Você está na página 1de 50

1

1 NOTAS ESTRANHAS AO ACORDE – PARTE 2

Na primeira apostila foram apresentados os casos mais simples de notas


estranhas ao acorde: notas de passagem e bordaduras. Esse estudo continua agora com
os demais tipos mais comumente estudados: antecipação, escapada, apojatura,
suspensão e pedal.

1.1 ANTECIPAÇÃO (Ant.) APROXIMADA POR RESOLVE POR


Contorno Melódico: Grau conjunto ou salto Mesma nota
(raramente por salto)

Figura de impulso, muito usada para marcar o final de uma frase (especialmente
no final de uma peça ou de uma seção), geralmente na voz mais aguda de uma textura,
enfatizando a última nota da melodia. Muitas vezes é a conclusão de um trinado
(recurso típico do período barroco). Abreviada aqui como “Ant.”, é quase sempre
submétrica e normalmente não acentuada.
Do ponto de vista harmônico, é a antecipação de uma nota do acorde seguinte.
Tradicionalmente as antecipações são preparadas por grau conjunto e seguem na mesma
nota, conforme a ilustração:

Figura 1 – Antecipação

Apesar do exemplo acima apresentá-la em um contexto de finalização, a


antecipação também pode ocorrer em outros pontos de uma frase.

RECEITA DE ANTECIPAÇÃO:
- Pegue uma nota de um acorde que esteja localizada em tempo forte (ou parte
forte de tempo) e coloque-a também em uma fração de tempo que a antecede,
mantendo-a na mesma voz e na mesma altura.
2

APROXIMADA POR RESOLVE POR


1.2 ESCAPADA (E)
Contorno Melódico: Grau conjunto Salto em sentido oposto

Normalmente as escapadas são submétricas, não acentuadas e diatônicas. O


exemplo abaixo apresenta uma condução a quatro vozes somente com notas de acorde e
duas possibilidades de inclusão de escapadas:

Figura 2 – Escapadas.

RECEITA DE ESCAPADA:
- Pegue um movimento ascendente ou descendente, na mesma voz, entre notas
de acordes consecutivos1.
- Acrescente entre elas um grau conjunto em sentido oposto. É essencial que a
nota acrescentada não pertença ao acorde em questão.
Piston (1987) aponta uma variação da escapada, à qual se refere como reaching
tone2: nota estranha ao acorde atingida por salto e resolvida por grau conjunto. Os
exemplos a seguir mostram duas notas de acorde e, respectivamente, o acréscimo de
uma escapada (E) e de uma reaching tone3 (RT) entre elas:

Figura 3 – Comparação entre escapada e reaching tone, segundo Walter Piston.

1
As escapadas da figura 2b e 2c tomam por base, respectivamente, os seguintes movimentos entre notas
de acordes consecutivos da figura 2a: Si-Dó (soprano) e Lá-Sol (tenor).
2
O autor aponta ainda a semelhança entre estas e a cambiata usada no contraponto do séc. XVI.
3
Em tradução literal seria algo como “nota de alcance”.
3

A figura 3 preserva a nomenclatura utilizada pelo autor (RT), mas na prática


podemos considerar ambos os casos como escapadas (E) realizadas de formas diversas.

1.3 APOJATURA (Ap.) APROXIMADA POR RESOLVE POR


Contorno Melódico:
Salto Grau conjunto na
direção oposta

Nota estranha ao acorde, diatônica ou cromática, apoiada em tempo forte ou


parte forte de tempo. O nome apojatura vem justamente desse fato (do italiano
appoggiare = apoiar). Pode ser abreviada como “Ap.”.

Figura 4 – Apojatura.

Acima temos o caso mais típico de apojatura: aproximada por salto ascendente e
resolvida por grau conjunto descendente (repare que as notas de acorde no soprano
seguem por grau conjunto ascendente). Alguns autores mencionam também a
aproximação por grau conjunto ou mesmo pela mesma nota (que geralmente faz parte
do acorde anterior).

RECEITA DE APOJATURA:
- Pegue uma nota de um acorde que inicie em tempo forte e troque-a pela nota
que estiver um grau conjunto acima (procedimento mais comum) ou um grau conjunto
abaixo, resolvendo-a em seguida na nota de acorde que estava substituindo.
4

1.4 SUSPENSÃO (S) APROXIMADA POR RESOLVE POR


Contorno Melódico:
Mesma nota Grau conjunto descendente

Considerando um encadeamento de dois acordes, é uma nota pertencente ao


primeiro que se prolonga sobre o segundo, descendo em seguida por grau conjunto para
alguma nota do novo acorde. Pode ser compreendida como uma apojatura preparada.

Figura 5 – Suspensão.

Ocorre em tempo forte ou parte forte de tempo, porém é mais suave do que a
apojatura por ser uma repetição da nota que a antecede. Conforme indicado na figura
acima o padrão melódico e métrico da suspensão é composto de três etapas: preparação,
suspensão e resolução. Raramente a fase de suspensão dura menos de um tempo.
Geralmente há uma ligadura entre a nota de preparação e a nota suspensa, mas
segundo KOSTKA & PAYNE (1989) também há casos em que a suspensão é atacada
diretamente (notas repetidas)4. Analisando a suspensão como uma forma suavizada de
apojatura, o mais importante a se perceber, afinal, são os diferentes graus de tensão
dessas figurações melódico-harmônicas: a apojatura atingida por salto é a que mais
enfatiza a nota fora do acorde, ao passo que a suspensão sem ligadura (ou apojatura
preparada) torna essa nota menos chamativa e a suspensão com ligadura suaviza o efeito
mais ainda.

RECEITA DE SUSPENSÃO:
- Pegue duas notas de acordes seguidos em grau conjunto descendente na mesma
voz;
- Prolongue a primeira destas notas sobre o acorde seguinte de forma a fazê-la
ocupar um tempo forte (ou parte forte de tempo);
- Resolva por grau conjunto descendente.
A suspensão é um recurso que permite colocar uma dissonância em tempo forte
(ou parte forte de tempo), tendo sido uma das possibilidades de tratamento dos

4
Quanto a isso Piston (1987) tem outra opinião: a de que as suspensões sempre contêm uma ligadura de
prolongamento e que, do contrário, trata-se de uma apojatura preparada.
5

intervalos de sétima5 sobre o baixo antes destes passarem a ser compreendidos como
nota de acorde6.
Os tipos de suspensão mais comuns, nos quais uma dissonância resolve em um
intervalo consonante, são identificados como 7-6, 4-3 e 9-8 (intervalos da suspensão e
resolução, contados a partir do baixo) 7:

Figura 6 – Suspensões mais comuns: 7-6, 4-3 e 9-8.

Na voz do baixo acontece a suspensão 2-3 (a única dessas fórmulas mais comuns
que exige movimentação no baixo, pois é nele que a suspensão é resolvida):

Figura 7 – Suspensão 2-3 no baixo.

Observa-se em alguns dos exemplos acima que a suspensão é possível porque a


estrutura intervalar da progressão harmônica contém consonâncias imperfeitas paralelas
envolvendo a voz do baixo. Por exemplo, sextas paralelas entre o baixo e uma voz
superior – ou seja, acordes consecutivos em primeira inversão (fig. 6a) permitem a
suspensão 7-6 e terças paralelas entre baixo e tenor permitem a suspensão 2-3 (fig. 7).

5
Outras formas de suavizar a sétima de um acorde: tratá-la como nota de passagem, bordadura ou
antecipação.
6
Vários tratados de harmonia tradicional exigem que a sétima de um acorde seja preparada como nota do
acorde anterior e resolvida por grau conjunto descendente – ou seja, à maneira de uma suspensão.
7
Convenções numéricas que seguem a lógica da harmonia barroca. É importante lembrar que esses
intervalos são contados a partir do baixo e não a partir da fundamental dos acordes.
6

Apesar da maioria das suspensões serem realizadas com intervalos dissonantes,


existe também a suspensão consonante 6-5:

Figura 8 – Suspensão consonante 6-5.

Um detalhe importante: evita-se escrever a nota de resolução em outra voz


durante a fase de suspensão, pois assim seriam gerados intervalos harmônicos de
segunda ou nona que obscureceriam o efeito da resolução (exemplo: se no acorde de
resolução da figura 8b fosse acrescentada a nota Sol no tempo forte, o choque ocorreria
entre as notas Sol e Láb8). Somente na suspensão 9-8 a nota de resolução já está soando
em outra voz do acorde, pois nesse caso a 9ª é geralmente um ornamento na duplicação
oitavada da fundamental (ver fig. 6c).
Há casos em que o baixo muda junto com a resolução da suspensão, gerando
outras fórmulas intervalares:

Figura 9 – Outras fórmulas de suspensão geradas pelo movimento do baixo simultâneo ao da resolução.

É comum também acontecer uma cadeia de suspensões, especialmente do tipo 7-


6. Nesse caso, o baixo forma uma escala diatônica descendente e cada resolução
transforma-se automaticamente na preparação de uma nova suspensão. Analisando com
cuidado a figura a seguir percebe-se que a estrutura básica são acordes de sexta
paralelos cujas fundamentais chegam atrasadas devido ao efeito da cadeia de
suspensões. Nota-se também que as suspensões mascaram o que seriam quintas
paralelas entre as duas vozes superiores:

8
No exemplo 8a a simultaneidade das notas Sol e Lá não chegaria a soar como um choque.
7

Figura 10 – Cadeia de suspensões 7-6.

1.4.1 RETARDO (R) APROXIMADA RESOLVE POR


POR
Contorno Melódico:
Mesma nota Grau conjunto ascendente

Nada mais é do que uma suspensão que resolve para cima. Para escrever um
retardo a única diferença seria partir de duas notas de acorde na mesma voz que sigam
em grau conjunto ascendente (na figura abaixo, Si Dó). O retardo mais óbvio é aquele
que envolve os graus 7-1 da escala (resolução da sensível, única resolução ascendente
de um grau ativo):

Figura 11 – Retardo com a sensível da escala maior.

Assim como na comparação entre escapada e reaching tone chega-se à


conclusão de que são apenas duas formas de realização de uma escapada (E), aqui
também a suspensão e o retardo podem ser simplesmente considerados como dois casos
diferentes de suspensão (S). Piston sequer cita o termo “retardo” (retardation), assim
como Kostka & Payne, que informam apenas o seguinte:

A resolução da suspensão se dá normalmente em direção ao grau


escalar imediatamente abaixo, mas a resolução para cima não é
infrequente. Se a nota suspensa for a sensível ou uma nota
cromaticamente alterada para cima, terá uma resolução natural para a nota
imediatamente acima. (1987, p. 128)
8

1.5 NOTA PEDAL9 (Ped.) APROXIMADA POR RESOLVE POR

Contorno Melódico: Mesma nota Mesma nota

Nota reiterada em uma determinada voz durante uma progressão de acordes;


geralmente esta voz é a do baixo, ainda que o pedal possa ocorrer também em alguma(s)
das vozes superiores – o que alguns autores identificam como “pedal invertido”.
O “baixo pedal”10 é mais frequentemente utilizado nas seguintes funções:
a) Pedal na Dominante: muitas vezes marcando o ponto de maior tensão
harmônica, entre a metade e o final da composição. Um pedal de dominante
pode ser seguido imediatamente por um pedal de tônica.
b) Pedal na Tônica: em introduções ajuda a estabelecer o centro tonal; em finais
contribui para estabilizar o discurso tonal após as variações e digressões tonais
exploradas na peça. Em composições do tipo moto perpetuo, J. S. Bach
costumava usar este pedal para frear o movimento constante das semicolcheias11.
O baixo pedal tem grande valor expressivo, podendo funcionar como colorido
harmônico ou como recurso de variação (por exemplo, em diferentes exposições de um
mesmo tema, algumas podem ter o baixo pedal e outras não). Frequentemente realça
efeitos de dinâmica (pianissimos e fortissimos) ligados à orquestração12. As receitas a
seguir levam em consideração as recomendações da harmonia tradicional.

RECEITA DE BAIXO PEDAL:


- Escolha um acorde (I ou V) para iniciar o baixo pedal e coloque-o no tempo
forte do compasso;
- Pegue a fundamental do acorde escolhido e prolongue-a no baixo. Reserve.
- Acrescente, enquanto a nota é sustentada, acordes de outra função, incluindo
entre eles no mínimo um acorde que não a contenha13. Isso é o que garantirá o efeito do
baixo pedal, pois do contrário seria apenas uma nota comum sustentada no baixo;

9
Alguns teóricos não consideram que o pedal seja um tipo de nota estranha ao acorde. De fato este
assunto poderia ser abordado somente mais adiante, dentro do tópico “Sucessão Harmônica
(Prolongamento Funcional)”, visto que o baixo pedal serve para enfatizar uma função harmônica.
10
Terminologia adotada a partir da prática harmônica da execução ao órgão de tubos, onde o efeito era
obtido com uma nota grave sustentada na pedaleira enquanto a harmonia se desenvolvia nos manuais.
11
O que não deixa de ser um pedal de freio :D.
12
Exemplos de pianissimo e fortissimo enfatizados por um baixo pedal na tônica podem ser encontrados
na reexposição do tema na seção final de An Der Schönen Blauen Donau, Waltzer, Op. 314 (“O Danúbio
Azul”), de Richard Strauss.
13
Em passagens dramáticas em que o baixo pedal se estenda por mais tempo, é possível que hajam vários
“acordes estranhos à nota”, incluindo até mesmo modulações.
9

- Finalize em tempo forte, fazendo com que o baixo volte a ser a fundamental do
acorde inicialmente escolhido.
Ou seja, espera-se que o pedal seja preparado e resolvido, conforme pode ser
observado no exemplo a seguir:

Figura 12 – Pedal sobre a dominante, em Dó Maior.

Em situações como a deste exemplo vale reparar que, durante o baixo pedal, o
tenor assume a função de baixo. Em um nível localizado o encadeamento da fig. 12
apresenta uma harmonia a três vozes com ritmo de mínima; em um nível mais amplo há
apenas uma dominante ocupando quatro compassos, ainda que contenha um
encadeamento harmônico interno. As análises desta figura mostram isso de diferentes
formas: na convenção para a cifra gradual, baseada nas indicações de William E. Caplin
(1998) para a análise de harmonias do período Clássico, as inversões consideram o
tenor como baixo14 (no exemplo acima o tenor foi analisado como baixo em todos os
graus harmônicos diferentes do V). A cifragem funcional também aponta dois níveis
analíticos: um mais localizado, considerando mudanças de acorde para acorde e também
considerando o tenor como baixo nos acordes em que isso é possível, e outro
considerando todo o trecho como uma região de dominante.
Já na cifra popular o melhor é anotar o baixo pedal da mesma maneira que se
anotam as inversões, incluindo sempre a mesma nota após a barra; considerando o
mesmo encadeamento acima, a cifra seria: G G7 C/G Am/G Dm/G F/G G G7. Esta é a
cifragem que deixa mais evidente a presença de acordes que não contém a nota do baixo
(no caso, Dm/G e F/G). É corriqueiro que uma simples nota comum mantida no baixo
seja chamada de “Baixo Pedal”, pois o efeito se assemelha ao deste, mas a presença de
ao menos um acorde que não contenha a nota do baixo é uma característica essencial e
que justifica enquadrá-lo dentro das “Notas Estranhas ao Acorde”.
Quanto ao tratamento das três vozes superiores, devem ser tomados alguns
cuidados: nas tétrades normalmente a quinta é suprimida, mas nos acordes de sétima
sobre a sensível pode-se suprimir a terça (única nota do acorde com pouco poder linear
de atração – grau 2 da escala). A fundamental pode ser omitida quando a quinta do
acorde estiver no soprano ou no tenor (que correspondem às vozes externas nessa
harmonia a três vozes).

14
Kostka & Payne ignoram essa questão, sugerindo cifrar todos os acordes em estado fundamental,
justificando que o efeito das inversões é alterado pelo pedal e que não existem símbolos convencionais
para representar essa alteração.
10

RECEITA DE PEDAL INVERTIDO – Siga a mesma receita do baixo pedal,


salvo por haverem aqui menos detalhes:
a) A nota sustentada estará em alguma das vozes superiores e, embora esta deva
também iniciar e terminar como nota do acorde a ser prolongado, não deverá ser,
necessariamente, sua fundamental (o que permite, por exemplo, um pedal de dominante
iniciado por um acorde de tônica, já que o grau 5 é nota comum entre os dois acordes).
b) Rimsky-Korsakov observa que raramente ocorrem harmonias dissonantes em
um pedal invertido, sendo formado basicamente pela sustentação ou repetição de notas
comuns na mesma voz entre diferentes acordes. Alguns autores empregam o termo
específico “pedal interno” para se referir aos casos em que a nota pedal ocorre em uma
voz interna.
Como convenção de análise adota-se aqui simplesmente a abreviatura “Ped.”
acompanhada de uma linha indicando até onde o pedal se estende.

Figura 13 – Pedal invertido na tônica (soprano) e na dominante (contralto, pedal interno).

Independentemente da posição ou função do pedal há ainda o aspecto rítmico:


ele pode ser sustentado, articulado ritmicamente (fig. 14) ou elaborado
melodicamente15.

Figura 14 – Muzio Clementi: Sonatina, Op. 36, Nº 4, I (1797): baixo pedal ritmicamente articulado.

15
Zamacois (1979, p. 278), no item “Ornamentação do pedal”, apresenta também o “acorde pedal” e o
“desenho pedal”. Este último está presente também na música popular na forma de ostinatos geralmente
em um contexto harmônico modal, especialmente no baixo sintetizado de vários estilos de Dance Music
eletrônica e nos riffs de baixo e guitarra do Rock, quando estes são repetidos exatamente iguais sobre um
encadeamento harmônico – um bom exemplo desse tipo de “desenho pedal” na tônica é o baixo da
introdução de Billy Jean, de Michael Jackson.
11

Ainda do ponto de vista rítmico, o pedal pode durar desde menos de um compasso
até um movimento ou uma música inteira (como a famosa Habanera, da ópera Carmen,
de Georges Bizet). Na conclusão do terceiro movimento (Herr, Lehre Doch Mich) do
Ein Deutsches Requiem, Op. 45, de Johannes Brahms, o baixo pedal na tônica dura
quase dois minutos e meio. O exemplo a seguir mostra um baixo pedal que é definido
por um acorde de apenas um tempo de duração:

Figura 15 – Giovanni Paisiello: Nel Cor Piu Non Mi Sento,

da ópera L’amor Contrastato (1788): baixo pedal de duração curta.

Os dois últimos exemplos mostram a ocorrência de apenas um “acorde estranho


ao baixo” para a caracterização do baixo pedal; essa brevidade na duração, em especial
no último exemplo, faz com que seja totalmente desnecessária e sem sentido aquela
análise que considera o tenor como baixo.

1.6 OUTRAS POSSIBILIDADES


1.6.1 DIVISÃO RÍTMICA

Geralmente os livros trazem exemplos de notas estranhas ao acorde envolvendo


divisões rítmicas iguais (por exemplo, divisão em duas colcheias), entretanto, é evidente
que todas elas podem explorar uma infinidade de diferentes divisões. Alguns exemplos:
12

Figura 16 – Nota de passagem envolvendo durações desiguais na canção “Cai, Cai, Balão”.

A divisão rítmica da fig. 16 (colcheia pontuada-semicolcheia) é extremamente


comum nas antecipações, modificando o impulso rítmico em direção à nota de
chegada16.

Figura 17 – Bordadura envolvendo durações desiguais no início da canção “Noite Feliz”.

1.6.2 ANTECIPAÇÕES MENOS COMUNS

Há casos em que a nota antecipada não permanece na mesma voz, resolvendo


em outra oitava no acorde de resolução ou apenas deixando essa resolução implícita
devido à sonoridade do novo acorde confirmar sua função. Kostka & Payne (1989)
classificam esse caso como “antecipação livre”, informando que a nota em questão é
alcançada e deixada por salto; muitas vezes a razão desse salto é um simples arpejo do
novo acorde que se inicia um pouco antes de sua entrada, como mostra o exemplo
abaixo:

Figura 18 – Sonata, K332, I (W. A. Mozart, 1783): Antecipação livre.

16
Volte a observar e tocar a antecipação da figura 1 desta apostila com essa nova divisão rítmica e
perceba a diferença no impulso em direção à nota de resolução. Observe também o efeito dessa divisão
rítmica em músicas de caráter marcial, como Imperial Attack (John Williams), da trilha sonora de Star
Wars IV – A New Hope (1976).
13

Outro caso curioso é a antecipação da tônica tocada ao mesmo tempo que a


sensível, provocando um choque de segunda menor que é identificado como uma
característica marcante na obra do compositor italiano Arcangelo Corelli (à qual Piston
se refere como “Corelli Clash”17):

Figura 19 – Sonata Op. 2, nº 3, III. Adagio (Arcangelo Corelli, 1685):

Antecipação da tônica soando junto com a sensível.

De fato havia, no período Barroco, uma predileção especial por enfatizar os


choques de segunda, devido ao seu potencial expressivo. Entretanto esses intervalos
eram sempre decorrentes da condução de vozes, nunca colocados apenas como uma
sonoridade simultânea por si só – da mesma forma que as sétimas de acorde, por
exemplo, costumavam ter uma justificativa melódica para sua inclusão na harmonia.

1.6.3 OUTROS TIPOS DE NOTAS ESTRANHAS AO ACORDE

• NOTA DE APROXIMAÇÃO (Apr.)

CONTORNO MELÓDICO:
APROXIMADA POR RESOLVE POR

Pausa ou salto Grau conjunto


ou em qualquer direção em qualquer direção

Ocorre em parte fraca de tempo e localiza-se acima ou abaixo da nota real,


alcançando-a por grau conjunto18. Embora seja bastante comum no repertório do
tonalismo tradicional, não há consenso quanto à nomenclatura desse tipo de nota
estranha ao acorde. Alguns teóricos analisam esse caso como uma bordadura incompleta
17
Também conhecida como “Cadência de Corelli” (ainda que não se trate de uma cadência harmônica e
sim de uma finalização melódica), consiste apenas em um traço característico de suas obras, pois na
verdade já era praticada por outros compositores mais antigos.
18
Na verdade há aqui também um problema de tradução do inglês para o português: o termo neighbour
tone significa, literalmente, “nota vizinha” e é usado tanto para a bordadura convencional como para o
caso aqui apontado, visto que ambas envolvem notas vizinhas da nota real.
14

(sem a primeira nota); outros preferem considerar como uma nota de passagem
incompleta (também sem a nota que inicia o padrão convencional). Como se diz em
linguagem jazzística, esse tipo de nota estranha ao acorde direciona-se a uma “nota
alvo”, por isso a preferência de adotar-se aqui também o termo jazzístico
“aproximação”.

Quando a nota estranha ao acorde acontece em uma mudança de direção melódica


pode ser analisada simplesmente como uma escapada em que o salto acontece antes do
grau conjunto (reaching tone). Johann Sebastian Bach, dentre outros compositores do
período Barroco, utilizavam muito esse recurso para escrever segmentos escalares em
semicolcheias entremeados por saltos – o que corrobora a análise como “nota de
passagem incompleta”, pois o fato desse contexto incluir muitas notas de passagem
convencionais nos induz a escutar todas as notas dessa maneira (e também porque,
como mostra o exemplo a seguir, os saltos de sétima que levam às notas de
aproximação são grandes demais para formar unidades que soem como escapadas).

Figura 20 – J. S. Bach – Cello Suite nº 1, BWV 1007, I. Prelúdio (aprox. 1720):

nota de aproximação diatônica.

Quando esta nota estranha ao acorde é cromática, costuma ser chamada de


“aproximação cromática” (chromatic approach), e é extremamente utilizada no Jazz,
Blues, Country, etc. Abrevia-se “apr. crom.”. Na figura abaixo, quase todas as notas
alteradas são aproximações cromáticas:

Figura 21 – Aproximações cromáticas em um fraseado jazzístico.


15

• APROXIMAÇÃO DUPLA19 (Apr. Dupla)

CONTORNO MELÓDICO:
APROXIMADA POR RESOLVE POR
ou Qualquer maneira Grau conjunto
indireto e direto

Duas notas estranhas ao acorde consecutivas originadas da combinação de uma


aproximação inferior e outra superior da “nota alvo”. O padrão poderá iniciar e terminar
na mesma nota de acorde (nota real), tal como uma bordadura, movimentando-se grau
conjunto acima e abaixo desta (ou o contrário: abaixo e acima), como nos exemplos “a”
e “b” da figura a seguir, ou poderá também iniciar diretamente pela primeira nota não
pertencente ao acorde (exemplos “c” e “d”):

Figura 22 – Aproximação diatônica dupla como bordaduras (a e b)

e como bordaduras incompletas (c e d).

Obviamente é possível combinar as formas diatônica e cromática para circular20


a nota alvo (como no final do penúltimo compasso da fig. 21, onde as notas Dó e Lá#
funcionam como aproximação dupla para a nota alvo Si).

Especialmente no Jazz é muito comum o uso da aproximação cromática dupla,


na qual duas sensíveis (uma inferior e a outra superior) apontam para a mesma nota
19
Alguns autores chamam este padrão de “bordadura dupla”. Entretanto, no presente texto preferiu-se
reservar esse termo para quando acontecerem bordaduras simultâneas em diferentes vozes, visto que é
também utilizado tradicionalmente neste sentido (provavelmente essa confusão venha da tentativa de
traduzir o termo double neighbour tone, usado para descrever essa figuração melódico-harmônica).
Outros termos em inglês comumente utilizados são neighbour group (literalmente “grupo vizinho”; como
o termo neighbour tone é normalmente traduzido como “bordadura”, seria possível arriscar a adaptação
“grupo de bordaduras”) e changing tones (literalmente “notas cambiantes”, visto que guarda semelhanças
com a cambiata do contraponto em espécies).

20
Termo corrente entre músicos de Jazz.
16

alvo. Neste contexto musical é comum iniciar o padrão pelas duas notas estranhas ao
acorde. No início da melodia abaixo a nota Sol é circulada por suas duas sensíveis, uma
diatônica (Sib) e a outra cromática (Fá#). Vale notar também que, ao final, a nota de
passagem cromática parece estar “na cabeça do tempo”, mas soa como se estivesse em
parte fraca de tempo (na música sincopada há praticamente uma inversão na função dos
tempos e contratempos).

Figura 23 – Aproximação cromática dupla.

• NOTA LIVRE (NL)

Paul Hindemith (1949) informa: “Por exceção, podem surgir notas estranhas a
um acorde que não se enquadrem em nenhuma das categorias precedentes. São
consideradas notas livres”.

Figura 24 – Nota livre, segundo Paul Hindemith.

1.6.4 EFEITO PSICOLÓGICO


O compositor Ernst Toch (1977) descreve o efeito psicológico dos diferentes
tipos de notas estranhas ao acorde de acordo com a influência dos diversos aspectos
rítmicos da música (acentuação, divisão, andamento e duração):
a) Não acentuadas (passagem, bordadura, antecipação, "dupla aproximação",
escapada): caracterizam melodias “mais harmônicas", mais próximas de
melodias feitas só com notas de acorde, pois as dissonâncias não chamam
atenção quando não são acentuadas. Combinadas com ritmos incisivos, divisões
binárias (e seus múltiplos) e notas pontuadas, sugerem caráter decidido, heróico,
marcial, patriótico, etc.

b) Acentuadas (apojatura e suspensão): caracterizam melodias “menos


harmônicas". Em andamentos rápidos não chamam tanto a atenção, mas
combinadas com durações longas e andamentos lentos tendem a demonstrar um
caráter mais hesitante ou de suavidade, suspense, erotismo, refinamento, etc.

Esse ponto de vista psicológico é explorado de maneira especialmente intensa


nas músicas para cena (filmes, teatro, ópera, games, etc.).
17

1.6.5 RESOLUÇÕES ORNAMENTADAS

Na prática, muitas vezes os diferentes contornos das notas estranhas ao acorde


acontecem de forma combinada, criando figurações melódicas derivadas dos elementos
até aqui apresentados. Um exemplo comum é ornamentar uma antecipação (de uma nota
do acorde seguinte) com um movimento melódico de bordadura21:

Figura 25 – Antecipação ornamentada por um movimento melódico de bordadura.

Também é comum haver uma ou mais notas antes da resolução esperada de uma
suspensão. A figura a seguir apresenta a suspensão sem ornamentação (a) seguida de
diferentes maneiras de incluir uma nota antes da resolução:

Figura 26 – Suspensões ornamentadas.

Na fig. 26d foi inserida uma nota do acorde de chegada entre a suspensão e sua
resolução.

21
É importante deixar claro que aqui a bordadura é somente melódica, pois o Ré é nota do acorde;
considera-se o Dó como Antecipação devido à sua rítmica (posição métrica e duração). Seria possível
também interpretar erroneamente o Dó como uma simples bordadura inferior da nota Ré, pois a teoria
aqui apresentada o permite, mas isso implicaria necessariamente em desconsiderar o efeito musical (isto
é, realizar a análise sem escutar o trecho).
18

1.6.6 NOTAS ESTRANHAS AO ACORDE ATACADAS SIMULTANEAMENTE

Costuma-se buscar intervalos consonantes (terça, sexta ou oitava) entre duas


notas não cordais atacadas ao mesmo tempo. As notas de passagem duplas e as
bordaduras duplas, por serem do mesmo tipo, são os casos mais comuns.
Notas de passagem duplas costumam formar intervalo de terça ou sexta se o
movimento for paralelo. A figura abaixo mostra nos exemplos “a”, “b” e “c” três
encadeamentos cuja condução das notas de acorde contêm, respectivamente, sextas,
terças e terças+sextas paralelas separadas por salto nas vozes superiores. Nos exemplos
“d”, “e” e “f” as mesmas estruturas acontecem com os saltos preenchidos por notas de
passagem duplas22:

Figura 27 – Notas de passagem duplas em movimento paralelo.

Também é possível preencher uma estrutura harmônica básica com muitas notas
de passagem (simples ou duplas) em sentido contrário – procedimento bem mais
adequado à escrita instrumental, especialmente para piano. O exemplo 28 mostra o
movimento das vozes externas em uma mudança de posição sobre o mesmo acorde
(28a), e diferentes formas de preenchimento desta estrutura com notas de passagem
simples e duplas (28b até 28e):

Figura 28 – Notas de passagem simples e duplas em uma mudança de posição.

22
Na figura 27f são formadas notas de passagem triplas, as quais acabam formando uma tríade de
passagem nas vozes superiores.
19

Em movimento contrário, as passagens duplas podem formar também um


intervalo de oitava, quase sempre como parte do intercâmbio de terça23, como mostra o
exemplo abaixo:

Figura 29 – Notas de passagem duplas em movimento contrário no intercâmbio de terça.

Por vezes combina-se o arpejo do acorde com a nota de passagem; no exemplo


abaixo este procedimento gera uma 4ªJ:

Figura 30 – Nota de passagem e arpejo de acorde simultâneos.

Bordaduras duplas costumam formar um intervalo de terça ou sexta em


movimento paralelo, muitas vezes envolvendo alterações cromáticas24:

Figura 31 – Bordaduras duplas em movimento paralelo.

23
Caso específico de mudança de posição de um mesmo acorde, no qual são intercambiadas entre duas
vozes geralmente a fundamental e a terça de um mesmo acorde.

24
Especialmente em se tratando de bordaduras inferiores, conforme apresentado na apostila de Harmonia
I, p. 29, item 7.2.2
20

Em movimento contrário a bordadura pode acontecer junto com o arpejo do


acorde25 (22a) ou permitir dissonâncias como o trítono (22b); nos exemplos abaixo
ambos os procedimentos acabam formando um acorde intermediário:

Figura 32 – Bordaduras duplas em movimento contrário gerando um acorde intermediário.

Uma variante do baixo pedal, conhecida como pedal duplo, ocorre quando são
usados os graus 1 e 5 da escala simultaneamente, reforçando a função sobre a qual
acontece o pedal (já que uma 5ªJ acima de um baixo reforça os harmônicos deste). Na
análise harmônica do exemplo a seguir as inversões foram cifradas levando em
consideração que o contralto tenha assumido a função do baixo, com exceção dos
acordes de tônica nos compassos 4, 6 e 8 – os quais, de acordo com esta lógica,
funcionariam como I6, contrariando a sonoridade geral do mesmo. Ainda assim, na
maior parte do trecho considera-se uma harmonia a duas vozes sobre o pedal duplo.

Figura 33 – Pedal duplo.

Muitas vezes essas simultaneidades acabam formando acordes intermediários,


usados para dar mais variedade a um encadeamento simples. Um dos casos mais
comuns é a suspensão tripla. Se fizermos as suspensões 4-3 e 9-8 simultaneamente ao
retardo da sensível (7-1), soará um encadeamento V7-I sobre a tônica da escala. Isso
seria um “acorde estranho à nota” – embora não seja chamado desta forma – visto que
na terminação do encadeamento somente o baixo corresponde ao acorde e as demais
vozes, formando entre si um acorde, são todas estranhas ao acorde esperado. Este

25
Formando um acorde intermediário, como será estudado mais adiante nesta apostila, na seção sobre
“Sucessão Harmônica”.
21

recurso é característico dos períodos Barroco e Clássico, especialmente na cadência


final:

Figura 34 – Suspensão tripla.

PERGUNTAS PARA REFLEXÃO E DISCUSSÃO

a) Quais outros tipos de notas estranhas ao acorde não são estudados nesta apostila?

b) Todas as categorias aqui apresentadas ocorrem em todas as épocas e estilos musicais?

c) Este conteúdo também pode ser aproveitado de maneira prática na improvisação?


22

2 ENCADEAMENTOS HARMÔNICOS TONAIS

Piston (1987, p. 23 e 49) recomenda o estudo das seguintes generalizações,


baseadas na observação de encadeamentos harmônicos do Período de Prática Comum26
do tonalismo tradicional, porém com a ressalva de não significarem regras a serem
seguidas rigidamente (é importante observar que o autor indica a cifra gradual de modo
genérico, independentemente da estrutura de cada acorde, com algarismos romanos
sempre em letras maiúsculas):

MODO MAIOR:

I é seguido por IV ou V, às vezes por VI, menos frequentemente por II ou III;


II é seguido por V, às vezes por IV ou VI, menos frequentemente por I ou III;
III é seguido por VI, às vezes por IV, menos frequentemente por I, II, ou V;
IV é seguido por V, às vezes por I ou II, menos frequentemente por III ou VI;
V é seguido por I, às vezes por IV ou VI, menos frequentemente por II ou III;
VI é seguido por II ou V, às vezes por III ou IV, menos frequentemente por I;
VII (tríade diminuta) é seguido por I ou III, às vezes por VI, menos frequentemente por II, IV ou V.

DIFERENÇAS NO MODO MENOR27:

I é também frequentemente seguido por VII (maior);


III é também frequentemente seguido por VII (maior);
VII (maior) é seguido por III, às vezes por VI, menos frequentemente por IV.
VII (tríade ou tétrade diminuta) é seguido por I

Já Arnold Schoenberg diferencia a progressão harmônica da sucessão


harmônica. Embora ambas possam envolver poucos ou vários acordes, a progressão
acontece quando um encadeamento parte de uma função e termina em outra (portanto,
progredindo), enquanto que na sucessão inicia-se por uma função e termina-se nela
mesma – os acordes simplesmente sucedem-se enfatizando uma mesma função, por
mais que ocorram funções intermediárias. No tonalismo tradicional predominam as
progressões, dado o forte direcionamento de suas notas e acordes28. A seguir são
apresentados três princípios que regulam o funcionamento de progressões tonais: o ciclo
das funções tonais principais, o ciclo das quintas e a marcha harmônica diatônica.
Para além desses três princípios elementares é muito importante observar
também, tanto no repertório tonal quanto nos exemplos a seguir, que em muitos casos o
uso de acordes invertidos criando um baixo mais melódico, contendo graus conjuntos
sucessivos, é o que serve como real fundamento para encadear determinados acordes,
inclusive permitindo o funcionamento tonal de encadeamentos que não seriam possíveis
com outras posições de acorde (estado fundamental ou outras inversões) e que por vezes
não obedecem a uma lógica funcional.

2.1 CICLO DAS FUNÇÕES TONAIS PRINCIPAIS

Quando os graus I, IV e V estão em ordem crescente, formam o seguinte ciclo:

26
Do inglês Common Practice: período de cerca de 300 anos do tonalismo tradicional (aproximadamente
de 1600 a 1900, segundo Kostka e Payne).
27
Segundo o autor, os demais graus harmônicos seguem a tabela do modo maior.

28
Do ponto de vista melódico esse forte direcionamento já foi abordado na apostila de Harmonia I nos
itens 3.2 (p. 4) e 8.2 (p. 33), ao tratar das tendências de movimento melódico nos modos maior e menor.
23

Figura 35 – Ciclo das três funções tonais principais em Dó maior.

É claro que em muitas músicas tonais ocorrem desvios com relação a este ciclo
(como, por exemplo, nas sucessões I V I e I IV I e na progressão I V IV). Entretanto,
atendo-se ao encadeamento I IV V I é possível enriquecê-lo e variá-lo mediante a
utilização dos demais acordes funcionalmente relacionados a estes (substituições
funcionais). A cifra funcional é a que mostra mais claramente essas relações funcionais
entre o acorde principal e seus substitutos:
24

Figura 36 – Substituições funcionais no encadeamento das três funções tonais principais em modo maior.
2.2 CICLO DAS QUINTAS

Tomando o encadeamento V I como um modelo (devido ao seu impulso


harmônico fortemente direcionado pelo movimento de 4ªJ ascendente ou 5ªJ
descendente entre as fundamentais), torna-se possível organizar de forma coerente todo
o campo harmônico maior. Uma forma simples de representar esse ciclo e suas
substituições funcionais diatônicas toma por base a analogia entre as forças de atração
tonal e a ação da gravidade terrestre. Nas figuras a seguir, adaptadas a partir das do livro
Basic Studies in Music, de William Baxter Jr., o acorde de tônica localiza-se no solo,
representando a força gravitacional deste; a cada degrau que se desce na escada, vai-se
aproximando cada vez mais do centro de gravidade tonal. Conforme o esquema
apresentado acima, a mesma lógica vale tanto para os acordes das tonalidades maiores
quanto para os das tonalidades menores.

Figura 37 – Analogia entre as forças tonais dos acordes e a força da gravidade terrestre (William Baxter Jr.).

As figuras 38 e 39 são extraídas do livro Tonal Harmony, de Stefan Kostka e


Dorothy Payne; ambas incluem também algumas substituições funcionais diatônicas e
alguns outros encadeamentos tonais que não seguem o ciclo das quintas. As setas
indicam em que ordem os acordes costumam ocorrer na harmonia tradicional; a seta
tracejada indica que o acorde de tônica pode seguir para qualquer acorde.
25

Figura 38 – Encadeamento pelo ciclo das quintas: acordes do campo harmônico maior (Kostka & Payne).

O mesmo procedimento é empregado no campo harmônico menor (acordes mais


usados), inclusive indo mais longe no ciclo das quintas devido à inclusão do VII:

Figura 39 – Encadeamento pelo ciclo das quintas: acordes mais usados em modo menor (Kostka & Payne).

Sobre o encadeamento iii IV (e seu correspondente no modo menor, III iv), os


autores supracitados afirmam ser “provavelmente tão comum quanto iii vi” 29 e incluem-
no dentro das “exceções comuns”, juntamente com os encadeamentos V vi (V VI em
menor) e vi V (VI V em menor). Aldwell & Schachter (2003, p.233-234) chamam
atenção para um detalhe na utilização do encadeamento iii IV no modo maior: a
sensível, por ser a quinta do iii, tem sua atração ascendente amenizada, permitindo o
movimento melódico 8-7-6 inclusive em uma linha de soprano. Segundo os dois
esquemas acima os encadeamentos IV I (e iv i) também podem ocorrer; no entanto estes
e o já citado iii IV (e III iv) devem ser usados com cautela no tonalismo tradicional para
evitar que se pronuncie uma sonoridade modal.
É extremamente comum encontrar sequências melódicas30 (transposições a partir
de um modelo) cuja harmonia siga o ciclo das quintas, especialmente no modo menor:

Figura 40 – Sequência melódica sobre uma progressão harmônica pelo ciclo das quintas

29
Talvez porque iii vi pode ser compreendido como Tr Sa, o que é basicamente a mesma interpretação
funcional de iii IV (Tr S).
30
É importante observar que nem sempre uma sequência melódica afetará a harmonia, ou seja, nem
sempre o encadeamento dos acordes acompanhará a transposição a partir de um modelo.
26

a) em Dó menor e b) em Dó maior.

Entretanto, sequências melódicas também podem ocorrer de forma independente


do encadeamento harmônico (ainda que a harmonia siga outro padrão):

Figura 41 – Sequência melódica sem sequência harmônica em a) Rondo em Ré Maior, K.485 (W.A Mozart,
1786) e b) Sonata para Piano em Dó Maior, K. 309, 3º mov. (W.A Mozart, 1777)

2.3 MARCHA HARMÔNICA DIATÔNICA31

Sempre que há transposições seguidas de um modelo no tocante ao


encadeamento harmônico (e não só na melodia), ocorre uma Marcha Harmônica, que
pode ser diatônica ou modulante.
Em um encadeamento tonal diatônico pelo ciclo das quintas, como os da figura
31, observam-se características importantes no movimento do baixo, apresentados a
seguir:

Figura 42 – Movimento do baixo pelo ciclo das quintas.

31
Kostka aborda este tópico no item “Sequência e o Círculo das Quintas” (Sequence and the Circle of
Fifths), dentro do capítulo sobre Progressão Harmônica. Zamacois aborda o assunto no capítulo
“Progressões Unitônicas (Tonais) ou Modulantes”. As marchas harmônicas modulantes serão abordadas
na apostila de Harmonia III.
27

1. Para manter o ciclo dentro de uma tessitura confortável para o canto ou


qualquer outro instrumento, as quintas consecutivas são dispostas em um
padrão intervalar “5ª desc.- 4ª asc.” ou “4ª asc. - 5ª desc.”.
2. Essa disposição das notas do baixo acaba formando uma melodia composta,
contendo duas linhas que seguem por grau conjunto: Dó-Si(b)-Lá-Sol e Fá-
Mi(b)-Ré-Dó. De acordo com Aldwell & Schachter (2003), normalmente
uma dessas duas linhas predomina, dependendo de como são organizadas
quanto ao registro e ao ritmo.
3. Sendo um ciclo diatônico, sempre haverá um trítono entre os graus escalares
4 e 7 (modos maior e menor) e 2 e b6 (modo menor). Por conta disso, há
casos em que as tríades diminutas, geralmente utilizadas em 1ª inversão,
acabam acontecendo em estado fundamental (ver encadeamentos harmônicos
da fig. 31).

A verdade é que em um encadeamento como esse é impossível que não haja


também um modelo e suas transposições na harmonia: a própria disposição intervalar
do baixo, descrita acima, implica em um agrupamento de duas notas que coincide com
um modelo de dois acordes, o qual é transposto uma segunda abaixo:

Figura 43 – Marcha Harmônica por segunda descendente implícita em um encadeamento pelo


ciclo das quintas.

Embora o princípio de “modelo e sequência” possa ocorrer exclusivamente na


melodia ou na harmonia, na harmonia tradicional costuma-se realizar a transposição
melódica exata do modelo em todas as vozes. Uma vez que a percepção fica voltada à
movimentação das vozes no modelo e em suas transposições consecutivas passa a ser
possível realizar outros encadeamentos que não obedeçam ao ciclo das funções tonais
principais nem ao ciclo das quintas (o que ocorre especialmente entre o último acorde
do modelo e o primeiro de sua transposição), como pode ser verificado em alguns dos
próximos exemplos. Piston (1987) destaca o movimento IV viiº em modo maior, no
encadamento “ii | V I | IV viiº | iii”; chamam a atenção também encadeamentos de graus
harmônicos sucessivos, geralmente evitados, como I ii.
O intervalo de transposição do modelo pode variar32, sendo mais comuns as
segundas e terças descendentes. Piston informa que o intervalo escolhido dependerá de
dois fatores:

32
Piston (1987, p. 318) faz uma afirmação um tato exagerada: “O padrão pode ser transposto por
qualquer intervalo, para cima ou para baixo”.
28

1. O acorde a que se quer chegar ao final da marcha.


2. A viabilidade de conduzir bem as vozes entre cada repetição do modelo.
O autor ressalta ainda que um bom contraponto entre o baixo e a melodia (o que
ele parece associar às vozes externas) deve ser a base da escrita de uma marcha
harmônica bem realizada.
A marcha harmônica mais elementar é a que envolve a transposição de um
modelo melódico sobre um só acorde:

Figura 44 – Klaviertrio, Op. 1, No. 3 - IV Prestissimo (L. V. Beethoven, 1795):

Marcha harmônica com modelo de um só acorde.

Nas palavras de Piston:

O padrão escolhido para a transposição na sequência pode variar desde


um motivo curto sobre um único acorde até uma frase inteira. Embora
seja possível construir um padrão musicalmente significativo com base
em apenas um acorde, esse tipo de padrão é harmonicamente menos
interessante e a sequência depende, para seu efeito, principalmente do
arranjo contrapontístico. (1987, p. 315-316)

Nos próximos exemplos predominam os modelos com dois acordes, que são os
mais comuns. Zamacois informa, entretanto, que os modelos com mais de dois acordes
por vezes facilitam a realização a 4 vozes. Vejamos, primeiramente, as marchas com
transposição descendente, que é a direção mais comumente encontrada no repertório
tonal:
29

Figura 45 – Marcha harmônica diatônica por intervalo de segunda descendente.

Na figura acima, baseada em um exemplo do Traité d’Harmonie de Théodore


Dubois (1921), é importante notar que o primeiro compasso não faz parte do modelo,
servindo apenas para ajudar a estabelecer a tonalidade. A partir daí, da mesma forma
que as marchas a seguir (baseadas em exemplos do tratado de harmonia de Rimsky-
Korsakov), a harmonia segue estritamente o ciclo das quintas:

Figura 46 – Marchas harmônicas diatônicas por intervalo de segunda descendente.


30

Figura 47 – Marchas harmônicas diatônicas por intervalo de terça descendente.

A figura 47b mostra um trecho do famoso “Cânone em Ré Maior”33 do


compositor alemão Johann Pachelbel, no qual a marcha harmônica diatônica ocorre sem
a sequência melódica. Outra característica importante dos exemplos acima e dos dois
seguintes é a quebra de simetria da marcha para inclusão de uma fórmula de cadência.
Repare que, apesar dessa variação harmônica, nos exemplos abaixo o motivo melódico
é mantido mesmo após a transposição do modelo original, a fim de preservar a ideia de
sequência. Utilizando os intervalos de quarta e de quinta nota-se que com poucas
transposições já se atinge uma diferença de uma oitava ou mais, o que impede a
continuação da sequência de forma literal.

Figura 48 – Marcha harmônica diatônica por intervalo de quarta descendente.

33
Título original: Kanon und Gigue für 3 Violinen mit Generalbaß ("Cânone e Giga para Três Violinos e
Baixo Contínuo“). Peça barroca escrita no final do século XVII.
31

Figura 49 – Marcha harmônica diatônica por intervalo de quinta descendente.

A partir deste ponto serão estudadas as transposições ascendentes. Piston


considera que uma sequência completa deve comportar no mínimo três transposições
completas, identificando esses casos como “meia sequência”. No início da Valsa Op. 9,
nº 3, de Franz Schubert (fig. 50b), há apenas uma transposição do modelo.

Figura 50 – Marchas harmônicas diatônicas por intervalo de segunda ascendente.


32

Figura 51 – Marcha harmônica diatônica por intervalo de terça ascendente.

Conforme apresentado anteriormente nos exemplos descendentes, as


transposições por intervalo de 4 e de 5ª avançam muito rapidamente no registro,
normalmente permitindo apenas uma transposição do modelo. Na fig. 52 a tentativa de
realizar duas transposições teve como preço uma linha inadequada de contralto, formada
por três saltos sucessivos na mesma direção, incluindo um de trítono (Fá-Si); contralto e
soprano ultrapassam nos agudos a extensão básica recomendada, o que leva à conclusão
de que esse recurso se presta bem mais a uma escrita instrumental. Na fig. 53 o baixo e
o tenor seguem sempre em sextas paralelas. Provavelmente por conta dessas
dificuldades é que as transposições de 4ª e de 5ª sejam tão raras no repertório tonal.

Figura 52 – Marcha harmônica diatônica por intervalo de quarta ascendente.

Figura 53 – Marcha harmônica diatônica por intervalo de quinta ascendente.


33

Para a boa realização de marchas harmônicas Zamacois aconselha que:


a) O primeiro acorde de cada nova transposição seja escrito exatamente na
mesma posição que o acorde inicial do modelo34, e assim por diante.
b) O último acorde do modelo seja conduzido da melhor forma possível ao
primeiro acorde da primeira transposição, valendo o mesmo para as
transposições subsequentes. Na condução do último acorde da marcha a
simetria desta pode ser quebrada, pois é preciso que haja um bom
encadeamento com o acorde subsequente35.
c) Haja cuidado com o dobramento no primeiro acorde para que se evite,
na transposição, o dobramento da sensível a partir do baixo (fig. 54a):

Figura 54 – Realização de marcha harmônica diatônica


a) com o dobramento da sensível b) sem o dobramento da sensível

Na opinião de Piston (1987, p. 324), entretanto, o uso do viiº em estado


fundamental e o dobramento da sensível são justificáveis “pela lógica do movimento
melódico simétrico das vozes”. Aldwell & Schachter identificam estes como
“procedimentos excepcionais justificáveis” em algumas fórmulas de marcha harmônica,
adicionando alguns detalhes:
a) O dobramento da sensível pode ser usado se não ocorrer imediatamente
antes da resolução no acorde de tônica.
b) A tríade diminuta em estado fundamental pode ser usado, desde que não
ocorra no começo nem no final da marcha.
c) O salto melódico de trítono pode ser usado em marchas baseadas no ciclo
das quintas.
Para além dos detalhes descritos acima, é importante termos em mente algumas
das funções que uma sequência diatônica pode ter dentro de uma música:

34
Na verdade todos os acordes do modelo deverão manter exatamente os mesmos espaçamentos nas
transposições subsequentes, salvo onde ocorrer a quebra da simetria.
35
O autor observa também, mais adiante, que poderão haver pequenas assimetrias na condução das vozes,
desde que sejam perfeitamente justificáveis e de que não comprometam o todo – como ocorre nos saltos
em sentido oposto ao previsto, em função de se haver alcançado o limite da extensão de alguma das vozes
(ver fig. 47b – o trecho do Cânone de Pachelbel).
34

1. Promover a variação dentro da repetição. A repetição do modelo implica em


uma unidade melódica, enquanto que as transposições e os diferentes
coloridos harmônicos implicam em variedade.

Figura 55 – 12 Estudos, Op. 6, Nº 8 (Fernando Sor, c. 1815-17):


marcha harmônica diatônica no tema.

2. Conduzir todas as vozes gradualmente de um registro a outro (fig. 44, 45,


46a, 48, 49, 52 e 53).
3. Ligar o estado fundamental de um acorde com sua primeira inversão por
meio de vários acordes intermediários36 – o que está bem ilustrado na fig. 45
(o inverso, a condução da harmonia de um acorde em primeira inversão até
seu estado fundamental, ocorre nas figuras 48 e 49).
4. Dado o caráter de movimento das transposições consecutivas do modelo
(especialmente quando o ritmo harmônico é rápido e o modelo é curto), as
sequências são utilizadas em seções de desenvolvimento, transição e
retransição, muitas vezes apresentando fragmentos de um tema principal e
ligando regiões temáticas e cadenciais mais estáveis.

Figura 56 – 12 Estudos, Op. 6, Nº 8 (Fernando Sor, c. 1815-17):


marcha harmônica diatônica na transição.

As sequências são também um ótimo recurso para o domínio de qualquer


instrumento, pois permitem explorar as diferenças de digitação e de registro na
execução de encadeamentos harmônicos e de padrões melódicos. Quanto a isso Piston
lembra que em certos tipos de expressão musical como as cadências virtuosísticas e os
estudos de técnica, encontra-se por vezes um número exagerado de transposições
ocupando propositalmente todo o registro do instrumento. O autor chama atenção
especial para o estudo de encadeamentos harmônicos ao teclado, para cujo propósito faz
as seguintes recomendações:
1. Tentar criar sequências com todas as fórmulas harmônicas disponíveis,
tocando-as para cima e para baixo por todo o teclado.
2. Fazer uma boa conexão entre o padrão e a sua transposição.
36
Recurso que nos remete ao estudo da sucessão harmônica (prolongamento funcional), próximo tópico
desta apostila.
35

3. Não escrever essas sequências, a fim de realizar um bom treinamento mental.


4. Manter uma pulsação regular, ainda que incialmente bem lenta, pois tocar
ritmicamente significa também pensar ritmicamente.

OUTRAS POSSIBILIDADES DE MARCHA HARMÔNICA DIATÔNICA


Há uma fórmula de encadeamento harmônico bastante utilizada na harmonia
tradicional, normalmente identificada como 5-6, que consiste em um modelo formado
por um acorde em estado fundamental (acorde de quinta) seguido de outro em primeira
inversão (acorde de sexta). Quando esse padrão 5-6 é realizado sucessivamente
configura-se uma forma específica de marcha harmônica diatônica. A transposição
desse padrão por segundas ascendentes forma um baixo que combina notas repetidas
com graus conjuntos (1-1, 2-2, 3-3, etc.), enquanto que na transposição por segundas
descendentes ocorre uma escala descendente sem notas repetidas (1, 7, 6, etc.) conforme
a figura a seguir.

Figura 57 – Fórmulas 5-6 ascendente (a) e descendente (b).

Zamacois indica algumas variações nas marchas harmônicas. Para que estas não
sejam rigorosamente simétricas, é possível mudar o intervalo de transposição e a
acentuação37 a cada reprodução do modelo:

37
Na figura 58b ocorre um antigo efeito de hemíola no qual o compasso ternário simples soa
temporariamente como um binário simples.
36

Figura 58 – Marcha harmônica diatônica com variação no intervalo de transposição (a) e


na acentuação ou posição métrica das transposições do modelo (b).

2.4 PROLONGAMENTO FUNCIONAL (SUCESSÃO HARMÔNICA)

Conforme dito anteriormente, em uma sucessão os acordes simplesmente


sucedem-se uns aos outros enfatizando uma mesma função, por mais que ocorram
acordes de outra função no decorrer do encadeamento. Ao contrário da progressão
harmônica, na sucessão não há mudança de função em um nível mais amplo, mesmo
que haja movimentação harmônica em nível localizado (como nos exemplos anteriores
desta apostila para encadeamentos com baixo pedal e para várias das marchas
harmônicas diatônicas apresentadas na próxima subseção desta apostila)38.
Por existir uma função predominante na sucessão harmônica, esta também é
chamada de “prolongamento de função” ou “prolongamento funcional”. Em um nível
mais localizado (acorde por acorde) também ocorrem sucessões harmônicas; isso
acontece quando diferentes acordes que cumprem a mesma função tonal estão dispostos
um em seguida do outro.
Antes de examinar encadeamentos de acordes que determinem uma sucessão
harmônica, é importante considerar a questão de como prolongar um acorde. Este
assunto está diretamente ligado à textura musical (especialmente a padrões de
acompanhamento), uma vez que um acorde pode ser prolongado não apenas por sua
sustentação em figuras de duração longa e pelo uso de ligaduras, como costuma ocorrer
em exercícios de harmonia coral, mas também por figurações rítmicas, típicas da música
instrumental. O ritmo harmônico também tem um papel importante: em uma realização
coral a quatro vozes geralmente há um acorde para cada nota melódica, enquanto que
em outras formas de harmonização pode-se sustentar um mesmo acorde por um ou mais
compassos (como costuma ocorrer em canções folclóricas, eruditas e populares). Uma
das maneiras mais simples de se prolongar uma função é repetindo o mesmo acorde,
articulando-o ritmicamente em durações iguais:

38
William Caplin (1998), por sua vez, tratando da música do Classicismo, apresenta uma teoria um pouco
diferente da exposta aqui, na qual são consideradas três categorias de encadeamento tonal: sequencial,
prolongacional e cadencial. O que ele chama de “sequencial” é o que foi tratado aqui como “marcha
harmônica diatônica”; o que o autor denomina “prolongacional” é o que aqui está sendo chamado de
“prolongamento funcional”; por fim um encadeamento “cadencial” refere-se às cadências harmônicas,
que serão estudadas ao final desta apostila.
37

Figura 59 – Tema no baixo no começo da Sinfonia nº 3, Op. 55,

“Eroica” (1803-1804), de Ludwig van Beethoven.

No exemplo acima a melodia principal (feita somente com as notas do acorde de


tônica) é apresentada no baixo e acompanhada pelas vozes superiores. Não se percebe
aqui o uso de acordes invertidos, pois a tônica sempre cai no tempo forte de cada
compasso e porque escuta-se uma melodia na voz mais grave e não as simultaneidades
criadas a partir de cada nota do baixo. Apesar dos arpejos, portanto, o estado
fundamental do acorde de tônica se mantém inalterado durante os seis primeiros
compassos da música.
Em cada época e estilo musical o uso das mudanças de posição do baixo para dar
movimento ao acompanhamento costuma estar associado a características rítmicas39.
Uma forma muito comum de prolongar a mesma função localmente é alternar a
fundamental de um acorde em tempo forte com sua quinta em tempo fraco – recurso já
apresentado na p. 23 da apostila de Harmonia I, item 6.3 (“MUDANÇA DE POSIÇÃO:
ACORDE ARPEJADO”). Esta aparente “segunda inversão” criada pela colocação da
quinta do acorde no baixo não altera o estado fundamental do acorde prolongado.
Outro recurso bastante comum no prolongamento funcional e também presente no
referido item da apostila anterior é o uso de inversões sucessivas do mesmo acorde:

Figura 60 – 1918: Ária O Mio Babbino Caro, da ópera Gianni Schicchi (Giacomo Puccini)

39
Recomenda-se aqui o estudo das diferentes “claves rítmicas” (padrões repetitivos elementares que
caracterizam determinado ritmo), tanto na música popular atual (samba, baião, salsa, chamamé, etc.)
quanto, por exemplo, das danças europeias antigas (sarabanda, valsa, polca, mazurca, etc.).
38

O exemplo acima apresenta na parte do piano um prolongamento da tônica de Lá


bemol maior em estado fundamental por meio de suas inversões, proporcionando
variedade harmônica dentro da mesma função. A primeira inversão no segundo
compasso cria a sensação de impulso em direção a outra função, embora o compositor
tenha preferido voltar ao acorde inicial. Nos dois compassos subsequentes, o baixo
passa por todas as posições possíveis e o ritmo harmônico torna-se menos devagar.
Devido ao andamento e ao ritmo harmônico serem lentos, as mudanças no baixo soam
como diferentes estruturas de acorde. Em andamento mais rápido e com ritmo
harmônico mais movido esse mesmo procedimento soará mais como um recurso rítmico
e melódico do acompanhamento, conforme mencionado no parágrafo anterior.
Em um encadeamento I I6 o baixo do segundo acorde poderia também ser
utilizado como uma nova fundamental, visto que o iii (fig. 60b) soa muito parecido com
I6 (fig. 60a). Entretanto na harmonia tradicional I I6 é a fórmula mais comum para
harmonizar um baixo com os graus melódicos 1 3.

Figura 61 – Prolongamento funcional da tônica com sua primeira inversão e com o iii grau.

O encadeamento I iii acontece muito mais na música popular do que no


tonalismo tradicional, valorizando uma sonoridade modal (um exemplo disso são os
dois acordes iniciais de “Infinita Highway”, da banda Engenheiros do Hawaii). O
contrário – iniciar com a primeira inversão e depois seguir com o estado fundamental –
também proporciona movimento dentro da mesma função. O encadeamento iii I é
praticamente inexistente no tonalismo tradicional, soando ainda mais modal do que I iii.
O contrário – iniciar com a primeira inversão e depois seguir com o estado
fundamental – também proporciona movimento dentro da mesma função. Com o
mesmo baixo (3 1) sendo harmonizado apenas com acordes em estado fundamental
teríamos o encadeamento iii I, que é praticamente inexistente no tonalismo tradicional,
soando ainda mais modal do que I iii.
Embora siga um princípio muito semelhante aos exemplos recém apresentados, o
encadeamento da tônica com seu acorde relativo é muito mais amplamente usado, tanto
na música erudita quanto na popular. O exemplo a seguir mostra esse encadeamento
com os dois acordes em estado fundamental (fig. 61a) e com o segundo deles em
primeira inversão (fig. 61b), o que gera uma nota comum no baixo:
39

Figura 62 – Prolongamento funcional da tônica com o vi em estado fundamental e em primeira inversão.

É possível que a preferência do prolongamento de uma função principal por sua


relativa baseie-se no fato de que a fundamental do primeiro acorde é a terça do acorde
seguinte, enquanto que em um prolongamento por sua anti-relativa a fundamental do
acorde a ser prolongado deixa de existir no acorde que lhe segue.
As figuras 60 e 61 mostram como isso funciona a partir de uma tríade maior.
Porém, ao iniciar por uma tríade menor (i, por exemplo), são atingidas outras funções: o
baixo no grau b6 corresponderá à fundamental de sua anti-relativa maior (VI) e o baixo
no grau b3 corresponderá à fundamental de sua relativa maior (III):

Figura 63 – Prolongamento funcional de uma tônica menor com a) o VI e b) com o III.

2.4.1 PROLONGAMENTO FUNCIONAL COM ACORDES INTERMEDIÁRIOS

Quando uma determinada função é prolongada por meio de acordes de outras


funções, é muito mais fácil garantir uma sonoridade tonal. Para realizar o
prolongamento de uma função com um acorde intermediário basta colocá-lo entre dois
acordes que desempenhem a função predominante no encadeamento. A forma mais
40

elementar de realização deste princípio utiliza exclusivamente acordes em estado


fundamental:

Figura 64 – Prolongamento funcional com acordes intermediários em estado fundamental.

No primeiro exemplo da figura acima a voz do baixo alterna entre os graus 1 e 5


da escala, porém ao invés de tratar-se de uma mera mudança de posição do I, a segunda
nota do baixo passa a ser a fundamental do V7. Este novo acorde, mesmo se colocado
em tempo fraco ou parte fraca de tempo, tem muito mais peso harmônico do que uma
segunda inversão do I, contribuindo para um maior direcionamento tonal do
encadeamento – o qual também é reforçado pelo acréscimo de duas sensíveis (no
exemplo, Fá# e Dó).
No segundo exemplo o acorde de tônica é prolongado pelo IV (subdominante),
cuja fundamental não está contida no I – de forma semelhante ao que ocorre no
encadeamento I iii. Esses dois encadeamentos têm um direcionamento tonal muito
menor do que I V7 I, contribuindo para uma sonoridade modal (movimento harmônico
fraco).
O acompanhamento do exemplo abaixo mostra como esse recurso é usado para
prolongar o acorde de tônica durante quatro compassos. Localmente há um
prolongamento rítmico dos acordes pela repetição em colcheias consecutivas, gerando
uma estaticidade textural que ajuda a destacar a melodia:

Figura 65 – 1778: Sonata para Piano KV 310, em Lá Menor – 1º mov. (Wolfgang Amadeus Mozart)

A distribuição métrica dos acordes é de grande importância na realização deste


prolongamento funcional: o acorde de tônica aparece nos compassos fortes (1 e 3)
enquanto que o acorde de dominante ocorre nos compassos fracos (2 e 4); outro recurso
41

importante no prolongamento da tônica é o baixo pedal, que reforça o centro tonal Lá. A
figuração rítmica em acordes repetidos destaca a melodia, gerando uma boa estabilidade
textural e temática. Em um nível analítico mais amplo todos esses elementos
contribuem para a afirmação da tonalidade de Lá menor no começo desta sonata.
Existem várias maneiras de usar um acorde intermediário invertido, inclusive
combinando-o com a inversão do acorde imediatamente anterior e/ou posterior. Um
exemplo seria colocar um acorde invertido na segunda nota do baixo para ligar os dois
primeiros acordes das figuras 62 e 63 (justamente o que ocorre na maioria dos exemplos
desta seção da apostila daqui para frente).
A seguir serão apresentadas algumas possibilidades tradicionalmente usadas
para prolongar qualquer das funções principais de uma tonalidade. Em princípio trata-se
apenas de clichês harmônicos, de usos estereotipados das tríades em primeira inversão
(acordes de sexta) e em segunda inversão (acordes de quarta-e-sexta). Na harmonia
tradicional existem cuidados específicos quanto aos dobramentos e à condução das
vozes nestes acordes.
Koellreutter diferencia os acordes de bordadura e apojatura (que ele considera
como “dissonâncias falsas” ou “pseudo-dissonâncias”) das inversões (consideradas por
ele como acordes consonantes cujo baixo não é a fundamental). Para que este ponto
fique mais claro, é importante dizer que na música anterior ao tonalismo a qualidade
acústica dos intervalos predominava, e por isso levava-se em consideração os intervalos
que se formavam entre as vozes, especialmente aqueles contados a partir do baixo. Com
o desenvolvimento da harmonia tonal, a classificação dos intervalos como consonantes
ou dissonantes passou a estar ligada também ao contexto harmônico, à função dos
intervalos dentro de cada acorde e dentro da tonalidade, para além de suas qualidades
puramente acústicas. No tonalismo, uma quarta justa, por exemplo, pode ser uma
dissonância (quando contada a partir da fundamental do acorde) ou uma consonância
(quando contada da quinta justa para a fundamental do acorde). Ainda assim, o sistema
tonal herdou da música anterior a ele alguns cuidados especiais para lidar com uma
quarta justa acima do baixo – intervalo que é evidente em uma segunda inversão40.
Geralmente trata-se como dissonância uma das notas desse intervalo, a qual deverá ser
preparada e resolvida de alguma maneira. Por vezes mesmo um intervalo de sexta acima
do baixo, ainda que não seja considerado como uma sonoridade dissonante por si só (e
daí o termo “dissonância falsa”), merece atenção especial, visto que tende a resolver
descendo para uma quinta justa acima do mesmo baixo41.
Nesse contexto os acordes de sexta (primeira inversão) são classificados em
“acorde de sexta de passagem”, “acorde de sexta bordadura” e “acorde de sexta
apojatura”, visto que ao encadeá-los acontecem movimentos melódicos que lembram,
respectivamente, a nota de passagem, a bordadura e a apojatura. Os acordes de quarta-e-
sexta (segunda inversão) são classificados da mesma forma que os de sexta,
diferenciando-se daqueles pela presença de um intervalo de quarta e pelo fato de que
nos “acordes de quarta-e-sexta bordadura” e “acordes de quarta-e-sexta apojatura” seus
efeitos melódicos lembram bordaduras e apojaturas duplas ao invés de bordaduras e
apojaturas simples. Os “acordes de quarta-e-sexta de passagem” apresentam um

40
A quinta justa, estando no baixo, forma uma quarta justa com a fundamental do acorde, uma vez que o
intervalo de quarta justa é a inversão do intervalo de quinta justa.
41
O que remete à resolução 6-5 descrita na apostila I, p. 17, no item 5.7 (“TENDÊNCIAS DE
MOVIMENTOS MELÓDICOS EM TONALIDADES MAIORES”) e na fig. 8, p. 6 desta apostila
(“Suspensão consonante 6-5”).
42

movimento no baixo similar ao de uma nota de passagem, tal qual seus correspondentes
“acordes de sexta de passagem”. Todos esses clichês funcionam bem para prolongar a
tônica e a dominante, podendo eventualmente ocorrer também em outros graus.

2.4.1.1 ACORDES DE PASSAGEM


a) ACORDE DE SEXTA DE PASSAGEM (abreviatura sugerida: 6P)

É uma maneira de harmonizar uma nota de passagem ascendente ou descendente


feita no baixo, dando a este ponto um significado harmônico e maior densidade textural.
O acorde de sexta é colocado em tempo fraco ou parte fraca de tempo, sobre a nota do
baixo que seria a passagem. Segundo Aldwell & Schachter (2003) os encadeamentos
mais comuns são I-viiº6-I6, V-IV6-V6 e ii-I6-ii6 em ambos os modos e, eventualmente,
III-iiº6-III6 no modo menor. A condução das vozes fica mais fácil com a duplicação do
baixo (terça do acorde) ou da quinta do acorde. Repare que no exemplo abaixo (figura
66c) o movimento direto das vozes internas não configura quintas paralelas, já que o
intervalo do meio é uma quinta diminuta; ao mesmo tempo isso é disfarçado pelo
intercâmbio de terças nas vozes externas, que salta ao primeiro plano durante a escuta.

Figura 66 – Acordes de sexta de passagem.

Uma série de acordes de sexta consecutivos pode ser utilizada para ligar dois
acordes de um encadeamento, da mesma forma que é possível haver uma série de notas
de passagem consecutivas, simples ou duplas42, para ligar duas notas de acorde:

Figura 67 – Acordes de sexta de passagem consecutivos prolongando o acorde de tônica.

42
Notas de passagem duplas frequentemente acontecem na forma de sextas paralelas.
43

A escrita desses acordes requer alguns cuidados para não gerar paralelismos de
quinta e de oitava. Duas possibilidades frequentemente usadas são:
a) Reduzir a textura a três vozes para evitar oitavas paralelas.
b) Evitar as quintas paralelas por meio da escrita de quartas paralelas (como no
exemplo acima, entre contralto e soprano), ou por meio da inclusão de uma
cadeia de suspensões 7-6 que disfarce as quintas paralelas, como mostra a figura
a seguir (também entre as duas vozes superiores):

Figura 68 – Acordes de sexta consecutivos com cadeia de suspensões 7-6.

b) ACORDES DE QUARTA E SEXTA DE PASSAGEM (abreviatura sugerida:


)
O baixo também funciona como um padrão de nota de passagem43 ascendente ou
descendente, sendo a nota do meio oitavada em qualquer voz superior. Das vozes
restantes, aquela que forma intervalo de quarta com o baixo (a fundamental do acorde
do meio) se mantém estática através dos três acordes enquanto as demais seguem o
menor caminho:

Figura 69 – Acordes de quarta e sexta de passagem.

43
Com relação aos acordes imediatamente anterior e imediatamente posterior.
44

2.4.1.2 ACORDES DE BORDADURA

a) ACORDE DE SEXTA BORDADURA (abreviatura sugerida: 6B)

O baixo, sua duplicação oitavada e uma das vozes superiores são mantidos como
notas comuns nas mesmas vozes ao longo de três acordes. Na outra voz acontece o
movimento de bordadura superior que dá o nome a este caso.

Figura 70 – Acorde de sexta bordadura.

As únicas diferenças deste caso com relação ao prolongamento funcional I-vi6


são a obrigatoriedade do retorno ao acorde inicial e o tratamento específico da condução
das vozes, explícita na cifra funcional T5-6-5.

b) ACORDES DE QUARTA E SEXTA BORDADURA (abreviatura sugerida:


)
Este acorde é usado tradicionalmente para prolongar o acorde de tônica ou o de
dominante. O baixo e sua duplicação oitavada são mantidos como notas comuns nas
mesmas vozes durante os três acordes. As vozes superiores restantes sobem e descem
por graus conjuntos, fazendo um movimento de bordadura dupla superior:

Figura 71 – Acordes de quarta e sexta bordadura.


45

2.4.1.3 ACORDES DE APOJATURA

a) ACORDE DE SEXTA APOJATURA (abreviatura sugerida: 6A)

São mantidas três notas comuns entre os dois acordes envolvidos (baixo e duas
das vozes superiores), enquanto a voz restante realiza uma apojatura (em semínimas,
nos exemplos da figura a seguir):

Figura 72 – Acordes de sexta apojatura.

A resolução da apojatura também pode acontecer em um acorde diferente:

Figura 73 – Acordes de sexta apojatura com resolução em acorde diferente.

Esta maneira diferente de tratar as resoluções, assim como a ausência das mesmas,
acabaram levando ao surgimento da tríade com sexta adicionada, parte importante do
vocabulário harmônico impressionista (virada do século XIX para o XX) e já há muitas
décadas amplamente usada na música popular44. Os acordes de nona, décima primeira e
décima terceira também tiveram origem em notas estranhas ao acorde não resolvidas ou
cuja resolução recaía sobre um acorde diferente.

44
Este tópico será abordado na apostila de Harmonia III.
46

O acorde III(#5), gerado pela escala menor harmônica, não tinha grande peso
harmônico no tonalismo dos períodos Barroco e Clássico45, sendo tratado
principalmente como acorde de sexta apojatura sobre a dominante:

Figura 74 – Tríade aumentada na 1ª inversão: acorde de sexta apojatura sobre a dominante.

b) ACORDES DE QUARTA E SEXTA APOJATURA (abreviatura sugerida: )

O baixo e sua oitava são mantidos como notas comuns nas mesmas vozes e as vozes
restantes descem por grau conjunto como uma apojatura dupla. Corresponde ao padrão
do acorde de quarta e sexta bordadura, mas sem o primeiro acorde (compare a figura a
seguir com a fig. 70):

Figura 75 – Acordes de quarta e sexta apojatura.

Para realçar o efeito deste acorde, as notas que formam a apojatura dupla devem
ser atingidas por salto.

45
A tríade aumentada começa a adquirir maior autonomia a partir do período Romântico.
47

Um caso específico é o acorde de quarta e sexta cadencial, utilizado para atrasar


a chegada do acorde do V grau em um final de frase, criando assim maior tensão em
uma cadência harmônica. Este clichê inicia com uma “falsa segunda inversão” do
acorde de tônica que resolve no quinto grau, ou seja, é formado por dois acordes com
função dominante, conforme indicam as cifragens gradual e funcional na figura abaixo:

Figura 76 – Acordes de quarta e sexta cadenciais.

Como recurso de prolongamento da expectativa sobre o acorde da dominante, a


quarta e a sexta podem ser resolvidas uma depois da outra ao invés de simultaneamente.
Para exagerar mais ainda esse prolongamento, nos concertos clássicos era comum
colocar a cadência do solista entre o acorde de quarta e sexta apojatura e sua resolução
sobre a dominante46.

2.2.5 OUTRAS POSSIBILIDADES

Outros casos envolvendo o uso de inversões, ainda que frequentes na literatura


musical, aparecem registrados em pouquíssimos livros47. Um exemplo comum é quando
ocorre a harmonização de uma bordadura inferior ou superior no baixo entre acordes de
mesma função harmônica:

46
Poderiam passar-se vários minutos antes que o acorde de dominante surgisse juntamente com o
tradicional trinado cadencial, usado pelo solista como sinal para a reentrada da orquestra junto à resolução
na tônica.
47
Um deles é o minucioso Harmony and Voice Leading, de Carl Schachter e Edward Aldwell.
48

Figura 77 – Bordaduras no baixo harmonizadas.

De forma análoga aos recursos aqui apresentados, as inversões de tétrades


também podem funcionar como acordes intermediários48:

Figura 78 – Inversões de tétrades como acordes intermediários.

Além do uso de acordes de sexta consecutivos, existem outros casos em que uma
sucessão harmônica é feita por mais de um acorde intermediário:

Figura 79 – Sucessões harmônicas com mais de um acorde intermediário.

48
Na terceira inversão (sétima no baixo) deve-se tomar o cuidado de preparar e resolver a sétima
(mantendo-a como nota comum ou descendo por grau conjunto).
49

Os acordes de passagem, bordadura e apojatura ampliam as possibilidades de


construção de marchas harmônicas diatônicas:

Figura 80 – Marcha harmônica diatônica com acordes de sexta de passagem (a),

com acordes de quarta-e-sexta bordadura e de sexta de passagem (b).

e com acordes de quarta-e-sexta apojatura (c).


50

PERGUNTAS PARA REFLEXÃO E DISCUSSÃO:


a) Seria possível harmonizar qualquer nota estranha ao acorde na criação de um
acorde intermediário? Experimente colocar um acorde para cada nota melódica,
em cada um dos exemplos de notas estranhas ao acorde anteriormente estudados
nesta apostila.
b) Qual é a diferença entre um “acorde de sexta bordadura” e uma simples
bordadura superior?
c) E qual é a diferença entre o “acorde de quarta e sexta apojatura” e uma
“apojatura dupla”?
d) É possível utilizar as fórmulas aqui apresentadas (acordes de passagem,
apojatura e bordadura) sobre outros graus do campo harmônico que não os das
funções harmônicas principais?
e) Como ficariam em tonalidade menor cada um dos exemplos aqui apresentados
somente em tonalidade maior?
f) É possível haver uma sucessão harmônica dentro de uma progressão harmônica?
E o contrário? E uma sucessão harmônica dentro da outra?

Você também pode gostar