Você está na página 1de 31
ea es aC ET 4 are ce Sea ) DA ESCOLA MODERNA (~ Titulo do original Les Techniques Fi jinet de "Ecole Moderne Traducio de iva Letra Capa de Soares Rocha Copyright Librairie Armand Colin, 1964 Editorial Estampa, Lda, 1975 para a lingua portuguesa cavamos vimes ¢ faziamos cestos, tentamos o de: nho de insectos e de plantas, etc. Tudo isto confe ria. menos austeridade .A escola, mas ficava por assim dizer A margem da nossa verdadeira vida. Ora, era esta vida que importava © que nos era pre- ciso rir. a coloca.em cima da“Mesa as riquezas de que seus bolsos estio juncados; é Paul que tem dif culdade em afastar o seu gato que o segue até a escola; Louis, 0 pequeno estanhador, quer contar a sua viagem a Pégomas; sdo as aventuras da familia, nos campos ou na fabrica, toda esta vida nao reve- lada que agita a miudagem e que se traduz atra- vés de gestos, gritos, desenhos, angustia, riso e lagrimas. Vida multipla e de uma variedade infinita que tinhamos agora a possibilidade de descobrir, de fazer desabrochar, de explicitar e de explorar. Se as nossas técnicas ndo tivessem, pelo menos, tido a virtude de permitir esta repentina manifes- tagiio viva, esta alegria de viver, elas ndo deixariam no entanto de imprimir na pedagogia uma virtua- lidade, um vigor de cuja fecundidade os nossos éxi- tos crescentes falaram em seguida todos os dias. Técnicas de trabalho Desculpar-nos.éo este longo preambulo que fa- miliarizara o leitor com a génese e os principios essenciais de uma pedagogia que nao deriva, no ‘Os contornos desta pedagogia nao foram fix: dos de modo algum de uma vez para sempre; nao 40 a erigimos em método cujas regras e prescricées era preciso seguir; néo a descobrimos e promove- mos, como praticantes consequentes ¢ conscientes, que, tendo notado as insuficiéncias graves das pré- ticas tradicionais, procuraram, com a colaboragao de outrem, remedid-las. O caminho estava aberto. Tratava-se, antes de mais, de encetar de maneira diferente 6 trabalho escolar. Nao renovamos 0 erro dos agrénomos oficiais que, no principio do século, percorriam os campos para prégar aos camponeses as virtudes das novas concepcées agricolas. Eles falavam bem, com cer- teza, mas esqueciam-se de agir, de demonstrar o valor evidente das técnicas propostas. Daqui a re- cusa e 0 cepticismo das massas aldeds. Um.dia, po- rém, um iluminado, sem nada dizer, entrou na aldeia com um tractor ainda rudimentar com que pretendia substituir a vetha charrua puxada pelos ois. Um semilouco!, dizia-se. Como se fosse possivel passar sem o arado que auxiliara tantas geracées de camponeses! Todavia, de longe, os curiosos, sem dar a entender que concediam qualquer importancia a este facto, examinaram o sulco. Falow-se animada- mente da aventura da véspera e, na Primavera, viu- -se o trigo brotar da terra. Como era espigado, espesso, comegou-se a inquirir sobre as condigdes de compra e funcionamento do novo utensilio me- canico. Assim, um segundo original imitou o ilu- minado. De stibito, a questo pareceu menos teme- raria. Os velhos continuaram naturalmente a mani- festar hostilidade: Puxar os meus bois, isso agra- dava-me, mas fiar-me nesta maquina barulhenta que anda quando quer e que nunca aprenderei a con- duzir, isso nao! Os jovens, em compensagio, abri- ram os olhos. Ao verem experimentar a maquina e tracar alguns sulcos, ficaram convencidos: aquilo dava resultado! Qualquer teoria prévi upérflua, s6 contava 41 ‘a necessidade sentida por todos de melhorar as i condigdes de trabalho, para obterem um melhor | rendimento. As primeiras mdquinas, ainda imper- feitas, iam sendo aperfeicoadas com a participacao i eficaz dos préprios utentes. Apés 0 tractor, 0 jo- vem camponés, satisfeito, comprou a ceifadora, de- pois o reboque para o transporte de feno, e por fim, a semeadora e a segadora. Vendeu entao os bois que se tinham tornado imiteis e transformou © estabulo em garagem. E de repente, sem qualauet condigées de vida _encontravam-se_modificadas: 0 camponés ganhava melhor a sua vida com menos fadiga; endireitou a espinha e levantou cabeca. Em- poleirado na sua maquina, apresentou o ar triun- ante do homem que esta prestes a tornar-se senhor da natureza A sua volta e que descobre o lazer e arranja tempo livre_para reflectir no seu destino, para assobiar e para cantar. Com certeza, a maquina n&o traz automatica- mente ao camponés a liberdade com que sonha. Fornece-lhe, porém, as condigées de base para esta libertagao. Cabe-lhe a ele em seguida fazer, colec- tiva e pessoalmente, esforcos que lhe permitirao por a maquina e a técnica ao servico do cultivo, dos seus rendimentos, isto é, melhorar a sua con- dicao de camponés. Partimos, na nossa modesta escola de aldeia, de dados experimentais andlogos. Pusemos a fun: cionar utensflios e técnicas novas. A prova é deci- siva; se estes utensflios e estas técnicas permitirem melhorar o trabalho, derem maior rendimento e Seguranca, automaticamente, sem propaganda nem publicidade especial, penetrarao nas aulas e trans- formarao o seu clima e a sua vida; se falharem, © método tradicional perpetuar-se- E por permitirem efectivamente melhorar_tra- balho que os nossos ‘utensilios e as nossas técni- cas asseguram o seu éxito. Nenhuma teoria hostil, 42 jenhuma regulamentagao arbitrdria, nenhuma proi- bicdo conseguem impedir uma evolucdo irreversi vel. Pode-se com certeza entrava-la ¢ pervertéla, retardando assim o progresso. Ou pode-se fomen- td-la e aceleré-la, se a propria sociedade toma cons- ciéncia da necessidade de uma modernizac&o da sua produgao e da sua cultura. S6 ‘hd uma coisa que pode embaracar e com- prometer esta evolucao: a falta de preparagao dos trabalhadores para a utilizagao destes utensilios no quadro de uma técnica desejavel. ‘Nao basta, ci nada tirara das suas mdquinas se é bruscamente colocado perante elas sem os necessérios conheci- mentos. Foi habituado a cuidar e a conduzir os bois, ao ritmo dos bois. A maquina derrota-o e assusta-o isso compreende-se. Mas, desejoso de se sair bem, ira tomar licdes com aqueles que, ja com a devida experiéncia, souberam extrair beneficios do novo utensilio. O vendedor interessado colocar-se-A de resto & sua disposicdo para uma iniciagao pelo menos rudimentar. E, 0 que é melhor, serio orga- nizados estagios pelos servicos agricolas para a pré- tica regular das técnicas modernas. O progresso da agricultura serd assim acelerado. Temos, mais ainda que os camponeses, estas di- ficuldades de iniciacao, pois a nossa profissio é a mais delicada e a mais dificil de todas. Nao revol- vemos a terra silenciosa, mas a matéria viva com a qual néo nos podemos permitir enganos e malo- gros. O processo nao deixara por isso de ser idén- tico. Encarou-se com cepticismo os primeiros «ilumi- nados» que concederam a palavra As criancas, ma- nobraram a impressora e publicaram o seu jornal. Depois, os mais audaciosos ou aqueles que se en- contravam em situacdo mais favoravel eram «atrai- dos» por sua vez; se a novidade lhes parecia ren- tavel, introduziam-na nas suas aulas. Mas muitos 43 hesitavam, nao sem raz&o. Queriam estar certos de no se enganarem. Queriam ver com os seus pré- prios olhos, experimentar, tentar. Para os decidir era preciso, evidentemente, se se julgava a experiéncia interessante, enviar ao local, junto dos indecisos, um técnico itinerante que agia com o devido cuidado para que os novicos nao cometessem erros desencorajantes, que orga- nizava estdgios e cursos, numa palavra, que inspi- rava confianca. Estes passos nfo sao de todo faceis, pois pre- cisa-se de modificar a estrutura e a organizacao das aulas para que estas técnicas, reconhecidas como benéficas, possam ser generalizadas, para o pro- gresso constante da educacdo. Foi todavia o que procurdmos fazer. E precisamente para facilitar a marcha deste progresso que denomindmos a nossa -pedagogia de «Técnicas Freinet» e nao dé «Mé- » todo Freinets. O método € um conjunto definitivamente mon- ‘tado pelo seu iniciador, que se deve encarar tal como 6, tendo apenas o autor autoridade para mo- dificar os seus dados. O método Montessori é um protétipo. E ainda hoje o que era em 1930 ¢ eis orque esta ultrapassado. Jamais tivemos a pretenséo de criar, de im- plantar um método intocavel, bem pelo contrario. Oferecemos aos educadores com dificuldades nas suas aulas utensflios e técnicas constantemente ex- perimentados, susceptiveis de hes facilitar o tra- balho pedagégico. Dizemos-lhes: eis 0 que fazemos com estes instrumentos, consoante estas :écnicas eis 0 que conseguimos, cis o que ainda nao dé resultado, eis 0 que nos encanta. Talvez tirem me- lhor proveito e, nesse caso, sentir-nos-emos felizes por beneficiarmos, por nossa vez, da vossa expe- riéncia. As Técnicas Freinet n&o séo actualmente (em 1965) 0 que eram em 1940, pois novos instrumen- “4 tos e novas técnicas vieram enriquecer e, da mesma maneira, facilitar o nosso trabalho. Igualmente, nao serao em 1980 0 que sao hoje, se formos capazes de fomentar, juntos, os progres” sos técnicos indispensaveis. A Escola Moderna nao é nem uma capela nem um clube mais ou menos restrito, mas, na realidade, uma via que nos conduzira Aquilo que, todos jun. tos, construirmos. . Um espirito Freinet dir-nos-Jo, a pedagogia nao poderé redu- utilizacio' mais ou menos justificada ou inconsiderada dos utensilios, e as Técnicas Freinet nao teriam certamente a audiéncia nacional e inter- nacional de que beneficiam se nao fossem senao isso. Sim, ha_um_espirito das Técnicas Freinet, e consideramio-Io essencial. Mas este espirite devera ser criado como que automaticamente, com o em- prego dos nossos utensilios, se nao estivermos de- formados ao ponto de o empregar em sentido er- rado: isto nao poderd naturalmente suceder ao camponés, que ndo se encontra subjugado pela sua técnica. Ele nao iré por a ceifadora em movimento no trigo que acaba de romper do solo, nem langar © tractor no campo de trigo maduro... O emprego da méquina faz-se em conformidade com a expe- rigncia e com o bom senso. No que nos diz respeito, 0 que complica a ques: tao € 0 facto de os maleficios da escolastica, a0 difundirem-se entre os educadores, terem aniquilado essa intuicdo orientadora que ‘lhes evitaria os erros. Deste modo, é necessaria uma iniciagao pré- via para impedir ‘desvios lamentaveis no decurso de uma reeducagao dificil cuja responsabilidade impende por uns momentos sobre nés. 45 A F Uma coisa ¢ pelo menos certa: ao modifica: as técnicas de trabalho, modificamos_automatica- mente as condi¢ées da vida escolar e paracscolar; criamos um novo clima; mclhoramos as relagdes entre as criangas e o mcio, entre as criancas e os professores. E é com certeza o beneficio mais im- portante com que contribuimos para o progresso da educacao e da cultura. Os edticadores sentem-se, no entanto, inguietos, no momento de empreender uma transformacao que modifica 0 seu estado de espirito e a pratica es- colar. Ouviram dizer aos nossos detractores que preconizamos uma liberdade total que se apro- xima mais ou menos da anarquia e perguntam a si mesmos se devem ou ndo, ao seguir-nos, impor na sua aula a necessaria disciplina. Vamos tranquilizar os nossos colegas. Conhece- mos como eles a necessidade de uma atmosfera de ordem e de equilibrio e nao recomendamos nunca praticas que, incitando & desordem ¢ a anar- quia, poderiam comprometer a harmonia que deve reinar numa aula digna deste nome. Nao fomos nds que_divulgémos_as_palavras_suspeitas_que_recla- mam_uma_liberdade_incondicional_para_¢scrian cas. A_responsabilidade disso cabe a teéricos sem ii educadores de excepcao com condi- ges particularmente favordveis de trabalho e efectivos. Tivemos sempreescolas oficiais diffceis, com todas as limitagdes e as oposigées que a sua natureza de escolas. publicas comporta. Tivemos durante muito tempo contra nés os regulamentos e a Administrac&o, por vezes mesmo os pais, domi- nados pelo pavor dos exames. Foi neste complexo delicado que prudentemente inovdmos, no com base em principios mas com base na realidade das nossas condicées de trabalho. Somos, por conseguinte, partiddrios da disci- plina escolar e da autoridade do professor, sem os 46 quais ndo poderia haver nem instrugdo, nem edu- cacao. Mas a forma de autoridade e de disciplina que recomendamos, a forma como podemos chegar a elas, eis 0 que & preciso determinar. Digamos —enquanto nao apresentamos as ex- plicagées técnicas que se seguirdo— que a verda- deira disciplina nao se institui fora da escola, em conformidade com regras preestabelecidas, com a sua série de proibigdes e de sangoes. Ela é uma consequéncia natural de uma boa organizagao do trabalho cooperativo e do clima moral da aula. experiéncia mostrou-nos que, quando a aula esta bem estruturada, quando as criancas realizam to- das, individualmente ou em grupo, um trabalho interessante que se inscreve no quadro da vida es- colar, alcangamos a harmonia quase ideal. S6 ha desordem quando isso falta na organizacao do tra. balho, quando a crianca no se sente devidamente integrada numa actividade que corresponda aos seus desejos e As suas possibilidades. Um dos be- neficios mais importantes das nossas técnicas advém da resolucao definitiva do problema da disciplina escolar, com a criagéio de um meio eminentemente educativo e humano. Assinalaremos a sua evidéncia no decurso das paginas que se seguem. Concluirei esta introdugio demasiadamente ex- tensa com uma espécie de justificagao dos princi pios que nela estao incluidos; estes principios, com cfeito, nao permaneceram ‘simples pensamentos fundamentais, Transformaram-se em testemunhos favordveis 4 grande massa de educadores que se tornaram progressivamente militantes de uma pe- dagogia renovada. Foi para conferir um sentido harménico a esta pedagogia que me orientei, desde o princfpio, para 47 © trabalho cooperativo. que _de- correram desde os nossos humildes ensaios de Bar- -sur-Loup viram desabrochar, sem qualquer di- vida, um dos mais vivos empreendimentos educa- tivos do nosso século— nao tanto pelo ntimero das questdes tratadas em condigdes que constituiram sempre um desafio As mais elementares nogdes comerciais, mas sobretudo pela multiplicidade das actividades cooperativas que animamos: — grupos de, correspondéncia interescolar; —organizagio do trabalho pedagégico perma. nente; —criacio da escola Freinet, escola experimental do nosso movimento pedagégico; —cinco mil jornais escolares publicados perma- mente na Franca e no estrangeiro; —realizacao de Gerbe, agrupamento de criancas, e da primeira revista de Arte Infantil; —revistas pedagégicas onde prosseguem as dis- cuss6es cooperativas; —edicées diversas; —experimentagio e producdo de utensilios no- vos que serao introduzidos brevemente em todas as escolas. Elise Freinet descreveu a aventura desta auda- ciosa e humilde epopeia colectiva no seu livro Naissance d’une pédagogie populaire (*), que reco- mendamos.aos nossos leitores, pois ¢ 0 livro das boas vontades.e da accdo paciente, face & vida es- colar. () © presente livro nfo descreve em pormenor as nossas técnicas. Em principio, tem sobretudo como, objec- tivo responder as questdes gue se apresentam e as per guntas que nos fazem os educadores € os pais, inquictos com a deterioracao acelerada da funcdo educativa. Insis- timos muito na’ origem das nossas técnicas, para fazer compreender os seus fundamentos e a sua originalidade. 48 Big A PRATICA DAS TECNICAS FREINET Fisionomia de uma aula Freinet Qual é, realmente, a fisionomia de uma aula Freinet? Como se organizam nela a vida e o traba- Tho? Com que instrumentos e segundo que técnicas? As aulas tradicionais, centradas em regulamen- tos uniformes e numa pratica escolar ditada pelo meio escolar e pela tradicio, parecem-se todas, na disposigao dos bancos, na presenca da cadeira do professor, na conservacao dos cadernos, na pratica contetido das obrigacdes e das licdes, previstas antecipadamente pelos programas, pelas circulares e pelos manuais escolares que as complicam e agra- vam.({A parte do professor, e também a parte da crianga, sao ai reduzidas; isto nao quer dizer, no entanto, que apesar destes elementos limitativos da iniciativa, um bom professor ndo possa tornar uma aula interessante: ha dons pessoais que superam as dificuldades e reduzem na mesma propor¢ao os prejuizos causados por uma pedagogia pejorativa. No entanto, isso constitui uma excep¢ao’, A originalidade das minhas concepgées pedago- gicas em Bar-sur-Loup nao se fundamentava sim- plesmente no facto de atribuir & crianca um papel activo na classe, de a tornar o elemento activo na aquisicao das técnicas escolares. Outros educadores 49 tinham dito isto antes de mim e os novos métodos divulgados na Inglaterra e em Genebra haviam na verdade, antes de mim, afirmado esta necessidade da Escola Activa cujo valor fora demonstrado ma- gistralmente por Adolphe Ferrigre. Ao partir, s6, A procura de um método integrado na vida, conse: guira muito naturalmente descobrir a Escola Ac tiva. Nao uma Escola Activa mais ou menos mis- tica, onde o papel da crianca actuante tinha a apa- réncia de dogma e podia justificar todas as ideolo gias, incluindo as mais reacciondrias. Acima de tudo, porém, conseguira organizar uma escola viva, con- tinuagao natural da vida de familia, da aldeia, do meio. E esta vida que encontro em todas as nossas escolas modernas. As classes Freinet parecem-se todas nos seus fundamentos, no seu ritmo e no seu espirito. Mas, porque esto baseadas na vida da crianca no seu meio, sio necessariamente diversas, de acordo com estes meios e estas criancas; diferentes segundo as idades, as estagdes, os aspectos regionais, a origi- nalidade das culturas e dos trabalhos, ‘mas, ao mesmo tempo, com esta parte do individual ¢ do universal que’ deveria constituir actualmente um sinal da cultura e da civilizacio. Sao como belos jardins cujas plantas extraem, num solo rico, a mesma seiva, mas onde desabrocham segundo a sua natureza’'e a sua utilidade, os legumes tteis. as 4rvores generosas e as flores da poesia e da beleza, tao necessdrias por vezes como os alimentos fundamentais. Uma vez que nao tem esta base segura na Na- tureza e na vida, a escola tradicional instituiu, para cada caso, uma pedagogia diferente: ha uma pe- dagogia dos jardins-escolas, estudada como se fosse auténoma, de modo nenhum ligada as obrigacées escolares das classes seguintes ¢ estudada nas re- vistas especializadas e nos Congressos. HA uma pedagogia dos Cursos preparatérios, dos Cursos 50 elementares, ¢ uma dos Cursos médios. H4 a peda gogia dos infantarios, das classes de aperfeicoa- mento e de criancas atrasadas, e, cvidentemente, uma pedagogia da Escola Primaria e da educacio permanente. Conforme a necessidade, ha, para cada catego- ria pedagégica, professores com formaco especial, com utensilios adequados, sujeitos a estégios para educadores. A especializacao esté em voga. Consti- tui uma necessidade da ciéncia que, ao tornar-se t4o vasta como 0 espirito, mesmo o mais aberto, nao pode ver o conjunto ¢ deve resignar-se a uma visio de pormenor. Assim, nao temos ja, como antigamente, um médico mas um cardiologista, um especialista de doencas pulmonares, ou de doencas nervosas, de doengas do figado, do ‘estmago e dos rins. A prépria educacao tem também especialistas hierarquizados, para hierarquizar as fases da vida escolar e que véem o individuo sob uma perspectiva especial, tratando-o segundo as regras da sua espe- cialidade. Deste modo, quebrou-se o elo de continuidade das existéncias que tornava possivel que a crianga de ontem estivesse incluida na crianga de hoje, a qual se prolongaria na crianca de amanha.)Do ponto de vista fisiolégico, constitui um erro grave ¢ tam- bém_um erro de método considerar apenas fases da vida separadas umas das outras, encerradas num condicionamento arbitrario; Um método, se é bom, deve ser valido em todas as classes e em todos os lugares. Sé variarao certas prdticas ligadas aos comportamentos das criancas conforme os graus e as necessidades escolares. A ex- pressao livre, a motivacao do trabalho pelo jornal e pelo intercambio, a criacio ¢ a experimentacao, os planos de trabalho e os diplomas, o auxilio mu: tuo e a cooperacio sao validos tanto no jardim- -escola como no segundo grau, tanto com os atra- sados como com o curso geral. E como uma pratice 5) cultural que deu as suas provas em todos os climas € que nao pode deixar de ser adaptada 2o meio, & natureza do solo, ao tempo e também as colheitas que se preparam e que se esperam. £ este fundo de valores comuns, valorizado por uma técnica geral, que iremos pér em evidéncia. Tornaremos a voltar, depois destas considera. gdes de ordem geral, as adaptagées que dele sao feitas, dando exemplos de trabalho realizado_nos jardins-escolas e nos outros graus de ensino. Mos- traremos os jardineiros a laborar neste fundo comum, para fazerem vicejar as plantas ¢ desabro- char as flores, para fazerem amadurecer os frutos saborosos que terao conservado as caracteristicas de solo onde cresceram, a sua variedade @ a per- feigdo. 'Nio formamos um homem pré-fabricado, mas | homens vivos e dinamicos. Nao se deve separar a escola da vida Com muita frequéncia, no decurso das minhas actividades pedagégicas, a escola que conheci na infancia impée-se & minha lembranga. Percorriamos as ruas e os caminhos, embriaga- dos pelo ar livre, nutridos por um labor que tinha para nds um sentido profundo, ligados & nossa vida presente e futura, com jogos naturais e 05 cantos de aves. As preocupagées? S6 raramente nos acom- panhavam. A crianca em liberdade no meio dos seus camaradas jamais se encontra preocuipada, salvo se esté doente ou se problemas insuperaveis a domi- nam. A vida chama-a a si e impele-a para a frente com um optimismo confiante e prometedor. Aproximavamo-nos da escola. As ideias nio nos faltavam certamente, e ideias bem originais; as falas surgiam rapidamente, com subtileza e humor; as iniciativas abundavam, boas ou més. E depois, 52 bruscamente, ouvia-se a sineta; produzia-se imedia- tamente como que um vazio no nosso ser. A vida detinha-se ali, a escola comegava: um mundo novo, totalmente diferente daquele em que viviamos, com outras regras, outras obrigacées, outros interesses, ou, o que é mais grave, com uma auséncia por vezes dramatica de interesse. Contavamos pela ul- tima vez os berlindes nos’ bolsos, escondiamos uma bela amonite descoberta no caminho e que iriamos buscar depois de sairmos; era-nos preciso afastar © céo que nos seguira e que se mostrava surpreen- dido por ver que nos torndéramos seres anénimos, sem alma, que desapareciam naquele lugar reti- rado do mundo no qual a vida nao contava. A porta fechava-se. Antigamente, rezava-se. Agora canta-se, 0 que é menos rigoroso mas nao impede que um mundo se tenha encerrado, e que se tenha imposto um meio que nao nos é familiar, que nao se preocupa em nos ser familiar, porque pretende dar-nos «riquezas» em que nunca pensdmos e que nao poderiamos encontrar noutro lado: a instrucéo e a_ciéncia. Em certas aulas, atenuou-se talvez essa sepa- ragdo entre a vida'e a escola, por meio de um estimulo que constitui efectivamente um progresso, Mas que € sempre excepcional; nao se inscreve no juadro da classe, A bem de; OS seus direitos, ao ii écni iS as ligdes e as obrigacGes, acompanhadas dos manuais escolares, como principais utensilios. Ora, 0 defeito principal da li¢do é ser dada pelo professor que sabe, ou pretende saber, a alunos que se supée que nada sabem. Nao entra na ca- beca de ninguém a ideia de que a crianga, com as suas préprias experiéncias ¢ os seus conhecimentos diversos e difusos, tem também alguma coisa para ensinar ao professor. Verifica-se aqui um erro pe- dagégico que alguns poderao disimular com uma engenhosidade peculiar, mas que nao deixa de im 53 primir poderosamente a sua marca em todos os sistemas escolares. -Actescentaremas, de resto, que ninguém —pro- fes: = i i rante; todo o ser humano quer conhecer ¢ progre- dir, mas através de vias mais eficazes e que lhe sdo_prdprias. © manual escolar tem outro defeito suplemen- tar: determina rigorosamente, e para todas as re- gides, o que as criancas devem aprender ou fazer. Contém a ciéncia fria — mesmo que se tente aque- céla artificialmente através de processos que sé enganarao os educadores e mais ninguém—, impes. soal, anénima. Dirige-se ndo ao homem crianca, me) ao_aluno, que é ja como que um ser déscarnado, qug_ndo reage como crianga, mas como aluno. Qualquer que seja o interesse dos textos apre- sentados ou dos exercicios propostos, nio deixa de ser verdade que sé acidentalmente esto relacio- nados com o ser intimo, opondo deste modo um obs- taculo & vida cujas necessidades educativas afirma- mog.)Devemos dizer, por fim, para evitar todos os mal-entendidos, que’ a nossa’ condena¢ao nao visa os livros, cujas virtudes jamais seremos capazes de enaltecer stificientemente, mas os livros que se usam como «Manuais Escolares» para o estudo e o trabalho na escola, «stimulas» sem horizonte, espe- cialmente escritas tendo em conta os programas e os exames. Nao dizemos, no entanto, que o ma- nual escolar, encarado em'si mesmo, seja forcosa- mente condenavel e mal feito. Ha actualmente ma- nuais bem apresentados, de leitura agradavel e cujo contetido é apresentado sob uma forma por vezes atraente. Porém, criticamos 0 uso que se faz dele, a obrigacao de’ propor ao aluno, a cada aluno, apenas esta matéria tinica contida nas mesmas pA ginas, dada da mesma forma, enquanto as capaci- dades pessoais, a inteligéncia, a compreenso das criangas sdo muito diversas e’ matizadas. 54 Consideremos estes manuais. Em lugar de equi- par os alunos com trinta livros semelhantes para cada disciplina, coloquemos estes livros — um exem. plar de cada — e outros ainda, na nossa Biblioteca de Trabalho, de maneira a termos uma mais vasta documentacéo apresentada com pontos de vista diferente e modifiquemos a técnica de utilizagao dos livros. Isto sera mais racional e mais Provei- toso. Associemos 0 manual a toda a documentacao que podemos pér a disposicéo da crianca e o ma- nual desempenhara um papel humano e pedagégico. A entrada na aula E a vida que vamos encontrar e este encontro constituira 0 facto decisivo da nossa pedagogia Os primeiros contactos nao serio formalistas nem receosos, mas cheios de uma camaradagem espontnea. O professor esté ali, a_crianga esquecer-se-A 4talvez_de_o cumprimentar. Tem algo melhor para Ihe oferecer. Traz na pasta um texto redigido na véspera, um poema ou um desenho, ow traz talvez religiosamente numa caixa entreaberta uma grande ninhada de lagartas processionarias cuja marcha observou na floresta. Talvez tenha o bolso cheio de fésseis ou a fervilhar de besouros. Tem além disso, com muita frequéncia, i su tar, novid Zo podem esperar, poi: constiem a—vida. g Entra-se na aula sem qualquer destes prepara- tivos para-militares de formar fileiras para uma marcha controlada pelo apito; tem-se pressa em comecar 0 trabalho, pois o dia promete muito. Ea vida que entra na aula com as criangas, para ai se tornar mais rica, para se expandir. Teremos talvez, se as _circunstancias o permiti- rem e se 0 talento do professor o providenciar, uma 55, Yo breve conversa de intengao moral que visa uma espécie de tomada de consciéncia individual e social. Mas a verdadeira moral nao sera essa. E 0 pro- prio processo do trabalho em conjunto e da nossa vida que contém em si o ensino da moral, intuitive e explicit Dez minutos depois, a aula comega a funcionar, colectivamente: os responsdveis verificam que todos os alunos dispdem dos utensilios indispensdveis e que tudo esté no devido lugar para o trabalho. Coloca- mos diante de cada aluno uma folha 21 x 27, desti- nada ao desenho livre, que cada um executa con- forme o seu ritmo, enquanto dois ou trés alunos, designados cada um por sua vez, vém ler aos cama- radas um texto cuidadosamente preparado na vés- pera, 0 que constitui para eles um excelente exer- cfcio de leitura motivada e um momento de desen- volvimento cultural para toda a aula silenciosa. Fizemos em comum para este primeiro trabalho, um certo ntimero de preparativos. Mas como pode acontecer que, apesar do cuidado com que o aluno 1é, os camaradas nao estejam suficientemente inte- ressados para se deixarem ficar iméveis; como nao queremos obrigé-los, pela forca da autoridade, a cruzar os bragos, damos-lhes'a liberdade de es- colher uma actividade silenciosa —desenho, pro- cura de documentos, redacgio de um texto de actualidade — que néo os impede de escutar ¢ de prestar atencdo logo que 0 texto Thes interesse. Verificamos com efeito que a crianca, como o adulto, pode muito bem desenhar e ouvir ao mesmo tempo. Escutar distraidamente, poderd dizer-se, mas pelo menos sob uma forma subconsciente cuja im- portancia os psicanalistas revelaram. Além disso, o desenho matinal constitui um excelente exercicio, pois é libertacdo {intima e convite a expressio gré- fica, segundo normas absolutamente pessoais. ‘Terminada a leitura, examinamos todos em con- 50 junto os desenhos feitos e escolhemos, juntos, os dois melhores, que serdo colocados no Livro da Vida da aula de que vamos falar, gravados talvez sobre lindleo para tiragem na impressora, ou sobre stencil para tiragem no limégrafo. E preciso igualmente considerar esta leitura ma- tinal sob um Angulo especial. Nao se trata de por a crianca diante dos seus camaradas para provar que sabe ler ou que nao sabe ler e, neste ultimo caso, afligila com uma ma nota — pratica essencialmente escolastica. A crianga deve, pelo contrario, ser bem sucedida. Cabe-nos ajudé-la: —aconselhando-a na véspera, na escolha de um texto que esteja de acordo com a sua capa- cidade, utilizando para isso os numerosos ma. nuais escolares de leitura que temos na nossa biblioteca de trabalho (?), os quais so tteis neste caso; —ajudando-a ou fazendo que um camarada mais sabedor a ajude a compreender o texto es- colhido; —mantendo-nos a seu lado durante a leitura, para a apoiar discretamente, murmurando-lhe as palavras dificeis, velando para que os seus camaradas nao facam ruido se a imperfeicio técnica nao os encorajar a ouvir. Se a crianca (_Existe em todas as aulas ou em todas as escolas uma Biblioteca de leitura, constituida, nomeadanente, por romances, Albuns e livros’de hist6rias’ para criangas. Acon- selhamos’ aos nossos leitores que organizem, além’ desta, na sua classe, uma Biblioteca de trabalho que contenha todos os livros que julguem capazes de ajudar os alunos no seu trabalho: manuais escolares, livros documentais de diversas colecgdes ¢, sobretudo, a’ nossa coleccio Biblio- teca de Trabalho que, com os seus suplemenios, conta actualmente mais de setecentos e cinquenta brochuras ilus: tradas, do maior interesse. 57 tem demasiadas dificuldades, pegaremos sim- plesmente no livro para continuar ow termi- nar a leitura, a fim de que nao se verifique um total sentimento de malogro... Far-se-4 me- lhor na vez seguinte. Este desejo de éxito encontré-lo-emos, de resto, como uma tela de fundo ao longo destas paginas, no que se refere a pratica de todas as nossas téc- nicas. E exactamente 0 contrario de todas as téc- nicas tradicionais, consoante as quais a crianca, em caso de erro, deve ser castigada, sofrendo por vezes as piores humilhacdes, s6 sendo dignos de ter éxito 0s alunos especialmente dotados, que adquirem com isso, de resto, beneficios e vaidade. © professor parece entdo ter apenas como prin- cipal papel constatar os malogros e as infraccées, reprimindo a crianca para que se corrija e melhore. Na i rt E isto que demonstra a nossa teoria do ensaio expe- rimental, que esta na base da nossa pedagogia (1): © acto bem sucedido, como acontece com a Agua gue encontra por fim'uma fenda libertadora, deixa uma impressdo que conduz automaticamente & re- petigao do acto; 0 malogro constitui, pelo contr- rio, uma barreira psiquica que, como os arames farpados que circundam uma pastagem, desencoraja antecipadamente todas as iniciativas. Nao se deve permitir que os alunos conhecam o malogro; deve procurar-se que sejam bem sucedidos, ajudando-os se for preciso através de uma(generosasparticipacao, na nossa qualidade de professores; sé os alunos s¢ sentirem orgulhosos das suas obras seréo capazes de ir muito longe. © ©. Freinet, Essai de psychologie sensible, Editions Delachaux et Niestlé. 58 Esta ideia preconcebida do éxito nao significa de modo algum que estejamos convencidos, como Rousseau, da bondade original do homem. Sabemos apenas que jamais se melhora o individuo rebai- xando-o moral ¢ psiquicamente, colocando-o perante © espectaculo das suas fraquezas e dos seus malo- gros; devemos encoraja-lo sempre a fazer cada vez melhor, organizando em torno dele o trabalho e a vida, contando com as suas possibilidades, nem que sejam das mais modestas. Nas aulas pequenas — por exemplo, infantis, jardins-escolas — se a leitura individual nao é ainda possivel, daremos, em compensacgao, um lugar pri- mordial ao desenho, que constitui um desinibidor psiquico, e uma forma de expresso. O desenho substituiré mesmo, com frequéncia, nestes graus, 0 texto livre oral: depois de as criangas terem feito um desenho, a professora detém-se ‘ao lado delas c pede que lho expliquem. Escreve mesmo no papel do desenho os elementos essenciais da narrativa. Nao que a crianca nos revele sempre exactamente © que quis exprimir.[A principio, nao parte de uma idcia preconcebida decisiva: vou’ desenhar isto! Ex- prime a sua vida, por vezes brumosa e caética, em que os elementos se cruzam e a explicagao ‘a ‘pos- teriori’ que oferece é, na maior parte das vezes, apenas uma expressao psicanalitica que aflora atra- vés do desenho e que prossegue no seu caminho. E essencial para nés que a crianca, em lugar de ser reprimida e recalcada, mercé das regras desu- manas da escola, possa exprimir-se e libertar-se(" Assim se inicia uma técnica que se tornou’ ja classica: o texto livre. () Poder-se-& ler, sobre. este assunto, 0 nosso_livro: Méthode naturetle de dessin et nos gendses: Gendse de homme, Genése des oiseaux, Gendse des autos, Gendse des maisons, Genése des chevaux, Editions de Ecole Moderne. 59 O texto livre Um texto livre é, como a sua designacao indica um texto que a crianca escreve livremenie, quando tem desejo de o fazer, em conformidade com o tema que a inspira. Nao é aconselhavel, por con seguinte, a imposig¢ao de um assunto, nem se deve estabelecer um plano destinado ao que se tornaria entao uma espécie de exercicio de texto livre que como € ébvio, constituiria apenas uma redacgaio de tema livre. Mas, dir-se-4: se a crianca nfo & capaz de des cobrir um tema, se ndo sabe o que quer dizer « se ndo tem por isso qualquer desejo de escrever, € na verdade preciso encontrar um recurso escolar, mais ou menos coercivo, para 0 obrigar a isso? Volta-se sempre, assim, A escolastica. ‘Nao basta, por conseguinte, dar a crianca liber. dade para escrever, & preciso inspirar-Ihe 0 desejo de o fazer, despertar-Ihe a necessidade de se expri mir. Deste modo, 0 verdadeiro texto livre s6 pode nascer e desabrochar no novo clima de actividade livre da Escola Moderna. Se 0 texto livre —oral ou escrito— ¢ natural © espontaneo nas criangas que nao foram ainda mar. cadas pelas praticas escolares do imobilismo, nao acontece infelizmente o mesmo no que se refere as criangas deformadas pelos métodos tradicionais escoldsticos. Tais alunos nao tém cfectivamente ideias, ou melhor, as ideias que tém as carradas, como todas as criancas, nao conseguem transpor 0+ obstdculos decorrentes das proibicdes da escola Estes alunos so reduzidos aos lugares comuns h bituais de uma linguagem impessoal ¢ narrativa Mesmo com a tipografia, mesmo com os corres- pondentes, ha uma «aclimatacdo» a fazer. E preciso que a crianga se torne sensivel As motivacoes que Ihe trazemos, que compreenda que aquilo que tem a dizer é agora importante para a sua vida, para 60 a vida da comunidade, no seio da qual deve ja repre. sentar um papel de homem. Esta tomada de consciéncia, que inclui em si elementos individuais e colectivos, nado poderia sur- gir através de explicagdes, por mais cloquentes que fossem. E a experiéncia da vida que, ainda neste aspecto, sera decisiva. Com demasiada frequéncia nado é nem A expe: riéncia nem & vida que se recorre, mas 2 tradigao A permeabilizacao das nossas técnicas pela escola tica constitui ainda um dos perigos mais graves. Modificar os processos de trabalho continua a set a coisa mais dificil. © papel do professor Certo mimero de colegas que ainda nao aban- donaram © espirito da escola tradicional tém_o habito de «juptar» todos os dias, para correccdo, os textos livres, como se juntassem deveres e redac. gdes. Sao eles que, no dia seguinte, dizem catego- ricamente quais so os bons textos ¢ que escolhem aqueles que, dentre estes, merecem honras de im- pressio. Esté ai, mal disfarcada, a velha pratica do contréle através da autoridade do professor, com 0 abuso dessa autoridade, que facilmente resvala para o despotismo ou para a tirania. Nada é mais deploravel. Reflecti no que se tornariam as vossas. relagées com 0 vosso filho se a vossa propria opi- nido contrariasse constantemente a dele, se o tra- tasseis com rudeza a todo o instante devido A im- perfeicio da sua linguagem ou a negligéncia evi- denciada na sua apresentacao. Ele volta entusias- mado da escola e calcula ja, em segredo, o que devera dizer ao chegar a casa para vos fazer par- licipar na sua alegria. Esqueceré com toda a certeza qualquer formula de delicadeza. Isso nao é para ele o essencial. Entrara sem bater A porta, e de 61 uma assentada, no encantamento que 0 envolve, con- tard os factos mais importantes do dia, numa lin- guagem fervilhante de vida, mas, evidentemente, muito pouco académica. Se, refreando este entu- siasmo, se Ihe gritasse: —Para comecar, sé bem educado. Torna a sair e bate 4 porta... Agora, espera que te déem licenca para falar ¢ escolhe bem as palavras!.. ‘A crianca obedecer4, mas ter4 compreendido: de futuro, no contard Sendo o que lhe for permi tido; teré mais cuidado na apresentacdo, escolhera a sua linguagem, para que nada vos chogue nem merega da vossa parte censuras e comentarios des- corteses, e manter-se-4 reservada, fechada em si mesma. ‘Sucede o mesmo na escola. Se encontrardes de- masiado que censurar A crianca —escreveu mal, fé-lo num papel sujo, nao reviu as suas frases, es~ colheu deficientemente as palavras—, se, para ter- minar, dizeis qualquer coisa que, de subito, refreia © seu entusiasmo, o encantamento ser4 destrufdo. Com tais praticas, tereis talvez redacgées escolares excelentes; nao tereis textos livres. Isso ndo quer dizer, de resto, que deveis dar & crianca liberdade para’ escrever'seja o que for e seja como for. Todos os alunos sabem muito bem te um trabalho atabalhoado nao lhes traré os clogios dos camaradas. Temos, de resto, ao nosso alcance, meios que salvaguardam ao mesmo tempo a liberdade de expresso da crianga ¢ os progressos necessarios para uma forma e para um contetido de expressfio cada vez mais dificil. E escusado dizer que a conduta a escolher depende da idade dos alu- nos e do grau alcancado na aquisicio das técnicas de expressao. Com os principiantes damo-nos por satisfeitos quando eles conseguem alinhar bem um certo nti- mero de letras que formam sentido logo que as com- preendemos. 62 Por exemplo isto: fui pacia vi um passaru (fui passear; vi um passaro) Devemos fazer 0 possivel por ndo desencorajar © jovem autor; uma observagao como esta é des- cabida: — TIlegivel! Aprende a escrever antes de fazeres um texto Em vez de o censurar, poderemos dizer por exemplo: —Estd muito bem! Vés, compreendo! Jé sabes escrever. Continua e faras textos como os meninos crescidos! A crianga faz estes progressos infalivelmente, através do ‘ensaio experimental, do uso cue sera dado aos seus primeiros escritos. Progrediré mais depressa ainda se tivermos possibilidade de nos sentarmos a seu lado uma vez por outra, para a ajudar nos seus textos, como a mae a ajudou quando aprendeu as primeiras palavras. E, semana apés semana, a expressao escrita do pensamento tornar-se-4, para o principiante, um trabalho cada vez mais agradavel e ttil. No que se refere aos alunos mais crescidos, fa- remos o possivel porque compreendam que a versio original de um texto pode ser aperfeicoada e tor- nada assim mais apresentavel. Contrariamente a pratica da escola tradicional, n&o se profbe de modo algum A crianca que peca a ajuda de um aluno mais velho, de uma irma mais velha ou do professor. Dir-se- talvez: «Mas a crianga habituar-se-A assim a nao fazer nada e tere- mos resultados diferentes dos que esperavamos.» E como se a mie se inquietasse e temesse que o seu menino gatinhasse toda a vida, pelo facto de, por instinto, The agarrar na mo para o ajudar a dar 63 os primeiros passos, ou que pronunciasse toda vida mal por the falar, muito cedo, numa linguagem afectuosa. A crianca na qual se conservou assim a neces- sidade inata de crescer ¢ de saber mais, utiliza toda a ajuda que se lhe ofereca. Se accita as_mu letas, rejeita-as logo que se sinta bastante forte para’ passar sem clas A crianca diz 0 que Ihe vem & cabeca? Verificam-se com certeza, na vida da crianga acontecimentos fortuitos que a espantam, a per- turbam, a comovem ou a encantam; experimenta uma ardente necessidade de contar aos camaradas ou aos adultos por exemplo: 0 nascimento de um cachorro, uma ida A pesca, uma bela cxcursio, um jogo familiar. Mas nfo ocorrem todos os dias tais acontecimentos. Como preencherd a crianca os scus vazios? Dira o que Ihe vem & cabeca, ou nfo tera efectivamente nada a dizer? Isso aconteceria se a nossa técnica de trabalho nao estivesse integrada e imbricada na prépria vida da crianga, no seu meio. Através das nossas técnicas, com efeito, prospectamos permanentemente este meio, nfo sé de maneira artificial, por necessidade escolar, mas também para ir ao encontro das pos- sibilidades crescentes da personalidade infantil, para satisfazer os pedidos dos leitores do nosso jornal e responder &s perguntas dos nossos correspondentes. E a um verdadeiro estudo do meio que nos dedi- camos permanentemente, estudo animado, sem qual- quer dogmatismo, porque é sobre a vida que se faz. Para realizar os nossos inquéritos, para respon der aos nossos camaradas, 0 nosso aluno devera prospectar a vida em torno de si, fazer perguntas aos pais, aos velhos da aldeia e do bairro, interrogar-se sobre os dados do meio econémico, examinar as 64 velhas pedras, ressustitar os costumes, conhecer melhor as montanhas, o rios e as culturas, estudar os insectos e os animais, etc. Desde que 0 complexo esteja desencadeado, uma infinidade de pistas apre- senta-se A nossa curiosidade e a nossa acco; os assuntos dos textos abundam em todos os dominios: hA apenas o embaraco da escolha. Comeca-se a olhar e a contar 0 que se passa A nossa volta. Depois, um dia, fecha-se os olhos e es- cuta-se os rufdos da floresta muito préxima, o canto das aves, 0 canto das cigarras, o piar da coruja. Tenta-se apreender de passagem o fluxo mais ou menos consciente das ideias e dos sentimentos, e 0 poema nasce. Ele é a exteriorizagao do que est na crianga, do que a agita emotivamente do que a faz rir ou chorar, do que Ihe povoa o. sunhos, do que a faz_experimentat sen:acées inexprimiveis, mas que so sobretudo o que sente em si de mais pre- cioso e insubstituivel. A esta profundidade, o texto livre é, ao mesmo tempo, confissio, desabrochar, explosdo e terapéutica. Eis em suma um resumo das riquezas que nos trarao 0 texto livre, desde que tenhamos aberto os diques e restabelecido os circuitos entre a crianca ea vida. A escolha do texto Normalmente, tereis todos os dias, nz vossa classe, 7 a 12 textos livres. Se nao alcancardes este ritmo, € porque qualquer coisa nao funciona bem na vossa técnica de utilizacio, é porque os vossos alunos no estao ainda integrados na atmosfera de simpatia e de trabalho da aula. F preciso, por con- sequéncia, repensar os problemas de base que, no plano individual e social, ligam a escola ao seu meio. Mas abordemos a exploracao do texto livre: Um aluno, designado antecipadamente, vai ao quadro e escreve a lista dos textos apresentados, 65 com o nome do autor. Entdo surge 0 momento Psicolégico em que se entrecruzam as narrativas, se defrontam as ideias, em que cada leitor toma cons- ciéncia do valor dos outros textos com os quais entra em competi¢ao. O autor lé o melhor que pode, naturalmente, pois deve valorizar a sua propria pro- ducdo. Acontece-Ihe corrigir durante a leitura uma frase que sente coxa e incompleta. Se hesita diante de uma palavra ilegivel, isso constituira para ele uma boa licéo: compreender4 que nao se deve des- denhar a correceao da escrita e que um texto bem escrito necessariamente mais bem lido que um texto garatujado e indecifravel. \,, Sera por vezes lamentavel que uma deficiéncia de-leitura, consequéncia de uma m4 preparacdo ou de uma escrita deploravel, prejudique realmente textos que podem possuir grande valor humano ou documental. Neste caso, 0 professor intervém. Lé ele proprio o texto para que se possa avaliar ver- dadeiramente o original. Lidos os textos, trata-se de saber qual tera as honras de impressio. Mas, atencao!, a inovacao essencial das nossas técnicas é que esta escolha nao deve ser feita pelos préprios alunos, mas pela comunidade, na qual o professor participa. Pode acontecer justamente que esta escolha nao dé satisfacao ao professor: as crian- ¢as decidiram segundo a sua dptica, a sua dptica de criancas com vida prépria; vés, os adultos, ten- des tendéncia para avaliar um texto em fungdo de consideragées escolares: um texto nao escolhido teria constituido todavia um espléndido centro de interesse, relativamente ao qual os documentos abundam; outro teria dado inicio a um inquérito proveitoso no meio local geografico ou econémico. O texto eleito nao permitira sendo uma exploracio pedagégica muito restrita... Do vosso ponto de vista de professor, a escolha foi mal feita. Mas este texto ndo pedagégico apresenta outras 66 vantagens: traz a vida, a atengdo das criangas, o ardor e o entusiasmo. Deixé-lo ir, depois se’ vera Mas, direis, como fazer esta escolha, se a opiniao do professor j4 nao é preponderante? S6 existe, evidentemente, um meio: 0 voto democratico, com maioria absoluta a primeira volta, maioria relativa a segunda, tomando o professor parte na_votacio do mesmo modo que os alunos. ~ —Vota-se, por Conseguinte, uma primeira vez. Mas a maioria’absoluta sé é obtida em certos casos muito dbvios, quando o texto apresentado cataliza, por assim dizer, os sentimentos e as emogées da grande maioria dos alunos. A maior parte das ve- Zes 08 votos esto mais ou menos espalhados. Entao, climina-se da votacao, na segunda volta, todos os textos que nao tenham tido ressonancia e procede-se & escolha apenas entre os textos que suscitaram um minimo de interesse. A escolha sera entao circuns. crita. Se, mesmo na segunda volta, a maioria esti ver indecisa, far-se-A nova votagao ¢ proceder-se-4 & escolha entre os dois textos mais apreciados. Nao deve haver qualquer formalisme no exer- cicio da votacao. Nao se trata de imitar os adultos, mas de descobrir o meio mais simples para que 0 texto adoptado seja o que tem mais possibilidades de interessar em profundidade o conjunto dos alu- nos — por consequéncia, o mais util, do ponto de vista formativo e cultural. Designado o texto, relemo-lo para o apreciar em conjunto, antes de passarmos ao aperfeicoamento colectivo. Poderiamos deixar o texto tal como esta, contentando-nos em transcrevé-lo no quadro, apés uma correc¢ao ortografica e sintdctica elementar. Certos colegas tentaram isto, pretendendo respeitar assim melhor a espontaneidade infantil. Cremos que € um erro, pois, por mais original que seja 2 perso- nalidade da crianga, ela permanece elementar, glo- bal, enquanto que, muito naturalmente, a cultura © atrai. Este interesse pelo aperfeigoamento cultu- 67 ral sob a sua forma humana ou cientifica, surge com muita espontaneidade. O essencial é que a crianga tenha, basicamente, o sentimento das suas préprias riquezas sempre ao dispor do seu entusiasmo. O pa- pel do professor € sentir este ardor, ajudélo mais ou menos intuitivamente por vezes, mais ou me- nos objectivamente em certos casos, a libertar as suas emocées, os conhecimentos ainda prisioneiros. E como que uma afinacao necesséria, de que dare- mos exemplos na parte pratica desta obra. Para resumir, diremos: 0 texto livre sé tem valor na medida em que constitui um documento autén- tico, na medida em que € socializado, na medida em que serve de pretexto e de argumento para um enriquecimento na direccao da cultura e do conhe- cimento. A organizacio material da escola © problema do rendimento, em matéria de en- sino, esta relacionado com 0 do equipamento esco- lar. A modernizacéo condiciona, por conseguinte, em certa medida, toda a melhoria do rendimento do nosso sistema’ educativo. Porém, modernizar 0 equipamento escolar nao € apenas adquirir material novo. Do mesmo modo, para modernizar o ensino nao basta tentar fazer com que os alunos participem mais no conjunto das 1 g6es e exercicios, nem mesmo organizar cooperati- vas, editar um jornal e praticar a correspondéncia interescolar. Neste caso, nao teriamos progredido senao superficialmente, se nada se modificasse na propria concepcao de uma escola, onde o professor permaneceria o ‘deus ex machina’ sem o qual nada poderia funcionar. E necesséria uma alteracdo profunda dos fun- damentos pedagégicos, psicolégicos e humanos do 6s

Você também pode gostar