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sa10w2021 POF js viewar O NOME DO BRASIL’ Laura de Mello e Souza Depto. de Hist - FFLCH USP Resumo © Brasil nao teve sempre esse nome, pelo qual hoje ¢ conhecido. Du- ‘ante dois séculos, sua denominagio oscilow entre Brasil, nome ligada ‘@atividade mercantil decorrente da exploracao do pau de tinta, e Santa ‘Cruz, nome lizado @ missto salvacionista que acompanhava a coloni- 2zacho realizada pelos portugueses. Ao longo dos tempos, houve segui- dores de uma e de outra nomenclatura e, 0s motivos pelos quais as de- fenderam mudaram no tempo, conforme sc tenta mostrar neste artigo. Abstract Brazil has not always been the name of the country where we live. For ‘nearly two centuries the land was known both as Brazil and as The Land of the Holy Cross. Both were part of Portuguese colonization in the New ‘World, oud for this reason both had their followers and supporters. It ‘was not until the mid-eighteenth century that the name Brazil won out ‘The reasons for this ambivalence are shown in this article, winere we also try to understand the meaning of this amazing vacillation. Palavras-Chave Brasil - Terra de Santa Cruz ~ Colonizagao — Nome ~ Humanismo Keywords Brazil - Land of Holy Cross ~ Colonization - Name — Humanism * Deseavolvo, neste texto, preocupasdes jd presentes em traballios anteriores, como O Diabo e a ‘Terra de Santa Cruz (1986) ¢ Inferno ailantico (1993). analise ¢coatudo win pouco diferente, ¢ ‘bem mis desenvolvida, Um primeiro esbogo da problematica acerca do nome do Brasil foi apre sentado em Cagliari, em mato de 2001, no Congresso Alessandro VTe V’Atlantico. Na forma em que se encontta, contudo, este texto é oralmente original, hitps wuz revistas.usp.brrevhistorialartclelview!18919/20082 wer sa10w2021 62 POF js viewar sede toe Sosa Reva de Histrie 1. Tempo de indefinigio Tocadas em 1500 pelos homens de Pedro Alvares Cabral, steras que hoje so brasi- leiras foram desde entdo oficialmente incorporadas & coroa portuguesa. Se haviam sido freqilentadas antes, como sugere o Esmenaldo de Situ Orbis (Pereira 1991: $39- $40) e defendem alguns historiadores portugueses, disso nfo ficou maior registro, ¢ no hi, pois, como fugir da data consagrada e recentemente celebrada — para o bem e para o mal — por brasileiros e portugueses'. Descoberto oficialmente pois em 1500, sob o pontificado de Alexandre VI Borgia, no se pode dizer, a rigor, que existisse, entilo, nem Brasil nem brasileiros. Varios sio os sentidos dessa ndo-existéncia, ‘Ha primeiro um sentido fisco: as terras que hoje constituem o temitrio brasileiro ainda nfo eram conliecidas na sua feieo fisica pelos portugueses, que, conscientes disso, dedicaram os 30 primeiros anos do século XVI a expedigdes de reconhecimento e vigilancia da costa, Onde comegava e onde terminava ajurisdigao usa sobre aquelastrras? Dado que a nova terra fazia parte de um espaco tco pela diplomacia e pela geopolitica Iusitanas como pertencente sua coroa, pareceu de inicio naural queintegrasse o império pormugués, o que de resto achava-se garantido pelo Tratado de Tordesilnas, ‘A idéia geral sobre esse espaco era contudo ainda vaga, e falhava quando se che- gava aos aspectos mais detalhiados. Os portugueses se empenharam em suplantar essa indefinigto, tarefa que teve alids a primazia em relagio ao aproveitamento econd- ico da terra. Esta, de inicio, nfo despertou maiores interesses na corte de D. Manvel, “A passagem do Esmeraldo que deu margem a tals consideracdes & a segninte: “e portant, bbemavennwado Principe, temos sabide e visto como uo terceiso ano de vosso reinado do auo de "Nosso Senhor de mil quatrocentos e noventa e oite, donde nos Vossa Alteza mandou descobrir a parte ocidental, passanco além a grandeza do mar oceano, onde € achada enavegada uma to grande terra firme, com muitas e grandes ilhas adjacentes a ela, que se extende a setenta graus graus de laeza da linha equiaacial caatra 0 polo frticoe, posto que sejaassaz fora ¢grandemente pavoada @ do mesmo circulo equinocial toma outra vez e vai alem em vinte e oto graus e meio de ladeza contra 0 polo antatico,e tanto se dilata sua grandeza e cou com muita louguca, que de uma paste nem da outra nfo foi visto nem sabicoo fine cabo dela . [J indo por esta costa sobredita, do mesmo circulo equinocial em diante, per vinte eoitograus de ladeza, contra 0 poloantitico, &achado hitps:lwwizrevistas.usp brrevhistorialartclelview!18919/20082 sa10w2021 POF js viewar ese Soe, Rest de Mista que pensava acima de tudo no Oriente e nos projetos que melhor viabilizassem sua exploracdo comercial. Antes talvez de ser vista como espaco econdmico, e deixando- se de lado o interesse logo despertado pelo pau brasil, a nova terra interessou pela sua capacidade de renovar os conhecimentos cartogrificos © astronémicos: diferentemente da Africa ou da Asia, era terra nunca antes descrita ou representada. ‘Vindo na esquadra de Cabral, assim que as naus aportaram Mestre Joao logo cui dou de observar o céu, dele tomando posse para os portugueses ¢ realizando a pri- meira descrigdo européia exata “da mais famosa constelagdo de todos os novos céus” ‘0 Cruzeiro do Sul (Seed 1999: 147)’. As expediedes de exploractio da costa, enviadas, desde 1501 e durante os vinte primeiros anos do século, deram nome aos acidentes, ‘geogrificos e mediram as latitudes de norte a sul, trazendo contribuicdes decisivas para reforgar a idéia de que a terra firme ocidental era um continente, e para melhor representi-la nessa feiedo. As cartas de padrio régias traduziram esse conhecimento (Couto 1995: 191), Por volta de 1514, 0 Livro de Marinharia de Joio Lisboa jé fazia ‘meng2o ao Cruzeiro do Sul, ¢ trazia um regimento para determinacao das latimdes, (Couto 1995: 197), Antes do primeiro quartel do século chegarao fim, os portugueses conheciam a costa sul americana do Atléntico muito melhor do que os espanhéis, 0 ‘que Ihes dava vantagem na disputa pelo controle politico dos espagos do Novo Mundo. Em 1502, copiando o sistema anteriormente adotado na costa ocidental da Africa entre 1469 ¢ 1475, a terra foi arrendada a uma associagao de mercadores. Em 1504, a monarquia portuguesa fazia sua primeira doagtio em territério americano, conce- dendo, pelo prazo de duas vidas, a capitania da iha de So Joao a Femao de Loronha. Em 1513, novo contrato, sobre o qual se sabe quase nada, e desta vez para Jorge Lopes Bixorda (Couto 1995: 192-194). Nos 20 primeiros anos de vida do futuro Brasil, os portugueses criaram apenas duas feitorias: em 1504, em Cabo Frio; em 1516, em Pemambuco (Couto 1995; 194-202). Predominaram, portanto, as atividades de cunho snela nunito e fio brasil com mmuitasoutras coisas que os navios nestesreinos vém grandemente ca: regados..” hitps:lwwizrevistas.usp brrevhistorialartclelview!18919/20082 3n7 sa10w2021 POF js viewar sede toe Sosa Reva de Histrie privado, eo Estado poupou suas energias para a construc de um império no orient ‘Nenhuma preocupac2o com o povoamento surgi tampouco nessa época, quando os habitantes europeus da costa eram apenas os degredados deixados para tris desde a viagem de Cabral, um ow outro desertor das naus, como os grumetes a que se refere a carta de Caminla, todos eles constituindo o tipo do “langado”, que desde a experiéncia quatrocentista da Africa fazia, voluntéria ou involuntariamente, a intermediacao entre os universos culturais distintos (Bethencowst 1998: $8-115). Todos esses fatos evidenciam o pouco interesse da Coroa em aproveitar econo- micamente a terra, entdo considerada como um espaco-reserva para atividades mais sistemiticas, e que naquele momento servia primordialmente como fornecedor de ppau-brasil, nfo requerendo maiores esforros no sentido de se investirem capitais e se prover colonizagao. A fluidez do direito intemacional e da diplomacia, por um lado, ea nascente concorréncia internacional, por outro, nfo permitiriam, contudo, que terra to vasta ficasse reservada para o futuro. Se, como viu Luis Adio da Fonseca, D. Joao forcou uma decisio diplomética em Tordesilhas e quis segui-la & risca até mesmo quando Colombo chegou as Antillas, 0 mesmo no se passou com a Espanha, que logo invocon o direito de descoberta e defendeu a posigao mais aguerrida de que, quem chegasse primeito, tornava-se 0 senhor de direito (Fonseca 1999: 113). Mal iniciava 0 século XVI e 0s espanhis jé exploravam a costa nor-nondeste da América do Sul. Os franceses também nfo tardaram, contestando a divisto luso-espanhola do globo e enviando navios para 0 Atlantico Sul. Nao era entio muito claro que a decorréncia Sbvia da viagem de Cabral fosse o direito portugues sobre a nova terra Talvez nfo seja exagerado dizer terem sido os franceses que decidiram a sorte das terras achadas por Cabral. Nao fosse sua presenga constante no litoral durante todo o primeiro quartel do século, e nao fosse, muito depois, em 1555, 0 seu empenho em fundar uma coldnia na baia de Guanabara talvez o interesse portugues pelo Atléntico Sul ficasse adormecido por mais tempo. Desde pelo menos 1504, quando da viagem da nau LEspoir de Honfleur, os franceses estiveram na costa da nova terra, carregando com pau-brasil os navios de armadores normandos e bretbes (Baio e Dias 1923: 60). Apés 1521, quando morreu hitps:lwwizrevistas.usp brrevhistorialartclelview!18919/20082 4n7 sa10w2021 POF js viewar ese Soe, Rest de Mista D. Manuel, a indecisdo de seu sucessor, D. Joao IIL, em se alinhar com Carlos V contra Francisco T acabou beneficiando as investidas francesas no Atlantico Sul Enquanto a politica oficial dos dois paises nao assumia contornos mais definidos nna Europa, 0s armadores franceses continuavam a fregiientar a costa brasileira, 0 ne levou a conflitos armados de dimensao consider’ conilitos se intensificaram entre 1526 ¢ 1527, quando Cristévao Jaques, patrulhando a costa, procedeu a prisdes ¢ execuedes de stiditos de Francisco I, que, sob pressdo dos armadores prejudicados, reclamou indenizac&o junto ao monarea portugués (Couto 1995; 204-205). Mais do que nunca, ficou entdo patente a divergéncia entre Portugal, que com base nas bulas papais e nos tratados internacionais defendia a doutrina do Mare Clausum, e as pretensdes de Francisco 1, que postulava uma doutrina de mar aberto, se assentava num conceito de império baseado no direito yelnas éguas atlanticas. Esses das gentes (jure gentium) e achava que os direitos territoriais s6 podiam ser reco- mhecidos quando acompanhados de ocupacio efetiva (Moysés 1996: 21-23). E tal divergéncia que se acha expressa na fala atribuida anos mais tarde ao rei francés, em 1541: exigia que Ihe mostrassem a clausula do testamento de Ado que o excluia da partilha do mundo (Baio e Dias 1923: 63-64). E tal divergéncia, igualmente, aque esteve na base dos atos de ocupagto por franceses de territérios * vazios” na América do Sul mesmo antes da ascensio de Francisco I a0 trono, ou seja, poucos anos apés a chegada dos portugueses & nova tetra Mas além desse sentido fisico da fragmentago, ha um sentido espacial e cultural. Grupos culturalmente distintos ocupavam espacos muitas vezes descontinuos, que podiam nio ter relacdo entre si. Para esses grupos, indigenas, que constitufam uma populagdo de cerca de 2.500.000 habitantes na época da chegada de Cabral, as terras onde moravam também nfo eram o Brasil (Hemming 1987: 487-92). Quando do inicio da colonizagao, apés 1530, os espacos contimuaram a ser miiltiplos, em funcio das virias frentes colonizadoras mais ou menos independents que se abriram. Espagos quase sempre auto-contidos, isolados, e que ais vezes se comunicavam mais facilmente com a Corte ~ como & 0 caso das terras a0 Norte — do que uns com os outros (Novais 1997: 14-89), Se as capitanias hereditirias, hitps wuz revistas.usp.brrevhistorialartclelview!18919/20082 65 se7 sa10w2021 POF js viewar sede toe Sosa Reva de Histrie 6196 cedidas pela Coroa a particulares, foram no inicio da vida da terra a expresso dessa configuracdo espacial, o sentido de fragmentacdo espacial e isolamento persistiu por séculos, senco uma das feigdes dominantes do territério brasileiro até praticamente 0 século (XX, Nada ilustra melhor esse sentido do que as imagens seiscentistas e setecentistas de fortalezas portuguesas em paragens remotas, ott do que os belos desenlios e aquarelas das vilas amazénicas deixados pela expedicao cientifica de Alexandre Rodrigues Ferreira {jéinos tempos da Ihustragao. E aqui se chega, por fim, ao sentido administrativo: vatios particulares se empenha- ram na exploragdo daquelas teras, cada um com jurisdigdio propria sobre a faixa que lhe cabia. Portanto, cerca de 30 anos apés o descobrimento, ainda ndo havia qualquer senso de unidade nas terras que, depois, seriam 0 Brasil, e que & época sequer tinham nome certo, Um nome a procura de lugar Porque, naquela época, o nome do Brasil ndo era Brasil. Entre 1351 e 1500-0 ‘ano em que Cabral chegou a América do Sul, os mapas europeus mostram o nome Brasil e variantes dele — Bracir, Bracil, Brazille, Bersil, Braxili, Braxill, Bresilge — designando, em lugares diferentes, uma ilha ou até trés, a diversidade dos nomes traduzindo a vaguidao do lugar geogrifico e a pouca certeza da existéncia fisica (Abreu 1900; 48-50). Podia-se, quando muito, falar das illas Brasil, que seriam vvirias, e munca uma sé, e que correspondiam a um horizonte geogréfico ainda mitico, como o das ilhas Afortunadas e tantas outras miragens que a pritica navegadora & a experiéncia, madre de todas as coisas, acabaria por dissipar. Assim, primeiro houve 0 nome, depois o lugar que foi nomeado. Por curto tempo, ocorren uma denominacao intermediéria, adotada nas cartas de Pero Vaz ‘O trecho de Mestre Joao seferente a0 Cruzeiro do Sulé o seguinte: “e esas estrelas,principalmen te as da Cruz, so grandes quase comp as do Caro ea estela do polo antistico, ou sul, & pequena como a do norte e muito clara, ea estrela que esta em cima de toda a Cruz & muito pequena”, Em Camiaha, hd duas referEucias a primeica, no texto, “ao qual monte alto 0 Capitao pds nome O Monte Pascoal e terra A Terra de Vera Cruz”; a segunda, na data, “Deste Porto Seguro, da vossa hitps wuz revistas.usp.brrevhistorialartclelview!18919/20082 err sa10w2021 POF js viewar ese Soe, Rest de Mista de Caminha e de mestre Joao, ambas de 1 de maio de 1500, mas que ndo teve muita sorte: Vera Cruz (Baidio 1923: 317-347)’. Alguas italianos usaram-na nos primeiros ‘anos apés as viagens de Cabral e de Vespucci. Um certo Giovanni di Leonardo da Empoli, comerciante e armador toscano, referia-se “& terra da Vera Cruz” numa carta de 16 de setembro de 1504 (Dias 1923: 217). Mais ou menos na mesma época, Matteo di Benigno, que viajou na esquadra de Estévao da Gama, escrevia que navegaram da Madeira até “a saliéncia de Vera Cruz” “sem vista de terra alguma”(Leite 1923: 410). Depois, durante 0s trinta anos seguintes, pelo menos trés denominagdes se suce- deram nos mapas e nos escritos sobre novo achado do rei de Portugal. Ainda entre 6s italianos, apés 1501, quando chegou do oriente a armada de Cabral, a terra foi referida como Terra dos Papagaios, ¢ da mesma forma aparece no globo de Schoner em 1520 (“America vel Brasilia sive papagalli terra”) ¢ no Prolomeu de 1522. Na carta-portulano de Fano, datada de 1504, aparece em dialeto genovés a originalissima mengao a Terra de Gonealo Coelho, nome do comandante das frotas de reconhecimento que exploraram a costa brasilica entre 1501 ¢ 1503-4: Terra de Gonsalvo Coigo vocatur Santa Crove, mengao onde se combinam a designagao insélita e aquela que se generalizou mais tarde entre portugueses e europeus (Baido 1923: 321; Leite 1923: 254; Couto 1995: 192; Varnhagen s/d: 89-90) . Esta a designago presente, por exemplo, na carta que D. Manuel enviou aos sogros, os Reis Catélicos, narrando o achamento em 1501, ou ainda no mapa de Bartolome Colombo de 1506 (Couto 1995: 188; Gil 1992: 184). Em 1512, numa carta de Afonso de Albuquerque a0 rei @ ainda no globo de Marini, surge pela primeira vez 0 termo Brasil para designar em ambito oficial a América Portuguesa (Couto 1995: 195: Baio 1923: 320). Usada alguns anos antes no Esmeraldo de Situ Orbis de Duarte Pacheco Pereira — “e estas so as gentes que habitam na terra do Brasil” ~, a designagao se fez Ia dle Vera Cruz, hoje sexta fel, primelto dia de mato de 1500". CE “Carta de Pero Vaz de Can tha”, citagdes as pp. 87 ¢ 99. Em Mestre Joao, lt uma tnica referéncia, na data: “Feita em Vera ‘Cruz no primeiro de maio de 1500". Cf. “Carta do Bacharel Mestre Toto"... p. 108 hitps wuz revistas.usp.brrevhistorialartclelview!18919/20082 67 yer sa10w2021 POF js viewar sede toe Sosa Reva de Histrie 6196 cada vez mais freqQente dai em diante (Baido 1923: 321; Pereira 1991: 661). Sua consagracao oficial ocomre entre 1516, quando D. Mantel investe Cristvao Jaques nas fungdes de “govemnador das partes do Brasil” — que ainda so muitas ~e 1530, quando D. Joao TM designa Martim Afonso de Sousa encarregado do govemo da terra: “Martim Afonso de Sousa do meu conselho capitio-mor da armada que envio terra do Brasil” (Baido 1923: 321), Contudo, certa fluruagao de nomenclatura continuaria a exist, seja em escritos, seja em mapas, onde a mais antiga representacdo da nova terra ocorreria no planis- ferio portugues anénimo de 1502, conhecido como de Cantino (Couto 1995; 158+ 159). No mapa do Visconde de Maiolo, de 1527, aparecem as duas designacdes, a antiga e a moderna, combinadas numa formula s6: “Terra Sante Crusis de lo Brasil e del Portugal” (Baido 1923: 321). O aspecto mais curioso dessa indefinigao inicial 6a “disputa” que dividiu humanistas e comerciantes a partir do meado do século XVI, e que teria vida longa. 3. Entre Deus e 0 Diabo Apesar de intuida por Antonio Baio, essa disputa nunca foi estudada ¢ 0 fato de ter-se estendido no tempo atesta, a meu ver, sua importineia e interesse (Baio 1923: 317-324)’. Como no podia deixar de ser em época onde o plano espiritual e o temporal apresentavam.se de form indistinta, ¢ numa conjuntura histérica mar- cada pelas reformas e perseguicdes religiosas, era também religiosa a linguagem e a forma de abordar o assunto. Tudo indica ter sido Joao de Barros o fundador de uma tradigao, perpetuada posteriormente por outros autores, onde a luta entre Deus e o Diabo aparece iden- tificada ao surgimento da colénia fuso-brasileira. Conta o humanista que Cabral chamou de Santa Cruz terra onde tinha aportado em abril de nageando o Lenho Sagrado. A necessidade de nomear a nova terra se colocou para 500, assim home- * Conforme Antonio Baito, Giovanni Matteo Cretico, em 1501, chama a regito de “la terra degli papagi”; conforme Duarte Leite, Pasqualigo, mais ou menos aa mesma época, mistura duas ‘nagdes: “ele caravele, mandate ‘anno passé a scopcir la terra di Papaga o ver di Santa Croce hitps wuz revistas.usp.brrevhistorialartclelview!18919/20082 se7 sa10w2021 POF js viewar ese Soe, Rest de Mista Cabral quando, dias depois, a 3 de maio, partia para a india: mandou, entao, “arvorar uma cruz mui grande no mais alto lugar de uma drvore e ao pé dela se disse missa. A qual foi posta com solenidade de béncaos dos sacerdotes: dando este nome a terra, Santa Cruz”. © Santo Leno inscrevia 0 sacrificio de Cristo na génese da tetra encon- trada, que ficava toda ela dedicada a Deus, como a expressar as grandes esperancas, na conversao dos gentios. Mas 08 acontecimentos tomaram rumo diverso. Se a cruz erguida naquele lugar durou algum tempo, o deménio logo comegou a agir para dermubé-la, pois nao queria perder o dominio que tinha sobre a nova terra. Valendo- se do fato de chegarem a Portugal carregamentos cada vez mais significativos de ppau-brasil, rabalhou para que o nome da madeira comercializada dominasse o nome do lenho no qual morrera Jesus, vulgarizando-se na boca do povo. Assim, era como se importasse mais “o nome de wm pau que tinge panos” do que o nome “daquele pau que deu tintura a todos os sacramentos por que somos salvos, pelo sangue de Cristo que nele foi derramado” (Barros 1988: 174-175). Condenando 0 apreco excessivo & atividade comercial, Joao de Barros clamava contra o triunfo de principios seculares sobre os religiosos, querendo corrigir tanto ‘rumo tomado pela expansdo portuguesa quanto o nome que ia ganhando prest popular para designar as terras “descobertas” por Cabral. Como nao podia se vingar do deménio de outra forma, Barros admoestava seus leitores “da parte da cruz de Cristo Jesus” para que se empenhassem em devolver terra “o nome que com tanta solenidade Ihe foi posto, sob pena de a mesma cruz que nos hé de ser mostrada no dia final, 0s acusar de mais devotos do pau brasil que dela”. E finalizavs © providencialismo da expansdo: “E por honra de to grande terra chamemos-the io |. celebrando provincia, e digamos a Provincia de Santa Cruz, que soa melhor entre prudentes que brasil, posto por vulgo sem consideraedo e nio habilitado para dar nome as propriedades da real coroa”. As consideragdes sobre a viagem de Pedro Alvares Cabral e sobre o Brasil en- contram-se na primeira Década, publicada em 1552. Em 1554, Femao Lopes de ‘Castanheda sintetizaria a mesma idéia na sua Historia da india: “Nesta terra mandou Pedralvares meter um padrio de pedra com uma cruz e por isso the pos nome terra hitps wuz revistas.usp.brrevhistorialartclelview!18919/20082 69 err sa10w2021 70 POF js viewar sede toe Sosa Reva de Histrie de Santa Cruz, e depois se perdeu este nome e he ficou 0 de Brasil por amor do pau brasil” (Baido 1923: 318; 322). Em 1556, Damido de Géis também se estenderia sobre a questio na Crénica de D. Manuel: “Antes que Pedro Alvares partisse deste lugar, mandou por em terra uma cruz em pedra como por padrio, com que tomava posse de toda aquela provincia para a coroa dos Reinos de Portugal, 4 qual pés nome de Santa Cruz, posto que se agora (erradamente) chame do Brasil, por caso do pau vermelho que dela vem, a que chamam Brasil”. Na mesma época, D. Jerénimo Osério também frisou que Cabral desejou celebrar a Santa Cruz ao nomear a nova terra, que acabou por se chamar Brasil (Baido 1923: 322). Todas essas evidéncias revelam a preocupagio da vertente do Inimanismo portugués que se debrugava sobre a expanso em tematizar o problema da nomenclatura da terra brasilica, 0 que foi talvez decisivo na sua fixagao definitiva (Rebelo 1998: 113-133). Joao de Barros recebeu em 1535 duas capitanias na nova terra, uma em sociedade com Aires da Cunha — a do Maranhiio — e uma para si, a do Rio Grande do Norte. Parece que nunca esteve nelas nem em qualquer outra parte da América, ao contririo de um outro humanista, Pero de Magalhaes Gandavo, que teria permanecido cerca de seis anos em Salvador como provedor da fazenda e que em 1575 manifeston concepedes anilogas ts do autor das Décadas na Historia da Provincia de Santa Cruz’ Auttor dessa importante crénica dos primeiros anos da terra, Gandavo mostrava- se igualmente inconformado com o nome que vigorava na designagao da Colénia — Brasil, acreditando nto haver razto para negar ou esquecer o nome originalmente dado, ja naquela época eclipsado “tao indevidamente por outro que Ihe deu o vulgo, mal considerado, depois que o pau da tinta comecou de vir a estes reinos”. Para magoar “ao Deménio, que tanto trabalhow e trabalha por extinguir a meméria da Santa Cruze desterri-la dos coragdes dos homens, mediante a qual somos redimidos, FA p. 324226 noite quate do séeulo XVI a nomenclaurn comeicial se fixe radicou defi aitvameate,soplantando a mistica, quer aa expressao popular, quer ainda na erudite” * Hi controvérsia sobre a vinda de Gandavo ao Brasil, mas, dinate das evidéncias,alinho-me com os aque acreditam que ele de fato esteve aqui. (Rodrigues 1979: 426-28;431-32). Capistrano endossa a hhiporese da estadia de Gandavo no Brasil: “Arendendo as minuclosidades da descrigao da Babi € hitps wuz revistas.usp.brrevhistorialartclelview!18919/20082 10727 sa10w2021 POF js viewar ese Soe, Rest de Mista e livrados do poder de sua tirania”, Gandavo propunha que se restituisse & terra 0 nome antigo, chamando-a — dai o titulo de seu livto — Provincia de Santa Cruz. Aos ouvidos cristaos, concluia, soava melhor o nome “de tm pau em que se obrou © mistério de nossa redengao que 0 doutro, que ndo serve de mais que de tingir panos ou cousas semelhantes”. Gandavo foi, como se sabe, um propagandista da colonizagao, escrevendo, por isso, uma histéria “antes natural do que civil”, onde as riquezas ¢ potencialidades da terra excitariam as pessoas pobres para virem povod-la (Abreu 1932: 300). Na sua concepedo, que Capistrano chamou “teolégica” mas que foi, sobretudo, tipica de seu tempo e da indistinedo entre o sagrado e o profano vigente na época, colo- nizac@o nio podia ser entendida sem cristianizacdo, nem descobrimento sem pro- vidéncia divina. Deus tinha, desde muito cedo, dedicado a terra a Cristandade: na pas- sagem em que trata do nome da terra e lamenta o triunfo da designaco comercial sobre a religiosa, Gandavo acrescenta um aspecto novo, ausente dos demais textos. Lembra que o nome de Santa Cruz, dado inicialmente por Cabral, fazia sentido nao apenas por ter-se rezado a primeira missa no dia 3 de maio, quando se comemorava 0 Lenho Sagrado, mas porque as terras descobertas por portugueses cabiam & Ordem de Cristo, cujos cavaleiros traziam no peito a cruz por insignia, Nao havia pois como negar & colonizacao o seu caréter sagrado, que deveria se refletr no nome da terra a colonizar. Antes da Histéria da Provincia de Santa Cruz —cujo titulo é acompanhado do complement a que vulgarmente chamamos Brasil -, Gandavo eserevera um Tratado da Terra do Brasil, provavelmente redigido em 1570 (Garcia 1924: 13). No transcurso de cinco anos, portanto, mudara de posicao e passara a considerar preferivel a designacao religiosa, sinalizando, como Joao de Barros, que a designagao comercial se impusera por abra do vulgo e nao deveria, nessa qualidade, set endossada por homens doutos e pios. Houve contudo homens religiosos que, na época, ficaram fora dessa discussto. Importantes textos jesuiticos produzidos na segunda metade do século XVI igno- raram trangiilamente a questo e ndo hesitaram em abracar a nomenclatura que se ia consagrando, ou seja, a referida ao pau de tinta, Para Nobrega, o Brasil ainda era hitps:lwwizrevistas.usp brrevhistorialartclelview!18919/20082 7 wer sa10w2021 72 POF js viewar sede toe Sosa Reva de Histrie plural: “A informaeao que destas partes do Brasil vos posso dar. formacao das Terras do Brasil, de 1549 (Nobrega 1988: 97). José de Anchieta teria atitude semethante, anos depois. Na Informagao do Brasil ¢ de suas capitanias, de 1584, resolve o problema de forma direta e sem mais delongas: “Os primeiros por- ‘tugueses que vieram ao Brasil [no singular] foram Pedro Alvares Cabral com alguma gente em uma nau que ia para a india Oriental no ano de 1500 [...]. E toda a provin 20 principio se chamava Santa Cruz: depois prevalecen o nome de Brasil por causa do pau que nela hd que serve para tintas” (Anchieta 1988: 309). Naquele momento, a guerra dos nomes nao era assunto de padres catequistas, para quem as lutas entre Deus ¢ o Diabo tinham um sentido bem mais corpéreo, enearnando-se no esforco cotidiano e cada vez mais estéril de converter almas para a vinha do Senhor Outro jesuita célebre, o Padre Fernito Cardim, também adotou sem problemas a designacdo de Brasil nos seus textos, ignorando a questo da nomenclatura anterior: Do clima e terra do Brasil e de algumas cousas notiveis que se acham ' escrevia na In assim na terra como no mar, € Do principio e origem dos indios do Brasil ede seus costumes, adoracéo e ceriménias. Devem ter sido escritos por volta de 1585, e foram publicados quarenta anos depois numa coleténea do inglés Purchas, denominada Pilgrimages’. Contempordneos da Informagao de Anchieta, neles o Brasil também. figura no singular: a parte comecava a se tornar um todo devido sobremdo a coloniza¢ao que avancava, aproximando os portugueses de um e de outro lado do Allintico, Tomou-se célebre a frase que abre 0 capitulo XV de Do climae terra do Brasil: “Este Brasil é j4 outro Portugal...” (Cardim 1978: 66). Na Noticia do Brasil, de Gabriel Soares de Sousa, obra de 1587 e unanimemente considerada a mais importante do século XVI, a referéncia a nomenelatura dupla aparece pela primeira vez numa perspectiva distinta, secular e historica, O relato dio descobrimento é fatual e objetivo, explicando-se o nome de Santa Cruz, sob o \sortiheus, pode-reafirmar sen conhecimento direto das duas capitanias: é possivel mesmo que es tivesse em So Vicente, de cujas barra da iia tao previse,¢ em outras capitanias intermeédias, Em. Permambuco, cettamente, no pisou” (Abreu 1932; 300). 7 luda aqui ao bela titslo do livro de CastelnaielEstile 2000 hitps:lwwizrevistas.usp brrevhistorialartclelview!18919/20082 tan7 sa10w2021 POF js viewar ese Soe, Rest de Mista qual a provincia foi nomeada por “muitos anos”, devido A cruz erguida no local quando da primeira missa rezada a mando de Cabral (Sousa s/d: 65). Nada se diz de diabos, luta entre o Bem eo Mal, entre 0 sactificio de Cristo e © vil comércio, Quase quarenta anos depois, em 1618, 0 Didlogo das Grandezas do Brasil, de Ambrésio Fernandes Brando, apresentaria posicao anéloga, acrescentando contido mais um elemento: a identificagao da terra com o continente, retomada apenas no século seguinte, “Essa provincia do Brasil é conhecida no mundo todo com o nome de América’, diz Brandénio, “que com mais raztio houvera de set pela terra de Santa Cruz, por ser assim chamada primeiramente de Pedralvares Cabral, que a descobri em tal dia, na segunda armada que el-Rei D. Manuel, de gloriose memiia, mandava’ india, c:ecasa topow contest: grande forma ndlo-vistis nem conhecida até entio no mundo”. Alviano, o outro interlocutor do Didlogo, indaga que razio houve para acabar esquecido o nome de Santa Cruz, originalmente dado por Cabral. “Nao o esté para com Sua Majestade e os senhores dos Conselhos”, responde Brandénio, “pois nas provisdes e cartas que passam, quando tratam deste Estado, lhe chamam a Terra de Santa Cruz do Brasil; e este nome Brasil se Ihe ajuntou por respeito de um pau chamado desse nome, que dé uma tinta vermelha, estimada por toda a Europa, que s6 desta provincia se leva para ld” (Brandao 97: 14-16) Da narrativa sobre o descobrimento, Brandénio suprimira o providencialismo divino, fundamental na passagem-mae de Jodo de Barros, e introduzira 0 acaso. Acerca da ambigtidade da nomenclatura, invocara as evidéncias, os documentos oficiais que continuavam fundindo os dois nomes. Constatagdes secas, encadeadas como mum livro de contabilidade, sem qualquer recurso ao sobrenatural ‘Masa nomenclatura comercial nao suplantaria de imediato a nomenclatura mis tica, como vit Antonio Baido (Baido 1923: 324). Ambas conviveram por longo tem- po tanto nos despachos dos Consethos reais quanto nas paginas dos livros que os letrados da época escreveram sobre a nova terra, que ia ficando mais velha mas nao perdia a ambigiidade. E assim se chega & primeira Historia do Brasil digna do nome, escrita pelo franciscano Frei Vicente do Salvador em 1627. hitps:lwwizrevistas.usp brrevhistorialartclelview!18919/20082 3 13007 sa10w2021 POF js viewar as dei Sos, Ret de Misti A primeira vista, Frei Vicente filia-se A tradigdo fundada por Jodo de Barros, segundo a qual o diabo conseguira substituira Santa Cruz pelo pau de tinta na deno- minagao da nova terra, Com a crucifixao de Jesus, que viera ao mundo salvar os homens do pecado, e a subsequente adoragao da cruz, usada também para afastar 0 deménio, 0 diabo perdera o poder que tinha sobre os homens. Os textos de Joao de Barros e Frei Vicente se aproximam muito nesse tocante. Diz o autor das Décadas: “Porm, como o deménio per o sinal da cruz perden o dominio que tinha sobre 1nés, mediante a paixio de Cristo Jesus consumada nel: tanto que naquela terra comecou de vir 0 pau vermelho chamado brasil, traballiou que este nome ficas- se na boca do povo, e que se perdesse o de Santa Cruz. Como que importava ‘mais o nome de wm pau que tinge panos: que daquele pau que dew tinta a todos os sacraments per que somos salvos, per o sangue de Cristo Jesus que nele foi detramado” (Barros 1988: 174-175 Frei Vicente o acompanha de muito perto: m4 “Porém, como o demdnio com o sinal da cruz perdeu todo o dominio que tinha sobre os homens, receando perder também a muito que tinha em os desta terra, ‘abalhou que se esquecesse 0 primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau assim chamado de cor abrasada e vermelha com que tingem panos, ‘que o daquele divino pau, que deu tintae virtude a todos os sacramentos da ere, ce sobre que ela foi edificada e ficou tao firme e bem fimdada como sabemos (Salvader s/d: 15), ‘Ha, contudo, duas diferencas substanciais no texto do frade franciscano, acima transcritas em itilico: a perda do controle demoniaco sobre os homens nao valia para a nova descoberta, onde os habitantes eram ainda gentios e, nessa condigao, sujeitos potenciais do Diabo; os sacramentos no apenas salvavam —e isso Joao de Barros ja dissera — como possibilitavam a instituigao eclesiastica e a fortaleciam. ‘Mesmo que nao o explicite no texto, Frei Vicente leva o leitor a ver a necessidade * Sobre a rocambolesea historia dos escrito de Cardim, pilhados por corsarios num naufiagio, ver Tlesins & Garcia 1978. hitps:lwwizrevistas.usp brrevhistorialartclelview!18919/20082 snr sa10w2021 POF js viewar ese Soe, Rest de Mista ont, 6.56 da catequese, que transformaria os gentios em fiéis e fortaleceria a Igreja. Se 0 fopos era repetido, o contexto histérico fazia com que mudasse de significado, e entre Jodo de Barros e Frei Vicente, 0 processo de colonizagao langara raizes’. Isso explica porque, na continuagdo do pardgrafo, Frei Vicente deixa de lado a defesa dos fundamentos religiosos da nomenclatura e passa a analisar a natureza da ocupagao da nova terta, afastando-se de Joao de Barros ¢ aproximando-se de Brandénio. A terra, reconhece o frade, “nao se descobriu de propésito e de principal intento, mas acaso”: terra, alids, “da qual nao havia noticia alguma”. A tensdo entre Deus ¢ 0 Diabo, inserita no nome que Ihe deram, era certamente mais do que mera retérica para Frei Vicente, mas o motivo que o levava a justificar a restauragdo do primeiro nome era a necessidade de recolocar a colonizagao nos trilhos: o vicio do nome funcionava, assim, como metéfora do vicio mais fundo da colonizacao. Tinham tentado dar certa autoridade & designagdo da terra, chamando-a “Estado do Brasil”, mas fora em vio: “ficou ele [o estado] to pouco estivel”, diz o frade, que, passados cem anos da descoberta e do inicio do povoamento, “jé se hao despovoados alguns lugares, e sendo a terra tio grande e fértil, como ao diante ‘veremos, nem por isso vai em aumento, antes em diminui¢ao”. De quem seria a culpa de tera colonizacao desandado? Para uns, era dos reis, ne, intitulando-se senhores da Guiné, “nem o titulo quiseram” do Brasil, dando- Ihe pouca atenc&o depois que D. Jodo IIL, esse sim um povoador, desaparecera. Desde entio, a Coroa s6 cuidara de “colher as suas rendas e direitos”. Para outros, era dos povoadores, que nio conseguiam se fixar de fato na terra e, uma vez ricos, 86 pensavam em levar tudo para Portugal, pondo os interesses privados na frente dos piiblicos: “nenhum homem nesta terra é repiblico, nem zela ou trata do bem comum, seno cada um do particular” A auséncia de sentido comum impedia que a terra fosse uma reptblica, “sendo- ‘cada casa”, conforme observara um prelado espanhol de passagem na terra’. Frei # Sobre a importineia dos coatestos histérloos na alteraet do seatido de certos topo! poderazos da cultura ocideatal, ver Ginzburg 2001 "Para un andlise dessa passagem que peivilegin as relagBes entre o publica eo privado, ver Novas 1997 hitps:lwwizrevistas.usp brrevhistorialartclelview!18919/20082 75 18227 sa10w2021 76 POF js viewar sede toe Sosa Reva de Histrie ‘Vicente reconhece todas essas razdes, mas acredita que a elas “se pode ajuntar a [...]de the haverem chamado estado do Brasil, tirando-the o de Santa Cruz, com que pudera ser estado e ter estabilidade e firmeza” (Salvador s/d: 16-17) Esses exemplos — Ambrésio Femandes Brandao e Frei Vicente do Salvador ~ ‘mostram que contetidos mais secularizados comecavam ase manifestar sob a super- ficie das formas de cunho mistico, mas ainda nao conseguiam prescindir delas. Ao fim e ao cabo, persistiam limites 4 secularizacao do pensamento, podendo parecer contraditério e intrigante que religiosos como Nobrega, Cardim ou Frei Vicente se incomodassem menos com a perda da nomenclatura mistica em favor da comercial do que letrados como Jodo de Barros ou Gandavo. Talvez a chave do aparente enigma esteja na natureza ambivalente do humanismo civico portugués ‘Ohumanismo civico que nascera em Florenca e tivera sélida formulagao teérica has geracdes subsequentes impunha “o primado do direito e da justica na governaco, ¢ preconizava a submissio dos interesses privads a0 interesse co- letivo”. Na Ilia, houvera coincidéncia entre essa doutrina e “os interesses da estrutara social e da ideologia politica das respectivas comunidades”. Em Portugal, porém, humanismo civico se combinou com a defesa da monarquia e de suas pol tema nodal desse discurso foi o embate entre vida ativa—“vida de agto, posta 20 servigo da comunidade” —e vida contemplativa—“vida intelectual”, Se num primeiro momento as “preocupagdes mais estéticas ¢ as idéias literirias da romanizacio” dominaram 0 humanismo portugués, aos poucos elas foram eclipsadas pelos motivos ligados & expansio, despertando localmente um interesse que por toda a Europa —e sobretudo entre italianos — jd se encontrava disseminado (Rebelo 1998: 124-126)" ‘Hii sem chivida ecos do bumanismo portugués na idéia de repribtica expressa por Frei Vicente no trecho citado, ¢ tal como a concebera Martinho de Figueiredo 1n0 Comentum super profogum naturalis historiae Plinii: em termos mais amplos, icas, 20 Luis de Mattos chamou a atenglo para 0 fato de 0s demas europeus se deixarem fascinar pelas narrativas de vingens antes dos portugueses (Mattos 1991), Para o humanismo civico, ver 0 texto clissico de Garin 1993, hitps:lwwizrevistas.usp brrevhistorialartclelview!18919/20082 16227 sa10w2021 POF js viewar ese Soe, Rest de Mista ont, 6.56 capaz de abarcar nao s6 os territérios diretamente controlados pelo rei como todos, ‘05 demais, integrantes da totalidade “onde se exerce a autoridade da ci Rebelo viu que essa nova conceituagio mostrava “uma adaptagao as realidades, trazidas pela Expansio, na qual se inclui”, no tempo de Martinho de Figueiredo, a criagao do estado da india” (Rebelo 1998: 127). Quase um século depois, Frei ‘Vicente via-se 4s voltas com um problema concreto: a criacdo do Estado do Brasil, inspirada nos antecedentes asifticos, nfo propiciara o surgimento de um espirito civico, onde a comunidade se sobrepusesse aos interesses individuais. Por isso nenhum homem na terra era “repiblico”, nem zelava do bem comum, “send cada ‘um do particular” 44 0s ecos do humanismo civico presentes na formulacdo de Joao de Barros, sii de outra natureza, Por um lado, num context politico em que o Turco avangava sobre a Europa, esses ecos vinculam-se ao espirito de cruzada que impregnou varios dos humanistas portugueses, opondo-se ao pacifismo e & busca de solugdes por meio da concérdia religiosa. “Qual principe converten & Fé de Cristo tantas provincias, tanta multido de almas, cuja bem-aventuranga nao pode deixar de ser comunicada com a causa dela?.... Vossa Alteza, além de a seus naturais manter em muita paze justiga, manda continuamente por mar e por terra seus exércitos e grossas armadas contra os infiéis, buscando sempre novos triunfos e vencimento”, diria Joao de Barros nos Panegiricos (Dias 1969: $27). Por outro lado, a passagem de Jodo de Barros sobre 0 Santo Lenho e 0 pau- brasil relaciona-se a0 profetismo e ao providencialismo comuns as crénicas portuguesas dos descobrimentos. Nesta seara, 0 De Nobilitate Civile et Christiana (1542), de D. Jerénimo Osério, fora um marco, sustentando “que todos os feitos, dos portugueses, desde a criagao e a fundacao do reino, s6 se poderiam entender com a ajuda de Cristo” (Dias 1969: 132). Ora, 0 trecho das Décadas sobre a ‘nomenclatura mistica e a comercial do Brasil sugere uma guinada no que diz respeito tanto ao providencialismo quanto ao espirito de Cruzada contra o infiel: invocam- seas agdes salvacionistas portuguesas, mas o tom nao é de triunfo, e sim de derrota, ois Diabo leva a melhor sobre Cristo. Como a colonizacao portuguesa da América jtas”. Sousa hitps:lwwizrevistas.usp brrevhistorialartclelview!18919/20082 7 wer sa10w2021 78 POF js viewar sede toe Sosa Reva de Histrie ainda engatinhava, referida apenas a iniciativas particulares, o tom derrotistatalvez reflita antes os insucessos da india e uma crise no oriente do Império. Mais: 0 con- fronto entre o soldado cristo e 0 mercador parece encobrir a tenso sempre dolorosa, nna época, entre vida ativa e vida contemplativa, e que, durante o govern de D. Jo80 IIL, corporificou-se na oposicao que, juntas, a nova nobreza e a classe mercantil fizeram a alianca entre a monarquia ¢ os letrados burocratas, como Joao de Barros”. Conforme o século XVI chegava ao fim, essa alianga se esgarrava, ¢ 0 messia- nnismo “ja com laivos sebastianistas” se imiscuia na produgdo letrada (Rebelo 1998: 132), Sob a ago cada vez mais enérgica do Santo Oficio, terminava o tempo sureo de uma politica cultural promotora das letras e das artes, e alguns dos principais expoentes do efémero Colégio das Artes, expresso maior da alianea entre os letrados ea monarquia deixaram Portugal assim que puderam, como os Buchanan e Damido de Géis (Dias 1969: 998-999)" ‘esse novo contexto, o embate entre o Santo Leno eo pau-brasil perderia muito do sentido original, inteligivel apenas no contexto do humanismo portugues e dos conflitos entre letracios burocratas e mercadores, Dele se conservou 0 aspecto mais aparente, de eruzada do Mal contra 0 Bem. Em Gandavo, ¢ um opos jé meio esva- ziado; em Frei Vicente, é um invélucro que recobre o esforgo reinterpretador do sentido da colonizacao portuguesa na América, onde se procurava dar a César 0 que era de César, ¢ @ Cristo 0 que era de Cristo. 4. Persisténcias extemporiineas = Paro agu de algunas idéias de Sousa Rebelo 20 2 cltado es intxpeeto tvremente 150 intelectuais de formato ewropéia ou de opgto humanstaviramse rapidamate, depois de 1880, sobretudo depois de 1360, como o peice fora dAgua em Portugal. Perderam astrondosanieate a batalha na luta contra a mediceridadee a paisio. Os seus advetsirios pestenciam em grande ai tmero@ classe dos homens obscuros mas das homens obscuros cont uma idelogia de contornos & conteios bem definidos,senhores de um forte querer e concentrados nos organisms de controle ideolgaicoe politico da realidade nacional” (Dias 1998). hitps:lwwizrevistas.usp brrevhistorialartclelview!18919/20082 19227 sa10w2021 ese Soe, Rest de Mista POF js viewar © Bem e 0 Mal, Deus ¢ 0 Diabo continuariam a envolver o nome do Brasil em Epocas posteriores, mostrando que, sob a diversidade dos contextos, persistiam profundos tragos mentais. Andemos no tempo para melhor entender o fendmeno, Em 1728, cem anos depois de Frei Vicente escrever sua Hiséria do Brasil, Nuno Marques Pereira daria a ptiblico 0 Compéndio Narvativo do Peregrino da América’. A passagem referente aos primérdios do Brasil faz parte de um capitulo dedicado aos “louvores dda Santa Cruz”, dentre os quais se destacam os de cariter politico e eruzadistico, ou seja, a eficdcia da invocagdo do Lenho em situagdes de guerra e batalha’ “E assim nto houve imperador nem rei cristio que nto usasse da Santa Cruz ‘para conseguir as suas maiores empresas”, incluindo-se nessas “dividas e mer- cés ...] os nossos reis de Portugal c scus vassalos a nosso Senhor Jesus Cristo”, iniimeras vezes socortidos pelo sinal da Cruz, “cou eujo patrocinio venceram ¢ desbarataram a seus inimigos. aprovando e exaltando a nossa Santa Fé” (Pereira 1939: 89. A Afonso de Albuquerque, a cruz aparecera no mar da Pérsia e Ihe garantira sucessos. A conquista da Etiépia também se devera a cruz, e, dando seqhéncia a construgio desse império de Deus por Portugal, algo anilogo ocorrera no Brasil: ‘io foi menos venerada a Santa Cruz nesta Provincia do Brasil, quando pelo capitdo Pedro Alvares Cabral foi descoberto este Estado no ano de 1500. E assim, acompanhado de muitos portugueses, saltaram em terra. a0s 3 dias do més de maio, como afinmam alguns: ¢ logo, arvorando o estandarte da sagrada cruz em demonstragio de grande alegria, se celebrou a missa, e houve pregacao, nio fal- tando salvas de artiharia da Armada; e puseram por nome, a terra tio formosa, Provincia de Santa Cruz: titulo que depois converteu a cobica, ¢ os interesses do snundo, em Provincia do Brasil, como vulgarmente hoje se chama”. "4 data da publicagio do livro de Nuno Marques Pereira & controversa, mas sigo a “Nota Prelimi- nar” de Afianio Peixoto, onde fica provado que a data da publicaglo & 1728 (Pereira 1939; V-XI ‘Moraes 1969: 279), hitps:lwwizrevistas.usp brrevhistorialartclelview!18919/20082 79 s9n7 sa10w2021 POF js viewar sede toe Sosa Reva de Histrie ‘Na pena do moralista Nuno Marques Pereira, invocava-se o tom providencialista e messidnico que o fim do humanismo fizera aflorar em Portugal, e que o padre Antonio Vieira, morto trinta anos antes, celebrizara em seus escritos, A cruz e a espada estavam juntas de novo na génese do Brasil, aliés América, © a perda do primeiro nome, o sagrado, se devera, como no topos fundado por Joao de Barros, a0 comércio. Por isso, o Peregrino tem inegavel caréter residual. Dois anos depois, em 1730, Sebastido da Rocha Pitta publicaria uma Histéria da América Porniguesa. A mudanga no titulo no & gratuita, e a obra, obviamente engajada, pertencia ao contexto de exaltacdo dos feitos portugueses na América, bem tipica do dificil periodo atravessado pela monarquia joanina, carente de afi ‘magdo na Europa e acuada apés vinte anos de ininterruptos levantes e sedigdes no Brasil’, Portugal e Brasil formavam um s6 corpo, e intelectuais contemporiineos a Antonio Rodrigues da Costa, Alexandre de Gusmao, Dom Luis da Cunha ~ falariam, pela primeira vez apés a Pitta, ou uma geracdo mais jovens do que ele morte de Vieira, da provivel mudanga da Corte para a América. E curioso que, em. ” contexto tio novo, retorne, mesmo se um tanto eliptica, a formulagao tradicional, ji entdo, como se vin, transformada em topos e bem afastada do significado primeiro. Apés uma travessia perigosa, narra Rocha Pitta, Cabral aportou na nova terra, chamando-a Santa Cruz. Arvorow o estandarte da f8, disparou as pecas de artilharia e fez rezar missa sobre um altar “que levantou entre aquele inculto arvoredo, que Ihe serviu de dossel e de templo”, assistido por barbaros admirados “mas reverentes”, prontos a abragar — como depois o fizeram —a fé catélica. “Este foi o primeio descobrimento, este o primeiro nome desta regido, que depois, esquecida de titulo tdo superior, se chamou América, por Américo Vespiicio, e ultimamente Brasil pelo pau vermelho, ou cor de brasas, que produz” (Pitta 1880: 3), [Nas varias licengas — da Academia Real, do Santo Oficio, do Conselho de Sua Majestade — que antecedem o texto de Pitta, somam.-se os elogios A iniciativa de ‘Ver a respelto Bicalho e Souza 2000. hitps:lwwizrevistas.usp brrevhistorialartclelview!18919/20082 2or7 sa10w2021 POF js viewar ese Soe, Rest de Mista escrever uma hist6ria da terra, a primeira de que se tinha noticia desde a de Gandavo, jd que a Histéria de Frei Vicente s6 se descobrir ventura de achar na eloquéncia de um filho 0 methor instrumento da sua gloria eo maior manifesto do sew luzimento”, dizia Frei Boaventura de Sao Gio, Qualificador do Santo Oficio. “[A]tendendo ao que este autor escreveu, entendo que justamente se Ihe deve dar o titulo do novo Colombo, porque com o seu trabalho € com o seu estudo nos soube descobrir outro mundo novo no mesmo mundo descoberto”, reivindicava Dom José Barbosa, cronista da Casa de Braganca e Examinador das, Trés Ordens Militares, Pitta permitia que se soubesse “com distineao” o que antes estava “em confuso”, continuava Dom Barbosa. Até ento, muitas histérias particu ares haviam contado desgragas, sobretudo nas narrativas acerca da guerra pernam- bucana contra os holandeses; chegara a vez de “darem noticias das nossas vitérias”. ‘Martinho de Mendonca de Pina e Proenca, célebre ilustrado portugués e membro da Academia Real de Histéria, ponderava que o tom poderia ter sido mais enco- mifstico ainda: “Algum reparo se poder fazer na miudeza com que em histéria tao sucinta relata alguns sucessos mais dignos de horror e siléncio do que de ‘meméria”. Por outro lado, reconhecia que “nao fazer deles mengdo seria diminuir a gloria dos leais encobrindo a infiimia dos traidores contra as severas leis da Histéria, Nihil veri non audet”(Pitta 1880: XXIIUsegs). As oscilagdes de juizo refletem as incertezas da época, quando 0 Império peri- clitava apés trinta anos de levantes ea meméria ainda ardia com a lembranga da guerra emboaba em Minas Gerais (1707-1709), da guerra dos mascates em Per- ‘nambuco (1709-171 1), das invasdes francesas do Rio de Janeiro (1710-1711), das revoltas do Maneta em Salvador (1711), dos revoltosos enforcados quando da Revolta do Tergo Novo na mesma cidade da Bahia (1728). Antonio Rodrigues da Costa, 0 enigmético Conselheiro que presiditi o Conselho Ultramarino por mais de vinte anos, fazia um comentirio seco e curto: “e ainda que me parece mais elogio, ou panegirico, que histéria, nado entendo que desmerece o autor que Vossas Exceléncias lhe concedam a faculdade que pede” (Pitta 1880: XTX). O livro impri- miu-se, @ 0 tempo mostrou a justeza do julgamento de Rodrigues da Costa. no século XIX. “Tem o Brasil a hitps:lwwizrevistas.usp brrevhistorialartclelview!18919/20082 27 sa10w2021 82 POF js viewar sede toe Sosa Reva de Histrie 6196 (© panegirico de Rocha Pitta se refere indistintamente a América Portuguesa € 10 Brasil, Se havia na nova nomenclatura um conteiido programético, que reforcava tanto a sujeigao irrestrita da terra a sua Mettpole quanto a dimenséo continental do império portugués, a indefinigao continuava presente. Aliés, no limite, era o nome de Brasil que continuava se impondo, neutralizando a tentativa de identificar a regio 20 continente. ‘Mas voltemos ao ponto de partida. A possibilidade dos varios nomes e dos mit plos senticos esta diretamente ligada & questdo da indefini¢%0 que mareou o nasci- mento do Brasil. Tel indefiniedo, por sua vez, ndo pode set compreendida fora do contexto em que se montou 0 império portugués, de inicio muito mais voltado para a Affica e a Asin do que para o Brasil. Durante os primeiros 50 anos do século XVI, © Atlantico portugués nfo foi o Atlintico Sul dos séculos posteriores, onde Brasil ea Africa formaram um sistema que teve papel fundamental na redefinicao do impé- rio (Boxer 1950; Alencastro 2000), mas 0 Atlantico da costa ocidental africana e o da rota para as indias. A nomenclatura flummava pois sobre um espaco que era vago e nfo despertava grande interesse. Nao ha, além da notavel carta de Pero Vaz de Caminha, escritos portugueses sobre as terras brasileiras antes das cartas jesuiticas do meado do século, Se os portugueses chegaram a india descrevendo homens, bichos e plantas, e se Zurara ja fizera uma crénica da Africa no século XV, nada se fala sobre a natureza e os homens da terra tocada por Cabral nesses primeiros cinglenta anos que, por tudo isso, afiguram um grande vazio. ‘Mas @ flutuacdo do nome do Brasil tem outros significados. Barros, Gandavo, ‘Nuno Marques Pereira expressam, na longa duracio, a persisténcia de um universo ‘mental marcado pelo embate entre Deus ¢ o Diabo, que podia assumir formas sofis- ticadas e eruditas — como no humanismo de Joao de Barros ~ mas qu ‘variando os contextos, reduziam-se quase a caricaturas, conforme se véna passage, do Peregrino, Nem sempre eram religiosos os que mais lastimavam a perda da desig- nacao mistica, mesmo porque para eles restava a esperanca da catequese enguanto meio de salvagio para os naturais da terra, conforme fica evidente no trecho de Frei ‘Vicente do Salvador. Por outto lado, até para os mais afeitos a uma nascente men- uma vez hitps wuz revistas.usp.brrevhistorialartclelview!18919/20082 2an7 sa10w2021 POF js viewar ese Soe, Rest de Mista talidade mercantil — como Brandénio -, era tal o poder do topos mitico que nao havia como ignoré-lo, Ohistoriador langa mao de hipéteses e busca a compreensio, sempre baseando- se em evidéncias empiricas, como se pensa ter feito aqui. No caso especifico do nome do Brasil, é preciso ir além do significado aparente, j4 que a repeti¢ao do topos oculta deslizamentos ¢ até alteragdes semanticas. Parece bastante ébvio que a oscilagdo entre o nome mitico ¢ o comercial condicionou certas interpretacdes negativas sobre o pais: terra de degredados, fadada ao fracasso, por motivos varios corrompida desde o inicio, quando um nome profano, mundano e de inequivocas implicagdes inferas solapou o nome santo que lembrava a remissio dos pecados hhumanos e que se procurara celebrar nfo apenas com a cruz de pedra (ou madeira) ‘erguida na praia como com a cruz de estrelas localizada no céu. Por tudo isso, 0 que acontecen com a nomenclatura ¢ bem mais do que a aplicacdo continuada de ‘uma pura metifora. Outras coldnias adquiririam coloragdes negativas e até mesmo malditas, nao fossem elas, de saida, designadas como local de degredo para criminosos e hereges, que assim purgavam seus pecados em infernos provis6rios — como 0 &, de resto o proprio Purgatdrio dos catolicos”. Fato impar entre terras coloniais, 0 Brasil seria a Unica, contudo, a trazer essa relagao tensa inscrita no préprio nome, que lembraria para sempre as chamas vermelhas do inferno. Referéncias Bibliogrificas ABREU, Capistrano de. 0 descobrimento do Brasil pelos portugueses. Rio de Jancito. Laemmert, 1900. "para a Austrilia,veja-se Hughes 1987. Paraa funcRo porgatéria da colénia hso-brasilera, veja-se Souza 1993: £9-101. Para © degredo inguisitacial, Pieroni 2000. hitps wuz revistas.usp.brrevhistorialartclelview!18919/20082 227 sa10w2021 POF js viewar as dei Sos, Ret de Misti ABREU, Capistrano de, “Introdugto a0 Tratado da Terra do Brasil e Histéria da Provincia de Santa Cruz” in Ensaios e Estudos ~ Critica e Historia ~ 7" série, sl, Edigho da Sociedade Capistrano de Abreu, Livraria Briguiet, 1932, pp.297-304 ALENCASTRO, Luts Filipe. 0 rato dos viventes. Sto Paulo, Companhia das Letras, 2000. ANCHIETA. José de. Jnformasées, fragmentos histricos esermées. 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