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O CONCEITO DE MÁQUINA K)LÍTICA

Ricardo Borges Gama Neto*

1 - O Desenvolvimento do Conceito '

O conceito de máquina politica surgiu dos primeiros


estudos sobre a política partidária norte-americana. Inicialmente
as máquinas eram concebidas como anomalias que interferiam na
vida pública, e se caracterizavam pela utilização de mecanismos
considerados pouco lícitos, quando não criminosos, tais como:
corrupção, violência, suborno, fraude eleitoral, clientelismo,
etc... Estes estudos partiam do princípio de que "as máquinas
eram imorais" (Gottfried, 1968: 248). Em contraste com as
máquinas políticas, estes estudos percebiam os clubes políticos e
as agremiações partidárias como o lado bom e digno da prática
política. Desta maneira, enquanto estes últimos faziam a política
legítima, sustentados na ideia da realização do bem público, as
máquinas promoviam a política ilegítima, tendo como único
objetivo a maximização dos ganhos pesssoais de seus líderes.
Este tipo de entendimento do que era o partido máquina fazia
com que muitos estudos de política local fossem reduzidos a
meras denúncias moralistas onde "máquinas honestas eram algo
não natural" (ibidem).
A partir da década de 1930, as pesquisas afastaram-se de
tais pressupostos éticos e passaram a investigar as máquinas
assumindo uma atitude axiologicamente neutra. No entanto,
estes trabalhos possuíam uma visão pouco nítida teoricamente da
máquina enquanto tipo específico de partido político. Um claro
exemplo destas falhas é a definição dada por Gottfried do que
seja o partido-máquina. Segundo este autor aquela seria qualquer

* Professor Departamento de Ciências Sociais da UFRR.

' Este trabalho sobre o conceito de mAgim^ politica é uma versão modificada ad
hoc de parte do referencial teórico de minha dissertação de mestrado em Ciência
Politica defendida em março de 1995 na Universidade Federal de Pernambuco.
"organização hierárquica cujos membros desempenhassem
diferentes funções, representassem vários papéis e ocupassem
vários setores. E tivessem ainda uma liderança que definisse e
seguisse objetivos e políticas com eficiência e regularidade tais
que pudessem ser comparadas a um esquema de máquina"
(ibidem). Estas falhas teóricas faziam com que as análises
perdessem a especificidade da máquina política enquanto objeto
de análise, permitindo que qualquer estrutura institucional
rigidamente hierárquica fosse colocada dentro deste conceito.
Não obstante estas claras imprecisões conceituais, dois
trabalhos desta mesma linha de investigação, ou seja, a que
tentava analisar a máquina política de uma postura neutra, foram
importantes no aprofundamento e na especificação do conceito.
O primeiro trabalho foi o de Harpld Gosnell (1968)2, que
destacou entre outros aspectos o caráter de agregador social da
máquina política democrática na cidade de Chicago. Em seu
estudo, este autor demonstra que a cidade era altamente dispersa
e desorganizada, com alto potencial conflitivo. Isto se devia ao
fato de que sua área urbana abrigava uma grande
heterogeneidade étnica, social e religiosa. Somando-se a sua
diversificada composição social, os efeitos nefastos da grande
depressão de 1930 que multiplicavam por muito o seu potencial
conflitivo. Desta maneira, a atuação da máquina reduzindo o
grau de conflito demonstra o seu lado positivo como organização
política. No entanto, Gosnell também observa o lado negativo
daquela maneira de fazer política e advertiu que os "frequentes
métodos empregados pelo partido-máquina para financiar suas
várias atividades têm transformado nossa democracia em uma
plutocracia demagógica" (p. 191).
O segundo destes trabalhos foi realizado por Robert
Merton (1964), que, coerente ao seu paradigma de análise
funcional da sociedade, afirmou que: não obstante a máquina
política ter suas origens ligadas às histórias particulares e práticas
sociais ilegítimas, como o roubo, a corrupção e a extorsão,
aquela ao preencher funções socialmente necessárias para as

2
A primeira edição deste trabalho é de 1937.
classes sociais menos favorecidas, como nas áreas de assistência
social e auxílio jurídico, que de outra maneira dificilmente seriam
preenchidas em razão da dispersão do poder político na
sociedade americana, adquire estabilidade funcional.
No entender de Merton, a força da máquina política está
em "não considerar o eleitorado como massa amorfa e
indiferenciada de eleitores. Com uma intuição sociológica aguda,
a máquina sabe que o eleitor é uma pessoa que mora numa
determinada vizinhança, com determinados problemas sociais e
aspirações sociais. As saídas em público são abstratas e remotas;
os problemas particulares são extremamente concretos e
imediatos. Não é através de apelos generalizados às grandes
preocupações públicas que a máquina opera, mas através das
relações diretas quase feudais, entre os representantes locais da
máquina e os eleitores da vizinhança. As eleições são ganhas na
zona eleitoral.
A máquina une seus elos com homens e mulheres por um
entrelaçado minucioso de relações pessoais. A política se
transforma em laços pessoais" (p.67).
Por fim, um desenvolvimento mais moderno do conceito
que distingue a máquina das outras organizações partidárias.
Esta última definição, adverte que não se deve confundir
máquina política com política de máquina, pois a confusão no
uso destes diferentes fenómenos faz com que se perca a
especificidade da máquina enquanto tipo distinto de partido
político.
De acordo com Wolfinger (1972), " política de máquina é
manipulação de certos incentivos à participação político-
partidária: favoritismo nas decisões políticas baseadas em
critérios pessoais e manipulação das leis. Uma máquina política é
uma organização que pratica política de máquina, isto é, que
atrai e direciona seus membros primeiramente para o uso destes
incentivos" (p.374).
A distinção executada por este autor possui duas utilidades
básicas: primeiro, abre espaço para a análise sobre quais
modalidades de incentivos a participação política distingue a
máquina de outros tipos de organização partidária, e segundo,
demonstra que outros tipos de partidos políticos como os
partidos de massas, segundo a classificação de Maurice
Duverger, podem muitas vezes, para se consolidar
institucionalmente, utilizarem técnicas de patronagem e
clientelismo.3

1.1. A Caracterização da Máquina Política e os Incentivos à


Participação.

Existem duas unanimidades entre os diversos autores sobre


as características da máquina política: a primeira é a reduzida
importância que este tipo de organização partidária fornece aos
princípios éticos e ideológicos em face dos mecanismos de
patronagem e clientelismo político, o segundo é a importância
das recompensas e incentivos materiais para o funcionamento
destas (Diniz, 1982; Lowi, 1964; Weber, 1982; Gosnell, 1968 e
Wolfinger, 1972).
As recompensas de que se utiliza a máquina para sua
estabilidade e funcionamento incluem atos de filantropia
(distribuição de alimentos, roupas e diversos materiais de auxílio
direto como cimento, tijolos e máquinas de costuras, etc...),
distribuição de empregos e cargos públicos, alterações na
legislação, isenção fiscal, favorecimento em contratos e
concessão de serviços públicos, tráfico de influência e diferentes
outros privilégios, que são na sua maioria ilegais.
Gosnell (1968) observa que da mesma maneira que
manipula a legislação e favorece seus membros e simpatizantes, a
máquina pode utilizar-se destes mecanismos para punir
empresários, ou indivíduos que apenas não queiram colaborar

3
Diniz (1982), citando Tanow, destaca que "o Partido Comunista Italiano
envolveu-se num trabalho de organização e mobilização do campesinato do sul do
país, através de um processo pelo qual os laços clientelistas foram não só
mantidos, como reforçados. O clientelismo dos notáveis transformou-se num
sistema de patronagem baseado numa maciça distribuição de favores e proteção,
através de uma ação combinada envolvendo o governo e a máquina partidária. Em
outros termos, partidos ideológicos podem comportar-se como máquinas ao nivel
local" (p.35).
com a mesma. Desta forma, "alguns homens de negócio são
muito mais vulneráveis do que outros (...)"; são aqueles que para
atuar necessitam dos favores ", (...) que tem de ser dados pela
máquina e as condições estipuladas pelos chefes é que
consolidam o seu poder" (p. 40).
O mesmo autor demonstra as ligações que se
estabaleceram entre a máquina política democrata e a liderança
do submundo da cidade. Esta união aparentemente esdrúxula, se
observarmos a tradição liberal-protestante da sociedade
americana,€ra bastante racional. Isto porque existia uma
afinidade eletiva entre a máquina e os gangers da cidade, ocorria
que ambos para sobreviver tinham que violar constantemente a
lei, por causa disto é que "os políticos e os reis do jogo de azar
uniam seus interesses na perpetuação da máquina política. Em
Chicago, numerosos membros dos comités dos diretórios
municipais do Partido Democrata tinham sido proprietários de
casa de jogos de azar" (p. 43).
Como já ressaltamos anteriormente, as organizações
partidárias utilizam-se de estratégias de alocações de recursos
escassos da sociedade, durante o processo de competição
política, no objetivo de manter ou ampliar sua base eleitoral Para
aprofundar o entendimento acerca dos tipos de incentivos
específicos à participação política utilizada pela máquina em suas
atividades, Wolfinger (1972) dividiu os benefícios em quatro
categorias ideal-tipo que são classificadas ao longo de duas
dimensões: tangíveis/intangíveis e rotineiros/substantivos.
Na primeira categoria estão os chamados incentivos
tangíveis/rotineiros, são os benefícios materiais. As organizações
partidárias que fundamentam suas estratégias de ação baseadas
neste tipo de incentivo controlam rigidamente o acesso dos
indivíduos a este. Os benefícios materiais são concedidos pelas
lideranças do partido como uma recompensa, um prémio por
serviços prestados à organização. Esta modalidade de incentivos
sustenta atividade política através da patronagem e do
clientelismo, é por este fato que as máquinas políticas
encontram-se nesta categoria de benefícios.
Diniz (1982) ressalta ainda que tais incentivos podem ser
'.'classificados em exclusivos ou individuais. Exclusivos, na
medida em que disponíveis apenas para os membros da
organização, que nessa qualidade, adquirem o direito de acesso a
bens ou serviços por ela fornecidos ou prestados. Individuais,
quando concedidos uma base pessoal como recompensa a
contribuições individuais à organização. Prebendas,
emolumentos, salários, distribuição de empregos, cargos ou
contratos seriam exemplos típicos" (p. 29).
- Na segunda categoria, estão os denominados incentivos
tangíveis/substantivos, são os benefícios coletivos. Estas
recompensas surgem como resultado de políticas de
favorecimento geral, no qual inexiste um grupo ou parcela
determinada da população que sé beneficie. Estes incentivos não
estimulam normalmente a ação da máquina política, quase
sempre os benefícios coletivos são irrelevantes para este tipo de
partido.
Na terceira categoria, estão os chamados incentivos
rotineiros/intangíveis, são os benefícios solidários. Estes nascem
do sentimento de solidariedade existente entre os diversos
indivíduos que compõem uma organização partidária. As
recompensas ocorrem tanto no nível individual, prémios,
honrarias, deferências pessoais, quanto no coletivo, do prestígio
de pertencer à mstituiçãe. Os benefícios solidários podem ser
desfrutados pelos membros de qualquer partido político, no
entanto, no caso específico da máquina estes são no fundo, um
resultado do sistema de incentivos materiais que produzem
interações maisfrequentese estáveis entre seus membros.
Por fim, temos a categoria dos incentivos
intangíveis/substantivos, são os benefícios gerados pela
ideologia. Este tipo de recompensa decorre do sentimento de
identificação dos membros de uma agremiação partidária com
determinados princípios ideológicos e da satisfação que os
indivíduos sentem por participar de uma causa que lhes é
percebida como justa.

1.2. Máquina Política, Representação e Institucionalização


Consideramos a máquina política como um tipo bastante
peculiar de organização partidária, em • contraposição aos
partidos ideológico-programáticos, cuja estrutura e
funcionamento sustenta-se na sua capacidade de adquirir
recursos monetários, materiais e de serviço que são trocados por
votos. O caráter de instituição assistencialista da máquina
enquanto partido político não é episódico, mas constante, desta
maneira a sobrevivência daquela depende basicamente da
mediação que consegue estabelecer entre os seus eleitores e os
órgãos públicos.
A política clientelista da máquina fundamenta-se em
demandas tópicas de caráter restrito e individual, demandas que
giram sobre objetos de decisão específicos, cuja resolução não
ameaça a estrutura do poder estabelecido, ou seja, a política da
máquina dificilmente sai do âmbito da arena distributiva4. Os
objetivos dessas políticas são claros; servem de instrumento de
controle social procurando reduzir as tensões entre a população
e a ente política.
Segundo Diniz (1982) " (...) as máquinas produzem e
consolidam relações que se baseiam em fortes elementos de
desigualdade e assimetria de poder. Nos vínculos que
estabelecem com clientelas de diferentes tipos está presente este
componente de desigualdade, cujo traço essencial consiste no
monopólio de posições que são vitais para os clientes,
principalmente quanto ao acesso aos meios de produção,
principais mercados e centros de poder" (p. 43).
O controle dos cargos públicos, conjuntamente com a
concentração de poder destes, toma o chefe político da máquina
ofieldepositário dos recursos do Estado necessários à resolução
das demandas que devam possuir seus eleitores. Contudo, estas

4
Refèrimo-nos neste instaste a classificação de politicas públicas desenvolvida por
Lowi (1964): distributivas, regulatórias e redistributivas. A arena distributiva é
aquela onde é grande a desagregação ao nível das decisões, podendo até chegar a
serem individualizadas, sendo mais ou menos isoladas uma das outras. Uma
característica distintiva deste tipo de arena é o de procurar evitar o confronto
direito entre os diversos atores através da não identificação dos ganhadores e
perdedores. Segundo Lowi, "patronagem é o melhor significado que poderíamos
encontrar como sinónimo para distributivo (...) (p. 690).
somente podem ser solucionadas se forem fragmentadas, ou seja,
às quais a realização se reduz ao ganho imediato que é retribuído
com o apoio durante os pleitos eleitorais. O controle dos
organismos governamentais permite aos líderes da máquina
estabelecer com seus eleitores relações diretas e permanentes de
troca de benefícios e favores recíprocos.
A representação política promovida pelo partido-máquina
sustenta-se no estabelecimento de relações de cunho paternalista
entre os representantes e os representados, entre os políticos e os
eleitores. Os vínculos impessoais que deveriam existir entre os
grupos de interesse e os órgãos públicos, que deveria objetivàr a
canalização dos recursos necessários à satisfação das demandas
sociais da população, são substituídos pela mediação pessoal da
política. As relações instrumentais que deveriam existir no
interior da racionalidade burocrática são eliminadas em favor de
uma teia de influência pessoal. A medição das demandas da
população através do uso clientelista do aparelho estatal,
fundamenta toda a capacidade de sustentação e desenvolvimento
da máquina política. As relações clientelistas privatizam as ações
públicas e patrimonializam os serviços, desta forma, se constrói
uma rede de dependência pessoal, lealdade e obrigação dos
eleitores com seus representantes, reforça-se o status quo e se
reduz o grau de institucionalização do sistema partidário.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DINIZ, Eli. Voto e Máquina Política: Patronagem e


Clientelismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1982.

GOSNELL, Harold F. Machine Politcs: Chicago Model.


Chicago, The University of Chicago Press, 1968.

GOTTFRIED, Alex. Politicai Machines. International


Encyclopedia of The Social Sciense. London, Colher -
Macmillan Publishers, 1968.
LOWI, Theodore. American Business, Public Polici, Case
Studies and Politicai Theory. World Politcs, XVI (July,
1964).

. Introduction. ImGOSNELL, Harold F.


Machine Politcs: Chicago Model. Chicago, The
University of Chicago Press, 1968.

MERTON, Robert. Teoria Social e Estrutura Social. Belo


Horizonte, UFMG/Faculdade de Ciências Económicas,
1964.

WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro,


Zahar Editores, 1982, 5a edição.

WOLFINGER, Raymond. Why Politicai Machines Have not


Withèred Away and Other Revisionist Thouhts.
The Journal ofPohtics, vol. 34, 1972.

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