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ZH ] w J elogio ao toque cou como falar de arte feminista a brasileira ROBERTA BARROS aa68 Barros, Robert, 1979 Eu bea Bap Ride ani: | ete ica. 29m SBN 9788559992007 emporoce 2-Mulhers na 1 tino. aeting Prodases Cris LA pe cee WI cps2083°079 Woden A mateo 1. Introdugao Em 2009, a entrevista pela qual passei no processo de selecao para © ingresso no doutorado acabou por se estender por um lastro de tempo ao menos dobrado em relacao ao outro candidato. Cerca de 50 minutos ou mais foram dispensados inteiramente na arguiglo so- bre qual seria minha estratégia para garantir o aleitamento de meu bebé, ainda na barriga aquela altura, enquanto estivesse cumprindo 08 créditos das disciplinas iniciais do curso, e também para enumerar (08 casos de insucesso de outras colegas mulheres que se propuseram a multiplicarem-se entre a casa e a rua, Cerca da metade da fala de meus avaliadores, portanto, estava impregnada pelo dever de me con- frontar com 0 imperativo da amamentagao. Dar de Si - trabalho de ordenha performitica de meu proprio leite ‘materno para ofertar ao piiblico ~ fora planejado nesse mesmo ano, para ser realizado em novembro, mas minha filha desmamou aos nove meses, pouco antes dessa ocasidio. Nao ha como negar, aqui, a ansiedade que assombra a maior parte das mulheres-mies: o receio de nao ser capaz de cumprir a sina primordial de saciar, de alimen- tar seu rebento, o que é um tanto paradoxal, jé que nao deixa de ser uma forma de escravizacdo desse corpo materno, Nao ha como negat, igualmente, a dor instaurada nesse desgarramento de corpos, na in- terrupgao da continuidade de contornos corporais entre mie e filha(o) = um processo amplamente representado em Post-Partum Document (973-1979), de Mary Kelly, obra que inseriu a voz do feminino na arte conceitual. Acrescente-se, todavia, que, naquele momento, sobrepés-se & mi nha melancolia a frustragao de nao ser capaz de produzir o trabalho. Assim, o imperativo contemporaneo do desempenho extremo aliou- se obrigacdo atribuida ao corpo materno de produzir leite, Se a som- bra de nossa “nova cultura da conquista” € 0 consumo em massa de ‘medicamentos e se a busca alucinada pelo controle tornou licita a experigncia com o artificio quimico para multiplicar artificialmente as possibilidades e capacidades do “corpo natural’, nao me esquivei de recorrer a substincias farmacéuticas e a estimulagdes com bom- bas elétricas quando meu leite secou. A pertinéncia desse exemplo se orienta no sentido de ressaltar a necessidade de questionar a citada logica da produtividade e, consequentemente, a referida incompati- bilidade de sucesso nas duas esferas, na medida em que, ao aceitar esses imperativos prontamente, acaba-se por reforcar as paredes que separam a casa da rua, com a diferenga de que, nesse caso, a mulher acabaria por se trancar do lado de fora. De qualquer mode, a falta de sucesso com esses recursos adiou o Dar de Si por cerca de dois anos. Evidentemente, 0 comentario anterior sobre minha entrevista abre margem para a leitura do transbordamento de meu leite para fora da boca da minha filha na performance Dar de Si como uma resposta tardia ao referido momento. Na realidade, entretanto, essa pesquisa jé havia comegado com o trabalho Costurar, realizado em 2005 (que sera apresentado mais detalhadamente no segundo capitulo), em funcao do qual foi imediato buscar referéncias nas obras da j citada Mary Kelly e de outras artistas, como Adrian Piper, Orlan, Valie Export, Cindy Scherman, Jenny Holzer, Bérbara Kruger e Guerrilla Girls. A surpresa, porém, foi a dificuldade de estabelecer um dilogo imediato com manifestagoes da arte brasileira contemporanea e também a ¢s- cassez de apoio bibliografico produzido ou traduzido no Brasil sobre 0 feminismo aquela época. Os ecos da militancia feminista declarada € das estratégias agressivas na abordagem das questées de género manifestadas nas artes norte-americana e europeia pareceram, pois, nao terem sido sentidos aqui tio sonoramente. A demanda daquele ‘meu trabalho de 2005 impés, assim, a necessidade de abordar a falta de um lugar histérico para o femninismo no Brasil e de mover uma investigacao tedrica conceitual sobre o tema, da qual, sublinhe-se, participaram, ao mesmo tempo, as minhas elaboracdes praticas. Dai as proposigdes posteriores a Costurar, como € o caso de Dar de Si (que serd analisado de modo mais aprofundado no terceiro capitulo). Assim, para compreender as singularidades que a questio do feri- nismo assume no Brasil, foi fundamental recorrer aos escritos de Heloisa Buarque de Hollanda, Margareth Rago e Cynthia Sarti, En quanto na década de 1960 a arena internacional fervia com as trans- formagbes culturais e comportamentais conquistadas pelas rebelides jovens e pelas lutas raciais e sexuais, o Brasil vivia os momentos crit cos do governo militar pés-golpe de 1964. Cabe lembrar, por exemplo, que, em 1968, os protestos contra a Guerra do Vietna, 0s movimentos hippie e negro norte-americanos, e as explosées estudantis parisien- ses coincidiam aqui com o cendrio do “golpe dentro do golpe”, quando © pais entrou nos anos de chumbo da ditadura militar. Mulheres norte-americanas ¢ europeias empunhavam as bandeiras de autonomia feminina com grande énfase nas decisdes sobre o pr6- prio corpo, levando a esfera pablica reivindicagdes anteriormente con- sideradas circunscritas & vida privada, delimitando, assim, expressdes de confronto bastante nitidas e localizadas. Apesar de conectadas, de certa forma, ao movimento feminista internacional, as brasileiras, de outra sorte, foram obrigadas a se concentrar em metas coletivas, como a defesa dos direitos humanos, da liberdade politica e da melhoria das condigdes sociai de vida. Isto porque, em tempos de luta contra 0 autoritarismo, 0 feminismo, em um momento particularmente im- portante de sua autodefinigZo, vinculou-se aqui a partidos politicos, a associagdes de esquerda e, de forma delicada, a setores progressistas da Igreja Catdlica ~ aquela época uma das forgas mais importantes de resisténcia ao regime militar. Por um lado, a alianga com a Igreja abriu as mulheres um amplo campo de militancia ¢ resisténcia, potencializando 0 espago domés- tico da familia, entio ameacado pela violencia da repressio, e politi- zando 0 papel tradicional da Mae. Com a bandeira da maternidade, definiram-se vitorias politicas surpreendentes, como 0 Movimento pela Anistia, que promoveu uma repercussao nacional ¢ internacio- nal as torturas ¢ aos assassinatos cometidos pelos governos militares. Por outro lado, entretanto, abriu-se mo do debate sobre temas femi- nistas centrais, como a liberdade sexual, 0 direito ao aborto e ao div6i cio. A vertente do movimento feminista que se associou aos partidos de esquerda se viu igualmente impedida de abrir espaco para tais ‘questdes, uma vez que pareciam demasiadamente femininas, priva- das, ou mesmo, “burguesas” aos olhos marxistas. © tardio estabelecimento da critica feminista como érea de conhe- cimento concede-nos, ainda, mais singularidades. Em O Estranho Horizonte da Critica Feminista no Brasil, Heloisa Buarque de Hollanda (2991) coloca em debate o fato de que, no contexto internacional, esses estudos ganharam estatuto académico na segunda metade dos anos de 1970, enquanto aqui isso se deu com um lapso de cerca de uma década. Desse modo, a0 contrdrio dos outros pafses, nossa producio critica feminista sofreu uma répida institucionalizagao, sem que essa questo complicada passasse por discussao ou problematizagao. En- tretanto, embora tenha havido uma “sdbita” assimilago dos centros de estudos sobre a mulher, a distribuigdo geopolitica desses progra- ‘mas pareceu nao ter penetrado nos redutos académicos da Universi: dade de Séo Paulo, da Universidade de Campinas e da Universidade Federal do Rio de Janeiro ~ os grandes centros formadores de Letras, que concentrou a maioria das pesquisas na area -, dando-se, na reali- dade, no nordeste, sul e centro-oeste, em universidades que estavam em processo de consolidacao de suas pos-graduacoes. Consequentemente, Heloisa chama atengdo para “um tipo especi- fico de imprecistio” que se manifesta quando se formam grupos nicleos de pesquisa sobre a mulher, e ressalta a dificuldade que profissionais liberais, politicas' e intelectuais brasileiras ainda experi- mentam para sustentar publica e abertamente seu engajamento nas lutas feministas. Tal desconforto parece se transferir também para 0 discurso artistico e cabe sublinhar que as produtoras de arte no Bra- sil, mesmo na década de 1990, bem como na contemporaneidade, continuam recusando qualquer forma de autoidentificacdo direta com as demandas feministas. Aparentemente, tornou-se comum a impressao de que o campo das artes plisticas brasileiras nao foi acometido pelo mal da discriminacao sexual, diferentemente, por exemplo, do que ocorrera nos Estados Unidos. No convivio com outros artistas, em sua maioria estabeleci- dos entre Rio de Janeiro e S20 Paulo, eu esbarrava no argumento que ‘comprovaria ¢ justificaria nosso “cendrio positivamente incomum’ enquanto 0s norte-americanos construiram seu Expressionismo Abs- 8 trato com nomes masculinos, aqui, diferentemente, Lygia Clark e Ly- gia Pape estdo entre as figuras mais marcantes do Neoconcretismo; e, para voltar ainda mais na historia, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti do Movimento Antropofigico. Quanto a isso, possivelmente nio é motivo de admiragao 0 fato de 1 distingZo de Tarsila do Amaral e Anita Malfatti como principais pintoras do movimento modernista brasileiro nao ter se dado de ime- diato, Nesse sentido, de acordo com a historiadora e critica de arte ‘Aracy Amaral, 0 reconhecimento dessas duas mulheres fora acionado ‘somente a partir dos anos de 1960, com a realizagao de leiloes em ‘Sao Paulo, momento em que o mercado de arte foi implementado no Brasil e 0s modernistas emergiram como artistas de valor comercial” Um dado que poderia ser celebrado como eco da efervescéncia das vozes feministas das arenas norte-americana ¢ europeia num Brasil prestes a ser tomado por momentos criticos do governo militar pé golpe de 1964, de outra sorte, inspirou-me certa desconfianca. Apresentaramse, ento, oportunamente, as seguintes indagagdes Quais sao as linhas discursivas e como esto tramadas para alimentar © mito da democracia sexual e racial da sociedade brasileira? Quais {orcas estio agenciadas em nosso pais para manter o termo feminista apartado dos centros de producdo de conhecimento, incipiente nas produgées bibliogréficas e esvaziado nos debates piiblicos a ponto de ‘manté-lo brumuroso o suficiente para ainda softer tamanha recusa? Por que os esforcos de pesquisa sobre as questdes de género encon- tram-se majoritariamente circunscritos na 4rea de Letras? Por que nao ha a mesma sensibilizaclo a respeito da temitica feminista nas artes plisticas no Brasil, ainda que qualquer sobrevoo aleatério so- bre colecdes privadas ¢ acervos ptiblicos de arte brasileira revelem a desproporgao numérica aguda entre homens e mulheres que se inse- riram e se consolidaram historicamente em nosso circuito de arte’? {A prinefpio, isso poderia ser interpretado como efeito dos citados comprometimentos de nosso feminismo em seu desenrolar histori- co ¢, portanto, como sintoma de um “atraso” nas conquistas desse ‘movimento se comparado aos campos internacionais de contestagao. “ Todavia, a minha hipétese de trabalho que moveu toda essa pesquisa apontava para uma distinta interpretacZo. A meu ver, era interessan- te perceber o quanto as particularidades do contexto brasileiro e a re- cusa, ou mesmo, a impossibilidade de assumir uma postura politica explicita contribuiram para desviar as artistas brasileiras de certas armadilhas, como a fixacio na concepcdo moderna do corpo reificado, a reproducio de interpretagdes distorcidas das teorias psicanaliticas a ratificagdo da légica do olhar masculino que objetifica a mulher na sociedade patriarcal. Nessa medida, minha proposta era investi- gar como as brasileiras foram capazes de antecipar, j4 em fins dos anos de 1960, algo que apenas mais tarde se apresentou nos contextos norte-americano e europeu: vias para problematizar a categoria “mu- Iher” e suspeitar de sua coeréncia e de suas exclusdes constitutivas. De tal sorte, conforme argumentarei nos capitulos que se seguem, anteciparam também encaminhamentos que podem direcionar hoje saidas para as teorias e praticas feministas diante das amarragbes¢ que se impoem na contemporaneidade. © corpo feminino, tio frequentemente estigmatizado, explorado € representado na cultura visual ocidentals, “de repente’, foi perce- bido e reivindicado como arma e usado pelas militantes em suas contestagdes politicas. Destarte, quando, a partir da década de 1970, 0 movimento feminista transbordou para o mundo da arte, as mul- heres comecaram a usar seus préprios rostos e corpos em perfor- mances, filmes, videos e trabalhos fotogrificos em lugar de apenas serem usadas como modelos ou suportes em obras de artistas ho- mens. As novas midias, por conseguinte, conforme ainda seré res saltado, apresentaram-se como um valioso instrumento nessas elabo- ragies. Tal transbordamento foi também sentido no tom aguerrido dispen- sado pela te6rica Linda Nochlin, em seu texto de 1971, escrito em meio ao acalorado nascer do movimento de Liberacgo da Mulher, “Why have there been no great women artists?” abriu caminho para 0 estudo feminista da arte, na medida em que, aquela altura do inicio da década de 1970, conforme a propria autora escrevew na introdugio do livro Women, Art, and Power and Other Essays (1989), ndo havia ‘uma historia da arte feminista, de sorte que, assim como todas as ou- tras formas de discursos e de producdo de saber, era algo que deveria ser construido, Para Nochlin (1989), apresentar a pergunta “Por que nao houve grandes artistas mulheres?” implicava em recolocar a armadilha con- tida na resposta que a propria interpelacao carrega implicta e insidi- osamente: “Nio houve grandes artistas mulheres, porque mulheres Sto incapazes de grandes feitos". Uma forma de reacdo precipitada a tal provocagio, respondendo-a do mesmo modo como esti posta, de- sencadeia a exumagio de mulheres silenciadas pela historia da arte Por um lado, a autora reconheceu algum valor na dedicagao arque- ologica em resgatar pinturas florais esquecidas ou no empenho em “demonstrar que Berth Morisot fora menos dependente de Manet do ue fomos levados a acreditar" (NOCHLIN, 1989, p. 147). Por outro, contudo, a autora alertou que os esforgos e pesquisas para responder 8 Provocacio acabam por reforcar tacitamente as implicagdes negativas ali depositadas. De acordo com o panorama tragado por Heloisa Buarque de Ho- anda em “Feminismo como critica da cultura’, esse caminho arque. ol6gico foi trilhado a partir da década de 1970 pela cortente teérica feminista do “polo conceitual anglo-americano”, Uma das principais misses dessa tendéncia de forte penetracao na érea da teoria literéria tem sido a problematizacio do paradigma essencialista ¢ universa- lista da critica literéria tradicional, que determina os critérios e as es- ‘tratégias interpretativas determinantes do que considerado literdrio ou nto litersri >. Nesse sentido, seu segundo compromisso vem con- sistindo em resgatar os trabalhos das mulheres escritoras excluidas da historia da literatura, por meio da definicao de uma “identidade feminina” que “aponte para as diversas formas de sua experiéncia, rejeitando, enfaticamente, a repeticdo e reprodudo dos pressupostos mitolégicos da critica literdria tradicional, que, via de regra, identifica 4 escrita feminina com a ‘sensibilidade contemplativa’, a ‘linguagem imaginativa' etc.” (HOLLANDA, 1994, p. 12. Em outro polo, ainda segundo o texto de Hollanda, diagramou-se 6 co ferninismo francés’. A partir da segunda metade dos anos de 1970, com a progressiva consolidacio do prestigio do pensamento tebrico de Derrida e Lacan, essa linha de anilise veio trabalhando primordi- almente com os conceitos de differance e de imagindrio, em busca da definico de uma écriture féminine e da identificagio de uma possivel “subjetividade femninina’ ~ o que parece ser outra tentativa de res ponder a pergunta: “Por que nao howve grandes artistas mulheres?”. ‘Tal direcdo diz respeito & assertiva de que haveria um tipo diferente de grandiosidade para a arte de mulheres que no aquela da arte pro- duzida por homens. Essa suposigZ0, desse modo, postula a existéncia de um distinto ¢ reconhecivel estilo feminino, que se diferencia em suas qualidades tanto formais quanto expressivas, por estar baseado no cariter especial das experiéncias da situacio da mulher. Con: forme Nochlin (1989) ressalta, aparentemente, a razoabilidade desse argumento ancora-se na constatacdo de que, de forma geral, a situaglo das mulheres na sociedade, incluindo as artistas, é, de fato, diferente daquela experimentada pelos homens. Nesse sentido, seria esperado {que a arte produzida por um grupo de mulheres propositalmente ar- ticulado e unido conscientemente sob o propésito de dar corpo a essa experiéncia feminina fosse realmente identificével estilisticamente como arte feminista ou, ao menos, arte feminina. Porém, tal hipétese ndo se confirma, jé que, enquanto certas quali dades estilisticas ¢ expressivas podem ser claramente observadas para definir, por exemplo, os membros de vanguardas artisticas do infcio do século XX, 0 mesmo nao pode ser dito de certas qualidades de “feminilidade” que deveriam vincular os estilos das mulheres ar- tistas de forma geral Nenhuma sutil esséncia de feminilidade parece vincular 0 trabalho de Artemesia Gentileschi, Mme Vigée-Lebrun, Angélica Kauffmann, Rosa Bonheur, Berthe Morisol, Suzanne Valadon, Kathe Kollwitz, Barbara Hepworth, Geérgia O'Keeffe, Sophie Tacuber-Arp, Helen Frankenthaler, Bridget Riley, Lee Bontecou, ou Louise Nevelso {..] Em: todos 0s casos, mulheres artistas ¢ escritoras parecem se aproximar mais de outros artistas c escritores de sew préprio periado e panorama do que dentre elas mesmas (NOCHLIN, 1989, p. 148). £ de extrema importincia, contudo, ressaltar, sob uma perspecti- va politica, a necessidade tética do empenho pela definicao de uma “identidade feminina” e do lugar da diferenca na luta contra as ins- tituigdes de poder naquele contexto histérico dos anos de 1970. Isso Posto, cabe, em seguida, deixar claro que as propostas de investimento no resgate de uma “subjetividade feminina” pecam por acreditar nos aspectos “libertérios” dessa linguagem, na medida em que, por um lado, ignoram as contribuigdes dos artistas homens para a producio do “imaginério feminino” e, por outro, comprometem a eficacia te6ri- a do feminismo ao espelhar as abordagens essencialistas € univer. salistas dos discursos de poder dominantes as quais pretendiam de antemio recusar, Enesse sentido que Nochiin (1989) prope a indagacio sobre quem formula essas “questdes” e, ainda, a quais propésitos elas esto agen- ciadas, para, enfim, demonstrar o(8) equivoco(s) presente(s) nas duas vias de resposta acima apresentadas & provocacdo “Por que nio houve grandes mulheres artistas Aceitar a pergunta da forma como esti posta implica, consciente ou inconscientemente, um acordo tacito com a ideia equivocada ~ part Ihada entre o senso comum ~ de que arte é a expressio pessoal direta da experiéncia emocional individual, a traducdo da vida pessoal em termos visuais, o que acaba por criar vinculos improvaveis entre Mi- chelangelo e Van Gogh, Raphael e Jackson Pollock. Sob o rotulo de “Grande Artista’, eles sto apresentados como incorporadores de uma habilidade sobrenatural, de um poder misterioso e atemporal mani- festado de forma espontinea desde a infincia, independentemente de qualquer encorajamento externo®, Sao, portanto, fios de uma estraté- sia para consolidar o lugar eo status da arte na sociedade. Entretanto, do modo como sio tecidas, a0 colocar em segundo plano as estruturas sociais ¢ institucionais dentro das quais o artista viveu e trabalhou, tais histérias formulam ardilosamente o seguinte silogismo: ‘Se as mulheres possuissem 0 *Génio’, entdo, esse talento jd deveria terse manifestado. Mas ele nunca se revelou. Donde se conclui que a mulher 1ndo possui o génio artistico. Afinal, se Van Gogh suplantou até mesmo « fome ¢ conseguiu, por que as mulheres ndo o fizeram? (NOCHLIN, 1998, p.150)10 Quanto a isso, Nochlin (1998, p. 150) concordou categoricamente ue, no inicio da década de 1970, nao houvera, de fto, » estudadas e apreciadas”. Segundo ela, nenhuma Stusagao de terem os homens operado uma distorgio histrica iia modifica o fato de nao ter havido uma mulher equivalente a Miche. ndt, Delacroix ou Cézanne, Picasso ou Matisse, ou fecentes, a De Kooning ou Warhol, da mesma for Se nn no houvera negros ou artistas provenientes da aristocracia Se fosse verdade a existncia de um vasto ntimero de grandes artistas mulheres “ocultadas” pela Histéria, ou se devesse haves pardmetros diferentes para a arte de mulheres em oposigao a de homens, argu- senta Nochlin, no haveria, entio, motivo pelo qual as feministas deveriam lutar. Torna-se aqui pertinente, pois, 0 seguinte exercicio de ret6rica: se tivesse sido escrito “Why have there been no great women artists? duas décadas depois, apés a série de retrospectivas da obra de Louise Bourgeois em grandes museus americanost, por exemplo, estaria a Cred ate adueles nomes de “tempos mais recentes”indicados por Linda Nochlin? Entretanto, por outro lado, se o artigo nao tivesse, doe 71, sberto caminho para o estudo feminista da arte nos Esta, Unidos, tais exposigdes teriam encontrado espaco de tamanha relevancia na instituigdo da arte? a produgao de arte, ‘ordem social sustentada pelas instituigdes de poder e a produgio de saber. Em 1964, apés um hiato de 11 anost2, Louise Bourgeois expés um rns unto de obras na Stable Gallery, em Nova York. Simultanes Mente, outra galeria de Nova York apresentou a mostra individual de ‘obras sobre papel, intitulada “Recent Drawings by Louise Bourgeois”, Dois anos mais tarde, Lucy Lippard organizou a exposicao “Eccentric Abstraction’, na Fischbach Gallery (NY), na qual o trabalho de Bour- seois dividiu espago com o de uma geracio de artistas mais jovens, tais como Eva Hesse e Bruce Nauman. A seguir, entre 1967 ¢ 1968, Louise Bourgeois engajou-se ativamente em eventos politicos e femi- nistas da cena novaiorquina, ao lado, dentre outras tantas, de Linda Nochlin, conforme esta mesma relembra em seu texto “Why have there been no great women artists? Thirty years after", Nesse sentido, para ampliar apenas mais um tanto nossa lista de indagasdes especulativas, coloca-se: se Nochlin e Bourgeois, 20 que Parece, desfrutavam de certa proximidade, se ambas residiam na mesma cidade e se ali o trabalho de Bourgeois estava sendo exibido novamente desde a segunda metade da década de 1960, nao teria No- chlin conhecimento dessa producio ou nao teria considerado suas obras “geniais” o suficiente para retiré-las da categoria de “boas e in- teressantes’, ¢, ent2o, admiti-las junto as de De Kooning e Wathol ‘como “grandiosas e extraordinérias” em seu artigo de 1971? Em suas lembrangas de “30 anos depois”, Nochlin escreveu que uma das metas do movimento de mulheres na arte durante aque- les anos iniciais foi modificar ou deslocar a tradicional - e quase in- teiramente definida por homens ~ nogio de “grandeza’. Apesar de ter Posto em suspeicio irrevogivel a ideia de “génio artistico”, no texto de 1971, parece evidente o fato de a tebrica nao ter sido capaz de ope- rar, aquele momento, o referido deslocamento e, portanto, de propor outros parimetros para se destacar a importancia de um(a) artista, 0 que se refletiu em seu siléncio quanto a Bourgeois. As justificativas para isso foram sugeridas pela propria autora. Nochlin argumentou que, nas décadas de 1950 1960, houve nos Estados Unidos a recon- sagrasdo do ideal de grandeza e que este era o tinico modo de iniciar a abordagem sobre uma obra de arte. Além disso, naqueles anos pés- Segunda Guerra Mundial, os quais também estimularam disputas culturais, a nosio de “grandeza’ fora contundentemente construida como uma caracteristica imutével, atada a ideia de virilidade (0 falo em si), na medida em que a promogao de “intelectuais” era uma das Prioridades da guerra fria, em meio ao clima de temor quanto “A Perda da Europa Ocidental para o Comunismo’. Retrospectivamente, Nochlin admite que nao estava conscientemente atenta a quo con. tempordneas eram as novas forgas agenciadas na estratégia de eleicao dos “génios", 4 partir disso, podemos supor que a presenga do conceito de gran- deza nos discursos da época era tio impregnante que, 20 mesmo tem. oem que permitiu a autora questioné-lo, fez com que ela se trafsse, amarrando-se a ele, engessando-se sem poder vir a dispenséclo para {tazer por outras vias o trabalho de Bougeois, por exemplo, para os debates dentro da instituisio da arte. Outra razlo para tanto se im. és pelo fato de que, apesar da existéncia da escola de Frankfurt e de Freud no repertério dos criticos e historiadores da arte norte-america nos, “Lacan e as ferninistas francesas eram pequenos pontos no hori- onte”, nas palavras da propria Nochlin,e, por conseguinte, naquele inicio dos anos de 1970, nio estavam incorporados aos seus recursos ‘eéricos. Todavia, ao longo dessa década, concomitantemente ao de- Senrolar do movimento de mulheres e seguramente muito em fuungao dele, tal corpo teérico penetrou na academia e no mundo da arte a seu redor, impactando 0 modo de se pensar sobre género e sobre a sexu. alidade, e, consequentemente, o modo de olhar a produgdo artistic, Assim, apés um percurso que a propria pergunta “Why have there been no great women artists” contribuiu, em 1971, para desencadear, 3 inventividade e a originalidade ~ insignias da nocdo de grandeza ‘modernista ~ perderam centralidade para outros dois parimetros aos Guais a obra de Louise Bourgeois se relaciona com bastante estrei- {eza: o papel da biografia na interpretaclo do trabalho de arte ea nova importincia do abjeto, do informe, ou do poliforme/multforme, De tal Sorte, & entrada da década de 1980, foi inaugurada a primeira retros. Pectiva de uma mulher no Museu de Arte Moderna de Nova York: “Louise Bourgeois: Retrospective’, com itineréncia por outros impor ‘antes museus americanos. A obra da artista, que jé vinha expondo no cenério cultural norte-americano desde a década de 1940, entrou em proeminéncia e ganhou reconhecimento nas instituigdes de arte, }bem como nos circulos académicos, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Quando, enfim, Linda Nochlin recolocou a pergunta “Why have there been no great women artists?”, em 2006, o nome de Bourgeois, incontestavelmente, foi um dos primeiros a ser destacado como “ex- traordinario’. A respeito dessas artistas enumeradas no artigo, torna- se fundamental a abertura de um parénteses para observar a geografia da edigdo: quando nao sio nova-iorquinas por nascimento, sio mu- Iheres de estados préximos e europeias, que, em sua grande maioria, elegeram a cidade como casa durante algum periodo de suas vidas; havia apenas duas americanas da costa oeste que, entretanto, tam- bem estiveram em Nova York's - algo que assinala eloquentemente as disputas internas ao proprio feminismo, as quais sero mais detalha- das a seguir no primeiro capitulo. Na medida em que abrimos espaco para falar em geografia, apre- sente-se logo 0 argumento de Susan Bordo quanto ao poderoso mapa conceitual que encurralaria e manteria os estudos feministas localiza- dos “na regio que Simone de Beauvoir chamou de ‘Outro” (BORDO, 2000, p.tt). Segundo Bordo (2000), Beauvoir teria sido a primeira filosofa a desafiar a nogdo de que ha uma “condicio humana” compar. tilhtada por todos, abalando a presumida universalidade, neutralidade € unidade do “sujeito” moderno, e expondo, com isso, que “o Homem € realmente o homem”, Nesse sentido, se esse Homem, enquanto ser corpéreo, genderizado, nao poderia mais ser imaginado como deten- tor de uma visio elevada, desinteressada e onipotente da realidade, os paradigmas da verdade e do método, entdo estabelecidos para a produco de saber tedrico-flos6fico, deveriam ser questionados. Apesar de as suspeitas provocadas por Segundo Sexo (BEAUVOIR, 2009) terem se derramado por todas as disciplinas, a leitura que se erpetua desse trabalho é de uma simples defesa dos “direitos” do Outro, ao contrério de critica cultural geral. De acordo com Bordo, Beauvoir no entra nos créditos da “grande queda do sujeito”, nem mesmo na maior parte daqueles revisados por muitas intelectuais feministas que declaram comumente “terem aprendido suas ligdes dos ‘pais pés-estruturalistas’ mais do que das ‘mies feministas” (BORDO, 2000, p. 16). As feministas contemporaneas acabam, pois, por se tornarem ctimplices do “silenciamento das mulheres”, no caso especifico, das produtoras de saber, ao dispensarem um tratamento punitivo aos seus trabalhos, denunciando-os ou rejeitando-os por seus “erros” — ou mesmo simplesmente ignorando-os -, em dese- quilibrio ao olhar cordial e tolerante quanto ao pensamento dos filéso- fos masculinos, em que nao encontrariam “equivocos”. Isso acontece, em grande parte, porque, no contexto cultural oci dental forjado pelas dualidades de género, hi forgas a nos inclinarem para uma “leitura guetizadora’ dos trabalhos feministas, como se cles reforgassem tais dualidades, como se todos estivessem apenas defendendo uma incluso maior ou uma representagio melhor das mulheres e de suas diferencas. De tal sorte, independentemente do modo como a mulher filésofa “veste a si mesma ou aos seus insight (BORDO, 2000, p. 25), independentemente do quao amplos forem seus argumentos e do quao sio inventivos em sua subversividade, ela ‘acaba quase sempre mantida em seu lugar: nos “periféricos” estudos de género; na casa, na cozinha, no prato. ‘Tal contexto cultural é tio penetrante que, conforme constata Su san Bordo, outras feministas, em reacio, participam de seus proprios desaparecimentos ao tentarem se proteger encolhidas dentro mesmo das fronteiras que lhes foram delineadas, por temerem as acusagdes de “‘essencialismo’, racismo, destruigdo de cinone ¢ desprezo 20 homem-branco” (BORDO, 2000, p. 15)- Um comportamento con- trério ao comentado acima em relagao ao que se percebe da producao de saber artistico - tanto da critica quanto da pratica de arte — no Brasil, em que as produtoras de arte continuam se deixando afetar pelo referido desconforto em se autoidentificar com as demandas feministas, mesmo ap6s a anistia politica e ainda na contemporanei- dade Nesse sentido, ao retomar tal observacdo sobre as vestes que as ar- tistas brasileiras evitam para seus insights e suas obras, é preciso res- saltar que, qualquer recorte pretendido por um didlogo sobre o tema feminismo no campo da arte brasileira, necessitaré, evidentemente, Partir de uma investigacdo, ainda que assuma as vezes de pano de fundo sobre o que afinal é a arte feminista. A aproximacao entre arte ¢ feminismo sugere a relagdo entre as demandas das politicas femi- nistas, os debates da teoria feminista e as elaboragdes (estéticas) de artistas influenciadas por tais preocupagées. Entretanto, quando se suprime a conjuncdo entre as duas palavras, 0 que mais é excluido desse espago entre os dois termos? Seria feminista uma categoria Conceitual ou estética significativamente relevante quando aplicada a obras de arte? E se adjetivada para se associar & palavra artista? A partir dos indicios sobre os quais discorremos anteriormente, Parece nao haver artista feminista no Brasil. Assim, como entdo Propor uma conversa a esse respeito? Por mais dbvio e simples que Possa parecer 0 comentrio de Helena Reckitt em Art and Feminism (2001), 0 fato de uma artista ‘ejeitar a associagio de seu nome ao feminismo nao deve significar auséncia de influéncia das deman das politicas feministas ou dos debates da teoria feminista em sua obra. Nessa direcao, proponho restaurar a conjuncao entre as palavras arte e feminismo para abrir espaco a uma perspectiva feminista de interpretagao atenta 2o uso da delicadeza como um mecanismo de enfrentamento e a0 uso das abordagens mais poéticas das questées femininas como uma forma de sublinhar as especificidades das dife- Tengas entre as mulheres e de ressaltar a pluralidade politico-cultural de suas demandas, de suas necessidades objetivas e de suas formas de expressao. © propésito, pois, de trazer para os pardgrafos introdutérios deste livro comentarios sobre as duas respostas de Linda Nochlin a uma mesma provocacio €, como j defendido acima, reafirmar a nocio de influéncia e implicagao miituas entre 0 contexto histérico, a produgao de arte € a produsdo de saber. Desse modo, pretendo reapresentar a ertinéncia da postura feminista dentro da esfera das artes plisticas, especificamente em um contexto brasileiro de escassa producao bibli- ografica sobre a produco artistica das mulheres e do ainda timido 4 esforco curatorial na mesma direcio”. Nesee sentido, no primeiro capitulo a partir de wma espécie de con: frontacao entre duas obras expostas 20 piblico no ano Sr ‘que nasci Maroc ¢ feido (1979) da artista brasileira Ana Maria Maiolino, ¢ Dinner party (197479), da norte-americana Judy Chicago -, pretendo pontuar as peculiaridades que o contexto politico brasileiro dos anos de 1960 e 1970 impingi 20 desenrolar de nosso mov imento de mu Theres, propondo um modo de compreender na arte Unt “ferninismo 4 brasileira’, Para tanto, procure’ investigar os modos come ® heranga dde mecanismos das vanguardas da arte brasileira do século XX veio 4 tona na obra de Maiolino com as feigbes de um feminism) menos aguerrido, escamoteado, doce. Nesse meu percurso de escrita, inten-

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