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% © CASAMENTO ENGANOSO CERVANTES (1547-1616 | Espanho) Miguel de Saavedra Cervantes, o pai do género romance com Las Aventuras de! Ing adalgo Don Quijote de la Mancha, ou simplesmente D. Quixote, 0 livro mais famoso do mundo ' de Biblio até hoje o ebro mais original ¢ humorstca criade pelo engent humax ve -mas, comédias forsas olém de suas Novelas Exempiares. O Casamento Enganc plo de comédia de costumes da époce. Sala do Hospital da Ressurreigao, em Valladolid, além da Porta do Car soidado que, por usar a espada como bordao e pela fraqueza das pernas € 2 p semolante, revelava claramente — embora a temperatura nao fosse téo quen' deveria ter transpirado durante vinte dias toda a disposi¢o que, com quirira numa s6 hora. Andava ziguezagueando, tropecando toda ho scente, ¢ 20 transpor o portal da cidade, pereebeu aproximar-se em s sem amigo @ quem néo via hé mais de meio ano. O amigo, benzendo~ uma assombragao, aproximou-se ¢ Ihe disse = 0 que aconteceu, Senhor Alferes Campuzano? Como € possivel qui? Imaginava-o em Flandres, de lana em iste, € no por esta do a espada. Que palidez, que fraqueza é essa? Campuzano respondeu: = Se estou ou ndo nesta terra, senhor Licenciado Peralta, 2 minha sresenga Ihe responde. Quanto 5 outras perguntas, nada tenho ¢ res ‘ou saindo daquele hospital onde sofri quatorze suadouros por ca her & quem escolhi como minha, quando jamais o deveria ter feito = Quer vossa mercé dizer que se casou? ~ perguntou Peralta = Sim — respondeu Campuzano. — E teria sido por amor? — disse Peralta, acrescentando em seguida: ~ Tais r Sendo je uma samentos sempre trazem arrependimento. ~ Nao saberei se foi por amor — respondeu o alferes Sido por amargor, pois do meu casamento, ou ‘cansa embore possa garantir mento’, carrego tais coisas no me custaram quarenta suadouros, 0 € na alma que as do corpo, para curé-iss, mas para as da alma nao encontro remédio sequer pa doe; no possa manter longas conversas neste iuga Comodidade, contar-Ihe-ei minhas aventuras; séo es mais mercé teré auvido em todos os seus longos dias de — Nao sera como dizeis — falou o Lice! Pousada para ali desabafarmos nossas magoas. Além disso prOpria para convalescentes, Embora tenha si contentard com um pastel. E se a sua conva sunto servirdo para nos abrir 0 apetite. A boa mente agora, m duivida, Agradeceu-the Campuzano, aceitando 0 convite ¢ Sao Llorente, onde ouviram missa © depois Per dando-Ihe o prometido e insistindo para que repet dlu-the Peralta que narrasse os acontecimentos que nao se fez de rogado e pa Vossa Mercé bem se lembra, senhor amigo do eapitdo Pedro de Herrera, que agora vive em — Bem me lembro — respondeu Peralta — Pois um dia — prosseguiu Campuzano —, 1 Pousada da Solana onde viviamos, quando entraram ¢ acompanhadas de dois criatlos. Uma delas pés-se logo dos ambos @ um canto da janela. A outra sentou-se cobrindo-se com o xale até 0 pescogo, sem deixar ve transparéncia do xale o permitia. Embora cortesmente ihe si Se, no me foi possivel consequi-lo. E para completar a OU por simples acaso, ela exibiy suas mos muito jias. Da min vossa me -las. Mas vocé me per 0 dia, com mais ovas € originais que vossa fe venta & minha uma comida muito , meu criado se mas fatias de pre. ue Ihe oferego, no so- todas as vezes quer vossa uzano coneluira pe jo. Campuzano omo fui nesta cidade nos a refeico na uiheres de belo porte lar com a capitdo, encosta- lira junto & minha, sto mais do que a Se que se descobris- storia, Fosse de caso pensado ancas € cobertas de excelentes ® Parte €u estava importantissimo com aquela grande corrente que terd talve2 conhecido, 0 sombreiro com plumas e cordes, o traje colorido & @ arrogancia de um militar, tao imponente aos olhos da minha prépria valdade que wig COnsiderava a pairar no at. Mesmo assim, roguel-ine que descobrsse a face, ao que espondeu: "Nao sejais importuno, Tenho minha zei com que um pajem me Pois embora seja mais honrada do que sugere, quero ver se vossa 2 galh: que me vejas.” corresponde & vos ~ Beiji-he as mos pela grande mercé com que me contemplava, em troca da Prometi punhados de ouro. 0 capitéo conclulra sua conver Om seus eriados atris. O capitéo me disse que 2 da 8 a respos dia. S6 entdo folg discr a, Elas se foram, he pedira para levar algumas apie, em Flandres, Dizia serem para um primo, mas ele bem sabia que 78 ram para o amante, Eu ficara abrasado pelas ma via visto e ansioso pelo rosto que desejave ver E assim, no dia seguinte, ou iado, Fu visita ‘a Encontrei ume bela residéncia e uma mulher de quase tr reconhe- i pelas méos. Néo era extremamente bela, mas era-o a 0 prender Belo tato, pos tinha um tom de voz tao suave € penetrante que 2. Manti- vemos longos ¢ amorosos coléquios. Adulei, garganteei, prom im todas as Gemonstragdes que me pareciam necessérias para me tornar benquisto Cia feita para ouvir semelhantes ou maiores ofertas e discursos, Era nenhuma surpresa, Concluindo, nossos coléquios duraram quatro floriaos “inuel a visité-la sem que chegasse, no entanto, a colher o fruto cobigado — Nos momentos em que a visitei ~ prossequiu ele —, encontrei se Itc jamais percebiindcios de patents, reais ou fingidos, Servia-e cera rons nan astute do ue simploia,Tratando de meus amores como a um soldado em vécperss Ge arti, apertelfinalmente a senhora Dona Estefania de Coicedo —-€ esse o none le Quem” assim me deixou ~ que respondeu: "Fla sera eu, serhor alferes Camaurano, a Asesse me vender a vossa mercé por santa. Pecadora tenho sido e ainda sou, embora no tanto que os vzinhos echichem e os empregados comentem Nem de mecs pa rentes herdei coisa algume, mas apesar disso, 0 que tenho aqui em casa vale - tem contados ~dols mil quinhentos escudos.Eisto em coisas que, vendidas, se converte. coed om dinheira. Com essa fortuna pracuro marido a quem entregar-me e > quem bedecer.A quem, juntamente com o arranjo da minha vida, entregarel uma ingriel wethesg 6m agradare seri Principe algum tera cozinheira mais cuidadosa ou quem Ielhor sata fazer um guisado no ponto. Tanto sei dirigir uma casa como orlentry dee centn® ou reccber visitas, Na verdad, sei mandar e ser obedecida. Nada desper, Aigo € muito econamizo. 0 dinheiro nao vale menos e sim mais quande gasto sob Iminha orientagdo. A roupa branca que € minha, € muita e da melhor, mas nde fol ariqurida em lojs ou com vendedores ambulantes; estes dedos € os de minhos eriades fizeram-na, e se fosse possivel tla tecido em casa, assim teriamos feta Digo isso £m modéstias, pois no hd mal algum quando a necessidade nos obriga a dit-lac Acrescento ainda que procuro marido que me ampare, dirjae honre, eno amante que se Sprowele € depois sala por ai falando... Se vossa merce souber apreciar a prenda que ene momento se Ihe oferece, cis-me aqui a vossa isposicso, suleita a tudo quanto Trg Merce ordenar,¢ isso sem me por em lego, que é a mesma coisa que andar em lingua de casamenteros. Nao hé nada para consertar o conjunto, como’as aves poo prias partes. ets gut eslava com 0 juizo nao na cabeca mas nos caleanhares, julgando @ Felcidade ainda maior do que aimaginagdo me gintavae, oferecendo-se-me tie 4 mba ta! quantidade de bens — jd os convertera mentalmente em dinheiro! sem mre Comentarios do que aqueles a que dava lugar a ventura (que me embrulhava o ra Cini}, respond-e que me senta muito alegre e afortunede por haver-me dado 6 ca, 8Se Por milagre, companheira tal, para fazé-Ia senhora da minha vontade e dos 79 haveres, que no eram to poucos que nao valessem, junto com aquela corrente que trazia no peito e outras joiazinhas que estavam em casa, além das minhas galas soldads, mais de dois mil ducados, os quais, juntos aos mil e quinhentos dela formavar quantia mais do que suficiente para vivermos na aldeia onde nasci e ainda possula alguns bens. Tais haveres, convertidos em cinhelro, renderiam seus frutos com o tempo, permitindo-nos uma vida alegre ¢ descansada. Em suma, naquelas noi- tes acertamos 0 nosso casamento ¢ esclarecemos nossa vida de solteiros. E nos préxi- mos trés dias de festas que vieram logo pela Pascoa fizeram-se as proclamas € no quarto dia nos casamos, encontrando-se presentes dois amigos meus € um rapaz que izia ser primo dela, Tratei-o como se fosse um parente, com amabilidades, como as que até entdo ele dirigira 3 minha nova esposa. Felava porém com intengao tao falsa e hipécrita que prefiro ficar calado. Embora esteja dizendo apenas verdades, no so verdades de confessionério, dessas que ndo podem deixar de ser ditas 0 criado conduziu meu bad da pousada para a casa da minha mulher. Enfiei rele, diante dela, minha espléndida corrente, mostrando-Ihe outras tres ou quatro, no do mesmo tamanho, porém na melhor qualidade possivel, assim como trés ou quatro cintos de diversos tipos. Mostrei-the também as roupas e os chapéus e entre- Guei-the os quatrocentos reais que possula para as despesas da casa, Seis dias desfru- tei calmamente a lua-de-mel, como genro pobre em casa de sogro rico. Pisei caros tapetes, amassei colehas da Holanda, ilurninei-me com candelabros de prata. Almoca- va na cama, levantando-me 8s onze horas, comendo as doze ¢ sesteando as duas. Dona Estefania e a criada excediam-se em agrados e cuidados. Meu criado, que até ali fora lerdo ¢ preguigoso, tomara-se num azougue. Os momentos que Dona Estefénia no passava a0 meu lado, era facil encontré-la na cozinha, toda solicita em ordenar Quisados que me despertassem 0 gosto € avivassem 0 apetite. Minhas camisas, colari- hos € lengos, pelo perfume que exalavam, pareciam um novo Aranjuez de flores, banhados que eram em aqua de flor de laranjeira. Dias que passaram voando como os anos sob o império do tempo. Por ver-me 180 regalado ¢ bem servido, transformara-se em boa a mé reputsgao com que comece- a aquele negécio, Ao fim deles, certa manhai — quando ainda no leito de Dona Estefénia — ouviram-se grandes batidas na porta. Ouvi a criada dizer, assomando & janela — An! Seja bem-vinda! Vejam 6, chegou antes do que dizia na sua carta, — Quem € que chegou, mulher? — perguntei — Quem? ~ respondeu ela. — Minha Senhora Dona Clemente Bueso. Acomga: nada por Dom Lope Melendez de Armendérez, dois criados e Hortigosa, @ ama. — Corra, mulher, € vai abrir a ports, que eu jé vou ~ disse Done Estefania & criada, que parara sem saber que atitude tomar. — E vés, senhor, pelo amor que me tendes, nao os assusteis nem respondais em meu nome & coisa alguma que contra mim ouvires. — Mas quem vos ofenderd, ainda mais em minha presenca? Dizel: que gente & que tanto alarma vos causa? — Nao tenho tempo para vos responder — disse Dona Estefania —, sabei somen- ue tudo 0 que aqui se passar serd fingido e visa a certo designio, o qual sabé-lo-eis is. Quis replicar-Ine, mas a senhora Dona Clementa Bueso néo permitiu, pois en- uno quarto arrastando a cauda do longo vestido verde todo enfeitado com cardées de ouro, capinha da mesma qualidade, chapéu de plumas verdes, brancas e vermelhas, € um rica cinto de ouro. Metade do rosto vinha oculto por um véu leve, Em sua comp nia entrou 0 Senhor Dom Lope Melendez de Almendarez, nao menos bizarro nem menos ricamente paramentado. Dona Hortigosa foi a primeira a falar, exclamando: — Meu Deus! 0 que é isto? Ocupando o leito da Senhora Clementa, e além disso, com um homem? Estou vendo milagres hoje nesta casa! Nao hé duvida de que Dona ja tomou o pé pela mo e abusou da amizade da minha senhora! — Tendes razéo, Dona Hortigasa, mas a culpa é minha. Nao devia me aborrecer jando amigas que s6 o sabem ser quando |hes interessam! A tudo isso, Dona Estefania respondeu: — Nao fique aborrecida, Dona Clemente Bueso, e acredite que nao é sem misté- 0 que a senhora vé estas coisas em sua casa, Quando ficar sabendo do que realmente nteceu, tenho certeza que haverd de me desculpar € no havera de sua parte ne- um motivo de queixa Acesta altura eu ja vestira as calgas e a camisa ¢ Dona Estefania me tomou pelo 9 © me levou para 0 outro quarto e ali me disse que aquela sua amiga pretendia enganar Dom Lope, com quem pretendia se casar. Que o engano era dar-lhe @ enten- que aquela casa € tudo quanto nela estava Ihe pertencia e disso tudo ela faria seu fe. Assim que se realizasse 0 casamento, pouco se Ihe dava que descobrissem 0 no, confiada como estava no grande amor de Dom Lope. — E logo ela me devolverd tudo. Nao se pode leva-la a mal nem a nenhuma outra mulher que procure marido honrado, embora por meios escusos. Respondi-Ihe que era uma prova de grande amizade o que pretendia fazer, € que rmeiro penasse bem porque poderia, depois, sem ter necessidade, necessitar da justi- para readquirir seus bens. Mas ela respondeu com tanta e tais razdes, mostrando quantas coisas obrigavam-na a servir Dona Clementa — coisas de pouca importancia, e72 verdade — que, embora de ma vontade e com remorso, concordei com a vontade de 2 Estefania, Assegurou-me ela que o engano duraria cito dias, durante os quais ‘amos em casa de outra amiga sua, Acabamos de nos vestir ¢ logo, despedindo-se Dona Clementa Bueso ¢ do Senhor Lope Melendez de Almendarez, disse a meu criado que carregasse o bau e a seguisse. Também eu a segui, sem me despedir de ninguém, Dona Estefania parou em casa de uma amiga ¢, antes que entrassemos, esteve ntro um bom tempo, falando com ela, Depois apareceu uma criada mandando que entréssemos — eu € 0 criado. Levou-nos a um pequeno aposento, no qual havia dues amas to juntas uma da cutra que pareciam uma s6. No havia espaco para separi- as; as cobertas pareciam beljarse. Ali permanecemos durante seis dias e em todos eles do passou uma hora em que n&o tivéssemnos algurra discussao. Dizia-Ihe da loucura ¢ fizera em deixar sua casa e pertences, emora fosse para a propria mae, Durante as dlscussées, ela ia ¢ vinha pelo quarto, tanto que a dona da casa, um dia em que Dona Estefénia fora ver em que pé estavarn as coisas, quis saber qual a causa que me levava a discutir tanto cor ela ¢ 0 que fizera que tanto a ofendia, sobretudo insistindo fem dizer que fora uma notavel loucura € nao um perfeita amizade o que a levara a fazer 0 que fez. Contei-Ihe tod a historia, fale! que me casara com Dona Estefania e do dote que ela trouxera. Quando Ihe disse da grande tolice que fizera em deixar a casa © pertences & Dona Clementa, embora com a boa intengéo de conseguir um marido do quilate de Dom Lope, comegou ela @ benzer-se € a gersignar-se com tanta agitacgo € com tantos aif Jesus! ail Jesusl... que no pude deixar de ficar perturbado. Ela ent3o ime disse: “Senhor Alferes: no sei se vou contra a minha consciéncia ao contar-ihe 0 gue também nela pesaria se eu permanecesse calada, Mas, por Deus € pelo destino, sela Id 0 que for, viva a verdade € morra a mentira! A verdede € que Dona Clementa Bueso é a verdadeira dona da casa ¢ dos pertences que Ihe deram como dote, Mentira {oi tudo quanto Ihe contou Dona Estefania, Ela no possui casa nem bens, nem outro vestido 2 ndo ser aquele que trés no corpo. E, para tornar visivel esse logro, foi que Dona Clementa andou visitando parentes seus em Placéncio e dali esteve fazendo uma novena para Nossa Senhora de Guadalupe. Neste espaco de tempo deixou Dona Esteféinia Cuidando de sua casa, pols séo realmente grandes amigas. Claro que nao se deve Culpar a pobre mulher, pois soube arranjar para marido uma pessoa como o senhor Alferes.” Aqui ela deu fim & conversa € dei principio eu 20 meu desespero, ¢ sem divida o "ia prolongado se o meu anjo da guarda no acualsse, dizendo ao meu coracio para ro esquecer que eu era cristio e que o maior pecado dos homens era o desespero por Ser 0 pecado dos deménios. Esta consideragdo, ou boa inspiragéo, confortou-me um ouco, mas nao tanto que deivasse de apanhar a capa e a espada e salsse a procura de Dong Estefania, com a intengo de the dar um castigo exemplar. A sorte pore, que Saberei dizer se melhorava ou piorava as coisas, ordenou que em nenhum lugar ot pensava encontra-la, ela estivesse. Ful a Sdo Llorente © encomendei-me a Nossa hora; sentei-me depois num banco e com o desgosto fui tomado por um sono tao nao despertaria tao cedo se néo me sacudissem. Fui cheio de pensamentos sa de Dona Clementa ¢ encontrei-a to 2 vontade coma senhore que r6prios bens; nao ousel dizer-Ihe nada porque Dom Lope estava presen da minha hospedeira que me disse haver contado a Dona Estefania de toda a sua hipocrisia e falsidade e que ela the havia perguntado mm 2 noticia. Havia-Ihe respondido que uma cara muito mé € que, co de ver, eu saira a procuré-la com mas intengdes e piores determi- ages. Finalmente disse que Dona Estefénia carregare com tudo que estivesse no bail, sem nele deixar uma s6 pega de roupa sequer. ‘Aqui foi que 2 coisa se deu! Aqui teve-me Deus de novo em suas mos. Ful ver 0 bai, encontrando-o aberto, como um timulo & espera do cadaver. Com boas razdes seria meu, se tivesse calma para sentir e ponderar tamanha desoraca — Bem esperta ela foi — disse, neste momento, 0 Licenciado Peralta — por haver Dona Estefania levado tanta corrente e tantos cintos pois, como se diz, todos os enter- ros... et. ete. — Esta falta nenhuma pena me deu — respondeu o alferes —, pois também poderei dizer: *Pensou Dom Simueque que me enganava com sua filha caolha ¢, por Deus, coxo sou eu de um lado.” — Nao sei 2 que propésito pode vossa mercé dizer isso — respondeu Peralta, — 0 propésito ~ disse o alferes — é de que aquele embrulho € aparato de corren tes, cintos e brincos poderia valer quando muito dez ou doze escudos. — Nao € possivel — disse o licenciado -, porque a corrente que o senhor trazia no pescogo parecia pesar mais de duzentos ducados, — Assim seria — respondeu o alferes — se a verdade fosse o que a aparéncia mostrava; mas como nem tudo que reluz € ouro, as correnttes, 0s cintos € as jdias € os brincos nao passavam de imitagdes. Estavam to bem feitas que somente o toque ou 0 fogo poderiam descobrir sua qualidade. — Assim — disse 0 licenciado —, entre vossa mercé ¢ a Senhora Dona Estef&nia, 6 jogo ficou empatada? = E tio empatado — respondeu o alferes ~ que poderiamos embaralhar as cartas de novo. Mas o estrago esta em que ela poderd se desfazer das minhas corren- tes € eu no do lago em que cal. Sim, porque embora muito me pese, ela é minha mulher. — Dai gragas a Deus, senhor Campuzano — disse Peralta -, que ela se foie que nao estais obrigado a ir buscé-ta, — Assim é — respandeu o alferes. — Porém, com isso tudo, embora néo a procure, tenho-2 sempre no pensamento, e onde quer que ela esteja estd presente a desonra — N&o sei 0 que responder — disse Peralta — a nao ser he trazer & meméria dois versos de Petrarca CChi chi prende dletto oi for frode Non sidé lamentor salt 'inganna = 0 que significa em nossa lingua: “Aquele que tern o costume € 0 gosto de enganar a outros, no deve queixar-se quando é enganado.” No me queixo — respondeu o alferes —, € sim lamento, pois por reconhecer a culpa, deixa de sentir pena do castigo, Bem sei que fui enganaco, feriram-me com as minhas préprias armas, mas no posso permitir que ‘35 Sentimentos delxem de vir & tona, Finalmente 0 que mais importa no meu roma mee (l nome se pode dar & narrativa das minhas aventuras ~ & ter sabido que Done Estefina se fora com o primo, 0 mesmo que se encontrava em nosso casamerto t one gcmPos atrds fora seu amigo para todas as coisas, No quis procurdela para ra camera) (mal que me fltava. Mudei de pousada e de cabelo em poucos dias, po remefaram a eait-me os pelos das sobrancelhas eds eli antes do tempo: arma. (arr ie uma doenea que chama ealvicie, Achei-me deveras limpo: nfo possuia rere cabelos pare penteer nem dinheiro para gastar. A enfermidade caminhou ao mess Basso da minha miséria, ¢ como @ pobreza atropela a honra e a uns leve force outros 20 hospital e a outros ainda os faz Pedidos e suplicas, 0 que é uma das maiores infeliz, € por no ter podido cuidar das roupas que me protegeriam ¢ assequrariam satide, 20 chegar 0 tempo em que se dao os suadouros no Hospital da Ressure ara ele me origi €nele tomei querenta suadouros, Dizem que fcarei curado, se me tratar. Espada ainda possuo; o resto Deus ird de remediar

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