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4 e Tempo Cidadania: Dilemas e Perspectivas na Reptblica Brasileira” Lucilia de Almeida Neves** Apresentagao Aanilise dos dilemas constitutivos da evolugao da cidadania no Bra- sil pode ser desenvolvida através de angulos e perspectivas diversas. No presente texto, a abordagem da questiio da cidadania € realizada tendo como eixo central de orientagao a problematic dos direitos que a constituem na sua dimensio classica. Dessa forma, énfase especial é dada A praxis (ou A aus€ncia), no cotidiano da histéria brasileira, dos direitos civis, politicos € sociais definidos por autores como Marshall ! ¢ Bobbio * como essenciais ao exercicio da cidadania em sua dimensio mais plena. A seqiiéncia evolutiva da conquista ou perda de direitos acrescen- tam-se andlises sobre projetos alternativos de cidadania (liberal, liberal- democratico € social-democratico) € sua implementagio ou no na moder na hist6ria republicana do pais. ‘Tais andlises esto inscritas em uma dindmica temporal, através da qual a evolugao hist6rica € apresentada de acordo com os marcos cronolégicos clas- sicos adotados pela maioria das obras sobre historiografia republicana. * Texto originalmente apresentado como conferéncia no XIX Simpésio da ANPUH. ** Doutora em Ciéncia Politica pela USP, Professora do Departamento de Hist6ria da PUG Minas € do Curso de Mestrado em Historia da UFMG. ‘TH. Marshall, Citizenship and social class, London, Cambridge University Press, 1950. 2, Norberto Bobbio, A era dos direites, Rio de Janeiro, Campus, 1992. Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 4, 1997, p. 80-102 80 Gidadania: Dilemas e Perspectivas na Repiiblica Brasileira Introdugao Uma caracteristica recorrente da Reptiblica, ao longo de sua hist6ria, € 0 permanente desafio referente & consolidagao da democracia. Na verda- de, a democracia no Brasil ea plena realizagao da cidadania apresentam-se como um enigma histérico a ser decifrado, pois a tradigio do pafs tem sido marcada por dois tipos de movimento: o primeiro refere-se a facilidade com que experiéncias democriticas institufdas foram interrompidas no decorrer do perfodo republicano; o segundo relaciona-se permanéncia residual parado- xal de praticas polfticas autoritérias em fases de regimes democriticos. Esse dilema histérico, que marca como tatuagem a Repuiblica brasi- leira, constitui uma das heranga mais dramaticas do passado colonial/pacri- monial do pais. Desta forma, retrocedendo-se as origens do Estado nacio- nal brasileiro, siio identificados uma série de obstaculos a plena realizagio da cidadania. Naquele perfodo era particularmente diffcil constitufrem-se formas de participagao politica e social ampliadas e extensivas ao mais amplo espectro da populagdo que compunha a primitiva sociedade civil brasilei- ra. Tais dificuldades relacionavam-se, exclusivamente, & situagiio de depen- déncia (auséncia de autonomia) politica e econdmica do pais. Neste sentido, nos primérdios da luta pela constituigdo da nacionali- dade brasileira, os esforgos para conquista ¢ estabelecimento dos direitos da cidadania confundiram-se com movimentos em prol da independéncia nacional. ‘Tal fato repetiu-se nas diferentes conjuragdes reivindicativas da li- berdade para o pais. Todavia, tornou-se paradigmatico com a Inconfidéncia Mineira, marcada pela rebeldia dos inconfidentes, que difundiram a idéia de reptiblica representativa, aliada a proposta de independéncia politica da nagio. Naquela conjuntura, alcangar 0 estatuto da cidadania significava, si- multaneamente, constituir um Estado Nacional independente, cujos ha- bitantes nao fossem simplesmente stiditos, mas sim cidadaos livres. Dessa forma, no Brasil, bem como nos demais paises latino-americanos, a forma- cdo da cidadania relacionou-se a um objetivo que se tornou permanente, a propria formagao da nacionalidade. Cidadania e identidade nacional, des- de entio, passaram a constituir dois lados de uma mesma moeda, pois como afirma Carvalho: Cidadania é também a sensagdo de pertencer a uma comunidade, de parti- cipar de valores comuns, de uma hist6ria comum, de experiéncias comuns. Sem esse sentimento de identidade coletiva — que conferem a lingua, a rcligido, a hist6ria — nao seria possivel a existéncia de nagdes democrati- 7 Artigos cas. A identidade nacional quase sempre est estreitamente vinculada aos direitos, sobretudo os civis. Quanto a questio da liberdade afirmativa da cidadania, a perspecti va que entio se projetava era a de que os cidadiios brasileiros se tornassem participantes da construgiio do destino de seu pafs através dos mecanismos classicos da reptiblica representativa. Dessa forma, entendia-se que a di mensio da cidadania poderia ser definida por dois aspectos de interagio necessaria: o referent a independéncia nacional ¢ 0 relativo a idéia de a constituigao da nova nagio vir a ser elaborada por representantes cleitos pela populacao do pais. Em outras palavras, a dimensio de cidadania seria estabelecida pelo conjunto de leis que regeriam os direitos ¢ deveres da populagiio e de um governo soberano. Todavia, nao se tendo realizado a utopia inconfidente no século XVIII, e tendo sido a independéncia nacional promulgada mantendo-se 0 regime monérquico, as dificuldades para a ampliagao dos direitos da cida- dania permaneceram. Mesmo porque monarquia ¢ escravidao (que é a ex- pressao maxima da anticidadania) conviveram até as vésperas da proclama- gao da Reptiblica. Estas realidades restritivas ao fortalecimento da sociedade ci dircitos do homem e do cidadio, mesmo tendo sido superadas pelo movi- mento da hist6ria, reproduziram-se sob novas roupagens ¢ sob renovadas formas de exclusdo no periodo republicano. Transmudaram-se em indelé- veis realidades, ora de dominagio patrimonial, ora de experiéncias divato- riais. Multiplicaram-se em praticas restritivas da autonomia cidada tais como: preconccitos raciais, mandonismos locais, restrigdes a liberdade de expres- sao, violéncias contra os dircitos civis ¢ diferentes formas de coergio polf- aos tica, amalgamadas a mecanismos de cooptagio ¢ manipulagio. Sempre houve, entretanto, resisténcias as praticas restritivas da ci- dadania. Muitas vezes com resultados que alteraram a secular légica auto ritdria. Intimeras conquistas inclusivas feriram a légica da exelusdo. Os movimentos democraticos, de forma recorrente, tém insistido em ser pro- tagonistas efetivos da histéria brasileira. Foi assim, por exemplo, na Primeira Reptiblica com 0 movimento operario; foi assim também com os democra- tas que resistiram a ditadura do Estado Novo e com a sociedade civil orga- 4, José Murilo Carvalho, Desenvolvimiento de la ciudadania en Brasil, México, Fondo da Cul- tura Econémica, 1995, p. 11. Gidadania: Dilemas e Perspectivas na Reptiblica Brasileira nizada que se fez presente no cenirio politico nacional nas décadas de 1950 € 1960. Foi assim também quando da resisténcia as limitagdes de dircitos implementada pela ditadura do periodo pés 64. Foi assim com a campanha por eleigdes diretas para a presidéncia da Republica. Todavia, a lgica da restrigao € da exclusao, como se fosse ela mesma um sujeito histérico, conseguiu intimeras vezes, aps recuos impostos pe- los movimentos da cidadania, articular-se sob novas bases ¢ formas, repro- duzindo-se a si propria e ferindo gravemente as praticas demoeriticas in- clusivas, Nesse proceso dialético de avangos ¢ recuos ¢ de enfrentamento de desafios, a histéria da cidadania no Brasil tem construido sua trajetéria. As perspectivas e hcrizontes futuros de sua consolidagao ¢ ampliagio séo dilemas do passado c do presente que nesse texto pretendemos analisar. Cidadania e direitos ‘Aanilise sobre cidadania incorpora pelo menos duas dimensdes. Uma reérica, essencial & conceituagao dos diferentes direitos que a constituem, ¢ uma histérica, que proporciona uma melhor compreensao do processo constitutivo desses préprios direitos. Como proceso em movimento per manente, a cidadania contém dimensfo utépica que tem na ampliagao dos direitos includentes do cidadao seu horizonte sempre atualizado. Dessa forma, como afirma Margarida Vicira, a cidadania, como vivéncia histérica, como resultado de lutas, como processo, contém em si mesma a idéia de cxpansio (...) Mais que um ponto de deslocamento talvez pudéssemos usar a imagem de um horizonte que se amplia, abarcan- do novos desejos ou carecimentos, € que se contrai frente a obstéculos.* A definigao ea constituigao dos direitos da cidadania, portanto, rela- cionam-se a processos hist6ricos nZo-lineares. Ou seja, através de um mo- vimento dialético de avangos e recuos, de expansiio ¢ compressao, mas de dimenso hist6rica visiondria de um futuro alternativo, tém sido definidos € consolidados os direitos basicos da cidadania. Por analogia & proposigio de Lefort, a cidadania, tal qual a democracia, € um processo, uma criagdo ininterrupta de novos direitos.’ 3, Margarida Vieira, Semeando democracia. O projeto decidadania do PSB (1945-1964), Niter6i, UFF, 1994, 5 Claude Lefort, A Invengdo demoerdtica. Os limites do totalitarisma, Si Paulo, Brasiliense, 1987. Artigos De fato, a conquista progressiva dos dircitos da cidadania vincula-se a.um movimentar ativo dos sujeitos histéricos atuantes nas diferentes con- junturas e tempos que constituem o proceso civilizatério. Processo que, apesar de imtimeros percalgos, tende a ser inclusivo e nao exclusivo. Nesta linha de raciocfnio, T. H. Marshall foi autor pioneiro na con- ceituagao da cidadania. Em 1950, publicou um livro, Cisisenship and Social Class, que se tornou referéncia classica obrigatéria para tantos quantos se dedicam a estudar a cidadania como elemento integrante de um processo histérico, Para Marshall, os direitos da cidadania sio de trés tipos: civis, sociais € politicos. Os direitos civis sio aqueles fundamentais a liberdade, a vida, & igualdade formal de oportunidades ¢ & propriedade. Os direitos politicos relacionam-se a participacao politica, a liberdade de expressio, ao direito de votar e ser votado, 8 liberdade de organizacio dos cidadaos. Ja os direi- tos sociais vinculam-se A idéia de justiga social ¢ de redugao das desigual- dades. Dentre estes destacam-se 0 direito 4 educagao, a satide, ao trabalho, 8 protegao aos trabalhadores. Os direitos civis relacionam-se as lutas do liberalismo classico ainda nos séculos XVII ¢ XVIIL As obras de pensadores como John Locke, Stuart Mill, Benjamin Constant e Tocqueville sto exemplares no que se refere ao tratamento dessa questo. A conquista ¢ legitimagao de tais direitos pro- saram-se concomitantemente a expansao da economia de mercado e, portanto, a efetiva implantagao da ordem capitalista Jé a conquista dos direitos politicos, se considerada mediante uma perspectiva de evolugao histérica basicamente linear, como faz Marshall, pode ser identificada como sucedanea temporal da conquista dos dircitos civis. Seu apogeu acompanha os desdobramentos de longo prazo da Revo- lugao Francesa, aprofunda-se com a liberal-democracia e consolida-se com a expansio do direito ao voto nos séculos XIX ¢ XX. Os direitos sociais, por sua vez, tem nas contradigdes da ordem capi- talista o primeiro patamar de luta por sua conquista. Ao longo do século XIX, na Inglaterra ¢ em outros pafses da Europa ocidental, trabalhadores, bem como pensadores socialistas, lutaram, cada um a seu modo, objetivando a conquista de direitos sociais. Os reformistas, sem alterar a ordem estabele- cida, pretendendo “aperfeigoar” o sistema. Os socialistas dos mais diferentes matizes, dentre os quais se destacaram os anarquistas e marxistas, preten- dendo superé-la e substituf-la por uma nova ordem econémiea € social. c oe Cidadania: Dilemas e Perspectivas na Repiblica Brasileira As lutas por direitos sociais desdobraram-se ao longo da segunda metade do século XX e culminaram com a implantagao do Estado de Bem Estar Social (Wellfaire State) em varios paises centrais. Essas experiéncias vigoraram até a década de 1980, quando importantes pafses da Europa vol- taram a adotar como orientagio governamental predominante 0 modelo de mercado, mais restritivo aos direitos sociais. Norberto Bobbio, que mais recentemente tem se dedicado ao estu- do da democracia e dos direitos que a constituem, também compreende os direitos dos homens como sendo hist6ricos, ou seja, nascidos em certas circunstincias, caracterizados por lu- tas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes € nascidos de modo gradual, nem todos de uma vez e nem de uma vez por todas. Bobbio classifica os dircitos civis e politicos como sendo de primeira geraco € os sociais como sendo de segunda. A eles acrescenta um elenco de novos direitos, os ecolgicos, que considera como de terceira geracio. ‘Todos nascidos “quando devem e podem nascer”.” J4 Wanderley G. dos Santos atenta para outra questo, também per- tinente a abordagem hist6rica dos direitos da cidadania. A de que nenhum dos patamares de conquistas alcangados deva se petrificar € se tornar im- permeavel a novas conquistas ¢ A ampliag&o dos préprios direitos. Dessa forma o autor afirma que Se € verdade que diversos direitos podem ¢ devem ser explicitamente res- guardados constitucionalmente, é indispensavel que o catélogo daf resul- tante nfo se converta em poderoso obstéculo constitucional a incorporagao de novos direitos.* A relagdo que se estabelece é direta. Cidadania e processo histérico de conquista e ampliagdo dos direitos tem um carfter dinamico. Os direi- tos classicos sio um patamar, jamais um fim. Nesse sentido, a referéncia & realizag&o da cidadania é simultaneamente uma recusa a concepgdes con- servadoras que pretendem estabelecer mecanismos de controle da poten- cial extensio dos direitos j4 consolidados. Bem como a concepgoes regres- ®. Norberto Bobbio, A era dos direitos, op. © 2Id., ibid., p. 6. * Wanderley G. Santos, Cidadania e justiga. A politica social na ordem politica brasileira, Rio de Janeiro, Campus, 1979, p. 78. +p. 5. Artigas sivas, to comuns nos tempos de globalizagiio, que pretendem reduzir aque- les direitos. A concepgaio mais adequada de evolugdo dos direitos dos homens é aquela que compreende 0 dinamismo como uma categoria intrinseca ao processo histérico ¢ que identifica os direitos da cidadania como nao sendo estanques na sua conceituagao e aplicabilidade. Isto é, jamais podem ser obstaculos & ampliagao da propria cidadania. Outra interessante concepgio sobre direitos da cidadania € apresen- tada por Sérgio Abranches. Para 0 autor, existem duas matrizes politicas classicas inspiradoras dos modelos de cidadania da modernidade: uma co- letiva (polis grega) ¢ outra privatista ou individualista (cio/tas romana).? utores como Rousseau, Marx e os socialistas em geral vinculam ‘o coletivista grega. Acentuam idéias que priorizam os direitos co- letivos ¢ sociais, valores da solidaricdade ¢ da igualdade. J4 a tradigao pri- vatista vincula-se corrente de pensamento liberal, representada por pen- sadores como Adam Smith, Locke, Voltaire ¢ Tocqueville, que acentuam 08 direitos civis como sendo 0s direitos prioritarios do homem. Alguns desses autores, como Locke, chegam inclusive a consideré-los como direitos inatos. Entretanto, qualquer que seja a concepgao predominante, os direi- tos da cidadania sao inscritos no seu tempo € consolidam-se como resulta~ do da implementagio de projetos politicos culturais diferenciados entre si, algumas vezes complementares, outras vezes alternatives, contraditérios. Na roda da hist6ria: os projetos alternativos de cidadania Acidadania, portanto, é um produto histérico que desabrochou grada- tivamente, através de uma rede complexa de relagdes € interagdes entre doutrinas, correntes de pensamento, cultura, Estado e sociedade civil. Por tanto, ndo pode ser entendida isoladamente. Sua existéncia est4 enredada em tempos especificos e nos processos econdmicos, sociais e politicos pe- culiares a cvolugao da civilizagao humana. A cidadania também se caracteriza por possuir um atributo telcol6- gico, pois busca um horizonte alternativo ao presente dado. A construgao da cidadania insereve-se numa forga motriz transformadora que faz do ci- dadao um sujeito da histéria na busca de ampliagao da propria cidadania. °, Sérgio Abranches, “Nem cidado, nem homens livres: 0 dilema politico do individuo na ordem liberal democritica", Dados, vol. 28, n” 1, Rio de Janeiro, 198: » Pp. 5-25. 6 Cidadania: Dilemas ¢ Perspectivas na Reptiblica Brasileira Como processo histrico, a construcao, transformagio ¢ ampliagao da cidadania tém-se orientado por projetos diferentes ¢ algumas vezes con- tradit6rios de conquista ¢ consolidagao de direitos. Na verdade, a hist6ria da humanidade revela o embate de projetos de cidadania que se distinguem pela énfase maior ou & liberdade ou a igualdade. A perspectiva desta andliise € de, através de uma seqtiéncia aparen- temente linear, apresentar os diferentes projetos de cidadania que orienta- ram historicamente a sua prépria construgio ¢ ampliagao. Ou seja, identifi- car os horizontes, os fins que motivaram as agdes dos sujeitos histéricos. ‘Além disso, parafraseando Bobbio, ir além da histéria narrativa, buscando compreender 0 sentido dessas agdes e de scus resultados." Orientando-nos pela proposigao de Abranches, segundo a qual existem duas matrizes de cidadania — a coletiva (grega) ¢ a privatista (romana) —, consideramos serem os seguintes modelos seqiienciais os que melhor re- presentam a dindmica evolutiva da cidadania ao longo do moderno proces- 50 civilizatorio: o modelo liberal, o liberal-demoeratico ¢ 0 social-democra- tico. Eles serao descritos a partir de agora. O modelo liberal © modelo liberal caracteriza-se, prioritariamente, pela sobrevalori- zagio dos direitos civis ou individuais. Dessa forma, a soberania publica apresenta-sc limitada pela soberania individual. Em outras palavras, em primeiro lugar situa-se 0 individuo e, em segundo, 0 Estado — que se deve submeter aos interesses individuais. Inserido na tradi¢ao jusnacuralista, esse modelo identifica os direitos civis a vida, & liberdade a propriedade, como sendo inatos ou naturais ¢, conseqiientemente, prioritdrios, fundamentais. O respeito aos mesmos insere-se na priorizagio da liberdade huma- na, que nao deve encontrar quaisquer obstaculos & sua efetivagao cotidia- na; o Estado deve restringir ao maximo o ambito de sua atuagio, pois qual- quer centralizacao de poder atinge a esséncia da liberdade c tende a ferir os seus direitos fundamentais. A conseqiléncia natural de tal concepgao é a de que 0 Estado mini- mo € a forma ideal para a preservagio dos direitos civis. Liberdade ampla e Estado limicado em sua competéncia sao pressupostos para o funcionamento ideal dos mercados econdmicos ¢ politico, que naturalmente regulariam avida em sociedade. W Norberto Bobbio, A era dos direitos, op. cit., p. 50. 87 Artigos A politica, dessa forma, é 0 espago prioritério da representagao ¢ da garantia da livre organizagao dos individuos que constituem a sociedade civil. Toda e qualquer participagao vincula-se 4 dinamica da representati vidade constituida por garantias ao pluralismo, a rotatividade no poder, & Tenovagiio periédica dos mandatos eleitorais. Trata-se, efetivamente, de uma ordem institufda por um contrato politico-social, de tempos em tempos reavaliado ¢ renovado. A definicio da legitimidade do poder politico situa- se no consentimento dos homens, por natureza livres. Em outras palavras, © poder politico é criado pela sociedade Para garantir a limitagao da competéncia estatal ¢, portanto, a liber dade, institui-se a triparticiio de poderes na ordem politica. Trata-se de evitar posstveis arroubos centralizadores por parte do Estado, garantindo-se uma regulacao natural da vida em sociedade. O modelo liberal, historicamente (pensando-se nos paises centrais), sucedeu a centralizag3o mondrquica e objetivou preservar a sociedade dos excessos da autoridade estatal. Abriu caminho com dificuldades, pois aos seus fundamentos individualistas contrapOs-se a concepeao organicista de que no Estado centralizado ¢ forvalecido situa-se a base da paz social A efetivagao desse modelo nao proporcionou, entretanto, a amplia- $4o dos direitos civis para todos os segmentos da sociedade. A representa- 40 politica também se limitou a setores sociais especificos. Todavia, ape- sar de sua aplicabilidade limitada, correspondeu a um avango no processo civilizatério includente. O modelo liberal-democrético O modelo liberal-democratico nasce das criticas as limitagées do modelo liberal. Este é caracterizado por restrigées a cidadania plena, pois se em sua aplicagao & cidadania civil, teoricamente, é valido para todos, a cidadania politica limita-se aos possuidores de determinada renda, a seg- mentos especificos da sociedade. A proposta liberal-democritica apresenta-se nao como alternativa ao regime representativo individualista, mas como seu possfvel e desejado aperfeigoamento, Trata-se de ampliar os direitos da cidadania politica ao Conjunto da sociedade civil, reconhecendo 0 cidadéo como um ser politico atuante (postura ativa) € nZo como mero consumidor de bens ¢ direitos (postura passiva). 88 Cidadania: Dilemas e Perspectivas na Reptiblica Brasileira De acordo com Norberto Bobbio, a linha de desenvolvimento da democracia nos governos representativos pode configurar-se em duas di- regdes: no alargamento gradual do direito de voto e na multiplicagao de 6rgaos representativos da sociedade civil. Em um ou em outro direciona- mento, 0 processo de democratizacio “consiste numa transformagao mais quantitativa do que qualitativa do regime representativo”," objetivando afirmé-lo através de seu aperfeigoamento. Dessa forma, no regime liberal-democratico, a democracia represen- tativa tende a se aprofundar e a se ampliar através de maior extensio e, em tiltima instncia, da universalizagio do dircito de voto. Por sua vez, a repre- sentatividade também tende a ultrapassar os limites das instancias politi- cas institucionais ¢ a contaminar a sociedade civil. Varias instancias eleito- rais se fazem presentes na vida comunitéria: escolas, universidades, con- dominios, sindicatos, associagdes € organizacdes da juventude, todos con- taminados “pela febre eleitoral democratica” O conflito institucionalizado através da via eleitoral. Torna-se efe- tiva a dindmica através da qual o dissenso, essencial 4 vida democritica, passa a ser elemento natural na vida politica Dissenso e pluralismo constituem suportes basicos da ampliagaio demo- critica que se processa com a liberal-democracia. Para sua expressiio sao for- mados intimeros canais institucionais, dentre os quais os partidos, instramen- tos privilegiados de participagio politica, especialmente no jogo eleitoral. Em outras palavras, a ampliagao dos direitos politicos e das garantias civis inscreve-se na dinamica evolutiva do processo histérico, do devir sem- pre renovado. Liberdade ¢ ampliagao de direitos sao ideais diuturnamente perseguidos na construgdo histérica da cidadania, Os primeiros direitos, ainda restritos, préprios ao liberalismo, foram tao-somente pontos de parti- da. A eles acoplaram-se novos direitos civis e politicos e, finalmente, os direitos sociais tornados efetivos na era da Social- Democracia. O modelo social-democritico Os direitos do homem sao, de fato, um fenédmeno histérico-social. A medida que a vida em sociedade tornou-se mais complexa € os processos produtivos mais socializados, novas demandas por direitos se constituiram, Ou seja, ocorreu, como bem acentua Bobbio, a passagem dos direitos da liberdade para os direitos politicos e, em seguida, para os sociais. "Norberto Bobbio, “Democracia”, in Disiondrio de Politica, Brasilia, Ed. UNB, 1986. 89 Artigos Os direitos sociais séo por esséncia multiplicativos e diversificado: abrangem desde os direitos de protecao ao trabalho até os de garantia a satide € & cducagio. A luta por eles comegou no século passado, estendendo-se para o século XX. Entretanto, mais do que pela sua abrangéncia, uma nova caracterfs- tica os torna diferenciados. Com sua adogao, uma inovada concep¢ao de precedéncia foi constitufda: na Social-Democracia, estado por exceléncia de sobrevalorizagio dos direitos sociais da cidadania, estes tiltimos preva- lecem sobre os direitos individuais. Torna-se mais descjavel a protegao social do que a liberdade individual. Como conseqiiéncia, a intervengao ativa do Estado se amplia e suas fungdes se multiplicam. Ou seja, o Estado passa a ser tanto protetor da sociedade como gerenciador de politicas ptiblicas. As mais contundentes criticas dos liberais 4 Social-Democracia con- centram-se exatamente na hipertrofia da maquina e das fungdes estatais que ocorre nesse regime. De acordo com os defensores da prevaléncia das liberdades individuais, tal distorgio restringe automaticamente as liberda- des civis, por eles consideradas como direitos inatos da cidadania, Além disso, potencialmente, estimulam solugées autoritarias e paternalistas. Outra questio que, segundo os liberais, também fica em aberto na Social-Demo- cracia, € a da governabilidade. Isto é, as pressdes sociais podem tornar-se inadministréveis numa ordem que combine democracia social com demo- cracia politica. O primado da igualdade de oportunidades sobre a liberdade € outra caracteristica da Social-Democracia, regime no qual os direitos da cidada- nia referem-se, prioritariamente, aos critérios da justiga distributiva — vale dizer, a eqiidade na distribuigao dos beneficios ptiblicos —, provocando uma ampliagao das demandas da sociedade civil ¢ sua maior organizagao. Em decorréncia, quando a Social-Democracia apresenta-se como suced4 nea da liberal-democracia, a democracia politica torna-se fluxo para demo- cracia social. Nesse caso, seguindo a dinamica jé iniciada de extensio da participagio, sio ainda mais ampliadas as instancias de decisdio — antes quasc exclusivas do espago institucional da grande politica (Estado) — para 0 campo da sociedade civil (empresas, bairros, fabricas, escolas). Finalmente, cabe ressaltar que a conexao entre a teoria dos direitos (idéias que orientam sua formulagao) e a pratica (transformagdes histéricas que os efetivam) sempre existiu. Todavia, a evolucio linear, apresentada tdo-somente como mero recurso didético por este texto, nem sempre tem 90 Cidadania: Dilemas e Perspectivas na Reptiblica Brasileira cotrespondido & realidade (especialmente nos paises terceiro-mundistas). Mesmo nos patses centrais ocorrem idas ¢ vindas que demonstram no ser a hist6ria simples seqiiéncia légica de processos ¢ temporalidades. Somente para efeito de ilustragao, o superdimensionamento do Es- tado nas experiéncias social-democriticas provocou uma forte reagio libe- ral na Europa, em tempos atuais. Em decorréncia deste fato, na década de 1980, muitos pafses europeus abandonaram praticas “socializantes” em prol da implementagao das tradicionais regras liberais do mercado politico ¢ econémico. Por outro lado, em pafses de passado colonial, a evolugiio da conquista dos direitos da cidadania nao foi de forma alguma retilinea. A transigao, na maioria desses pafses, no ocorreu de forma classica — ampliagao dos di- reitos civis sucedida pelo crescimento dos direitos politicos ¢, por fim, pela conquista dos direitos sociais. A histéria de cada um deles é espectfica. O caso brasileiro, foco da andlise deste texto, confirma essa afirmagao. No Brasil, tal evolugao nao aconteceu. Paradoxalmente, como demonstraremos a seguir, a conquista de direitos sociais deu-se cm uma conjuntura — no primeiro governo Vargas — na qual havia restrigao efetiva dos dircitos civis e politicos." Desatios e perspectivas da construgao da cidadania no Brasil No Brasil, a construgio efetiva da cidadania apresenta-se como de- safio recorrente ¢ permanente. Algumas caracterfsticas estruturais da rea- lidade sociopolitica brasileira podem ser consideradas fundamentos de tal situagdo. De fato, a realidade brasileira € marcada por profunda cisao entre 0 pais legal ¢ 0 pais real. Tal cisao pode ser inferida, a titulo de exemplo, do ditado popular que diz: “a lei existe para no ser cumprida”. Outro problema estrutural diz respeito & permanente primazia do Estado sobre a sociedade civil. No Brasil, como ocorre em geral em pafses de passado colonial ¢ de tradigao ibérica, revela-se, constantemente, no decorrer de sua historia, uma tendéncia a hipertrofia do Estado. Ora, sabe- se que um dos elementos fundantes da cidadania plena é a sociedade civil. Ou seja, sem uma sociedade civil forte ¢ atuante, a cidadania, na abrangéncia dos direitos que a constituem, vé-se ameagada. ©, Luetlia de Almeida Neves, “Democracia, reptiblica ¢ cidadania hoje”, Audlise e conjumtu- 7a, vol. 2 € 3, Belo Horizonte, Fundagio Joao Pinheiro, 1989, pp. 341, 342 a Artigos Outra situagio paradoxal refere-se A convivéncia, também recorren- te, entre liberalismo ¢ autoritarismo. Tal convivéncia tem-se manifestado em situagdes ¢ conjunturas diferentes ¢ €, no minimo, um sério obstaculo a solidificagao de direitos. Assim ocorreu, por exemplo, na Reptiblica Ve~ Iha, quando, durante a vigéneia de uma ordem liberal, reproduzia-se o au- toritarismo oligérquico. Outra situagao — contemporanea — relaciona-se ao fato de que, para implementar reformas de inspiragao liberal, os gover- nantes no se tém furtado a utilizago de métodos tipicamente autoritérios As andlises sobre a cidadania na Republica brasileira reforgam ral assertiva, Margarida Vieira apresenta-as como se enquadrando nas quatro linhas de abordagem descritas a seguir.? A primeira é a afirmativa da auséncia da cidadania no Brasil. Destaca 0 precério espirito associativo do povo brasileiro ea incapacidade das clites de se deixarem enredar por uma concepgao e por uma pritica democrati- cas. José Murilo de Carvalho, em seu livro Os Restializados, segundo a auto- ra, € quem traduz melhor tal orientagao, com sua imagem do povo bestiali- zado, assistindo as transformagdes conduzidas pela clite, na Primeira Re- ptiblica. A segunda linha € desenvolvida por Roberto da Matta no livro A casa ea rua (espago, cidadania, mulher e morte). Para este autor, a chave expli- cativa da precariedade da cidadania no Brasil rclaciona-se ao fato de que na socicdade brasileira convivem dois tipos de orientages: a primeira, marcada por uma forte tradigio tomista e centralizadora e a segunda, individualista, herdeira da tradigao liberal Uma terceira abordagem ressalta a questao da cidadania regulada implementada, especialmente, apés 1930. Sua principal caracteristica é ambjgua, pois a participagao dos cidadaos na politica ¢ na vida em socieda- de se dé sob 0 controle do Estado. Para a autora, 0 principal representante dessa concepg%o € Wanderley G. dos Santos, que claborou 0 conceito de “cidadania regulada”, apresentado no livro Cidadania ejustiga. A politica social na ordem Brasileira Uma quarta abordagem, a qual Margarida Vieira se vincula, demons tra que a construgao da cidadania é um processo histérico, marcado por lutas sociais ¢ politicas. Por avangos € recuos na conquista de direitos civis, poli- 'S. Margarida Vieira, “Dimensdes definidoras do projeto de cidadania do PSB”, in Barbosa Gustin & Margarida M. Vicira, Semeando democracia, A trajetéria do socialismo democriti- co no Brasil, Contagem, Palesa, 1995, pp. 247-252. 92 Cidadania: Dilemas ¢ Perspectivas na Repiiblica Brasileira ticos e sociais e por “vivéncias diferenciadas de direitos, maiores para uns, menores para outros”."* De acordo com a autora, portanto, a cidadania, no caso brasilciro, € uma permanente combinagio de afirmagiio ¢ negagdo de direitos, de con- quistas € derrotas. Dessa forma, € um horizonte que se amplia em fases de avango da democracia ¢ que se comprime quando do predominio do auto- ritarismo, em fases de sedugao por governos centralizadores. Aanilise da evolugio ¢ recuo das conquistas da cidadania na Repuibli- ca Brasileira, que buscaremos reconstituir a seguir, orientar-se-d pelo objetivo de demonstrar que a ambigiiidade (permanéncia de praticas autoritérias em perfodos demoeréticos) e a auséncia de linearidade no processo de avango das conquistas da cidadania so carateristicas recorrentes de nossa hist6ria. Republica Velha: cidadania restrita e excludente Do ponto de vista do exercfcio dos direitos, a primeira fase dos go- vernos republicanos no Brasil apresentou como caracteristicas expressivas a exclusdo € a restrigdo. Dessa forma, os direitos civis nao se encontravam consolidados e nem eram afeitos 4 maioria do povo brasileiro. Os direitos politicos cram restritos, uma vez que segmentos expressivos da populagao brasileira nao exerciam o direito politico de poder votar e ser votado. Os direitos sociais, por sua vez, inexistiam, e a populagao trabalhadora ficava submetida a selvageria da lei de mercado. A Repiiblica brasileira, em seus primeiros anos, foi marcada pelo predominio de uma concepgio federalista, que durante algum tempo con- viveu com 0 idedrio positivista predominante nos anos imediatamente sub- seqilentes 4 Proclamagao da Repiiblica. Esse idedrio posteriormente se reproduziu, sob novas bases, no perfodo autoritdrio pés 30 O federalismo liberal era restritivo. Predominava o preceito indivi- dualista, que reprimia qualquer forma de articulagao de sujeitos politics coletivos e que, portanto, exclufa 0 povo do espaco ptiblico. Por outro lado, como ja constatado, o direito individual ao voto também era limitado. As mulheres, os analfabetos ¢ os militares de baixa patente nao voravam. Tais restrigdes reduziam cnormemente a populagio eleitoralmente ativa do pats, uma vez que as mulheres conformavam expressivo segmento da popula- gio ¢ os trabalhadores ou eram imigrantes e, portanto, estrangeiros, ou eram, “Id., ibid., p. 251. 3 Artigos na sua maioria, descendentes de escravos ¢ majoritariamente analfabetos. Essas restrigdes politicas cram tao-somente um retrato ampliado da exclu- sto pela raga, pelo género e pelas condigdes sociais que grassava nos pri- meiros tempos republicanos. Além disso, o sistema partidario regionalizado (os partidos eram en- to estaduais) reforgava uma prtica politica elitizada e oligarquizada. Eram comuns priticas cleitoreiras de “voto de cabresto”, “eleigao a bico de pena”, todas controladas pelo coronelismo ¢ mandonismo locais. Os direitos civis eram privilégio dos segmentos mais abastados, que tinham, com exclusividade, acesso 4 propriedade ¢ também ao saber. Os procedimentos de aplicago das leis:que garantiam o direito & vida (enten- dido, nesses casos, também como direito a sobrevivéncia com dignidade) nao eram universais. Desde entao, jé se confirmava uma caracteristica per- manente da Republica Brasileira: a da disjungao entre o pais legal ¢ a rea~ lidade restritiva aos direitos da cidadania. A questao social, de relacionamento estrito com a luta pela conquis- ta € ampliagao dos dircitos sociais, foi definida por politicos ligados 4 oli- garquia detentora do poder como sendo uma questio de policia. De fato, durante a Republica Velha, com a implantagao das primeiras indtistrias € com a entrada no pais de um grande contingente de trabalhadores imigran- tes, a busca pela realizagao dos direitos sociais adquiriu uma dimensao conflituosa em relagao & ordem estabelecida, que nao hesitou em recorrer, de forma permanente, a coergao para reprimir os movimentos sociais. Nao foi sem conflitos que segmentos do proletariado brasileiro ten- taram conquistar leis de protegio ao trabalho, salarios justos ¢ melhores condigées de trabalho. Nao foi também sem conflitos que se relacionaram com o mundo do capital. A questao social, através da luta dos trabalhadores que faziam greves ¢ se organizavam em sindicatos, foi posta, de forma con- tundente, na ordem do dia. Tal fato apresentava-se como um estorvo para uma ordem politica na qual a exclusdo era marca caracterizadora. Cidadania controlada (1930 - 1945) A Republica brasileira entre 1930 ¢ 1945 apresentou algumas carac- teristicas inovadoras em relacio ao perfodo anterior, especialmente no que se refere aos direitos sociais que, confundidos com direitos trabalhistas, se consolidaram nesse periodo. 94 Cidadania: Dilemas ¢ Perspectivas na Repiblica Brasileira Em contraposig&o ao predominio das priticas liberais da Reptiblica Velha, 0 novo governo implantado no Brasil em 1930 orientou suas agdes para a constituigao de um Estado organico, hipertrofiado, centralizador, modernizador ¢ assistencialista (Estado-providéncia). Para a consolidagao desse Estado maximo, bastante diferente do Estado mfnimo préprio ao modelo liberal, foram adotadas medidas intervencionistas ¢ planificadoras. As fungdes governativas nesse perfodo adquiriam, portanto, caracte- risticas peculiares ao exercicio de um paternalismo autoritério, implemen- tado em consonancia com uma concepgio tutelar, que se orientava por objetivos simultaneamente modernizantes € conservadores. Modernizagao das relagdes sociais ¢ do proceso econdmico € con- servagdo da ordem capitalista j4 estabelecida no pats. Essa dinamica de modernizacao conservadora foi sustentada por politicas ptiblicas que, es- pecialmente apés 1935, passaram a utilizar simultaneamente recursos co- ercitivos ¢ cooptativos. O periodo em foco foi efetivamente singular: nele foram ampliados os direitos sociais restringidos os direitos polfticos ¢ ci- vis. Dessa maneira, a evolugio linear da cidadania nao prevaleceu no Brasil ¢, de forma aparentemente contraditéria, a auséncia de liberdade de ex- pressio e de participagio politica conviveu, durante 0 perfodo do Estado Novo, com instrumentos legislativos bastante modernos de protegao ¢ as sisténcia ao trabalhador. O movimento que instituiu um novo governo no Brasil em 1930 foi justificado por uma retérica moralista ¢ liberal que propunha o saneamen- to da politica ¢ a continuidade da ordem representativa. Todavia, os desdo- bramentos conjunturais que sucederam a chegada de Vargas ao poder re- publicano foram orientados tanto por um rompimento com os preceitos ¢ priticas liberais como pela inovagao das regras de se fazer politica. No perfodo anterior a 1930 governantes ¢ proprictirios desconheci- am 0 sujeito coletivo como agente construtor da cidadania mas, ap6s a pos- se de Vargas, através de uma agio deliberada, 0 Estado passou a reconhecé- lo, inclusive porque nos primeiros anos da década cle se mantivera muito ativo; ao mesmo tempo o Estado empenhou-se para constituir ¢ implemen- tar mecanismos que limitassem a agao auténoma daquele sujeito coletivo. ‘esse sentido, a tatica principal adotada pelo governo foi a de, recorrente- independente por parte da so- mente, tentar impedir qualquer ago mai ciedade civil os Artigos Se, antes, a cidadania era excludente, no pés 30, de acordo com 0 cientista politico Wanderley G. dos Santos, foi ela regulada sem se tornar abrangente."’ Nesse sentido, a nova ordem politica constitui-se, simulta- neamente, por aspectos de rompimento com a ordem liberal anterior ¢ tam- bém por elementos de continuidade. Na Republica Velha, a coergao era a principal resposta as reivindicagdes de direitos sociais; apés 1930, o proces- so repressivo sera articulado sob novas bases, mais modernas, ancorando- se, inclusive, na legislago ordinaria Quanto a questo dos direitos civis € politicos, o governo, imediata- mente apés 1930, adotou uma linha de ago que, gradativamente, acabou no 86 por limitd-los, mas também por esmagé-los. Nao foi, todavia, sem resisténcia por parte da sociedade civil, dos liberais, dos democratas e dos comunistas que a concepgao de unidade organica da sociedade ¢ a centra- lizagao autoritéria acabaram por predominar naqueles anos. Na verdade, se antes da ascensio de Vargas 0 exercicio dos direitos politicos cra restrito € conformava a via de exclusao, no decorrer da década de 1930, apesar da resisténcia de segmentos expressivos da populagao, tornou-se praticamen- te inexistente. Assim, 0 processo politico no qual se negou legitimidade a direitos consagrados pelos principios da liberal-democracia, foi o mesmo que hipervalorizou os direitos sociais através da utilizagao, em larga escala, de mecanismos que buscavam a inchusao sob controle. Uma pritica politica negadora do pluralismo e da representativida- de sucedeu a dispersio do livre jogo de mercado ¢ da concorréncia politica tipica da ordem liberal. Uma prdtica exaltadora da unidade ¢ da homoge- neidade, que passaram a ser identificadas como sindnimos de eficiéncia ¢ progresso. O governo apregoavaa idéia de que uma sociedade unida pela busca de objetivos comuns nio precisava criar canais de representatividade para expresso de interesses conflitantes, pois todos estariam irmanados em torno de um propésito maior —a grandeza da nagio —, suficiente por si mesmo para neutralizar qualquer tipo de contradigZo politica, econdmica e social. Essa retorica argumentativa foi propalada pelo governo central quando do fechamento de todas as casas legislativas do pafs — espago peculiar da re- presentatividade — em 1937. 8, Wanderley G. Santos, Cidadania ¢ justiga .... op. cit, 1979. 6 Gidadania: Dilemas ¢ Perspectivas na Repiblica Brasileira Por outro lado, o livre exercicio dos direitos civis, especialmente 0 da liberdade, foi também abandonado. A concepcao governamental era a de que uma ordem politica eficiente, pois homogencizada ¢ hierarquizada, no deveria ficar 4 mercé da livre agao de contestadores isolados ¢ resisten- tes ao projeto estatal modernizador. O movimento que levou Gettilio Vargas ao poder, ¢ que se legitimou em 1930 através da divulgagao de um discurso salvacionista-democratico, acabou por nao romper com a face autoritaria jé tradicional na vida brasilei- ra ¢ por reedité-la sob novos termos, télo excludentes quanto aqueles que subsidiaram a pritica liberal do periodo republicano anterior. Cidadania e democracia popular ‘A década de 1940 foi marcada no contexto internacional por uma condenago generalizada dos regimes centralizadores e por um gradativo retorno as idéias liberais. Essa nova onda liberalizante chegou ao Brasil, provocando uma reorientagao politica que levou a queda de Vargas em 1945. Todavia, tal reorientacdo no significou uma ruptura completa ¢ imediata com as praticas de controle institufdas ao longo da década de 1930 ¢ inicio da de 1940. © processo de construgao da democracia seria consolidado a médio prazo, jf na década de 1950, Dessa forma, 0 ano de 1945 teve um significado especial na polftica brasileira. Isso porque, se por um lado representou um marco de ruptura relevante no proceso de desmantelamento da ditadura estadonovista, apon- tando alternativas de transformagao do regime politico, por outro, foi, si- multaneamente, uma conjuntura na qual os clementos da continuidade rearticularam-se por dentro do proprio processo de transigio, representan- do um marco de continuidade na transformagio."* ‘A Republica democratica populista, em seus primeiros anos, segun- do Werneck Vianna, ainda cra marcada em demasia por praticas corporati- vistas da década anterior.!” Houve uma efetiva democratizagao, porém pro- cessada pelo alto ¢ de dentro para fora do regime (no ocorreram manifes- tagdes populares de massa contra o governo Vargas). O perfodo é marcado por um novo paradoxo: o implemento da pratica politica liberal-democrati- '% Lueflia de Almeida Neves, PTB do getulismo ao reformismo, S40 Paulo, Marco Zero, 1989. 17, Luiz Werneck Vianna, Lideralismo e sindicato no Brasil, Rio de Janeiro, Paz © Terra, 1982. 7 Artigos ca (representatividade, competigao e pluralismo partidério) conviveu com o controle corporativista organico do mercado de trabalho e das associagdes sindicais. Apesar disso, 0 periodo que vai de 1945 a 1964 é identificado, por Francisco Wefort, como sendo o melhor ensaio de democracia da histéria brasilcira.'® De fato, a evolugao do periodo foi caracterizada por avangos sig- nificativos das praticas democraticas, por uma consolidagio efetiva dos di- reitos civis e politicos e pela ampliagiio dos direitos sociais. Data, por exem- plo, do inicio da década de 1960 o Estatuto do Trabalhador Rural, constitu- ido por um conjunto de normas que, pela primeira vez na histéria do pais, regulamentou amplamente o trabalho nas areas rurais. Apesar de a ordem social ter mantido um indelével padrao de exclu- sao, todos os direitos formais da cidadania foram nao sé reconhecides como também aprofundados ¢ ampliados. O perfodo caracterizou-se por um avan- co da urbanizacio e por crescente organizacao da sociedade civil em asso- ciages, sindicatos e partidos. Tal dinémica extrapolou os limites da cidade e chegou também ao campo, onde foram organizados sindicatos ¢ ligas cam- ponesas. As marcas fundamentais do perfodo foram: crescente aprofundamen- to da democracia, pluripartidarismo efetivo, respeito aos institutes da pra- tica liberal democrética e movimentagao mais auténoma da sociedade ci- vil. Este tiltimo fator, em especial, nao foi facilmente controlavel pelo regi- me populista. Em decorréncia disso, processou-se uma rearticulagao das forgas politicas conservadoras que, através de uma intervengao golpista na ordem constitucional, provocaram a interrupgao da experiéncia democri- tica vigente. De fato, dois dos principais pressupostos de uma ordem democrati- ca se fizeram presentes no periodo: partidos com identidade politica sélida © sociedade civil ativa. Ambos os pressupostos foram desmantelados no perfodo seguinte, provocando um retrocesso no processo de conquista dos direitos da cidadania. O sistema partidério caracterizava-se por um pluripartidarismo bas- tante org4nico € competitive. Além disso, apesar da auséncia de programas nitidos, os principais partidos apresentavam um forte vinculo com a popu- lagao, que fazia opgdes partidarias razoavelmente definidas. ™, Francisco Wefort, O populismo na politica brasileira, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. 98 Cidadania: Dilemas ¢ Perspectivas na Reptiblica Brasileira Quanto a sociedade civil, sua crescente organizagiio em associagdes coletivas como as Ligas Camponesas, a Unido Nacional dos Estudantes ¢ as entidades sindicais indicava que o exercfcio da cidadania tornava-se mais abrangente. A pritica da politica estendeu-se para além do aparelho de Estado contaminou a sociedade. Essa experiéncia foi, entretanto, interrompida por um golpe de Es- tado, a0 qual sucedeu um regime autoritario. Ambos agrediram mortalmente a politica de massa, 0 populismo demoorético, a democracia represencativa plena c o pluripartidarismo. Cidadania restrita e regime autoritario (1. 964 - 1985) Com a derrubada do governo constitucional de Joao Goulart, nova- mente o exerefcio da cidadania se viu limitado na Repiiblica brasileira, De acordo com José Murilo de Carvalho “o incremento da participagio polftt ca conduziu em 1964 a uma reagao defensiva”."? Tal reago caracterizou-se por ages interventoras em todas as esferas de organizagao da sociedade civil € também em instituigdes como partidos politicos. A participagao politica ativa ¢ autonoma era identificada, pelos novos detentores do poder, como lesiva aos interesses nacionais, pois inevitavelmente alimentaria 0 dissenso ¢, portanto, prejudicaria o desenvolvimento nacional. Uma vez mais, a én- fase do discurso oficial recafa na defesa da ordem e da seguranga, com Vi tas ao desenvolvimento econémico, em detrimento da liberdade Dessa forma, duas linhas de agao caracterizam o perfodo: a primeira levou 2 restrigao autoritaria de alguns direitos da cidadania; a segunda le- vou 3 climinagao de outros. Os direitos politicos, por exemplo, foram res- tringidos; ja alguns dos direitos civis foram praticamente extintos. O regime politico instituido apés 1964, pelo menos em sua primeira fase, pode ser identificado como sendo autoritario hibrido. Ou seja, a uma precéria situagdo dos direitos civis e a uma restrigao dos direitos politicos somava-se a manutengio, ainda que bastante restrita, dos processos eleito- rais ¢ dos mecanismos de participagao oficial na politica. Apés 1968, o hibridismo atenuou-se, em favor de uma pratica mais frontalmente autori- téria e excludente. Aqueles foram anos nos quais as fungdes estatais hipertrofiaram-se ¢ as sociedades civil € politica minimizaram seu ambito de atuagao. A agao © José Murilo Carvalho, Desenvolvimiento de la ciudadania en Brasil, op. cit 1995, p- 115. 9 Artigos coercitiva do Estado interveio nos sindicatos mais atuantes do periodo pré- 1964 ¢ desestruturou organizagoes € associages que tinham destacada atu- ago no perfodo anterior. Além disso, o governo militar extinguiu o que talvez tenha sido a experiéncia partidaria mais ativa c sdlida da Repiiblica brasileira, o pluripartidarismo do perfodo de 1946 a 1965. Ao pluripartidarismo anterior, sucedeu um bipartidarismo eriado por Ici complementar subseqiiente a um “ato institucional”. Na dindmica des- se processo, ap6s a cassago de intimeras liderangas politicas, buscou-se acomodar os politicos remanescentes em dois partidos, através dos quais processou-se a politica eleitoral no perfodo. O jogo politico eleitoral, d feita, nao foi extinto, ao contrario do que acontecera no Estado Novo, to- davia sua dinamica tornou-se por demais restrita. Ou seja, o autoritarismo manteve alguns dos institutos da democracia representativa. O fez, contu- do, de maneira contida. No terreno dos direitos civis, aos quais se somam alguns direitos politicos, a violéncia foi maior. Uma ampla legislagao de excegao sobrepu- jouas leis ordinérias, ampliando tanto o poder do Estado como de seu apa- rato repressivo, Dessa forma, a liberdade de expressio foi cerceada ¢ os opositores ao regime autoritario ficaram sujeitos a uma forte aco coerciti- va por parte do Estado. No campo dos direitos sociais, também houve uma restrigdo signifi- cativa. Intimeros sindicalistas foram presos ¢ a ago organizada dos traba- Ihadores, ativa no perfodo pré-1964, foi desarticulada por longo tempo. Além disso, ao distributivismo populista, generoso em concessdes aos trabalhs dores, sucedeu um modelo caracterizado por uma énfase no desenvolvi mento econdmico em detrimento do desenvolvimento social. A questao da seguranga foi priorizada e, em decorréncia dessa orien- tagao, novamente 0 poder do Estado ampliou-se. A burocracia, a tecnologia estatal ¢ 0s Srgaos de seguranga adquiriram poder crescente. Jaa sociedade civil teve limitada sua esfera de atuagao. O perfode pode, portanto, ser ge~ nericamente identificado como sendo de Estado forte e sociedade civil fraca. ‘Todavia, paradoxalmente, foi também em decorréncia de uma reati vagdo gradual da sociedade civil (movimento sindical, movimentos pela anistia, sociedades de bairros, pastorais, movimentos de mulheres) que 0 pafs revornou gradativamente 4 democracia. Nesse contexto, a partir de 1985, uma nova ordem politica se implantou no Brasil 100 Gidadania: Dilemas e Perspectivas na Repiblica Brasileira A cidadania em expanséo: 0 Brasil pos 1985 O retorno a democracia fez-se através de um processo lento. Nova- mente, como ocorrera a época do Estado Novo, a transig&o para a ordem democratica foi controlada pelo Estado. Dessa vez, contudo, uma nova qualidade deu um colorido diferente & transigao. Ou seja, a emergéncia dos movimentos organizados da sociedade civil foi um fator expressivo de desestabilizago do regime autoritério. Pode-se afirmar que desde as eleigdes de 1974, quando o MDB, par- tido oficial de oposigao, tornou-se vitorioso, comegou a ser construfdo um processo de transigao no qual dois personagens buscaram dar o tom. De um lado, posicionava-se o préprio Estado autoritario que nao queria perder as rédeas do processo; de outro, a sociedade civil, que lentamente se organi- zava. Nesse embate, que durou aproximadamente dez anos, foi sendo construfda uma transigao que culminou com a promulgagao da Constitui- go de 1988. Na dinamica da transigao, o pluripartidarismo foi reeditado sob no- vas bases e com uma nova face. Em 1980 foram criados novos partidos po- Ifticos, que sucederam a Arena e ao MDB. A organizagao do PT, oriundo do movimento sindical e das amplas greves da segunda metade da década de 1970, criado a partir de organizagées sociais como os sindicatos, foi a grande novidade do processo em curso. Pela primeira vez na hist6ria do pats, um partido cfetivamente de massas enraizava-se na sociedade civil. O avango da demoeracia foi lento: reativagao do movimento sindi- cal, anistia aos presos ¢ exilados, retorno ao pluripartidarismo, eleigdes para governadores ¢ prefeitos de capitais, extingdo gradativa da legislagao de excegio, eleigio indireta de um presidente civil, eleigao de uma Assembléia Nacional Constituinte, promulgacao de uma nova Constituigao (denominada Constituicgao Cidada), eleigdes diretas para presidente da Reptiblica. Hoje o pais vive sob a égide plena da democracia representativa. Os direitos politicos sao efetivos e os direitos civis amplos. A Constituigao de 1988 também representa um avango em termos dos direitos sociais, que obtém, pela primeira vez na historia do Brasil, a estatura de direitos funda- mentais do ser humano. Além disso, 0 texto constitucional também consa- gra os direitos denominados por Bobbio como sendo de “terceira geragio”. Ou seja, os direitos ecolégicos ou ambientais. Jot Artigos O texto constitucional € generoso no uso do vocdbulo cidadao. ‘Tal fato nao € fortuito, mas decorrente de crescente valorizagio dos direitos da cidadania. Todavia, no Brasil de hoje, entre 0 mundo real ¢ o Iegal ainda persis- te um hiato significativo. Além disso, projetos governamentais aliados a uma orientag3o internacional de cunho essencialmente neoliberal tém levado a descaracterizacio definitiva da Carta Constitucional Brasileira. Dessa for ma, 0 texto constitucional vigente que, de acordo com Maria Vitoria Benevides, pode constituir-se cstimulador da cidadania ativa” e, portanvo, um efetivo ponto de partida para superagio da distancia entre o mundo real © 0 formal, esta perdendo substancia. O pats almejado, no qual a sociedade civil tenha real importancia ¢ 0 Estado tenha efetiva fungao garantidora implementadora de direitos sociais, tende a ndo escapar de ser mero hori- zonte hist6rico. Manter-se-4, ainda, como um desafio a ser decifrado. (Recebido para publicacazo em setembro de 1997) %, Maria Vitéria Benevides, A cidadania ativa, Referendo, plebiscito ¢ iniciativa popular, Sto Paulo, Atica, 1991. 102

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