Você está na página 1de 196
id James Clifford ler Tel fel AVE Leet} eect one mec Man ttre! I auiemeee cultura Sai eem a Ua ee aC eas) o a & a A 3 a = ri 2 4 iS lo} J B £ [o} rn 8 E & cs Ser een’ Maria Claudia Cgetho oa Publicado originalmente em 4986, Writing Culture, finaimen- te, tem uma tradugao no Bras ‘Ag comemorar 31 anos de langa- ‘mento, somos brindados com sua tradugso para rut de_uma louvavel ja EAUERJ em parcer apéis Selvagens Edigdes @ belo rabalho de tradugao e apresen- 330 de Maria Claudia Coelho. Produto de um seminério que borreu em Santa Fé, Novo Mé- 0, em 1984, organizado por ‘mes Clifford George Marcus, ido como questo princi produgSo de textos etnogy 5, 0 livo contou com um gru- ‘de experientes académicos, los profundamente envolvides 1 experimentos @ inovagtes esctita da etnografia, mais ‘ecificaments na critica de twtdrica e de sua histéria, Entendido por muitos como dos marcos fundadores. do modernise na antropolo- orte-americana, A escrita da vra_ provocou modificagtes eflexdo e no fazer ai ©, deixando mareas pr 2 rastros miitiplos que tando 0 oficio do etnégrafo, AESCRITA DA CULTURA: POETICA E POLITICA DA ETNOGRAFIA PAPI SELVAGENS. UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Reitor Ruy Garcia Marques Vice-reitora ‘Maria Georgina Muniz Washington EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Conselho Raitorial Bernardo Esteves Glaucio Marafon (presidente) Jane Russo “Maria Aparecida Ferreira de Andrade Salgucito Ivo Barbieri (membro honoririo) Italo Moriconi (memibro honoririo) Lucia Bastos (membro honorétio) PAPEIS SELVAGENS Coordenagio Kal ‘Rafael Gutiérrez, Maria Elvira Diaz-Benitez, Gustavo Siveir Ribeio (UFMG) Jaime Arocha (Universidade Nacional da Colémbia) Jefliey Cedetio (Universidade Javeriana de Boga) Suan Pablo Villalobos (E: Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFR) Maria Filomena Gregori (Unicamp) Manica Menezes (UFBA) Colesto Kaela Papéis Selvagens papeisselvagens@gmail.com www papeisselvagens.com AESCRITA DA CULTURA: POETICA E POLITICA DA ETNOGRAFIA James Clifford e George E. Marcus Organizagio Tradusio: Maria Claudia Coelho dP a az t south Rio de Janeiro 2016 O RIO DE JANEIRO Astistente Editorial Coondenadera de Prato Assented Prodeeso ‘Sipernsor de Revisan Revsto Projeo« Diagramaci copa apis Selvagens Manin Riguez ADOS INTERNACIONAIS DE CCATALOGAGAO NA PUBLICAGKO (CF) ‘Bes Heler~ CRE 100548 (Clsudia Coelho, ~ Rio de Janciro: Ed, aptis Selvagens Edigbes, 2016, 388 p+ 1623 em 1. Exnografia. 2. Poet 1. Clifford, James. TI. Mateus 3, Politica, 4. Culture eorgeE. cpu 39 Imagem de capa gentnents cae plas organiadoes do liza Sumario Sobre tropas ¢ cometas: apresentacio & edigéo brasileira de Whiting Culture Maria Claudia Coelho Preficio... James Clifford e George E. Mayeus Introdugio: Verdades parcais, James Chifford “Trabalho de campo em lugares comuns... Mary Louive Past O dilema de Hermes 0 disfarce da subversio na descrigio etnogréfica. Vincent Crapanzano Da porta de sua tenda: 0 etndgrafo eo inguisidor. Renato Rosaldo Sobre alegoria exnogeéfica James Clifford ‘A ecnografa pés-modema: do documento do oculto 20 documento oculo Seephen A. Tyler (O conceito de tadugio cultural na antropologia social britinica Talal Asad 27 31 3 1 125 183 ene 207 roblemas contemporineos da etnografa no sistema mundial moder90 a George E. Marcus Actnicidade e as artes pét-modernas da meméria Michael M. J. Fischer As representagées sao fatos sock pés-modernidade na antropologi Paul Rabinow modemidade € Posficio: A escrita etnogrifica eas careiras antropolégicas George E. Marcus Referéncias. Os colaboradores. Sobre a trad utora evn 237 271 323 359 365 383 387 Sobre tropas e cornetas: Apresentacio a edicao brasileira de Writing Culture ‘Maria Claudia Coubo! As ciéncias sociais ¢ os cimento hoje fortemeate apart nas concepces dos departamentos univer tabelas usadas pelas agéncias de fomento para em sua versio miri nas “reas de conheciment almente, 0 exame nacional de acesso as universidades. A démarche de seus percursos intelectuais, contudo, desafia recorrentemente esse afastamento, sendo prédiga em momentos de grandes redefinicdes paradigmaticas pro- vocadas por influénciss ¢ intercimbios recfprocos de conceitos e teorias. As teses de Edward Sapir e Benjamin Lee Whoxf sobre a telagio en- tre a linguagem e/0 pensamento, advindas da antropologia culzuralista de Franz Boas, sio um primeiro bom exemplo, olhando a partir da histéria do pensamento antropolégico, da fecundidade do dilogo entre os estudos da cultura € os estudos da linguagem, Um segundo momento extraordinirio reside, evidentemente, na inspiracio encontrada por Claude Lévi-Strauss na linguistica de Ferdinand de Saussure e Roman Jakobson para a elaboracio da sua antropologia estratualista Em sentido oposto — ou seja, quando os estudos da linguagem vérn beber na fonte das andlses socioculturais ~, pode-se lembrar do lugar central ‘cada do Departamento de Antropologis do Iastituto de Citacias Socais aivessdade do Bstdo do Rio de Jancio (UERD, sociolinguistica interacional, Exemplar da forca desse contato intelectual € a ‘enquadre” nos estudos sobre conversa e de linha” nos estudos sobre polidez, A csrita da cultura, entendido como “marco bibliogrifico” que con- eee ae erm ees es ‘amzana nos anos 1980, pod ser entenido como um quate momento de importnciaimpar nessa conversa entre lingam ca cults Leva antropologia pés-moderna realiza seu movimento buscando nal tei lite | Hicido interlocutor preferetieial para uma nova versio dessa conversa entre soctade, cult elinguagem inangusado sain un paraignns cede lugar jé consagrado na hist. a eee eter aoe ia do pensamento antropol6gico. apresentados original- 1984 em um seminirio realizado na School of American Re- seatch em Santa Fé, no Novo México. Seu foco principal ¢ a exploracio da letnografia como um gitere ltndri, por meio do exame de suas figueas inguagem, suas estratégias retricas e suas aproximagées com outros estilo literdtios. Essa atengio para a dimensio literétia da contudo, um fim em si mesmo, um mero exercicio ensai ita etnogrifica nio é, electual. A intengio & romper com uma relacio de referéncia que o meio antropolégico supunha acordo com os autores, entre o texto etnogtifico e a argumento central da c: geral do livso, por uma cesta nai -). Nesse modelo teérico, marcado, segundo a realidade cultural seria algo pendente em telagio aquilo que se diz a seu tespeito, Uma etnografia fidedig. 1a € intelectualmente responsi ccia, entio, um texto que retrataria aquela 108 dados recolhidos no trabalho de campo. Eventuais incongruéncias e lacunas seriam, assim, frato de eventuais interpretagSes equivocadas ou parciais, nfo guardando qualquer relagio com a escrita da etnografia. O esforgo intelectual dos textos de A esta da exltura poderia ser de- finido, em sua esséncia, como um projeto para dotar o texto etnogrifico de visibilidade propria, Ao invés de atsibuir-lae uma qualidade “transparente”, de tomé-lo como uma via de acesso 4 cultura do “outro” cuja melhor chance de sucesso residisa, justamente, em sua opacidade, os autores desta coleti- realidade estudada “tal como é”, segun Sore ops comets: AprucnioAeibraiein de Wrikng Calaee 9 objeto de suas pesquises (Os autores realizam esse esforeo de erigie como objeto de suas refle x5es 0 texto etnogrifico em si por diversos caminhos como, por exemplo, examinando a relasio entre dados empiricos discussio teérica na cons. trugio do texto; analisndo as principais figuras de linguagem empregadas; ou comparando 0 texto etnogrifico com outras formas literiras, como 0 pastoril ow a literatura étnica, entre outros. © problema teético fundamental da coletinea pode ser melhor com- preendido se examinarmos um conceito proposto por James Clifford em um ensaio que, cutiosamente, aio integra a coletinea (embora seja objeto do escrutinio analitico de Paul Rabinow em seu texto aqui inch publicagio antecedendo-a em trés anos: “Sobre a Autoridade 83). Nele, Clifford discute 0 conceito de “ que pode ser definido como 0 conjunto de estratgias discursivas utilizadas pelo antropélogo para convencer 6 leitor de que deve acreditar em seu rela to, Clifford cria uma taronomia de quatro “tipos” de autoridade etnogrifica: experiencia (cujo nome exponencial seria Malinowski), interpretativa (cujo melhor exemplo seria 1 obra de Geertz), dialégica e polifSnica (estlos que visariam expurgar do relato etnogrifico uma autoridade concebida como au- toritiria, na medida em que a voz do informante somente se fatia presente sob forma mediada ¢ editada pelo etnégrafo) © tema da autoridade etnogrifica é eacampado pelo proprio Geertz, que de objeto da investigagio de Clifford reivindiea, em seu livto Obras vidas (2002), uma posicio de interlocutor. Analisando as estratégias discursivas monstros sagrados da etnografia ~ Malinowski, Evans-Pritchard, avi: =,,Geertz propde que a estratégiasintese de ‘i desenvolvimento tipico dessa estratégia se daria em dois tempos: no primeiro, 0 etnégrafo estabeleceria, por meio de um minucioso relato incluindo descrigies detalhadas da paisa primeira mo poderia propicias, que que agora descreve; no segundo tempo, o etndgrafo desapareceria do texto, roduzindo, assim, no letor uma impressio de objet estado [4 como eu, veria exatamente isso que eu vi |, muitas vezes 86 uma observagio em parece ser-esse 0 10 Acces da tu: poi «polled enogria pticiamente dado 20 letor por meio da retirada cabal do ponto como atentar para a da circulagao desses, s politcas, sociais ¢ econémicas jedade do observador” quanto em Esse despertar para a gravidade d cespmai-se também para os dominios teéricos e metodolégicos da etnografia. Do to de vista tedrico, talvez 0 maior impacto seja a desconstrugao do conceit “be cleane central na histéria do pensamento antropolégico como base da seu problema central de pesquisa ~a “cultura do outro”. “Culru- 1°, agora, passa a ser vista com descontianga, como capaz de produzit “fiegGes homogeneizantes’,“tipifcag ses de cocréncia” que, entre outtos pro- blemas, falbeariam a forma como individuos especificos nativos dos universos colturais descritos vivenciariam seus c6digos ndo assim, entre outros riscos, veis de ocupacio pelo etndgrafo e a forma como € tratado pelo grupo sendo entendidos como dados do campo, como maneiras que 0 gru- po tem de dizer quem é por meio da relagio que estabelece com o pesquisador. ‘fo esses, assim, conforme sistematizamos em outro lugar (Coelho e Sin- dex, 2004), os quatro pontos centrais que constituem paradigma teérico que velo a ser conhecido omg posimoderiidade antropologic etnografia como género narrati a dimensiio politica das represent des- ) Sole op orecs: Apress & ico basi de Whig Clee 1 construsio do conceit de culture d 0 papel da sujeividade identidade do pesquisador na construgio do objeto e nas propras condigdes de possiblidade Ge relizagio do trabalho de campo. A eri da dra é consierado como “mar co bibliogrfico” desse movimento, 20 reunir um conjunto de enszios devotados 20 exame da dimensio lteriria do texto etnogrifico, deflagrando, assim, um ‘movimento profundamenteautorrefleivo no meio antropolégico, (Os impactos deste movimento, contudo, em que pese sua sofistcagio tebrica, sio dfceis de avaliat. Em seu texto agi incluido, Rabinow sugere hhaver uma superestimario do impacto efetivo das dscussSes critcas sobre a “autoridade etnogrifics”, recorrendo a uma colocagio inca de Renato Ro- saldo: “as tropas nio estio acompanhando” (2016, p. 338). Gostaria, agora, de apostat na metiforae transformat a afirmagdo em pergunta: as txopas de fato nio atenderam ao soar das comnetas? © que se esperava que Fizessem? © que deveriam ter feito? std certo que as tropas, 0 ouvir soarem as cometas, no se coloca- 4o de combate. Mas eu comando? Ou 0 atengio, ainda que ram em prontidio nemse lancaram ao ataque em terio de fato permanecido inteiramente indiferent terio escutado como um alerta 20 qual era preci sem qualquer reacio imediata? Como forma de elaborar essa reflexio, recorro, nas proximas duas segdes, trés etnografias intencionalmente escolhidas em duas cenas antro- poldgicas nacionais distintas: sua cena “de origem” — a norte-americana —, pot meio de duas etnografias de autoria de Lila Abu-Lughad; e sua cena “de chegada” (para os propésitos desta iniciativa de publicar A exmita da ultra fem portugués) ~ a brasileira ~, por meio de uma etnografia escrita a quatro mios, por Halo Silva ¢ Claudia Milito As duas etnografias de autoria de Lila Abu-Lughod aqui escolhidas foram publicadas com um intervalo de sete anos: Veiled sentiments, de 1986, € Writing women’s world, de 19932 Ambas descrevem a vida em uma aldeia beduina situada no Egito, na qual Abu-Lughod realizou extenso trabalho Ua primeira versio da anise aqui epresentada das duas emnografias de Abs-Lughod foi puilcada em Coetho (2010). 12 Accra cle: pod polis de ogni de campo, A primeira é uma etnografia de formato tradicional sobre hon- € amor (a tipica “etnografia-tese” comentada por Marcus no este livro); a segunda & um experimento etnogrifico em que a antropéloga procura, por meio de uma estrutura narrativa alternativa, retra- tar a complexidade das histérias vividas por seus “nativos”, a seu ver, no contemplada pela forma canénica de esctita do primeiro trabalho. lo para duas questées: em primeiro =xploragio da forma como sua “au- lugar, de forma naiix, como €3 toridade etnogrifica” é construida; em como material da relacio entre a identidade do etndgrafo ea cons- trugio de seu! vveremos de que forma a estrutura textual de Whiting women's com dois outros pontos caros a vertente pés- -moderna, longame: por Lila Abu-Lughod em sua introducior a desconsteucio da nogio de cultura a politica das representagies. por palmeirs de Alexandria, passando por fileins de construgdes cor de area idénticas, com varandas cheias de criancas, ho mulheres conversando 208 gritos com o¢ vizinhos e varsis cobertos por roupas malticolosidas que seca instantaneamente sob 0 sol Drilhante do Egito, Dov-reem seguida atavessar uma pequena ponte, que 35 comporta uma tnica fila de vei ema que o$ bedulnos moram nestas casas: nota 0 bilho Se wopase comers: Aprennso edit bral de Wing Care 18 tipico da prat em seus pul, um vestido comprido de cor brilhante preso ca coberta de preto. ‘do ise me foi mostrada. Esfoscei-me i, me perguntl se alin dia. Na primeira vex im gue gt esa paca ver tudo, para guardé- siamos a passarp essa a maneira como comecel a pe de poder cont qu a hava visto par o outoe que morsvam mais Eke adam rather nose: do mud da. Ao vohar das mas loudese baruhentas do Caito © de Alexania, mater reqs me sent alvin 40 ver {io A medida que nos aproximvamos dea em que morei durante 0 perodo de tabalho de campo, hava um pouco mais de vegeragio: Em seguida,vnka arma feita de tijolos brancos. Ere al gue ov morane (AbuLughod, 1986, pp. 1-3, xadugio e rifts meus) ‘Essa abertura redliza um movimento que pode ser lido & luz. das ques tes tratadas por Geers sob a\nibtica do “estat ld”. Temos uma longa e de- talhada descricio da puisagem, urbana passagem de abertura de Firth em Ws, ‘uar uma démarche que parte da mais autoral plena da etnégeafa no texto. Ab ‘uma paisagem como forma de mostrar 14 Acad cur: pods poli da emogafa tindo, desta forma, que qualquer um, se pegasse aquela estrada, teria visto 0 que ela viu. Nao se trata, portanto, do seu olhat; aquela estrada é assim, Apés trés longos parigrafos neste tom, a autora subitamente entra afitmando que alguém, cuja identidade iio nos € informada me foi mostrado”), a fizera ver aquilo da primeira vez em que trilhara aquele caminho, ja aqui deixando entrever sua familiaridade de quem o percorreu muitas vezes e tem uma elaborada lembranga do modo como sua relagao com a paisagem mudara (“me perguntei se algum dia aquilo me setia familiar”). Eo texto segue estrada afora rumo a uma cada ‘vex maior fami ridade, por vezes, literal ~ um coragio que se acelera, “nossos parentes”, a tia favorita, 0 apreco das pessoas por noticias. a uina descrigio da paisagem, Abu-Lughod, por fim, chega em casa (“era ali que eu morava”), estabclecendo, de uma vez por todas, que estos ld. Essa abertura parece nate em relacio a visio pés-mo- derma da etnografia como um texto, datando sua publicacio do mesmo ano da publicacio de Writing culture. Veiled sentiments, contudo, se, pot um lado, pode ser tomado como exemplo dessa forma de construgio de autoridade cetnogrifica (ov, se quisermos, também como exemplo da autoridade “inter- pretativa” de que fala Clifford, havendo, na “Introdusio”, belos exemplos de “fabulas de contato”, como quando ela pranteia a morte de um “paren- te"), pot outro, traz jd preocupagdes sintonizadas com esse movimento pés- -inodemo e fornece um abundante material para uma chicidacio do que é a natureza inevitavelmente posicionada do conhecimento etnogratic. Lila Abu-Lughod nasceu em uma familia de pai jordaniano e mie nor te-ameticana. Quando decidiu fazer sua pesquisa de campo no Egito, seu pai decidiu acompanhé-la, alegando ter também coisas a fazer pot li. Contra a ‘om os beduinos sua accitacio na Retornando brevemen je um lider local, a quem a etndgrafa se refere como “Haj”. Abu-Lughod fala do constrangimento que sentiu, sen- adi banco traseiro do carro, enquanto seu pai entrava em acordo com 0 eu sentimento era de “nfo estar sendo muito antropéloga” por deixar seu pai cuidar de sua entrada no campo. Sua telutincia devia-se ao fato de estar segura de que sua familiaridade com o mundo mugulmano Ihe permitira lidar sozinha com as dificuldades que encontratia por ser mulher. Retrospectivamente, contudo, Abu-Lughod reconhece 0 acerto da atitude de seu pai, uma vez que, naquele universo, See opar earn: Apes lio bain de Whig Cale 15 a respeitabilidade no provinha somente do comportamento pessoal, mas também da relacio com a sociedade mais ampla. Na visio de mundo bedu- ‘na, uma mulher a quem @ familia permitisse viajar sozinba e entrat em conta- to com estranhos por conta propria s6 poderia ser uma “renegada”, alguém de comportamento a tal ponto imoral que a prépria fama teria decidido abandoné-la 4 propria Gragas a 1 con- dicéo de “filha adotiva” pelo Haj, speda” em sua casa, proibindo, contudo que deixasse 0 acampamento, Outro problema, entio, se coloca: quais as consequéncias dessa restricio para 2 “‘representatividade” de seu estudo? Entretanto, a légica local rquivel: se cla deixasse o acampa: mento € softesse alguma agressio, eles seriam obrigados a revidar; se, 20 conttitio, fosse alvo de gentilezas, seriam obrigados a retribuir. E os bedui- ‘nos que a hospedavam nao quesiam incorrer em qualquer tipo de obtigacio por causa de sua “filha”... No ambiente doméstico, surgiam dificuldades de outra natureza. Com © passat do tempo, acostumados 4 sua presenga, os homens Ihe davam or- dens, acordando-a de madrugeda, juntamente com as demais mulheres da ‘casa, para que hes servisse ché. Como uma mulher adulta norte-americana, profissionalmente independente, podia aceitar esse tipo de tratamento? Abu-Lughod niio 0s trata como “percalgos” metodo- légicos, obsticulos a setem superados ou deseonfortos a serem suportados, mas discute 0 modo como integram indissoluvelmente sua entrada no cam- po, fechando algumas portas ¢ abrindo ontzas, de um modo que somente uma identidade feminina, adulta e solteira poderia fazer. Pois é apenas por isso (¢ pela atitade de seu pai) que ela pode vivenciar o cotidiano de uma familia beduina composta por um homem, suas trés mulheres © diversos filhos, bem como transitar entre os universos ferninino — dividindo 0 servigo doméstico (como ume mulher de origem arabe) ~ e masculino ~ conver- sando com os homens (como uma mulher aorte-americana ~ respeitados alguns limites, bem entendido). E é desse trinsito entre dois mundos tradi- cionalmente mantidos 4 paste que seu objeto de estudo ~ a poesia amorosa beduina ~ emerge. ‘Abu-Lughod conta-nos que estava acostumada 2 ouvir as mulheres recitarem, em meio a converses corriqueiras, poemas que falavam de amor. 16 A cern cleus: odin pola de epi Um dia, inadvertidamente, comentou sobre um desses poemas com 0 Hej, que reagiu de forma exaltada, exigindo que Ihe contasse quem o recitara. ‘Ao saber que fora a mulher de um de seus pastores, mostrou-se aliviado. A sazio de seu temor: 0 poema falava de desilusdes no casamento, ¢ ele teme- sa que tivesse sido recitado por uma de suas esposas. Ao contar 0 episédio para Gateefa, a primeira esposa do Haj, Abu-Lughod € repreendida por sua indiscrigio, pois esses poemas sio formas de expressfo afetiva, de natureza privada, ndo devendo ser repetidos fora do contexto em que sio recitados. Surge assim, deste trinsito pelos universos masculino e feminino, nografia. E como, a aio ser na condi¢io de “ mulher ¢ solteira — e “adotiva” — possivel por niio ser bed «que teria sua prépria familia -, Abu-Lughod poderia ter sido colocads em ‘um lugar que Ihe permitia andar entre mundos que, para um “nativo”, sio tio rigidamente separados? E de que outto modo seria possivel perceber a sgramitica desse tipo de expressio emocional ~ pequenos poemas recitados em meio a situages cocriqueiras? Vailed sentiments nos tr22, assim, um precioso exemplo da imbrica- co necessiria entre “to de pesquisa, Serve-nos, para efeitos desta exposiglo, a0 mesmo tempo ar uma forma de construgio da “a i 1 a natureza necessariamente posi Emtretanto, a propria Abu-Lughod diz-se insatisfeita com sua primeira nografia, ¢ da contiauidade a pesquis. s, trabalho no qual as implicagdes pol cultura que presidira a primeira etnografia enscjam com uma outra forma narrativa. ublicando Writing women’s worlds cas do conceito de 1a experimentacio Writing women’s worlds € um livro esteuturado em introdusio ¢ cinco ca- pftulos, ¢ deixado intencionalmente sem uma concluséo. A introducio con ‘caja ne- cessidade de desconstrucio é sustentada pela autora com base no argumento ue e888 nogio, ao orientar a descricdo etnogrifica, cria genetalizagoes € icages que produzem ilusdes simmultineas de coesfo ¢ coeréncia, ou seja, de que todos naquele grupo vivem tal questio de uma mesma maneira, sem conflitos, ambiguidades ou contradigées internas. Sobee wopasecomes Apraentso ei bia de Whig Cale 17 Essa critica do conceito de “cultura” justifica a estrutura narrativa do liveo: cada capitulo tem um titulo que remete a um conceito da teoria antro- pologica cléssica (“patrilinearidade”, “poliginia”), sendo composto por um Conjunto de historias sobre membros da aldeia beduina etnografada. A ideia Se ee eral (Wogicos(ea vida “tal como ela &. Um exemplo € 0 polisiaia, composto por uma série de episédios sobre pequenos dramas ¢ con! cotidianos vividos pelo Haj e suas teés esposas, co disputas por autoridade, prestigio, bens materiais ¢ afeto. O efeito provoca- do é desfazer a “fantasia” ocidental de que 0 “outro” que opta pela poligamia como modelo de casamento a vive de forma plenamente harménice. Ao contrisio, mostra a autora, o cotidiano é repleto de citimes, preferéncias afe- tivas ¢ hostilidades provocadas por mfnimas atitudes. Ao optar por escrever um “livro de hist6rias”, a intengio de Abu-Lughod é assim romper com a “palpabilidade” do conceito de cultura, que fixaria de forma indesejével as, fronteiras entre “nés” e “outros”. Na concepgio de Writing women’s words, essa problematizagio do con- ceito de cultura imbrica-se, desse modo, a0 mesmo tempo com a visio da etnografia como um género narrativo — sustentando essa experimentagio realizada pela autora ~ ¢ com a politica das representagées, uma vez que € 0 didlogo com as representagbes ocidentais sobre 0 mundo mugulmano que orienta as preocupagées lteririo-te6tico-politicas de Abu-Lughod. esses que envolvem segundo experimento etnogrifico escolhido € Voges do meio, de autoria de Hétio Silva ¢ Claudia Milito, publicado em 1995. O livro é resul- tado de inquietagdes produaidas pelo projeto “Se Essa Rua Fosse Minha”, voltado para a compreensio do universo dos “meninos de rua” e patroci- nado por quatro organizacées no governamentais (IBASE, FASE, IDAC ¢ ISER). £, assim, uma pesquisa que tem como marca de nascenga uma natuteza engajada, um projeto voltado para o embasamento de propostas de intervencao, distinto, portanto, das etnografias gestadas pela curiosidade intelectual do pesquisador. Sua natureza engzjada, cor o, niio €, como por vezes oo! ficativa para uma anilise rasa de pouca sofisticagio te6rica. Ao contririo: 0 102 Accs clue poe pli da emegrifa Como ce profeicamente, Ctin fer também com que Kipp, Crawford «Bogard anexassem um certificado de autenticidade a seu relato da ceriménia cee stannes, exons, and conditions pois sea teato seria questionade Pot inguém menos do que o eminente etnélogo norte-atnercane Henry Rowe seierans No texceiro volume do seu Hira and statistical information epeting tbe bso, contin and ropes of th Idian ties of the United States, Schooleraft (1851-57) incluiu um artigo de deas péginas sobre os ‘Mandan, se eumoua de David D. Mitchell, entio superintendents dos sssnntes indigenas em St Lots, que haviaarsado no comércio indigena 06 texritério vrrnan no norte do Missousi, nos anos 1830, O artigo de Mitchell concui “tntormagdes sobre seus [dos Mandan] costumes pecuiares podem #5 cncontratas 0 Diitio de Lewis ¢ Clark. As cenas desctitas por Catlin crhoram quase que isteiramente a fErdl imaginagio desse cavalheiro” (p.254)- Quando estava na Arnsica do Sul, Catlin soube da refutagio de seu € athe por Sehoolerafte Michell por intermésio ce wma carta esi Pot ‘Aleeander von Humboltesteoincentivoua escrever 20 principe ‘Maximilian coved, que também bavia passado um invemo ent Os Mandan, Antes Gque Catlin conseguise uma carta do principe cm sua defesa — ele a conseguin, ae mente, em 1866 ~, ambos, Schocleraft e Mitchell, morreram. Embors 8 ecrigo de Catin sja hoje mais ou menos aceita como um retrato preciso seers mnonia O-Kee-Pa (Bowers, 1950; ver, também, Matthews, 1873) 0 proprio Catlin foi arormentado, pelo resto david, pela duivida lancada sobre a acuidade de seu telato, Em 20 de fevereiro de 1787, uma Quarta-Feita de Cinzas, Goethe cesezeveu: “afina tlic aabou. As incontiveis hues de ontem noite foram mais um cepericalo de loucun, Basta vero ceraval romano pars perder quae

Você também pode gostar