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MEMORIAL DO FORTE YGATEMY – 1767/1777 – PARANHOS/MS 2022 –

245/255 ANOS DE FUNDAÇÃO E QUEDA

DIAS, Eliotério Fachin1


MATTOS, Willian Rocha de2
SILVA, Fábio Roberto Cordeiro da3
DIAS, Albertino Fachin4

INTRODUÇÃO

A formação dos limites de nossas fronteiras constitui um capítulo


importante de nossa história. Especialmente, se considerarmos a história local
para a constituição das fronteiras brasileiras com o país vizinho, ao sul de Mato
Grosso do Sul. Mais precisamente, sobre a história de fundação e queda do
“Forte Iguatemi” (1767-1777); localizado às margens do rio do mesmo nome,
onde se situa, na atualidade, a aldeia indígena Yvykurusu/Takauaraty, mais
conhecida como “Paraguaçu”, no município de Paranhos/MS.

1
Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Agronegócios
pela UFGD/Dourados-MS. Docente dos Cursos de Graduação em Direito e de Engenharia
Ambiental e Sanitária, e do Curso de Especialização em Direitos Difusos e Coletivos da
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS – Dourados/MS).
2
Mestre em Desenvolvimento Regional e Sistemas Produtivos pela Universidade Estadual de
Mato Grosso do Sul – UEMS (2018-2020). Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela
UEMS (2016-2017). Cursou como aluno especial a disciplina Tópicos Especiais em Direitos
Humanos, Cidadania e Fronteiras I: Povos indígenas, quilombolas e tradicionais e
trabalhadores na América Latina na Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD
(2019), no Curso de Mestrado em Fronteiras e Direitos Humanos. Graduado em Direito pelo
Centro Universitário da Grande Dourados (2012). Advogado.
3
Mestrando em Desenvolvimento Regional e Sistemas Produtivos pela Universidade Estadual
de Mato Grosso do Sul – UEMS. Graduado em Relações Internacionais pela Universidade
Federal da Grande Dourados (2009-2012) e, em Direito pelo Centro Universitário da Grande
Dourados (2002).
4
Historiador. Graduado em História pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS
– Amambai/MS. Autor do livro: História e formação do município de Amambai. Das
memórias, imagens e documentos. São Paulo: Editora Dialética, 2022.
2

Aldeia Paraguaçu e ruínas do antigo forte, à margem do Rio


Iguatemi, em Paranhos/MS.

JUSTIFICATIVA

“Quero trazer à memória o que pode me dar esperança.


As misericórdias do SENHOR são a causa de não sermos
consumidos; porque as suas misericórdias não têm fim”.
Lamentações 3:22
“Conhecer o nosso passado é preservar a memória,
sabendo como procederam aqueles que nos
antecederam, nas mais diferentes situações, que agimos
criticamente, espelhando-nos ou não em suas ações.
Refletir sobre a memória é valorizar o passado e seus
legados, é ser sujeito da construção da história, e isso é
um pressuposto básico para o exercício da cidadania”
(MARCHI, 2010).

“(...) não se deve esquecer, é, também e sobretudo, em


razão da necessidade de se honrar as vítimas da
violência histórica. É nesse sentido, que se pode falar de
memória ameaçada”.
(RICOUER, 2002)
“O conhecimento da identidade de um povo ou de um
grupo social está ligado à memória, como também à essa
identidade está ligada a história que é a narração dos
fatos”
(CABRAL, 2015, p. 6).
3

ANTECEDENTES

A Praça de N. S. dos Prazeres e S. Francisco de Paula do Iguatemi,


fundada em 1767, como parte de estratégia militar: “Diversão pelo Oeste”, por
ordem do capitão-general e governador da Capitania de São Paulo, D. Luís
Antônio de Souza Botelho Mourão, o Morgado de Matheus. “Praça essa que
viveu dez anos de conturbada e dificultosa existência, sem que tivesse
exercido, em forma de ação concreta, a função a que se destinara” (CINTRA,
OLIVEIRA, 2020, p. 4).

A Praça dos Prazeres, por sua localização privilegiada para fazer frente
aos domínios hispânicos, além de impedir a ocupação pelos espanhóis, deveria
fomentar a ocupação das áreas ainda não habitadas, formando uma barreira
ao avanço espanhol (BATAIOLI, 2020).

Desde o século XVII, os rios Jejuí, Igureí e Ygatimi eram palmilhados por
paulista, em constantes choques com os espanhóis. Em 1715, fora fundada a
povoação paraguaia de Curuguaty, que passara a manter comércio com os
paulistas (BELOTTO, 1976).
Em 1748, considerando-se a dificuldade do governador do Rio de
Janeiro em administrar Goiás e Cuiabá, o rei de Portugal, D. João V,
estabeleceu os governos para aquelas capitanias; destituindo, o governo da
capitania paulista, subordinando-a à capitania do Rio de Janeiro e, no campo
militar, passando à administração de Santos (MONT SERRATH, 2015, p. 5).

Em 1754, ao integrar a Terceira Partida da Comissão Demarcatória de


limites do Tratado de Madri de 1750, constituída pelas Coroas Portuguesa e
Espanhola, o engenheiro militar José Custódio de Sá e Faria, pelo lado
português, juntamente como Manuel Antonio de Florez, pelo lado espanhol;
registrou o curso do rio Iguatemi e seus afluentes, desde Assunção do
Paraguai, em seu diário, na Carta XII.
4

José Custodio de Sá e Faria. Carta XIII. Diário e Planos do Caminho que da cidade de Assumpção do Rio
Paraguay se dirige the o passo do Rio Yguatemy, oferecidas ao Ilmo. E Exmo. S. D. Luiz Antonio de
Souza do Cons. De S. Mag. Governador & Capam. General da Capitania de São Paulo. [1754]. Fonte
BUENO, B. 2009.
Disponível em <http://dx.doi.org/10.1590/1590/S0101-47142009000200008> Acesso em 15.fev 2022

Os conflitos com os espanhóis, no Sul, condicionaram a restauração da


Capitania de São Paulo, em 1765 e, nessa ocasião nomeado seu novo
governador, o Morgado de Matheus, com a obrigação de consolidar o território
brasileiro; obedecendo ao “novo padrão de colonização” e a fortificação e
defesa das áreas fronteiriças, nas palavras do Ministro dos Negócios do Reino
de Portugal, a D. Sebastião José de Carvalho e Melo, o Conde de Oeiras,
futuro Marquês de Pombal. Dentre suas atribuições, o governador deveria
fortalecer a defesa da região Sul e pelo Oeste do país, com a criação do
presídio do rio Iguatemi. (MONT SERRATH, 2015).

O PRESÍDIO DE N. S. DOS PRAZERES DO RIO IGUATEMI

As instruções da Coroa, de 26 de janeiro de 1765, repassadas pelo vice-


rei Conde da Cunha, em 4 de novembro de 1766, ao capitão-general e
governador de São Paulo, Morgado de Matheus. Inicialmente, sem caráter
bélico seguiram os primeiros homens para o Iguatemi. O Morgado de Matheus
justificava-se a Pombal, reiterando não haver dúvidas de jurisdição: “O
5

Guatemy he por donde se fes a divisão fronteira dos nossos Dominios com os
de Espanha...” (sic).5
De setembro de 1766 a janeiro de 1767 foram enviados
circulares aos Capitães-mor com vista à primeira expedição.
Exigia-se brevidade no preparo das canoas e dos mantimentos.
A arregimentação dos homens não foi fácil. Para ser o Capitão
Regente do Iguatemi foi escolhido João Martins Barros. (...)
Assim, o caráter de bandeira de exploração devia encobrir
perfeitamente a intenção de “ação militar” (BELOTTO, 1976, p.
37-38)
Nas últimas instruções a João Martins Barros, capitão-mor regente da
praça, se lhe reiterava que fundasse o Presidio, o “mais além que poder, mas
dentro dos Limites do marco dividente”, em sitio “cômodo e forte por natureza”.
(...) A expedição partiu a 28 de julho de 1767, composta de 360
homens e mais alguma gente de serviço, em 35 canoas.
Também levavam três dos curuguaitinos. Os relatos enviados
por Martins Barros dão-nos conta do que foi a jornada de 55
dias até o sitio escolhido junto ao rio Iguatemi.6
Essa expedição exigiu enormes sacrifícios e gastos, na ordem de trinta
mil cruzados, uma soma vultosa para a época, com parcos recursos da
Capitania.
O recrutamento forçado reuniu um contingente de 320 homens,
na maioria arrancados dos seus lares em Porto Feliz, Itu,
Sorocaba e Parnaíba. O capitão general ordenara ao capitão
mor regente que prendesse os pais, ou mulheres, sendo
casados, ou parentes mais chegados dos alistados, que
ficariam retidos na prisão até que a expedição tivesse chegado
à barra do Potunduba a prevenir-se de protestos e deserções.
Verdadeira atmosfera de terror se criou em São Paulo, “onde
os sacrifícios de vidas e dinheiro, para a criação e manutenção
do presidio, as violências e opressões autorizadas exercidas
pelo Capitão general e seus delegados foram inúmeras e
constituíram por mais de dez anos uma das maiores
calamidades com que o erro ou o capricho dos governos tem,
mais de uma vez, flagelado os povos (BELOTTO, 1976, p. 43).
Já, na Praça dos Prazeres, o capitão-mor João Martins Barros
escamoteando a verdade, manifestava-se que tinha a intenção de voltar atrás.
A escusa inicial era a de que, o encarregado de explorar o Ivaí, internara-se
pelo rio Iguatemi, sem saber realmente onde se encontrava; e, para

5
Oficio do Morgado de Mateus ao Conde da Cunha. São Paulo, 20 de julho de 1767. Arquivo
Histórico Ultramarino, Lisboa, “São Paulo”, doc. 2113 e “Documentos Interessantes”, v. 9, p.
4-12. In BELOTTO, 1976, p. 36.
6
As quatro primeiras cartas do Regente ao Governador acham-se em Documentos
Interessantes, v. 9. p. 20-31. In BELOTTO, 1976, p. 38.
6

subsistência de sua gente, teve que plantar roças, mas estava disposto a partir
assim que as colhesse.
No entanto, o Capitão-General ordenava-lhe que “já agora sem ordem
minha o não fala, nem saya desse sitio em que está” (sic). O que demonstra
que, o Morgado de Matheus apoiava inteiramente a atitude de seu lugar-
tenente e mostrava-se disposto a defender a posse da área; e, devia continuar
afirmando aos fronteiriços, que aquele território era português, lá
permanecendo, sem a “menor alteração ou infração que possa ofender a
imunidade da paz entre as duas Nações (...)”.7
O administrador Morphi parecia acreditar (ou fingia), pois
contava com a sua palavra de retirar-se com seus homens,
depois de colhido o milho. Assim, solicitava a D. Luís Antonio
que mandasse seu subordinado desocupar o Iguatemi. (...) O
Governador de São Paulo garantia a Morphi que João Martins
retirar-se-ia assim que obtivesse o necessário para sustentar a
sua gente. (...) Diante da notícia de que estava construindo
uma fortificação às margens do Iguatemi, Carlos Morphi
afirmava que aquela espera a produção do milho era
fingimento; sua atitude, um atentado à paz entre Espanha e
Portugal. Acusava o Capitão-General de São Paulo de ter se
introduzido clandestinamente em seus domínios para fins de
sua conhecida ambição.8
A verdade é que nada parecia ser circunstancial naquela empresa. Para
Morphi, ela fora premeditada pelo Governador de São Paulo e por Mauricio
Vilalba, o “traidor” de Curuguaty, para explorar (sic) los Disiertos de Uvay”.
Estava assim descoberto, o que as autoridades paulistas tinham procurado
escamotear. A exploração do “Ivahy”, como tal, era uma ficção. “Havia uma
Praça militar e um Povoado em embrião, se não em território espanhol, ao
menos em seu limiar”. A partir daí, cessadas as palavras, passou-se à ação.
Ainda que paulatinamente, os espanhóis foram fechando o cerco ao Iguatemi.
“Tal fato, somado às suas outras inúmeras dificuldades (que na realidade foram
as que verdadeiramente mais pesaram) acabou por determinar-lhe a queda,
em 1777” (BELOTTO, 1976, p. 41).

Em 1768, o Vice-Rei, Conde de Azambuja, recebera do governo de


Buenos Aires um protesto contra as provocações no Iguatemi:
7
As quatro primeiras cartas do Regente ao Governador acham-se em Documentos
Interessantes, v. 9. P. 20-31. In BELOTTO, 1976, p. 38-9.
8
Carta do Carlos Morphi a João Martins Barros. Assunção do Paraguai, 12 de abril de 1768
Documentos Interessantes, v. 9, p.44-5. In BELOTTO, 1976, p. 40.
7

“(...) en la Provincia del Paraguay se há internado um


destacamento de quinientos Hombres de armas, que em
19 de Enero de este año se allaba acampado em La
Rivera del Rio Guatemi com su comandante Don Juan
Martins Barros, enbiado por el Ilmo. E Exmo. Señor Luiz
Antonio Botelho Capitan General de San Pablo.”9
Enquanto isso, as expedições ao forte Iguatemi iam se sucedendo, sem
que tenham chegado a uma dezena. A partir de 1768, sucessivamente, nos
anos subsequentes, eram recrutadas canoas, instrumentos de navegação,
armamentos, munições, gêneros alimentícios e homens, pelo governo paulista,
que solicitava aos Capitães-Mor, as mais enérgicas medidas para a sua
obtenção (BELOTTO, 1976, p. 41-2).
Em princípios de 1769, o capitão-general de S. Paulo D. Luiz Antonio de
Sousa, Morgado de Matheus, ordenou que um grande comboio partisse de
Porto Feliz, Tiete e Paraná,
(...) em demando do novo e já sinistramente reputado presidio
de Iguatemy, conduzindo considerável reforço de colonos aos
primeiros recrutamentos de povoadores ali estabelecidos, sob
a administração do bravo capitão-mor regente, João Martins
Barros. Procedera-se para o ajuntamento da nova leva de
victimas destinadas às hectatombes da malaria, como era de
costume se fazer para obter soldados. Dentre a população
humilde dos disctrictos rurais da capitania devia sahir o grosso
dos recrutados, dentre a “capirada” de Itu, Sorocaba e Porto
Feliz, sobretudo Paranahyba, S. Amaro, e Araçariguama, Cotia
e Jundiahy. Poucos os de S. Paulo e Santos, ou das villas do
Norte, raros portugueses, iam no misero rebanho humano,
guiados pelas itaipavas, corredeiras e varações pelo sargento-
mor Theotonio José Juzarte (TAUNAY, 1919, p. 497).
Em seu ‘Diário da Navegação do Rio Tietê, Rio Grande Paraná e Rio
Igatemi (1769-1771), Juzarte relata uma das mais extraordinárias narrativas da
navegação fluvial no Brasil do Séc. XVIII (SOUZA, 2012), em que descreve “o
roteiro fluvial, a técnica de construção das embarcações, a forma de navegar e
as venturas e desventuras da monção que partiu de Araritaguaba, às margens
do Tietê, com destino à praça de Iguatemi”, cuja viagem essa que demorou
dois anos e dois meses, desde seu início até o regresso a São Paulo, em maio
de 1771 (CINTRA; OLIVEIRA, 2020, p. 5).

9
Carta do Conde Azambuja ao Morgado de Mateus. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1768.
Documentos Interessantes, v. 14, p. 223-6. In BELOTTO, 1976, p. 39.
8

Diário de Juzarte (1769). Acervo do Museu Paulista.


(CINTRA, OLIVEIRA, 2020, p. 12).

JUZARTE, Plano em Borrão, 1769. p. 55


9

JUZARTE, Plano em Borrão, 1769. p. 56

Assim se expressava o Visconde de Taunay (1919, p. 490), em sua obra


‘Martyrios de Iguatemi 1769-1777)’, apesar de não ser seu intento traçar as
peripécias da existência do presídio de Iguatemi, mas apenas revelar “uma
série de circumstancias curiosas, pitorescas e diremos até empolgantes (...) na
grande monção de infelizes povoadores, despachados para aquellas paragens
mortíferas do sul mattogrossense, pelo arbítrio do governo português”.
Em 13 de abril de 1769, é que o sargento-mor Theotonio José
Juzarte, conseguiu largar de Araritaguaba (hoje Porto Feliz), a
grande monção, com trinta e seis embarcações, em que se
“aboletavam quase oitocentas pessoas, das quaes
setecentos e tantos povoadores, homens, mulheres,
rapazes e crianças de todas as edades, trinta soldados de
linha, gente de mareação e equipagem”. Mandara, o
capitão-general, em nome d’el-rei, que se partisse, porém: “ e
porq. Já não havia mais remédio do q. assim mesmo embarcar,
porq. do contrario se seguião graves prejuízos, assim mesmo
embarcou tudo, huns carregando e outros, deitados em redes e
com efeito ficou tudo embarcado thé o meyo dia do dia doze de
abril”, explica o oficial no seu estylo, nem sempre límpido. (...)
A 13 de abril de 1769, da barranca do Tiete, benzia o vigário de
Porto Feliz, de estola e sobrepeliz, a expedição a largar para
Iguatemy. (...)
A’s oito e meio da manhã, largava a capitanea da monção, a
cuja popa tremulava a bandeira branca das quinas.
Descarregavam-se então centenas de espingardas em varias
salvas. Distanciada da capitania, de cincoenta braças, partir a
segunda canoa e, guardando sempre o mesmo intervalo, as
demais. Dentro em pouco estava a esquadrilha fluvial em pleno
10

sertão bruto, onde expressa Juzarte – então havia mais que a


Divina Providencia e onde a um grande perigo se seguiam logo
outros, inumeráveis”. (...)
A’s 2 horas da tarde de 6 (mayo) entrava a expedição nas
aguas do Paraná, “vencidas cento e trinta léguas no Tietê,
quarenta e seis em cachoeiras, saltos, corredeiras e itaipavas,
tantos perigos, tantos trabalhos, tanto sofrer de inseptos e
bichos, e decorridos vinte e cinco dias, desde a partida de
Araraytaguaba”. Pouco lisonjeira a descrição que do rio
immenso nos faz Theotonio José Juzarte. “He a similhança de
mar, o que faz que sua largura em partes, seja de quatro (sic)
léguas. Suas aguas são pestilentas e vermelhas, seu climen
mui doentio e sujeito a cezões dobres e malignas; hé mui triste
e estéril de pássaros, abundante de immundicias, bichos e
inseptos; não tem caxueiras, mas tem hú grande perigo a q.
chamão Jupiau... (...)
A 24, pela madrugada, largava de novo a expedição ainda com
mau tempo, e às oito da manha attingia a tão desejada foz do
Iguatemy, por onde embicaram as canoas, rio acima, em
demanda da praça e fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres
e S. Francisco de Paula, atalaia dos domínios lusos, na
fronteira indecisa e disputada do Paraguay. (...)
Trabalho infernal dava a subida do correntoso rio, a cada passo
atravancado por itaipavas e corrredeiras, ora obrigando os
zingueiros a hercúleo esforço, ora forçando ao descarrego das
canoas e à sua varação (TAUNAY, 1919, pp. 494- 511, sic).
A respeito da chegada da monção ao rio Iguatemi e à praça do mesmo
nome, Taunay assim se manifestava:
A 2 de junho tantos eram os doentes e tão exhaustos os
homens da mareação, “que já vinhão as embarcações em ter
quem as puxasse”. Felizmente chegou providencial reforço de
trinta e tantos remeiros em duas canoas que o regente João
Martins Barros mandara ao encontro da tão provada
expedição. (...)
A 11 partiam as pessoas ainda validas, rio acima, encontrando
um segundo soccorro enviado pelo comandante da praça.
Ficaram os doentes e convalescentes nas Roças.
Afinal a 12 chegava Juzarte ao presidio, havendo nesta
ocasião troca de salvas entre os recém-vindo e a guarnição do
fortim. A’s sete horas da noite dava por concluída a sua “tão
impertinente, tão perigosa e tão dilatada” viagem. Si muitos dos
desgraçados povoadores, recrutados para o sertão, haviam
deixado a vida nas solidões cruzadas pela expedição, alguns
nascimentos se tinham dado durante tão longo percurso. A’s
pobres mães, aos miseráveis recém-nascidos só pudera suprir
a providencia de Deus”, comenta, enérgica e concisamente, o
narrador da odysséa fluvial. Compunha-se o presidio
pombalino de “Nossa Senhora dos Prazeres e S. Francisco de
Paula de Iguatemy” de uma fortaleza, construída, à margem do
curso d’agua que lhe dera o nome, pelo capitão de infantaria da
guarnição do Rio de Janeiro João Alvares Ferreira. Era o
Iguatemy, naquele logar, um caudal profundo, mas pouco
11

largo, não atingindo vinte metros. Nada mais primitivo do que


tal fortificação quando Juzarte a conheceu, “Delineada
conforme a regra da Arte sua figura era de Etagono, tinha sete
lados: três tenalhas regulares e quatro irregulares, que não
davão defensa algu’a, porque se penetrava de dentro para fora
e de fora para dentro, quase por toda a parte e a razão disto
era não haver com que se pudesse continuar a sua construção
porque não havia ferramentas, não havia artífices nem os
homens podião trabalhar falta do diário sustento e vestuário.”
Miseráveis a egreja e o casario da povoação, cobertos de
cascas de palmito jerivá, aquella e de capim este. Situado na
confluência do Iguatemy e do Forquilha distava o presidio
quatorze legas da villa paraguya de Curuguaty, a única
povoação civilizada que próxima lhe ficava. (...)
Trezentos homens compunham a guarnição da praça “a qual
se achava núa, morta de fome e em hu logar onde não tinha
comunicação para parte alguma” (TAUNAY, 1919, p. 512-518).
Em outubro de 1769, “desatinados pela fome, mortos os últimos bois,
sahiram pelo campo em busca de caça numerosos povoadores. Já então
quase quarenta dos novos povoadores haviam falecido, desde a chegada do
comboio achando-se doentes, mais de sessenta” (sic).
Não começou 1770 sob melhores auspícios para os tão
abatidos yguatemienses, receosos dos guaycurus, só viviam de
armas na mão; por cumulo de males chegou-lhes a noticia de
que em Curuguaty se reuniam grandes forças para assaltar o
presidio. Continuavam a malaria, as privações, a dizimar os
míseros degredados; em fevereiro fugiam para os hespanhoes
soldados de linha; não havia nesta época sinão quarenta
pessoas validas na praça; todos os mais estavam impaludados
gravemente (...) Diariamente morriam duas, três pessoas, sinão
mais (TAUNAY, 1919, p. 512-518, sic).
Em outubro de 1770, o Morgado de Matheus expediu ao capitão-mor
regente, uma “Ordem para se fundar Villa na Povoação, e Praça dos Prazeres
de Guatemy”, pois sua formação e instalação de órgãos administrativos
representaria maiores possibilidades para sua continuidade e sobrevivência
(BELOTTO, 1976, p. 43).
A 10 de novembro de 1772, o governador da Capitania de São Paulo, D.
Luís Antonio Botelho Mourão, mandava que Juzarte fosse a Ararytaguaba,
escoltando artilharia, munições e mais petrechos destinados ao Iguatemy,
“onde seriam transportados numa esquadra de doze canos, conjuntamente
com setenta presos destinados a preencher os claros da guarnição da praça,
dizimada pela malária (TAUNAY, 1919, p. 495).
12

Além das ameaças representadas pelos índios, espanhóis e o


descontentamento de povoadores e soldados, as epidemias – facilitadas pela
falta de mantimentos e de assistência médicas, e as dissensões oficiais,
embaraçavam o desenvolvimento do Iguatemi. Embora sua defesa contasse
com relativa artilharia, suas condições de abastecimento eram precárias, não
havendo condições de atrair povoamento e provocar-lhe a consolidação, cujo
governo central começava a perceber (BELOTTO, 1976, p. 43-44).
Não há no passado paulista, “nome que recorde as mais sinistras
lembranças quanto esse do rio mattogrossense, afluente do Paraná em cujas
margens se erguer a colônia militar setecentista (...)”.
Tumulo de milhares de brasileiros, violentamente arrancados
aos seus lares pelo despotismo colonial, e encaminhados como
para matadouro certo, foi em “o Iguatemy” a causa dos terrores
dos humildes e dos desvalidos da capitania de S. Paulo,
durante lustros a fio, a causa do despovoamento intenso do
território paulista, a quem arrebatou milhares de almas pelo
êxodo e o refugio nos sertões brutos (TAUNAY, 1919, p. 489).
Quando alguém entrava para o serviço de sua Majestade, no Iguatemi,
despedia-se como para a morte, e consequentemente “avisavam-se pais,
suspirando os amigos, enquanto choravam as mulheres e exclamando os filhos
como desamparados (...) tamanho horror causava aos ânimos dos vassalos.
Nem todos os povoadores da praça e presidio do Iguatemi eram desprotegidos
ou baldos de recursos”.
Havia-os arranjados, quiça attrahidos pelas falazes promessas
das recompensas reais, o amor das aventuras, a esperança de
lucros a auferir numa terra nova e virgem. Contava-se, entre os
emigrados, quem levasse para o seu futuro estabelecimento
três, cinco e oito escravos, além de aggregados. Mas a
maioria, a imensa maioria, compunha-se de pobres diabos,
arrastando atrás de si mulher e recuas de crianças, para
obedecer às supostas ordens e intenções de sua majestade
fidelíssima – o abúlico d. José I, formalmente expressas a tal
respeito ao vice-rei do Brasil, por sua excelência o conde de
Oeiras. “Duzentas e mais léguas”, ia toda essa pobre gente
fazer pelas aguas de “rios caudalosos e perigosos, cheios de
perigos consideráveis: inceptos (sic), bixos, caças, e trabalhos
de toda espécie”, na frase rude e singela do comandante da
expedição. Cerca de oitocentas pessoas, “homens, mulheres,
rapazes, crianças de todas as edades” constituíam o comboio a
que acompanhavam “toda a casta de criações e animais para a
produção e extabelecimento futuro daquele cotiennte”. Trinta
praças eram os guardas e custódios dos colonos a quem
deviam proteger e defender, e sobretudo impedir que fugissem.
13

(...) As provisões que uma monção vinham a ser feijão, farinha


de mandioca e de milho, sal e toucinho, guardados em sacos
selindricos, cum hu pé de diâmetro e cinco ou seis de
comprido”, para se accommodarem melhor pelo seu
comprimento e pouco diâmetro (TAUNAY, 1919, 494-496, sic).
Nos anos iniciais da década de 1770, as tensões haviam se agravado
nas fronteiras luso-espanholas no Sul e Sudoeste do país. Eram os revides
espanhóis às reações portuguesas, e o Morgado de Matheus devia emprestar
o seu concurso mais eficientemente e levantar sua bandeira da “Diversão pelo
Oeste” (BELOTTO, 1976).

Coincidindo com a chegada de novo Regente, a partir de 1772, inicia-se


o período em que aquele estabelecimento foi posto em xeque e levado à
capitulação. Entre fins de 1772 e início de 1774, o Morgado de Matheus
persistia nos planos visando o fortalecimento e progresso do Iguatemi, nos
ofícios e relações enviados à Corte, perante o Marquês de Pombal, na
importância estratégica da praça do Iguatemi (BELOTTO, 1976, p. 44).

PRELUDIOS DA QUEDA

Em outubro de 1771, pelas ordens recebidas, o Morgado de Matheus


devia estabelecer com o Brigadeiro José Custódio de Sá e Faria, um plano de
ação contra os espanhóis no Sul, ao que intitulava “Projecto ou plano ajustado
por ordem de Sua Magestade entre o Governador e Capitão-General de São
Paulo, Dom Luis Antonio de Sousa e o Brigadeiro Joze Custodio de Sá e Faria,
de 1771 e 1772” (BELOTTO, 1976, p. 45-46).
Embora em 1771, o Secretário de Estado de Assuntos Ultramarinhos,
Martinho de Mello e Castro, houvesse comunicado a aprovação e o louvor de
sua Majestade, pelas ações do governador paulista, especialmente pela
construção da fortaleza e da povoação na margem do rio Iguatemi.

Em novembro de 1772, porém, mudou-se o discurso, ao estranhar o


‘inesperado’ silencio do capitão-general, o Morgado de Matheus, Governador
da Capitania de São Paulo, desde outubro do ano anterior.
14

Em relação ao presidio do Iguatemi diante do envio de tão grande


número de homens àquelas paragens, e da “grande imprudência de mandar
precipitadamente, e com grande despesa, forças consideráveis àquele sitio,
para o defender de um inimigo que não existe”, era necessário fazer-se uma
verificação “ocularmente” da importância do lugar; ordenando que “D. Luís
Antonio de Souza centrasse seus esforços em socorrer o sul do Brasil, com
tropas municiadas e bem preparadas para a sua defesa.10
Ao todo, entre expedições de soldados e povoadores, e
as de abastecimento, foram enviadas ao Presidio um total
de sete. O número de componentes era variável,
podendo-se estimar uma média de 200 pessoas. O
número máximo que terá atingido a população da
Fortaleza foi cerca de 1200 almas entre militares e
povoadores e suas famílias (BELOTTO, 1976, p. 48-49).
Enfatizava, ainda, que Sua Majestade, o Rei reprovara a “Diversão” do
sertão de Iguatemi como meio para defender o Viamão e o Rio Grande de São
Pedro. Ao mesmo tempo em que ordenava ao Governador, que “não
promovesse, nem dispusesse, nem intentasse outro serviço na capitania de
São Paulo a não ser: garantir o domínio e a posse do que já fora conquistado
no Iguatemi, e enviar ajudas para o sul da América”, destacando:
Em primeiro lugar: Que Sua Majestade estima muito mais
a perda de uma só légua de terreno na Parte Meridional
da América Portuguesa que cinquenta léguas de Sertão
descobertas no interior dela.
Em segundo lugar: Que ainda que os ditos
descobrimentos do Sertão fossem de um inestimável
valor a todo o tempo se podiam, e podem prosseguir; E
que a Parte Meridional da América Portuguesa uma vez
perdida nunca mais se poderá recuperar.
E terceiro e último lugar: Que, nesta certeza, não deve
Vossa Senhoria sem expressas ordens de Sua Majestade
divertir por agora os rendimentos e faculdades dessa
Capitania, nem empregar os seus habitantes em outro
algum serviço que não seja por uma parte o da
conservação do Iguatemi [...] E por outra parte no da
defesa, preservação e segurança de Viamão e Rio
Grande de São Pedro [...].11

10 Carta de Martinho de Mello e Castro ao governador e capitão general da capitania de São


Paulo, Dom Luís Antonio de Souza [...]. 20 de novembro de 1772. Arquivo Público do Estado
de São Paulo. Avisos-Cartas Régias (1765-1777) – C00420, liv. 170. In MONT SERRATH,
2015, p. 10
11 Carta de Martinho de Mello e Castro ao governador e capitão general da capitania de São

Paulo, Dom Luis Antonio de Souza [...]. 21 de abril de 1774. Arquivo Público do Estado de São
Paulo. Avisos-Carts Régias (1765-1777) – C00420, liv. 170. In MONT SERRATH, 2015, p. 10
15

Ao findar 1772, o governo central “solicitava” ao Morgado de Matheus


que renunciasse a seus propósitos no “sertão do Iguatemi” (BELOTTO, 1976).
Escrevendo, respectivamente, em setembro e em
novembro de 1773, ao Marques de Lavradio e a Martinho
de Mello e Castro, D. Luis Antonio respondia-lhes sem se
deixar vencer pela argumentação de seus superiores.
Não se esquivava de tornar a discutir com o Vice-Rei o
plano de defesa de Viamão, mas não renunciava à sua
tese de “diversão pelo Oeste”. (BELOTTO, 1976, p. 52).
Em outubro de 1773, partia de São Paulo para o Iguatemi, o Brigadeiro
José Custódio de Sá e Faria, em inspeção ao estabelecimento fronteiriço, que
elaborou o “Diário da viagem que fez (...) da Cidade de São Paulo à Praça de
Nossa Senhora dos Prazeres do rio Iguatemi (FARIA, 1774-1775)12.
Em seu relatório a Martinho de Mello e Castro e ao Vice-rei Lavradio, em
04 de fevereiro de 1775, muito mais árido do que o de Juzarte, Custódio de Sá
e Faria registrou o curso dos rios navegados, com numerosos mapas e,
afirmava “serem os óbitos causados pela malaria, até aquella data, 499
pessoas, mais de um terço, talvez dos povoadores até então enviados de S.
Paulo” (TAUNAY, 1919, p. 518), aconselhava a extinção da Praça dos
Prazeres.

Diário de Custódio de Sá e Faria (1774/1775). Disponível em:


http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mss1461595/mss1461595.pdf/
Acesso em 16.fev 2022.

12 CINTRA; OLIVEIRA, Op. Cit., 2020, p. 5


16

Mapa do Diário de Custódio (1774). Mapoteca do Itamaraty, Rio de Janeiro. (In CINTRA,
OLIVEIRA, 2020, p. 9).

Demonstração da Praça N.S. dos Prazeres do Rio Ygatemi. Brig. José Custódio de Sá e Faria,
1775. BN Acervo Digital. Disponível em:
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart543427/cart543427.jpg> Acesso
em 15.Fev.2022
17

Demonstração do terreno inmediato à Praça N.Sra.dos Prazeres do Rio Ygatemi. José Custódio de
Sá e Faria, 1775. BN Acervo Digital. Disponível em:
<http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart543426/cart543426.jpg>
Acesso em 15.fev.2022.

Demonstração do curso do Rio Ygatemy e terreno adjacente. Brig. José Custódio de Sá e Faria,
1775. BN Acervo Digital. Disponível em:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart1033417/cart1033417.jpg
Acesso em 15.fev.2022
18

A Fortaleza da N. Sª dos Prazeres – Paper cloud – Gerbert’s archive of writings http://www.paper-


cloud.net/archive/post/2010-fortaleza-prazeres-iguatemi/

Os desígnios que orientaram a expedição de Sá e Faria à Fortaleza do


Iguatemi, seguiam expressas ordens régias. “O rei e o marquês de Pombal,
seu primeiro ministro, reprovaram o projeto encabeçado pelo então governador
da Capitania de São Paulo, o Morgado de Matheus, por meio de sua ‘poderosa
diversão pelo sertão do Iguatemi” (BUENO, 2009, p. 128).
As ordens régias alertavam quanto à prioridade da porção
meridional do Brasil em relação ao oeste da Capitania de São
Paulo, posicionando-se contrariamente à politica territorial
empreendida por D. Luis Botelho de Souza Mourão: “Em
primeiro lugar, que sua Magestade estima muito mais a perda
de uma só légua de terreno na parte meridional da America
portuguesa, que cincoenta legas de serão descobertas no
interior dessa capitania” [...] A parte meridional da América
portuguesa uma vez perdida nunca mais se poderá
recuperar”.13
Em 1775, o Morgado de Matheus era substituído no Governo de S.
Paulo, por Martim Lopes Lobo de Saldanha, a quem sobremodo impressionou
o clamor geral contra o inútil dispêndio de vidas exigidos pelo Iguatemi. Assim,
o Forte do Iguatemi aproximava-se do seu fim, sem condições materiais,
minado pelas epidemias, falta de acomodações e com poucos e revoltados
homens, e contando com a má vontade do novo Governador e da Corte. Fora
abandonado à própria sorte (BELOTTO, 2009).

13
“Ordens que El-rei Nosso Senhor foi servido mandar à Capitania de S. Paulo em 22 de abril
d’este presente anno de 1774 para que o disposto n’ellas se ececute litetarmente, sem
modificação, interpretação, ou alteração que ella seja. Apud José Custodio de Sá e Faria
(1876). In BUENO, 2009, p. 128
19

MORTE E DESTRUIÇÃO DO IGUATEMI


Além de sofrer com a malária, baratas, roedores, insetos e outras
insalubridades, o Forte Iguatemi sofreu ataques dos índicos guaicurus (1774) e
das forças militares do governador paraguaio (1777), o que precipitou a sua
queda foi a dissidência interna na oposição ao Capitão-Mor José Gomes de
Gouveia, cujos oficiais e soldados o substituíram pelo Padre Caetano José
Soares Louzada.

A respeito da existência daquela lastimosa praça de Nossa Senhora dos


Prazeres, o Visconde de Taunay assim se manifestou:
(...) em torno de umas faxinas de terra, vivia um punhado de
miseráveis profundamente impaludados? De malária sucumbira
o dedicadíssimo João Martins Barros, o bravo ituano, capitão-
mor regente da colônia, morto no seu posto, escravo do
compromisso para o seu rei, tão mau amo. Tambem fallecera o
sargento-mor d. José de Macedo, o substituto de Juzarte e
oficial coberto de serviços”. (...)
À testa da guarnição, reduzido a um numero insignificante de
homens, restava o septuagenário João Alves Ferreira, o
constructor do forte. Desapparecera igualmente, o abnegado
cappelão da primeira leva, frei Angelo do Sacramento, ex-
abbade de S. Bento, em S. Paulo. E, com ele, mais quatro
monges benedictinos, partidos para ali fazerem uma fundação.
Ao retirar-se em fins de 1775, passara o brigadeiro Sá Faria o
governo do presidio, a uma junta composta do Vigario da Vara,
Caetano José Soares, do capitão Joaquim Meira de Siqueira e
tenente Jeronymo da Costa Tavares, comitê a que grandíloqua
e pomposamente appellidou dos “Senhores governadores”. (...)
Em fevereiro de 1776 era o capitão José Gomes de Gouvea o
regente de Nossa Senhora dos Prazeres. Descontente com o
seu governo, resolveu a gente da praça depol-o. A 11 aclamou
comandante o novo vigario da Vara e capellão da Egreja o
padre Antonio Ramos Barbas e Lousadas, que muito a
contragosto aceitou tão penosa sucessão. (TAUNAY, 1919,
525, sic).
Abandonado à própria sorte, desde que o governo paulista passara às
mãos do novo Capitão-General, Martins Lobo de Saldanha, que o declarava
como ‘Cemitério dos Paulistas’, o Iguatemi tinha os seus dias contados
(BELOTTO, 1976).
Ciente da situação caótica e da fraqueza das possibilidades de defesa
da fortaleza, surgia a 25 de outubro de 1777, o Governador do Paraguai, D.
Agostin de Pinedo, à frente de dois ou três mil soldados de tropa e grande
número de índios guaycurus a seu serviço, nas vizinhanças do presidio.
20

Os postos avançados do Passo, daquela guarnição de


espectos, bravamente tiroteavam com a vanguarda invasora,
emquanto tiveram munições, matando onze inimigos.
Exgottadas as provisões, ordenou o comandante, capitão José
Rodrigues da Silva, a retirada; foi então aprisionado.
A 26 rendia-se a guarda avançada colocada no Bom Jardim. A
27 apresentava-se o satrapa hespanhol em frente à praça.
(TAUNAY, 1919, 526, sic)
Finalmente, a 27 de outubro de 1777, Dom Agostin de Pinedo e sua
considerável força castelhana atacou a guarnição do Iguatemi e ofereceu a seu
comandante, Vigário Antônio Ramos Barbas Lousada, honrosa capitulação,
que concedia aos soldados, dirigentes e oficiais, assim como aos povoadores,
com suas famílias, para que pudessem sair. Diante dessa superioridade, com
uma centena de soldados pouco equipados, o Padre Louzada rendeu-se
assinando os termos da capitulação (BELOTTO, 1976).

A 1º de janeiro de 1778, chegava a São Paulo, um cabo de artilharia,


com 70 dias de viagem, trazendo ao Capitão-General, carta do tenente
Jeronymo da Costa Tavares, com a notícia dos fatos ocorridos no Iguatemi.
No dia imediato apressava-se Martins Lopes em oficiar ao vice-
rei, marquez de Lavradio, contando-lhe o facto e a este
proposito mais uma vez aproveitava a ocasião para aggredir
violentamente a administração de seu antecessor. (...) Ao voltar
de Iguatemy – episódio que lhe abona a cultura e patriotismo –
trouxera o vigário Louzada, apesar da proibição dos
hespanhoes, o pesado sino da sua misérrima egreja parochial.
A ele se prendia a seguinte tradição: pertencera a uma egreja
do Guayrá, e Antonio Raposo como tropheo, o trouxera em
1632 para S. Paulo, de onde o remettera ao presidio o
Morgado de Matheus, a título de feliz pressagio, ocasionado
pela sua presença. Acha-se hoje, a preciosa e symbolica
relíquia na egreja do Bom Jesus, em Itu. (TAUNAY, 1919, p.
521-531, sic).
Após sua destruição, ainda que pouco tempo depois, voltasse às mãos
portuguesas, já que o Tratado de Santo Ildefonso (1777), confirmasse a posse
lusa, cujas “noticias del cese de las hostilidades expedidas a la gobernación de
Paraguay no pudieron llegar a su destino antes de que los españoles
conquistasen el disputado puesto fronterizo de Guatemi”. A praça foi
abandonada e considerada inviável14 pelas Coroas Portuguesa e Espanhola.

14
Sá y Faria informó que aquel lugar era inhabitable, rodeado de pantanos, y con tamañas
incomodidades y mortandad para su población que era totalmente inútil para las Coronas
Portuguesa y Espanhola. Sá e Faria a Cevallos, Buenos Aires, 25/11/1777, AGI, Buenos Aires,
21

A praça permaneceu esquecida até 1857, até a visita do guia Joaquim


Francisco Lopes, em expedições encomendadas pelo Barão de Antonina:
5 de outubro 57. Saímos cedo procurando o lugar do forte
abandonado de N. S. dos Prazeres do Iguatemi, que demolido
pelos espanhóis em 1777, duas léguas acima do Bogas, vendo
um mato bom, bom barranco alto, saltamos em terra e o sr.
Lopes, e dois camaradas e o cabo foram procurar o local do
forte destruído (...). O local dos Prazeres é muito aprazível
avistando-se o curso do rio Iguatemi, bem longe, serpeando
por matos, especialmente pelo meridional onde até alcança a
vista tudo é mato (CAMPESTRINI, 2007).
Essa região, novamente passou a ter movimentação, com a Guerra do
Paraguai (1864-70), marcada pela passagem de tropas militares e, as
destinadas (termo singular com que se designavam as pessoas sentenciadas
por Solano López a degredo perpétuo e consequente execução por causa dos
supostos crimes de seus parentes já fuzilados), forçadas a caminhar por vários
meses, por todo o território paraguaio, desde Assunção até o rio Espadim
(afluente do rio Iguatemi). Resgatadas em 25 dezembro de 1869, por tropas
brasileiras.
Arrojada e penosa fora a tarefa do valente Moura: precisava
vencer as dificuldades da subida da serra de Maracaju para
atingir o chapadão, onde corre o Iguatemi. (...) logo atingido o
planalto, encontrara pobres mulheres semimortas de fome,
estacadas baldas de forças. Fugiam aos horrores de Espadim
e havia seis dias que tinham conseguido escapar à vigilância
dos algozes. (...) Mil e duzentas eram estas desventuradas!
Grande trabalho teve o Coronel Moura em lhes encaminhar a
caravana. Tal a precipitação em fugir aqueles horríveis lugares
ao transporem o Espadim, atropeladamente, numa ponte
improvisada, várias se afogaram nas águas correntosas deste
rio (TAUNAY, 2008. p. 90-92).

Madame Lasserre, juntamente com sua mãe Madame Duprat e, milhares


de destinadas (mulheres e crianças), tiveram suas casas saqueadas e
familiares mortos, em dezembro de 1868, em Assunção. Apenas algumas
centenas foram resgatadas e salvas pelas tropas brasileiras, no chapadão em
que correm o Escopil e o Espadim, afluentes do rio Iguatemi, em fins de
dezembro de 1869; enquanto, a grande maioria pereceu pelo trajeto fatídico
(MONTENEGRO, 1893, p. 90-91).

57, Doc. nº 160. RICO BODELÓN, O. (2014). “Qué fé de José Custodio?” Un ingeniero
dieciochesco en la frontera de los imperios ibero-americanos. El Futuro del Pasado, 5, pp. 331.
http://dx.doi.org/10.141516/fdp.2014.005.001.012.
22

CONCLUSÕES

A partir do Século XV, desde o descobrimento e ‘conquista’ da Bacia do


Prata, a região, ao longo dos rios Paraná, Iguatemi e outros, foram palco de
conflitos de limites entre Portugal e Espanha, até os Séculos XVII e XVIII; e, a
partir da independência dos seus respectivos países fronteiriços (Brasil,
Paraguai, Argentina, Uruguai, Bolívia, etc.), com milhares, senão milhões de
vidas humanas decorrentes de conflitos entre portugueses, espanhóis,
bandeirantes, índios e outros.

Mais precisamente, a partir do Séc. XVII, com a destruição de Guayrá


(1638), no Salto Grande ou Sete Quedas do rio Paraná, na atual Tríplice
Fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai); com a fundação e destruição do forte
Iguatemi (1767-1777), às margens do rio Iguatemi, fronteira com o Paraguai; e,
com a deflagração da Guerra do Paraguai (1864-1870), com milhares de
vítimas; e, no caso das destinadas do rio Espadim e Escopil (afluentes do
Iguatemi), etc. Assim, faz-se necessário conhecer a história e o passado para
honrar a memória de nossos antepassados.

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Iguatemi: defesa e povoamento nas fronteiras da América portuguesa (1765-
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