concordam que o seu surgim ento é provocado pela vontade de criar

espaços de existências, de proposições artísticas, de agitar o circuito.

E ram 30 participantes, que flutuavam bastante nas reuniões e na participação dos

eventos ou ações. O s m ais presentes eram , M arcelo G andhi, Sayonara Pinheiro, Jean Sartief,

G uaraci G abriel, P êdra Costa, E m anuel D uarte, R icardo San M artine, Jackson G arrido e

Josenildo Brasil. O s artistas não só discutiam as políticas públicas para as A rtes V isuais, com o

realizavam ações, audiências públicas, exposições, festivais de perform ances - e faziam m uito

baru lh o na cidade. Participavam em eventos culturais prom ovidos por instituições ou projetos

de produtores, às vezes com trabalhos individuais, outras vezes com obras coletivas. C om o a

perform ance Purificação, que tinha com o m aterialidade, sal e água dentro de sacos plásticos de

1kg. C om esse m aterial, os artistas realizaram a ação perform ativa. N ã o havia um a

program ação, apenas orientações gerais. N esse caso, vestidas e vestidos com roupas brancas

deviam fu rar os sacos e jo g a r a água sobre suas cabeças, em um gesto de lavagem , purificação.

N ã o existia um m apa que definisse onde cada um deveria ficar, quanto tem po, ou qualquer tipo

de controle sobre as ações dos artistas. V ejam os o que diz M arcelo Gandhi:

Performance Purificação - M8M -2004. Foto Jean Sartief

Eu e Sayonara, a gente chamava essa performance de Purificação [...] acho


interessante esse trabalho. Eu tive essa ideia, veio de mim [...] aí tinha essa coisa de
criar em conjunto [...] mas a dinâmica foi muito imprevisível. Cada um foi criando
suas ações, suas narrativas. E as ações foram se entrecruzando, dialogando. Lembro
de quando a gente estourava os sacos, a água ia pra todo lado. Essa coisa que a água
tem de esparramar, não tem controle, não tem contenção. Água chega! A gente ia se
relacionando com o espaço, conforme a gente ia estourando os sacos, interagindo com
o espaço e esses elementos. Usar sal e água no espaço, performar encima desses
elementos que tem a ver com a Umbanda Brasileira, com nossas tradições. E o
processo foi muito imprevisível, orgânico, queríamos agir nesses elementos. A gente
fez essa ação duas vezes. Uma no Solar Bela Vista e outra na Fundação José Augusto,
gostei mais da primeira vez, porque tinha essa coisa da surpresa. Não sabíamos o que
ia acontecer. Essa imprevisibilidade me atrai muito nesse trabalho. Como íamos
tencionar o espaço? Como a água ia explodindo, ela ia acontecendo também, essa
limpeza vai acontecendo. E a pergunta que fico pensando, o que a gente queria com
essa limpeza e o que a gente queria usando esses elementos sagrados, o que estávamos

641
limpando? A ideia era trabalhar com sal e água... a gente não sabia o que poderia
acontecer. Apareceu o desenho na montagem, a ação de estourar os sacos, tomar um
banho, cortar os sacos como se fosse um desenho, não havia nenhum tipo de roteiro.”
Áudio Marcelo Gandhi, Outubro 2022

Interessante que n essa fala, é possível perceber a dinâm ica do coletivo. T inha-se sem pre

um desenho geral, um a ideia daquilo que se pretendia realizar. Isso era o bastante para o

trabalho, para particip ar de u m a ação coletiva ou m esm o u m a p erform ance que envolvia a

coletividade. N ã o planejavam , faziam ! É possível p erceb er a liberdade e a confiança no “ outro” ,

na presença criadora do “ outro” . O que nos lem b ra a noção de am izade em M ichel F oucault

(1981), com o um m odo de vida, u m a form a de resistência.

N a fala de M arcelo G andhi, tam bém aparece a questão da autoria m al resolvida entre o

coletivo, o que era m otivo de d esafetos. E ssa questão tam bém é citada po r G uaraci G abriel

(2021), “M e via podado de ideias para estar no coletivo. M as eu brigava pelo m eu espaço,

procurava estar em conjunto. E ra um agrupam ento. A id eia do coletivo, não era m inha, era a

id eia do coletivo M 8M ” . A inda sobre a autoria, José P inheiro (2021), integrante do coletivo,

reflete:

[...] a construção coletiva é muito complicada, porque somos todos diferentes, mas é
muito rica porque é um retalho que nós trazemos de cada um. Então essa experiência
também é da coletividade, do criar coletivo. [...] Quando eu encontro pessoas e sei
que aquelas pessoas todas têm uma identidade, mas que necessitam toda hora de estar
em relação com o outro e assim construindo ideias, construindo ambientes,
construindo arte, construindo a vida coletivamente. José Pinheiro, 2021

A ação Sem Esculturas, consistia em 100 (cem ) vasos sanitários espalhados na calçada

do T eatro A lberto M aranhão, com um certo distanciam ento, cada artista ocupava e fazia um

trab alh o no vaso. E ssa ação surgiu com o protesto à decisão da direção do teatro, em instalar

u m a escultura de autoria do artista plástico C ésar R evoredo, na calçada, em com em oração aos

100 anos do equipam ento cultural. O s artistas m obilizaram a im prensa e o M inistério Público,

questionando o fato de não te r ocorrido um a concorrência p ara escolha da escultura, ao que a

direção do T eatro respondia dizendo ter sido um a doação do artista, apesar da prefeitura da

cidade ter financiado a produção da obra. Q uestionaram tam bém , o fato da escultura ser

pensada, sem nenhum cuidado com o patrim ônio arquitetônico, pois, não havia um diálogo

estético entre o prédio histórico e a obra a ser in stalada. N o jo rn a l T ribuna do N orte de 20 de

abril de 2004, a reportagem é finalizada da seguinte form a: “ essa é a prim eira vez, nos últim os

anos, que eles se posicionam de m aneira tão contundente diante de um fato isolado” . N o dia da

instalação da escultura, o M inistério Público, m ovido por denúncias do M 8M , chegou com um a

642
lim inar proibindo a presença do trabalho artístico na calçada do T eatro A lberto M aranhão, e a

obra não pôde ser instalada.

E ssa perform ance coletiva, dem onstrou u m a im ensa força política através da

m obilização da im prensa, os vasos sanitários não se referem apenas à escultura indesejada. M as,

às inúm eras reform as irresponsáveis que o prédio h istórico era subm etido. A cidade com o

suporte, é u m a orientação presente em várias ações do M 8M . A lguns artistas presentes nesta

ação, estavam saindo de seus ateliers, de sua intim idade produtiva, para um a articulação com

seu entorno coletivo urbano (A M A R A L, 2003).

Intervenção Cem Esculturas- 2004


Foto Jean Sartief

O D om ingo na P raça acontecia no pátio da T V C abugi, hoje, In ter TV. E ra um projeto

da p rodutora C ida C am pelo, que reunia u m a vez no m ês, exposições, show s m usicais,

artesanato, livros etc. O evento tin h a um form ato de feira. N essa ação o artista P edro C osta,

hoje, P êdra C osta, que vive e trab alh a em B erlim , am arra seu corpo com papel film e no painel

destinado a ser suporte p ara exibição dos trabalhos de arte. P êd ra C osta é a criadora, ao lado de

P aulo Fraga, da ban d a Solange tô aberta de b atid a funk que surge em 2006. O projeto D om ingo

na P raça disponibilizou alguns painéis para exibir os trabalhos do coletivo. P ed ra decidiu expor

o corpo, pois, esse é o suporte da poética da artista, um corpo trincheira, com o ela m esm a diz.

C om papel film e e a ajuda de alguns artistas ou am igos que passavam , a artista perm aneceu na

prisão v o lu n tária po r 4 horas. Josenildo levou para o D om ingo na P raça, a perform ance que ele

sem pre fazia: pintado de verde e am arrado em cordas de agave, recitava versos de sua autoria

po r entre as pessoas que transitavam na feira.

64 3
A c o m e m o ra ç ã o do 8 de M a io de 2005

E m 2005 o coletivo M 8M com em orou o 8 de m aio, dia do artista plástico, com um a

intensa program ação constituída de u m a residência artística cham ada pelos organizadores de

A ssentam ento, curso de m ontagem com W alter W ag n er artista residente em João Pessoa/PB ,

conversa com Íbis H ernandez, curadora da B ienal de H avana, diálogo com L eonor A m arante,

que na ép o ca atuava no M em orial da A m érica L atina, em S ão Paulo, conversa com X ico

C haves, que estava coordenador das A rtes V isuais na Funarte, conversa com L uiz C am illo

O sório, que na ocasião estava lançando o livro Abraham Palatnik, e m esa redonda com V icente

V itoriano, artista e p rofessor do D epartam ento de A rtes da U F R N e Jo ta M edeiros, a rtista e

coordenador do setor de M u ltim ídia do N ú cleo de A rte e C ultura N A C /U F R N , duas exposições

coletivas, um a na F undação C ultural C apitania das A rtes e a outra na P inacoteca do E stado do

R io G rande do N orte. T udo isso aconteceu ao longo de 9 (nove) dias. O assentam ento/residência

teve um a duração de 7 dias, participaram os seguintes artistas: L ourival C uquinha (PE),

M arian a Sm ith (CE), R odrigo B raga (PE), C larissa D iniz (PE), A slan C abral (PE), W alter

W ag n er (PB ), Júlio L eite (PB), e os integrantes do M 8M . O coletivo alugou u m a casa no centro

da cidade, um a casa m obiliada, onde os artistas habitavam , projetavam im agens de seus

trabalhos e dialogavam , tro can d o inform ações e experiências. T odos com entavam a alegria e

satisfação daquela convivência.

A coletiva Panorama 0.8, aconteceu na P inacoteca do E stado, sob curadoria m inha e de

L eonor A m arante (SP), participaram 31 artistas, que iam da arte n a if a perform ance art. O

equipam ento cultural ficou lotado, haviam várias obras de artes que solicitavam a participação

do público, além das perform ances que aconteciam . D entre as obras de arte interativas, havia a

L inhaM ental, trabalho de P êdra Costa, na qual a artista convidava o público a m ontar restos de

bo n ecas quebradas, velhas, adquiridas em brechós. P intar, vestir, arrum ar da form a possível!

C rianças, adultos e jovens, n aquela noite sentaram no chão com a artista, e a ajudaram em sua

decisão de ju n ta r os pedaços dos corpos de plástico. A artista representava a em ergência de um a

arte d esestabilizadora e desconexa das form as artísticas vigentes em N atal.

O público presente na abertura da exposição coletiva, p articipou intensam ente. V estida

com um collant rosa, sem elhante àqueles que os b ailarin o s usam em suas aulas de dança, com

o cabelo am arrado em um coque, convidava am orosam ente, gentilm ente, as pessoas a

brincarem com suas bonecas estropiadas, quebradas, m altratadas. O público m ontava as

bonecas, arrum ando-as com roupinhas e m aquiagens. D epois de m ontadas, as bonecas foram

am arradas entre si, em um único cordão, e exibidas no chão, no canto da parede. Foi um a

perform ance catártica para a artista! D urante a perform ance, P êd ra reviveu o m om ento em que
644
o pai arrancou um a boneca de sua m ão e a destroçou, quando a artista tin h a por volta de 2 anos.

W alter B enjam im , em seus estudos do brinquedo, diz que o adulto quando brin ca não

experim enta o m esm o prazer que a criança e nem revive a sua m eninice, m as, cria um a fenda

no real e pode libertar-se de u m a realidade am eaçadora.

A P êd ra C osta sem pre perform ava nas ações do M 8M , contra a n arrativa do nosso m odo

de vida capitalista e a nossa m entalidade “ tis-h ete ro -p a tria rc al” . A artista trazia reflexões com

a força poética de um grito que vem do estôm ago! N a exposição coletiva realizada na Fundação

C apitania das A rtes, a artista tom ou um banho de cola e oferece seu corpo para o público colar

cópias x erocopiadas de suas próprias m ãos. U m banho de ág u a e cola b ran ca pelo corpo,

tran sfo rm an d o e seguindo. O corpo era a m uralha na qual o lam be estava tom ando curso,

delineando suas próprias form as, através das m ãos em papel. E ra a proposição condensada de

conceitos sobre identidade, visualidade, abuso, corpo, m atéria, sensibilidade, violência.

T ran sitan d o tudo ju n to na sua respiração ofegante, duelando com o silêncio de todos os que

assistiam . A quelas x erox das m ãos cobrindo sua face, criavam a ressonância de u m grito

abafado, de quem é contido e busca um berro.

Pêdra Costa
Sem título
(performance realizada na FUNCARTE)
2005

645
V oltando a coletiva Panorama 0.8, que ocorreu na P inacoteca, havia o trabalho

intitulado Crucifixo, de autoria de M arcelo G andhi. O artista fixou na parede, velas em form ato

de pênis e convidou as pessoas a brincarem , jo g an d o terços cor de rosa nos falos eretos e

acessos, convidando as pessoas para enlaçar os falos. O s pênis estavam pegando fogo, colados

na parede. P ara o artista:

O trabalho era um jogo encima de símbolos religiosos e uma provocação ao


patriarcado, ao modelo falocêntrico que está atrelado ao poder político e espiritual. Eu
borro a imagem sagrada do terço e uno ele com o pênis. Duas bombas! Dois símbolos
de muito poder, para mim importa borrar essas imagens, macular essas imagens.
Importa justamente deslocar o sentido delas. Porque aí quando desloco o sentido,
consigo fazer uma crítica utilizando os mesmos elementos de símbolo desses projetos
de poder. Tanto do patriarcado, do pau duro quanto do terço, cristão, símbolo de
oração. Tem uma coisa de profanar, borrar a imagem que se cria, os terços pegando
fogo, junto com o pênis.

Marcelo Gandhi, outubro 2022

Marcelo Gandhi
Crucifixo, 2005
Foto; Jean Sartief

Interessante notar que na interação com a obra Crucifixo, as pessoas seguiram a

orientação do artista e brincaram com o terço, jo g an d o com o se estivessem em um parque. N ão

houve protesto, am eaça de fechar a exposição. A face fascista do B rasil ainda estava no

subterrâneo. M arcelo G andhi tem com o ponto de p artida de sua poética, aquilo que lhe m arcou.

D esde a adolescência, desenvolve p esq u isa com sím bolos sagrados, runas, cartas de tarô,

elem entos da bruxaria.

F inalizo com um ú ltim o trabalho sob o títu lo de Festa Ê. A conteceu na residência

artística, um a festa am bulante. E sse trabalho, essa perform ance coletiva, teve com o autor, A slan

C abral (PE). R ealizada ao m eio dia de um sábado, no centro da cidade. O s artistas dançavam

em torn o de um am bulante, um carrinho de som , que na época, vendia C D s piratas. A lém da

m úsica e da dança, os artistas passavam batom e beijavam as vitrines das lojas e bancos. E sse
646
gesto erótico provocou um alerta nos guardas que faziam a segurança das instituições bancárias,

de m odo que os artistas tiveram de se explicar. N o percurso da festa, invadiram a P inacoteca e

transform aram o am biente do prédio neoclássico em um a pista de dança de um a boate.

O M 8M estava aberto a to d o s os artistas, de qualquer linguagem , que estivessem

determ inados a fazer arte. E xistia um a certa parceria entre o coletivo e as instituições que

atuavam no cam po da cultura, com o o S olar B ela V ista, v in culado ao sistem a S E S I-F IE R N ,

palacete que prom ove e recebe eventos e m ostra culturais, a F undação C ap itan ia das A rtes,

órgão responsável pela cultura na cidade do N atal e a F undação José A ugusto, responsável pela

cultura no E stado do RN . E ssas parcerias prom ovem u m a espécie de am biguidade nas críticas

que o coletivo produzia. A racy A m aral (2003), citando D ufrenne, diz que as críticas artísticas

livrem ente consentidas, podem significar a determ inação de se com prom eter na ação, sem

subordinar a prática artística. S ignifica saúde, u m a afirm ação de si, resistência, um poder de

invenção das regras e criação de objetos.

O s integrantes do M 8M procuravam tec e r m odos de am izade entre si, que favorecessem

a criação de todos. A relação era aberta, sem hierarquia, um espaço de convivência que era

constantem ente recriado. M ichel Foucault, na entrevista concedida ao jo rn a l Gai P ied em abril

de 1981, finaliza com a seguinte pergunta: “ o que se pode jo g a r e com o inventar o jo g o ? ” E ssa

pergunta estava, talvez de form a inconsciente no coletivo, que definiam as relações de am izade

através do desafio da produção artística, ou seja, do desafio de p articipar de um evento na

cidade. A s questões m obilizadoras eram : quem tin h a u m a ideia? Q uem se afina com a ideia?

Q uem im ediatam ente se engaja na pro d u ção do trabalho?

N o processo de produção do docum entário em 2021, procuram os ouvir o público do

coletivo, as pessoas que viveram àquelas ações. H á um áudio de alguém que acabara de chegar

a cidade:

O movimento chegou pra mim de modo interessante, corroborando com uma coisa
que acredito muito, que é a força de um coletivo! Quando várias pessoas que divergem
em pontos específicos conseguem convergir para criar algo realmente efetivo e
transformador. A sensação que tinha era que o 8 de Maio vinha pra ficar e vinha pra
mostrar o quanto o coletivo é forte e pode apresentar soluções interessantes.
Tatiane Fernandes, abril, 2021

O coletivo M 8 M foi intenso, essa fala da produtora T atiane Fernandes, expressa a form a

com o o coletivo era visto p ela cidade e pautado pela im prensa. S a n d ra P esavento, ao p ensar as

sensibilidades, define com o aquilo que é anterior à reflexão, brotada do corpo, um a form a de

ser e estar no m undo. A autora aproxim a a sensibilidade do cam po da estética “ concepção que

647
entende a estética com o aquilo que provoca em oção, que perturba, que m exe e altera os padrões

estabelecidos e as form as de sentir” (PE SA V E N T O , 2007 p. 21).

O que apresentei aqui neste breve texto, está longe de dar conta da potência que foi o

M ovim ento 8 de M aio. U m nicho de pesquisa bastante fértil, tanto nas interpretações das ações

e obras realizadas, com o no entendim ento das relações construídas entre seus integrantes e as

diferentes dinâm icas que lançavam m ão para g arantir sua existência, além dos diferentes m odos

de produzir coletivam ente obras artísticas. O M 8M foi, principalm ente, um nicho de

acolhim ento e incentivo para os integrantes.

R E F E R Ê N C IA B IB L IO G R Á F IC A

A M A R A L , A racy. A r te p a r a q u ê ? A p re o c u p a ç ã o social n a a r te b r a s ile ir a 1930-1970:


subsídios p ara u m a história social da arte no B rasil. 3a ed. Studio N obel. São Paulo, 2003.
L A B R A , D aniela. C o letiv o s A rtís tic o s com o C a p ita l S ocial. 2009. (3 p.) [artigo].
D isponível em https://w w w .artesquem a.com /escritos/coletivos-artisticos-com o-capital-social/
acessado em 12/10/2022.
FO U L C A U L , M ichel. D a am izade com o m odo de vida. E n trev ista de M ichel F oucault a R. de
C eccaty, J. D an et e J. le B itoux, p u blicada no jo rn a l Gai Pied, n° 25, abril de 1981, pp. 38-39.
T radução de w anderson flo r do nascim ento. D isponível em http://m ichel-
fo u cau lt.w eeb ly .com /uploads/1/3/2/1/13213792/am izade.pdf acessado em 10 de outubro de
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R O SA S, R icardo. N om e: C oletivo; Senha: C olaboração. D isponível em:
http://w w w .rizom a.net/interna.php?id= 170& secao= intervencao acessado em 20 de setem bro
de 2022.
B A T IST A , M arcelo G andhi A velino. E ntrevista [abr. 2021]. E ntrevistadores: Sanzia B arbosa
e P êd ra Costa. P lataform a Z oom , 2021. O n line audiovisual. E n trev ista concedida ao P rojeto
M 8M , (docum entário audiovisual patrocinado pela lei A ldir B lanc) N atal-R N .
__________________________________ E ntrevista [out. 2022]. E ntrevistadores: Sanzia B arbosa.
C elu lar sonoro, 2022. N atal-R N .
C A M PO S, G uaraci G abriel. E ntrevista [mar. 2021]. E ntrevistadores: Sanzia B arbosa, Pêdra
C osta e Sofia B auchw itz. P lataform a Z oom , 2021. On line audiovisual. E ntrevista concedida
ao P rojeto M 8M (docum entário audiovisual patrocinado pela lei A ldir B lanc) N atal-R N .
B A R B O SA , José P inheiro. E n trev ista [abr. 2021]. E ntrevistadores: Sanzia B arbosa e P êdra
Costa. P latafo rm a Z oom , 2021. On line audiovisual. E ntrevista concedida ao P rojeto M 8M ,
(docum entário audiovisual patrocinado pela lei A ldir B lanc). N atal-R N .
F E R N A D E S , T atiane C ristina. E ntrevista [abr. 2021]. E ntrevistadores: Sanzia B arbosa.
C elu lar sonoro, 2021. E ntrevista concedida ao P rojeto M 8M (docum entário audiovisual
patrocinado pela lei A ldir B lanc) N atal-R N .

648
A T R A J E T Ó R IA D O P O V O O F A IÉ : F O R M A S A T U A IS D E
P R O D U Ç Ã O D O C O L E T IV O E D A T E R R IT O R IA L ID A D E

SIM O N I SA N TO S S IQ U E IR A 297

R e su m o : A presente pesquisa aborda a trajetória histórica da etnia O faié, localizada na Terra


Indígena A nodhi, m unicípio de B rasilândia, E stad o de M ato G rosso do Sul. M uitos cam inhos
foram percorridos pelos O faié ao longo dos anos, através dos rios Sam am baia, T rês B arras,
Serra da B odoquena, R io P aran á e Sucuriú. N a década de 1950, por ocasião de sua expulsão da
fazenda B oa E sperança, localizada em B rasilândia, aproxim adam ente 200 índios passaram a
ocupar as m argens ú m idas do R io V erde, ainda no tem po do Serviço de P roteção ao Índio (SPI).
E ntretanto, ocorreram m uitas disputas territoriais, além da m obilidade forçada, inquietação e
am eaças sobrenaturais, até o processo de territorialização do povo O faié. Insatisfeitos com a
área, retornaram a B rasilândia buscando fixar-se nas terras onde estavam sepultados seus
parentes. P raticam ente considerados extintos, perseguidos e am eaçados pelos fazendeiros, na
década de 60 j á não passavam de poucas dezenas segundo D arcy R ibeiro (1977). A situação de
conflito que envolveu o povo O faié sem pre esteve m uito presente, só foi m inim izada em 1997
quando a C om panhia E n erg ética de São P aulo (C E SP ) com prou um a área e destinou aos O faié
com 484 hectares. A forte m arca da "extinção étnica” pode ser um dos fatores que levou essa
etnia a ser tão pouco estudada po r pesquisadores nos dias atuais, p artindo do pressuposto que
no passado a região percorrida pelos O faié foi um a das m ais visitadas po r viajantes e
exploradores. D iante dessas considerações, esta proposta de projeto tem entre seus objetivos
dar continuidade ao trabalho de cam po j á realizado na aldeia O faié, aprofundando o m esm o na
com preensão do processo de expropriação do território, nas rem oções forçadas que os m esm os
sofreram que resultou na aliança com os G uarani, que atualm ente in flu en cia na sua organização
social e produção do coletivo, e da territorialidade.

P a la v ra s -c h a v e : D esterritorialzação; O faié; G uarani; O rganização social; T erritorialidade.

1 - IN T R O D U Ç Ã O

O presente texto é um trabalho iniciado na dissertação de m estrado, que foi elaborada

com intuito de contribuir para os estudos sobre a com unidade O faié, sua territorialidade, suas

m obilidades, inquietações, além das disputas territoriais, doenças e am eaças sobrenaturais que

fizeram parte da sua organização social e da sua história ao longo dos anos, estando à

com unidade E nodi localizada a dez quilôm etros do m unicípio de B rasilândia, M S.

E ntretanto, o objetivo é d escrever e analisar a trajetória histórica dos O faié que

contribuiu p ara a form ação da territorialidade, iden tifican d o os eventos que provocaram a

desterritorialização, rem oções forçadas e de população, e a aliança m atrim onial com fam ílias

guarani, o que inaugura a reconfiguração atual desse grupo étnico.

297 Mestre em Antropologia/UFGD, atualmente cursa doutorado em História pela Universidade Federal da Grande
Dourados/UFGD.
649
P o r m uito tem po os O faié foram considerados extintos, e isso só com eçou a m udar

quando C arlos A lberto dos Santos D utra, conhecido com o “ C arlito” conheceu A ntônio B rand

po r interm édio de D om José G om es, prim eiro presidente do C onselho Indigenista M issionário

(C IM I), e depois presidente da C om issão P astoral da T erra (C P T ). C arlito com eçou a se

in teressar pela questão indígena ainda no R io G rande do Sul, quan d o realizou um trabalho entre

os M byá G uarani, algum tem p o depois quando finalizava o curso de T eo lo g ia precisou realizar

um estágio no M ato G rosso do Sul, que foi interm ediado po r A ntônio B rand, que era secretário

do C IM I na época, assim , conheceu os O faié, seguindo os passos de B rand que j á havia

com eçado o trabalho em 1981, nessa época a etnia tinha sido transferida para B odoquena.

D urante m ais de trinta anos a história dos O faié foi relatada e registrada em livros,

docum entos e com participação ativa nas retom adas de C arlos A lberto dos Santos D utra,

histo riad o r esse que foi essencial na construção do m eu trabalho de m estrado, e que sem ele a

h istória dos O faié talvez não tivesse sido trazida ao m undo, de form a que sua visibilidade fosse

possível e o quanto eles estavam m ais vivos do que nunca.

Q uando decidi aprofundar m inhas pesquisas sobre os O faié e n esse m om ento já

conhecia C arlos A lberto dos Santos D u tra em um trabalho de pó s-g rad u ação que tam bém já

envolvia o tem a O faié, foi a via que precisava para dar continuidade a m inha pesquisa. P ouco

tem p o depois ingressei no M estrado no P ro g ram a de P ós-G raduação em A ntropologia

(P PG A nt/U F G D ), que m e trouxe algum as inquietações sobre essa etnia, com o o fato da

ausência de trabalhos sobre a m esm a, ou seja, era necessário ser olhada de um a form a m ais viva

pela academ ia.

A com unidade O faié tem um grande m arco quanto à questão territorial, foram diversas

disputas até a sua sedentarização, atualm ente a aldeia é dividida em um a prim eira área doada

no ano de 1997 pela C E SP devido a m otivos que abordarei logo m ais a frente, a segunda área

conquistada na ju stiç a em 2002, que está ligada a prim eira por u m a estreita faixa de terra, e no

ano de 2017 os O faié fizeram um a retom ada da terra tradicional que fica ao lado dessa segunda

área. N o entanto, essa área retom ada em 2017 ainda não foi dem arcada.

2 - F O R M A S A T U A IS D E P R O D U Ç Ã O D O C O L E T IV O E D A T E R R IT O R IA L ID A D E

A etnia O faié, grupo indígena da fam ília M acro-Jê, atualm ente habita a terra indígena

de nom e A nodhi, no m unicípio de B rasilândia, localizada a leste do E stado de M ato G rosso do

Sul, a u m a latitude 2 1 °1 5 '2 1 ” Sul e a um a longitude 5 2 °0 2 ’13” oeste, lim itando ao leste com o

rio Paraná. A aldeia está localizada no K m 10 da rodovia M S -040 que liga B rasilândia a Santa
650
R ita do Pardo. N a área que estão fixados reside além de O faié, não índios, G uarani e K aiow á.

Segundo Siasi298/Sesai (2014) o núm ero da população neste local era de 69 índios, atualm ente

conta com aproxim adam ente 146 pessoas residentes na aldeia

A situação de conflito na terra O faié sem pre foi m uito presente, só foi m inim izada

quando a C om panhia E n erg ética de São Paulo (C E SP ) com prou u m a área destinada à criação

da reserva indígena O faié de 484 hectares (1997) e os deslocou para lá.

D isco rrer sobre o territó rio O faié, sem dúvida, configura algo com plexo e im põe a

priori algum as definições, ou seja, é necessário lo calizar o objeto de estudo no espaço


geográfico, delim itando e definindo de quais O faié o p rojeto irá tratar. Isso se deve aos m uitos

grupos O faié e m uitos são os territórios apontados com o tradicionais e pertencentes a esse povo.

A ssim , C arlos A lberto dos Santos D u tra faz a divisão em duas grandes áreas onde incidem os

m aiores registros de ocupação O faié. V ejam os:

A primeira área proposta abrange, portanto, as sub-bacias do rio Verde e Pardo,


incluindo o rio Taquaruçu e diversos outros córregos e ribeirões que correm paralelos
a esses dois rios em direção ao rio Paraná. Tem como linha imaginaria divisória o
traçado do rio Pardo, ao sul, e rio Sucuriú, ao norte. A segunda área abrange as sub-
bacias do rio Ivinhema, prolongando-se em direção noroeste, além da serra de
Maracaju, pelas sub-bacias dos rios Miranda e Negro e seus afluentes (DUTRA, 2017,
p. 36).

T am bém conhecidos com o O faié- X avante299. Segundo U rq u iza a p artir da id eia de

outros pesquisados segue a definição:

Ofayé é autodenominação, o nome como eles mesmos se denominam. Entretanto,


como viviam em uma região do Centro-Oeste habitada pelos índios Xavante, os
sertanejos em geral estendiam essa denominação a todos os diferentes povos indígenas
que ocupavam a região, fato que resultou em vários equívocos na leitura. O primeiro
a tentar esclarecer a distinção entre esses povos foi Nimuendajú (Nimuendajú, 1993)
e mais tarde Darcy Ribeiro (URQUIZA, 2010, p. 59).

A trajetó ria da etnia O faié foi m arcada por lutas, perseguições e principalm ente pela

forte m arca de “extinção étnica” im putada ao grupo. M uitos cam inhos foram percorridos pelos

O faié ao longo de séculos, através dos rios Sam am baia, Três B arras, Serra da B odoquena, R io

298 Sistema de Informação da atenção à Saúde Indígena (SIASI) é composto de dados primários vindos da atenção
primaria à saúde prestada pelas Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) no Subsistema de Atenção
à Saúde Indígena (SasiSUS), gerenciamento pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério de
Saúde.
299 Desde o momento do seu aparecimento na documentação brasileira eles foram chamados de diferentes modos,
tendo seu nome grafado de varias e diversas maneiras: Opayé, Opaié, Ofaié, Faiá, Faié, Afaiá, Araés, Ypaié,
Xavante, Chavante, Shavante, Chavante-Ofaié, Chavante-Opaié, Kurura, Guachi, Wahéi, entre outros. Foram
chamados de Shavante provavelmente por viverem numa região de vegetação do tipo savana, onde havia
predomínio de arbustos (DUTRA, 2017, p.59)
651
P aran á e Sucuriú. É im portante ressaltar que a ausência de inform ação n o relato dos pioneiros,

bandeirantes e m onçoneiros, pode ser explicada pelo fato de que nesse período ainda se

encontrar bastante difundida, o que não era Tupi, era cham ado de Tapuia.

N esse contexto, por m uito tem po a etnia O faié foi confundida com outros índios, para

M an u ela C arneiro da C unha (2009) não era só o caso do B rasil. E sse foi um problem a de quase

todos os países que se viram diante da tarefa de constituir um a nacionalidade.

N o im aginário dos conquistadores, o “ elem ento” indígena sem pre foi ent endido com o

habitante de um espaço desconhecido, ou seja, indefinível. N esse contexto, surgem alguns

conceitos que são im prescindíveis para fazerm os a distinção entre terra indígena, território e

territorialidade indígena.

O tem a dem arcação de “ Terras Indígenas” vem sendo debatido po r diversos

pesquisadores há algum tem po. P o r um lado existem aqueles que se contrapõem a este ato, bem

com o aqueles que dependem dessa dem arcação para garantir seus direitos, com o é o caso da

E tn ia O faié, e com os outros indígenas que desde a C onstituição Federal (C F) de 1988

com eçaram a ter seus direitos reconhecidos.

P artindo desse pressuposto, M an u ela C arneiro da C unha (1993) conceitua que Terra

Indígena, em princípio, é um conceito ju ríd ic o b rasileiro que tem sua origem na d efin ição de

direitos territoriais indígenas. T ais direitos foram reconhecidos ao longo da h istória pelo E stado

brasileiro por m eio de diversos dispositivos legais.

O artigo 231 da C onstituição Federal de 1988 reconhece os direitos territoriais dos

indígenas, porém , desde o B rasil independente, no C onstituição Federal de 1934, o direito

indígena j á era tratado com o algo prioritário.

Segundo M an u ela C arneiro da C unha:

[...] na própria Lei de Terras de 1850, como magistralmente demonstra João Mendes
Jr. (1912), fica claro que as terras dos índios não podem ser devolutas. O título dos
índios sobre suas terras é um título originário, que decorre do simples fato de serem
índios: esse título do indigenato, o mais fundamental de todos, não exige legitimação.
As terras dos índios, contrariamente a todas as outras, não necessitaram, portanto, ao
ser promulgada a Lei de Terras, de nenhuma legitimação (Mendes Jr., 1912, passim)
(CUNHA, 1998, p. 141-142).

Portanto, a dem arcação de terras indígenas é tida tão som ente com o um ato declaratório

do P o d er E xecutivo Federal. “ Salvo em casos de criação de reservas indígenas, não há que se

falar em “ criação de terras indígenas” , m as tão com ente de seu reconhecim ento por parte da

U n ião F ederal” (C A V A L C A N T E , 2013, p. 6).

652
“N o âm bito da FU N A I, em bora não haja nenhum a orientação expressa, a noção de

“ aldeia” é u tilizad a para denom inar os vários assentam entos existentes em u m a determ inada

terra indígena” (C A V A L C A N T E , 2013, p.10).

T hiago L eandro C avalcante ressalta que:

É importante que se tenha em mente que “aldeia” e “terra indígena” não são conceitos
equivalentes e que uma terra indígena pode comportar vários assentamentos ou
núcleos sociopolíticos (“aldeias”) de um ou mais povos indígenas, como é comum
ocorrer em terras indígenas de maior extensão na Região Amazônica
(CAVALCANTE, 2013, p. 10).

N o entanto, quando se aplica o conceito de “terra indígena” , é preciso ressaltar que é

fundam ental com provar a tradicionalidade da ocupação indígena. P ara a C onstituição Federal

de 1988:

São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a
sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (BRASIL,
1988).

Q uando se fala na questão de território devem os lev ar em consideração um a situação

h istórica e outra sim bólica, no conflito fundiário. C avalcante afirm a que: “ ao se falar em

territorialidade a ênfase recai sobre os aspectos sim bólicos. Significa que o território carrega

u m a dim ensão cultural e outra m aterial” (C A V A L C A N T E , 2013, p. 35).

Segundo O liv eira Filho:

Ao falar de terras indígenas estamos, antes de tudo, nos situando no bojo de uma
definição jurídica materializada na Constituição Federal em vigor (art. 4°, parágrafo
4° e art. 198), bem como em legislação especifica (Lei n. 6.001/73, arts. 17 a 38).
Trata-se do habitat de grupos que se reconhecem (e se são reconhecidos pela
sociedade) como mantendo um vinculo de continuidade com os primitivos moradores
de nosso país. A noção de habitat aponta para a necessidade de manutenção de um
território, dentro do qual um grupo humano, atuando como um sujeito coletivo e uno,
tenha meios de garantir a sua sobrevivência (OLIVEIRA FILHO, 1998, p. 45).

O conceito de T erra Indígena rem ete a um processo p olitico-jurídico conduzido pelo

E stado, ao qual conhecem os com o T erritorialização, ou seja, pertence à U nião, no entanto, com

u sufruto das sociedades indígenas. N o processo de territorialização, v erifica-se que:

A população toma como estratégia política o fato de se representarem como uma


comunidade etnicamente diferenciada dentro do Estado-nação e um conjunto de
indivíduos inseridos em um grupo geograficamente delimitado e legitimado por uma
ancestralidade encontrada na memória social, em busca por direitos étnicos renegados
no passado. A construção dessa territorialização se dá, portanto, nessas diversas
65 3
formas de organização e reorganização sócio-culturais dos membros desse grupo,
tomando-as enquanto mecanismos políticos de luta pelo território. (FERREIRA,
2008, p. 121)

Já no caso do T erritório Indígena, é tudo aquilo que foi construído ao longo dos anos

pelos povos indígenas. É m uito m ais do que um espaço físico; envolve elem entos religiosos,

sim bólicos; é um a construção social.

A ló g ica dos povos indígenas vê o território com o um bem coletivo. N esse contexto,

pretendo aqui enfatizar a questão da territorialidade O faié, partindo do pressuposto que há

pouco m aterial produzido po r pesquisadores, antropólogos e histo riad o res sobre tal etnia. F alar

sobre a territorialidade O faié é m uito m ais do que falar de um local habitado po r eles. Segundo

Paul L ittle (2002), a “ noção” territorial integra todos os grupos hum anos. P ara ele a

territorialidade é:

[...] o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar
com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu
“território” ou homeland. (cf. Sack 1986:19). Casimir (1992) mostra como a
territorialidade é uma força latente em qualquer grupo, cuja manifestação explícita
depende de contingências históricas. O fato de que um território surge diretamente das
condutas de territorialidade de um grupo social implica que qualquer território é um
produto histórico de processos sociais e políticos. Para analisar o território de qualquer
grupo, portanto, precisa-se de uma abordagem histórica que trata do contexto
específico em que surgiu e dos contextos em que foi defendido e/ou reafirmado
(LITTLE, 2002, p. 3-4).

Segundo João P acheco de O liveira F ilho (1998) caberia cham ar a atenção para a

diferença entre territorialização (um processo social deflagrado pela instância politico-estatal)

e territorialidade (um estado ou qualidade inerente a cada cultura e sua organização social).

Q uanto ao conceito de territorialização:

A noção de territorialização é definida como um processo de reorganização social


que implica: 1) a criação de uma nova unidade sociocultural mediante o
estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; 2) a constituição de
mecanismos políticos e especializados; 3) a redefinição do controle social sobre os
recursos ambientais; 4) a reelaboração da cultura e da relação com o passado
(OLIVEIRA FILHO, 1998, p. 55).

N esse sentido, segundo O liveira F ilho (1993), a atribuição a u m a sociedade de u m a base

territorial fixa se constituiu em um ponto-chave para a apreensão das m udanças por que ela

passa, isso afetando profundam ente o funcionam ento das suas instituições e a significação de

suas m anifestações culturais.

Territorialidade se relaciona com as form as próprias com que cada povo elabora suas
p ráticas socioculturais na interação da natureza com o todo que o cerca, inclusive o cosm os, ou

654
seja, um sentido m ítico que extrapola a noção geográfica de terra. Já o co n ceito de

territorialização rem ete para ação “ de fora para dentro” , geralm ente deflagrado pela instância

politica do E stado-N ação, gerando um profundo reordenam ento social, cultural, politico e da

p rópria “ redefinição do controle social sobre os recursos am bientais” (O L IV E IR A FIL H O ,

1998). A inda para O liveira Filho:

O processo de territorialização não deve jamais ser entendido simplesmente como de


mão única, dirigido externamente e homogeneizador, pois a sua atualização pelos
indígenas conduz justamente ao contrário, isto é, à construção de uma identidade
étnica individualizada daquela comunidade [...] (OLIVEIRA FILHO, 1998, p. 60).

A desterritorialização é outro conceito im portante que m erece destaque aqui, segundo

R ogério H aesbaert:

Desterritorialização significando “fim dos territórios” aparece associada, sobretudo,


com a predominância de redes, completamente dissociadas de e/ou opostas a
territórios, e como se crescente globalização e mobilidade fossem sempre sinônimos
de desterritorialização (HAESBAERT, 2012, p. 31).

A p artir da definição dos conceitos citados acim a, pode-se fazer u m a análise m ais

p rofunda da questão territorial que envolve a sociedade O faié. O processo de dem arcação do

território im em orial O faié teve início oficialm ente a partir da publicação, no D iário O ficial do

dia 2 de m aio de 1991, da P o rtaria n. 398, que instituiu um a C om issão E special de A nálise,

vin cu lad a à S uperintendência de A ssuntos F undiários (SU A F), da FU N A I, encarregada de

analisar e m anifestar-se conclusivam ente sobre os trabalhos de identificação e delim itação das

terras indígenas que tiveram seus estudos realizados anteriorm ente.

P o r m ais que o territó rio e territorialidade sejam um conceito geográfico, estão ligados

a “ espacialidade hum ana300” . N o caso da A ntropologia, destaca sua dim ensão sim bólica,

principalm ente no estudo das sociedades ditas tradicionais (m as tam bém no tratam en to do

“ neoliberalism o” contem porâneo). É a partir dos conceitos “ ato r-red e” e “território-rede” que

aqui buscarem os definir o território O faié. P ara R ogério H aesbaert:

Um “território” no sentido etológico é entendido como o ambiente [environment] de


um grupo (...) que não pode por si mesmo ser objetivamente localizado, mas que é
constituído por padrões de interação através dos quais o grupo ou bando assegura certa
estabilidade e localização. Exatamente do mesmo modo o ambiente de uma única
pessoa (seu ambiente social, seu espaço pessoal de vida ou seus hábitos) pode ser visto
como um “território”, no sentido psicológico, no qual a pessoa age ou ao qual recorre.
Neste sentido já existem processos de desterritorialização e reterritorialização em

300 Alguns autores distinguem “espaço” como categoria geral de análise e “território” como conceito. Segundo
Moraes (2000), por exemplo, ‘do ponto de vista epistemológico, transita-se da vaguidade da categoria espaço ao
preciso conceito de território” (p.17).
655
andamento - com processos de tal território (psicológico) que designam o status do
relacionamento interno do grupo ou a um indivíduo psicológico (Gunzel, s/d).
(HAESBAERT, 2012, p. 38).

N o entanto, o conceito de território é discutido po r diversos autores e pesquisadores, das

m ais diversas áreas, porém , parte de três vertentes que são elas: política, cultural e econôm ica.

“ A ssim , o que ele tem de perm anente é ser nosso quadro de v id a ” e “ o que faz dele objeto da

análise social” é seu uso, “ e não o território em si m esm o” (SA N T O S et al. 2000, p. 15).

R ogério H aesbaert afirm a que a rede perm ite conceber o caráter dinâm ico e m óvel do

território:

Numa concepção reticular de território ou, de maneira mais estrita, de um território-


rede, estamos pensando a rede não apenas enquanto mais uma forma (abstrata) de
composição do espaço, no sentido de um ‘conjunto de pontos e linhas’, numa
perspectiva euclidiana, mas como o componente territorial indispensável que enfatiza
a dimensão temporal-móvel do território e que, conjugada com a ‘superfície’
territorial, ressalta seu dinamismo, seu movimento, suas perspectivas de conexão
(‘ação à distância’, como destaca Machado, 1998) e ‘profundidade’, relativizando a
condição estática e dicotômica (em relação ao tempo) que muitos concedem ao
território enquanto território-zona num sentido mais tradicional (HAESBAERT,
2004, p. 286-287).

A inda para H aesb aert (2004) o territó rio e rede não são dicotôm icos, a rede pode ser um

elem ento constituinte do territó rio . A rede possui um duplo caráter territorializador e

desterritorializador:

Para nossos propósitos, a característica mais importante das redes é seu efeito
concomitantemente territorializador e desterritorializador, o que faz com que os fluxos
que por elas circulam tenham um efeito que pode ser ora de sustentação, mais ‘interno ’
ou construtor de territórios, ora de desestruturação, mais ‘externo’ ou desarticulador
de territórios (HAESBAERT, 2004, p. 294).

A ssim , o território-rede consiste no caráter m óvel do territó rio . A sociedade atual é

m arcad a pelo desenvolvim ento dos sistem as de transporte e com unicação que conectam e ao

m esm o tem po desconectam territórios, pois nem todos fazem parte do “ circuito fo rm a l” de

tro cas. M ais quem são os atores desses territórios, e para isso irem os continuar abordando a

teo ria ator-rede.

P ara L atour (2012, p. 43): “há tan ta diferença nos dois em pregos da palavra “ social”

quanto entre aprender a dirigir po r u m a rodovia j á existente e explorar pela prim eira vez o

território acidentado em que u m a estrada foi p lanejada contra o desejo de m uitas com unidades

lo cais” .

Q uando se fala em “ social” , suas fronteiras e suas relações interétnicas que envolvem a

aldeia A nodhi, esses conceitos estão ligados ao território a que pertence essa com unidade, vale
656
ressaltar que o objeto desse trabalho é o território tradicional Ofaié. C abe falar da im portância

do conceito de desterritorialização, que “ está ligada à fragilidade crescente das fro nteiras,

especialm ente das fronteiras estatais - o território, ai, é, sobretudo um territó rio político”

(H A E SB A E R T , 2012, p. 35).

O povo O faié passou por diversas expropriações e rem oções forçadas até fixarem

território em B rasilândia, onde as uniões m atrim oniais com os G uarani, iniciadas ainda no

p eríodo em que se encontravam despejados na reserva de B odoquena, passaram a reorganizar

a com unidade atual, e aos poucos trouxe a visibilidade do povo O faié.

E star no cam po, realizar o trabalho de cam po é estar diante do social, das relações que

são construídas diariam ente e que definem a organização social daquelas pessoas. N a aldeia

O faié, foi à aliança com os K aiow á que organizou a aldeia. O s O faié em m eio a suas rem oções

forçadas foram “ exilados” na B odoquena, e de lá com eçaram as relações com os K aiow á,

quando recebem a terra doada pela C E SP devido ao incidente do alagam ento, e recebem 484

hectares de terra localizada a 10 quilôm etros da cidade de B rasilândia, e lá iniciaram um a nova

etapa da sua história. Q uando os O faié ainda estavam vivendo na R eserva Indígena K adiw éu,

n essa m esm a época alguns G uarani K aiow á foram enviados para essa região pela FU N A I.

Segundo A taíde que era cacique na época, os dois grupos se u niram para afastar os posseiros e

acabaram casando entre si. N a fala de A taíde:

Aí é outra época porque, aí começou os casamentos, começou a mistura Kayowá e


Ofaié, foi naquela época, é. Nós era só nós, não tinha mistura, não tinha outra tribo,
indígena, era só nós Ofaié, casados com Ofaié. [...] É, foi eu. Eu casei com uma índia
Kaiowá e tive com ela dois filhos. Quando na época os Kadiwéu tavam atacando, nos
expulso de lá. Quando na época eu não quis ir para, atrás da minha esposa, pra onde
tinha Kaiowá Guarani, ela também não quis ir pra cidade de Brasilândia comigo, então
foi a nossa separação. E também, teve a minha prima que é a Luzia, ela casou também
com os Kaiowá. Só que atualmente ela não mora aqui [Área Indígena Ofaié-Xavante],
ela mora na reserva indígena de Amambaí, que fica ao sul do estado. São dois casais,
né, que foram o primeiro casamento, que casaram (Ataíde, Comunidade Indígena
Ofaié-Xavante, 2005 apud BORGONHA, 2005).

D urante o tem po em que estive em cam po na aldeia O faié conversado com os m oradores

m ais antigos, apontam o episódio descrito acim a por A taíde, com o o evento inicial da aliança

entre esses dois grupos, e que perm anece até a atualidade.

Q uanto a id a para a aldeia E nodi, A taíde era o cacique da época, e havia construído um a

b o a relação com G uarani K aiow á R oni E liandres na época da B odoquena, quando eles

finalm ente conseguem se fix ar na terra de B rasilândia em 1997, R oni E liandres vem para a

aldeia E nodi e com eça a trazer seus filhos, sobrinhos e outros agregados da fam ília, essa foi

outra aliança que prom oveu ainda m ais a v isibilidade dos O faié e organizar as relações sociais

657
na aldeia E nodi, assim , “ o social parece diluído po r to d a parte e por nenhum a em p articular”

(L A T O U R , 2012, p. 19).

A s relações entre G uarani K aiow á e O faié diante dos relatos descritos foram geradas de

diversos pontos, que perm aneceram e são reproduzidas durante décadas até a atualidade, e isso

nos leva a pensar, tanto na organização social, quanto no papel político desenvolvido na aldeia

e seus agentes. Segundo C arlos A lberto dos Santos D utra:

O contato dos Ofaié com os Guarani (Kaiowá e Nhandeva), mencionam os primeiros


pesquisadores sempre foram belicosas. Cf. o livro “Ofaié, morte e vida de um povo”,
pág. 90-92. Essa herança de animosidade, com o passar dos anos, afrouxou os laços
em razão da miscigenação nutrida pelo grupo que começou na Bodoquena a partir de
1978. Até então os Ofaié viviam e casavam somente entre os seus. Lá entretanto, dois
casais formaram-se. E no retorno a Brasilândia, essa família trouxe seus patrícios
parentes. Foi a família do seu Roni Eliandres, sobrinho do Marçal de Souza que havia
sido expulsa de Guaimbé e para a Bodoquena também havia sido mandado. Seu Roni
trouxe os filhos do primeiro casamento que passaram também a casar com meninas
Ofaié, sendo que uma delas foi estuprada. Hoje o casal vive “feliz” e o processo foi
engavetado pela Funai (disponho de cópia do ofício). (Entrevista, Carlos Alberto dos
Santos Dutra, 2020).

A inda na entrevista concedida po r C arlito p ara m im neste ano de 2020, sobre a aliança

com os G uarani K aiow á que envolveu um a questão cultural e de identidade:

A “Aliança” com os Kaiowá, para quem olha de fora, pode se dizer que organizou a
aldeia, pois o “branco” não sabe distinguir quem é quem, tudo é índio, tudo é igual,
não atendo-se às diferenças culturais. Se, por um lado a aliança tácita, e não consentida
por muitos dos antigos Ofaié, deu aspecto e estrutura de aldeia, garantindo-lhe número
de pessoas, justificando até mesmo a presença da Funai (que nunca deu a mínima para
os Ofaié), por outro lado, tal situação decretou a morte da cultura Ofaié. Apenas um
exemplo: as mulheres Ofaié orientam seus homens Ofaié que são por natureza tímidos
e dóceis, nesta sua cultura matrilineares. Ao unirem-se com homens Kaiowá, de
regime patriarcal, as mulheres Ofaié têm sua identidade sufocada. No outro extremo,
homens Ofaié aos unirem-se com mulheres Kaiowá, eles esperam delas maior poder
de mando e ela espera dele autoridade maior, gerando conflitos na convivência.
(Entrevista, Carlos Alberto dos Santos Dutra, 2020).

D urante m eu trabalho de cam po pude acom panhar diariam ente a realidade da aldeia, no

entanto, m uitas questões não foram possíveis ser esclarecidas, u m a delas foi a convivência dos

O faié com os G uarani K aiow á, que pra quem olha de fora e acom panha a v ivencia diária é algo

que p arece bem tran q u ilo . N o entanto, na fala de C arlos A lberto dos Santos D u tra podem os

p erceber que nem sem pre foi assim :

Com o passar do tempo, a convivência vai aparando as arestas e a preocupação com a


sobrevivência física, motivada pela economia, a subsistência, a necessidade de
emprego, renda, educação e relação com as instituições, acabaram por driblar as
discrepâncias e a aldeia Enodi, aparentemente, transparece hoje harmônica. Não
obstante, as diferenças perduram, desde a religião pentecostal imposta pelos Kaiowá
que os Ofaié aderiram, o que em outra época seria impensável (e olha que trabalhei
658
com eles durante 30 anos) vê-los trocar sua divindade por outra. Responder a sua
pergunta é difícil, pois para a Funai e Sesai, Secretaria de Educação e Secretaria de
Agricultura (que prestam apoio aos Ofaié), lá na aldeia, o que se vê na epiderme são
Kaiowá e Ofaié convivendo em paz. Por serem mais integrados à sociedade, eu diria,
os Kaiowá, passam essa impressão: a de terem se aliados aos Ofaié para garantirem a
sua permanência na aldeia. (Porque em outra época, até abaixo-assinado correu na
aldeia para a retirada, pela Funai, dos Kaiowá do convívio com os Ofaié) (Entrevista,
Carlos Alberto dos Santos Dutra, 2020).

Inicialm ente quando os O faié tom aram posse dos 484 hectares de terra aos poucos os

G uarani K aiow á foram se achegando devido as relações construídas na B odoquena, os

casam entos entre O faié e G uarani com eçaram a acontecer. H á um pouco m ais de um a década

os casam entos eram um (a) O faié, pertencente à fam ília do cacique José u ne-se a um (a) G uarani,

que tin h a laços com o m arido da irm ã de José que era o R oni. N o entanto, a sucessão dos cargos

de liderança na aldeia m antinha-se exclusivam ente entre os O faié na época. N esse m esm o

período, na área um a associação encarregada de g eren ciar os recursos advindos da C E S P e do

G overno Federal, os quais são destinados aos projetos na área da agricultura, pecuária, e

piscicultura, essa associação era com posta, exclusivam ente, po r integrantes O faié. N o entanto,

os G uarani podiam até expressar suas reivindicações, m as as decisões políticas adm inistrativas

eram som ente dos O faié.

N essa época tam bém as residências constituíam -se de fam ílias nucleares, que conviviam

preferencialm ente com seus parentes consanguíneos. “ Se to m arm o s as narrativas dos

m oradores da prim eira área, podem os observar u m a cisão espacial entre os que m oram no norte

- espaço O faié por excelência - e os que habitam as casas ao sul, sudeste e sudoeste, onde estão

instalado s os G uarani” (B O R G O N H A , 2006, p. 97). Segundo M irtes B orgonha nesse período:

A segunda área era habitada exclusivamente pelos Ofaié - é constituída por três
famílias extensas, alocadas em sete residências. Duas dessas famílias têm parentes
consanguíneos morando na outra área. Os moradores da segunda área têm maior
autonomia de subsistência em relação à primeira área, pois estão próximos das roças
e das lagoas e não frequentam a escola da aldeia (BORGONHA, 2006, p. 97).

A o se observar essa realidade da aldeia a m ais de um a década, é im portante ressaltar

que atualm ente essa un ião que já se estende po r alguns anos entre os integrantes das duas áreas,

fez com que se m odificasse a divisão espacial, bem com o, casais de etnias diferentes se fixassem

em áreas exclusivas dos O faié, isso se deve tam bém a disponibilidade de residências na aldeia,

bem com o, a fam ília extensa a qual cada um pertence. L em brando que na atualidade tam bém

existem os casam entos com os não-indígenas.

659
3 - C O N S ID E R A Ç Õ E S F IN A IS

P o d er estar/participar dos m om entos da história O faié é m uito gratificante, pois estar

com os O faié, p articipar dos seus diálogos e vivenciar diariam ente tudo que passaram para

chegar onde estão hoje através de diálogos reproduzidos na própria aldeia, é superar lim ites que

até m esm o a antropologia não explica. C onhecer um a com unidade que aos poucos teve que

ganhar visibilidade, renascer de onde foram considerados extintos, e a p artir dai co m eçar um a

nova história, sem deixar seus “traços diacríticos” e aprendendo à conviver com novos agentes

buscando o seu protagonism o indígena, onde o povo O faié ganha voz e luta pelo seu território

tradicional.

N o trabalho de cam po as dificuldades com eçaram quando a escassez de m aterial sobre

a etnia O faié estava visível, até porque até os O faié com eçaram a ter visibilidade m uito pouco

foi produzido sobre eles, de im ediato a via que m e levou até eles e po r m eio dela iniciei m eu

trab alh o foi C arlos A lberto dos Santos D u tra conhecido com o “ C arlito” já citado durante o

trabalho, que produziu vários livros sobre essa etnia, porém , na área da h istória; j á na área da

antropologia apenas o trabalho de M irtes C ristiane B orgonha foi p roduzido em 2005, de lá para

cá m uitas coisas m udaram na aldeia Ofaié.

N o entanto, optar pelo trabalho de cam po foi u m a form a de saber m ais sobre os O faié,

e conhecer m ais sobre sua H istória, além de escrever m ais sobre ela, algo que só poderia ser

feito com a convivência a p artir das visitas a aldeia.

E star na aldeia O faié foi u m a experiência sem igual, co m preender as relações que ali

unem duas etnias diferentes, além de não índios foi im portante para com preender as redes que

form aram a organização social da aldeia, bem com o, os conflitos po lítico s ali presentes há

algum tem po.

4 - R E F E R Ê N C IA S B IB L IO G R Á F IC A S

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E N S IN O D E H IS T Ó R IA D A Á F R IC A E D A C U L T U R A A F R O -
B R A S IL E IR A N A S E S C O L A S P Ú B L IC A S D E A M A M B A I-M S

T H A IA N E SA LES B R A N D Ã O 301

IN T R O D U Ç Ã O

C om o pós-abolição a população negra foi silenciada e m arginalizada pelo processo

histórico, a participação dos negros na construção da sociedade foi negada e o preconceito e

estereótipo a Á frica e sua população foram estabelecidos. A im agem que os negros e o

continente africano carrega é pejorativa e negativa. D essa form a, a lei 10.639 im plem entada no

dia 9 de ja n e iro de 2003 que im põe a obrigatoriedade do E nsino de H istó ria da Á frica e C ultura

A fro-brasileira na rede básica v isa p rotagonizar o grupo social e in flu en ciar na fo rm ação da

identidade dos alunos negros. A aprovação da referida lei está relacionada com a luta do

m ovim ento social negro. N o ano centenário do fim da escravidão, o B rasil passava pelo

processo de redem ocratização e construção de um novo tex to constitucional. O m ovim ento

negro atuou para g arantir políticas públicas para o grupo desde a constituição, assim foi

estabelecido no artigo 242 que “ o ensino de h istória do B rasil considerará as contribuições das

diferentes culturas e etnias p ara a form ação do povo b rasile iro ” e no ano de 2003 foi estipulado

a obrigatoriedade do ensino de H istória da Á frica e C ultura afro-brasileira.

N esse sentido, a im plem entação da lei de 2003 ju n to a com unidade escolar é de extrem a

urgência, visto que está associado a u m a educação das relações étnico-racial. C om o intuito de

entendem os sobre a execução da lei federal nas escolas realizam os um a pesquisa para v erificar

as ações e m edidas adotadas pelo m unicípio de A m am baí/M S. R efletim os a p artir dos seguintes

term o s m etodológicos: P ro jeto s P olíticos P edagógicos (PPP), M ateriais D idáticos, entrevistas

com professores, pesquisas e trabalhos voltados p ara a tem ática nas escolas E.E. D om A quino

C orrêa, E.E. V espasiano M artins e E.E. Cor. Felipe de Brum . A s escolas escolhidas para a

pesquisa atendem alunos do ensino fundam ental- anos iniciais e finais, ensino m édio e

E d ucação para Jovens e A dultos (EJA ), são escolas públicas e estaduais. São discentes de

diversas cam adas sociais com o indígenas e alunos de m unicípios vizinhos e fazendas. As

escolas estão localizadas nas áreas urbanas da cidade. A efetivação da lei nas escolas de

301 Acadêmica do curso de Hisória da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. Trabalho desenvolvido sob
orientação da Profa Dra Manuela Areias Costa (UEMS) - Orientadora do PIBIC e TCC desta pesquisa.
664
A m am baí é de extrem a relevância, u m a vez que encontram os alunos de diversas realidades

sociais e culturais.

D E S E N V O L V IM E N T O

C onform e argum enta A m ílcar A raújo P e reira (2012, p.118) o m ovim ento negro existe

no B rasil desde que os prim eiros seres hum anos escravizados chegaram a terras brasileiras. O

m ovim ento negro é fundam ental para entenderm os a luta po r sobrevivência da população negra

em u m a sociedade que m arginalizou e silenciou esse grupo social. E ntendem os que o

m ovim ento negro é im portante para o reconhecim ento da cultura afro-brasileira. P ortanto,

propom os analisar com o o m ovim ento proporcionou a v alorização da cultura africana e a fro -

b rasileira e resultou na lei 10.639/03 que im põe a obrigatoriedade do ensino de h istória da

Á frica e cultura afro-brasileira.

A escravidão foi responsável pela diáspora africana e po r consequência, a presença de

diversos povos em solo brasileiro. O s africanos chegaram ao B rasil com o estrangeiros e direitos

fundam entais com o o de liberdade foram negados. A coisificação dos negros, o m ito da

dem ocracia racial e o branqueam ento da população foram alternativas encontradas para tentar

elim inar a presença africana após o fim da escravidão em 1888 e negar aos negros direito a

sociedade. A ausência de políticas públicas e a falta de acesso à sociedade levaram ao

desenvolvim ento do racism o estrutural, em que os negros encontram os resquícios. A adesão e

a organização dos negros foram essenciais para ten tar acabar com o projeto histórico de

exterm ínio do grupo. O s esforços constantes do m ovim ento negro são responsáveis pelas

políticas públicas que a com unidade negra tem atualm ente. D estarte, as conquistas dos

m ovim entos negros foram inúm eras, entretanto a pesquisa focará na lei 10.639/03 e as m edidas

adotadas po r três instituições escolares do m unicípio de A m am bai para a aplicação da lei.

A h erança de um m odelo de história eurocêntrica faz parte da sociedade brasileira,

principalm ente na educação. A própria configuração do curso de H istória é um reflexo dessa

herança, um a vez que silenciam a trajetória dos negros e indígenas (C E R E Z E R . 2015, p.202).

C om a aprovação da lei 10.639/03 que im põe a obrigatoriedade do ensino de história da Á frica

e cultura afro-brasileira e a lei 11.645/08 que to rna obrigatório o estudo de h istória e cultura

indígena e afro-brasileira na rede básica de ensino de todo o B rasil este cenário da educação

centrado na história e cultura eurocêntrica e o projeto histórico desenvolvido de esquecim ento

aos povos negros e indígenas com eçou a ser m odificado. K abengele M unanga aponta que “ O

B rasil oferece o m elh o r exem plo de um país que nasceu do encontro das diversidades étnicas e
665
culturais” (M U N A N G A . 2015, P.20). L eis federais que garantam a visibilidade das diversas

culturas é de extrem a im portância, essencialm ente porque a desigualdade e o preconceito racial

ocupam todas as esferas da nação brasileira. A h istória do continente am ericano e africano é

narrad a a partir do contato com os europeus, silenciando a história que os respectivos

continentes tinham antes do contato com os colonizadores. D esco lo n izar o currículo escolar é

prim ordial para um país form ado de m ulticulturas com o a nação brasileira. A bordar a história

de cada povo, distinguir a com posição étnico-cultural e o contexto social global em que o país

está inserido, abrangendo pautas com o diversidade e reconhecim ento da diferença.

O utra conquista im portante aconteceu em 2004 com a alteração da lei de diretrizes e

b ases para a prom oção de um a educação das relações étnico-raciais. B aseado nas inform ações

expostas é possível perceber que existe um arsenal legal para a im plem entação da lei nas

escolas. A falta de fiscalização contribuiu na não aplicação nas instituições escolares, a partir

da análise das práticas e saberes escolares do m unicípio de A m am baí/M S conseguim os a nível

local entender as ações adotadas e com o influenciam p ara o com bate ao racism o e identidade

dos alunos negros. D essa m aneira, exam inam os oitos livros didáticos, P rojetos P olíticos

P edagógicos e entrevistam os com professores das E.E. D om A quino C orrêa, E.E. V espasiano

M artins e E.E. Cor. F elipe de Brum .

A p artir do m apeam ento percebem os que a aprovação da lei 10.639/03 m arcou um a

conquista sem precedente para a educação das relações étnico-raciais. E ntretanto, ao analisar

livros didáticos, PPP s e entrevistar com os p rofessores preparados para retratar um a história

descolonizada, notam os que a im plantação da lei apresenta diversos desafios. E ntre os desafios

estão os m ateriais m etodológicos utilizados pelos docentes da educação básica. M artha A breu

e H ebe M atos afirm am que, m uitas vezes, os b rancos são evidenciados com o benfeitores nos

livros didáticos, já as representações dos negros acontecem em tem po/espaço esp ecifico da

história. (A B R EU ; M A T O S, 2008). C om m ateriais de apoio eurocêntricos os professores

possuem um a tarefa desafiadora de não propagar m ais discrim inação e preconceito contra a

p o pulação negra, sobretudo porque o livro didático retrata o continente africano com “ Silêncio,

desconhecim ento e representações eurocêntricas” . (O LIV A , 2003, p.429).

A nalisam os três coleções de livros didáticos da disciplina de H istória do ensino

fundam ental - anos finais vigentes nas escolas públicas do m unicípio de A m am baí/M S de m odo

a realizar um levantam ento de conteúdos e identificar a presença ou a ausência de tem as

relacionados à H istória da Á frica e C ultura A fro-brasileira. A s coleções analisadas foram :

Teláris: E nsino F undam ental — anos finais, prim eira edição p u blicada em 2018 na cidade de

São P aulo pela editora É tica. O PN L D possui v igência de até 2023. O s livros exam inados dessa

coleção correspondem aos 7°, 8° e 9° anos e os autores são C láudio V icentino e José B runo
666
V icentino. A segunda coleção analisada é a H istória, sociedade e cidadania — E nsino

Fundam ental — anos finais, quarta edição p u blicada em 2018 em São P aulo pela editora FTD.

O PN L D possui v igência até 2023. O s livros analisados correspondem ao 7°, 8° e 9° anos. O

autor responsável é o A lfredo B oulos Júnior. A terceira coleção analisada é a Inspire - E nsino

Fundam ental - anos finais, prim eira edição p u blicada em 2018 em São P aulo pela editora FTD.

PN L D tem v igência até 2023. O s livros exam inados correspondem aos 8° e 9° anos. Os autores

são G islaine C am pos A zevedo Seriacopi e R einaldo Seriacopi.

A o analisar as três coleções de livros didáticos da disciplina de H istória vigente no

m unicípio de A m am baí chegados a um a conclusão. Os livros didáticos de H istória apresentam

u m a história da Á frica fragm entada. D os oitos livros analisados apenas um capítulo foi

destinado à h istória do continente por exem plar, enquanto a h istória do continente europeu

recebe 38 capítulos. P o r m ais que os capítulos exploram um a história descolonizada do

continente africano p ercebem os que os livros didáticos, enquanto obras, apresentam

colonialidade do saber (D IA L L O , M A R Q U E S . 2020, p.633). B aseado nas inform ações,

entendem os que além dos livros didáticos, os P rojetos P olíticos P edagógicos estão relacionados

com a execução da lei.

D e acordo com O svaldo C erezer (C E R E Z E R . 2011, p.2) não existe m ais a possibilidade

de negar a participação dos negros e indígena na construção social do B rasil, lançando novos

desafios para a com unidade escolar que precisa urgentem ente prom over um currículo

descolonizado e de m ulticulturas. A s m udanças na educação desde 1988 com a constituição

cidadã e prom ulgação das leis 10.639/03 e posteriorm ente a 11.645/08 form am as

transform ações necessárias p ara um a educação das relações étnico-racial. T odavia, m esm o com

a iniciação das políticas públicas voltada para os grupos sociais m arginalizados pelo contexto

histórico, percebem os que as instituições escolares apresentam currículos colonizados.

Portanto, analisar com o a escolas públicas e estaduais do m unicípio de A m am baí aplicam a lei

10.639/03 nos P rojetos P olíticos P edagógico (PPP) é fundam ental, sobretudo para entendem os

com o ocorre a prom oção das m ulticulturas á nível local.

“ O PPP é um docum ento obrigatório, preconizado na Lei de D iretrizes e B ases da

E d ucação N acional n° 9.394/96, e é um dos instrum entos que garantem a G estão D em ocrática

do E nsino P úblico da E d ucação B ásica” (D IA LLO , M A R Q U E S. 2020, p.625). O Projeto

P o lítico P edagógico (PPP) é um docum ento obrigatório na rede de ensino e precisa propiciar

u m a educação dem ocrático. P o r m eio do docum ento é possível analisar as abordagens, as

m edidas, os conteúdos e as m etodologias que as escolas u tilizarão para p rom over um espaço

inclusivo, descolonizado e diverso. O P PP precisa prom over a form ação de indivíduos com

senso crítico e dem ocrático.


667
A análise dos P P P s m ostrou que m esm o com a obrigatoriedade da lei, as escolas

apresentam PPP s que retratam a “ C olonialidade do saber” (D IA LLO , M A R Q U E S . 2020,

p.633). M uito ainda precisa ser feito para a inclusão de conteúdos relacionados à H istória da

Á frica e cultura afro-brasileira. E sclarecem os que alguns dos P P P s abordam práticas e

orientações na luta do com bate ao racism o e as m ulticulturas presentes em solo brasileiro,

contribuindo para a legitim ação da h istória da pop u lação negra e indígena silenciadas pelo

processo histórico. C om preendem os que apenas a análise os P P P s não revelam as práticas

pedagógicas u tilizadas pelos p rofessores em sala de aula para a integração da lei, u m a vez que

avaliam os que tais práticas coletivas ou individualm ente contribuem para o cum prim ento da lei

em sala de aula m esm o sem a presença no PPP. D estarte, exam inarem os com o os professores

da rede básica de ensino do m unicípio de A m am baí incluem conteúdos voltados para o tem a e

as m etodologias adotadas para práticas pedagógicas que colabora para u m a educação

antirracista.

A form ação de professores especialistas na área ou a ausência desta é outro problem a

que cham a a atenção de pesquisadores, essencialm ente porque a lei torna obrigatório o ensino

de h istória da Á frica e cultura afro-brasileira na rede básica de ensino. Porém , nota-se a falta de

exigência de disciplinas ou conteúdos relacionados à tem ática nos cursos de form ação de

professores. A falta de qualificação de profissionais gera um grande im pacto na im plem entação

da lei.

A penas a p u blicação da lei não configura a descolonização do ensino, é necessário

executar m edidas que corrobore para que a lei seja im plem entada. E ntre as ações a form ação

de docentes preparados para trab alh ar com o ensino de H istória da Á frica, C ultura A fro-

b rasileira e é essencial. D isciplinas que exploram a cultura afro-brasileira precisam tornar-se

obrigatórias nos cursos de licenciatura, u m a vez que a lei estará presente em todas as disciplinas

escolares, não apenas no ensino de H istória. D eve o correr cursos de form ação continuada para

os profissionais na área há alguns anos (essencial para professores que obtiveram um a form ação

anterior à lei) oferecidos pelo governo ou pela iniciativa privada.

A s análises dos livros didáticos dos P P P s escolares e das entrevistas com os professores

da rede básica de ensino e de quase duas décadas desde a obrigatoriedade do ensino de H istória

da Á frica e C ultura A fro-brasileira é perceptível que m udanças na educação são necessárias. A

lei 10.639/03 proporcionou po r m eio da educação um avanço sem precedentes para grupos

m inoritários e excluídos. M as, a aprovação da lei não significa que esteja sendo cum prida no

âm bito educacional. C om preendem os que a falta de fiscalização seja um dos p rincipais

problem as encontrados para a aplicação da lei em sala de aula. O s relatos dos professores

ressaltaram que a ausência da lei no P PP escolar está relacionada com a estrutura e organização
668
das escolas, evidenciado a identidade da instituição. M as, além das escolas, os docum entos

norteadores com o o referencial curricular do estado de M ato G rosso do Sul apresentam

“ C olonialidade do saber” (D IA LLO , M A R Q U E S. 2020, p.633), ao dim inuir a quantidade de

conteúdos relacionados a Á frica e cultura afro-brasileira, enquanto o ensino de H istória

europeia é supervalorizado, dificultando, a im plem entação da lei.

O utro ponto im portante ressaltado pelos docentes da educação básica está relacionado

à falta e quantidade de m atérias disponíveis para trab alh ar com a tem á tic a e a form ação de

professores experientes e qualificados na área. A o longo das entrevistas com os cinco

professores, todos apontaram para a ausência de m atérias didáticos e de apoio para trabalhar

nas escolas, principalm ente porque existe um a diversidade de trabalhos acadêm icos voltados

para a lei e suas nuances, m as livros didáticos e m atérias que se com prom etam com o tem a

ainda são poucos, afirm am os professores. E m relação à form ação de professores qualificados

para trabalhar com a lei percebem os outra problem ática, os docentes entrevistados apenas um

teve contato com disciplinas específicas voltada para H istória da Á frica e C u ltu ra A fro -

brasileira. O problem a torna-se m ais grave se observam os que apenas um dos professores

form ou-se antes da prom ulgação da lei. O s dem ais graduados nos cursos de licenciatura em

H istória form aram -se p o sterio r a lei.

C onstatam os a existência de um paradoxo, visto que existe a p reocupação do país em

explorar a diversidade cultural da nação b rasileira na educação. P orém , não preparou e

q ualificou os professores que são os profissionais responsáveis p ela im plem entação da lei na

sala de aula através das práticas pedagógicas. P ercebem os que os PP P s infelizm ente não têm a

lei com o prioridade. C ontudo, os p rofessores das escolas adotam p ráticas e ações isoladas na

m ed id a do possível e dos recursos disponíveis para im p lem en tar a lei. E ntendem os a lei com o

u m a política pública que veio solucionar a exclusão, discrim inação e preconceito racial que a

p o pulação negra v ivencia desde o período escravocrata, porém após quase duas décadas de

existência o sentim ento de “precisam os fazer algo m ais” é latente. C onstatam os que as práticas

pedagógicas realizadas isoladam ente pelos professores da educação básica podem influenciar

em resultados p rom issores para o futuro.

A s políticas escravocratas abolidas a 134 anos ainda interferem na luta po r direitos da

p o pulação negra. Os m ovim entos negros inseridos no B rasil desde que os prim eiros seres

h um anos adentraram ao território vem lutando p a ra g arantir direitos para os negros, a

invisibilidade é um problem a que perpassa séculos e infelizm ente a lei 10.639/03 apontado por

diversos estudiosos com o um a reparação histórica não conseguiu p roporcionar aos afro-

b rasileiros e a Á frica o protagonism o devido nas escolas públicas e estaduais do m unicípio de

A m am baí/M S. C onstatam os que o m aio r com bate dos negros no B rasil é de existir em um a
669
sociedade que nega essa existência constantem ente, a respectiva lei evidencia a existência e

resistência dos negros, porém , os m ecanism os sociais racistas silenciam a lei. D jam ila R ibeiro

(2018) argum enta que os negros no B rasil não querem ser objetos de estudos e sim sujeitos de

pesquisas. A lei 10.639/03 é m uito im portante para protagonizar os negros, as ações realizadas

pelos professores das escolas de A m am baí/M S são fundam entais, visto que a prática

pedagógica resu lta na aplicação da lei na sala de aula. M as as m edidas adotadas pela

com unidade escolar, docum entos norteadores e m ateriais didáticos apresentam “ C olonia lidade

do saber” (D IA LLO , M A R Q U E S. 2020, p.633).

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671
E N S IN O D E H IS T Ó R IA E H IS T Ó R IA O R A L : A V O Z D A M U L H E R
NEGRA

TIA G O N IL S O N D A S IL V A 302

R e su m o : E ste artigo apresenta as reflexões a p artir das narrativas de um a m ulher negra do


bairro da A rm ação da P iedade, no m unicípio de G overnador C elso R am os/S C sobre bem
cultural: a Igreja N o ssa Senhora da P iedade/SC . E sclarecen d o que a Igreja de N o ssa Senhora
da P iedade, em G overnador C elso R am os-SC , foi to m bada po r sua im portância cultural através
do D ecreto N° 3.458, de 23/11/2001. O objetivo dessa do artigo é articular a m em ória, a
experiência de um a m oradora com o patrim ônio cultural inserido na localidade. A m etodologia
utilizad a foi a h istória oral, realizad a por m eio de entrevistas, dialogando com os conceitos de
m em ória, experiências, narrativas e patrim ônio. A o trab alh ar com as narrativas dessa m oradora,
para com por esse artigo, am paro-m e nos conceitos de m em órias, narrativas, experiências,
afundam entos em B enjam in (1994), B ondía, (2002), G agnebin (2014). M etodologicam ente,
adotou-se a entrevista com o in strum ento de coleta das narrativas, fundam entadas na história
oral, inspirados em A lberti (2005) e Porteli (2016). C onclui-se que por m eio da história oral foi
possível visib ilizar u m a m em ória “ esquecida” e subalternizada e não problem atizada em sala
de aula e que explodem a partir da narrativa de u m a m u lh er negra do m unicípio.

P a la v ra s -c h a v e : E nsino de H istória; M em ória, M ulher.

T E A C H IN G H IS T O R Y A N D O R A L H IS T O R Y : T H E V O IC E O F T H E B L A C K

W OMAN

A b s tra c t: T his article presents the reflections from the narratives o f a b lack w om an from the
neighborhood o f A rm ação da Piedade, in the m u nicipality o f G overnador C elso R am os/SC ,
about a cultural asset: the N o ssa Senhora da P iedade C hurch/SC . C larifying th a t the C hurch o f
N o ssa Senhora da P iedade, in G overnador C elso R am os-S C , w as listed fo r its cultural
im portance through D ecree N o. 3,458, o f 11/23/2001. T he objective o f th is article is to
articulate the m em ory, the experience o f a resident w ith the cultural heritage inserted in the
locality. T he m ethodology u sed w as oral history, carried out through interview s, dialoguing
w ith the concepts o f m em ory, experiences, narratives and heritage. W hen w orking w ith the
narratives o f th is resident, to com pose this article, I rely on the concepts o f m em ories, narratives,
experiences, sinkings in B enjam in (1994), B ondía, (2002), G agnebin (2014). M ethodologically,
the interview w as adopted as an instru m en t fo r collecting narratives, b ased on oral history,
inspired by A lberti (2005) and Porteli (2016). It is concluded th at through oral history it w as
possible to visualize a “forgotten” and subordinated and not problem atized m em ory in the
classroom and th at explode from the narrative o f a b lac k w om an in the m unicipality.

302 Mestrando no Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
E-mail: tiagonilson@yahoo.com.br
672
A s re la ç õ e s é tn ic o rra c ia is

O s currículos de H istória no B rasil sem pre privilegiaram os grandes feitos, dos

cham ados “grande hom ens ou heróis” , historicam ente foram alicerçados num a perspectiva

eurocentrada, branca, patriarcal, na qual som ente são selecionados e visibilizados som ente os

grandes acontecim entos e fatos históricos da hum anidade, sobretudo da E uropa, em detrim ento

das narrativas e da história de outros povos dos m ais diversos continentes com o das A m érica,

Á frica e Á sia, histórias e narrativas estas que foram e continuam sendo m arginalizadas, quando

não com pletam ente invisibilizadas e om issas nos currículos de ensino nas esco las e

u niversidades. A ssim , parte significativa da população brasileira, com o negros e indígenas que

lutaram bravam ente nos grandes acontecim entos da H istória do B rasil não têm seus nom es

registrados nos livros de H istória utilizados nas escolas com o heróis ou heroínas da nação.

Inclusive suas histórias, m em órias, narrativa, experiências e os patrim ônios foram

com pletam ente esquecidos e invisibilizados na form ação escolar de grande parte da ju v en tu d e

b rasileira.

Cabe denunciar que estes grupos subalternizados pelas narrativas moderno-colonial,


são aqueles que, geralmente, ainda hoje, estão fora das narrativas das nossas aulas,
aqueles que de modo geral, estão fora das nossas escolas em suas representatividades,
pois suas histórias não entram, mesmo muitas vezes fazendo majoritariamente parte
delas corpóreamente falando. (ANTONI, PAIM e ARAUJO, 2021, p.33)

Faz-se necessário ressaltar que foi por força dos m ovim entos negros contem porâneos

que a pauta do ensino de h istória e cultura africana e afro-brasileira foi incorporada no currículo

escolar por m eio da obrigatoriedade trazido pela lei n° 10.639/2003 e posteriorm ente, a lei n°

11.645/2008 que incorporou a tem ática indígena.

Nesse sentido, precisamos lembrar que as duas Leis (10.639/03 e 11.645/08) que nos
obrigam a trabalhar com história e cultura africana e afro-brasileira, ou história e
cultura dos povos indígenas não se originam nas universidades, nem tão pouco são as
escolas que fazem essa briga, que obrigam a transformação em lei. São os movimentos
negros, os movimentos indígenas que obrigam a colocar tais saberes e práticas na
nossa LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional] e obrigam a ensinar na
escola. (ANTONI, PAIM e ARAUJO, 2021, p.36)

A educação para as relações étnicorraciais, de acordo com (Souza, 2018, p. 58)

apresenta-se à frente da lei, no sentido de que ela é de sum a im portância para relações m ais

positivas na escola, pois é po r m eio dela que m uitos educadores tentarão nas suas diversas

escolas e salas de aulas m inim izar e, se possível, dirim ir por com pleto o racism o, o preconceito

e a discrim inação que vitim iza as populações deste país, principalm ente a negra. P orém , para

67 3
m uitos educadores e educadoras não é fácil realizar esta tarefa devido às estruturas de

dom inação ideológica presentes na sociedade brasileira e, principalm ente por falta de

conhecim ento desses tem as em suas form ações iniciais. A lguns outros/as ainda defendem que

não há nas escolas espaço para este tip o de discussão, vinculando este tip o de ensino e debate

aos antropólogos, sociólogos, etc.

Ainda segundo o autor, educar para as relações étnicorraciais envolve reflexão,


contato, diálogo, respeito, conhecimento e o estudo das histórias e culturas africanas,
afro-brasileiras e indígenas. Envolve reconhecer que as diversidades devem ser
conhecidas e valorizadas como elemento propulsor de ações pedagógicas humanas
que contemple a todos e a todas. É muito mais do que isso, são as dimensões da ética,
das identidades, das diversidades, das sexualidades e das relações raciais devem ser
dimensões presentes no trato com a educação para as relações étnicorraciais.
(SOUZA, 2018, p. 59)

M e m ó ria , n a r r a ti v a e e x p e riê n c ia s

A m em ó ria é um tem a extrem am ente atual na historiografia contem porânea, de acordo

com (G alzerani, 2012), a m em ó ria - raras vezes p roblem atizada com o objeto de estudos.

R efiro-m e as visões de m em ória, com o m eio privilegiado, voluntário, de acesso ao verdadeiro

conhecim ento, e ainda, à concepção de m em ória com o atributo de atividades naturais -

desinteressadas e seletivas, que carecem do o lhar vigilante da “ senhora - história” , para serem

sistem atizadas de form a escrita e apresentadas com o saber crítico, relativam ente ao passado.

P ara (G agnebin, 2014), o ato de lem brar na concepção de B enjam im , não se reduz à

acum ulação de dados, tornando um fardo que pode im p ed ir os vivos de agir com inventividade

e liberdade. Portanto, a crítica benjam iniana, incide ju stam en te nessa concepção de m em ória

“ neutra” , “ desinteressada” , que to d a essa faculdade hum ana com o um m ero instru m en to

indiferente, e não um órgão ligado à vida, e, sobretudo ao presente.

P o r isso, a questão da m em ória, de acordo com (G agnebin, 2014) é inseparável de um a

reflexão sobre a narração. E as form as de narrar são os m eios fundam entais da construção da

identidade, pessoal, coletiva ou ficcional. Segundo ela, B enjam im define a narração a p artir da

oralidade (isto é, da relação ouvinte-narrador) e da transm issão. E ntão narrar não é apenas salvar

e conservar, m as é tam bém , poderiam os dizer, salvar tão com pletam ente que se possa deixar de

conservar, de arquivar, de classificar, de m anter. E a necessidade de narrar, persiste na

contem poraneidade, m as sua realização se torna cada vez problem ática.

A pós a com preensão de m em ória e narração, acrescento o conceito de experiência. A

experiência, de acordo com (B ondía, 2002), é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos

674
toca. O sujeito da experiência é tam bém um sujeito sofredor, padecente, receptivo, aceitante,

interpelado, subm etido. Se a experiência é o que nos aco n tece e se o saber da experiência tem

a v er com a elaboração do sentido ou do sem -sentido do que nos acontece, trata-se de um saber

finito, ligado à existência de um indivíduo ou de um a com unidade hu m an a particular. P o r isso,

o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal.

A b o rd a g e m d e c o lo n ial

O processo social e p olítico de luta decolonial, segundo (T olentino, 2018), tem com o

p rojeto a transform ação social e política, com o tam bém a transform ação das estruturas do

pensar, do atuar, do sonhar e do viver.

A o a f ir m a r o p ro c e s s o p o lític o e s o c ia l d e c o lo n ia l [e m v e z d e d e s c o lo n ia l]. N ã o
p o d e m o s s im p le s m e n te d e s a r m a r, d e s f a z e r o u r e v e r te r o c o lo n ia l; o u se ja , p a s s a r d e
u m m o m e n to c o lo n ia l a u m n ã o c o lo n ia l, c o m o se fo s s e p o s s ív e l q u e s e u s p a d r õ e s e
m a r c a s d e s i s ti s s e m d e e x is tir. A in te n ç ã o é m esm o a s s in a la r e p r o v o c a r u m
p o s ic io n a m e n to - u m a p o s t u r a e a titu d e c o n tin u a - d e tr a n s g re d ir, in te rv ir, in s u r g ir e
in c id ir. O d e c o lo n ia l d e n o ta , e n tã o , u m c a m in h o d e lu ta c o n tín u o n o q u a l p o d e m o s
id e n tif ic a r, v is ib i li z a r e e s tim u la r “ lu g a r e s ” d e e x te r io r id a d e e c o n s tr u ç õ e s
a lte rn a tiv a s . (W A L S H , 2 0 0 9 , p. 1 6 -1 5 apud T O L E N T I N O , 2 0 1 8 , 12)

P ara construir outras narrativas p ara a construção de conhecim entos históricos, vários

pesquisadores tem se apropriado da abordagem decolonial. N este sentido, entrevistei a Senhora

V ani M aria G alo, m u lh er negra, nascida em 28/03/1959, filha de M anoel L im a dos Santos e

M aria A ntônia dos Santos, am bos residentes em A reias de B aixo, G overnador C elso R am os,

Santa C atarina.

C om a narração dessa m oradora, um a m em ória não valorizada, principalm ente no

am biente escolar que despreza narrativas não oficiais, pensam os na im portância das relações

étnicorraciais estarem no currículo escolar.

Is s o n o s le v a a c o n c lu s õ e s d e q u e p a r a p r a tic a r m o s a e d u c a ç ã o p a r a a s r e la ç õ e s
é tn ic o r r a c ia is p r e c is a m o s n o s r e e d u c a r e r e e s tr u t u r a r n o s s o s p e n s a m e n to s e n o s s a
fo r m a ç ã o p r o f is s io n a l p a r a n ã o c a ir m o s n o s e q u ív o c o s e m e s m o s e r r o s c o m o e s t u d a r
a s c u ltu r a s a f r ic a n a s e a fr o b ra s ile ira s p e lo v ié s c o lo n ia l e e u r o c ê n tr ic o . P o r ta n to , fic a
a p e r g u n t a : é p o s s ív e l a o s d o c e n te s d a e d u c a ç ã o p ú b lic a e p r iv a d a p e n s a r o e n s in o
p a r a a e d u c a ç ã o d a s re la ç õ e s é tn ic o r r a c ia is e o e n s in o d e h is tó r ia e c u ltu r a a f r ic a n a e
a f r o - b r a s ile ir a p a r a a lé m d a m a triz c o lo n ia l e u r o p e ia e s u b v e r te r e s ta e p is te m o lo g ia
p o r o u tr a s , q u e c o n s id e re t o d o s e s s e s p o v o s e p o p u la ç õ e s s u b a lte r n iz a d o s p o r e s s e
p e n s a m e n to h e g e m ô n ic o a o lo n g o d o s s é c u lo s ? S e g u n d o o g ru p o d e p e s q u is a d o r e s
la tin o - a m e r ic a n o s d e n o m in a d o s “ m o d e r n id a d e /c o lo n ia lid a d e ” a r e s p o s ta é sim . É
p o s s ív e l. (S O U Z A , 2 0 1 8 , p .6 2 )

675
P a trim ô n io e E d u c a ç ã o P a trim o n ia l

A preservação dos m onum entos, de acordo com (Fonseca, 2005) e stá atrelada à

form ação dos E stados nacionais e data dos anos finais do século X V II, quando o E stado, na

E uropa, p assa a assum ir a proteção legal de determ inados b ens aos quais foi atribuída a

capacidade de sim bolizarem a h erança cultural das nações.

O P a tr im ô n io d e u - s e n a c o n s tr u ç ã o d o s e n tim e n to d e n a c io n a lid a d e : c o n s titu ir u m a


re f e r ê n c ia d e u m a id e n tid a d e c o m u m a u m p o v o . P o is , a C o n s titu iç ã o b r a s ile i r a d e
1 9 8 8 tr o u x e a n o ç ã o d e p a tr im ô n io d e b e m c u ltu ra l. A s s im f o i p a s s o u s e r e n te n d id o
c o m o " lu t a e id e n tid a d e q u e se e x p r e s s a m c o m o v a lo r e s e im a g e n s , s e n tim e n to s ,
a s p ira ç õ e s , p r o je to s , c re n ç a s , m ito s , a rte , tr a b a lh o , r itu a is , r e g r a s v is ív e is e in v is ív e is
d e c o n v íc io s o c ia l, fo r m a s s im b ó lic a s d e d o m in a ç ã o e re s is tê n c ia , le is, in s titu iç õ e s ,
id e o lo g ia , tr a d iç ã o (K H O U R Y , 1 9 9 1 , p . 8 5 apud A R A Ú J O ; P A I M , 2 0 1 8 ).

N o B rasil, de acordo com (chuva, 2003; Fonseca, 2005) a p rática preservacionista

seguiu a ten d ên cia europeia, ligando-se intim am ente à ideia de form ação e afirm ação do E stado-

N ação. M as, para além disso, o desejo de p erten cer à civilização ocidental foi, provavelm ente,

o que configurou o processo de invenção de um p atrim ônio nacional no B rasil, com a criação

do Serviço do P atrim ônio H istórico e A rtístico N acional - o SPH A N (hoje IPH A N ), no ano de

1937.

A n o ç ã o d e p a tr im ô n io é la r g a m e n te u tiliz a d a n a s s o c ie d a d e s c o m p le x a s
c o n te m p o r â n e a e p r o p a g a - s e e m d iv e r s o s c o n te x to s s o c ia is. S itu a r, h is to r ic a m e n te a
e la b o r a ç ã o d essa noção, im p lic a d a na c o n s tru ç ã o e c irc u la ç ã o de p r á tic a s e
r e p r e s e n ta ç õ e s s o c ia is , c o n tr ib u i p a ra p e n s a - la com o o b je to de in v e s tig a ç ã o
a c a d ê m ic a , c o m o c a m p o d e a ç ã o s o c ia l e d a s p r á tic a s p e d a g ó g ic a s n o e n s in o d e
H is tó ria . ( P O S S A M A I, 2 0 1 5 apud C IA M P I ,2 0 1 5 )

P o r isso, ao pensar a interface ensino de H istória e patrim ônio, de acordo com (Ciam pi,

2015), urgente se faz problem atizar as diferentes apropriações sociais e culturais pelo

patrim ônio, retirando-lhe o seu estatuto sacralizado, considerando-o produto e v eto r de relações

sociais. Isso quer dizer que ter o patrim ônio com objeto de investigação dos estudos históricos

im p licar m elhor com preendê-lo, retirando-o da naturalização, percebendo sua historicidade e

seus m últiplos cam inhos de apropriação social.

R e c e n te m e n te , p a s s o u a e x is tir u m d iá lo g o e n tr e o s e s p a ç o s d e m e m ó r ia e a s e s c o la s ,
e, a s s im , a s q u e s tõ e s d a m e m ó r ia e d o p a tr im ô n io a o s p o u c o s e s tã o se n d o in c o r p o r a d a s
a o s c u rr íc u lo s e s c o la re s . O p a tr im ô n io p a s s o u a c o n tr ib u ir “ p o te n c ia lm e n te n a
fo r m a ç ã o h is tó ric a , v is to q u e p e rm ite d a r c o n s is tê n c ia à s in f o r m a ç õ e s e a b s tr a ç õ e s d o s
te x t o s h is tó ric o s e p o r q u e c o n s tr ó i a p e r c e p ç ã o e a v is ã o h is tó r ic a d o te r r itó r io e d o
m u n d o . O e s c o p o é g e r a r o s e n tid o , o c o n h e c im e n to e o re s p e ito ao p a tr im ô n io ”
( M A T O Z Z I, 2 0 0 8 , p .1 4 9 apud P A I M e A R A Ú J O 2 0 1 8 ).

676
A seguir está a narração de V ani G alo sobre o P atrim ônio C ultural local entendo que

nos últim os tem pos, a definição de patrim ônio passou a considerar o que tem um sentido para

u m a determ inada pessoa ou grupo, isto é, p atrim ônio passa a ser, de acordo com (V arine, 2012,

p.43 a p u d Paim e A raújo 2018) todo bem “ [...] do m ais m odesto ao m ais notável, tudo o que

tem um sentido para nós, o que herdam os, criam os, transform am os e transm itim os é o

patrim ônio tecid o de nossa vida, um com ponente de nossa p ersonalidade”

A igreja foi feita na época dos escravos. Foi uma época marcante. Para mim é bem
marcante. Os meus ancestrais foram os que construíram uma beleza tão rica.
Hoje em dia tem um monte de igreja. Eles levantam dos tijolinhos. Só tem luxo. Mas
aquela é uma igreja que foi feita com suor. A gente sabe dos tamanhos da pedra.
(GALO, Vani Maria. Entrevista. Junho de 2019).

O patrim ônio citado acim a, localizado no bairro da m oradora entrevistada, é a Igreja de

N o ssa Senhora da P iedade, em G overnador C elso R am os-S C , que foi to m b ad a por sua

im portân cia cultural. S egundo a F undação C atarinense de C ultura (FCC ), a arm ação de baleias

estabeleceu-se em A rm ação da P iedade com T hom é G om es M oreira, em 1741, ju n ta m e n te com

m ais sete negociantes, que fizeram um contrato de arrem atação com a C oroa P ortuguesa por 12

anos. Foi nesse período que se levantou a A rm ação da P iedade, próxim a à ponta norte da Ilha

de Santa C atarina, onde, segundo (B oiteux, 1914), em 18 de novem bro de 1745/46, benzeu-se

a C apela. E la com eçou a ser construída em 1738 e concluída em 1745. E m estilo colonial

português, m antém as características das igrejas setecentistas, com frontão triangular. A igreja

foi to m b ad a pelo E stado pelo D ecreto N° 3.458, de 23/11/2001, é tid a com o a prim eira igreja

edificada em Santa C atarina, no século X V III, ainda utilizando óleo de b aleia na argam assa, e

localizada ao lado das ruínas da antiga A rm ação da P iedade. E m 1839, a A rm ação da P iedade

foi incorporada à M arinha.

D e acordo com (Paim e A raújo, 2018) as pessoas só respeitam , adm iram , preservam e

se identificam com aquilo que conhecem . P ara que ocorra especialm ente a identificação (ou

não) com os bens patrim oniais, faz-se necessário pensar e construir possibilidades de educar

para o patrim ônio, a fim de que as pessoas conheçam e sintam -se pertencentes aos espaços, às

discussões, lugares de guarda e preservação dos diferentes bens patrim oniais. P ortanto, para

que efetivam ente ocorra u m a educação p ara o patrim ônio, não b asta falar em ou sobre

patrim ônio, é preciso viver com o patrim ônio.

O s autores afirm am citando (Fonseca, 2003, p.250) que o trabalho de entrecruzam ento

das histórias, m em órias, patrim ônios e identidades, certam ente, contribuirá para a

“ com preensão do 'eu', a afirm ação da personalidade, situando o indivíduo no espaço, no tem po,

677
na sociedade em que vive com o um sujeito ativo, capaz de com preender, construir e transform ar

essa sociedade, o espaço, o conhecim ento e a história” . P ara isto não podem os apenas apresentar

a h istória ou m em ória oficial; faz-se necessário apresentar as m em órias e histórias locais, dos

trabalhadores, dos cidadãos anônim os que tam bém fazem - e m uito - a história

C o n s id e ra ç õ e s F in a is

P ara (G onçalves 2014, p. 90-92), é necessária um a abordagem que desnaturalize o

P atrim ônio C ultural, ou seja, que o apresente com o u m a construção, um processo que envolve

vários agentes, interpretações individuais e coletivas e que decidiu pela p reservação de um bem

em detrim ento de outros. D iretam ente ligado ao processo de desnaturalização se encontra,

segundo a autora, o ato de dessacralizar o acervo patrim onial, que consiste em desestabilizar as

certezas do patrim ônio, problem atizar os processos, indagar sobre seus valores, m ostrando que

o v alo r não está no bem em si, m as ao que foi atribuído a ele. E ssa proposição se relaciona com

o que (L acerda et al, 2015) cham ou de dim ensão da inform ação, citada anteriorm ente. Portanto,

a abordagem de E d ucação P atrim onial pensada aqui não b u sca a dim ensão puram ente de

conscientização e preservação do P atrim ônio C ultural, m as a sua problem atização (D eretti,

2020, p.48).

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680
SOB OS “TIPOS” E FORMAS: REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS A
PARTIR DAS PUBLICAÇÕES DO JORNAL DO COMMERCIO (RJ) -
(1840-1855)

TÚ L IO B O T E L H O M O R E IR A D E C A S T R O 303

U m a coisa não se pode negar, a histó ria do B rasil sem pre foi m arcad a pelas

invisibilidades im postas aos povos indígenas e as suas histórias. A presença desses sujeitos e

suas trajetórias foram historicam ente sobrepostas po r outras narrativas entendidas com o m ais

relevantes a form ação do E stado N acional. N esse sentido, é com um encontrarm os m uitos

trabalhos a respeito da form ação nacional, surgim ento, solidificação e declínio do Im pério

B rasileiro, m as, ainda há pouco abordando os povos nativos no oitocentos. S erá que durante

to d a a form ação nacional, os povos indígenas estiveram à revelia da história? O s autóctones do

B rasil, estariam no ostracism o histórico nacional?

É partindo das provocações acim a e entendendo a im portância dos indígenas no século

X IX , que aqui será apresentado o recorte de u m a pesquisa em que se busca relacionar esses

sujeitos e a divulgação periódica do Jornal do Commercio (RJ), na tentativa de entender as

representações que então foram construídas. A lém , pretende-se tam bém , fazer u m a reflexão a

respeito dessas representações con struída ainda no B rasil im perial e suas p erm anências na

contem poraneidade.

S ubjugados, desqualificados e excluídos da sociedade brasileira, os indígenas nacionais

ao longo de sua trajetória receberam diversos atributos que em nada condiziam com o seu real

ser. Julgados com base no crivo eurocêntrico304, os povos nativos foram em m uitas vezes

reduzidos à in significância histórica. Tal perspectiva só com eçaria a m udar a partir da id eia de

u tilizar esses sujeitos, com uns ao território brasileiro, enquanto um sím bolo para unificação do

Im pério, u m a vez que, não foi possível apagá-los de sua história.

D urante o período im perial, os índios b rasileiros teriam o seu lugar relegado à história,

com o bárbaros, violentos e incivilizados, sem p o ssu ir qualquer reconhecim ento nacional.

Segundo F ernanda Sposito (2012), devido ao fato de os índios não serem considerados

3031 Bacharel em Humanidades e Licenciado em História pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e
Mucuri - UFVJM/Campus Diamantina, mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal da Grande Dourados - UFGD, com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - CAPES. E-mail: tulio.botelho@ufvjm.edu.br.
304 Aqui considera-se sobretudo a lógica adotada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, como fora
apresentado por Lilia Moritz Schwarcz na obra “O espetáculo das raças: cientista, instituições e questão racial no
Brasil - 1870-1930”, em que apesar de ser uma instituição nacional, acabava por adotar uma perspectiva científica
importada da Europa.
681
pertencentes à sociedade política e civil no início do século XIX, ju stifica v a -se a inexistência

de u m a legislação específica destinada a esses sujeitos. N esse sentido, M an u ela C arneiro da

C unha (2012) e João P acheco de O liveira (2006), destacam que a prim eira legislação

propriam ente dita indigenista no oitocentos só apareceria em 1845, com o R egulam ento de

M issões, que m ais u m a vez, b u scaria im por sobre os índios um princípio de “ civilidade” .

A pesar da tentativa de se criar u m a representação do índio afim de fazer com que a

n ação brasileira se identificasse, o desafio seria grande. A dificuldade se daria m uito em razão

das narrativas com uns de inferiorização do indígena e tam bém pelo fato de que “ os índios

ocupavam terras, am eaçavam colonos, recusavam -se ao trabalho e lutavam para conservar suas

aldeias” (2012, p. 28), com o aponta M aria R egina C elestino de A lm eida.

C om a ten tativ a de b u scar m eios para construir um a identidade nacional, o Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro (IH G B ) foi o responsável po r fo rjar u m a h istória do B rasil,


e assim , ele não poderia se fu rtar de prom over estudos e até m esm o narrativas sobre os

indígenas. Foi a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (R IH G B ) um dos

principais espaços para divulgação de estudos a respeito dos autóctones, assim com o de

expedições, estudos científicos, e, histórias regionais. L úcio T adeu M o ta (2006), aponta que a

R ev ista foi a difusora da proposta de m uitos dos ideais do Im pério, a exem plo de que os índios

deveriam p assar po r um processo civilizatório. E tal afirm ativa é evidenciada a partir de alguns

textos do C ônego Januário da C unha B arbosa, que foram publicados no periódico do IHGB

entre 1839-1846, em que defendia que os indígenas deveriam ser catequizados, para que então

se tornassem civilizados, assim com o de que seria a m ão de obra indígena a responsável por

suprir o trabalho dos africanos escravizados. A R IH G B , então, foi para o período, o espaço de

publicação de um a elite intelectual da Corte, fazendo com que as suas ideias e as do im perador

transparecessem por seus textos.

P ara além do Instituto H istórico, outros espaços deveriam se colocar enquanto cam po

de convergência de representação, no entanto a im prensa assum ira no período o sentido oposto,

haja vista as narrativas que nela foram difundidas. P ode-se assim afirm ar, que os índios ao longo

do tem p o se tornaram elem entos im portantes para h istória n acional, fossem pelos usos que

buscavam atribuí-los, ou na recorrência em que apareciam nas publicações oficiais do IH G B ,

nos discursos da C âm ara e até m esm o nos periódicos. U m a vez que, foram nesses espaços de

pesquisa, política e divulgação, que os povos das m atas acabaram sendo recorrentem ente

narrados, o que fez assim , com que se construísse e divulgasse u m a representação a respeito

daqueles sujeitos. R epresentação essa, que surge com a finalidade de atender e legitim ar

determ inados com portam entos sociais, com o bem apresenta R o g er C hartier (2002).

682
O JORNAL DO COMMERCIO E SU A S M A R C A S N O I M P É R I O

A pesar do baix o nível de alfabetização no Im pério do B rasil, foi nas ações de leituras

públicas que m uitos dos analfabetos se inform avam a respeito dos assuntos que os jo rn a is

abordavam . N esse sentido, L úcia M aria de B astos N eves afirm a que, “ num a sociedade ainda

regida pela oralidade, as pessoas tom avam conhecim ento das novidades ouvindo as leituras e

participando das conversas e discussões sobre os acontecim entos po lítico s que ocorriam nos

lugares p ú blicos” (1995, p. 132). A ssim , fo ra no espaço público, e por m eio de ação indireta de

inform ação, que os sujeitos do Im pério passaram a alim entar o seu aspecto cultural, m esm o que

esse em m uito dos m om entos ocorresse de fo rm a despropositada, m as que, possibilitava que se

inteirassem dos assuntos, fosse sobre de política, ou até m esm o econom ia.

O s jo rn ais, panfletos e folhetins, assum iram então um papel de divulgação coletiva,

ten d o em vista que as publicações tom aram conta de diversos espaços de sociabilização da elite

im perial, tal com o cafés, academ ias e livrarias. N o entanto, as ruas tam bém foram palco de

acalorados debates a respeito de posições assum idas por determ inados artigos, acirrando os

ânim os da sociedade leitora. Foi nesse espaço de grande agitação social, que se viu o crescente

núm ero de periódicos, assim com o da frequência de publicação desses, influenciarem no

cotidiano, um a vez que buscavam p rom over a inform ação, o que de acordo com N eves (1999),

gerou a difusão de discursos cada vez m ais políticos e ideológicos do que culturais.

E m m eio a to d a essa ascensão da im prensa e dos jo rn a is no B rasil do século X IX , um

p eriódico com eçou a ganhar significativo destaque no cenário nacional. O Jornal do

Commercio (RJ), se tornou im portante veículo que fora aos poucos sendo reconhecidos po r seu
trab alh o de inform ação, assim com o po r propor im portantes debates a respeito das questões

sociais que eram recorrentem ente apresentadas po r ele. M atías M olina (2015) destaca que o

jo rn a l do Commercio ficara am plam ente conhecido devido às suas influentes publicações,

assim , de pronto, j á pode-se im aginar o peso que elas tiveram para história da nação se que

form ava.

O Jornal do Commercio (RJ) foi fundado em 1827 pelas m ãos de P ierre P lan ch er e se

destacou po r se um dos jo rn a is m ais im portantes do R io de Jan eiro , assim com o um dos m ais

prestigiados e relevantes do Im pério. M o lina (2015) aponta que o do Commercio (RJ), foi tão

relevante nacionalm ente quanto o The Times foi para E uropa. C om destaque a respeito de

inform ações com ercias, notícias com piladas a p a rtir de jo rn a is internacionais, e pouco tem po

depois com apontam entos a respeito da vida política, esse jo rn al acabou aos poucos

conseguindo m ais público. A ssim , ao passo que se consolidava no cenário nacional, acabava

tam bém po r in serir em suas narrativ as alguns discursos criados pelos órgãos oficiais do Estado.
683
A pesar do grande alcance das publicações do jo rn al, M o lina destaca que “ o Jornal do

Commercio se to rnou a publicação m ais im portante e influente da época e deixava de ser um a


folha com ercial para tornar-se o principal veículo de form ação de opinião pública” (2015, p.

242). Logo, pode-se entender que as publicações realizadas pelo jo rn al, em parte poderiam fazer

com que a sociedade com ungasse com o que fora exposto em suas páginas. A ssim , ju stifica -se

tam bém a escolha do periódico dada a sua relevância ao período e as abordagens po r ele feitas.

C om o propósito de aprofundar na análise que este trabalho pretende fazer, se faz

necessário apresentar a ju stifica tiv a do recorte tem poral, reforçar a razão pela escolha do

periódico, m as sobretudo expor o princípio m etodológico utilizado, ten d o em vista que as

escolhas im plicam diretam ente na construção deste. A escolha do espaço tem poral de 1840 a

1855 se deu em função de ser o p eríodo de m aior publicação do jo rn al, m as tam bém em que há

o m aio r núm ero de ocorrências que são de interesse do trabalho. Já a escolha pelo Jornal do

Commercio (RJ) se deu em função do seu alcance e im portância, sendo um dos m ais lidos e de
m aio r influência para sociedade im perial, com o aponta M o lina (2015).

O levantam ento da fonte ocorreu a p artir do ban co de dados da Biblioteca Nacional

Digital (B N D igital), em que foram encontradas as m aiores ocorrências a respeito da palavra


índio, para o periódico proposto. A escolha po r iniciar o levantam ento no ano de 1840, se dá

tam bém , em razão de abranger o início das publicações do Revista do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro (R IH G B ), possibilitando assim entender a sincronicidade dos discursos.


A o realizar a pesquisar com o termo chave “ índio” , foram encontradas um total de 296

ocorrências passíveis de análise. D entro das 296 m enções, foi possível classificá-las em nove

categorias, no entanto as m ais relevantes a este trabalho são as que enquadram as publicações

com o discursos que buscavam colocar os indígenas enquanto sujeitos m arginalizados, assim

com o suscetíveis a conversão m ediante catequização.

C abe destacar que, as categorias foram estabelecidas através do levantam ento e análise

das ocorrências nos periódicos. A ssim , foram criadas a partir de características encontradas que

perm itissem estabelecer u m a certa sim etria entre as narrativas, buscando então afinidades entre

os discursos. L ogo, ao p ensar os critérios de classificação, considerou-se aqueles m ais coerentes

e plausíveis a esta pesquisa, possibilitando então traçar as relações dos discursos da época.

S endo assim , a partir das leituras foi possível categorizar as ocorrências da palavra índio

a partir dos seguintes critérios: 1- localização geográfica, 2- em barcações, 3- exotificação em

exposições e circos, 4- sujeitos que poderiam ser catequizados, 5- sujeitos violentos, e 6-

personagens em poem as e folhetins. P ara além das seis classificações que foram estabelecidas,

cabe d estacar tam bém , que três outras categorias foram criadas, sendo elas: 1- o co rrên cia não

correspondente com a palavra buscada, 2- im possibilidade de leitura devido a digitalização, e


684
3- im possibilidade de classificação devido a abrangência tem ática. A s três últim as categorias

só foram criadas devido a necessidade de alocar um núm ero de ocorrências que não se

encaixaram nas 6 previam ente dispostas.

A R E P R E S E N T A Ç Ã O F E IT A A T IN T A : O ín d io m a r c a d o pelo tipo

C om o surgim ento do Instituto H istórico, e de sua R evista, o indígena passou a ser

divulgado enquanto m arginal, b árbaro e incivilizado, na m aioria dos estudos e publicações

feitas po r eles. O secretário geral do Instituto, o C ônego Januário da C unha B arbosa, em um

discurso na segunda edição da R IH G B (1840), chegou a afirm ar que para tira r os índios da

situação de barbárie social, seria necessário catequizá-los, civilizá-los ou dom esticá-los, perante

os padrões europeus. Foi com um assim , a construção e divulgação de um a narrativa de que os

nativos b rasileiros só poderiam ser aceitos na sociedade se abdicassem de seus aspectos

culturais, sociais e religiosos e passassem a com ungar dos princípios que a sociedade im perial

b rasileira congregava.

É im portante colocar que quaisquer construções sociais, a respeito do im agético de

qualquer sujeito, surgiria com a finalidade de viabilizar projetos que se buscavam construir.

N esse sentido, a representação do índio construída pelo IH G B , b u scav a viab ilizar o apagam ento

do índio “ real” , para dar vazão ao rom antizado e idealizado que se tentava colocar enquanto um

sím bolo nacional. O s jornais, acabaram assim contribuindo para esse processo que em grande

m edida, não serviu apenas para o apagam ento desses sujeitos da história, m as tam bém em

diversos espaços sociais, assim com o do seu próprio território.

D entre os m uitos assuntos que os jornais aqui analisados narraram , destacasse a

presença constante de debates, ou inform ações sobre os processos p ara civilizar e converter os

indígenas. Foram os periódicos, os responsáveis po r divulgarem em m uitos m om entos, um a

representação tip ificad a sobre esses povos. A respeito dessa tipificação, a edição de 1849,

núm ero 76 do Jornal do Commercio, evidencia que “ m ilhares de índios errantes estão pelas

m atas, m uitas delas próxim as a povoados, sem o m enor vislum bre de civilização, e entregues

ao m ais com pleto barbarism o e ociosidade [...]” (p. 1). A ssim , p erceb e-se que há no discurso

u m a redução dos indígenas a categoria de bárbaros e preguiçosos, po r não se inserirem a

sociedade local.

A pesar do Jornal do Commercio e outros periódicos da época apresentarem relações

tem áticas a respeito dos indígenas, deve-se p ontuar que m uitas das vezes essas não se deram de

685
fo rm a proporcional. P egando com o exem plo de com paração o Diário de Pernambuco305, foi

possível n o tar que as ocorrências publicitadas diziam respeito a u m a representação de um índio

violento, m arginal e em sua m aioria figurando em notícias crim inais. Já o jo rn a l com sede na

C orte, acabou po r apresentar um m aior núm ero de publicações para a categoria que diz respeito

a catequização dos indígenas.

N o Jornal do Commercio (RJ), há u m a grande quantidade de narrativas que dizem

respeito ao processo de civilização que deveria ser aplicado aos povos indígenas. P ercebe-se,

que ele, cum pria assim o papel de difusor das propostas p o stuladas pelo Instituto H istórico

B rasileiro, ten d o em vista que nele o assunto quente do m om ento dizia respeito a essa prática.

N o jo rn a l carioca, foram apresentadas as m ais v ariadas alternativas para se aplicar a civilização

aos povos nativos, sendo po r m eio de lutas arm adas, da catequização, de prisão e até m esm o de

m atrim ônio entre indígenas e europeus. A respeito do m atrim ônio entre os nativos e

estrangeiros, para aquele jo rn al, essa deveria ser tam bém um a prática aplicada com a finalidade

de facilitar o povoam ento de províncias “ esvaziadas” , com o foi apresentado em edição de

núm ero 203, de 1845.

A inda a respeito das narrativas m uito presentes para o Jornal do Commercio (RJ), sobre

a necessidade de civilizar os indígenas, m uitas opiniões foram divulgadas nas páginas do

periódico. T odavia, cham a a atenção u m a fala que consta em edição de 1848, núm ero 246, que

diz, “ quanto a civilização dos indígenas, eu entendo que a hum anidade exige que o governo não

poupe m eios para os catequizar e civilizar, m as não devem os te r m uitas esperanças nesse

sistem a” (p. 2). A ssim , pode-se enxergar que m esm o que, a catequização e outros processos

com intuito de civilizar os índios fossem defendidas, não havia a confiança de que esses sujeitos

se renderiam ao m eio social do Im pério, que fora construído a partir de posições europeias.

N o período analisado para esta pesquisa, identificou-se um total de 29 listas publicadas

nos m ais variadas edições e anos, em que os indígenas eram subordinados à condição de

crim inosos e prisioneiros. A ssim com o, foi possível tam bém encontrar diversas publicações em

que o índio aparecia na condição de violento, ladrão, e responsável po r atentados contra a ordem

social e ao E stado.

O p eriódico do Commercio (RJ), em um a publicação de 1845, dem onstra a violência

exercida sobre indígenas, e que po r co nsequência acabou po r p rovocar a revolta de um grupo

de aproxim adam ente 60 a 70 indígenas contra guardas da Corte. N o jo rn a l de núm ero 3, foi

divulgada u m a perseguição a um grupo de 7 índios, onde resultou a m orte de um , ferim ento de 305

305 O Diário de Pernambuco, surgiu em 1825 e foi um dos mais proeminentes periódicos do Nordeste. Sob o
mando de Miranda Falcão, o Diário se tornaria sucesso absoluto e se consolidaria como um dos jornais mais
longevos do Brasil, circulando até a contemporaneidade.
686
dois e prisão de 4 essa ocorrência, fez com que um grupo de nativos se m obilizassem para

perseguir os guardas envolvidos na ação. A pesar do confronto que resultou na m orte e nas

prisões, o jornal destaca o m otim dos índios, assim , p ercebe-se que o im portante não foi a

vio lên cia im posta, ou as prisões, m as sim, a im agem de selvagens que se construiu sobre ação

do grupo contra os oficiais.

P ara além de estarem presentes em diversas narrativas construídas pelos jornais da

época, a tem ática indígena tam bém se encontrava em voga para discursos e assuntos

apresentados em espaços políticos, tal com o em relatórios de províncias e discursos no

C ongresso. O Jornal do Commercio, para além de divulgar diversos anúncios, tam bém foi

responsável po r reproduzir em suas páginas alguns discursos proferidos nas assem bleias da

C âm ara e Senado, assim com o relatórios da P rovíncia do R io de Janeiro. A esses pontos, deve-

se destacar a recorrência em que os indígenas apareceram . E nquanto um espaço político, as

assem bleias se tornaram tam bém espaços de debates para assuntos im portantes a serem tratados

pelo Im pério. N esse sentido, destaco a fala de abertura da assem bleia provincial de A lagoas,

presente na edição 92 do ano de 1842, em que foi apresentado sobre a necessidade de um a

M issão com finalidade de evangelizar e civilizar os índios da Província.

A retórica da civilização e catequização é constante em publicações de am bos os jornais.

Sendo tem ática nas assem bleias, em discursos e em acalorados debates na C âm ara de

D eputados a exem plo do que consta no Jornal do Commercio (RJ), de 1845, edição 193. N e la

consta um debate a respeito da civilização dos índios em contraposição a im portação de m ão

de obra e equipam entos da E uropa para serem usados na indústria agrícola. N esse quesito,

durante o debate há o questionam ento de: “P o r que razão não se apresenta um p rojeto de

catequese e civilização dos índios?” (p.1), em continuidade é expressado o apoio para tal

m edida, com pode-se visu alizar em “ [...] estou pronto para p restar o m eu voto a to d as as

m edidas legislativas que nos prom etam o grande benefício de c iv ilizar nossos índios, tirá-los

das m atas e aplica-los na indústria agrícola” (p. 1). A ssim , p ercebe-se que para além do aspecto

de civilizar os indígenas ser um tem a quente ao m om ento e a discussão, h á tam bém o apoio de

u tilizar a m ão de obra desses, em oposição a estrangeira.

Já na década e 1850, o indígena continuaria a ser narrado enquanto m arginal e hostil,

m as surgiram narrativas em que a eles pairavam reivindicações de defesa e reconhecim ento. N a

publicação 46 daquele ano, houve a defesa de que se liberasse para que alguns índios

trabalhassem na condição de m édico em algum as das m issões, haja vista que “ cada índio que

conhece bem a m edicina herbolária, m erece esse reconhecim ento” (1850, p. 2). A pesar das

constantes tentativas de inferiorizarem os indígenas, suas culturas e práticas, é notório em nada

687
eles ficavam atrás daqueles entendidos com o brasileiros, um a vez que eles tam bém dom inação

p ráticas m edicinais, m as essas desenvolvidas a p artir de suas próprias vivências.

A inda em 1850, durante discurso no Senado que fora publicado pelo do Commercio, no

núm ero 160, os senadores H ollanda C avalcanti e Francisco Sá defendiam que aos índios fosse

concedido o reconhecim ento de serem os brasileiros legítim os. Os senhores apresentavam os

argum entos de que seriam os nativos brasileiros os responsáveis po r lançarem as bases

civilizacionais para que a C olônia e posteriorm ente o Im pério se desenvolvessem . N o entanto,

apesar da avultada argum entação apresentada, nada foi feito para que o reconhecim ento se

efetivasse, a isso, pode-se atribuir a sociedade da época, que acreditava na inferiorização dos

indígenas e no atraso que causaram para o desenvolvim ento im perial.

O utra publicação que aqui pode ser destacada com o destoante da enviesada pela

perspectiva da m arginalização e n ecessidade de civilização, foi a feita por M ello M orais em

1852. N as edições de núm eros 333 e 345, M orais apresentou um texto cujo título fora “ Os

índios do B rasil sem p ro teção ” , que ao contrário do que fora com um , ele colocava a necessidade

dos brasileiros, portugueses e africanos escravizados aprenderem com os indígenas nacionais a

viverem em com unidade e a serem civilizados. N esses núm eros, foi possível p erceber um a

postura disruptiva, pois ia na contram ão das pregações na necessidade dos índios se curvarem

a padrões civilizacionais europeus.

É indiscutível que os jo rn a is cum priram im portante fator de influência na sociedade

im perial. T am bém , torna-se evidente que eles foram responsáveis pela reprodução da narrativa

estigm atizada do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sobre os indígenas nacionais. O

índio do século XIX, foi subm etido a u m a construção representativa que acabou o relegando a

um espaço m ais a m argem da sociedade, do que o que ele j á vivia. P assíveis a conversão, a

serem civilizados, bárbaro, hostil, violento, foram algum as das narrativas engendradas aos

indígenas b rasileiros oitocentistas. A construção perversa da representação pelo IH G B e a

difusão feita po r sua R evista, pelo jo rn al que aqui se b uscou analisar, e tantos outros, conseguiu

criar para esses sujeitos características que para aquela sociedade deveriam pertencer aos

indígenas, m esm o que essas não fossem reais. Sendo assim , o Jornal do Commercio (RJ),

exerceu o papel de linha auxiliar da instituição científica m ais im p o rtan te do Im pério, um a vez

que divulgou e que consequentem ente fez com que a sociedade do período passasse a ler os

indígenas a p artir de um olhar de m arginalização e perigo social.

P o r fim , m ediante a análise das 296 ocorrências, no Jornal do Commercio (RJ), pode-

se aqui afirm ar que o índio nacional foi m ajoritariam ente narrado a partir desse periódico

enquanto crim inoso, violento, bárbaro e selvagem . A construção dessa narrativa com o j á foi

apresentada se deu com o fruto de um a visão estereotipada, assim com o carregada de


688
preconceito, um a vez que devido a sua organização social, as suas crenças e a sua língua não

podiam ser entendidas enquanto civilizados. Portanto, o IH G B foi responsável pela construção

de u m a representação indígena que seria am plam ente divulgada pelos jornais da época,

sobretudo pelo aqui analisado. A ssim , foi o Instituto H istórico, e o Jornal do Commercio os

responsáveis por criarem um im aginário a respeito dos povos originário que ainda no século

X X I é utilizado para representá-los, tal com o para legitim ar a constante v io lência em pregada

sobre seus corpos.

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690
O S E L O G IO S F Ú N E B R E S C O M O M E C A N IS M O S D E C O N S T R U Ç Ã O
D A M E M Ó R IA C O L E T IV A

V IC T O R A U G U S T O M E N D O N Ç A G U A S T I306

R e su m o : A seguinte proposta de com unicação é fruto de um recorte da pesquisa de m estrado

em andam ento que visa com preender com o a publicação de elogios fúnebres a personalidades

b rasileiras, durante o século X IX , procurava co n stru ir um a m em ória coletiva sobre tais

personagens. Sendo as odes póstum as textos com uns desde a G récia A ntiga e m uito utilizadas

pelo C atolicism o R om ano para enaltecer seus santos, h á registros de sua utilização desde o

tem p o colonial. C ontudo, após o advento da Im prensa, elas se tornaram m ais com uns e

passaram a fazer parte dos ritos fúnebres da elite do B rasil Im perial. A p artir do estudo de caso

dos necrológicos dedicados ao cônego Januário da C unha B arbosa (1780-1846) e ao padre

M arcelin o P in to R ibeiro D uarte (1789-1860), objetivam os analisar a linguagem u tilizada e a

intencionalidade dos autores para enaltecer a trajetó ria dos falecidos e notabilizar suas vidas na

h istória e na m em ória nacional.

P a la v ra s -C h a v e : elogios fúnebres; B rasil Im perial; história da Im prensa; padres políticos.

I n tr o d u ç ã o

O estudo sobre textos obituários vem ganhando grande espaço entre os pesquisadores

de jo rn alism o , em especial am ericanos e ingleses. N o B rasil, pesquisas sobre o gênero tam bém

estão surgindo, contudo, realizadas, em sua m aioria, por jo rn a lista s que se debruçam sobre a

arte dos escritos póstum os, focando em suas construções, influências e espaços nos periódicos.

A o pesquisar sobre os elogios fúnebres dedicados a sacerdotes políticos que

participaram ativam ente da vida pública e política brasileira, em especial durante os anos de

construção do E stado N acional independente, nosso objetivo é analisar a linguagem e a

intencionalidade da construção destes textos, em especial na Im prensa do B rasil no século X IX .

P ara tal, partim os do estudo de linguagem política proposta por John P o co co k (2003) e do

estudo da construção de m em ória, elaborada por Paul R icouer (2007).

306 Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, afiliado ao
Laboratório de História Poder e Linguagens, bolsista Capes.
691
P o cocok (2003, p. 28) aponta que os indivíduos circunscritos em um a determ inada

sociedade m anifestam -se por interm édio de locuções que, ao se ju n tarem a outras sentenças,

form am um cam po com um de significados, um contexto de expressões, um a tradição de term os,

ou seja, um a linguagem . Logo, a form ulação de textos de hom enagem póstum a é um a

construção de um discurso político, que busca “renarrar” a vida e as ações de pessoas ilustres,

levando-se em conta os contextos capazes de lhes atribuir significados diversos. Logo, o texto

necrológico constitui u m a enunciação, um ato de externalização de determ inada m ensagem

endereçada a um interlocutor ou grupo social especifico.

Já R icouer (2007) apresenta a m em ória com o um processo cognitivo que se caracteriza

de duas m aneiras: u m a passiva e outra ativa. A fo rm a passiva é fruto da lem brança associada a

sentim entos no presente. A form a ativa é configurada com o que em u m a anam nese, que busca

o passado. Logo, a m em ória é u m a representação que ocorre no presente sobre algo ou alguém

que está ausente, m as que esteve presente e m arcou factualm ente e concretam ente o p assad o

v iv enciado e experim entado. A ssim , fazer m em ória de um falecido é reconhecer, no presente,

suas ações e sua presença no passado e construir u m a lem brança ativa ao longo do tem po.

C om plem enta este argum ento a tese de M aurice H albw achs (2003, p. 29-30), na qual

afirm a que a construção da m em ória coletiva passa pela m em ória individual, pois “ [...] o

prim eiro testem unho a que podem os recorrer será sem pre o nosso” , e a m em ória coletiva se

caracteriza pela som a de vários testem unhos. E essa m em ória coletiva co nstruída é um

in strum ento e um objeto de poder. (LE G O FF, 2013, p. 445)

B rid g et F ow ler (2007, p. 3) analisa a construção dos obituários partindo da tríade capital

simbólico-habitus-campo, com posta po r P ierre B ourdieu (1989). A autora defende que a


p u blicação de um obituário é fruto das disputas de poder sim bólico, fundam entadas no habitus

da aristocracia que, detentoras do capital cultural, retratam seus pares falecidos nas páginas dos

jo rn a is com o exem plos de sucesso que m erecem o reconhecim ento social.

E essa análise vai ao encontro do conceito de H istória C ultural cunhado por R oger

C hartier (1990), que nos ajuda a p erceber o luto, os rituais fúnebres e os escritos sobre os ilustres

falecidos com o um a iconográfica de elem entos sim bólicos, que caracterizam a teatralização da

v id a social. F ocando na linguagem dos necrológicos, objeto desta pesquisa, é possível

com preender a experiência dos indivíduos históricos para com a m orte de seus pares,

perm itindo assim ilar a realidade em que estavam inseridos. A ssim sendo, o m em orial publicado

em honra a um falecido transm ite o que foi sentido po r alguém , ou seja, é o uso da linguagem

com o orientação e determ inação da experiência do luto e da construção da m em ória.

(A N K E R S M IT , 2012, p. 244)

692
D esta form a, os elogios fúnebres têm po r objetivo constituir um a m em ória coletiva em

que o hom enageado seja lem brado a partir do que o autor do texto ju lg a ser im portante. E a

intencionalidade presente nesses textos vai ao encontro do que apontou Le G o ff (2013, p. 437),

quando afirm ou que “ [...] a m em ória, a qual cresce a história, que po r sua vez a alim enta,

p rocura salvar o passado p ara servir ao presente e ao futuro” . P o r conta disso, em vários

m om entos o texto se refere às gerações futuras e à n ecessidade da m anutenção da m em ória do

celebrado, que agora se to rn a um exem plo para os vivos.

E, tudo isso se engloba no conceito de História Cultural de R o g er C hartier (1990).

C om preendendo a H istória C ultural com o a análise da construção de processos e sentidos -

plurais e contraditórios - que dão significado ao m undo, os escritos sobre os m ortos nos ajudam

a distinguir a representação e o representado nas form as de teatralização da vida social durante

o luto. (C H A R T IE R , 1990, p. 20-27) A ssim , as palavras em pregadas no texto transm item o que

foi sentido po r alguém , orientando e determ inando a experiência de quem escreve e a m em ória

de quem é relatado. (A N K E R S M IT , 2012, p. 244).

E m m e m ó ria dos nossos...

A m orte sem pre ocupou um lugar de destaque nas sociedades ocidentais, po r isso a sua

ocorrência sem pre foi perm eada de rituais. P o r m eio da escrita de epitáfios, legendas, elegias,

eulogias e panegíricos, a m em ória das figuras ilustres das m ais diversas sociedades eram

enaltecidas no m om ento de seu passam ento. Portanto, além do escopo religioso, a escrita sobre

a m orte tam bém p assa a servir com o um m eio de hom enagem e externalização do luto sentido

pelos vivos diante da perda de alguém im portante. C onsoante P ierre N o ra (1993, p. 13), os

escritos realizados em hom enagem a um ilustre falecido funcionavam com o um m ecanism o

para a criação de lugares de m em ória.

N o m undo m oderno, com o advento da Im prensa e d a circulação dos jo rn a is, os elogios

fúnebres, outrora restritos às cerim ônias fúnebres e à divulgação da vida dos santos católicos,

passam a circular em m eio a diversas outras m atérias. O s necrológicos, com o ficaram

conhecidos, surgiram na Inglaterra, em 1731, circulando prim eiram ente no The Gentleman’s

Magazine. U m século depois, todos os principais jo rn a is ingleses reservavam um espaço para


a publicação da b iografia de falecid os ilustres e desconhecidos. (FO W L E R , 2007)

Em um prim eiro m om ento, os tex to s dedicados aos falecidos só eram caracterizados

pelo term o obituário (obituary, em inglês), que é etim ologicam ente descendente do term o latino

obitus, que significa partida e/ou m orte. A p artir do século X IX , o term o obituário passou a se
693
co nfundir com o term o necrológico (necrology). Se o obituário prim itivo tin h a por objetivo

com unicar o falecim ento de um sujeito e traçar a sua biografia, a evolução para o necrológico

fez com que o texto evoluísse para um form ato rom ântico, que enaltecia os feitos em vida e

apontava para um futuro post-m ortem . (V IEIR A , 2014, p. 26-27)

A na C ristina A raújo (2004, p. 117), ao pesquisar sobre os ritos fúnebres dos personagens

ilustres do Im pério U ltram arino Português, afirm a que esses elogios faziam parte das

celebrações denom inadas m orte-espetáculo. P o r elas, os vivos confirm avam ser herdeiros da

m em ória de seus antepassados, elev ando-os a u m a espécie de panteão invisível. Sendo pessoas

com distinção social, para além da liturgia fúnebre com um à Igreja C atólica no período, o

espaço era reservado a u m a apologética individual para com o falecido, que lhe dava um ar de

eterno.

N o B rasil Im perial, recém independente e ainda em form ação, havia a n ecessidade da

construção de um a m em ória coletiva b asead a na afetividade e heroicidade, p e la qual as figuras

que, aos olhos dos vivos, contribuíram para a fundação do B rasil, fossem enaltecidas. D esta

m aneira, elogios fúnebres, pronunciados ou não durantes as celebrações fúnebres, eram

publicados em diversos jo rn ais. A quelas figuras p erten cen tes aos círculos de poder im perial

tam bém poderiam ganhar a honra de serem im ortalizadas nas páginas da R evista do Instituto

H istórico e G eográfico B rasileiro-IH G B .

A pesquisa realizada em jo rn a is e revistas de diversos institutos históricos brasileiros

aponta que os term os obituários e necrológicos não foram am plam ente utilizados no século

X IX , m as, sim, expressões com o elogios fúnebres, ode aos passados, homenagem póstuma, e

eles eram assim. Isso m ostra que os textos dedicados aos falecidos b rasileiros eram com postos
pela som a de elem entos religiosos e m odernos.

O s elem entos ligados à religião - típicos de um E stado confessional - criam um a

reflexão sobre a m orte, com o elem ento im utável, e buscam resp o n d er ao luto dos vivos com as

prom essas de im ortalidade e ressurreição, típicas do cristianism o. Os elem entos m odernos, m ais

laicos, se preocupam com a b iografia do m orto, criando um a narrativa oficialesca, enaltecendo

a figura hero ica a partir de um a história m onum ental. E, para a construção dessa biografia

enaltecedora, lançam m ão de preencher as lacunas históricas com elem entos insondáveis ao

escritor, com o sentim entos, sensações e projeções que só teriam lugar po r m eio de testem unhas

ou do próprio falecido.

N os casos dos elogios fúnebres escritos em m em ória de cônego Januário e de padre

M arcelino, tais questões ficam m uito evidentes. P o r terem som ado m uitos aliados ao longo de

suas trajetórias políticas e jo rnalísticas, seus desencarnes não passaram despercebidos. Januário,

que po r anos ocupou a função de porta-voz do governo e participou do núcleo fundador do


694
IH G B , recebeu odes póstum as durantes as suas celebrações fúnebres e a garantia da publicação

destas em jo rn a is e na revista do instituto. M arcelino, que na m aior parte da vida ocupou

posições de destaque entre os opositores do governo, não recebeu hom enagens no m esm o porte

de seu desafeto de longa data, m as duas odes em sua hom enagem foram publicadas por ex-

alunos de sua escola. À vista disso, os necrológicos escritos em hora dos dois sacerdotes nos

ajudam a perceber com o se deu a construção da m em ória coletiva sobre estes hom ens, com o

eles eram vistos e com preendidos pelos seus pares e a fo rm a com o seus ideais e escritos

influenciaram aquela geração.

A q u e le s a q u e m p re s ta m o s h o m e n a g e n s

Januário da C unha B arbosa nasceu no R io de Janeiro em 1780. Ó rfão na infância, foi

adotado po r um tio que lhe proveu educação. O rdenou-se padre em 1803, term inando seus

estudos em C oim bra, e nom eado pregador da C apela Im perial por D om João IV, em 1808.

(SISSO N , 1861, p. 111)

A pós o retorno da fam ília real a P ortugal, foi próxim o ao príncipe regente, contribuindo

no processo de independência com a publicação do jo rn al Revérbero Constitucional.

(B IT T E N C O U R T , 1938, p. 173) F eita a Independência, alinhou-se ao grupo de G onçalves

Ledo, que defendia um a m onarquia constitucional, fato que o levou a ser acusado de

republicanism o por parte do grupo liderado po r José B onifácio. T ais acusações culm inaram em

um período de exílio em H avre, na França. (B A R A T A , 2007, p. 362) A bsolvido de to d as as

acusações, retorna ao B rasil, onde é condecorado pelo Im perador com a Im perial O rdem do

C ruzeiro e designado cônego da C apela Im perial. É eleito D eputado Geral por M inas G erais na

leg islatura de 1826-1828. N ã o sendo reeleito, foi nom eado diretor da T ipografia N acional.

(B IT T E N C O U R T , 1938, p. 186-189).

F eita a renúncia de D om P edro I, aproxim a-se de E varisto da V eiga, alinhando-se aos

liberais m oderados. P ara defender seu grupo político, além de ser o editor do Correio Official,

tam bém escrevia para os jo rn a is Aurora Fluminense e o Auxiliador da Indústria Nacional, bem

com o editava seu próprio jo rn al satírico, o MutucaPicante. (B IT T E N C O U R T , 1938, p. 190)

Sendo m em bro fundador do Instituto H istórico G eográfico B rasileiro, segundo H aroldo

P aranhos (1937, p. 122), o C ônego Januário deixou cerca de quatrocentos serm ões, discursos,

m em órias, relatórios e escritos sobre assuntos m orais, políticos e religiosos. T am bém escreveu

o poem a épico Nitheróy (1823), a com édia satírica A Rusga da Praia Grande (1834), o poem a

695
Os Garimpeiros (1837), e constituiu a prim eira coletânea de poesias brasileiras na obra o
Parnaso Brasileiro (1831).
O outro sacerdote pesquisado é o padre M arcelino P in to D uarte R ibeiro. N ascid o em

1788, na então P rovíncia do E sp írito Santo, um a das m enores do país, foi obrigado pelo pai -

que tam bém era padre - a seguir a carreira eclesial. (C LA U D IO , 1912, p. 53-54) O rdenado por

v o lta de 1810 (SO U Z A , 2010, p.456) e dotado de grande erudição, logo iniciou u m a carreira

política, envolvendo-se em diversos conflitos e contentas em sua província natal. E m 1817,

esteve em conflito com Francisco A lves R ubim , então presidente de província, sendo necessário

refugiar-se na corte. D esse episódio surgiu o p o em a Viagem de uma derrota ao Rio de Janeiro,

considerada sua magna opus. (C A M PO S, B A SIL E , P A N D O L F I, 2018, p. 13)

E steve envolvido tam bém nos m otins que levaram à abdicação de D o m P edro I e, após

esse episódio, alinhou-se politicam ente ao grupo dos Liberais E xaltados. M ud an d o -se para o

R io de Janeiro, em definitivo, no ano de 1831, iniciou a publicação de um jo rn al próprio de

nom e O Exaltado (1831-1835). Foi um pasquim de im pressão irregular que, ao longo de suas

56 edições, b uscou defender o federalism o, servindo com o um a espécie de dicionário cívico.

(C A M PO S, B A SIL E , P A N D O L FI, 2018, p. 20-21)

A sua grande produção de escritos, com o poem as, peças teatrais e artigos de jo rn ais, o

fez ser conhecido em sua terra natal com o o “ V irgílio capixaba” . B uscou-se im o rtalizar sua

m em ória conferindo a ele o patronato da cadeira núm ero um da A cadem ia E sp írito -san ten se de

L etras, nom e de ruas e algum as republicações de suas obras. (C L A U D IO , 1924, p. 6)

M o rto s , m as n ã o e sq u ec id o s

O cônego Januário faleceu com 66 anos, em 22 de fevereiro de 1846, na sua residência

que se encontrava na R u a dos P escadores, n° 86. O s ritos fúnebres e o sepultam ento ocorreram

no dia 23 de fevereiro, na Igreja de São Francisco de Paula, no R io de Janeiro. (N O V O E

C O M P L E T O ÍN D IC E C R O N O L Ó G IC O D A H IS T Ó R IA D O B R A SIL , 1846, p. 163) Junto à

sua sepultura, dois com panheiros do IH G B discursaram em hom enagem ao falecido.

O prim eiro discurso foi proferido po r M anuel José de A raújo P orto-A legre (1806-1879),

prim eiro e único barão de Santo  ngelo. A ntes que o ataúde do religioso fosse descido à m orada

final, o orador relem brou aos presentes que, no ano de celebrações dos 25 anos de fundação do

Im pério, entre aqueles que propuseram a D om P edro I o títu lo de Im perador, ali estava um ,

inerte diante dos olhos de todos. A quele corpo pertenceu ao hom em que enfrentou as baionetas

696
para ajudar a liderar o B rasil em direção à liberdade, que estava sendo am eaçada pelos grilhões

opressores de Portugal. (JO R N A L D O C O M M E R C IO , 1846, p. 1,)

S endo um hom em que dividiu a sua v id a entre o altar de D eus e o altar da Pátria, M anuel

rem em orou que ele fora um operário idealista, que pelas penas ajudou a fundar e zelar pela

pátria. P o r isso, recebeu o reconhecim ento do m undo, ten d o seu nom e associado a diversas

academ ias científicas e literárias pelo m u n d o 307. A ssim , na trib u n a ou no púlpito, era possível

reconhecer sua erudição, com gestos finos e de grande sabedoria. Logo, no sepultam ento que

era feito, descia à m ansão dos m ortos um hom em na m adureza das ideias, coberto de louros e

agradecim entos.

P orém , o orador lem brou que Januário não era um a unanim idade e sofrera m uitas

críticas em vida, em especial dos seus adversários políticos. R ecordando que ele fora um

m odesto e virtuoso sacerdote, um firm e e convicto político e um jo rn a lista com prom etido com

a verdade, afirm ou aos presentes que:

“[...] homens sem religião, sem sistema e sem futuro abrasados por uma hidrofobia
insólita, mais de uma vez intentaram salpicar suas nobres cãs com o lodo do sarcasmo,
com o veneno da calúnia, e cobrirem sua fronte, onde resplandecia uma auréola de
glória, onde deveriam reverdecer louros, com o manto esquálido de sua miséria”
(JORNAL DO COMMERCIO, 1846, p. 1).

P o r fim , o orador ponderou que, quando o cônego foi preterido po r aqueles que tanto

ajudara no P arlam ento, quando fora vítim a das cabalas e dos jo g o s políticos, não se deu por

vencido, m as vingou-se erguendo o IH G B . E este instituto perdia seu m aior apoio, a coluna

m onum ental de sua fundação, o p iloto que dirigia as pesquisas, que apresentava os m apas e

revelava os tesouros históricos do B rasil. D ian te disso, todos ali presentes deviam chorar e

agradecer pelo ilustre b rasileiro com o qual tiveram a oportunidade de conviver e aprender.

F eito o ritual de sepultam ento, realizou-se o segundo discurso, p roferido pelo m édico

F rancisco de P au la M enezes (1811-1857). T am bém sendo um hom em das letras, o orador

b uscou sintetizar o percurso político e jo rn a lístic o do cônego, ju n to aos m ais altos elogios à sua

pessoa. D e fronte ao túm ulo do sacerdote, convidou os presentes a chorar um pranto de dor e

de agradecim ento em reconhecim ento “ [...] à m em ória daquele que fora tão digno de nossa

m em ória e adm iração” (JO R N A L D O C O M M E R C IO , 1846, p. 1).

A firm ava que aquela lápide seria um lugar de peregrinação, pois este é o destino que a

posteridade reserva ao descanso de celebridades; e o cônego fora um a celebridade de seu tem po,

sendo chorado e aclam ado por todo o povo. T am anha sua im portância que não era possível lhe

307 Januário possuía 26 títulos honrosos e pertencia a 18 academias científicas diferentes.


697
hom enagear com im parcialidade, pois ele era u m a das colunas do Im pério, que agora receb ia o

ingrato destino do descanso eterno.

F rancisco M enezes tam bém lem brou, m esm o que indiretam ente, das disputas políticas

e jo rn a lístic a s travadas pelo cônego. E n q u an to falava da frieza de um corpo inerte que desce ao

jazig o , afirm ou aos presentes: “ [...] é hoje que a lápide do sepulcro em botaria o acicalado

estilete da calúnia e o aguçado dente da inveja que o v erdadeiro ju íz o dos hom ens acerca da

im portância daquele que transpôs a b arreira da vida, será definitivam ente acabado” (JO R N A L

D O C O M M E R C IO , R io de Janeiro, 1846, p. 1).

Foi recordado com o um exím io parlam entar, que sem pre votava com sabedoria e

prudência, e um grande crítico literário com ím par dom ínio pelas letras. H om em que gastou a

sua vida pela em ancipação e pelo bem -estar do Im pério, sendo acusado injustam ente e

am argando anos no exílio. T am bém fora expressada suas incursões com o jo rn alista, poeta,

filósofo, m estre, literário e dram aturgo. C om entando a peça de teatro que ele escreveu - a que

objetiva nossa pesquisa - Francisco M enezes disse: “ [tam bém ] houve o teatro, em que seu gênio

expandiu-se sublim e” (JO R N A L D O C O M M E R C IO , 1846, p. 2).

P o r fim , escordou que de todos os espaços ocupados, o púlpito das ig rejas foi o lugar

em que m ais se sentia à vontade, conseguindo a adm iração de to d a a nobreza. E n cerro u o

discurso sustentando que a m aio r contribuição do cônego para com a nação foi a ereção do

IH G B , que doravante m anteria viva a m em ória de seu secretário perpétuo. (JO R N A L D O

C O M M E R C IO , 1846, p. 2)

Q uatorze anos após o passam ento do cônego Januário, deu-se o desenlace do padre

M arcelino, aos 8 de ju n h o de 1860, na F reguesia de São L ourenço de N iterói. O padre contava

com 72 anos com pletos e seu sepultam ento ocorreu no cem itério do M aruí. N ão tem os

inform ações sobre com o ocorreram os ritos fúnebres do sacerdote, nem sobre a realização de

discursos em sua sepultura, m as foi possível encontrar cartas publicadas em sua m em ória.

U m a ode anônim a foi reproduzida no Correio Mercantil (1860, p. 3) dois dias após o

seu falecim ento. P rovavelm ente escrita por um de seus ex-alunos, a figura de M arcelino é

exaltada com o um grande padre-m estre, u m a “ [...] árvore frondosa p lantada po r C risto para

espalhar pela sociedade os frutos da sabedoria e à tu a som bra abrigar tantos infelizes” .

L em brado com o am igo e vigário devotado, o texto afirm a que m uitos foram os patrícios que

passaram po r suas m ãos, durante os m ais de 40 anos dedicados ao m agistério, e que servia com

ardor e am or à Pátria.

O texto fúnebre prossegue lem brando o sacerdote em sua atuação política, feita por am or

e não po r d esejo de subir nos degraus da fam a e da riqueza. T am anha sua crença e sua fidelidade

aos seus ideais, que ele m ais sofreu do que colheu louros em sua vid a pública, sendo “pregado
698
no m adeiro da infâm ia pelos pregos da desonra” (C O R R E IO M E R C A N T IL , 1860, p. 3). P o r

fim , o excerto intitula M arcelino com o “vigário m odelo dos v igários” , um hom em que, m esm o

m orto, teria seu exem plo, sua virtude e sua b o ndade guardados nos corações com o saudosa

lem brança.

P assado pouco m ais de um m ês do falecim ento do padre-m estre, um tributo de gratidão

anônim o foi publicado no jo rn a l Dezenove de Dezembro (1860, p. 2). N este texto, m ais um a

vez as qualidades do rebento da P ro v ín cia do E sp írito Santo são enaltecidas. G anha destaque o

seu talen to com as letras e sua longa carreira com o padre-m estre. Foi bem lem brado que

M arcelin o foi proprietário de um colégio frequentado por m uitos filhos das elites e que

funcionou por m uitos anos.

N este necrológico, a atuação política do sacerdote é citada, em especial sua participação

no “partido de B o n ifácio ” e sua contribuição para a Independência do B rasil. T am bém é

recordada sua exaltada defesa das liberdades individuais e provinciais que, nas palavras do

autor, deveria ser desculpada, pois sua firm e defesa das ideias encontrou m otivação na defesa

do retorn o ao antigo regim e. E essa defesa levou-o a receb er diversas críticas e ataques dos seus

desafetos. M as ele conseguiu vencê-los, sendo eleito D eputado Geral em 1838. (D E Z E N O V E

D E D E Z E M B R O , 1860, p. 2-3)

P o r fim , o obituário faz um breve resgate de suas ocupações políticas, seus títulos -

com o o hábito da O rdem de C risto e da O rdem da R osa - , e de sua produção escrita, recordando

os seus diversos jo rn a is políticos e seus livros de gram ática. T erm in a-se com um convite a não

deixar que a m em ória do sacerdote fosse esquecida e que as lágrim as, derram adas por todos os

que o adm iraram , irrigasse a continuidade de suas obras. (D E Z E N O V E D E D E Z E M B R O ,

1860, p. 3)

C o n s id e ra ç õ e s fin ais

A s quatro odes póstum as escritas em m em ória dos sacerdotes dem ostram com o estes

hom ens inscreveram seus nom es na H istória do B rasil e quão grande era o reconhecim ento que

am bos possuíam ju n to a seus pares. O s textos, m unidos de certa apoteose, retratam a

contribuição de cada um dos sacerdotes com o cenário nacional. L em brados po r suas atuações

políticas, jo rn alísticas e literárias, os escritos não se privam de recordar, inclusive, que eles não

foram un anim idade diante dos seus posicionam entos.

Januário, em celebrações pom posas e ricas de sim bolism os, foi ovacionado pelos seus

pares do IH G B , sendo sua sepultura, até nossos dias, lugar de encontros em sua m em ória. Os
699
elogios fúnebres que a ele foram dedicados ocuparam -se m uito m ais em lem brá-lo com o

secretário perpétuo do que com o político. M arcelino, afastado do centro de poder e de sua

prática, recebeu hom enagens m ais singelas, sendo sepultado em um cem itério público e com a

sepultura perdida no tem p o 308. A s louvações publicadas em sua honra buscaram retratá-lo com o

um grande m estre e um padre devotado, fazendo poucas citações sobre sua trajetória política.

A ssim sendo, a escolha por dar m ais ênfase às atividades posteriores à vida pública dos

padres m ostra que a m em ória é m utável, sofre de flutuações e é construída sobre a projeção que

o autor realiza a p artir de outros eventos. P o r essa razão, a constituição da m em ória é resultado

da seleção e da organização do que é im portante para a consolidação do sentim ento de unidade

e identidade a partir da coerência e continuidade. (PO L L A K , 1992, p. 200-202)

Portando, a m em ória construída sobre am bos sacerdotes teve sucesso em seu objetivo.

E las conservaram inform ações pertinentes sobre seus objetos, garantindo que não fossem

totalm ente esquecidos. P o r eles, é possível p erceber quais im pressões dos padres foram ju lg ad as

aptas a serem eternizadas pelo texto. (LE G O FF, 2013, p. 387) E essas escolhas criaram um a

n arrativa sobre o tem po vivido, que podem os reco n stitu ir e analisar com os m étodos aqui

em pregados. (R IC O U E R , 2007, p. 174)

R e fe rê n c ia s B ib lio g rá fic a s

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308 Afonso Cláudio (1924, p. 18) afirma que a sepultura do padre Marcelino já não podia ser encontrada no
cemitério de Maruí.
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